andre botelho mario de andrade

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  Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. , p. -, dez.  A viagem de Mário de Andrade à Amazônia entre raízes e rotas André Botelho 1 Resumo O art igo propõe uma leitura do relato da viagem de Mário de Andrade à Amazônia, O turista aprendiz , valorizando contingências e ambi- guidades na modelagem da narrativa e do narrador-viajante. Por isso, recusa assimilar de antemão o relato amazônico à literatura de viagem em geral ou mesmo à ideia de viagem etnográca tão carac- teríst ica do relato de outra vi agem do autor , ao Nordeste. Uma rápida comparação com os escritos de Euclides da Cunha permite ainda discutir intertextualidade, tradução cultural e ressignicação dos tropos dos relatos de viagem à Amazônia, e nos aproximarmos um pouco mais do sentido das ideias de Mário de Andrade, nunca livres de ambiguidades, às quais devem justamente sua força, alcance e interesse contemporâneos. 2 Palavras-chave Mário de Andrade, Amazôni a, relatos de viagem, civilização tropical, modernidade. Recebido em 30 de abril de 2013 Aprovado em 5 de agosto de 2013 BOTELHO , André. A viagem de Mário de Andrade à Amazônia: entre raízes e rotas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 57, p. 15-50, 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i57p15-50 Universidad e Federal do Rio de Janeiro (UF RJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil). Este ensaio foi escrito durante minha estadia na Pri nceton University como visi- ting fellow  no primeiro semestre de com apoio da Capes. Beneciei-me das excelen tes condições de trabal ho e ambiente intelectual do Depart ment of Spanish and Portuguese Languages and Cultures e, especialmente, da interlocução com Pedro Meira Monteiro, Arcádio Díaz-Quiñones e Lilia Moritz Schwarcz, a quem agradeço.

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  • 15 Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. 57, p. 15-50, dez. 2013

    A viagem de Mrio de Andrade Amaznia entre razes e rotas

    Andr Botelho1

    ResumoO artigo prope uma leitura do relato da viagem de Mrio de Andrade Amaznia, O turista aprendiz, valorizando contingncias e ambi-guidades na modelagem da narrativa e do narrador-viajante. Por isso, recusa assimilar de antemo o relato amaznico literatura de viagem em geral ou mesmo ideia de viagem etnogrfica to carac-terstica do relato de outra viagem do autor, ao Nordeste. Uma rpida comparao com os escritos de Euclides da Cunha permite ainda discutir intertextualidade, traduo cultural e ressignificao dos tropos dos relatos de viagem Amaznia, e nos aproximarmos um pouco mais do sentido das ideias de Mrio de Andrade, nunca livres de ambiguidades, s quais devem justamente sua fora, alcance e interesse contemporneos.2

    Palavras-chave Mrio de Andrade, Amaznia, relatos de viagem, civilizao tropical, modernidade.

    Recebido em 30 de abril de 2013

    Aprovado em 5 de agosto de 2013

    BOTELHO, Andr. A viagem de Mrio de Andrade Amaznia: entre razes e rotas. Revista do Instituto de

    Estudos Brasileiros, Brasil, n. 57, p. 15-50, 2013.

    DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i57p15-50

    1 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil).

    2 Este ensaio foi escrito durante minha estadia na Princeton University como visi-ting fellow no primeiro semestre de 2013 com apoio da Capes. Beneficiei-me das excelentes condies de trabalho e ambiente intelectual do Department of Spanish and Portuguese Languages and Cultures e, especialmente, da interlocuo com Pedro Meira Monteiro, Arcdio Daz-Quiones e Lilia Moritz Schwarcz, a quem agradeo.

  • 16 Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. 57, p. 15-50, dez. 2013

    Mrio de Andrades Journey to the AmazonBetween Roots and Routes

    Andr Botelho

    AbstractThe article proposes a reading on the Amazon trip by Mrio de Andrade, O turista aprendiz, valuing contingencies and ambiguities in the modeling of the narrative and the Narrator-traveler. Therefore, refuses to assimilate beforehand the Amazon travelogue to travel literature in general or even the idea of ethnographic trip so charac-teristic of the authors other trip report, the one to Northeast. A quick comparison with the writings of Euclides da Cunha allows to discuss cultural translation and Intertextuality, and ressignification of the mandatory subjects on the Amazon travelogues and to get us a little closer to the sense of Mrio de Andrades ideas, never free of ambi-guities which precisely owe his strength, reach and contemporary interest.

    KeywordsMrio de Andrade, Amazon, travelogues, tropical civilization, modernity.

  • 17 Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. 57, p. 15-50, dez. 2013

    Para Lli

    Em geral, concebemos as viagens como um deslocamento no espao. pouco. Uma viagem inscreve-se simultaneamente no espao, no tempo e na hierarquia social. Claude Lvi-Strauss, Tristes trpicos, 1955.

  • 18 Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. 57, p. 15-50, dez. 2013

    oucas vezes uma carta ter comunicado to bem a

    complexidade das experincias de uma viagem como a que Mrio de Andrade enviou a Manuel Bandeira em junho de 1927 da Amaznia, Por esse mundo de guas como identifica vagamente. E isso, mesmo se tratando de Mrio de Andrade, notvel missivista, mas viajante comedido, mais habituado a receber do que a enviar notcias de lugares distantes3. Mas como quantidade no qualidade, apressemo-nos a ponderar que suas viagens guardam um sentido prximo ao da aven-tura, tratado por Georg Simmel como uma experincia de ruptura com o fluxo do cotidiano, e tambm com certa abertura emptica em relao ao desconhecido ainda que, como tudo mais em Mrio, isso no se realize sem tenses e ambiguidades4.

    Na carta a Bandeira, Mrio menciona um tipo de dirio que estaria mantendo durante a viagem, ainda que se mostre ou se dissi-mule ctico quanto ao destino dos apontamentos:

    Vou tomando umas notinhas porm estou imaginando que viagem no produzira nada no. A gente percebe quando sair alguma

    3 MORAES, Marco Antonio de (org.). Tudo est to bom, to gostoso. Postais a Mrio de Andrade. So Paulo: Hucitec; Edusp, 1993; MORAES, Marcos Antonio de. Orgu-lho de jamais aconselhar. A epistolografia de Mrio de Andrade. So Paulo: Edusp; Fapesp, 2007.

    4 SIMMEL, Georg. Sobre la aventura: ensayos filosficos. Barcelona: Pennsula, 1988. Comparando os viajantes Mrio de Andrade e Gilberto Freyre, Jos Lira percebe essa qualidade apontada por Simmel no primeiro em contraste com o segundo, cuja experincia de viagem seria marcada pela constatao e confirmao daquilo que j sabia e valorizava. Ver: LIRA, Jos T. C. de. Naufrgio e galanteio: viagem, cultu-ra e cidades em Mrio de Andrade e Gilberto Freyre. Revista Brasileira de Cincias Sociais. So Paulo, vol. 20, n. 57, p. 143-176, 2005.

    P

  • 19 Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. 57, p. 15-50, dez. 2013

    coisa do que vai sentindo. Desta vez no percebo nada. O xtase vai me abatendo cada vez mais. Me entreguei a uma volpia que nunca possu contemplao destas coisas, e no tenho por isso o mnimo controle sobre mim mesmo. A inteligncia no h meios de reagir nem aquele poucadinho necessrio para realizar em dados ou em bases de conscincia o que os sentidos vo recebendo.5

    O trecho condensa, talvez, os problemas cruciais mais comuns de uma longa e, em verdade, muito diversificada e multifacetada tradio narrativa ocidental, genericamente identificada como literatura de viagem. Em seu centro, a tenso entre a experincia contingente do indi-vduo, e das escritas de si, no caso de Mrio to marcada pelos sentidos (xtase, volpia, contemplao), e a sua codificao histrico-cultural e narrativa, a partir da qual vai ganhando inteligibilidade para o prprio viajante (controle sobre mim mesmo, inteligncia, conscincia). E o reconhecimento dessa tenso criativa que nos convida a abrir mo de qualquer classificao apriorstica do gnero e buscar qualificar a relao sempre mais contingente e complexa entre literatura e viagem. Relao que vivida, lembrada, contada, reinventada, traduzida, nego-ciada em cada relato no encontro do escritor com o outro6.

    A carta de Mrio de Andrade a Manuel Bandeira serve-nos, neste ensaio, de guia para uma apreciao do relato maior que Mrio deixou da sua viagem Amaznia. Ao que tudo indica, Mrio afinal manteve os apontamentos de que dava notcias incertas na carta, e ainda os reviu posteriormente com a inteno de public-los como livro, tendo escrito para ele um prefcio datado de 30 de dezembro de 1943. Mas o relato seria publicado somente em 1976, ao lado do relato de outra viagem, ao Nordeste em fins de 1928 e incios do ano seguinte, no livro O turista aprendiz, organizado por Tel Porto Ancona Lopez7. O relato da viagem Amaznia, Mrio chamou de O turista aprendiz: viagens pelo Amazonas at o Peru pelo Madeira at a Bolvia e por Maraj at dizer chega!, numa

    5 ANDRADE, Mrio de. Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira. Org. Marco Antonio de Moraes. So Paulo: Edusp; IEB-USP, 2000. p. 346.

    6 Para uma viso geral sobre a literatura de viagem consultar: SSSEKIND, Flora. O Brasil no longe daqui. So Paulo: Companhia das Letras, 1990; HANNE, Michael (org.). Literature and Travel. Amsterd; Atlanta: Rodopi, 1993; THOMPSON, Carl. The Suffering Traveller and the Romantic Imagination. Oxford: Oxford University Press, 2007, e Travel Writing (The New Critical Idiom). Nova Iorque: Routledge, 2011.

    7 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz. Estabelecimento de texto, introduo e notas de Tel Porto Ancona Lopez. So Paulo: Duas Cidades; Secretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia, 1976.

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    pardia ao ttulo do livro de viagem de seu av materno Joaquim Leite Moraes, escrito quando deixou So Paulo para assumir a presidncia da Provncia de Gois8.

    Venho me ocupando do tema da viagem na obra de Mrio de Andrade em duas dimenses: como meio de descoberta sentimental e intelectual do Brasil, crucial para o projeto modernista que deu vida de tornar o pas familiar aos brasileiros9; e como meio de reavaliao das categorias de empatia e autenticidade, centrais na articulao da sua interpretao do Brasil como um todo e particularmente importantes na sua viagem Amaznia10. Esta ainda pea fundamental daquilo que Tel Porto Ancona Lopez designou de modo muito feliz como a utopia amaznica de Mrio de Andrade, sua meditao sobre uma civilizao tropical11.

    O tema da viagem mostra-se, assim, estratgico para uma reava-liao dos seus escritos amaznicos, os quais, alm do relato da viagem e algumas cartas da mesma poca, envolvem ainda a narrativa Balana,

    8 MORAES, Joaquim A. Leite. Apontamentos de viagem de So Paulo capital de Gois, desta do Par, pelos rios Araguaia e Tocantins e do Par Corte: consi-deraes administrativas e polticas. Org. Antonio Candido. So Paulo: Companhia das Letras, 1999.

