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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU DOUTORADO EM LETRAS CIÊNCIA DA LITERATURA (POÉTICA) Fábio Galera Moreira SER HOMEM NO GRANDE SERTÃO: TRAVESSIA, TEMPO, SER Rio de Janeiro 2016

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Page 1: SER HOMEM NO GRANDE SERTÃO: TRAVESSIA, TEMPO, SER...promessa de leitura, ou seja, a contratação do grande pacto estará disponível lá onde a obra será elevada ao âmbito originário

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU

DOUTORADO EM LETRAS – CIÊNCIA DA LITERATURA (POÉTICA)

Fábio Galera Moreira

SER HOMEM NO GRANDE SERTÃO: TRAVESSIA, TEMPO, SER

Rio de Janeiro

2016

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FÁBIO GALERA MOREIRA

SER HOMEM NO GRANDE SERTÃO: TRAVESSIA, TEMPO, SER

Orientador: Professor Dr. Manuel Antônio de Castro

Rio de Janeiro

2016

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética)

da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ), como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Doutor em Ciência da

Literatura.

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FOLHA DE APROVAÇÃO

MOREIRA, Fábio Galera. Ser homem no Grande Sertão: travessia, tempo, ser. Tese de

Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade

Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título

de Doutor em Ciência da Literatura.

Aprovada por:

________________________________________________________

Professor Doutor – Manuel Antônio de Castro – Orientador – UFRJ

________________________________________________________

Professora Doutora – Angela Maria Guida – UFMS

________________________________________________________

Professor Doutor – Eduardo de Faria Coutinho – UFRJ

________________________________________________________

Professor Doutor – Gilvan Luiz Fogel – UFRJ

________________________________________________________

Professora Doutora – Maria Lucia Guimarães de Faria – UFRJ

Suplentes:

________________________________________________________

Professora Doutora – Carla Costa Pinto Francalanci – UFRJ

________________________________________________________

Professora Doutora – Teresa Cristina Meireles de Oliveira – UFRJ

Examinada a Tese Ser homem no Grande Sertão: travessia, tempo, ser.

Conceito: _____

Em: _____ / _____ / ____________ .

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Dedico esta pesquisa a todos os caminhos

que me possibilitaram alcançar o que sou.

Dedico à Juliana, pelo amor incondicional e

espera.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a CAPES, por investir no desenvolvimento deste trabalho.

Agradeço ao Professor Manuel Antônio de Castro, por me presentear com a sua

humanidade e grandeza, pelas oportunidades e pela confiança.

Agradeço à Professora Angela Maria Guida, pela gentileza de ter aceitado fazer

parte da minha banca.

Agradeço ao Professor Eduardo de Faria Coutinho, também pela gentileza de ter

aceitado fazer parte da minha banca.

Agradeço ao Professor Gilvan Luiz Fogel, por se dispor gentilmente a ler mais um

de meus textos, por sua coragem de pensar o humano.

Agradeço à Professora Maria Lucia Guimarães de Faria, pelas sugestões de

pesquisa, por sua gentileza e sensibilidade no trato com a obra rosiana.

Agradeço à Professora Carla Costa Pinto Francalanci, por se dispor gentilmente a

ler mais um dos meus textos, por ter aceitado fazer parte da minha banca como suplente.

Agradeço à Professora Teresa Cristina Meireles de Oliveira, pela gentileza de ter

aceitado fazer parte da minha banca como suplente.

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MOREIRA, Fábio Galera.

Ser homem no Grande Sertão: travessia, tempo, ser /

Fábio Galera Moreira. – Rio de Janeiro: UFRJ/ LETRAS, 2016.

x, 235 f. ;31 cm.

Orientador: Manuel Antônio de Castro

Tese (doutorado) – UFRJ/ LETRAS/ Programa de Pós-

graduação em Ciência da Literatura, 2016.

Referências bibliográficas: f. 231-234.

1. Arte. 2. Poética. 3. Acontecimento. 4. Linguagem. 5.

Silêncio. Tese. I. Castro, Manuel Antônio de. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro/ Letras, Programa de Pós-Graduação

em Ciência da Literatura. III. Título.

