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57 Setembro – Dezembro 2007 publicação quadrimestral 4 € revista do METANOIA Movimento Católico de Profissionais SER IGREJA, SEGUINDO JESUS Isabel Varanda, Armando Romano, António Agostinho Silva, Deolinda Paiva, D. António Francisco dos Santos Entrevistas Juan Masiá e Irmão Aloïs de Taizé Memória de Wadid Francisco Sidarus

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57

Setembro – Dezembro

2007

publicação quadrimestral

4 €

revista do

METANOIA

Movimento

Católico de

Profissionais

SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

Isabel Varanda, Armando Romano,

António Agostinho Silva, Deolinda Paiva,

D. António Francisco dos Santos

Entrevistas

Juan Masiá e Irmão Aloïs de Taizé

Memória de Wadid Francisco Sidarus

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Nº 57 Setembro - Dezembro 2007

PropriedadeMetanóia - Movimento Católico

de ProfissionaisNIPC - 502 840 692

DirectorAntónio Matos Ferreira

Conselho EditorialAntónio Marujo, Cláudia Alves,

José Centeio, Júlio Martin, Miguel Marujo, Nuno Alves, Paulo Fontes, Rita Veiga,

Rui Madeira

Colaboradores deste númeroAdel Sidarus, Alice Caldeira Cabral,Ana Nunes, António Agostinho Silva,

D. António Francisco dos Santos,Armando Romano,

Deolinda Paiva, Isabel Varanda,Manuel Vilas Boas

CapaCláudia Alves

IlustraçõesIrmão Marc, de Taizé

Grafismo e paginaçãoAníbal Fernandes

RedacçãoR. João Freitas Branco, 12

1500-359 LISBOATel. 210 322 339

SecretariadoInês Versos

ImpressãoJorge FernandesR. Quinta Conde

de Mascarenhas, 9Vale Fetal

2825-259 Charneca da Caparica

Depósito legal nº 44272/91Registo nº 107116

Tiragem: 500 exemplares

Preço: 4 euros

Ficha de AssinaturaNome

Morada

Código Postal

Endereço Eletrónico

Para Pagamento da assinatura envio cheque nº

sobre,

à ordem de Metanoia.

Assinatura anual: 10 Euros ( 3 números)

Assinatura de apoio: a partir de 15 Euros

(Este cupão pode ser fotocopiado)

Editorial2 Um programa maior para a Igreja

António Marujo

Ser Igreja, seguindo Jesus4 Algumas provocações

para um diálogoIsabel Varanda

8 Ser corpo, comunhão e sinal de Deus no mundoIsabel Varanda

14 Algumas memórias e três notas de rodapé sobre a IgrejaArmando Romano

17 Seguir Jesus a duas velocidadesAntónio Agostinho Silva

18 Ser e fazer Igreja hoje ou ser Igrejaseguindo Jesus CristoDeolinda Paiva

21 Uma Igreja que conta convoscoD. António Francisco dos Santos

Ser Igreja - Entrevistas 22 Juan Masiá: É necessário

que as religiões se unam…Manuel Vilas Boas

28 Irmão Aloïs de Taizé: O evangelho só será credível…António Marujo

Crónica31 Harmonia na dissonância

Ana Nunes

Memória 32 Wadid Francisco Cabral

Sidarus (Dido)Alice Caldeira Cabral e Adel Sidarus

SUMÁRIO

viragem 1

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E, apesar de tudo, a Igreja é a nossa casa. Falo,aqui, da Igreja como comunidade dos crentes.Mesmo com algum mal-estar quandoprevalece a instituição sobre a comunidade, ouapesar das divisões e rupturas, que são tambémo sinal da nossa incapacidade em privilegiar o

apelo de Jesus "Que todos sejam um", em favor da pequenezque tantas vezes nos atravessa. Ao longo da história, muitasdas divisões que fraccionaram os cristãos foram maisreflexo dessa imperfeição do que da grandeza do Evangelho.Mas prevalece sempre esse apelo maior à comunhão apesardas diferenças, esse desafio à unidade na pluralidade.

A tensão entre a comunidade e a fractura - que pode sercriativa - existiu desde o início. O testemunho do quechamamos Concílio de Jerusalém conta-nos a história decomo os primeiros companheiros de Jesus tiveram que dis-cutir entre si sobre quem tinha direito de pertencer à suacomunidade - ainda não se chamava ecclesia, ainda mal eraconhecida por cristã, ou seja, seguidora de Cristo. No finaldo debate, com Pedro e Paulo inicialmente separados, adecisão só podia ser a de que a salvação chegara, por Jesus,para todos. Sem excepção: nem judeu nem grego, nemescravo nem livre, nem homem e mulher, porque todossomos "um só em Cristo Jesus" (Gálatas 3, 28).

Essa tensão criativa do início permitiu-nos olhar para asprimeiras comunidades de cristãos - e, nomeadamente, paraa comunidade de Jerusalém - como uma "comunidade-mo-

delo". Assim lemos em subtítulos das nossas bíblias, desdehá muito. E havia razões para a designar como tal. Lemos nolivro dos Actos dos Apóstolos: "Eram assíduos ao ensino dosApóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações.Perante os inumeráveis prodígios e milagres realizadospelos Apóstolos, o temor dominava todos os espíritos. Todosos crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum.Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro portodos, de acordo com as necessidades de cada um. Como setivessem uma só alma, frequentavam diariamente o templo,partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com ale-gria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e tinhama simpatia de todo o povo. E o Senhor aumentava, todos osdias, o número dos que tinham entrado no caminho da sal-vação." (Act 2, 42-47) Ou, mais à frente: "A multidão dosque haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma sóalma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entreeles tudo era comum. Com grande poder, os Apóstolosdavam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e umagrande graça operava em todos eles. Entre eles não havianinguém necessitado, pois todos os que possuíam terras oucasas vendiam-nas, traziam o produto da venda e deposi-tavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cadaum conforme a necessidade que tivesse." (Act 4, 32-35)

Como podemos ler, então, para nós hoje, estes textos?Em primeiro lugar, como um desafio à igual e radical dig-nidade de todos no interior da comunidade cristã. E que

2 viragem

EDITORIAL

A relação com a dimensão institucional da Igreja, nem sempre fácil,

não nos deve deixar perder na discussão sobre regras, disciplinas

ou mesmo normas morais que nos aprisionam. Antes nos deve desafiar a

trazer para dentro da comunidade dos crentes uma interpelação que a todos deve

interrogar: como dizia o Papa Paulo VI, a 8 de Dezembro de 1965, no encerramento

do Concílio Vaticano II, "para a Igreja, ninguém é estrangeiro, nem excluído

nem longínquo". Para seguir Jesus, sendo Igreja, não é este é o programa maior?

Um programa maiorpara a Igreja»» António Marujo

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longe estamos do desejo de Paulo na Carta aos Gálatas! Oevangelho, é verdade, tem esse intenso poder de chegar aospobres e aos mais fracos. E muitas das comunidades cristãssão ousadas na promoção humana e na caridade profunda.Mas também vemos que, muitas vezes, somos comunidadese grupos de pessoas plenamente integradas na sociedade,sem problemas de nos sentirmos estrangeiros (os "gregos"),economicamente incapacitados (os "escravos") ou social-mente despezados (as "mulheres"). Como arriscar mais?Como criar formas radicais de, em sociedades da abundân-cia, integrar os que estão à margem do sistema, os sem-abri-go, os imigrantes, as mulheres vítimas de violência ou dediscriminação, os doentes, os fragilizados? Cada vez quealguém nos aborda a pedir, no meio da rua, é um dedo quese nos aponta à incapacidade de sermos "um só em CristoJesus".

Sentimos os mesmos desafios quando olhamos para ostextos dos Actos. Não como um modelo que deveríamosimitar, mas como proposta que deveria ser uma referênciapara nós. De novo, para procurar no nosso tempo, os sinaisque mais nos deveriam interpelar.

Em primeiro lugar, lemos que, para os primeiros cristãos,nada estava separado: "Eram assíduos ao ensino dosApóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações."Conhecer a vida e os ensinamentos de Jesus, partilhar osbens em função da necessidade de cada um e rezar ou partiro pão da Última Memória de Jesus eram facetas diversas deuma unidade de vida exemplar. E por isso constitui um apeloà nossa criatividade o ousarmos formas novas de acorrer aoque cada um necessita. Por vezes, mesmo no interior dasnossas comunidades, há quem necessite de apoio material,de uma palavra de apoio, de tempo disponível, de um postalrecebido no momento de maior solidão. Nesses momentos,onde estamos nós?

No Encontro de Reflexão Teológica do Metanóia, rea-lizado em Julho de 2007 (e do qual a Viragem publica, nestenúmero, alguns textos), reflectia-se sobre como ser Igrejaseguindo Jesus. Isabel Varanda, que nos animou no debate,recordava um excerto de "Del mistério de la iglesia alpueblo de Dios", uma obra de Juan Estrada: "Ao inquirir daideia de 'Igreja' que tinham os cristãos na época do impérioromano, ficamos surpreendidos; não há uma reflexãotemática ou sistemática centrada sobre a Igreja; não existeum tratado de eclesiologia como o que temos actualmente,nem sequer uma visão como a que hoje temos ao falar deIgreja hierárquica ou de Igreja institucional ou de 'Igreja ofi-cial'. O que chama a atenção é que os cristãos da Igreja anti-ga fazem a experiência do que é a Igreja, têm a vivência daIgreja e exprimem esta experiência através de uma grandequantidade de símbolos, imagens, metáforas, represen-tações, alusões, muito diferentes da tematização racional dasreflexões eclesiológicas modernas. Quer dizer, a realidadeeclesial é, em primeiro lugar, uma experiência vivida eomnipresente por aqueles que dela se sentem parte e queconstitui lugar central na sua vida cristã. Para falar da Igreja

há que vivê-la, senti-la e comungar com ela e isto é anteriore muito mais essencial que toda e qualquer proposição in-telectual… Neste sentido, pode dizer-se que não há cristia-nismo sem Igreja, não é possível alguém relacionar-se comCristo sem pertencer à comunidade de discípulos congrega-dos à volta do Mestre. Ou seja, a eclesialidade marca a vidacristã… Trata-se, portanto, de uma realidade comunitária daqual se tem, mais do que uma ideia, a experiência e cujocarácter é relacional".

A citação serve para retomar a questão inicial: apesar detudo, a Igreja é a nossa casa. Como há pouco tempo me diziaLaura Ferreira dos Santos*, numa entrevista que lhe fiz,"não posso ir plenamente a Cristo se não vou pela Igreja."

Mas a Igreja deve ser para todos, e cada vez mais, umaexperiência - que se expressa através de "símbolos, imagens,metáforas, representações, alusões" - e não apenas (ousobretudo) uma instituição. Muitas vezes, é com esta dimen-são da Igreja que temos dificuldades. Ao institucionalizarsímbolos, metáforas ou representações, troca-se muitasvezes o espírito pela norma, a liberdade pelo dogma, ocarisma pelo poder. Essa tensão que por vezes nos atravessaera assim resumida por Laura Ferreira dos Santos na mesmaentrevista: "A convicção na existência de Deus reforçou-se,mas serei uma católica nas margens. Algumas pessoaspoderão considerar-me pouco ortodoxa. Digo sempre queestou à procura de uma ortodoxia maior. Quando discordode algumas posições do Vaticano, é em busca de uma orto-doxia maior."

A relação com a dimensão institucional da Igreja, nemsempre fácil, não nos deve deixar perder na discussão sobreregras, disciplinas ou mesmo normas morais que nos aprisio-nam. Nem nos deve deixar tolher em amarguras ou decepções.Na apresentação do Encontro de Reflexão Teológica de 2008(que decorrerá entre 26 e 29 de Julho, sobre o tema "Igreja:comunhão e democracia"), escreve-se: "Muitas vezes, emrelação ao percurso de cristão vivido por cada um, em parti-cular na sua dimensão comunitária, oscila-se entre a aprecia-ção dessa experiência como insuficiente ou insatisfatória euma posição de autocomprazimento ou de auto-suficiência. Aomesmo tempo, encontramo-nos confrontados ou por atitudesintransigentes e radicais ou por graus elevados de apatia e aco-modação. Contudo, a percepção histórica da experiência deIgreja permite conhecermos e tornarmo-nos sensíveis a per-cursos mais adequados e mais fiéis ao espírito evangélico."

Temos ainda presente o eco das palavras do Papa BentoXVI na audiência aos bispos portugueses, no final de 2007,apelando à fidelidade ao espírito do Concílio Vaticano II e aque a Igreja fale menos de si mesma e mais de Deus. Porquea dimensão institucional deve desafiar-nos a trazer para den-tro da comunidade dos crentes uma interpelação que esteveno espírito conciliar e que a todos deve interrogar: comodizia o Papa Paulo VI, a 8 de Dezembro de 1965, no encer-ramento do Concílio Vaticano II, "para a Igreja, ninguém éestrangeiro, nem excluído nem longínquo". Para seguirJesus, sendo Igreja, não é este é o programa maior? v

viragem 3

UM PROGRAMA MAIOR PARA A IGREJA

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4 viragem

SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

Nesta primeira reflexão, gostaria de me deterem alguns traços do mundo ocidental con-temporâneo. Exprimindo-me de formaesquemática e correndo o risco de simplismoe de parcialidade, pretendo lançar algumasprovocações, que servirão de estímulo e pon-

tos de partida para o diálogo, como momento propício à ma-nifestação das múltiplas e diferenciadas sensibilidades, for-mações e perspectivas.

Começo por referir, de forma aleatória, acontecimentosdiversos e dispersos por diferentes domínios, e cujo traçocomum está só no facto de serem produções presentes nasociedade ocidental - nas artes, no social, no desporto no reli-gioso, no político - e por representarem ou indicarem, cadaum à sua maneira, desafios da cultura actual à transmissão dafé. Pontualmente alargarei a reflexão sobre um ou outrodestes elementos.

a. No cinema: O exorcismo de Emily Rose (ScottDerrickson, 2005), O Código Da Vinci (Ron Howard, 2006);O Génio do Mal (John Moore, 2006). Filmes cuja imagem demarca é o laicismo anti-católico, ignorante, virulento, agres-sivo e cínico. É a arte de consagração da ignorância dascoisas como lucidez racional.

b. A violência em todos os seus estados: violência global(o espectro do terrorismo, as guerras entre povos e nações),

violência interior (toxicodependência, suicídio1), violênciaexterior: sub-mundos, delinquência, exclusão, desigualdadesestruturais e dinâmicas. O vandalismo filmado e as agressõesfilmadas estão na moda entre os adolescentes. Chama-sehappy slapping e consiste em agredir alguém num lugarpúblico, podendo ir até uma violação, enquanto um compa-nheiro filma a cena que, posteriormente, será difundidaatravés da net, assegurando assim uma audiência ilimitada. Ohappy slapping designa agressões físicas; o termo utilizadono caso da violência psicológica é bulling.

c. León Rozitchner (filósofo argentino, ateu): dá umaentrevista a uma revista portuguesa, em Junho de 2006,durante a qual defende a tese de que o cristianismo inauguroua violência e a opressão tal como existem hoje no mundo.Segundo ele, "a origem da violência no Ocidente está no cris-tianismo"2.

d. França e os movimentos cristãos que se antecipam àdiscussão do projecto-lei de Nicolas Sarkozy sobre a emi-gração e a integração. Cerca de 50 instâncias de todas asIgrejas assinam uma declaração, no dia 24 de Abril de 2006,que lembra o "direito do estrangeiro"; pretendem sensibi-lizar a opinião pública antes do debate do projecto-lei3. AsIgrejas cristãs marcam a sua posição, dando sugestões deoutros horizontes de enquadramento, pondo o dedo nas prin-cipais perplexidades, lacunas, inquietações e reais limites

São algumas provocações, que servirão de estímulo e pontos de partida

para o diálogo. São acontecimentos diversos e dispersos por diferentes domínios,

cujo traço comum está só no facto de serem produções presentes na sociedade

ocidental - nas artes, no social, no desporto no religioso, no político

- e por representarem ou indicarem, cada um à sua maneira, desafios

da cultura actual à transmissão da fé.