    9 BOTELHO, Andr. De olho em Mrio de Andrade: uma descoberta sentimental e intelectual do Brasil. So Paulo: Claroenigma, 2012. Sobre a viagem como meio de conhecer e sentir o Brasil, ver tambm CANDIDO, Antonio. Oswald viajante. In:

    . O observador literrio. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008, p. 97-102.

    10 BOTELHO, Andr. Filosofia da maleita: Mario de Andrade medita sobre uma ci-vilizao tropical. Trabalho apresentado no XI Congresso Luso-afro-brasileiro de Cincias Sociais. Salvador, UFBA, agosto de 2011; . Empatia e autenticidade em Mario de Andrade. Trabalho apresentado no 35o Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, outubro de 2011; LIMA, Nsia Trindade; BOTELHO, Andr. Malria e ci-vilizao tropical em Carlos Chagas e Mrio de Andrade. Histria, cincia e sade Manguinhos. Rio de Janeiro, 2013, no prelo.

    11 LOPEZ, Tel P. A. Viagens etnogrficas de Mrio de Andrade. In: ANDRADE, Mario de. O turista aprendiz, op. cit.; . Mariodeandradiando. So Paulo: Hu-citec, 1996; . O Turista Aprendiz na Amaznia: a inveno no texto e na ima-gem. Anais do Museu Paulista. So Paulo, vol. 13, n. 2, p. 135-164, jul.- dez. 2005. Aps esses trabalhos pioneiros de Tel Porto Ancona Lopez, o tema da viagem em Mrio de Andrade vem despertando progressivamente interesse, e contamos hoje com uma fortuna especialmente formada por teses acadmicas, de que so exemplos: SANTOS, Manuela Assuno. Mrio de Andrade: um etngrafo amador. Disser-tao (Mestrado em Letras) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, 2002; e FARIA, Ana Maria R. de. A viagem da fiandeira. A narrativa de O turista aprendiz e a escrita memorialstica de Mrio de Andrade. Dissertao (Mestrado em Histria Social da Cultura) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, 2003. Ver ainda: LIRA, Jos T. C. de, op. cit.; e ROSENBERG, Fernando J. The Avant-garde and Geopolitics in Latin America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2006.

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    Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma, que Mrio comeou a escrever durante a viagem e permaneceu indita at 1994, crnicas e artigos de jornais, como os publicados no Dirio Nacional, alm da talvez mais importante narrativa ficcional em prosa do modernismo brasileiro, Macunama, publicada em 192812. Minha aposta que nesse material disperso se desenha uma reflexo original sobre tema central na formao da sociedade brasileira e no debate sociolgico mais amplo que a acompanha: as relaes entre diversidades culturais e desigual-dades sociais.

    Vejo nos escritos amaznicos de Mrio de Andrade uma concepo plural de civilizao, em que h lugar para as diferenas e para uma convivncia mais democrtica entre diferenas sem ignorar, porm, a desigualdade social e os embates de poder a envolvidos. Civilizaes, e no apenas uma nica civilizao. A lio no pequena se lembrarmos dos velhos e novos processos de homogeneizao e padronizao das condutas, sentimentos, imaginaes e linguagens que, ainda que em novas configuraes, nos perpassam contemporaneamente. Em suma, uma viso plural de civilizao, mais sincrtica que sinttica.

    Decisiva tem sido a investigao das operaes de transfigurao positiva cheias de ironia, provocao e consequncias dos estigmas que h muito marcavam negativamente a Amaznia, especialmente a malria, como aparece no relato da viagem e noutros textos associados a ele13. Na prostrao posterior aos acessos da doena, Mrio de Andrade imaginava poder entrever certos estados fisiolgicos e psquicos capazes de aplacar a curiosidade, que associa ao progresso como princpio bsico da civilizao industrial, e produzir relativa indiferena, por ele valorizada como meio de crtica do sentido que o processo social estaria assumindo. A essa sua reflexo inusitada sobre a doena, ou melhor, sobre a relao cultural dos homens amaznicos com a doena, Mrio chamou de filo-sofia da maleita14.

    A comparao com relatos de viagens Amaznia de outros viajantes contemporneos a Mrio de Andrade, em especial em torno

    12 ANDRADE, Mrio de. Txi e crnicas no Dirio Nacional. Estabelecimento de tex-to, introduo e notas de Tel Porto Ancona Lopez. So Paulo: Duas Cidades; Se-cretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia, 1976; . Macunama, o heri sem nenhum carter. Paris: Association Archives de la Littrature latino-amricaine, des Carabes et africaine du XXe. sicle; Braslia: CNPq, 1988; . Balana, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma. Edio gentica e crtica de Tel Porto Ancona Lopez. So Paulo: Instituto Moreira Salles; IEB-USP, 1994.

    13 BOTELHO, Andr. Filosofia da maleita: Mario de Andrade medita sobre uma civi-lizao tropical, op. cit., e Empatia e autenticidade em Mario de Andrade, op. cit.

    14 ANDRADE, Mrio de. Txi e crnicas no Dirio Nacional, op. cit.

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    do tema da malria, tem permitido uma aproximao menos genrica ao sentido das ideias do autor. o caso da comparao com os relatos de Carlos Chagas que, de outubro de 1912 a abril de 1913, liderou a misso do Instituto Oswaldo Cruz de avaliao das condies sanitrias da regio15. O relatrio dessa viagem forjou uma imagem da Amaznia a partir da categoria de patologia tropical que reforava o papel da higiene na integrao da regio distante a um nico projeto civilizatrio para o Brasil. Em contraste, o relato de viagem de Mrio de Andrade nos coloca diante de uma empatia transfiguradora dos signos do atraso tropical, cujo sentido ltimo restituir dignidade aos seus portadores sociais, como no caso dos acometidos pela malria. Trata-se, no limite, de um recurso de crtica ao sentido de homogeneizao da experincia social acarretado pela adoo de um nico modelo de civilizao.

    No presente estudo, embora tendo essas questes mais gerais em vista, me volto especificamente para o prprio relato da viagem de Mrio de Andrade Amaznia com objetivo de discutir alguns processos cognitivos prprios que lhe do vida e particularidade. Procuro proble-matizar a viso cristalizada sobre o tema da viagem no autor, bem como a tendncia uniformizadora na apreciao dos seus diferentes relatos. Para nos aproximarmos mais das particularidades do viajante e do relato Amaznico que forja, preciso consider-lo emprica e analitica-mente como material de pesquisa, e no como mero meio para acessar outros nveis de significados da obra do autor; bem como, estar atento s contingncias e ambiguidades envolvidas nessas experincias sempre significativas e, no caso de Mrio de Andrade, decisivas na formao da sua sensibilidade e interpretao.

    No estarei pensando, portanto, a viagem a partir da dicotomia tran-sitrio/permanente que tem orientado em grande medida a recuperao dos relatos de viagem, como se a viagem fosse apenas ou preferencial-mente um meio transitrio para iluminar uma biografia ou obra. Antes, procuro tomar o potencial heurstico das formulaes de James Clifford sobre os limites dessa naturalizao da ideia de precedncia de signi-ficados das razes (roots) sobre as rotas (routes)16. Adaptando essa perspectiva aos meus objetivos, diria que o relato da viagem Amaznia de Mrio de Andrade no representa simplesmente um processo de comunicao e difuso de cultura, mas ele mesmo constitutivo e cons-tituinte de significados culturais, que importa esclarecer.

    15 LIMA, Nsia Trindade; BOTELHO, Andr, op. cit.

    16 CLIFFORD, James. Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

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    I

    Amanh se chega em Manaus e no sei que mais coisas bonitas enxergarei por este mundo de guas. Porm, me conquistar mesmo a ponto de ficar doendo no desejo, s Belm me conquistou assim.17 Cote-jando a carta enviada a Manuel Bandeira ao dirio da viagem, sabemos que Mrio de Andrade ento se aproximava de Manaus, vindo de Belm, o que ter ocorrido no dia 4 de junho. Ou seja, a carta ter sido escrita praticamente no meio da viagem Amaznia, realizada entre 8 de maio e 15 de agosto de 1927. Naquele momento, o entusiasmo do viajante parece aplacado pelo ceticismo, como se o que estivesse por vir dificilmente pudesse superar ou ao menos se igualar ao j visto, vivido e sentido em Belm. Seu entusiasmo tal, que confessa ao amigo seu ideal de passar uns meses morando no Grande Hotel de Belm, suspendendo, portanto, ao menos temporariamente, a condio de viajante: O direito de sentar naquela terrase em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuau, de aa, voc que conhece mundo, conhece coisa melhor que isso Manu? Me parece impossvel18.

    O encanto com Belm, verdadeiro amor despertado, e a necessidade que j teria de rev-la, absoluta fatalizada do meu organismo inteirinho, so expressas com contundncia incomum, como um arrebatamento sexual, pelo que Mrio chega a, polido, se desculpar com o correspondente: Belm eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente19. Ao leitor de hoje, talvez, o paralelo da confisso seja menos desconcertante do que a afirmao que o justifica: Olha que tenho visto bem coisas estupendas. Vi o Rio em todas as horas e lugares, vi a Tijuca e a Sta. Teresa de voc, vi a queda da Serra pra Santos, vi a tarde de sinos em Ouro Preto e vejo agorinha mesmo a manh mais linda do Amazonas. Por certo que para os padres atuais de mobilidade, deslocamentos espaciais e viagens, Mrio de Andrade teria visto pouco, seria um viajante pouco experiente para um homem de 34 anos de idade, de classe mdia e altamente instrudo e cultivado. Anacronismos de lado, mesmo para os padres da poca os lugares arrolados como objeto de saudade so singelos, ainda mais quando comparados aos hbitos cosmopolitas

    17 ANDRADE, Mrio de. Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 345.

    18 Idem, ibidem.

    19 Idem, ibidem, p. 345-346.

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    de viagem mesmo entre a elite paulista de ento. E depois da viagem Amaznia, Mrio de Andrade faria apenas mais uma viagem longa, ao Nordeste.

    Para quem vivia do prprio trabalho, e ainda por cima financiava a publicao dos seus livros, limitaes materiais existiam, naturalmente. Para a viagem Amaznia, como nos deixa entrever no dirio, Mrio toma emprstimo com Paulo Prado, mecenas dos modernistas paulistas a quem dedica o seu Macunama (1928). Para a do Nordeste, encontra outros meios prprios: viaja como correspondente do Dirio Nacional, enviando seus relatos como entradas de um dirio mesma estrutura narrativa do relato amaznico para a coluna Turista Aprendiz. Mas as questes financeiras no determinam sozinhas o tipo de viajante em que se forja. Mesmo porque houve novas oportunidades e em melhores condies materiais para outras viagens, inclusive ao exterior, que conheceu apenas cruzando fronteiras amaznicas do Brasil com o Peru e com a Bolvia, ou mesmo voltar ao Nordeste e ao Norte. Por exemplo, quando dirigiu o Departamento de Cultura de So Paulo, entre 1935 e 1938. Por sua iniciativa e sob sua orientao intelectual, a Misso de Pesquisas Folclricas, integrada por Luiz Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antnio Ladeira, refez em 1938, em grande medida, o seu itinerrio da dcada anterior, tendo visitado Cear, Pernambuco, Paraba, Piau, Maranho e Par20. Apesar de tudo isso, Mrio no reviu a sua Belm pessoalmente. Mas a cidade tampouco parece ter se esquecido dele21.