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RESUMO

SER HOMEM NO GRANDE SERTÃO:

travessia, tempo, ser

Fábio Galera Moreira

Orientador: Manuel Antônio de Castro

Resumo da tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do

título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética).

Dos muitos temas que poderiam ser ressaltados a partir da obra, um chamou mais atenção: a

temática do tempo. As questões gerais que irão orientar esta tese giram em torno da temática

do tempo, bem como em torno daquilo que se relaciona com as questões do tempo na obra

Grande Sertão: Veredas. Quais sejam: o que é o tempo, na obra? O que diz o tempo na obra?

Como ele se realiza? Em virtude do quê o tempo é tempo em Grande Sertão: Veredas? Como

a narrativa se oferece a uma interpretação temporal? Todas essas questões visam explicitar o

que vem a ser a vida do homem enquanto destino de existência, destino de liberdade e ação,

em uma palavra, destinação. No caso de Riobaldo, seu destino foi permeado pelo medo e pela

coragem. Assim, medo e coragem também constituem a temática da temporalidade em

Grande sertão: veredas. Tudo isso perfaz a destinação do homem enquanto um

acontecimento extraordinário. Resguardar a realização desse acontecimento é tarefa de todo

homem e isto é o que pretendemos demonstrar como sendo a travessia de Riobaldo.

Palavras-chave: Grande Sertão; homem; travessia; tempo; ser.

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ABSTRACT

BEING HUMAN IN THE BACKLANDS:

Passage, Time, Being

Fábio Galera Moreira

Orientador: Manuel Antônio de Castro

Abstract da tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do

título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética).

Of the many issues that can be highlighted from the work, one drew more attention: the issue

of time. The general issues that will guide this thesis revolve around the theme of time and

what it relates to. Namely: what is the time, in the work? What does the time at work? As it

takes place? Because what time it is time for the devil to pay in the backlands? As the

narrative offers a temporal interpretation? All these questions are aimed at explaining what

becomes the life of man as a destination of existence, freedom fate and destiny of action, in a

word, destination. In the case of Riobaldo, his fate was permeated by fear and courage. Thus,

fear and courage are also the theme of temporality in Great backlands. All this adds up to the

allocation of the man as an extraordinary event. Protect the realization of this event is the duty

of every man and this is what we intend to demonstrate as the crossing Riobaldo.

Key-words: Backlands, human, passage, time, being.

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Queres buscar o caminho que leva a ti mesmo?

Livre, chamas a ti? Teu pensamento soberano eu

quero ouvir e não que escapaste de um jugo.

Livre de que? Pouco importa a Zaratustra! Mas teu

olhar deve anunciar-me claramente: livre, para quê?

Do caminho do criador, Assim falava Zaratustra,

Friedrich Nietzsche

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

I. O PROJETO COMPREENSIVO DA TRAVESSIA DE RIOBALDO ....................................... 15

1. Decifração ................................................................................................................ 19

2. Vertências ................................................................................................................ 22

3. Medo, coragem ........................................................................................................ 24

4. Gã ............................................................................................................................. 27

5. Corpo da sucessão ................................................................................................... 31

6. Ação estranha, ação própria ..................................................................................... 33

II. O DESTINO DE RIOBALDO: DO MEDO, DA CORAGEM ................................................. 35

1. Riobaldo, entre medo e coragem: travessia ............................................................. 41

2. Vida e o sarro de medo ............................................................................................ 56

3. A maneia de medo e o afeto enraizado .................................................................. 66

4. De-Janeiro: rio da consagração ............................................................................... 78

5. Claráguas: medo e destino ...................................................................................... 89

6. Espelho e sua transformação pesável ...................................................................... 100

7. Coragem: o vau do mundo ....................................................................................... 115

III. A TRAVESSIA DE RIOBALDO: LIBERDADE, AÇÃO, TEMPORALIDADE ..................... 128

1. O Pacto e a culpa ..................................................................................................... 135

2. Ficar sendo na encruzilhada: a abertura dos caminhos ........................................... 150

3. Liberdade: alegria e coragem de um caminhozinho ................................................ 163

4. O prazo da travessia: ação como realização de caminho ......................................... 180

5. Um círculo: ação, liberdade, temporalidade ............................................................ 190

6. O tempo no Grande Sertão: sempiternidade e finitude ........................................... 202

7. A hora da gente: o instante da coragem de decisão ................................................ 216

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 229

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 231

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INTRODUÇÃO

Quem inicia uma leitura abertamente comprometida com a obra Grande Sertão:

Veredas se encanta imediatamente com o seu cantar, com a força de sua linguagem, seu canto.