Algumas provocaçõespara um diálogo»» Isabel Varanda »» Texto da intervenção no XVII Encontro de Reflexão Teológica, do Metanóia, realizado em Albergaria-a-Velha, de 28 a 31 de Julho de 2007; título da

responsabilidade da Viragem

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ALGUMAS PROVOCAÇÕES PARA UM DIÁLOGO

que o projecto-lei comporta. Mais importante do que oresultado é a atitude de pró-actividade demonstrada.Tradicionalmente reactivas à posteriori, aqui as Igrejas,corajosamente, ousam lançar o debate social, através dedeclarações publicadas e divulgadas, conferências,colóquios e conversas informais.

e. Thimothy Garton Ash, historiador britânico, escreve umartigo de opinião, num jornal português4, onde reflecte sobreo furacão Katrina (2005) e a cidade de Nova Orleães; a par-tir dos acontecimentos e da leitura que deles faz, Garton Ashrecusa a ideia do choque de civilizações (tese de SamuelHuntington); defende, em alternativa, o risco de "desciviliza-ção da espécie humana"5.

f. A revista Science et Vie6 interroga, na primeira página:"Pourquoi Dieu ne disparaîtra jamais?". Num artigo ampla-mente desenvolvido é dito, em suma, que o nosso cérebroestá programado para crer e, por isso, cada um de nós é le-vado a acreditar. Mas, opinamos nós, com alguma ironia decircunstância, a genética tem destas coisas: nem todos têm amolécula da fé, e é por isso que muitos não crêem.

g. A antropóloga norte-americana Helen Fisher baseia-seem imagens de ressonâncias magnéticas do cérebro de pes-soas apaixonadas para concluir que o amor é determinadopelo neuro-transmissor dopamina, um químico cerebral queage como um estimulante natural, relacionado com a moti-vação, mas também com a ansiedade e com as adições. Asemoções - depressão, tristeza, sentimentos de perda, amor,ódio - são reduzidas a simples produtos do instinto, condi-cionados por meras sinergias moleculares.

h. Na mesma linha vai o esforço das neurociências, na suatentativa de provar que o prodigioso milagre da vida humanase explica exclusivamente dentro do quadro totalitarista domonismo biológico.

i. Ainda nesta linha, o livro de Daniel Dennett, publicadoem 20067: a religião como um fenómeno natural; a tese dolivro situa-se na corrente de fundo darwinista, que pretendecompreender a religião como um fenómeno natural/cultural,que carece de explicação biológica. O neologismo "meme",última moda darwinista, é o paralelo cultural do gene. Omeme é como um gene. O gene tem uma identidade biológi-ca devidamente definida e transmite-se biologicamente; omeme é uma unidade abstracta "que se transmite cultural-mente… e que sofre mutações nessa transmissão". Portanto,para além do código genético, temos o código memético,responsável pela transmissão/ propagação de ideias, dehábitos, de tradições. Na base destas teorias, está a ideia dar-winista do gene egoísta, defendida nos finais da década de 90por Richard Dawkins: "Nós somos máquinas de sobrevivên-cia - robots cegamente programados para preservar asmoléculas egoístas conhecidas por genes"8.

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j. Campeonato do Mundo de Futebol 2006 (Alemanha):Zinédine Zidane, 34 anos, termina a sua carreira com o 12ºcartão vermelho. Esta é a última imagem da estrela: umhomem enraivecido, que perde a cabeça lançando-a conta opeito do italiano Marco Materazzi, a dez minutos do fim doprolongamento, no 107º minuto da final da Taça do Mundo.Para Zidane, o acontecimento revestiu-se de algo trágico esurreal; uma espécie de tragédia grega onde não falta o herói,que se manifesta numa força dramática inesperada.Materazzi sabe tocar o gigante Golias no tendão. Cenáriopróprio da tragédia grega, ou da epopeia bíblica, que apaixo-nou o mundo e ficará na mitologia do futebol mundial. Umdeus com pés de barro e cabeça de ferro.

k. Crise das Humanidades: logocentrismo ultrapassadopelo imagocentrismo. As últimas décadas entram, compompa e circunstância, num processo de deslegitimação pro-gressiva da palavra escrita, em benefício de discursos domi-nados pela imagem; fenómeno tributário da hegemonia tele-visiva e factor de perda gradual do poder simbólico desaberes com tradição na cultura ocidental (a teologia, afilosofia, a literatura, a história)9.

l. Civilização da imagem. Imagem insuportável da civi-lização da imagem: enforcamento de Saddam Hussein.

m. V Encontro Mundial das Famílias, em Valência (Julho,2006): lembrando o movimento gerado pelas Igrejas cristãsem França, a propósito do projecto-lei Sarkozy sobre a emi-gração, a questão do novo enquadramento jurídico da famíliaem Espanha leva a Conferência Episcopal, movimentoscristãos, movimentos de famílias, culturais e intelectuais, amostrar a sua preocupação com a legislação "cada vez maispermissiva" no que respeita à instituição familiar, emEspanha, como em todo o Norte da Europa. Neste comonoutros aspectos da vida pessoal e social, um estigma pesadocataloga a doutrina católica como discurso repressivo e ne-gativo. Há interesses em cultivar essa ideia, apesar daignorância também suscitar esse tipo de avaliação. A Igrejade Jesus Cristo em Portugal não escapa a este estigma.

n. Hoje, os laços inter-geracionais representam umdesafio inédito: Tony Anatrella, investigador das dinâmicaspsicológicas sociais, fala de uma sociedade adolescêntrica,onde, cada vez mais tardiamente e com mais dificuldade, osjovens adultos acedem à autonomia: a escolarização alargou--se; os jovens terminam os seus cursos cada vez mais tarde;depois surge, muitas vezes, o terrível impasse do desempregoe a dificuldade em suportar as despesas que acarreta umavida independente. Em resposta, desenvolve-se uma geração"pivot" (45-60 anos), que, com o seu trabalho, assiste aosmais novos e garante, com os seus impostos, as pensões dosmais velhos.

Na complexidade desta dinâmica10, e de forma paradoxal,ganha corpo a noção de "desfiliação", proposta por Robert

Castel, que fala da desvalorização e mesmo da recusa de umagenealogia e das consequências para a descendência: perdade um enraizamento gerador de coesão social, perda de vín-culos de referência, fragilização do laço familiar, erosão doslaços sociais, crise do sentimento de pertença, entre outras.

o. Todos estes elementos, uns vistos como negativos ou-tros como positivos, dizem-nos que estamos menos na era dovazio do que se diz. Talvez seja mais correcto falar-se na erada dissipação globalizada; era em que a relação epistémicacom o mundo conduz a uma representação anárquica e holo-gráfica, assente no opinativo, que ilustra uma viragem epocalcom transformações profundas11. Desta nova ordem emergemrelações inéditas que implicam a renovação das nossasanálises e das nossas posições.

p. Neste cenário vem inscrever-se uma afirmação curta,clara e de alcance universal: Deus caritas est12. Trata-se daprimeira carta encíclica do Papa Bento XVI, onde encon-tramos uma recapitulação de todas as manifestações de amorface à arrogância e inclemência da consciência moderna.Bento XVI tenta libertar a exigência de amor do risco deutopia, mostrando que só o amor salvará o mundo, estemundo, ajudando a percorrê-lo no sentido ascendente. Aideia, que muitos atribuem ao cristianismo, de que o serhumano sofre neste mundo para ser feliz no outro é uma per-versidade e desonestidade fundada na ignorância, na superfi-cialidade e na mesquinhez intelectual.

Bento XVI valoriza a mensagem cristã sobre o amor,denunciando a redutora ideia, que faz a actualidade, de que ocristianismo é uma religião de restrição e de condicionamen-to do amor13. A verdade é que a Igreja não se limita a procla-mar e identificar interditos, diz Bento XVI, "o cristianismo,o catolicismo, não é uma soma de interditos, mas uma opçãopositiva. E é muito importante que este aspecto seja nova-mente visível, pois esta consciência está praticamente desa-parecida. Ouvimos falar tanto daquilo que não era permitidoque hoje é necessário propor as ideias positivas"14, propor oEvangelho como boa notícia.

q. Mas, o que pode ser hoje uma boa notícia? É necessário perceber primeiro o que pretendemos dizer

com novidade/notícia/boa nova: o aumento da esperança devida, a longevidade dos casais, os progressos revolucionáriosna medicina, a possibilidade de fazer turismo no espaço?15

Diante de todas as descobertas científicas que parecem fazercrer que pouco resta por conhecer na anatomia e fisiologiahumanas, a antropologia cristã ensina-nos que o ser humano éde enorme complexidade e defende, anuncia e promove intui-ções de enorme pertinência antropológica para os humanos desempre e de hoje, em particular. O Evangelho é fonte de inspi-ração de comportamentos, de referências, de critérios de vidae de relação. A questão da dignidade humana, inviolável, aquestão do sentido da vida, a questão da liberdade e do amorsão proposições evangélicas de vida em plenitude.

6 viragem

SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

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Mas a boa nova e o seu anúncio levanta interrogações, emprimeiro lugar metodológicas: como anunciar a quem nãoestá interessado, não espera nada e não pediu nada?Inquietação verbalizada pelo arcebispo de Paris, Mgr. Vingt-Trois, numa entrevista à Rádio Notre-Dame: "Comopodemos nós aproximarmo-nos e juntarmo-nos às situaçõeshumanas daqueles que já não pedem nada… como fazer paraanunciar a Boa Nova?"16. Ele próprio formula um princípiode resposta, lembrando que "a pastoral não pode ser mera-mente reactiva às solicitações e necessidades… O anúncio daBoa Nova não é resposta a um pedido, mas dever de anunciaraquilo que vimos e ouvimos"17.

r. Mas, porque será que "uma boa notícia não é simples-mente acolhida pela inteligência humana"? Aqui, a psicolo-gia pode ser uma ajuda preciosa na medida em que encontraelementos de resposta nas dinâmicas psicológicas da tensão

entre aceitação - rejeição; entre resistência - acolhimento. Ouseja, a boa nova e o seu anúncio confrontam-se com "lugarespsicológicos" de resistência e de acolhimento, onde se jogamo afectivo e o cognitivo, "as necessidades das pessoas e assuas pertenças sociais", factores determinantes da motivaçãohumana18. Neste sentido, são paradigmáticos os relatos doNovo Testamento que exprimem, em múltiplas passagens, ascondutas que manifestam resistência e rejeição e as condutasque manifestam acolhimento.

Enfim, diante deste cenário, que é o cenário da nossa vidano mundo actual, onde se perfilam as nossas dúvidas,certezas, temores, confianças, expectativas, desânimos, mi-sérias e grandezas, é pertinente a palavra de Paulo VI, naexortação apostólica Evangelii Nuntiandi: "As condições dasociedade obrigam-nos a todos a rever os métodos, a procu-rar, por todos os meios ao alcance, e a estudar o modo defazer chegar a mensagem cristã ao homem moderno" (§3). v

viragem 7

ALGUMAS PROVOCAÇÕES PARA UM DIÁLOGO

Notas1 O comunicado de imprensa da OMS, por ocasião da Jornada Internacional da Prevenção

do Suicídio, em 10 de Setembro de 2005, diz: "A OMS prevê que o suicídio seja a segunda

causa de morte nos jovens em 2020."2 In revista Pública, Julho 2006. De forma inesperada, António Jacinto Pascoal, professor e

membro do Partido Comunista Português e agnóstico confesso (estranhamente, também

cristão confesso) vem reagir à afirmação do filósofo, considerando mera ideia feita, sem fun-

damento e não verdadeira. É, no mínimo, estranho ser um comunista agnóstico a única per-

sonalidade no país a tomar uma posição formal face às declarações de Rozitchner. Eu

própria lamento a minha omissão/demissão/passividade.3 Jornal francês La Croix, 25 de Abril de 2006.4 Público, 11 de Setembro de 2005.5 "Ora, um dia destes ao ler Jack London deparei-me com uma palavra invulgar: 'desciviliza-

ção'… Não se preocupem, pois, com o conflito de civilizações de Samuel Huntigton… O que

está realmente ameaçado é a própria civilização, essa fina camada em que nos movemos

e que nos separa de todo o revolto magma da natureza, incluindo a natureza humana",

Garton ASH, A lição do Katrina, in Ibidem.6 Agosto 2005.7 Breaking the spell: Religion as a natural phenomenon, Ed. Pinguin, USA, 2006.

8 Richard DAWKINS, O gene egoísta, Editora Gradiva, Lisboa, 1999, 21.9 Cf. Carlos REIS, "A crise das Humanidades", in jornal Público, 25 de Outubro de 2005.10 Fala-se em choque económico, choque petrolífero, choque fiscal, choque tecnológico…

tem sentido falar-se também em choque antropológico, no qual o conceito de sobressalto

passa a ser um conceito ético.11 "Cada um sente bem que aquilo que está em causa tem raízes mais profundas. A crise é,

em última instância, de ordem estrutural e releva também de uma dimensão de ordem

antropológica. É ao mesmo tempo crise de civilização e crise do indivíduo", Jean-Paul

FITOUSSI et Pierre ROSANVALLON, A Nova era das Desigualdades (Le Nouvel âge des

inégalités, Éditions du Seuil, Paris, 1996), Celta Editora, Oeiras, 1997.12 25 de Dezembro de 2005.13 Cf. Deus caritas est, § 17.14 Numa entrevista concedida aos media alemães, in jornal La Croix, 14-15 Agosto de 2006.15 Cf. Michel SERRES, in jornal La Croix, 14 de Abril de 2006.16 14 de Abril de 2006.17 Ibidem.18 Citado de memória, a partir de leituras de Jean Marie JASPARD (professor na Faculdade

de Psicologia e de Ciências da Educação da Université Catholique de Louvain).

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8 viragem

SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

Partimos de definições e títulos que a Igreja deJesus Cristo se deu a si mesma ao longo dahistória, para tentarmos clarificar e aprofundaro que é ser Igreja, hoje1. Esta metodologia per-mite evidenciar a pluralidade de acentuaçõeseclesiológicas, dentro da unidade da Igreja,

bem como a forma como os múltiplos e diferentes títulos ecle-siológicos, e as diversas perspectivas eclesiológicas subja-centes, se relacionam.

Começo por um longo excerto da obra de Juan Estrada, "Delmisterio de la iglesia al pueblo de Dios", sobre a Igreja antiga: "Aoinquirir da ideia de 'Igreja' que tinham os cristãos na época doimpério romano, ficamos surpreendidos; não há uma reflexãotemática ou sistemática centrada sobre a Igreja; não existe um trata-do de eclesiologia como o que temos actualmente, nem sequer umavisão como a que hoje temos ao falar de Igreja hierárquica ou deIgreja institucional ou de 'Igreja oficial'. O que chama a atenção éque os cristãos da Igreja antiga fazem a experiência do que é aIgreja, têm a vivência da Igreja e exprimem esta experiência atravésde uma grande quantidade de símbolos, imagens, metáforas, repre-sentações, alusões, muito diferentes da tematização racional dasreflexões eclesiológicas modernas. Quer dizer, a realidade eclesialé, em primeiro lugar, uma experiência vivida e omnipresente poraqueles que dela se sentem parte e que constitui lugar central na suavida cristã. Para falar da Igreja há que vivê-la, senti-la e comungarcom ela e isto é anterior e muito mais essencial que toda e qualquerproposição intelectual… Neste sentido, pode dizer-se que não há

cristianismo sem Igreja, não é possível alguém relacionar-se comCristo sem pertencer à comunidade de discípulos congregados àvolta do Mestre. Ou seja, a eclesialidade marca a vida cristã…Trata-se, portanto, de uma realidade comunitária da qual se tem,mais do que uma ideia, a experiência e cujo carácter é relacional"2.

Esta perspectiva dá relevo à dimensão espiritual da Igreja,insistindo no carácter transcendente da realidade eclesial. Nãohá Igreja sem Cristo e não há cristianismo sem Igreja. A Igrejaantiga tem consciência deste vínculo intrínseco, desenvolvendouma eclesialidade orientada para Cristo e centrada em Cristo.Nesta perspectiva, a Igreja não tem a sua razão de ser em simesma. Nem a sua origem, nem o seu fim, nem a sua con-sistência existencial está em si mesma. A Igreja é "uma realidaderelacional", constitutivamente referenciada a Cristo e ao seuprojecto. Por isso, "o sentido do mistério eclesial, tal como oentendeu a Igreja antiga, é: 'creio na Igreja', quer dizer, creio quea Igreja é obra de Deus, que é algo querido por Deus, creio queo Espírito Santo está presente nela e nela se conserva a tradiçãoe a herança histórica de Jesus de Nazaré, creio que nela se tornapresente a aliança de Deus com o ser humano; creio que atravésdela posso encontrar-me com Deus… Cremos também a partirda Igreja. Ou seja, estamos conscientes de que a Igreja nostransmite e nos põe em contacto com a memória histórica deJesus e que nela há estruturas, símbolos, experiências e referên-cias através das quais o Espírito de Jesus se torna presente nonosso momento histórico. Esta afirmação é fundamental para afé cristã e constitui uma parte essencial do mistério da Igreja"3.

Não há Igreja sem Cristo e não há cristianismo sem Igreja. A Igreja antiga

tem consciência deste vínculo intrínseco, desenvolvendo uma eclesialidade

orientada para Cristo e centrada em Cristo. Nesta perspectiva,

a Igreja não tem a sua razão de ser em si mesma. Nem a sua origem, nem o seu fim,

nem a sua consistência existencial está em si mesma. A Igreja é "uma realidade

relacional", constitutivamente referenciada a Cristo e ao seu projecto.

Ser corpo, comunhão e sinal de Deus no mundo»» Isabel Varanda »» Texto da intervenção no XVII Encontro de Reflexão Teológica, do Metanóia, realizado em Albergaria-a-Velha, de 28 a 31 de Julho de 2007; título da

responsabilidade da Viragem

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SER CORPO, COMUNHÃO E SINAL DE DEUS NO MUNDO

Igreja mistério e corpo místico de Cristo

O Concílio Vaticano II, ao falar do mistério da Igreja, afirmaque "a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e oinstrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo ogénero humano" (LG 1). A Igreja é sacramento do Reino, ou seja"o Reino de Cristo já presente em mistério" (LG 3). Buscando apaz e justiça para toda a criação, a Igreja contribui para a liber-tação do ser humano e a recapitulação de todas as criaturas emCristo. A este título, ela é sacramento de salvação. É a primeiravez que num concílio ou num documento do magistério sechama à Igreja sacramento (ter presente o carácter cristocêntricoe eclesial dos sacramentos).