    20 Consultar Instituto Nacional do Folclore, Mrio de Andrade e a Sociedade de Et-nografia e Folclore no Departamento de Cultura da Prefeitura de So Paulo (1936 1939). Rio de Janeiro: Funarte; INF; So Paulo: Secretaria de Cultura, 1983; TRA-VASSOS, Elisabeth. Os mandarins milagrosos. Arte e etnografia em Mrio de An-drade e Bla Bartk. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Funarte, 1997; VILHENA, Lus Rodolfo. Projeto e misso: o movimento folclrico brasileiro 1947 1964. Rio de Janeiro: Funarte; FGV, 1997; BARBATO JR., Roberto. Missionrios de uma utopia nacional-popular. Os intelectuais e o Departamento de Cultura de So Paulo. So Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.

    21 BASSALO, Clia Coelho; COELHO, Joaquim Francisco. Mrio de Andrade no Par: os sucessos e documentos da viagem e algumas consideraes sobre o modernis-mo. Revista de Cultura do Par. Belm, ano 3, n. 12-13, jul.-dez. 1973. Em 2012, a Secretaria de Estado de Cultura do Par (Secult) promoveu ampla programao comemorativa dos 85 anos da visita de Mrio de Andrade a Belm. No foi inicia-tiva isolada, uma vez que os relatos de viagem reunidos em O turista aprendiz esto certamente entre os textos de Mrio de Andrade que vem conhecendo maior e mais ampla recepo, ainda que no exclusivamente acadmica. So exemplos as colees do estilista Ronaldo Fraga neles inspiradas: Turista aprendiz na terra do Gro-Par (Vero 2012 2013) e O turista aprendiz (vero 2010 2011); a turn, de dezembro de 2004 a fevereiro de 2005, do grupo A Barca por mais de nove es-

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    Conhecer o Brasil e dar a conhecer o Brasil em seus relatos de dife-rentes tipos era parte importante do projeto modernista que, afinal, pode mesmo ser resumido como o esforo de tornar o Brasil familiar aos brasi-leiros, o que implicava, obviamente, familiarizar-se com ele. E Mrio de Andrade chegou ao Brasil por meio de formas variadas, sentimental e intelectualmente, de modo direto em viagens pelo pas e tambm indi-retamente em torno das estantes atravs de muitas leituras22. Isso no significa, porm, que se possa tomar as viagens de Mrio de Andrade pelo Brasil simplesmente como parte de um plano mais ou menos arti-culado de expanso das reas de influncia do modernismo paulista. certo que Mrio foi mesmo o modernista paulista que mais se nacio-nalizou, mas isso no significa apenas a expanso geopoltica de sua influncia cultural e de poltica cultural sobre o territrio nacional, mas tambm que ele se abriu s diferenas regionais e soube aprender com elas ampliando seu campo de viso e seu modo de ver23.

    Macunama e os outros textos amaznicos de Mrio de Andrade, como to bem observaram Gilda de Mello e Souza24 e Tel Porto Ancona Lopez25, condensam o ideal utpico de desgeografizar o Brasil, aproxi-mando regies, culturas e diferenas, e no s dentro do Brasil. Como na entrada do dia 20 de maio, em que Mrio afirma:

    Belm a cidade principal da Polinsia. Mandaram vir uma imigrao de malaios e no vo das mangueiras nasceu Belm do

    tados e cerca de trinta cidades brasileiras, realizando o projeto Turista Aprendiz, reunindo um notvel acervo sobre cultura popular e do qual resultaram CDs e DVD homnimo apresentando a experincia da viagem; a Sala Especial Turista Aprendiz na 18 Bienal Internacional de So Paulo, em 1985, com ensaio fotogrfico de Sheila Maureen Bisilliat inspirado no livro; e, entre outras apropriaes, o relato do jornalista Miguel de Almeida que refez parte da viagem de Mrio, Trilha dos Trpicos. Refazendo o Turista aprendiz. So Paulo: Marco Zero, 1982.

    22 LOPEZ, Tel P. A. Mario de Andrade: ramais e caminhos. So Paulo: Duas Cidades, 1972, Viagens etnogrficas de Mrio de Andrade, op. cit., e O Turista Aprendiz na Amaznia: a inveno no texto e na imagem, op. cit.

    23 Consultar SANDRONI, Carlos. Mrio contra Macunama. So Paulo: Vrtice, 1988; BERRIEL, Carlos Eduardo O. (org.). Mrio de Andrade hoje. So Paulo: Ensaio, 1990; BATISTA, Marta Rossetti (org.). Coleo Mrio de Andrade: artes plsticas. So Paulo: IEB-USP, 1998; _______. Coleo Mrio de Andrade: Religio e magia, m-sica e dana, cotidiano. So Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2004; JARDIM, Eduardo. Mario de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civi-lizao Brasileira, 2005; SANTIAGO, Silviano. Mrio, Oswald e Carlos, intrpretes do Brasil. Alceu, vol. 5, n. 10, p. 5-17, jan.-jun. 2005.

    24 SOUZA, Gilda de Mello. O tupi e o alade: uma interpretao de Macunama. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.

    25 LOPEZ, Tel P. A. Viagens etnogrficas de Mrio de Andrade, op. cit.

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    Par. Engraado que a gente a todo momento imagina que vive no Brasil mas fantstica a sensao de estar no Cairo que se tem. No posso atinar porque Mangueira, o Cairo no possui mangueiras evaporando-se das ruas No possui o sujeito passeando com um porco-do-mato na correntinha26

    Entre os lugares visitados e utilizados como parmetros, em 1927, para avaliar seu encantamento por Belm, ao lado de locais no Rio de Janeiro e em So Paulo (vi a Tijuca e a Sta. Teresa de voc, vi a queda da Serra pra Santos), est Ouro Preto, que Mrio conheceu numa viagem igualmente memorvel em 1924. Embora no tenha deixado dela relatos do tipo com que estamos trabalhando27, por certo, a viagem a Minas Gerais teve consequncias cruciais para os rumos do trabalho artstico e crtico de Mrio de Andrade, bem como para os destinos do modernismo como um todo. Refiro-me segunda viagem de Mrio s atuais cidades histricas de Minas Gerais, e que passou para a histria do modernismo brasileiro como a viagem de descoberta do Brasil28. No a primeira, de 1919, quando vai a Mariana para uma conferncia na Congregao da Imaculada Conceio da Igreja de Santa Efignia e acaba por descobrir o barroco e a obra de Aleijadinho. Temas a que se dedicaria ao longo da vida e que renem alguns dos elementos mais importantes da sua perso-nalidade: f, sensibilidade esttica e curiosidade histrica29.

    A caravana modernista a Minas na Semana Santa de 1924, aps um carnaval dionisaco no Rio de Janeiro, composta por artistas paulistas e seus mecenas, como Mrio, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Paulo Prado, Olvia Guedes Penteado, Ren Thiollier e, entre outros, o poeta franco-suo Blaise Cendrars, percorreu a Minas Gerais colonial deliciando-se com as cidadezinhas, a msica, a imaginria religiosa. A descoberta fundamental do grupo, porm, foi a de que o primitivismo esttico, ento valorizado pelas vanguardas europeias que nos serviam

    26 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz, op. cit., p. 63.

    27 Exceo importante o relato que Mrio faz em Crnicas de Malazarte VIII (1924). BATISTA, Marta Rossetti; LOPEZ, Tel P. A.; LIMA, Yone Soares de. Brasil: 1 tempo modernista: 1917 1929. Documentao. So Paulo: IEB-USP, 1972. p. 109-115.

    28 AMARAL, Aracy. Blaise Cendars no Brasil e os modernistas. So Paulo: Martins, 1970; EULLIO, Alexandre. A aventura literria de Blaise Cendrars. So Paulo: Edusp; Fapesp, 2001; CORTEZ, Luciano. Por ocasio da descoberta do Brasil: trs modernistas paulistas e um poeta francs no pas do ouro. O eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira. Belo Horizonte, vol. 19, n. 1, p. 15-38, 2010.

    29 MONTEIRO, Pedro Meira. Coisas sutis, ergo profundas: O dilogo entre Mrio de Andrade e Srgio Buarque de Holanda. In: . (org.). Mrio de Andrade e Srgio Buarque de Holanda: correspondncia. So Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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    de referncia e, em alguns casos, de simples modelo a ser imitado, no nosso caso encontrava-se no em lugares distantes e exticos, mas como que entranhando em nossa prpria sensibilidade. Essa descoberta,ique surpreendentemente tornava sincrnicos o passado brasileiro e as vanguardas europeias, foi formulada de modos prprios e virtualmente concorrentes nas poesias e programas estticos de Oswald de Andrade e Mrio de Andrade, para no falar da pintura de Tarsila do Amaral30.

    A caravana modernista a Minas Gerais est tambm na origem da viagem Amaznia; um dos seus pontos de partida. Ainda que as experincias do viajante no se repitam e tendam mesmo a ser viven-ciadas como nicas, ele sempre poder levar para a prxima algo aprendido na ltima viagem. Sendo econmico, dois aspectos funda-mentais desse aprendizado podem ser apontados, peas fundamentais do projeto modernista de Mrio de Andrade de desrecalque da cultura brasileira. O primeiro, o quanto a descoberta familiar sem exotismos do primitivismo em Minas se mostra crucial tambm para a percepo e construo to cheias de provocao, ironia e crtica que Mrio faria sobre os estigmas que h muito assolavam a Amaznia, como o clima, a malria, a preguia.

    Para dar apenas um exemplo, vejamos o clima, as altas tempe-raturas equatoriais que aparecem como tpoi nos relatos de viagem Amaznia31. H vrias passagens deliciosas que as evocam com humor, ironia e muita empatia no relato do turista aprendiz. Numa delas, do dia 20 de maio em Belm, Mrio anotou o hbito do paraense de, embora afirmando as altas temperaturas da cidade, sempre ressalvar que o dia de hoje est excepcional32. Para na sequncia afirmar: De cinco em cinco minutos saio do banho e me enxugo todo, sete lenos, dezessete lenos, vinte-e-sete lenos Felizmente que trouxe trs dzias e hei-de ganhar da lavadeira33.

