será o benedito mario de andrade

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  • 7/24/2019 Ser o Benedito Mario de Andrade

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    Ser o Benedito!conto de Mrio de Andrade

    Byadmin| March 20, 20130 Comment

    A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada naFazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase spernas, nos seus treze anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversavacom os campeiros, ficara ali, de lado, imvel, me olhando com admirao. Achando graanele, de repente o encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava doexcesso de minha presena. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas nopde agentar a comoo. Mistura de malcia e de entusiasmo no olhar, ainda levou amo boca, na esperana talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer:

    O hme da cidade, chi!

    Deu uma risada quase histrica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos,desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis,oito pernas, nem sei quantas, at desaparecer por detrs das mangueiras grossas dopomar.

    ***

    Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. S l pelas horas da tarde, quando eu medeixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossastardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueiro que defrontava o terrao, unstrinta passos alm, e ficava, s pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos,s vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esforava por prender a rdea domeu cavalo numa das argolas do mangueiro com o lao tradicional, o negrinho saiu no

    sei de onde, me olhou nas minhas ignorncias de praceano, e no se conteve:

    Mas ser o Benedito! No assim, moo!

    Pegou na rdea e deu o lao com uma presteza serelepe. Depois me olhou irnico esuperior. Pedi para ele me ensinar o lao, fabriquei um desajeitamento muito grande, eassim principiou uma camaradagem que durou meu ms de frias.

    ***

    Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O queguardei mais dele foi essa curiosa exclamao, Ser o Benedito!, com que ele

    arrematava todas as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque onegrinho no me deixava aprender com ele, ele que aprendia comigo todas as coisas dacidade, a cidade que era a nica obsesso da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanhoardor ele punha em devorar meus contos, que s vezes eu me surpreendia exagerandoum bocado, para no dizer que mentindo. Ento eu me envergonhava de mim, voltava smais perfeitas realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim edevorava os homens. Qual, Benedito, a cidade nopresta, no. E depois tem atuberculose que

    O que isso?

    uma doena, Benedito, uma doena horrvel, que vai comendo o peito da gente pordentro, a gente no pode mais respirar e morre em trs tempos.

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    Ser o Benedito

    E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a prpria tuberculose que o iamatar. Mas logo se esquecia da tuberculose, s alguns minutos de mutismo e melancolia,e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-cus, os chauffeurs (queria serchauffeur), os cantores derdio (queria ser cantor de rdio), e o presidente daRepblica (no sei se queria ser presidente da Repblica). Em troca disso, Benedito memostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos,onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par.

    Nas vsperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me ps nas mos umchumao de papis velhos. Eram cartes postais usados, recortes de jornais, tudofotografias de So Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em queestavam, era fcil perceber que aquelas imagens eram a nica Bblia, a exclusiva cartilhado negrinho. Ento ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lheos pais, no se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roa, no se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito srio. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e atuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no

    campo, que assim a tuberculose no o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmuroumuito baixinho:

    Morrer no quero, no sinh Eu fico.

    E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dospastos, foram dizer um adeus cidade invisvel, l longe, com seus chauffeurs, seuscantores de rdio, e o presidente da Repblica. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinzedias depois, na obrigatria carta de resposta minha obrigatria carta de agradecimentos,o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo queo pegara pela nuca. No pude me conter: Mas ser o Benedito!. E o remorsocomovido que me faz celebr-lo aqui.