O Concílio Vaticano II, no processo de meditação sobre omistério da Igreja, mais do que procurar uma definição, tenta,através de imagens diversas, descrever este mistério. Particularrelevo e acolhimento é dado à "Igreja, corpo místico de Cristo"(LG 7). O conceito de "corpo místico", de fortes raízes bíblicas ereferência incontornável na tradição histórico-dogmática, "surgecomo tentativa de superar o racionalismo, o juridicismo e ocarácter apologético e institucional dos tratados de eclesiologiado século XIX" 4. Este título eclesiológico denota uma con-cepção de Igreja cristocentrada, na qual o carácter pneuma-tológico se dilui. Mais do que a ideia de corpo é a cabeça que édeterminante para a Igreja. Esta concepção alimenta uma ecle-sialidade mais estática, de forte pendor institucional ehierárquico.5

Igreja Comunhão

O conceito de comunhão aparece como ponto de convergên-cia de aspirações eclesiológicas e eclesiais diversas. O ConcílioVaticano II põe bem em evidência que o conceito de comunhão,mais do que uma atitude evangélica ou um valor moral, é um ele-mento constitutivo da vida dos cristãos. Afirmar que a Igreja écomunhão é dizer que a Igreja é comunidade de relações; vincu-lação comum dos diferentes membros do corpo eclesial (cf. LG32). Antes mesmo de ser instituição e organização, ela é comu-nidade espiritual (cf. LG 8), tecida por relações de fé, de espe-rança e de caridade. Este sentido primeiro de comunhão funda-se no mistério trinitário: Deus, uno e trino, que é relação peri-corética.

Em 1985, vinte anos após o Concílio, o Sínodo Extraordináriodos Bispos oficializa este conceito central da eclesiologia conci-liar, evidenciando o seu carácter transversal a todos os textosconciliares.

O Concílio utiliza 122 vezes o termo comunhão (no VaticanoI, só 5 vezes) sem, no entanto, chegar a "uma noção tecnicamenteelaborada"6. A expressão tem um espectro semântico amplo, comsentidos diversos e conotações variadas. Koinonía não é umneologismo cristão7, mas, ao ser assumido na experiência cristã,vai receber um conteúdo novo. Nas palavras de Bueno de laFuente, a experiência de Jesus com os seus discípulos mais ínti-mos e estes entre si deve ser considerada o ponto de referênciaimplícito, mesmo se, neste registo, ainda não se pode falar de

comunhão no sentido cristão estrito8. É do mistério pascal que oconceito de koinonía recebe a plenitude de sentido cristão. NaPáscoa e pela Páscoa, o crente experimenta o sentido pleno dasalvação. A consumação da missão do Filho na glorificação eenvio do Espírito abre a existência do crente a um horizonte novode salvação, de superação definitiva do mal, da morte e do seupróprio drama pessoal. O crente, "restaurado nas suas relaçõesfundamentais e integrado nas suas divisões interiores, acolhidono mistério do amor trinitário, perdoado e aberto à esperança,participa da alegria de Deus"9. À luz da Páscoa, comunhão sig-nifica tudo isto.

Pelo baptismo somos tornados participantes no dinamismo dacomunhão trinitária. Esta expressão sacramental da comunhãoencontra na eucaristia a sua plenitude. O crente baptizado é, naeucaristia, comungante do corpo do Senhor. E é esta dimensão decomunhão com o Senhor que torna possível a abertura àcomunhão com e na Igreja. Nas palavras de Bueno de la Fuente,esta abertura eclesiológica é "fruto da dialéctica que já S. Pauloexprimia: a participação no mesmo, cria comunidade entre osparticipantes; as relações interpessoais assim estabelecidas serãotanto mais profundas, quanto mais elevada for a realidade em quese participa… Esta abertura eclesiológica da koinonía deve serentendida de modo concreto, referida a relações interpessoaisvividas num grupo humano determinado, onde e a partir de ondese desenrola o processo de comunicação e de celebração da fé"10.

A comunhão, nas relações interpessoais, traduz-se neces-sariamente em pensamentos, gestos, atitudes e acções concretas,que potenciam o desenvolvimento de um "mesmo coração e umasó alma" (Act 2, 42-47). Isto não significa que a comunhãoabstraia das angústias, das dificuldades e dos dramas pessoais; acomunhão sofre a dor dos seus membros, mas, na sua tensãoescatológica constitutiva, ela resitua-a à luz da promessa e vive aesperança do momento em que não haverá mais desespero, nemlágrimas porque Deus será todo em todos (1 Cor 15, 28).

A esta comunidade que comunga a mesma fé, a mesma espe-rança e a mesma caridade está associada uma outra noção cardial- "povo de Deus" -, que designa a Igreja como um conjuntosolidário, em que os seus membros têm igual dignidade e respon-dem a uma vocação e missão comum. É isso mesmo que aConstituição Dogmática Lumen Gentium ensina: "Aprouve aDeus que os humanos não recebam a santificação e a salvaçãoseparadas, fora de qualquer laço mútuo; quis, antes, constituir umpovo que o conheceria segundo a verdade e o serviria na santi-dade" (LG 9); constituir um povo unido na fé, na oração, nafracção do pão e na vida fraterna (cf. Act 2,42-47 - quatro vezescitado no nos textos conciliares).

Como povo, a Igreja não é uma mera realidade sociológica,um povo qualquer. A Igreja é povo comungante na mesma fé e,por isso, não é, simplesmente, o ser povo que a define; o que adefine é ser povo de Deus. É esta a experiência que o PrimeiroTestamento nos testemunha na relação, na aliança, na comu-nidade de vida e de fé, na solidariedade, entre Deus e o seu povo:"Vós sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus". Esta ideia dealiança entre Deus e o ser humano continua no SegundoTestamento, agora, à luz do acontecimento crístico.

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A noção de povo de Deus revela-se profundamente teocêntri-ca. A prioridade é dada à experiência de Deus, passando parasegundo plano os aspectos eclesiais. O fundamental "não é ahierarquia, nem os dogmas, nem o respeito pelas normas morais.O que está em primeiro lugar é a experiência de Deus. Igreja,povo de Deus; povo universal"11.

Este título eclesial, descreve uma Igreja horizontal, comu-nitária e pessoal, que contrasta com a concepção verticalista ehierárquica que o título "corpo místico de Cristo" denota. Nele, anoção de povo não se refere somente aos leigos; estende-se aosministros ordenados; clérigos e leigos, todos são povo de Deus,o mesmo povo. "Um só é o Povo de Deus: 'um só Senhor, umasó fé, um só baptismo' (Ef4,5); comum é a dignidade dos mem-bros… comum a graça dos filhos…comum a vocação à per-feição; uma só salvação, uma só esperança e uma caridade indi-visa. Nenhuma desigualdade, portanto, em Cristo e na Igreja";Igreja que "é governada com uma variedade admirável" (LG32).

Nesta sequência, interessa-nos avançar aqui um breve apon-tamento sobre a antropologia teológica desenvolvida à volta dacompreensão da unidade e diversidade no seio eclesial.

Em nome da sua fé num Deus trinitário, os cristãos sabem eacreditam que entre uniformidade e diversidade existe uma outrarealidade: a da unidade na diferença. E esta unidade na diferença- nem o corpo se divide em particularismos nem se rende a tota-litarismos - só a comunhão a pode garantir, preservando e ali-mentando, de forma criativa, livre e comungada, a tensão que asfaz subsistir, sem se anularem mutuamente ou se imporem umasobre a outra. Quer dizer que a comunhão eclesial representauma outra realidade diferente de uniformidade. Ela é "sinfónica"(Von Balthasar). Entretanto, uma tal comunhão ainda não é efec-tiva enquanto se contenta com a justaposição das diferenças.

Vale a pena reflectir sobre o valor da diferença. A diferençacomo razão primeira de sobrevivência e fonte de vida. Permitique abra, neste momento, uma janela sobre esta categoria e quea deixe entreaberta.

A diferença, jóia da criação

No princípio Deus criou a diferença. Por um lado, a diferençaem relação a Si; por outro lado, a diferença entre as criaturas. Adoutrina da criação traz consigo uma originalidade para umaproposição de configuração da existência. A diversidade/dife-rença foi julgada aos olhos de Deus "muito boa". Ora, a diferençaconstitui-se necessariamente a partir do limite. Deus, criandoseres diferentes dele, põe limites; limites entre Ele e as criaturase limites no próprio seio do criado. O reconhecimento da dife-rença implica necessariamente o reconhecimento de um limiarque me significa um para além de mim. Eu não sou tudo e nemtudo é meu; outros me olham e me testemunham a sua e a minhadiferença. Limite, todavia, não é simplesmente sinónimo de li-mitação. Se é verdade que o limite determina e delimita um ter-ritório portador de um interdito de violação, pelo mesmo movi-mento, o limite abre um campo ilimitado à consideração de umface-a-face.

Poderíamos dizer que o limite comporta simultaneamente umimperativo de restrição e um vocativo de excesso. Não entrescomo mestre ou dono se podes entrar como amigo. Não venhaspela força; avança em doçura. Não te busques no outro, consenteque o outro te busque em ti. Nem tudo te pertence; tu não és tudoe o outro não é tudo. Nascer diferente faz a identidade. O limitediz: tu és capaz do outro e a tua capacidade do outro terá a medi-da da tua capacidade de viver e saudar os limites. O limite diz: eunão sou uma humilhação para ti, sou a tua vocação.

No princípio tudo era indiferente (Gn 1). A indiferença eratudo. O tohu-bohu (caos), vazio, informe, era indiferença.Limitando a indiferença, "um vento de Deus cobria o abismo; ovento de Deus pairava sobre as águas" (Gn 1,2). O vento de Deustorna-se Palavra criadora: "Haja luz" (Gn 1,3). Seja colocado umlimite nas trevas para que tudo não seja trevas, para que haja umadiferença: a luz e as trevas, o dia e a noite. Toda a "lógica" di-vina de separação, a luz e as trevas, as águas das águas, dia e anoite instaura a diferença; Deus cria consignando territórios àstrevas, à noite, às águas, à terra, às plantas e aos animais, aos pás-saros e aos peixes, segundo as suas espécies (cfr. Gn 1).

A ordem da criação repousa assim sobre o respeito da territo-rialidade; sobre a assunção dos limites que desta ordem resultame sobre a moderação como princípio de vida. A obra da Criação,dia após dia, exprime-se numa semana de bondade, de doçura ede domínio. Dia após dia, Deus faz um espaço para a diferença ecria seres diferentes. No sétimo dia repousa, colocando termo aoexercício do seu poder criador; colocando "um limite à suacapacidade de domínio; dominando o seu próprio domínio"12.Como se dissesse: "eis que escrevo o prólogo que assino com omeu repouso; continuai vós a História."

E é neste mandato que se inscrevem as dinâmicas mis-sionárias da Igreja.

A Igreja como fermento de missão

"Como o Pai me enviou, também eu vos envio…" (Jo 20,21)O Concílio Vaticano II insiste sobre a missão tanto quanto

insiste sobre a noção de comunhão que lhe está associada.Missão como responsabilidade de todos os baptizados em Cristo.O facto de passar de "missões" no plural à "missão" no singular,constitui uma mudança significativa. À luz do Concílio, o acen-to é rigorosamente teologal. Já não se trata de "plantação, dedilatação, de extensão, de cruzada, de conquista", termos queconheceram a sua hora de glória. A acção missionária está direc-tamente ligada à missão de Deus trinitário, na qual mergulha assuas raízes e busca a energia impulsionadora. A nascente da mis-são da Igreja encontra-se no coração de Deus, no amor de Deustrino (cf. Ad Gentes 2-4).

As preocupações de eficácia e de rápidos resultados con-tribuem para que, na nossa acção, nos desviemos da nascente,podendo mesmo esquecê-la. Então, vamos bebendo nos riachos,muitas vezes de salubridade duvidosa, que atravessam os nossosterritórios pessoais, sociais, existenciais e mesmo eclesiais.Sabemos que há uma fonte, mas já não sabemos onde se situa.

A um dado momento, nos percursos pessoais e comunitários

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SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

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a busca da fonte é essencial na construção de uma identidade. Oretorno à fonte, como bem lembra Jean Rigal, permite "desfazer--se de um eclesiocentrismo obsessivo, afogado na espessura dahistória, como se a primeira preocupação da comunidade eclesialse devesse centrar sobre os problemas internos da organização,os limites das suas fronteiras ou a sua irradiação. O excessivoeclesiocentrismo faz com que se esqueça que a missão deve darlugar ao Espírito; que o ponto de âncora não é a Igreja mas oamor ilimitado de Deus"13.

Estas reflexões teológicas ajudam-nos a compreender a pers-pectiva inédita e criativa que o Concílio inaugura. Ajudam-nostambém a perceber que o contexto geral do tempo do Vaticano IImudou substancialmente. Na perspectiva de Joseph Ratzinger,actual Bento XVI, 40 anos após o Concílio destacam-se trêsnovos dados, que chamam a atenção: a secularização e a sobre-vivência do religioso, um pluralismo sem complexo, uma sub-jectivização exacerbada14. Qualquer um destes traços constituiimportante desafio para a Igreja e para o cristianismo; nem maisnem menos do que para o mundo em geral. Limito-me, noquadro desta exposição, a alguns desdobramentos da ideia desecularização.

Cristianismo e mundo secularizado

De uma forma geral, a palavra secularização remete para umfenómeno histórico que resulta do confronto entre, por um lado,o Homem moderno que defende a autonomia da esfera terrestree o direito a viver num mundo sem Deus e, por outro lado, umasociedade fortemente ligada à Igreja em todos os seus aspectos.O processo de secularização supõe uma progressiva emanci-pação das sociedades (sentido objectivo) e das consciências (sen-tido subjectivo) da tutela do religioso. Se é verdade que os movi-mentos de secularização e laicização reagem principalmente con-tra o cristianismo, eles opõe-se às religiões em geral.

Há que reconhecer que o processo de secularização do mundotem contribuído, pelo seu vigor intelectual e pela sua preocu-pação humanista, para a valorização positiva do mundo e para odespertar do indivíduo à responsabilidade por si, pela cidade epelo ambiente natural. No entanto, comporta um imenso empo-brecimento ao promover uma antropologia míope ou amputada,como descrevemos mais acima, em que os horizontes humanosse reduzem aos limites da simples imanência, o "instinto detranscendência" é reprimido, não deixa espaço para as questõesfundamentais do ser humano: sentido da vida, origem, destino…,e não deixa espaço para Deus.

O fundamentalismo secular (secularismo) não tolera qualquerreferência da existência humana a Deus que não seja para o negare recusar. No entanto, a secularidade entendida como "justaautonomia das realidades criadas" inscreve-se no projecto deDeus para a sua criação; um projecto de liberdade, de respon-sabilidade, de criatividade e de autonomia. No livro do Génesis,no primeiro relato da Criação, lemos que "Deus viu que tudo eramuito bom". Deus saúda a secularidade do mundo por ele criadoe confia o mundo ao ser humano para ele o gerir e dele cuidar, norespeito pelas leis intrínsecas de cada ser.

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SER CORPO, COMUNHÃO E SINAL DE DEUS NO MUNDO

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A autonomia da "cidade secular" não implica impossibilidadede um Deus real e presente; ouso dizer que a autonomia écondição essencial para uma justa e eucarística relação comDeus. "Longe de pensar que as obras do engenho e poderhumano se opõem ao poder de Deus, ou de considerar a criaturaracional como rival do Criador, os cristãos devem, pelo contrário,estar convencidos de que as vitórias do género humano manifes-tam a grandeza de Deus e são fruto do seu desígnio inefável.Mas, quanto mais aumenta o poder dos homens, tanto maiscresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária. Vê-se, por-tanto, que a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa deconstruir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seussemelhantes, mas que, antes, os obriga ainda mais a realizar essasactividades" (GS 34). Isto significa que, como tão bem o exprimeYves Ledure, "o cristianismo não é incompatível com um mundomoderno estruturado antropologicamente"15.

5. Mensagem cristã, ideal do mundo secular

A vocação do humano decide-se nos caminhos de umaimanência em que predomina a esperança e a confiança numAlém que nos provoca e nos convoca a uma infinita dignidadeexistencial e de destino. Esta tensão eminentemente escatológicasingulariza-se, de forma excelente, na matriz cristã. Por isso, eporque é a sua missão, a Igreja de Jesus Cristo, terá de insistir,sem arrogância, mas com veemência, no reposicionamento daantropologia actual ao nível de uma vocação teologal que nadaamputa dos sonhos, das paixões, dos ideais terrenos, antes osimpregna de um suplemento de sentido. Ensina o ConcílioVaticano II que "a importância das tarefas terrenas não é dimi-nuída pela esperança escatológica, mas que esta antes reforçacom novos motivos a sua execução" (GS 21).

O cristianismo singularizou-se ao longo dos séculos pelaideia elevada de ser humano, como ser autónomo e responsá-vel. Esta mesma autonomia e responsabilidade são precisa-mente os valores mais reivindicados e defendidos pelo movi-mento secular no seu projecto antropológico. Subscrevendo ainterpretação de Yves Ledure, este ideal que "o projectoantropológico veicula não pode advir-lhe da vivência indivi-dual, marcada pela fragilidade, pela finitude e pelo relativismo.O percurso individual é demasiado limitado e caótico para con-duzir a uma concepção transcendente do humano. É necessárioum suporte teórico, como o que o cristianismo produziu, paraelevar o indivíduo e lhe dar uma dimensão e um destino supe-riores ao percurso fenomenal"16.

A esta luz, não tem sentido pensar o cristianismo e a secula-rização como movimentos antagónicos e disjuntivos. O cristia-nismo e o Evangelho que ele anuncia, é a matriz do ideal deautonomia, singularidade e responsabilidade do humano nacadeia dos seres vivos. Por outras palavras, é no cristianismo queo processo de uma justa secularização, enquanto promotora deuma antropologia autêntica, se enraíza17.