    30 AMARAL, Aracy. op. cit.; EULLIO, Alexandre. op. cit.; CORTEZ, Luciano. op. cit.; BOTELHO, Andr. De olho em Mrio de Andrade: uma descoberta sentimental e intelectual do Brasil, op. cit.

    31 ROSS, Peter. Dont Trust the Locals. European Explorers in Amazonia. In: HANNE, Michael (org.). op. cit.; SCHWEICKARDT, Jlio; LIMA, Nsia Trindade. Os cien-tistas brasileiros visitam a Amaznia: as viagens cientficas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (1910 1913). Histria, Cincias, Sade Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 14 (suplemento), 2007, p. 15-50; BASTOS, Elide Rugai; PINTO, Ernesto Renan M. F. (orgs.). Vozes da Amaznia. Investigao sobre o pensamento social brasileiro. Manaus: Editora da Universidade Federal da Amaznia, 2007; HARDMAN, Fran-cisco Foot. A vingana da Hileia. Euclides da Cunha, a Amaznia e a literatura moderna. So Paulo: Editora da Unesp, 2009.

    32 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz, op. cit., p. 63.

    33 Idem, ibidem.

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    Noutras passagens, aplicado, o narrador vai anotando os nomes dos lugares por onde passa, alguns chamam a sua ateno pelo desejo de vento refrescante que encerram: Canto da virao, Chapu virado etc.34 Ou ainda essa passagem to emblemtica, na entrada do dia 23 de maio: Em Belm o caloro dilata os esqueletos e meu corpo ficou exatamente do tamanho da minha alma35. Perspectiva reiterada em entrevista que Mrio concedeu ao Dirio Nacional, em 20 de agosto de 1927, aps seu retorno a So Paulo da Amaznia:

    Sofreu muito calor? O calor um calor sem parada, malfeitor. Acho, porm, que menos irritante que o daqui, porque em S. Paulo o tempo muito varivel. No Norte, a gente acaba se esquecendo do calor, to quoti-diano como o dia. Vantagem da imutabilidade36

    O segundo aspecto do aprendizado de uma viagem outra mais contingente e, por isso mesmo, muito importante na modelagem das feies prprias do viajante e do relato que fez da Amaznia e que, a meu ver, no devem ser assimiladas s da viagem ao Nordeste. Ao que tudo indica, a ideia era reeditar em 1927 a caravana modernista de 1924, ao menos para Mrio que tinha com a Amaznia, regio ento ainda muito pouco conhecida no restante do Brasil, uma relao sentimental e intelectual mais antiga, cultivada desde a juventude, como indica um dos seus primeiros artigos de jornal, A divina preguia, de 1918. Somente a bordo no Rio de Janeiro, porm, Mrio parece ter se dado conta que aquela combinao entre descoberta do Brasil e irreverncia modernista da viagem anterior no se reeditaria em guas e terras amaznicas.

    Mrio viajou durante trs meses sem seus amigos mais chegados, como nico varo, ao lado de dona Olvia Guedes Penteado, dama da aristocracia cafeeira paulista e mecenas dos modernistas, logo alcu-nhada pela sabedoria popular na viagem de Rainha do Caf, mais sua sobrinha, Margarida Guedes Nogueira (Mag, no relato) e Dulce do Amaral Pinto (Dolur), filha de Tarsila do Amaral. Como o grupo viajava ecomendado aos presidentes dos Estados e a outras autoridades locais pelo ento presidente do Estado de So Paulo e logo adiante da Repblica do Brasil, Washington Lus Pereira de Souza, amigo de dona Olvia, as

    34 Idem, ibidem, p. 64.

    35 Idem, ibidem, p. 67.

    36 Idem. Entrevistas e depoimentos. Org. Tel Porto Ancona Lopez. So Paulo: T. A. Queiroz, 1983. p. 28.

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    situaes protocolares se repetiram de porto em porto at Iquitos, no Peru, e de estao em estao pela Madeira-Mamor at a Bolvia, aonde chegaram37. Nem preciso dizer o quanto isso irritou Mrio, que, ainda por cima, fora incumbido por dona Olvia de fazer os discursos de agra-decimento pela hospitalidade recebida em nome dos viajantes. Ademais, seus contatos com a cultura e com a populao local passavam a ser mediados, ao menos inicialmente, pelos protocolos oficiais. Somente na volta para So Paulo, a bordo do Baependi, eles se encontrariam com Oswald e Tarsila, que regressavam da Europa, reencontro sobre o qual, porm, Mrio no parece ter deixado nenhum registro relevante.

    II

    No sei se j contei pra voc que por aqui vou bancando o jorna-lista clebre. Fazem tudo por nos agradar lgico que por causa de Dona Olivia e eu passo por homem ilustre e grande inteligncia a do Sul. S vendo quanta amabilidade e quanta coisa preparada s pra gente. Navegamos no mel. Se no fosse a cacetada dos proto-colos oficiais, palavra que no faltava nada pra isto ser um paraso pra mim. Imagine porm que at um discurso de improviso tive de fazer respondendo a uma saudao do Dionso Bentes, presidente do Par! Sou incapaz de improvisar. Falei um quarto de dzia de coisas familiares e me assentei tremendo feito bobo. Pelo menos asneira creio que no sai nenhuma no.38

    As contrariedades impingidas ao viajante, que precisou aprender a lidar com as contingncias da sua viagem Amaznia, podem ajudar a entender o partido literrio s vezes fantstico tomado por Mrio em seu relato, como se a imaginao e a fico constitussem tambm um tipo de refgio das caceteaes que a realidade lhe impunha. Dessas deixou notcias tanto do dirio de viagem quanto na carta a Bandeira. A mesma recepo referida na carta e agora citada aparece nO turista aprendiz, assim descrita na entrada do dia 20 de maio:

    Visita oficial e almoo ntimo com o presidente. ntimo? Depois do sal, o prefeito se ergueu com champanha na taa, taa! Fazia

    37 Esse carter quase oficial da viagem Amaznia j havia se verificado pelo mesmo motivo (a presena de dona Olvia) na caravana modernista a Minas, ainda que de modo mais difuso e em escala bem menor. Ver: CORTEZ, Luciano. op. cit., p. 17.

    38 ANDRADE, Mrio de. Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 346.

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    j bem tempo que com meus amigos ricos paulistas eu no bebia champanha em taa Pois : ergueu a taa e fez um discurso de saudao a dona Olvia. A que foi a histria. Alis desde que o homenzinho se levantou fiquei em brasas, era fatal, eu teria que responder! Pois foi mesmo: nem bem o prefeito terminou que dona Olvia me espiou sorrindinho e com leve, mas levssimo sinal de espera me fez compreender que a resposta me cabia, nunca no mundo improvisei! Veio uma nuvem que escureceu minha vista, fui me levantando fatalizado, e veio uma ideia. Ou coisa parecida. Falei que tudo era muito lindo, que estvamos maravilhados, e idnticas besteiras verdadeirssimas, e soltei a ideia: nos sentamos em casa (que mentira!) que nos parecia que tinham se eliminado os limites estaduais! Sentei como quem tinha levado uma surra de pau. Mas a ideia tinha tinham gostado. Mas isso no impediu que a champanha estivesse estragada, uma porcaria.39

    Como a vida a bordo dos vaticanos S. Salvador e Vitria, as situaes protocolares em que se v envolvido logo aps os desembar-ques marcam o cotidiano do viajante, tal como ele nos d a conhecer por meio de seu relato. Naturalmente, a viagem no feita apenas de aborrecimentos ou contrariedades. Volvel, na entrada seguinte do dirio, Mrio diz: Passeamos o dia inteiro e j me acamaradei com tudo. Estou lustroso de felicidade40. E ainda que no cheguem a formar uma polaridade rgida, h certo balanceio no texto do dirio entre situaes oficiais, como um polo negativo, e no oficiais, como polo positivo. Entre eles transcorre a existncia de viajante amaznico do narrador e seus contatos com as pessoas e culturas locais.

    Poder-se-ia mesmo ponderar que h certa implicncia por parte de Mrio de Andrade com as situaes oficiais durante a viagem. Na citao anterior, por exemplo, o champanha servido em taas, hbito h muito fora de uso entre os seus amigos ricos de So Paulo, como, ferino, faz questo de registrar. A bebida lhe parece uma porcaria sem sabermos bem se pela baixa qualidade ou se a situao oficial que o azeda para o orador involuntrio; diz besteiras verdadeirssimas aos anfitries, aparentemente para ao mesmo tempo adul-los e deles se livrar o mais rpido. Do mesmo modo como lhe desagradam as reformas urbanas das cidades grandes por que passa, especialmente Manaus, que lhe parece

    39 Idem, O turista aprendiz, op. cit., p. 62-63.

    40 Idem, ibidem, p. 63.

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    artificialmente parisiense, expresses no espao da bovarismo de uma elite oligrquica forjada na Belle poque do ltex41.

    Em geral, os contatos que Mrio se v obrigado a manter com os ricaos e as autoridades locais durante a viagem Amaznia so clara-mente marcados por impacincia e irreverncia subversivas, como sugere a chave irnica e s vezes abertamente cmica com que so quase sempre tratados. Como na chegada a Iquitos, no Peru:

    Caceteaes de recepo oficial, uma centena de apresentaes. O presidente da provncia, todo de branquinho, um peruanito peque-tito, chega, vai no salo, senta troca trinta e quatro palavras com dona Olvia, se levanta militarmente e parte. Ento o secretrio dele ou coisa que o valha, me avisa que ele espera em palcio, a retribuio da visita dentro de duas horas exatas! Como os reis em Londres ou na Itlia, viva o protocolo! [] Homem! Sei que sentei na cama desanimado, me deu vontade de chorar, de chamar por mame Em palcio, recepo alinhada, tudo de branco. Tive que fazer de novo o improviso que fizera pela primeira vez em Belm e repetira j vrias vezes, sempre que encontrava discurso para dona Olvia pela frente.42

    Em contraste, as situaes no oficiais, especialmente quando envolvem contatos com os homens e mulheres do povo e suas formas de sociabilidade, crenas e expresses artsticas, so as que interessam ao narrador, que despertam sua curiosidade e com as quais estabelece rela-es empticas. Por exemplo, na entrada do dia 15 de junho, em que relata a conversa com o senhor idoso e enfermo de Remate de Males, localidade na regio do Alto Solimes, passageiro da terceira classe do barco em que ele prprio ocupava a primeira classe, Mrio no hesita em afirmar: s quem sabe mesmo alguma coisa gente ignorante de terceira classe43.

    41 DIAS, Edneia Mascarenhas. A iluso do Fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999; LIRA, Jos T. C. de. op. cit.

    42 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz, op. cit., p. 113.

    43 Idem, ibidem, p. 100. Remate de Males, a propsito, topnimo que deu ttulo ao livro de poesias publicado trs anos depois da viagem, em 1930, no qual o afas-tamento dos embates modernistas mais imediatos permitiu poesia de Mario tornar-se mais subjetiva e de um lirismo amoroso que mistura a paisagem com estados afetivos. Subjetividade e lirismo, porm, no excluem sensibilidade social, e o eu potico de Mrio de Andrade fala muito tambm da sociedade de que parte. Aspectos recursivos em sua obra e que ganham contornos definidos no fim da vida, por exemplo, nos dois livros inditos acrescentados reedio de Poesias (1941), A costela do gro co e Livro azul. Nestes, os versos que parecem ditados pelo balan-

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    A empatia constitui chave para compreenso do relato da viagem Amaznia e da importncia deste na trajetria e na obra de Mrio de Andrade44. Marque-se, agora, o quanto as oposies que desenham o relato e embalam de jeito prprio o leitor entre, de um lado, situaes oficiais e contatos com o universo dos ricaos locais, e situaes no oficiais envol-vendo homens e mulheres do povo, de outro, ajudam a esclarecer que Mrio de Andrade no estava exatamente envolvido com qualquer cons-truo identitria idealizada da Amaznia. Como se acreditasse em algo como uma identidade amaznica (i.e., brasileira) homognea e autocen-trada. Diversidades culturais nunca so desacompanhadas, no relato, da percepo das desigualdades sociais. Essas so questes importantes que o relato da viagem Amaznia ajuda a iluminar em relao ao conjunto da obra de Mrio de Andrade, e que podem ajudar a problematizar certas interpretaes mais apressadas das suas relaes intelectuais, politicas e sentimentais com o universo popular.

    As contingncias da viagem tm consequncias cruciais para a mo- delagem do relato e do viajante que se forjam entre o plano traado e as adversidades e tambm surpresas agradveis encontradas pelo caminho. A centralidade assumida pela imaginao e pela fico marcadas pelo ins-lito e mgico como recurso e linguagem no relato da viagem Amaznia parece diretamente ligada s contingncias acima apontadas. claro que considerar as contingncias que teriam concorrido para modelar o relato no implica ignorar que os apontamentos feitos durante a viagem possam ter sido trabalhados artisticamente posteriormente, j que foram revisto pelo autor para publicao (e no se conhecem os apontamentos manus-critos da viagem).

    Embora no tenha firmado nenhum compromisso com a verossi-milhana etnogrfica de matriz realista ou naturalista, o procedimento ficcional ressalta do relato da viagem Amaznia, sobretudo, quando comparado ao da viagem ao Nordeste, na qual, munido dos instrumentos de que dispunha pde se dedicar ao seu plano de pesquisa musicolgica, ainda que, inevitavelmente, sempre dentro tambm das contingncias que concorreram para model-la. Tel Porto Ancona Lopez resume

    o de toda uma vida confrontam utopia e pessimismo, e a subjetividade do poeta torna-se tomada de conscincia crtica em relao misria e as desigualdades sociais brasileiras. Ver LAFET, Joo Luiz. Figurao da intimidade: imagens na poesia de Mrio de Andrade. So Paulo: Martins Fontes, 1986.

    44 LOPEZ, Tel P. A. Viagens etnogrficas de Mrio de Andrade, op. cit., e O Turista Aprendiz na Amaznia: a inveno no texto e na imagem, op. cit.; BOTELHO, An-dr. De olho em Mrio de Andrade: uma descoberta sentimental e intelectual do Brasil, op. cit.

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    muito bem a relao entre real e ficcional no relato amaznico chamando a ateno para como forma e contedo so, tambm neste caso, indissociveis:

    [Mrio] far fico a partir da prpria realidade experimentada ou observada, fazendo questo de explor-la em dois aspectos: o real, e o ficcional, partindo desse mesmo real. Nesse sentido, bastante auxiliado por sua concepo de realidade sul-americana, uma vez que, instrumentado pelo senso crtico, consegue entender que, dentro de uma tica europeia, marcada pelo racionalismo, acostu-mada a um mundo tecnizado, nossa realidade seria o maravilhoso instaurado em sua peculiaridade, sensvel a uma abordagem surre-alista, que procura denunciar a impropriedade dessa mesma tica. O maravilhoso possibilita o autor trabalhar com a narrao, evitando a descrio do j repetido e reiterado. Percebendo a hiprbole como elemento constitutivo da paisagem e da prpria vida da regio, evita-a em sua linguagem, transformando-a no inslito narrativo.45

    Exemplo mais emblemtico desses processos so as duas socie-dades indgenas que Mrio de Andrade inventa e caracteriza no relato, sobretudo, com base em seus vastos conhecimentos musicais: os Pacas Novos e os ndios D-Mi-Sol. Os primeiros se comunicam quase exclusiva-mente por meio do corpo, e no por um sistema lingustico convencional. Por meio de um informante e tradutor que domina a linguagem foneti-camente organizada de Mrio e a corporal compartilhada com os ndios, ficamos sabendo que essa caracterstica dos Pacas Novos se prendia a um cdigo de pudor prprio, segundo o qual o som e o dom da fala so imoralssimos e da mais formidvel sensualidade46. Por isso, igual-mente, tinham as orelhas e narizes como as partes mais ntimas do corpo e traziam as suas cabeas sempre cobertas com exceo dos olhos, mas no as genitlias. Escutar, pra eles, o que chamamos de pecado mortal. Falar pra eles o mximo gesto sexual47. Em contraste, os ndios D-Mi-Sol possuam uma sociabilidade intrinsecamente musical, que os dotava de uma complexa cultura que dava sentido intelectual aos sons musicais e valor meramente estticos aos sons articulados e palavras. O

    45 LOPEZ, Tel P. A. O Turista Aprendiz na Amaznia: a inveno no texto e na ima-gem, op. cit., p. 40.

    46 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz, op. cit., p. 91.

    47 Idem, ibidem, p. 92.

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    nome da tribo, por exemplo, eram os dois intervalos ascendentes, que em nosso sistema musical, chamamos d-mi-sol48.

    Essa etnografia imaginria, por assim dizer, bem meditada, pois nela, alm de pardia, humor e provocao modernistas, entram tambm conhecimentos acumulados em leituras especializadas sobre cosmologia amerndia49 e conhecimentos musicais que constituem, em verdade, o eixo da trajetria e da sistematizao intelectual de Mrio de Andrade50. Sobre esses conhecimentos musicais, Flvia Toni chama ateno para o fato de os povos amerndios ficcionalmente recriados no relato expressarem justamente a consolidao da percepo de Mrio de Andrade sobre a existncia diferenciada de relaes com a sonoridade entre diferentes grupos sociais, culturas e sociabilidades. A diversidade de escalas musicais e intervalos possveis e as indagaes e percepes referentes a novos universos sonoros ampliam sobremaneira a perspectiva do professor do Conservatrio Dramtico Musical de So Paulo51. Questes fundamentais para o pesquisador musical em que se transformou e para as ideias que defendeu a esse propsito, como se pode ler, por exemplo, no Ensaio sobre a msica brasileira, publicado, como Macunama, no ano seguinte da viagem Amaznia52.

    Essa abertura e ampliao do universo cultural de referncias do viajante ganha tratamento quase didtico em algumas passagens do relato de viagem. Com recursos retricos bastante caractersticos da prosa do modernista cujo fim ltimo parece ser o de compartilhar a empatia experimentada pelo viajante, tambm empregados noutros textos53, o relato acaba por realizar um hbil exerccio de relativizao cultural. Assim, em passagens chave, os nativos ganham voz em dilogos com o viajante, que ademais no se limita a transcrever suas falas entre aspas para diferenci-las e hierarquiz-las em relao as suas prprias. Como na conversa com o indgena no rio Nanay, um dos trs rios em volta da

    48 Idem, ibidem, p. 127.

    49 LOPEZ, Tel P. A. Mario de Andrade: ramais e caminhos, op. cit., e O Turista Aprendiz na Amaznia: a inveno no texto e na imagem, op. cit.

    50 SOUZA, Gilda de Mello. O professor de msica. In: . A ideia e o figurado. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2005.

    51 TONI, Flvia Camargo. O pensamento musical de Mrio de Andrade. 1990. 203 f. Tese (Doutorado em Artes) Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, 1990.

    52 ANDRADE, Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.

    53 BOTELHO, Andr. De olho em Mrio de Andrade: uma descoberta sentimental e intelectual do Brasil, op. cit.

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    cidade de Iquitos no Peru, com quem tentava sem sucesso conseguir folha de coca, recriado na entrada de 24 de junho:

    [] O senhor ontem falou pra aquele moo que quase no tem boca, que era pena ver a gente, preferia ver Inca [o indgena] Eu estava com raiva de no conseguir coca e: Falei sim. Os Incas so um povo grande, de muito valor. Vocs so uma raa decada. [o viajante] Ele molhou os olhos nos meus srio: O que decada? isso que vocs so. Os Incas possuam palcios grandes. Possuam anis de ouro, tinham cidades, imperadores vestidos com roupas de plumas, pintando deuses e bichos de cor. Traba-lhavam, sabiam fitar, faziam potes muito finos, muito mais bonitos que os de vocs. Tinham leis O que que leis? So ordens que os chefes mandam que a gente cumpra, e a gente obrigado a cumprir seno toma castigo. A gente obrigado a cumprir essas ordens porque elas fazem bem pra todos. Ser? Ser o qu? Ser que elas fazem mesmo bem pra todosOs olhos dele estavam insuportveis de malcia. Fazem sim. Se voc tem casa e tem mulher, ento direito que um outro venha e tome tudo? Ento o imperador baixa uma ordem que o indivduo que rouba a casa e a mulher do outro, tem de ser morto: isso que uma lei []. A gente possui lei tambm. Mas so decados, no fazem nada. Onde se viu passar o dia dormindo daquela forma. Por que vocs no fazem tecidos, vasos bonitos Uma casa direita, de pedra, e no aquela maloca suja, duma escureza horrorosaO huitta se agitou um bocado. Agarrou remando com muita regu-laridade, olhos baixos pra esconder a ironia luminosa que morava nos olhos dele. E se ps falando com a monotonia das remadas, depois de acalmar a expresso e poder me olhar srio de novo: Moo, pode botar tudo isso na cantiga, que est certo pro senhor Se o senhor me entendesse na minha fala eu contava melhor Vossa fala, sei pouco. O senhor fala que a gente decada

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    porque no possui mais palcio, est certo, porm os filhos do Inca tambm no possuem mais palcios no, s malocas.54

    O viajante assume assim em sua fala, retoricamente, um ponto de vista preconceituoso sobre as culturas locais, provavelmente o mesmo do seu grupo social de origem e dos leitores que tinha em mente. Mas apenas para, com muito humor, expor-se ao ridculo diante da perspi-ccia com que seu interlocutor consegue defender-se e expor a fragilidade dos argumentos do viajante. Aparentemente irmanado com o leitor por meio dos preconceitos da sua poca (e ainda em parte nossos), Mrio passa em seguida a expor esse mesmo leitor ao seu prprio preconceito. Operao fundamental para provocar o reconhecimento das diferenas culturais e da dignidade dos seus portadores sociais.