No entanto, os seres humanos de hoje têm dificuldade embater à porta de Deus. Não só porque o rumor da sua morte con-tinua a correr, como sublinhámos mais atrás, mas também

porque, situação nova na história da humanidade, muitos pen-sam não ter qualquer necessidade de Deus. Esta ideia de nãonecessidade não é desprovida de interesse quer para aantropologia, quer para a teologia. Através dela é toda uma ideiade um Deus socorrista, bombeiro, "tapa buracos", um Deuscoisificado, que é, justamente, posta em causa. A esta luz, o mis-tério da Visitação não pode ser entendido como resposta à nossanecessidade, mas simplesmente, como interpelação ao nossosentido de hospitalidade, à nossa autonomia e à nossa fé. A per-gunta continua pertinente: como se explica que este Deus, quenão é desejado, nem necessário, nem significativo, seja, apesarde tudo, uma presença, presença Real? Quem é este Deus que,contra ventos e marés, continua a emergir no meio da autonomiahumana?

Os caminhos invertem-se: os humanos já não batem à portade Deus, como faziam na Antiguidade, em Delphos, ou entãocomo Job que desabafa, no meio da sua dor: "Oxalá soubessecomo encontrá-lo, como chegar à sua morada" (Jo 23,3). Hoje,é Deus que bate à porta. Mas Deus jamais nos força a abrir anossa casa para que Ele entre. "Eis que estou à porta e chamo"(Ap 3,20). Oh! Benfazeja heteronomia que a minha casa visita,fazendo de mim um ser visitado, confirmado na autarquia daminha casa pelo Absolutamente Outro, que não me força, nãose impõe, apenas se apresenta à porta da minha casa, para, nocaso de eu abrir, se sentar comigo à mesa, cear comigo e eucom ele!

Esta é a Boa Nova que a Igreja de Jesus Cristo tem a missãode anunciar18.

Missão como proposição de fé e de sentido. Sublinhamos apalavra proposição, porque este parece ser, definitivamente, ocaminho, já lembrado por João Paulo II: "A Igreja propõe; elanão impõe nada, ela respeita as pessoas e as culturas e pára diantedo altar da consciência." (Redemptoris Missio, 39)

Ser Igreja, hoje, é anunciar e propor aquilo que nos faz viver,porque só "faz fé" o que faz sentido e "faz sentido" o que fazviver".

Propor, hoje, implica entrar positivamente no debate dacidade, no interior de uma profusão de ideias, de solicitações, deperspectivas possíveis. Os cristãos devem investir no alargamen-to do debate social e intra-eclesial, sem paroxismos mas tambémsem laxismo monótono. Importa prolongar o debate e acompa-nhar o debate, resistindo à tentação do imediatismo das respostas,conclusivas e exaustivas; manter a discussão acesa, comserenidade, sustentada no tempo, deixando que o sentido faça oseu caminho, prestando atenção às cinzas, porque a experiêncianos ensina que, muitas vezes, debaixo das cinzas, está um bra-seiro aceso. Importa investir em pedagogias que favoreçam oprocesso, a dinâmica de cidadania activa, de corresponsabili-dade, de direito e dever de tomar a palavra no coração dasociedade, abrindo o debate a outros horizontes de reflexão eapontando pistas que só o cristão, em virtude da especificidadeda mundivisão que o Evangelho configura, saberá indiciar.Definitivamente, o cristão não pode olhar e pensar o mundo e assuas circunstâncias como se Deus não existisse. v

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SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

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SER CORPO, COMUNHÃO E SINAL DE DEUS NO MUNDO

Notas1 Para além da eclesiologia sistematizada nos documentos do Concílio Vaticano II

(destaque para a Constituição Dogmática Lumen Gentium), as reflexões a desenvolver

ao longo das diferentes sessões do encontro apoiam-se, particularmente, em: Juan

ESTRADA, Del misterio de la iglesia al pueblo de Dios, Sígueme, Salamanca, 1988,

Eloy BUENO DE LA FUENTE, Eclesiología, BAC, Madrid, 1998 e Jean RIGAL, L'Église

à l'épreuve de ce temps, Cerf, Paris, 2007.2 Sígueme, Salamanca, 1988, 23-24.3 Ibidem, 28.4 Estrada, 118.5 Cf. Estrada, 122.6 Eloy BUENO DE LA FUENTE, op. cit., 74.7 No mundo grego era utilizado para designar a harmonia nas relações interpessoais,

no cosmos e com as divindades.8 Cf. Eloy Bueno de la Fuente, op. cit., 76.9 Ibidem.10 Ibidem, 77.11 Estrada, 195.

12 Andrè WÉNIN, Pas seulement de pain… Violence et alliance dans la Bible, Cerf, Paris

1998, 33.13 Jean RIGAL, op. cit., 23.14 Cf. Joseph RATZINGER, Documentation Catholique 2151 (1997) 30.15 Yves LEDURE, La détermination de soi. Anthropologie et religion, Desclée de

Brouwer, Paris, 1997, 150.16 Ibidem, 144.17 "Precisamos da ideia elevada de humano, forjada pelo cristianismo, para que o pro-

jecto antropológico não se reduza às medidas de um indivíduo sem futuro, unica-

mente preocupado em desfrutar do momento presente. Sem a perspectiva exposta

pelo cristianismo, podemos apostar, e o tempo presente já o confirma, que o humano

acabará por reduzir as suas ambições ao único bem-estar de aqui e de agora. Uma

caricatura de projecto antropológico.", in: Ibidem, 147.18 O anúncio do Evangelho não é nunca uma acção puramente individual. Evangelizar,

dizia o Papa PauloVI, "não é para ninguém um acto individual e isolado, mas é um

acto profundamente eclesial" (EN 60).

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SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

Aminha experiência reporta ao tema do encon-tro: Ser Igreja seguindo Jesus. Tambémpoderíamos dizer: Construir a Igreja seguin-do Jesus. Pois, de alguma forma, a vitalidadeda Igreja ganhou e ganha corpo através daexperiência vivida daqueles que se confes-

saram e confessam seguidores de Jesus.Mas deixem-me começar pelo princípio para contar, em

traços largos, o que foi o meu percurso na relação com aIgreja. Ou, dito de outra forma, que diferentes experiências deIgreja me elucidaram e questionaram, me ajudaram ou desa-nimaram na aproximação a Jesus como referência incon-tornável.

Era um miúdo com seis anos quando iniciei a catequese.Uma aldeia rural do Alto-Minho, nas cercanias da Galiza.Mãe mais três irmãos, proximidade com os avós agricultores.Condição sócio-económica baixa mas, pelos padrões da alturae do local, razoável.

Rezava-se o terço e pedia-se a bênção no fim. Parece queestou a falar de coisas do outro milénio...

Nessa altura, aprendíamos que Deus estava em toda aparte, numa atitude de clara violação da nossa privacidade.Era Deus inclusivamente insensível ao fogo, pois, de acordocom o catequista, até no forno do padeiro ele poderia estar.Estaria também no congelador se, por esses anos, este apetre-cho já fizesse parte do nosso quotidiano.

Jesus, esse, só estava em dois lugares: no Santíssimo

Sacramento da Eucaristia e à direita de Deus Pai todo-poderoso. Nessa altura, imaginava-o um filho obediente, ca-ladinho ao lado do Pai e, simultaneamente, empastelado nahóstia. Era doutrina segura e havia sempre uma cana quedescia pelas orelhas para dissipar qualquer dúvida. Havia osmandamentos da lei de Deus, as obras de misericórdia, ospecados que bradam aos céus, os pecados mortais e veniais,as virtudes teologais, etc., etc., etc.

Mas como não há sistema legislativo e executivo que fun-cione sem o correspondente sistema judicial (excepto, talvez,numa mentalidade anarquista), existia o diabo. E isto é queera o diabo, pois, enquanto reverso do Anjo da Guarda, eletinha o hábito, qual provocador infatigável, de nos tentar parao pecado. E pecado naquela altura era quase tudo: maus pen-samentos, más palavras, más obras. Resumindo, não sobravaquase nada para a gente se divertir. Claro que lá se ia dandoum jeito, mas, depois, amargava-se bem com os problemas deconsciência...

Esta foi a Igreja que eu conheci e, com esta bagagem men-tal, tive que conviver até conhecer alternativa. Se a isto acres-centar que a única literatura a que tinha acesso para satisfa-zer a minha curiosidade eram as revistas do Apostolado daOração, "Cruzada" e "Magnificat," podem ficar com umaideia da imagem de Deus e de Igreja que ia preenchendo omeu consciente e inconsciente.

Quando vim para Braga, com oito anos, encontrei umaIgreja que era uma versão urbana daquilo que já conhecia. Lá

Será que os tempos que vivemos hoje são assim tão tenebrosos simplesmente

pelo facto de a Igreja já não ser uma realidade tão omnipresente no quotidiano

das pessoas e nos contextos sociais ou artísticos? Será que não temos

que reaprender a testemunhar Jesus num contexto minoritário e de não poder?

Algumas memórias e trêsnotas de rodapé sobre a Igreja»» Armando Romano »» Texto da intervenção no XVII Encontro de Reflexão Teológica, do Metanóia, realizado em Albergaria-a-Velha, de 28 a 31 de Julho de 2007; título

da responsabilidade da Viragem

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ALGUMAS MEMÓRIAS E TRÊS NOTAS DE RODAPÉ SOBRE A IGREJA

me fui aguentando, cumprindo o patamar mínimo de pre-ceitos.

Com 16 anos, fui contactado por alguém para ir a umareunião de... já não sei bem. Quando cheguei lá, encontrei umpadre que conhecia da escola que frequentava e, enquanto nãochegava mais ninguém, pôs-se a falar comigo de... política.Achei estranho, pois, até aí, para mim, padres só falavam dedevoções, pecados ou qualquer outra coisa que tinha o dom deme desligar os interruptores neuronais. Para além disso, fala-va comigo como se eu fosse um adulto. Foi uma primeirareunião sem desenvolvimento, pois não apareceu maisninguém. Contudo, esta memória ficou guardada bem nítida.Estávamos em 1978.

Foi o início de uma experiência em que reaprendi os pas-sos de Jesus através do olhar e da voz dos outros. E forammuitos aqueles de quem, tal como no poema de Sophia MelloBreyner, eu poderia dizer: "Só o olhar daqueles que esco-lheste nos dá o teu sinal entre os fantasmas."

Foram sete anos de envolvimento na experiência inicial-mente da JEC [Juventude Escolar Católica] e, mais tarde, doMCE [Movimento Católico de Estudantes], onde recordo umadiversidade de momentos que me ajudaram a viver a fésentindo-me Igreja. A esta distância reconheço que, a par deuma grande generosidade, existia uma grande ingenuidade.Mas estávamos mesmo convencidos que 20 a 30 pessoaspodiam fazer a diferença e reflectíamos arduamente, como seisso estivesse à mão de semear...

Embora aquilo de que falávamos e as actividades que orga-nizávamos fossem ainda o espelho de um certo período históri-co, cujo figurino se desvanecia gradualmente, recordo algumasideias que naturalmente sustentávamos com uma selecção cri-teriosa de textos bíblicos (Livro do Exôdo, Isaías, passagensevangélicas em que Jesus denunciava e anunciava, etc...).

- A Igreja existe para anunciar o reino de Deus. E paratorná-lo presente no meio dos homens. Este reino não era apromessa de um "Céu", mas um mundo em que Deus seriatudo em todos, ou seja: "em que os coxos andam, os cegosvêem, os famintos são saciados". A interpretação literal destasparábolas não era de excluir, antes pelo contrário, era de acen-tuar. Daí a concluir e tentar concretizar que a nossa missãocomo cristãos era a de construir uma sociedade mais justa efraterna, com o consequente enpenhamento sócio-político, iaum pequeno passo. Naturalmente que o talento e a eficáciadeste voluntarismo é uma outra questão sobre a qual nãogostaria agora de me debruçar. Mas a intenção estava lá.

De alguma maneira, éramos uma versão eclesial deArquimedes quando dizia "dêem-me uma alavanca e eu le-vantarei o mundo". Nós diríamos: "dêem-me uma equipa debase e eu mudarei a escola!".

- A Igreja também somos nós. Há, segundo as palavras deS.Paulo, "uma grande diversidade de carismas e dons dentroda Igreja, mas a fé é só uma"; contudo, sentíamo-nos umaespécie de vanguarda, o que não abona muito em favor da

humildade, mas dava estímulo para sustentar a auto-estimaindividual e colectiva.

Claro que na casa de Deus há muitas moradas, mas prefiro asdo meu bairro...

- A liberdade é um bem inestimável e ela não resulta só deum lento amadurecimento histórico-político, mas é uma condiçãoinalianável pelo facto de nos reconhecermos filhos de Deus. E istoé válido para a sociedade mas também para o interior da Igreja.Aprendemos e exercitamos que não há vacas sagradas.Naturalmente que, em contextos mais alargados de reunião ecle-sial, esta atitude trazia alguns dissabores como quando, por exem-plo, numa reunião geral de movimentos laicais, aquando daexposição sobre um trabalho de grupos reflectindo em torno daencíclica "Laborem Exercens," fui mandado calar por um senhorbispo, ainda no activo, com a réplica de que o objectico do tra-balho-de-grupos não era reflectir e muito menos criticar, massimplesmente absorver.

- Tudo aquilo que, de uma forma generosa e gratuita, fazemospelos outros é o caminho mais rápido para nos aproximarmos deJesus, fonte de uma enorme alegria e motivo de um redobradoentusiasmo.

- A dimensão da oração e celebração, não sendo uma compo-nente demasiado intensa e não primando pela qualidade estética,não deixou de constituir uma vivência profunda, pela informali-dade e proximidade, e pela envolvência emocional e espiritualque suscitava.

Foi ainda neste período que a questão da formação teológi-ca se colocou. Pensar que muitas das coisas que dizíamos e fun-damentavam a nossa prática eclesial também poderiam, de algu-ma forma, desembocar numa cartilha, era ideia pouco conso-ladora. Embora a busca da verdade possa libertar, é tambémaltamente desinstaladora. E foi assim que, para mim, através daparticipação, durante três verões consecutivos, num Curso deTeologia promovido pelo Instituto S. Tomás de Aquino,dinamizado pelos Dominicanos, e com presença muito diversi-ficada de participantes, que ia desde as Irmãs Reparadoras de…até elementos da Comunidade de Base Padre Maximino, pudeexperimentar a pluralidade da Igreja. Uma espécie de dis-tribuição normal eclesial...

Uma tal dedicação fez com que, na altura, o provincial dosDominicanos me considerasse um candidato muito provável aonoviciado.

Ter vivido esta actividade, com aquela idade e naquela fase,onde para além das aulas teológicas existia um rico convívio,bons espaços orantes e uma vida em comunidade ad hoc (criadae gerida para efeitos de dormidas e comidas), foi a descoberta demuitas coisas:

- A Igreja é plural nas suas vivências, no seu discurso e no seutestemunho. Inclusivamente, um mesmo discurso pode suscitarinterpretações diferentes a partir da vivência do receptor. Isto não

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inibe a nossa capacidade crítica, mas torna-nos mais humildes nareflexão e no discurso sobre outras experiências eclesiais.

- Embora Jesus não precise da teologia para se revelar e paranos irradiar com a sua luz, alguma informação e formaçãoteológica são fundamentais para nos tornarmos mais adultosna fé e separarmos o essencial do acessório, embora nunca hajauma resposta definitiva e taxativa para isto.

- Foi também então que eu conheci diversas tipologias decomunidade, sejam religiosas sejam de leigos. Desde asIrmãzinhas de Jesus, aos Irmãos do Campo, passando por umapanóplia de outras comunidades com nomes (i)memoráveismais ou menos conhecidos.

Isso fez nascer em mim o interesse e o fascínio pelo conhe-cimento das primeiras comunidades cristãs. Actos dos Apóstolose Cartas de S. Paulo foram lidas nessa altura. Mas, sobretudo,entusiasmava-me a ideia de vida comunitária com partilha debens, oração comum e capacidade de acolhimento. Delírios dejuventude que alimentaram algumas conversas.

- Valorizar a dimensão estética nos momentos celebrativos.A qualidade do canto, o ritmo, a qualidade dos textos, o espaçofísico, o silêncio oportuno e isto sem renunciar a novas formasde expressão e de ritualização da fé, mesmo que pouco orto-doxas, como a dança e outras. Envolvendo o corpo e os sentidose complementada com a participação criativa.

- Por último, e se calhar em primeiro lugar, as pessoas.Muitas vezes são elas, mesmo sem o saberem, as nossas janelaspara o transcendente. Há olhares que nos transportam para ummundo imaginado e há palavras que guardamos para o resto dasnossas vidas.

A idade avança, novas experiências, vida profissional, casa-mento, filhos (vários). Momentos sublimes, momentos fati-gantes, abrandamento do envolvimento e da disponibilidade.Noventa por cento de tarimba, dez por cento de iluminação. Abusca de uma referência paroquial que sirva de suporte e de estí-mulo. Alguns esparsos e breves envolvimentos eclesiais. Os baptizados dos filhos como estímulo para a renovação.

Tentar viver em família como uma comunidade que acolhe e novas questões que surgem no contexto da vida familiar e profissional:

1- A gestão do tempo na harmonia entre o lúdico e a neces-sidade de realizar as tarefas. Tentar perceber que o argumentoevangélico de que "Maria escolheu a melhor parte em relaçãoa Marta que se afadigava com as tarefas da casa" não tem bonsresultados, seja num contexto doméstico ou num profissional...

2- A gestão dos bens. O desafio à partilha na complexidadedas suas premissas e imprevisibilidade das suas consequências.Poderia contar alguns episódios, uns vividos em contexto fami-liar, outros no âmbito do grupo do Metanoia. Mas seria fas-tidioso ou até impertinente...

3- O confronto com a morte, não só a morte física de pes-soas que nos são próximas, mas também as nossas pequenasmortes das expectativas que se goraram. O reaprender a renascera partir destas vivências de perda.

4- A necessidade de reconstruir permanentemente o viverem contexto familiar com 4 adultos (eu incluído) e com maisdois que se comportam como se já o fossem. Com interessesparcialmente diversos, sensibilidades religiosas diferentes e per-sonalidades muito autónomas. Um autêntico mestrado na arte dadiplomacia...

5- Um corpo que já não aguenta as múltiplas vontades doespírito. Aprender a viver os problemas de saúde sem dramas esem derrotismos. O espírito quer, mas a carne é fraca...

6- Aprender a rirmo-nos de nós próprios e assumir que hásempre uma certa probabilidade de as nossas ideias estaremerradas e isto para não falar das nossas práticas. Pôr os nossostalentos a render, mas não os imaginar onde eles não existem...

7- Usando uma analogia já antiga, sermos mais jardineirosdo que oleiros. Não deixar que Deus fique de braços cruzados,mas também não permitir que outros ganhem o pão de cada diacom o suor do nosso rosto sem o nosso consentimento cons-ciente e deliberado.

E assim termino esta partilha pedindo desculpa pela suapobreza franciscana e por uma certa extensão dispensável, não semantes fazer três notas de rodapé sobre a Igreja tal como ela apareceaos nossos concidadãos e ressalvando que eu não me ponho defora, assumindo a minha quota parte de responsabilidade.

A - Sempre me fez uma certa impressão, no discurso oficialda Igreja (plasmado em encíclicas, cartas pastorais, etc., etc.) onunca se assumir a ruptura, como se, na Igreja, ao longo dostempos, a mudança fosse sempre na continuidade. Eu sei que aIgreja, apesar de ter sido forjada no contexto da vivência dosprimeiros cristãos e de ser insuflada pelo Espírito, é tambémuma instituição sociológica e, como tal, tem que se protegercomo corpo. Mas e então, o reconhecimento do pecado, opropósito de emenda, a ressurreição permanente é só para oscristãos individualmente considerados?!...

B - Eu sei que a parábola que exorta os cristãos a serem comoos passarinhos que não colhem nem semeiam, porque Deus nãodeixará que nada lhes falte, precisa de uma certa exegese.Contudo, não é preciso dar uma cambalhota em forma deparábola e ir parar ao outro extremo, com situações de despu-dorada confraternização de altas figuras da Igreja com 70%do PIB de Braga. Jesus não tinha onde repousar a cabeça, masalguns dos seus "seguidores" rapidamente aprenderam o cami-nho da "toca do Aladino".

C - Será que os tempos que vivemos hoje são assim tão tene-brosos simplesmente pelo facto de a Igreja já não ser uma rea-lidade tão omnipresente no quotidiano das pessoas e nos con-textos sociais ou artísticos? Será que não temos que reapren-der a testemunhar Jesus num contexto minoritário e de nãopoder?

Braga/Albergaria-a-Velha, 28-07-2007v

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SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

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SEGUIR JESUS A DUAS VELOCIDADES

Há dias em que dou comigo a murmurar: "Deixaque os mortos sepultem os seus mortos, tu vem esegue-me." Esses são os dias em que as coisasnão correm bem, em que parece que tudo vaidesabar e levar-nos no seu turbilhão. Relembro afrase de Jesus e rezo para que a esperança não se

apague.Este texto tem por base a partilha que fiz no ERT 2007.

Repentinamente fui convidado a partilhar o meu modo de seguirJesus. Que mais há a dizer? Quando tinha onze anos, fui para oseminário dos Missionários da Consolata. Não sabia ao que ia, masos amigos e a envolvência segredaram-me para ficar. Com otempo, Deus encontrou-me no silêncio e na oração e desde aí nãomais me largou.

Quando em 1995, após um ano de noviciado em Itália, opteipor sair, mantive a vida espiritual na oração. O meu seguir Jesusera ainda vivido como que numa redoma, mas em breve teria demudar. Deixei o Casal Velho (a minha terra natal) para trás e

recomecei a minha vida na Lisboa urbana. Foram tempos difíceis:estudar, trabalhar, comer, dormir, transportes, insegurança e algu-ma solidão.

É neste tempo que conheço o padre Tolentino, na altura capelãoda UCP, e é por ele que me convidam para ser secretário doMetanóia. O Metanóia é um grupo de amigos que, de modos diver-sos, foram tocados pelo divino e revivem no dia-a-dia o seguirJesus na vida profissional. O Metanóia continua para mim umarevelação: ser discípulo de Jesus é ser inteiro. Não podemos sepa-rar aquilo em que acreditamos do modo como todos os dias vive-mos o nosso trabalho.

Passada uma década, sorrio ao pensar nos anos que passaram.O Senhor Jesus fez-me avançar, às vezes aos tropeços outras vezesnas palminhas. Hoje, casado com a Carmo, pai da Teresinha e àespera da Marta, não pertenço a nenhuma comunidade paroquial,por enquanto. Acho que o discurso eclesial se tornou repetitivo eque nada me diz. Reservo um tempo para oração com a Teresinhae lembro Taizé, que já visitei por duas vezes com a Carmo, masquero voltar em família. Antes da Teresinha nascer, acompanháva-mos regularmente as orações de Taizé no Convento dosDominicanos - aliás, foi numa oração que nos conhecemos.

Jesus é radical

Mergulhamos na vida. A família, o trabalho, a casa, asprestações, a televisão, o trânsito envolvem-nos e o que eraessencial para nós torna-se acessório. Lentamente, apercebe-

mo-nos das coisas que nos roubam o precioso tempo e que,por alguma razão, achávamos que eram sempre prioritárias.Aprendemos a viver com elas neste nosso acelerado mundo.Organizámo-nos, relembrámos o que era importante ereservámos o tempo para aquilo que tem de ser feito.Deixámos de ter a vida sempre ocupada com coisas urgentes,que era quase tudo.

Pessoalmente, os últimos cinco anos de trabalho foramesgotantes: sair cedo para não ficar no trânsito (todos os diasfaço o famoso IC 19), chegar a casa e já estarem todos adormir. Era isso que me pediam, foi isso que dei. Hoje os tem-pos são outros e, ao contrário desta "vida louca", pedem-mesaber e inteligência. Na primeira reunião que tive com o meuactual director, ele perguntou-me, perto do final, qualquercoisa como: "É uma pessoa de fé?" Respondi que sim, ao queele respondeu: "Isso é bom".

A honestidade e integridade são exigências actuais paraqualquer colaborador de uma empresa, porém a questão da

crença nem por isso. Duvido que o meu director se referisseàs minhas convicções religiosas. O que sucede é a procura daschamadas pessoas "bem formadas", com capacidade de adap-tação e de, diante da pressão, não sucumbirem e ultrapas-sarem os desafios. Basta abrir um livro de gestão e verificareste "segredo" repetido à exaustão. Reconheço que as refe-rências religiosas não são bem compreendidas e são como queinomináveis. Falam-se e defendem-se determinados valores,mas não se sabe a origem. Para alguns, até parece que forameles que os inventaram.

Quando vou para o "mundo" disfarço a referência clara aJesus em coisas universalmente aceites como o respeito e aatenção pelo outro. Jesus é hoje esta "personagem" que estános rituais, nas orações e que guardo em casa. Assim, há umavelocidade para quando saio de casa e vou trabalhar, outrapara quando regresso ao conforto do lar.

Sei que para Jesus esta dicotomia não faz sentido porqueEle é radical: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a simesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mc 8, 34-38). SeguirJesus ultrapassa qualquer divisória que queiramos fazer. Jesusnão pede apenas um espacinho na nossa vida, Ele vem parainundá-la por completo. Este é o caminho que tenho feito e seique não estou sozinho. O Senhor Jesus acompanha-memesmo quando parece que me esqueço Dele. Nos dias felizese nos momentos mais difíceis invoco-O e Ele escuta-me.Amanhã será mais um dia em que Jesus escreverá sua históriana minha vida. Ámen. v

Passada uma década, sorrio ao pensar nos anos que passaram. O Senhor Jesus

fez-me avançar, às vezes aos tropeços outras vezes nas palminhas.

Seguir Jesus a duas velocidades»» António Agostinho Silva »» Texto da intervenção no XVII Encontro de Reflexão Teológica, do Metanóia, realizado em Albergaria-a-Velha, de 28 a 31 de Julho de 2007

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SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

Ao ser convidada para dar um testemunho rela-cionado com o tema do Encontro, aceitei:tratava-se de contar parte de uma história queeu conheço perfeitamente, mas que nunca tiveque contar.

Ao analisar a minha relação, hoje, com a Igreja, de acordocom o tema "Ser e fazer Igreja hoje", vou mais para a versãoinicial "Ser Igreja seguindo Jesus Cristo", ou seja, vou misturara forma como tento ser Igreja hoje com a forma como me tenhorelacionado e tento relacionar-me com Cristo. Isto obriga-me aolhar para trás e, numa linha de testemunho, contar um poucoda minha vida, pois foi da minha mãe que herdei uma forte li-gação à Igreja e um grande amor a Jesus, Nossa Senhora e S.José (do anjo da guarda e dos santos, só me lembro quando tro-veja ou quando estou à beira de algum abismo).

Nunca esqueço a oração que, quando éramos pequenas (eue as minhas irmãs), a nossa mãe rezava connosco todas asnoites: "Ó meu Jesus, eu sou muito vossa amiguinha, eu vosagradeço do meu coração tudo quanto nos tendes dado e vospeço pela conversão dos pecadores, pela santificação dos sa-cerdotes e das irmãzinhas de caridade (Pai Nosso, Ave Maria)".Analisar esta oração era interessante, mas não agora; o curiosoé que não pedíamos nada para nós.

Para além deste hábito de rezar e de toda a prática religiosa(primeiras sextas-feiras, primeiros sábados, o terço à noite,confissão mensal), a minha mãe incutia-nos fortemente a ideia

de que "nunca faças aos outros aquilo que não gostarias que tefizessem a ti, mas, antes, faz aos outros aquilo que gostavas quete fizessem a ti". E ainda a ideia muito forte de que não se dizmal dos outros: "dos ausentes, ou bem ou nada". Por isso é queainda hoje me custa um bocadito quando "tenho que" dizer malde alguém, particularmente da Igreja.

Nasci em Lourenço Marques, onde o meu pai era fun-cionário da câmara, e vim já fazer dois anos à então Metrópole.Quando acabaram as férias, o meu pai teve que regressar aMoçambique e a minha mãe ficou grávida da quarta filha(casada havia quatro anos e tal). Quando estávamos para ir tercom o meu pai, chegou a notícia da morte dele, num acidentede caça. Ficámos por Molelos, onde vivia a minha avó mater-na e onde tínhamos ido passar as férias. Foi nesse ambiente dealdeia que eu vivi até aos dezoito anos.

Fui catequista (a minha mãe também era); já nessa altura fizum curso de formação para catequistas muito interessante (euera a mais nova); eu "dialogava" a missa (que era em latim);fazia parte do coro da Igreja (cantávamos a missa e outros cân-ticos em latim).

Andei sete anos no Colégio de Tondela, onde não havia JEC(Juventude Escolar Católica). Eu pertencia à JAC (JuventudeAgrária Católica) em Molelos e era a presidente (todas as ou-tras eram mais velhas e do meio rural). A Acção Católica era,na altura uma expressão muito forte de apostolado e tocavatodos os sectores da vida (eu, de agrária, só tinha a ligação àterra onde vivia).

Ao analisar a minha relação, hoje, com a Igreja, de acordo com o tema

"Ser e fazer Igreja hoje", vou mais para a versão inicial "Ser Igreja seguindo Jesus

Cristo", ou seja, vou misturar a forma como tento ser Igreja hoje com a forma

como me tenho relacionado e tento relacionar-me com Cristo.

Ser e fazer Igreja hoje ou serIgreja seguindo Jesus Cristo»» Deolinda Paiva »» Texto da intervenção no XVII Encontro de Reflexão Teológica, do Metanóia, realizado em Albergaria-a-Velha, de 28 a 31 de Julho de 2007; título da

responsabilidade da Viragem

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SER E FAZER IGREJA HOJE OU SER IGREJA SEGUINDO JESUS CRISTO

Ainda eu era muito miúda quando fiz o crisma. Foi aprimeira visita pastoral do bispo desde que lá vivíamos e tãodepressa não iria haver outra. A missa era de manhã, pois nãohavia missas à tarde, até porque tinha que se estar em jejumpara se poder comungar. À tarde haveria sessão solene, ao arlivre, e o discurso, à frente do senhor bispo, foi-me encomen-dado a mim (muito chorei, antes, com o peso da responsabili-dade, mas acabei por me sair bem). Foi a primeira vez que faleiem público, estava Molelos em peso.

Nova etapa, fui caloira para o Porto. Naturalmente, integrei--me na Acção Católica, desta vez na JUC (JuventudeUniversitária Católica). Foi o que de melhor o Porto teve paramim, mas a crise por que passei (motivada por vários factores)foi tal, que na Páscoa desisti e refugiei-me de novo em Molelos.

No ano seguinte, a minha mãe veio para Coimbra com asquatro (entretanto a minha avó morrera, o que permitira estadecisão).

Fui de novo caloira e integrei-me de novo na JUC (mais pro-priamente na JUCF). A JUC masculina, em Coimbra, era oCADC (Centro Académico da Democracia Cristã).

A JUC funcionava sobretudo a nível de equipas por facul-dades, mas havia a equipa diocesana (coordenadora), que euviria a integrar.

Os tempos eram de muita crise e o movimento em Coimbrachegou a ficar reduzido à equipa coordenadora e ao assistente -que, por obra e graça do Espírito Santo, era o padre IdalinoSimões.

Mas, antes e durante esta situação limite, e apesar da crise,havia uma dinâmica muito interessante e muito marcante daépoca, a nível do que era possível fazer no meio universitário.A equipa não se coordenava "apenas" a si própria, muita coisase ia organizando.

Estava a viver-se o pós-concílio. Não se falava ainda emeducação sexual, mas não havia mais lugar para uma acçãocatólica feminina e outra masculina. Fizemos a fusãoJUCF/CADC. Mais tarde e já na geração seguinte, viria a dar--se a fusão do sector universitário com o secundário, dandolugar ao MCE (Movimento Católico de Estudantes), mas essaparte da história já a vivi estando de fora.

Não posso deixar de referir um acontecimento importanteque ocorreu por essa época - a crise académica de 69. Oscristãos universitários tiveram um papel muito importante e foino seio da JUC que, pela primeira vez, na Academia deCoimbra se sentou, lado a lado, quem tinha ido fazer exames equem não tinha ido. Foi algo de verdadeiramente sensacional.E foi a equipa da JUC que o conseguiu.

O Idalino dirigia um outro movimento, Cursos de VidaApostólica, e uma vez convidou-me para ir fazer um curso.Nessa altura eu já tinha participado também num curso doMovimento por um Mundo Melhor, muito importante, no pós-concílio, na vida da Igreja e dos que nele participavam. Aí ouvi,pela primeira vez, falar de "sinais dos tempos". Foi napreparação para o curso de vida apostólica, cuja equipa organi-

zadora integrei, que conheci o Carlos, com quem viria a casar.Passados uns dois meses (Fevereiro de 69, uma semana

depois de um valente terramoto sentido em Coimbra), iniciáva-mos uma etapa da nossa vida, o namoro.

O que acontecia nesta matéria é que eu sempre achava quesó podia namorar com alguém que tivesse tanta fé ou mais queeu, pois a minha busca de Deus e relação com Ele foram sem-pre uma tónica na minha vida e algo que eu não queria pôr emrisco. Nessa busca e ainda antes de namorar com o Carlos(único namoro da minha vida, até hoje), convivi de perto comuma colega que me levava a "recolecções" na residência femi-nina do Opus Dei e que me pôs nas mãos o "Caminho", quetanto me ajudou na altura. Aqueles pensamentos tocavam-memuito e dois deles nunca os consegui esquecer: "Se tens queservir a Deus com a tua inteligência, para ti, estudar é obrigaçãograve"; "Estás intranquilo? Aconteça o que acontecer, lembra--te que a única certeza é Cristo e Ele nunca falha". No meio dassebentas eu tinha estes recados que me fortaleciam a memóriae o coração.

Já com o Carlos, vivi a crise académica de 69. Era a"nossa" primeira grande crise, mas foi muito enriquecedor,muito marcante da nossa vida que, na altura só era "vida adois" durante o dia. Também nessa matéria preferimos que afé e a doutrina da Igreja guiassem nossos passos e nossosimpulsos.

Nessa fase de namoro tivemos também uma experiência deIgreja muito interessante, para os outros e para nós. Foi criadoem Coimbra o CET, Centro de Estudos Teológicos, que maistarde viria a dar lugar ao ISET, Instituto Superior de EstudosTeológicos. Nós fomos os escolhidos e convidados para orga-nizar esse Centro de Estudos. Foi uma fase muito importante devivência do pós-concílio e de muita formação a leigos, paraalém do restante povo de Deus, com disciplinas como Teologia,Cristologia, Eclesiologia, Doutrina Social da Igreja, TeologiaDogmática e outras.

Mais tarde eu viria a leccionar, no ISET, a disciplina deAntropologia Científica, para seminaristas e alguns leigos;deixou de constar do currículo com a filiação do ISET naUniversidade Católica.

Em 1972 casámo-nos. O convite para o casamento, fugindoaos cânones sociais, era feito por nós, com o poema deSebastião da Gama "Pelo sonho é que vamos". Nas palavrasque dirigimos à assembleia (também aí alguma novidade) entreoutras coisas dizíamos: "Sabemos o risco que a caminhada épara a frente, mas também sabemos que connosco caminhaDeus". Ai de nós que esta segunda parte não fosse verdade,mas, quanto à primeira, pensávamos que sabíamos, mas nãosabíamos mesmo nada.