    III

    Quanto a este mundo de guas o que no se imagina. A gente pode ler toda a literatura provocada por ele e ver todas as fotografias que ele revelou, se no viu, no pode perceber o que .55 A afirmao ao amigo Manuel Bandeira na carta que nos serve de guia parece reco-locar um dos tropos da literatura de viagem56 e que orientou a formao de uma disciplina to estreitamente ligada a ela, como a antropologia: a condio de estar l o being there de que fala criticamente Clifford Geertz57. verdade que Mrio de Andrade deu o subttulo de viagem etnogrfica apenas ao relato da viagem ao Nordeste, de 1928 1929. E tambm que valorizava o trabalho de etngrafo na coleta de material musicolgico e folclrico, o que ter concorrido para o papel proemi-nente que teve na criao tanto da Sociedade de Etnografia e Folclore, em 1936, com Dina Lvi-Strauss, quanto da Misso de Pesquisas Folclricas, em 1938, no mbito do Departamento de Cultura de So Paulo, de que j se deu notcia.

    Todavia, a ideia de etnografia mobilizada precisaria ser mais bem qualificada para fugir da tentao de tom-la de modo teleol-gico, em Mrio de Andrade, meramente como precursora da disciplina de mesmo nome, ou sua prtica no mbito da antropologia como disci-plina que se institucionalizava a partir da dcada de 1930 no Brasil. E

    54 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz, op. cit., p. 116-118.

    55 Idem, Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 346.

    56 HANNE, Michael (org.). op. cit.

    57 GEERTZ, Clifford. Obras e vidas. O antroplogo como autor. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005.

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    tampouco ela h de significar a mesma coisa nos diferentes contextos de prticas e de narrativas em que empregada, mesmo por Mrio de Andrade58. Assim, me parece que o subttulo escolhido para o relato da sua viagem ao Nordeste tem em geral direcionado a crtica a uma valorizao do pioneirismo etnogrfico do autor, quando no a uma assimilao do tema da viagem em geral em sua obra a essa sua forma particular ainda que Mrio evidentemente estivesse interessado em recolher material musical amaznico, como exemplifica o contato que manteve com o prefeito de Humait, o poeta Srgio Olindense. Mesmo quando se tratou de ponderar o uso pardico que Mrio de Andrade teria feito da etnografia nas viagens Amaznia e ao Nordeste, a tendncia geral tem sido no apenas assimilar a primeira segunda viagem, como se uma mesma ideia de etnografia e uma mesma ideia de viagem estivessem em jogo num e noutro caso, como tambm reificar sua confluncia para a afirmao de um mesmo regime de autoridade etnogrfica.

    A prpria afirmao de Mrio ao amigo Bandeira (se no viu, no pode perceber o que ) pode ser relativizada. Sequer a condio do estar l que parece sustent-la to estvel como poderia parecer primeira vista. J na primeira entrada do dirio da viagem Amaznia identificada como redigida ainda em So Paulo em 7 de maio de 1927, aparece afirmao oposta. Derivada da contraposio entre o que chama de conscincia lgica e conscincia potica, trabalhada noutros textos, Mrio afirma que, para ele, as reminiscncias de leitura me impulsionaram mais que a verdade59. O que procura sugerir que quando visitamos algum lugar pela primeira vez, embora essa possa ser uma experincia nica, nunca ser inteiramente direta, sem media-es, pois sempre levamos conosco representaes desse lugar e mesmo lembranas prprias ou alheias colhidas em leituras e conversas. E mais ainda, essas lembranas (as reminiscncias) que no so necessa-riamente lgicas, mas poticas tambm podem ser mais fortes ou contundentes do que aquilo que, enfim, constatamos in loco ao chegarmos ao nosso destino de viajantes. Vejamos o trecho completo destacado:

    Partida de So Paulo. Comprei pra viagem uma bengala enorme, de cana-da-ndia, ora que tolice! deve ter sido algum receio vago de ndio [] Sei bem que esta viagem que vamos fazer no tem nada

    58 Sobre a etnografia nos anos 1920, consultar STOCKING JR., George W. The Ethno-graphic Sensibility of the 1920s and the Dualism of the Anthropological Tradition. In: . Romantic Motives. Essay on anthropological sensibility. Madison: The University of Wisconsin Press, 1996. p. 208-276.

    59 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz, op. cit., p. 51.

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    de aventura nem perigo, mas cada um de ns, alm da conscincia lgica possui uma conscincia potica tambm. As reminiscncias de leitura me impulsionaram mais que a verdade, tribos selvagens, jacars e formiges. E a minha laminha santa imaginou: canho, revlver, bengala, canivete. E opinou bengala.60

    Essa ambiguidade, como outras em Mrio de Andrade, cheia de consequncias, no caso para a compreenso do tema da viagem, e no devemos nos apressar para aparar suas arestas. Assim, foi tambm movido pelas suas leituras que Mrio fez sua viagem para a Amaznia, regio com a qual tinha ligao sentimental e intelectual antiga, como observamos. Lembremos, por exemplo, que quando da sua viagem, em 1927, j havia pelo menos uma redao adiantada de Macunama que viria a pblico no ano seguinte todo ele construdo pela bricolagem de materiais de toda sorte e de escritos alheios diversos61. Entre eles, os mais conhecidos so os mitos e lendas colhidos entre os Taulipangs e Arecuns do extremo Norte do Brasil, Guianas e Venezuela por Koch-Grnberg coligidos em Von Roraima zum Orinoco62. Mrio de Andrade tambm dialogou, ainda que sem necessariamente nomear diretamente seus interlocutores, com as representaes da Amaznia produzidas pelos viajantes naturalistas europeus ou brasileiros, tambm elas apropriadas e traduzidas em momentos diferentes por cientistas, como Carlos Chagas, e escritores, como Euclides da Cunha. Voltaremos a esse debate com os viajantes amaznicos adiante.

    Observe-se, no momento, o quanto a afirmao do papel das leituras na modelagem da experincia da viagem, etnogrfica ou no, relativiza no apenas a autoridade advinda do estive l, como a prpria oposio entre este e um being here na imagem de Geertz sobre a antropologia a que se recorreu anteriormente. No prefcio que escreveu para O turista aprendiz, no qual se define, paradoxalmente, como um antiviajante, Mrio de Andrade observa que durante a viagem esteve muito resolvido a [] escrever um livro modernista, provavelmente mais resolvido a escrever que a viajar, tomei muitas notas []. Se gostei e gozei muito pelo Amazonas, a verdade que vivi metido comigo por todo esse caminho largo de gua63. Se Mrio tomou ou no essas notas em cadernos e papis soltos durante a viagem como afirma, no se pode

    60 Idem, ibidem.

    61 SOUZA, Gilda de Mello. op. cit.

    62 LOPEZ, Tel P. A. Mario de Andrade: ramais e caminhos, op. cit.

    63 ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz, op. cit., p. 49.

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    aferir, uma vez que aqueles originais de 1927 no so conhecidos, a exceo de algumas notas apenas ao contedo datilografado e prefaciado em 1943. Mas isso importa menos do que o reconhecimento que provoca sobre o tipo de viajante em que se forja, carregando suas leituras (de gabinete) para a Amaznia (o campo, para abusar do paralelo com a etnografia), e ambos para a escrita do relato de viagem, tudo isso fazendo parte de um mesmo processo de conhecimento.

    Na mesma direo, outro exemplo, a crtica ao guia Itinerrio de Paris, de Dante Costa publicada no jornal Dirio de Notcias, do Rio de Janeiro, em 31 de maro de 194064. Nela, Mrio de Andrade desen-volve a ideia de conhecimento sensvel que torna relativa a autoridade derivada diretamente do conhecimento emprico do estar l. Vamos nos deter um pouco nesse texto. Na construo do argumento e nos recursos retricos de que Mrio de Andrade lana mo para exp-lo, bastante caracterstica da sua reflexo, entram, calculadamente, doses de dissimulada autocomiserao, fina ironia, algum recalque e por que no tambm algum ressentimento. Isso exige do leitor do dirio, como da obra de Mrio de Andrade como um todo, disposio para uma leitura atenta para as armadilhas da narrativa.

    No primeiro movimento, Mrio observa que no ter conhecido Paris parecia constituir, para ele e para qualquer intelectual da sua poca, quase um defeito moral, uma verdadeira tragdia, dado que a capital francesa era ento tambm a capital cultural da Amrica Latina. Convivendo com artistas e intelectuais que conheciam Paris como a palminha das mos e a quem o ambiente espiritual parisiense era uma fora quotidiana de pensamento, no raro se viu figurando como provin-ciano, e sua autoridade intelectual desaparecer diante de um simples Voc diz isso porque nunca esteve em Paris!. Completando o quadro, observa que uma vez Paulo Prado inventou que ele, Mrio, chegando da Europa, ainda a bordo, com os braos no ar, gritava e gesticulava freneti-camente para os colegas modernistas que o esperavam no cais do porto: Est tudo errado, rapaziada! Vamos recomear que agora eu sei direito as coisas!. Mas como esclarece, o que o aborrecia mesmo que esse tipo de acusao ocorria sempre que algum dos seus interlocutores fosse levado parede com minha lgica livresca, e l vinha minha igno-rncia de Paris como argumento de salvao65.

    64 ANDRADE, Mrio de. Vida literria. Pesquisa, estabelecimento de texto, introdu-o e notas de Sonia Sachs. So Paulo: Hucitec; Edusp, 1993. p. 170-174.

    65 Idem, ibidem, p. 170.

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    Isso anuncia o segundo movimento que se abre com a afirmao de que um forte engano isso de imaginarem que nunca estive em Paris, porque, afinal, seria impossvel a existncia de um intelectual nos tempos que corriam, ao qual as exigncias de sua prpria cultura no tenham dado o sentimento de Paris66. Explicando esse conhecimento sensvel, ou essa prescincia sensvel como tambm o designa, no se trataria de uma mera derivao da leitura das descries das experin-cias dos outros, mas antes, paradoxalmente, de ns mesmos. Diz Mrio:

    a nossa inteligncia, a nossa cultura e especialmente a nossa sensibilidade que, reagindo sobre dados menos didticos e mais reais que uma descrio ou crtica, por exemplo, uma fotografia, um telegrama de jornal, um suspensrio, um livro, um perfume, um selo de correio, e milhares de outros retalhos do concreto, at mesmo uma carta geogrfica, provocam esse conhecimento sensvel, que a nossa prpria realidade. Pode ela estar afastadssima do real verdadeiro, ns jamais a abandonaremos nem mesmo depois de confrontada com a realidade. Para ns ela ser sempre o real mais verdadeiro.67

    Desdobramento interessante da questo so as sensaes que a leitura dos relatos de viagens dos outros sobre lugares que visitamos podem nos causar. Observa Mrio, noutro artigo, publicado em sua coluna Txi no Dirio Nacional, em 5 de dezembro de 1929, a propsito de um livro de Gasto Cruls sobre a Amaznia, que essa experincia pode causar duas formas de prazer, conforme o lido j foi visto ou no. Se j visto, esclarece Mrio, as frases se endeream pro corpo da gente, a atividade intelectual quase se anula diante da fora associativa das sensaes refeitas68. Nesse caso, prossegue, a gente permanece porventura mais afastado do escritor, porm certamente mais exato com a verdade. Isso est sucedendo comigo que atravs da escritura de Gasto Cruls ando agora numa reviagem dolente e muito sensvel pela Amaznia que eu vi69.

    Mais do que um jogo de palavras com o ttulo do livro de Cruls, A Amaznia que eu vi, a ideia de Mrio de uma reviagem dolente e muito sensvel deve ser levada a srio, tanto que o autor se esfora por

    66 Idem, ibidem.

    67 Idem, ibidem, p. 170-171.

    68 Idem, ibidem, Txi e crnicas no Dirio Nacional, op. cit., p. 163.

    69 Idem, ibidem.

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    qualific-la a partir da distino entre duas categorias em geral sobre-postas: verdade e evidncia. Diz Mrio:

    A verdade um destino da inteligncia, , por assim dizer, uma assombrao metafsica e pra lhe caracterizar a irrealidade terrestre criou-se uma outra palavra, evidncia, experimental, objetiva. Que a Amaznia seja bonita pode ser uma verdade mas que ela designe a regio do rio Amazonas uma evidncia.70

    Justamente por isso, explica, o indivduo viajado pode estar destitudo da verdade, embora possuindo uma evidncia do mundo que viajou. Nesse ponto vale fazer um pequeno parntese para flagrar mais uma das ambiguidades de Mrio de Andrade a respeito do tema, deliciosas, por certo, pois sempre, em alguma medida, algo autocons-cientes e mesmo autoirnicas. Tambm ele no teria resistido a lanar mo do que chama de preconceito do homem viajado, e do qual tantas vezes fora vtima. O episdio que nos interessa narrado no artigo sobre a Amaznia citado, no qual observa que, mesmo que o argumento do indivduo viajado possa estar inteiramente equivocado, ainda assim a autoridade conferida pelas viagens a do being there, ou, como prefere o prprio Mrio, a do ter estado l sempre potente, e uma verda-deira volpia. Diz o autor:

    Percebi isso muito bem no dia que passaram aqui o filme do general Rondon, sobre o extremo Norte da Amaznia. Tinha muita criana das escolas no teatro. E tanto uns sujeitos semissabidos comen-taram errado certas coisas ao p de mim que no me contive e virtuosamente corrigi uma tolice grande. Continuou a correo, um dilogo curto que me levou ao sublime j estive l. Ningum mais no disse nada, a no ser um menino que, feitas as luzes pra mudana de rolo, olhou e sorriu pra mim. incontestvel que se o Santa Helena desabasse, o menino se salvava porque eu tinha estado l e estava ali. Com a mudana que a idade trs pras ideias, eu bem sabia que todos os meus vizinhos estavam na mesma ordem de sensibilidade que o menino. Eu, calmo feito um rei.71

    70 Idem, ibidem, p. 163-164.

    71 Idem, ibidem, p. 164.

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    IV

    A gente j sabe da monotonia porm monotonia a palavra mais estpida deste mundo. Tem monotonias insuportveis e tem mono-tonias que a gente no se cansa de gozar. Assim esta do Amazonas. Tem uma variedade prodigiosa se a gente pe reparo nela. E se no pe e se deixa prender por ela ento uma gostosura niili-zante como no se pode imaginar outra, sublime.72

    Assim, Mrio de Andrade relata a Manuel Bandeira suas impres-ses do rio Amazonas. Chama a ateno, no trecho destacado, a referncia ao tema da monotonia da plancie amaznica, de suas massas hdrica e vegetal e a lentido dos ritmos equatoriais, verdadeiro tpoi da litera-tura e ensastica amaznica73. Por isso mesmo no simples afirmar se Mrio estava pensando em algum autor em particular quando se refere a esse conhecimento prvio sobre a monotonia equatorial (A gente j sabe da monotonia). Mas, indcios textuais no relato de viagem e noutros escritos amaznicos apontam para uma interlocuo, embora no nomeada, privilegiada com Euclides da Cunha, autor que no apenas Mrio conhecia muito bem, mas cujos escritos amaznicos j represen-tavam, quela altura, verdadeiro paradigma de intepretao da regio, para no falar de seu impactante Os sertes, de 1902.

    A monotonia do rio Amazonas e o desapontamento por ela desper-tado aparecem com fora nos escritos de Euclides da Cunha. O tema j abre Terra sem histria (Amaznia), um dos seus textos que, talvez, viria a formar o eixo do livro que jamais escreveu sobre a regio, mas para o qual chegou a escolher o ttulo de Paraso perdido. Diz Euclides:

    Ao revs da admirao ou do entusiasmo, o que sobressalta geral-mente diante do Amazonas, no desembocar do ddalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, antes um desponta-mento. A massa de guas , certo, sem par, capaz daquele terror, a que se refere Wallace; mas como todos ns desde mui cedo gizamos um Amazonas ideal, merc das pginas singularmente lricas de

    72 Idem, Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira, op. cit., p. 346.

    73 ROSS, Peter. op. cit.; SCHWEICKARDT, Jlio; LIMA, Nsia Trindade, op. cit.; BAS-TOS, Elide Rugai; PINTO, Ernesto Renan M. F. op. cit.; HARDMAN, Francisco Foot. op. cit.; LIMA, Nsia Trindade; BOTELHO, Andr. op. cit. Sobre Euclides ver ainda: GALVO, Walnice Nogueira. Euclidiana. Ensaios sobre Euclides da Cunha. So Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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    no sei quantos viajantes que desde Humboldt at hoje contem-plam a Hylae prodigiosa, com um espanto quase religioso sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior a imagem subjetiva h longo tempo prefigurada.74

    Euclides voltou ao tema outras vezes, inclusive em seu discurso de recepo na Academia Brasileira de Letras, em 18 de dezembro de 1906, no qual relata o desapontamento que a princpio a Amaznia lhe causara, a comear pelo rio Amazonas. Ele o imaginara grandioso, mas o achara pequeno, um verdadeiro diminutivo do mar, mas sem as ondas, a profundidade e o mistrio deste: Uma superfcie lquida, barrenta e lisa, indefinidamente desatada para o norte e para o sul, entre duas fitas de terrenos rasados, por igual indefinidos, sem uma ondulao ligeira onde descansar a vista75. Como Mrio de Andrade em relao a Euclides da Cunha (e outros autores), o que acabou sendo desmentido no viajante Euclides, ao menos a princpio, foram as impresses formadas a partir das leituras dos relatos de viagem regio. E so muitos os viajantes citados por Euclides, a comear por Alexander von Humboldt, William Chandless, Alfred Wallace, Frederick Hartt, Walter Bates, Alexandre Rodrigues Ferreira e Tavares Bastos, entre outros76.

    Euclides da Cunha conheceu a Amaznia pessoalmente entre 1904 e 1905, em viagem oficial como chefe da Comisso Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Criada pelo Baro do Rio Branco, ministro das Relaes Exteriores, o objetivo principal dessa comisso era resolver dvidas relativas s fronteiras entre o Brasil e o Peru, aps a cesso do territrio do Acre pela Bolvia. O relatrio enviado ao ministrio, e a preparao de mapas para o reconhecimento hidrogrfico do Purus, complementados pelos obtidos na expedio ao Juru realizada pelo coronel Belarmino Mendona, permitiram a resoluo das questes de fronteira entre Brasil e Peru em setembro de 190977.

    muito potente, nos escritos amaznicos de Euclides da Cunha, a tenso entre encantamento imaginrio (no gabinete) e desiluso

    74 CUNHA, Euclides da. Primeira parte. Terra sem histria (Amaznia). In: . margem da histria. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 1.

    75 Idem, Discurso do Sr. Euclides da Cunha. In: Academia Brasileira de Letras, Dis-cursos Acadmicos. Volume I (1897 1919). Rio de Janeiro, 1965, p. 211.

    76 HARDMAN, Francisco Foot. op. cit.

    77 LIMA, Nsia Trindade. Euclides da Cunha; o Brasil como serto. In: BOTELHO, Andr; SCHWARCZ, Lilia (orgs.). Um enigma chamado Brasil. 29 intrpretes e um pas. So Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 104-117.

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    emprica (no campo) com o cenrio amaznico quando observado de perto. Assim, tambm Euclides parece ter viajado movido, em parte, por suas recordaes de leitura, para usar a ideia de Mrio de Andrade, e com as quais tambm acabou tendo que acertar contas. Alm de potente e recursiva nos relatos de viagem Amaznia, porm, a tenso entre imaginao e desiluso pode ser criativa, como me parecem ser os casos de Euclides e Mrio, cada um a seu modo. Particularmente importante, no caso do primeiro, a tentativa de Euclides em produzir um retrato realista da Amaznia baseado na cincia do seu tempo como alternativa ao que considerava serem vises fantasiosas originrias dos relatos dos viajantes dos sculos anteriores. A promessa, no entanto, no pde se cumprir totalmente, ou, o que talvez seja mais importante ainda, no se realizou exatamente da forma planejada: a Amaznia no parece ter se deixado esquadrinhar e disciplinar inteiramente do ponto de vista cientfico defendido por Euclides. Por isso, seus textos no deixam de subli-nhar tambm os elementos surpreendentes, difceis de serem explicados pelo arsenal de conhecimentos de que o autor dispunha. Da as imagens imbricadas de uma natureza fantstica e enigmtica e de uma sociedade que pareciam capazes de colocar em xeque teorias ento correntes que Euclides acabou deixando em seus escritos, e s quais, numa mescla entre cincia e imaginao, devem um bocado da sua fora expressiva e inte-resse ainda hoje. O real fantstico que de alguma forma escapa cincia de Euclides da Cunha e sobra em seus textos amaznicos tomado em Mrio de Andrade, em grande medida, como ponto de vista do seu relato de viagem.

    Se a tenso entre imaginao (no gabinete) e desiluso (no campo) no perfaz necessariamente um jogo de soma zero, nem sempre a desiluso leva frustrao do viajante. Assim, por exemplo, a repre-sentao da regio como vazio social a que Euclides da Cunha chegou a aderir inicialmente contestada aps a sua viagem; a qual no o permitiu tambm continuar ignorando o genocdio dos povos indgenas praticado na regio desde o perodo colonial, bem como as terrveis condies de trabalho a que eram submetidos os sertanejos brasileiros, expulsos pelas secas do Nordeste e atrados Amaznia pelo ciclo da borracha. Outras vezes, por outro lado, a imaginao pode sempre ser acionada, inclu-sive como modo de aperfeioamento do olhar e de reenquadramento de uma realidade que decepciona. Euclides se reconcilia com a paisagem amaznica aps a leitura da monografia do botnico Jacques Huber e de uma visita ao Museu do Par (atual Museu Paraense Emlio Goeldi) que

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    lhes ensinam a ver de novo a Amaznia, de tal modo que, ao contemplar novamente o rio, afirmou sentir-se como que diante uma pgina indita do Gnesis78.