Outro acontecimento marcante em que participámos pro-fundamente foi a criação do Instituto Universitário Justiça ePaz, em Coimbra, que, em termos pastorais, de alguma formasubstituía o CADC (hoje coabitam as duas instituições, masseria uma tarde inteira para falar disso). Estou só a dar pince-

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ladas sobre o passado, pois a nossa vida presente é uma sequên-cia de tudo o que foi sendo o passado.

Colaborámos na organização da vinda do Papa João Paulo IIa Coimbra. Curiosamente, nessa altura fomos contactados (peloBarbedo de Magalhães, do Porto) para assinarmos uma carta, aser entregue ao Papa, a propósito da situação de Timor-Leste.Isto, porque a seguir ao nosso casamento, estivemos dois anos(1972-74), no território, à conta do serviço militar.

Algum tempo depois eu integrei a CDPM (Comissão paraos Direitos do Povo Maubere), que teve muita influência norumo que a questão de Timor-Leste viria a tomar.

Antes e depois de Timor, participámos também no movi-mento ecuménico, organizando em Coimbra as primeiras cele-brações ecuménicas, com pastores e outros dirigentes de váriasconfissões religiosas. Curiosamente, em Timor fomos vizinhosdo pastor da Igreja Evangélica, com quem ainda mantemosforte ligação. Também os ensaios dos cânticos para o nossocasamento foram feitos numa igreja protestante, metodista, deCoimbra, tendo o pastor emprestado o órgão para a celebração,pois casámo-nos no Lar Teresiano de Coimbra, onde não haviaórgão.

O ecumenismo, a diversidade e a multiculturalidade sãorealidades que sempre nos tocaram e sempre tivemos desafiosnesse sentido. Falando por mim, até na profissão isto aconte-ceu.

Depois de vir de Timor, tentámos "recuperar" o grupo doMCE e foi assim que integrámos os Jovens Profissionais que,como consta da história do Metanóia, viria a ser o embriãodeste movimento. Fomos, pois, do grupo dos fundadores doMetanóia que, como sabem foi criado em Coimbra, à sombrado seu bispo de então, D. João Alves.

Quando as nossas filhas chegaram à idade da catequese,fomo-nos transferindo de pastorais especializadas para umapastoral de paróquia, embora escolhêssemos a Igreja de SantaJusta, dos Padres Capuchinhos, que não é bem paróquia, masuma comunidade integrada na enorme paróquia de Santa Cruz.O Carlos chegou a ser catequista e ambos éramos leitores.

Há uns anos largos atrás, participámos também, ao nível deCoimbra, na criação de um grupo de casais, todos na linha doMetanóia, mas o grupo, talvez por ser anterior, nunca foimesmo considerado grupo do Metanóia, embora alguns ele-mentos sejam sócios. Actualmente não participamos nasreuniões do grupo, mas mantemos uma forte ligação a todas aspessoas, nomeadamente no que toca a um dos principais caris-mas do grupo, que é ser uma "cooperativa de dons", comoalguém o baptizou.

Falar da nossa ligação actual ao Metanóia é desnecessário. Em jeito de conclusão e não só como testemunho mas como

partilha, e sabendo que muito fica por dizer, quero acrescentar que: - acredito profundamente na Igreja una, santa, católica, à

qual faço questão de pertencer;- os apóstolos sempre me convenceram, sobretudo Pedro e

João (acho que a escolha do curso de Geologia teve a ver com

a minha admiração por Pedro; de João, sempre tive alguma"inveja", de o ver com a cabeça recostada no peito de Jesus);

- esta Igreja em que acredito é a Igreja povo de Deus, canta-da naqueles cânticos que tanto aprecio ("Somos um povo quecaminha e juntos, caminhando, podemos alcançar outra cidadeonde há justiça… Somos errantes peregrinos, em busca de umcaminho…" ou "O povo de Deus no deserto andava, mas à suafrente Alguém caminhava. Também sou teu povo, Senhor, eestou nesta estrada… O povo de Deus também vacilava…");

- por eu sentir a Igreja deste jeito é que não gosto de dizermal, pois se ela é feita de homens, mulheres e crianças, embusca de um caminho, como não há-de por vezes vacilar, se éisso que caracteriza a vida de cada um de nós;

- acredito ainda que a Igreja é mãe e mestra;- creio em Jesus, creio em Deus Pai, creio na acção do

Espírito Santo;- gostava de ter tempo para ler a vida de santos (convence-

-me profundamente o terem sido todos pessoas simples);- acredito na oração (posso dizer que, desde que casámos, à

parte os esquecimentos, sempre que nos deitamos à mesmahora, rezamos, de mão dada, pelo menos o Pai Nosso e a AvéMaria);

- acredito que pedir perdão, sempre que necessário, é umaforma muito eficaz de não comprometermos o nosso ser Igreja(hoje, mais do que nunca);

- tenho um fraquinho por Nossa Senhora (acho que vem dotempo de Cristo e dos apóstolos a expressão "por trás de umgrande homem está sempre uma grande mulher");

- nunca consegui perder a fé (quando ouvia falar de crises defé, sempre concluía que isso faltava no meu currículo, mas nãoconsegui colmatar).

Quero explicar, enfim, a referência anterior ao apóstoloJoão. Ele faz-me lembrar a Maria (irmã de Marta). A minhavida sempre se caracterizou pela contradição de me sentir pro-fundamente Marta (nem agora, na reforma, consigo deixar de osentir, parecendo às vezes, a mim própria, uma barata tonta),mas desejando muito ser a outra, a Maria. Depois caio em mim,fico em silêncio e ouço: "Não culpes Marta, pois és pior ainda,és Deolinda; Maria, até és, olha para o teu nome, só que àsvezes esqueces-te; mas não ficas por aí, és Deolinda MariaClotilde - nessa "tripla" se jogam as tuas contradições, às vezestantas (inclusive, gostares mais de ouvir do que falar e estaresaí a falar há que tempos). Mas também aí encontras a síntese,que tantas vezes consegues na tua vida, apesar de todas as con-tradições". É nestas contradições e com estas sínteses que tenhoque viver e com elas vou, dia a dia, tentando acertar o passocom a minha grande vontade de ser Igreja seguindo JesusCristo, com o Carlos de mão dada, com a família toda à volta,com os amigos ao menos de vez em quando, e com o Idalinopor perto, pois temos a sorte de ele passar lá por casa todas assemanas. Assim, ao mesmo tempo que vamos estando infor-mados sobre o que se passa na Igreja, pelo menos na diocesana,vamos também partilhando com ele as nossas alegrias e tris-tezas, sucessos ou falhanços, e isso tem-nos ajudado muito. v

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SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

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SER IGREJA, SEGUINDO JESUS

Posso sintetizar o que gostaria de dizer em duasideias: partilho convosco a convicção profundade que o mundo está melhor; na Igreja, convoscoe com tantos outros, há dinamismos de salvaçãopara oferecer ao mundo. E é por aí que passa estanossa experiência de ser Igreja, e ser Igreja

seguindo Jesus, como diz o tema escolhido para este encontro. O meu ideal de cristão e de bispo, o meu sonho, só pode ser

este: ser fiel ao evangelho e ser Igreja. Ser fiel ao evangelho só seconsegue, seguindo Jesus à maneira dos apóstolos, reescrevendoos Actos dos Apóstolos e lembrando em permanência as primeirascomunidades.

Se este testemunho me é permitido, há um outro que me éimposto: conheço o Metanóia há muitos anos, sem nunca ter par-ticipado em qualquer reunião ou encontro. Pelo que leio, por aqui-lo que sinto, sempre acolhi o Metanóia no meu coração de crente,no meu coração de padre, como uma lufada de ar fresco, de espíri-to novo, que transportava em si uma verdade de vida cristã e umaautenticidade de testemunho evangélico. Um movimento dehomens e mulheres, casais e famílias, que queriam ser e são umapresença nova numa realidade nova depois do Concílio Vaticano IIe no limiar deste milénio.

Faço agora, num gesto de desafio, uma proposta: o vosso modode ser cristão é exemplo para a Igreja; o vosso método de trabalhoé necessário para a Igreja; o vosso modo de ser Igreja é essencialpara o país que somos. E, neste momento concreto, é muitonecessário para Portugal.

Permiti-me um pedido: ajudai-nos a encontrar espaços de par-

tilha e a viver a ousadia da caridade, como propunha o Papa JoãoPaulo II. Oferecei-nos janelas que nos ajudem a ver os horizontesdo mundo e a ler e discernir os sinais dos tempos. Promovei opor-tunidades e espaços como estes, onde Deus se encontre e se escutea voz do Espírito. Ajudai-nos a ver, com clareza, a realidade quenos envolve - da qual nós devemos ser também protagonistas.Proporcionai-nos paradigmas de uma linguagem nova, para que omundo nos entenda a nós, Igreja.

Deixo uma interpelação, com a espontaneidade com que ela mesurge neste momento e com a verdade do ministério episcopal quesempre me habita, preocupado e ocupado em cumprir a missãoque o Senhor me confiou: será que o nosso país está cansado deesperar por um maior contributo e uma presença e acção maisevangélicas da Igreja?

Ainda uma referência: há poucos meses, soube que o lema epis-copal de D. Hélder Câmara era o mesmo que eu escolhi em 2004,quando o Papa João Paulo II me chamou a ser bispo na Igreja: "Inmanus tuas." (Lc. 23,46).

Peço-vos que, de acordo com a densidade do tema aqui abor-dado - ser Igreja seguindo Jesus -, vos coloqueis nas mãos doSenhor. É necessário deixar que Ele trabalhe, vos modele e vostransforme. E que, através de vós, modele e transforme o mundo enos ajude a ser cada vez mais Igreja.

As janelas desta casa abrem para os horizontes de uma dioceseque quer viver ao ritmo da renovação conciliar e da vivência doevangelho, neste início do terceiro milénio: são os horizontes da riae do mar, da serra e da montanha, da indústria e do trabalho, deuma Igreja que conta convosco. v

Peço-vos que, de acordo com a densidade do tema aqui abordado - ser Igreja

seguindo Jesus -, vos coloqueis nas mãos do Senhor. É necessário deixar que Ele

trabalhe, vos modele e vos transforme. E que, através de vós, modele e transforme

o mundo e nos ajude a ser cada vez mais Igreja.

Uma Igreja que conta convosco»» D. António Francisco dos Santos, bispo de Aveiro »» Transcrição da intervenção oral no final do XVII Encontro de Reflexão Teológica, do

Metanóia, realizado em Albergaria-a-Velha, de 28 a 31 de Julho de 2007; título da responsabilidade da Viragem

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SER IGREJA

PERGUNTA - Que crime cometeu afi-nal o teólogo Masiá para que oVaticano lhe impusesse silêncio e oafastamento das cátedras católicas?JUAN MASIÁ - Bem, não foi propriamenteo Vaticano que o impôs. Simplesmente, o

reitor tomou a decisão de me destituir sob pressão do cardealRouco Varela [arcebispo de Madrid] e alguns bispos, quenunca manifestaram por escrito qualquer razão.Directamente do Vaticano, não houve qualquer proibição,nem condenação.

P. - Mas foi um reitor da universidade muito bemmandado por Roma, com certeza.

R. - Sim, é o reitor da universidade que tem que protegera instituição e a universidade. Compreende o que querodizer…

P. - Também a Companhia de Jesus não terá sidono seu caso a melhor companhia!

R. - Bem, supõe-se que a Companhia tem uma vocaçãode fronteira. Paulo VI dizia-nos que estivéssemos naprimeira linha e na fronteira. E estar na fronteira supõe estarexposto a que nos dêem tiros dos dois lados. Não só de fora,mas também de dentro.

P. - Mas voltemos à sua questão. Afinal o que éque andava a ensinar e que os bispos e o reitor dauniversidade não gostaram? O que estava a dizer deperigoso?

R. - Há duas coisas: uma, que se disse na comunicaçãosocial, referente a anticonceptivos e ao uso do preservativo.Esse é um tema mórbido a nível das notícias. Mas não creioque fosse a verdadeira razão. Sobre esses temas falou muitomais claramente do que eu o cardeal Martini [ex-arcebispode Milão] e ninguém se meteu com ele. É que eu falei depluralismo, coisa que não agrada ao cardeal Rouco Varelanem a muitos bispos espanhóis. Falei da Igreja no Japão edos bispos japoneses, e sobretudo disse que estranhavamuito a situação anómala que se vive no meu país.

Actualmente, a Conferência Episcopal Espanhola adop-tou uma atitude beligerante, em sintonia com a oposição daultra-direita, contra o Governo. E isso impede um debatesereno no campo da bioética. Por exemplo, em questõescomo a lei de reprodução assistida ou a lei de investigaçãobiomédica, os bispos, por razões de ideologia política oureligiosa, opuseram-se. Critiquei bastante isso. Penso que éisso que mais incomoda. O tema dos anticonceptivos, dopreservativo, isso é uma coisa mais anedótica. O que acon-tece é que a comunicação social toca mais esses temas. Masa autêntica razão de fundo é estar na linha do Vaticano II,com a qual não está a Conferência Episcopal Espanhola.Estar a favor do pluralismo, do ecumenismo, do diálogointer-religioso, criticar a situação de retrocesso ou de regres-so aos tempos do nacional catolicismo, isso não lhe agradae provoca-lhe mal-estar. Mas nunca os seus responsáveis odisseram em público nem em qualquer documento ou carta.

O que se torna necessário é que as religiões se unam para colaborar no despertar do

mundo para a religiosidade e para a construção da paz e da justiça, a começar pela

comunidade local. É uma noção de missão completamente diferente da tradicional.

Juan Masiá: É necessário que as religiões se unam para despertar o mundopara a espiritualidade e a paz»» Manuel Vilas Boas »» Entrevista transmitida pela TSF em 28 e 29 de Julho de 2007

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ENTREVISTA JUAN MASIÁ

Só indirectamente, através dos superiores da Companhia,fizeram pressão para que quem dissesse essas coisas, fosseafastado.

P. - E afastado, o que faz agora?R. - Voltei. Eu estava aqui emprestado pela minha

província do Japão e agora voltei ao Japão, onde tenho tra-balho na universidade de S. Tomás, a universidade católicada diocese de Osaca. Tenho também aulas de bioética numcurso de Verão na universidade de Sofia, dos jesuítas. Etenho trabalho tanto em Osaca como em Tóquio, no comitésocial dos bispos Japoneses e no comité de Justiça e Paz.Isto seria certamente impensável, no meu país, no Estadoespanhol, porque o ambiente é muito diferente.

P. - Vai ter que ter cuidado com o cardeal deTóquio?

R. - Ah, não. Ali o episcopado é muito aberto e dá luzverde aos teólogos. Mas talvez não seja muito prudentedizer isto. A propaganda pode influenciar a nomeação debispos de outra linha e assim estragar a conferência episco-pal…

P. - Pode a teologia católica sobreviver sem liber-dade para a investigação?

R. - Sem liberdade? Bom, sem liberdade não há investi-gação nem há educação. A liberdade de cátedra é indispen-sável para a educação e para a investigação. Por isso eudisse, e alguém ficou incomodado com essa ironia, que anossa Universidade Pontifícia de Comillas deveria renunciarao seu nome e chamar-se escolinha de catequese. Porque, senão há liberdade de investigação e de cátedra, não há uni-versidade!

P. - E porque é que a Igreja Católica manifestauma quase obsessão pelas questões relativas à vida,designadamente, o aborto e a eutanásia?

R. - Carregamos um peso de muitos séculos, um lastromuito forte, tanto nas questões do começo como do fim davida. Mas sobretudo nas do começo. Alguns incomodam-seque eu diga, com alguma ironia, que é mais fácil falar dofinal que do começo, porque no final não intervém o sexo. Osexo é como uma piscina onde a Igreja Católica não tem pé,onde se afoga inevitavelmente. É uma piscina onde a Igrejanão sabe nadar. A Igreja e uma certa teologia romana car-regam um peso de muitos séculos nesta questão da sexuali-dade.

P. - O preservativo é ponto de honra da moralcatólica. Porquê?

R. - Na verdade nem se devia fazer disso um problema.O tema do preservativo é simplesmente uma questão deresponsabilidade e a ser tratada com bom humor não sedevia fazer disso um problema.

P. - E porque é que a Igreja Católica impõe o celi-bato e se opõe ao sacerdócio feminino?

R. - O que acontece é que a Igreja chega tarde a muitascoisas. Talvez não suceda o mesmo com a próxima geração.Mas há já muitos anos que a Igreja deveria ter ordenado sa-cerdotes, homens e mulheres, leigos casados. Isso irá inevi-

tavelmente acontecer. Hão-de ser testemunhas disso, talvezos nossos netos ou bisnetos.

P. - Bento XVI não fará essa mudança?R. - Penso que nós já não o veremos, porque a Igreja anda

muito devagar em certas mudanças e chega, como disse,demasiado tarde. O que aconteceu no Vaticano II foi, paramim, um milagre. Isso acontece uma vez cada dois mil anos.É por isso que há agora esse esforço tão grande de retroces-so, de regressão, relativamente ao Vaticano II. A mudançadeveria ter acontecido três ou quatro séculos antes. OVaticano II chegou com três ou quatro séculos de atraso, elogo a seguir veio a marcha-atrás. Durante os 26 anos dopontificado de João Paulo II, assistiu-se à repressão de teó-logos, à nomeação de bispos de determinada linha, à publi-cação de documentos que, citando palavras do Vaticano II,afirmam exactamente o contrário… Numa palavra, houveuma grande onda de retrocesso. Mas, no pontificado actual,isso está a ser incrementado também de uma maneira bas-tante perigosa.

P. - É missionário no Japão há quase trêsdécadas. Como reage, de um modo geral, o Orientea esta saga moralista da Igreja Católica?

R. - Nós, que vivemos ali, não podemos andar a com-plicar a vida das pessoas, transmitindo esses exagerosmorais. Para mim, é mais fácil falar com membros de outrasreligiões ou com gente não religiosa no Japão. Venho aEspanha e tudo se torna difícil ao falar com católicos tradi-cionalistas ou neoconservadores. No Japão não tenho esteproblema. Não desço a esses detalhes, porque não é precisodescer, compreende?

P. - E os japoneses reagem a esta preocupação daIgreja Católica?

R. - Quando isto aparece na comunicação social, creioque simplesmente não se percebe. Não sei se a IgrejaCatólica se dá conta que anda a falar nas nuvens, que omundo pende para outro lado e que não percebe a linguagemque utiliza nem entende nada do que é dito.

P. - É projecto prioritário da Igreja Católica aevangelização do continente asiático. Que tipo deintervenção poderá fazer, de facto, a Igreja Católicanum continente como aquele?

R. - O tema da evangelização e da missão está a passar poruma mudança decisiva. Eu trabalho com budistas e pessoasde outras religiões e temos um conceito de missão que nãosignifica que eu converta os outros à minha religião, mas queas outras religiões e eu, com eles, embarquemos numa novamissão que é ajudar o mundo a despertar para a religiosidadee para a espiritualidade. Dei um curso de introdução, não aocristianismo mas à religiosidade, com budistas e pessoas deoutras religiões. E nesse curso nenhum de nós tentou fazerproselitismo da sua própria religião. O que se tornanecessário é que as religiões se unam para colaborar no des-pertar do mundo para a religiosidade e para a construção dapaz e da justiça, a começar pela comunidade local. É umanoção de missão completamente diferente da tradicional.

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P. - Não terá nada a ver com o modelo assisten-cial que a Igreja Católica desenvolve no continenteafricano?

R. - O continente africano é muito diferente, é um mundocompletamente diferente. O que acontece com a Ásia é queé um mundo muito vasto. No caso do Japão surgem algumasproblemáticas juntas. A problemática da pobreza, queencontramos na América Latina, a problemática das outrasculturas que encontramos na África, e a problemática dasgrandes religiões unida à problemática da secularização numJapão que é mais Extremo Ocidente que Extremo Oriente.Nas questões da biotecnologia e da bioética o Japão é umcaso especial. Se penso que vou transmitir alguma coisa aoJapão, isso é de grande ingenuidade da minha parte. Nosquase trinta anos que lá estou, se alguma coisa aprendi foique o Cristo que eu pensava que tinha que ir levar para lá,tinha chegado muito menos do que eu pensava e que o Cristoque eu pensava que não estava lá, já lá estava muito mais doque eu pensava.

P. - Portanto, não converteu ninguém!R. - Pois, é que o esquema preconcebido de que vamos

converter alguém não tem sentido. Eu não estou ali parabaptizar e converter os japoneses.

P. - Então que está a fazer?R. - Que eles e eu nos convertamos ao mistério que nos

ultrapassa a todos. É isto que o Vaticano não entende. Nãovamos convertê-los ao cristianismo mas que eles e nós nosconvertamos! Chame-se Deus, chame-se Buda, chame-se…aquilo a que nenhum de nós se converteu ainda. Isto é umenfoque muito mais radical da missão e da conversão. Sepresumimos que já temos o campo conquistado isso é falarcom o tom de segurança que utiliza a Congregação daDoutrina da Fé, no documento "Dominus Iesus" a propósitoda salvação. Esse é o esquema que a nós, os que estamos noJapão, não nos diz nada.

P. - Acha que Pequim vai permanecer de costasvoltadas para o Vaticano?

R. - A questão da China é muito complexa. O Vaticanodeveria procurar compreender bem o que durante todos estesanos a Igreja fez na China. As duas Igrejas de que se fala, aoficial e a outra, a patriótica… é preciso compreender, den-tro daquela cultura, o esforço que fizeram para sobrevivernessa situação. De futuro creio que é inconcebível ali umacristandade com um Direito Canónico como o que temosaqui. O Vaticano terá que dar saltos para os quais ainda nãoestá preparado.

P. - E as relações que o Vaticano mantém comPequim são toleráveis?

R. - Francamente, não estou preparado para falar desseassunto. Não sei se isso se mantém a um nível meramentediplomático. Ainda que mudasse a situação e nos dessemtodo o tipo de facilidades, é preciso sairmos de nós mes-mos, sair desse esquema do século XIX chamado ciclo dasmissões. Esse ciclo já terminou. Estamos agora na era dasreligiões, e não só das religiões, mas do inter-cultural, do

inter-religioso que inclui a colaboração com o mundo nãoreligioso. Todos juntos, nesse pluralismo, vamos construir,em ordem ao futuro da humanidade, a justiça, a paz, afraternidade. Para isso é preciso darmos saltos muitograndes que nem a Europa nem a teologia romana estão adar ainda.

P. - Já se referiu ao Papa João Paulo II… Nãoperdeu ainda a memória desse Papa que governou aIgreja Católica por mais de um quarto de século?

R. - Com todo o respeito, creio que João Paulo II fezmuito mal à Igreja: 25 anos de nomeações de bispos de umadeterminada linha, 25 anos a andar para trás em relação aoVaticano II, apesar de se dizer o contrário… e também omodo de se tratar na Igreja estas questões muito concretas dasexualidade, da justiça, da paz, da ética social. A Igreja man-tém contradições que ainda não superou. Usa uma lin-guagem em questões sociais muito diferente das questões dasexualidade, ou da vida. Dentro deste tema da vida, fala demodos diferentes sobre o fim e o princípio. Ainda não fezessa mudança radical no campo da teologia moral. Outrostemas, já antes do Vaticano II, vinham sendo preparados,havia uma reforma litúrgica, estavam em andamento os estu-dos bíblicos e históricos. Na moral foi ao contrário. Vinha-se pedindo mudança há mais de um século e nada foi muda-do. Por fim, com o Vaticano II, dá-se luz verde para que seinicie a revisão da moral. E não passou uma década para quese começasse a andar para trás. Temos aí matéria pendentepara os próximos pontificados…

P. - Como é que reagiu à subida ao papado docardeal Ratzinger?

R. - Na verdade, receio que haja um interesse muito forteem dar continuidade ao movimento de retrocesso de JoãoPaulo II. Há muitos grupos e movimentos na Igreja interes-sados nisso. Com todo o respeito, creio que ainda que oinquisidor se vista de seda não deixa de ser inquisidor, comodiz um refrão castelhano. Ainda que ponha uma tiara, con-tinua inquisidor. Não o dirá ele directamente, poderá dizê-loa Congregação para a Doutrina da Fé. Será dito certamentenoutros documentos. Os que saíram nos últimos mesesfazem-nos lembrar os tempos perigosos de Pio X contra omodernismo ou os últimos tempos de Pio XII. Infelizmentehá um grupo muito forte na Igreja, neo-conservador, ejovem, que apoia essa linha. Não é um mero grupo consti-tuído por alguns bispos ou cardeais. Há um sector integristae conservador que pede isso mesmo.

P. - E que tem nome?R. - Você que é jornalista sabe melhor que eu. Poderia

indicar pelo menos cinco nomes. Creio que é mais eleganteque eu não os mencione.

P. - Não falamos com certeza da Opus Dei,porque é mais velho e é do seu país. Falamos talvezde um movimento que nasceu na Itália e que sechama Comunhão e Libertação.

R. - Esse parece-me muito mais subtilmente perigoso quea Opus Dei.

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SER IGREJA

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P. - A sua condenação como teólogo ocorre já sobas directivas papais de Bento XVI.

R. - Temos que falar com rigor. A nível da comunicaçãosocial fala-se de condenação, ou de heresia. Mas a mimninguém me condenou. Nem eu nem Jon Sobrino fomoscondenados. Condenação é um termo técnico muito forte.Também ninguém disse que sou herege, um termo técnicotambém muito forte. O que disseram foi que um livro meucriava problemas e, por isso, não poderia ser reeditado numaeditorial católica. Foi isso que aconteceu. E um reitor deuma universidade considerou ser prudente adiantar, em trêsmeses, a minha jubilação na cadeira de bioética, para tran-quilizar o cardeal Rouco de Madrid. Mas não tenho nenhumdocumento em que se diga que sou herege, não tenho qual-quer condenação. Há só rumores. Não querem comprome-ter-se a pôr as coisas por escrito. Se me tivessem escrito umacarta mencionando os pontos do meu livro consideradosperigosos, eu teria respondido. Porque tudo o que eu dissenesse livro, já tinha sido dito, de maneira ainda mais forte,em livros anteriores, todos com aprovação eclesiástica. Oque acontece é que neste livro, escrevo de um modo muitosimples, a um nível de divulgação. E como dizia aquelehumorista argentino chamado Zorro: cala-te menino, que secompreende tudo o que dizes!

P. - Então vamos dizer que melhor era o tempo daInquisição em que havia um julgamento!

R. - Creio que estamos a voltar a um tempo de "streep-tease" do Vaticano. Estamos a voltar a um tempo de más-caras. Quando sai um documento que diz "Deus caritas est",dizemos: "Que bom! Um Papa muito enigmático diz queDeus é amor." Mas depois tira-se a máscara e o que apareceé um documento da Congregação para a Doutrina da Fésobre a liturgia. Cai o pano e vê-se tudo!

Isso faz-me lembrar aqueles tempos em que João XXIIItinha vinte e poucos anos e era professor de história… Nessaaltura não entrava em campo a Opus Dei, mas um jesuíta,porque havia jesuítas muito tradicionalistas que faziam tra-balho de espionagem para o Vaticano. Esse jesuíta averi-guou então em que livrarias de Itália e que padres tinhamcomprado a "História da Igreja", de Ducquesne, em francês.Roncali, futuro João XXIII, tinha-a comprado porque eraprofessor de história da Igreja. E até tinha escrito uma recen-são muito crítica, mas só o facto de a ter comprado fez comque tivesse uma ficha no Vaticano. Quando foi a Roma, ummonsenhor chamou-o para lhe dizer: "Temos informação deque o senhor é modernista! Tenha cuidado sobre o modocomo ensina a Bíblia." Roncali saiu de lá a chorar, meteu-senuma igreja e disse: "Nem sequer sabem que o que eu ensi-no não é Bíblia mas História da Igreja."

Esta caça às bruxas, a Inquisição, está a repetir-se nosdias de hoje. O que naqueles tempos fazia um jesuíta tradi-cionalista, ao serviço do Vaticano, hoje será outro. Mas tam-bém poderá ainda haver jesuítas que o façam. O porta-vozda Conferência Episcopal, mão direita do cardeal Rouco, éum jesuíta…

P. - Jesuíta é também Jon Sobrino, que está naAmérica Latina e que não foi fuzilado, há algunsanos, na Universidade de Salvador, por estarausente e agora é, de certo modo, fuzilado peloVaticano…

R. - Foi essa a expressão que eu utilizei no meu bloguequando lhe enviaram a notificação. Aos seus companheirosmataram-nos. A ele não o mataram nessa altura, mas foi asua própria Igreja que agora disparou contra ele. Matam-teos de dentro.

P. - E que razões para esta morte de Jon Sobrino?R. - Simplesmente, nenhuma. Mas os que escreveram

essa notificação querem segurança, querem certezas, nãoquerem a Teologia da Libertação. Cumpre-se o que disseJesus: o discípulo não é mais que o mestre.

P. - Teólogo Masiá, o que é que se passa, afinal,no Vaticano?

R. - Que, embora o Espírito Santo sopre como um tufão,fecham as janelas e não o deixam entrar. Mas é preciso termuita esperança e optimismo, porque ao Espírito Santoninguém pode travar. Vai continuar a soprar. As mudançasdo Vaticano II são irreversíveis, apesar desta época de retro-cesso.

P. - O Espírito Santo saberá também latim… Mascomo é possível um documento que acaba de sair ea que já se referiu, continue a afirmar que a Igreja éo exclusivo lugar de salvação…

R. - Muito simplesmente, nem esse documento nem a"Dominus Iesus" são admissíveis. Creio que, em consciên-cia e em fidelidade ao Evangelho, é preciso rejeitá-los edizer "já chega!" com toda a clareza. Há bispos que pensamassim, mas não se atrevem a dizê-lo. Mas é preciso dizê-losem medo, ainda que incomode. Porque isto é como o queestava a acontecer no final do pontificado de Pio XII ou nopontificado de Pio IX. Começam a produzir-se documentosnesta linha e o povo crente olha para eles como se tudo fossedogma de fé porque vem de Roma. É preciso ensinar o povoa ser adulto, e que não comungue, como se diz em caste-lhano, com rodas de moinho.

Monopolizar o Espírito Santo é muito sério. Diria quenenhuma espiritualidade tem o monopólio do sagrado.Nenhuma religião tem o monopólio do divino. E nenhumaIgreja cristã tem o monopólio do Espírito de Vida. OEspírito Santo diz-nos a todos: já chega de monopolizar-me!Então convida-nos a sair do exclusivismo, do fundamenta-lismo, a admitir o pluralismo e a perder o medo do relativis-mo. O Espírito Santo é o único que não muda na Igreja. OEspírito é quem nos faz mudar continuamente.

P. - Perante estas situações está ou não em causaa eclesiologia do Vaticano II?

R. - Essa famosa disputa faz lembrar as disputasmedievais de quantos anjos caberiam na ponta de umalfinete. A famosa palavra "subsistet", explicou-a muito bemSchillebeeckx nos seus livros. E também o padre Sullivan.Que o Espírito de vida permanece na Igreja Católica, claro

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ENTREVISTA JUAN MASIÁ

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que sim, apesar de a Igreja Católica, que somos todos nós,atraiçoar muitas vezes o Espírito. E permanece também emtodas as Igrejas irmãs, e em todas as religiões irmãs. E, tantonós como as outras Igrejas e religiões somos essa mistura deautenticidade do sopro do Espírito e de inautenticidade danossa fragilidade, da nossa debilidade humana.

P. - Isso significa que o diálogo ecuménico foimesmo traído com este documento romano?

R. - Sim, sim! Completamente. Mas não é preciso termedo, porque o Espírito não se deixa atraiçoar. Poderáatraiçoá-lo um documento de Roma mas continuamos emfrente.

P. - Outras sensibilidades cristãs, protestantes eevangélicas, terão naturalmente uma palavra decontestação a estes documentos!

R. - Com certeza. Esse documento envergonha-me. E seo Vaticano não lhes pede perdão, peço eu aos meus irmãosprotestantes. Porque eu tenho muito boas relações com elese com outras igrejas e outras religiões, no Japão. Vivemosjuntos, vamos juntos ao mundo das margens, promovendojuntos a paz. Um documento desses não passa de umpequeno empecilho. Neste caso, o melhor que podemosfazer (e é o que fazemos no Japão quando sai um documen-to destes), é não o traduzir para que não faça mal aninguém.

P. - Está de volta o missal em latim de Pio V.Parece estar em curso a sua reabilitação nos sec-tores mais conservadores. Afinal o que significa amissa em latim no ano 2007?

R. - Muito simplesmente, acho que não significa nada. Epenso que o que devemos fazer, é ignorar. Devemos estaronde realmente estão os problemas. Isso é andar nas nuvens.O que acontece é que há um sector da Igreja, e isso passa-seno meu país com os bispos, que não se dá conta que já nãotêm o poder social que tinham antes, mas não se re-signama considerá-lo perdido. E estamos a lutar por coisas emrelação às quais as pessoas ficam indiferentes. E podem per-guntar-se: de que estão, afinal, a falar?

P. - Mas a reforma litúrgica também não foi maislonge do que a tradução dos textos tradicionais dolatim para as línguas vernáculas. Faltará criativi-dade na liturgia católica?

R. - Dizem alguns que se foi demasiado longe. Eu creioque aconteceu o contrário. A reforma foi pequena. Quandotraduzimos do latim para o japonês, por mais fiel que devaser uma tradução, é preciso ir para lá do texto traduzido. Épreciso criar, e o Espírito é criatividade. Dizem o mesmo docatecismo que já tem o essencial, agora é só traduzi-lo parao japonês. Não, é que o catecismo já está feito numa deter-minada cultura, latina, eclesiástica, medieval. O essencial, ofundamental, o universal não foi transmitido desde o princí-pio. Mas se pensamos numa tradução em que o fundamentaljá está dito, isso não é mais que um sentido único. E essesentido único é dado por Roma, sendo só necessário traduzi-lo. Significa que não foi entendido o que é a inculturação e

que há uma filosofia da identidade de uma cultura que estápor fazer.

P. - E quem deve fazer essa inculturação?R. - Não se deve confundir inculturação com adaptação.

Os documentos de João Paulo II falam muito de incultu-ração, mas confundindo-a com adaptação. Um exemplo con-creto: no tempo da era cristã no Japão havia uma disputasobre a palavra graça. Uns eram partidários de se dizer "gra-tia", graça em latim, e explicar o termo, porque dizê-lo emjaponês não se entendia. Outros eram partidários de o dizerem japonês e diziam "ontcho", que é uma palavra japonesamuito complicada. "Ontcho" significa um favor que umsoberano faz à mulher favorita, àquela com a qual irá dormirnessa noite. E diziam: não, isto não é uma imagem própriapara falar da graça. É melhor dizê-lo em latim. E que acon-tece? Que nem um nem outro termo servem. Da comunidadeque assimilou a fé, brotou uma terceira expressão que erafruto de uma autêntica inculturação. Disseram os cristãos:então Deus preocupa-se amorosamente mesmo com alguémcomo eu! Isto em japonês diz-se "taitsétsni": cuidar muito.Não é o termo latino, nem o japonês de tradução directa. Istopoderia parecer inculturação, mas transmitiria uma imagemerrada. A inculturação não é o facto de um missionário seadaptar a uma cultura, mas a expressão de uma comunidadeenraizada na fé e que dá os frutos próprios dessa cultura.Essa é a autêntica inculturação que está ainda por fazer.