    Voltemos a Mrio de Andrade e ao dilogo com Euclides da Cunha. Tambm a esse respeito, as ambiguidades de posies no relato de viagem e noutros escritos amaznicos seus mostram-se fundamen-tais. Diferente do que relata na carta a Manuel Bandeira, por vezes Mrio se mostra decepcionado com o Amazonas e a monotonia equatorial. Em Amaznia, artigo publicado em 1929 na coluna Txi que manteve no Dirio Nacional, por exemplo, rememorando suas lembranas do rio Amazonas, fala da decepo desagradvel que teria experimentado diante da embocadura do rio Amazonas, em termos, que praticamente, repetem o trecho referido por Euclides da Cunha. A grandeza sublime do rio apreendida nos livros discrepava inteiramente, observa Mrio, da aguinha suja que viu pessoalmente, e decide, ento, por seu retorno a sua prescincia sensvel do Amazonas, nica que sempre existiu para a minha realidade, nica verdadeira79.

    Todavia, essa aparente convergncia com Euclides esconde uma divergncia fundamental: no caso de Mrio de Andrade, a decepo desa-gradvel diante da paisagem natural, cuja viso exuberante fora cultivada nos livros, parece constituir tambm recurso crucial de contraposio ideia de exotismo associada de exuberncia e monumentalidade da natu-reza, reiterada em Euclides. Da o seu uso todo particular do diminutivo com que qualifica o Amazonas que viu pessoalmente, aquela aguinha suja80. A ironia fina que qualifica as categorias empregadas indica a rela-tivizao implicada nas sentenas bem meditadas de Mrio de Andrade. Assim, se afirma ter preferido ficar com as imagens dos rios amaznicos aprendida nos livros, tambm no se deixou levar inteiramente por elas. Procurou antes divisar nas aparentes monumentalidade e monotonia da natureza o cotidiano das comunidades e muita histria, por oposio ideia de povo sem histria de Euclides. E a volta novamente a posio da carta a Manuel Bandeira.

    Mais uma vez num dilogo no declarado, Mrio procura fugir da polaridade euclidiana entre monumental (natureza) e vazio (hist-rico e social), entre o infinito e o infinitesimal como disse um crtico

    78 Idem. HARDMAN, Francisco Foot. op. cit.

    79 ANDRADE, Txi e crnicas no Dirio Nacional, op. cit., p. 171.

    80 Idem, ibidem.

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    de Euclides da Cunha81. Como na distino que o turista aprendiz modernista faz entre rios grandes e igaraps para divisar histria e relaes sociais prprias para alm da monumentalidade e aparente monotonia da natureza aqutica amaznica. Enquanto os primeiros, como o Amazonas e o Madeira, seriam montonos (mato vasto e conhe-cido pareando o beira-rio), os igaraps, por sua vez, embora menores, seriam mais misteriosos e sugestivos. Os igaraps guardariam um mundo enorme de sugestes de boniteza, de prazer de aventura, de desejos viciosos de mistrio, crime, indiada, nirvanizao82. E prossegue na comparao: Uma calma humana sem aquela ostensividade crua e muito sobrenatural dos rios grandes []. D uma vontade louca da gente se meter igarap acima, ir ter com no sei que flechas, que pajs, que xtases parados de existir sem nada mais. E a maleita83.

    E para enfrentar o legado euclidiano com que tambm viajara a Amaznia, alm de outras possveis reminiscncias de leituras, para transpor a sua aparncia monumental e montona, Mrio de Andrade contou tambm com a ajuda inestimvel da sua Kodak brasileiramente rebatizada de Codaque. Mrio de Andrade foi fotgrafo autodidata, mas no simplesmente amador, uma vez que ultrapassou o mero registro pessoal, ou o seu sentido, dedicando-se a estudar a fotografia como linguagem artstica, explorando enquadramentos e composies. Na viagem Amaznia Mrio fez mais de quinhentas fotografias, ou fotou, segundo o verbo que tambm inventou. De volta a So Paulo, ainda em 1927, pe-se a catalogar as imagens reveladas em preto-e-branco anotando legendas no verso, transpondo as informaes colhidas in loco, mas, tambm, no segundo momento, glosando as representaes e o exerccio fotogrfico. Este material, como nos sugere Tel Porto Ancona Lopez, configuram um dirio ao lado e por dentro do dirio-texto de O turista aprendiz:

    O dirio das imagens e legendas, que funde testemunho e arte-fazer, possui vertentes que se interpenetram, concernindo ao registro do cotidiano do grupo de amigos, do espao e da vida do

    81 HARDMAN, Francisco Foot. op. cit., p. 63.

    82 ANDRADE, Txi e crnicas no Dirio Nacional, op. cit., p. 453.

    83 Idem, ibidem.

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    homem na Amaznia, assim como quela dimenso que pe Mrio de Andrade em destaque a experimentao artstica.84

    As representaes de Euclides da Cunha da Amaznia no so, porm, simplesmente confrontadas e menos ainda descartadas por Mrio de Andrade, assim como aquelas produzidas pelos viajantes-cronistas naturalistas tambm no puderam s-la inteiramente pelo prprio Euclides. Forma-se um dilogo denso, nem sempre nomeado, por dentro dos tropos h muito construdos sobre a Amaznia na chave do real-ma-ravilhoso naturalista de Euclides e expressionistamente transfigurado em Mrio. O sublime da paisagem, a natureza que esconde ao mesmo tempo o deslumbre e o horror, a lentido dos ritmos equatoriais, a mono-tonia da plancie amaznica e outras imagens persistem plasticamente. As categorias desse repertrio amaznico podem, assim, ser repostas, mas com sentidos diversos, mesmo quando o objetivo declarado seria desestabiliz-las, como no caso de Mrio de Andrade em relao longa tradio de representaes amaznicas.

    V

    Um corpo a corpo com o texto e outros materiais de pesquisa envolvidos constitui alternativa busca de unidades estveis entre, de um lado, o relato da viagem Amaznia de Mrio de Andrade e, de outro, uma tradio do gnero literatura de viagem ou mesmo o relato da sua viagem etnogrfica ao Nordeste. As contingncias da viagem jogam papis decisivos no tipo de relato que acaba se forjando, ainda que a experincia do narrador-viajante seja sempre mediada pelas leituras que modelam seu horizonte de expectativas. Persiste certa melancolia entre o visto (em campo) e o lido (no gabinete), ainda que o humor e a ironia sejam mobilizados como recursos crticos.

    Figuraes da viagem e do narrador que, como no caso central dos narradores de Machado de Assis na prosa brasileira, parecendo viajar ao redor de si mesmos, ganham autorreflexividade, volubilidade e pers-pectiva crtica85. Internalizada como procedimento narrativo, a viagem pode ser relatada por autores pouco afeitos, eles mesmos, aos desloca-mentos no espao, como os prprios Machado e Mrio. que mesmo

    84 LOPEZ, Tel P. A. O Turista Aprendiz na Amaznia: a inveno no texto e na ima-gem, op. cit., p. 142.

    85 SSSEKIND, Flora, op. cit., p. 153-155.

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    pouco, como afirma Lvi-Strauss no trecho tomado como epgrafe deste ensaio86, pensar a viagem apenas como deslocamento no espao; ela sempre envolve tambm descolamentos no tempo e na hierarquia social, como bem mostra a parcialidade do narrador de O turista aprendiz.

    A valorizao analtica das contingncias, das parcialidades e ambi-guidades envolvidas na viagem e na modelagem do relato e do viajante amaznicos forjados permite ainda uma aproximao ao carter mais plural e polifnico que caracteriza a obra de Mrio de Andrade como um todo. Como contrapontos musicais que querem significar, acima de qual-quer coisa, que nem tudo deve fechar-se num sentido nico. Como to bem expressam suas posies em relao ao relato de viagem, s tenses entre o lido e o visto, empatia com o outro, ao xtase e monotonia da paisagem e aos sentidos da civilizao nos trpicos.

    Relatos de viagem so bons para pensar complexos de relaes de deslocamentos e alteridades de sujeitos, de culturas, de sociedades. Relaes por meio das quais, perguntas fundamentais sobre matrizes civilizacionais podem ser feitas e tambm se redefinem as experincias sociais dos atores, inclusive a sua modelagem como indivduos87. Como toda viagem tambm uma viagem para dentro de si mesmo, por certo o tema da alteridade na viagem amaznica de Mrio de Andrade tambm se relaciona com as transformaes radicais por que passava a sua prpria sociedade paulista, como a chama, com o avano do capitalismo indus-trial, urbanizao acelerada e a rpida substituio e homogeneizao de padres de temporalidade, de sociabilidade, de prticas e de valores sociais, processo de que se fez crtico.

    Como a histria e o processo social, no entanto, tambm as viagens nem sempre precisam ser uma via de mo nica. possvel qualificar a abertura de perspectivas que tem lugar entre razes e rotas. Mais do que comprovar o que a tradio crtica foi assentando com o tempo sobre o modernismo, os relatos de viagem de Mrio de Andrade podem, ainda, contribuir com o esforo de distanciamento para explorar os seus limites e potencialidades, bem como formas alternativas de entender as ideias do autor e as dinmicas de mudana da prpria sociedade da qual faz parte. Assim, mais do que no tema da identidade nacional, ou da autenticidade da cultura brasileira, para dar dois exemplos emble-mticos e recursivos na fortuna crtica, temos muito ainda a aprender

    86 LVI-STRAUSS, Claude. Tristes trpicos. So Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 81.

    87 ARAJO, Ricardo Benzaquen de. Atravs do espelho: subjetividade em Minha formao, de Joaquim Nabuco. Rev. bras. Ci. Soc., vol. 19, n. 56, p. 5-13, out. 2004.

  • 49 Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. 57, p. 15-50, dez. 2013

    com o gesto, o movimento, o sentido que o animava ambiguamente como vimos no relato amaznico. Se Mrio valorizou a cultura popular, ou buscou diluir criticamente as fronteiras entre erudito e popular, o interesse da sua contribuio no se limita s manifestaes que colheu ou colecionou, mas antes no reconhecimento que delas provocou e na dignidade que conferiu a seus portadores sociais. Reconhecimento e dignidade so elementos centrais da utopia amaznica de Mrio de Andrade de uma civilizao mais plural. So tambm desafios perenes em nossa sociedade.

    Sobre o autor:

    Andr Botelho

    Professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), graduado em

    Cincias Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em

    Sociologia e doutor em Cincias Sociais (Universidade Estadual de Campinas, UNI-

    CAMP, Campinas, SP, Brasil). Pesquisador do CNPq (Bolsista de Produtividade em

    Pesquisa Nvel 1D) e da Faperj (Jovem Cientista do Nosso Estado).

    E-mail: [email protected]