P. - Porquê o medo do Vaticano em relação àsreligiões orientais, sobretudo o budismo?

R. - Reconheço que a "Dominus Iesus" toca um tema queé muito delicado mas que está ainda por tratar. É o grandetema da teologia. Quando falamos da unicidade, da histori-cidade, do papel de Cristo, é preciso sermos muito sincerose reconhecer que nunca essas questões tinham sido colo-cadas como agora são quando nos questionamos a fundojuntamente com as outras religiões, como é o caso concretodo budismo. Se o cristianismo se tivesse expandido de mododiferente como se expandiu, se se tivesse expandido peloOriente, em vez de Niceia e Calcedónia, talvez hojeestivéssemos a falar da Trindade numa linguagem maisparecida aos três corpos de Buda que às especulaçõestrinitárias da teologia medieval.

Parece-me, então, que há um medo muito grande nateologia romana de tocar esse tema. Medo que algumasquestões muito sérias vacilem. Como o tema da cristologia.É preferível reconhecer, com toda a honestidade, que pode-remos apresentar essas questões de formas diferentes do queaté agora se fez. Mas para isso é preciso perder o medo. OEvangelho diz: perder-se para encontrar. O que se perdeencontra-se, é preciso sair de si. E este tema vai colocar-senos próximos cem anos de um modo diferente. É o medodisso que leva o Vaticano à "Dominus Iesus" e ao documen-to que agora saiu, para apresentar certezas.

Dizia-me um bispo: "O que tu dizes, Juan, eu compreen-do, mas o povo, os cristãos são crianças…" E eu: "Não,primeiro não são crianças, mas ainda que o fossem, se lhes

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SER IGREJA

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ENTREVISTA JUAN MASIÁ

falamos dessa maneira nunca deixarão de o ser. Por isso, épreciso perder o medo de tratar os cristãos como adultos."Paul Ricoeur diz que na nossa cultura europeia temos umadupla tradição, de convicção e de crítica. Não se pode termedo à crítica. Santa Teresa dizia que tinha mais medo a umconfessor que fosse muito santo, mas que estudasse pouco,do que o oposto.

P. - Sobre a viagem do Papa à Turquia: pensa queos muçulmanos estão definitivamente pacificadosdepois do Vaticano ter prometido que dava a mão àTurquia para entrar na Comunidade Europeia? E que aquele incidente da Alemanha foi ultrapas-sado?

R. - Levantou-se uma grande polémica com aquelas afir-mações. Eu também as critiquei, mas o que me preocupounaquele documento não foi a citação que levantou a polémi-ca. Isso não é o mais importante. Aquele documento temcoisas muito piores que não foram criticadas. Os temas dologocentrismo, do eurocentrismo e do androcentrismo, sãotrês temas que estão no documento, mas só se falou da outraquestão.

P. - Explicando…R. - A maneira de falar da teologia, do logos, é muito

logocêntrica. No Japão isso também não seria entendido. Amaneira de falar da Sabedoria, como no Antigo Testamento,ignora o que diz toda uma teologia feminista da actualidade.É muito androcêntrica. E falar da Europa com as suas raízescristãs e como centro da cristandade é muito eurocêntrico.Esses três pontos parecem-me mais perigosos que o episódiotão acidental das alusões aos muçulmanos, que pode serexplicado como um mal entendido. Essa citação é o métodotípico de um professor de teologia que cita um livro recentedizendo que não é a sua opinião. Isolada do conjunto fica sóa citação.

O que é verdadeiramente perigoso naquele texto (acredi-to que Ratzinger seja sincero e humilde,) é o teor da suateologia mais agostiniana que outra coisa. Ratzinger foiinquisidor durante muito tempo e agora não dirá essas coisasdirectamente por ser Papa, mas através do cardeal Levada.Isso é mais perigoso ainda que o comportamento de JoãoPaulo II.

P. - Pensa exequível uma visita do Papa aMoscovo?

R. - Não sei se virá a realizar-se ou não. Todas essascoisas… acontecem como com as beatificações dos santos.É todo um mundo de política… creio que a Igreja deveriaagir de outro modo…

P. - A canonização dos santos é política?R. - Pois é. Veja, deu muito mais a toda a Igreja a vida do

irmão Roger [de Taizé], que em paz descanse, que todas asviagens de João Paulo II. A Igreja devia abandonar todo estemundo da política, o Vaticano como um Estado, o sistemados núncios e cardeais, e voltar a modos muito maisevangélicos. Com isso, a Igreja ganharia não só a juventude,mas outros sectores já perdidos.

P. - Mas não acha que a diplomacia do Vaticanoseria uma chave útil para abrir alguns caminhos dapaz internacional?

R. - Estão empenhadas nesse processo algumas religiões,o Conselho Mundial das Igrejas, a Associação das Religiõespela Paz. Os católicos têm que abandonar a ideia de que-rerem ser sempre os protagonistas, e juntarem-se ao que jáexiste.

P. - O terrorismo internacional mergulha emmotivações religiosas fundamentalistas?

R. - A violência sob a capa de guerra contra o terrorismo,a violência de Bush, a violência, raiz de ambas, desde apobreza à droga, passando pelo problema das armas, ascausas do terrorismo são um assunto muito sério. Tanto oislão como outras religiões, e o cristianismo também, têmque passar pela sua autocrítica e pela sua hermenêutica.Tanto um cristão fundamentalista, que siga a Bíblia à letra,como um crente do islão que lê o Alcorão à letra, não pas-saram pela hermenêutica. Não há teologia sem hermenêuti-ca. Como não há filosofia sem analogia. É necessário passarpela autocrítica. Na reunião de Quioto de 2006 sobre asreligiões, depressa se chegou a consenso sobre o essencial.Primeiro, que todas as religiões têm tradição de paz; segun-do, que todas atraiçoaram essa tradição. Todos temos essatradição e todos lhes fomos infiéis. Assim, começar por essaautocrítica inibe o terrorismo, o fundamentalismo, os dog-matismos, o totalitarismo, os exclusivismos.

P. - Para si o que é mais perigoso: um católicofundamentalista, um judeu fundamentalista ou ummuçulmano fundamentalista?

R. - Se são fundamentalistas, tão perigosos são uns comooutros. Para mim é mais fácil falar com um protestante aber-to que com um católico fechado. É mais fácil falar com umbudista aberto que com um protestante fechado. É mais fácilfalar com um islâmico aberto que com um islâmico fechado.O problema é aquilo que dizia Bergson das duas fontes dareligião e da moral: se é da aberta ou da fechada. Se o diá-logo está fechado, é indiferente quem seja. Seria necessáriorecorrer aos psicólogos. O problema provém do medo,porque o medo gera insegurança, e da defesa nasce a agres-sividade.

P. - Padre Masiá, para onde caminha, afinal, aIgreja de Bento XVI?

R. - Não há uma Igreja do Papa Bento XVI. A Igreja é deJesus. Dizer Igreja de Bento XVI seria cair na papolatria.Não há Igreja de Bento XVI nem de João Paulo II. Há umaIgreja que nasceu do movimento de Jesus, o movimento aque Jesus deu início e do qual não fazemos caso. É a comu-nidade reunida por Jesus e em seu nome que prolonga ocorpo de Jesus, que dá testemunho dele vivo. E animadospor esse espírito de Jesus é que discordamos dessa "Igreja deBento VI ou do cardeal Rouco". Discordar dessa igreja, nãoda Igreja. Precisamente para que continue a ser a Igreja deJesus. v

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HARMONIA NA DISSONÂNCIA

Há uns dias pergun-taram-me se uma crónica minha, escrita há meses e ainda não pu-blicada, podia sê-lo agora. Considerei que sim, se reformulada.

Era assim:Tocaram à porta. O meu filho foi abrir. Uma vizinha. Curiosa

(é tão raro os vizinhos tocarem às nossas portas!), decidi-me ainterromper a correcção dos testes e fui também à entrada.

Poderíamos nós informá-la como se desligava a campainha?Sim, a campainha da entrada do prédio. Recebera um telefonemahorrível, ainda estava a tremer... E não queria voltar a ser inco-modada de forma alguma por pessoas indesejáveis. O telefone erafácil de desligar, mas a campainha?!...

Nenhum de nós a podia ajudar, qual dos dois mais ignorantedos princípios básicos da electricidade (ou será electrónica?).

Na minha mente convergiam, vertiginosamente, a imagem dela(quarentas alourados, domesticamente trajada), a ininterrupta con-versa (os cães, os computadores, os filhos, os cursos destes, as suasfaltas de memória actuais, a não visibilidade dos vizinhos nestanova habitação...) e um cortejo de interrogações (depressão?,solidão?, perturbação?, precisa que a ouça?, tantos cães, computa-dores e pessoas numa casa como esta?) em fundo ansioso - ai, ostestes! Mas lá me mantive solícita, resistindo à tentação de motivaro fim da conversa. Finalmente, ela deu-a por terminada, agrade-cendo, agradecendo (o quê?), desculpando-se, desculpando-se...

Não consegui esquecê-la. Quantas mais haverá neste conjuntode prédios? Quantas solidões escondem estas paredes levantadasem linhas iguais, revestidas de azulejos sem arte, com varandasenvidraçadas alargando quatro, cinco assoalhadas, enquadradas,no entanto, pela beleza verdejante oferecida pelas pracetas?

Quantos toques de campainha se desejam ouvir e quantossilenciar? Quantas vezes, todos nós desejamos não ouvir o tinirdas nossas fragilidades e fugir em frente?

Ora tudo o que aqui está e eu vivi se harmoniza com intuiçõessentidas actualmente após a minha ida, neste Verão, a Assis.

Por exemplo, dizendo a conhecida oração denominada de S.Francisco "Senhor, fazei de mim um instrumento da Vossa paz:/Onde há ódio, fazei que eu leve o Amor,/ Onde há ofensa, que euleve o Perdão [...]", ao contrário do que sempre vira dantes, sentique os pedidos não serão, primeiramente, dirigidos para fora denós, mas sê-lo-ão para nós mesmos, para o nosso ser. Só levandoo Amor onde há ódio em nós, o Perdão onde há ofensa em nós, aUnião onde há discórdia, a Fé onde há dúvida, a Verdade onde háerro, a Esperança onde há desespero, a Alegria onde há tristeza, aLuz onde há trevas, sempre no mais íntimo de nós, poderemos serco-construtores da paz no nosso coração e transmiti-la.

Ou outra recente também. As frases de Jesus "Eu vim para osque estão doentes, não para os que têm saúde.", "Eu vim para ospecadores", "Os últimos serão os primeiros" e toda a sua acçãomilagrosa e misericordiosa junto de quantos O procuraram tam-bém são dirigidas a tudo o que está doente, leproso, paralítico,cego, surdo-mudo, adúltero, possesso, morto, ladrão bom e é últi-mo em nós, para Ele curar, integrar, como fez com todas as per-sonagens dos milagres. Acontece é que essas figuras marginaisassumiam totalmente a sua fragilidade, confiando-a plenamente aoSeu Amor e nós, muitas vezes, queremos combatê-la sós, custe oque custar. Isto se já a tivermos conseguido escutar...

E lá vem S. Paulo lembrar "Quando sou fraco é que sou forte":ele apanhou muito bem o essencial.

E S. Francisco, para mim, foi o santo que melhor o viu também.Assumiu completamente toda a sua terra, a sua fragilidade, e ligou--a ao Céu. Conciliou os contrários. No fundo, será essa a nossamissão humana: ponte entre terra e céu.

Aceitar as dissonâncias interiores, distinguir todos os seustons, nomeá-los, aprender a viver com eles, acreditar que sepoderão harmonizar pelo diapasão divino... Acreditar que mesmoo estridente se pode vir a orquestrar em crescimento interior...Abrir os ouvidos a todos os sons da vida e no que neles nos dizDeus... Não desligar nenhum, tudo absorver, valorizar...

E a vizinha? Pois... Houve mais episódios como aquele. E piores...Vejo-a na rua, nos mercados do bairro, ouço-a na escada... Fujo...

É uma campainha que desejaria desligar, um som que ainda nãoconsigo escutar.

Gosto de pensar que há nela algo de saudável que me chama.Às vezes sinto-o. Gostava de me focar só nisso. Mas não consigo.

Há uma campainha que não me deixa, ainda, sentir o Rosto daPaz que está no fundo dela, que está em cada ser. Gostava de desli-gar essa campainha. 18 Novembro 2007v

Harmonia na dissonânciaAna Nunes

Não consegui esquecê-la. Quantas mais haverá neste conjunto de prédios? Quantas solidões escondem estas paredes levantadas em linhas iguais, revestidas de azulejos sem arte, com varandas envidraçadas alargando quatro, cinco assoalhadas,enquadradas, no entanto, pela beleza verdejante oferecida pelas pracetas?

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MEMÓRIA

Senhor, nós Te damos graças,Pela vida do nosso filho Dido,Que tanto irradiou o Teu amor à sua volta, na sua curta vida.Ensina-nos a amar a vida como ele a amou,A alegrar-nos com todas as coisas pequeninas eA sabermos maravilhar-nos com o dom dos outros,A aceitá-los como eles são, como só o Dido e Tu sabem fazer.A maneira como o Dido nos acolhiaNa nossa fraqueza e falta de jeito,Mostrava tão bem como Tu, nosso Deus e nosso criadorNos acolhes pequenos, com tantas dificuldades em amar,Em libertar o outro dos seus medos e das suas defesas,Das suas lutas pelo reconhecimentoDe que todos sentimos tanta falta.Dido sabia acolher-nos assim:Cantando bem ou um pouco desafinado,Com as palavras que ele conhecia ouCom palavras ditas de outra maneira:Cada pessoa era única e preciosa para ele.Ao acolher as pessoas como elas são,Ele tornou tão compreensível as palavras de Jesus:"Quem acolhe um destes pequeninos é a Mim que acolhe"E os pequeninos éramos tantas vezes nósQue não sabíamos o que fazer, como fazer...E ele ensinava: o que fizeres de coração aberto,Com vontade de te dar, é bom, é precioso, vale a pena!A sua amizade pelo Toi e a valorizaçãoQue ele fazia dos seus dons era qualquer coisaQue nos maravilhava sempre e que revela tão bemAquilo que S. Paulo dizia eQue ele gostava tanto que nós cantássemos:"Aquilo que há de louco, de fraco, no mundo,Eis o que Deus escolheu."A Muna e a Nura, suas irmãs, trouxeram-lhe tanto!Muna teve, à partida, algumas dificuldades, para aprender a andar,pois ele caregava-lhe na cabeça para a fazer cair.Apesar disso sentimos que crescia sem medo dele;

Teve que aprender a ser autónoma mais cedo.Com a Nura foi mais fácil-tinha uma grande protectora, a sua irmã.Foram uma grande alegria e uma fonte de estímulotanto para ele, como para nós seus pais.A sua vida não foi fácil na luta contraA sua epilepsia "intratável",Mas o modo como desvalorizava o que o incomodavaE valorizava tudo o que é bom na vidaÉ certamente o tesouro mais precioso que nos deixou.A sua forma de estar e de comunicar sem intrusãoEsperando que interagíssemosE acolhendo com uma doçura únicaO pouco que, tantas vezes, estávamos disponíveis para lhe dar,É também um sinal tão forte da forma como Tu, nosso criador,Nos acolhes e transformas a nossa pobreza em algo que tem valor.Como é possível que uma pessoa que nunca falou,Tão dependente para todas as suas necessidades básicas,Tenha marcado tantas pessoasNa sociedade eborense onde viveu os seus últimos 30 anos?Como dizia um senhor na rua há alguns anos:"Ele desperta o que há de bom nas pessoas!"Nós Te damos graças por tantas pessoas, tantas!Que ao longo da sua vida nos ajudaram e o ajudaramA ser a pessoa feliz que foi:A avó Lynda, Médicos, vizinhos da Alemanha, de Évora,monitores e técnicos da APPACDM e da CERCI,Amigos do "Fé e Luz", sacerdotes que estiveram perto, colegas,A Manuela, a D. Apolónia, a Aurélia e, nos últimos anos, aJoaquinaQue com a sua dedicação e cuidados eficazesLhe tornaram a vida mais fácil e a nós também.Ensina-nos, Senhor,A não desistir de amar ninguém,A não desistir de comunicar,A não desistir de nos dar.Amen!. v

Wadid Francisco CabralSidarus (Dido)4 de Outubro de 1971 - 21 de Janeiro de 2008

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revista do

METANOIA

Movimento

Católico de

Profissionais

Está sereno o poeta Desprende-se-lhe dos ombros e cai depois em pregas por ele abaixo a manhã Não pertencem ao dia os gestos que ele tem não morrerão na noite seus assombrosos passos Dizem que ele volta a pôr em movimento a roda de crianças de atitudes desmedidas que o vento varreu e parque algum queria E abre os braços para deixar cair na cidade um ano favorável ao senhor E põe o rosto do senhor por trás das suas palavras Elas decerto o hão-de dar a quem as demandar Ruy Belo, Poema Quase Apostólico (Aquele Grande Rio Eufrates), in “Ruy Belo – Todos os Poemas”