Assim, a leitura compromete o leitor a se encantar com o imediato do seu canto, no interior do

cantar e contar de Riobaldo. Isso se deve à linguagem de Grande Sertão, profundamente

originária e inaugural. No interior desse impacto, desse imediato encantamento,

comprometendo obra e leitor diante do originário que se inaugura nesse pacto de

compromisso e encantamento, eis as primeiras interrogações que podem sobrevir: o que a

obra está questionando? O que está em questão fundamentalmente na obra, que a constitui

como uma obra de encantamento e compromisso? Como a obra trata do que trata? O que ela

contrata? O que a obra questiona? Estes são os sobressaltos imediatos da leitura, no seu

princípio, que perfazem o princípio do atravessamento dos caminhos, das veredas de Grande

Sertão: Veredas.

Ao longo da obra, muitas outras questões irão sobressaltar o leitor. Cada uma aparece

proposta no meio das veredas, convidando e enredando o leitor em mais profundos pactos de

leitura, instaurando a necessidade da apropriação de um pacto próprio. São muitas as

questões, são muitos os pactos de leitura passíveis de serem contratados. O maior deles é o

pacto que se insere na tensão de vida e de morte, e que propõe a questão do destino do

humano. Há na questão do destino, sustentada pelas questões vida-morte, um misterioso

fluxo, que traz muitas outras questões fundamentais. O leitor atentíssimo a essa força de

mútuo pertencimento das questões, será capaz de ligá-las, formando um grande rio de

questões, promovendo a convergência de todas, dando vazão a afluentes, córregos, riachos,

todos espelhos d‘água. Águas que espelham o profundo e o raso da travessia humana. E estas

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confluências serão a própria leitura: um contrato de leitura, e um redemunho de questões.

Assim, esse leitor irá reunir, o mais possível, as questões, as veredas de questionamento, para

daí re-inaugurar a obra, enquanto leitura.

O mistério da obra se deixa ver no convite, no afeto, no pacto, no impacto que cada

questão poderá promover. Sendo que a grande questão, o grande rio de questões, nesta

promessa de leitura, ou seja, a contratação do grande pacto estará disponível lá onde a obra

será elevada ao âmbito originário de suas questões mais próprias: a dimensão do humano.

Assim, a perspectiva que se constitui na leitura deve se manter conectada com o acontecer

epocal da obra, para manter viva sua promessa. A promessa da obra Grande Sertão: Veredas

deve ser entendida como uma elaboração fundamental dos conflitos existenciais que

constituem a travessia da vida de todo e qualquer homem. O grande mistério da obra está,

justamente, na unidade da multiplicidade de conflitos e questões, no fundo vivo de todas as

suas questões, a saber, a potência do ser e vigorar do humano, constituindo-se como envio do

ser numa época, num prazo destinado à apropriação das questões herdadas que perfazem a

humanidade do homem.

Das muitas questões que poderiam ser ressaltados a partir da obra, que dariam a ver sua

promessa, uma chamou mais atenção. Ao longo da leitura, esta questão aparecia abrindo-se,

sempre correndo por debaixo dos pés: a temática do tempo. O que é o tempo, na obra? O que

diz o tempo na obra? Como ele se realiza? Em quais instâncias, dimensões? Em virtude do

quê o tempo é tempo em Grande Sertão: Veredas? Como a narrativa se oferece a uma

interpretação temporal? Aí está posta uma promessa de leitura, um pacto possível.

Apresentada como questionamento fundamental na obra Grande Sertão: Veredas, a

questão da temporalidade abre o desafio de se pensar as mais importantes questões

existenciais do homem, na medida em que a obra convida a pensar os envios de Riobaldo

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como envios de ser, que perfazem, também, a vida, isto é, o destino de todo e qualquer

homem humano. A questão da temporalidade traz consigo a questão mesma do que é ser

homem: do que é isto, o homem, enquanto atravessamento de caminho próprio; do que é isto,

o homem, enquanto ser a sua própria temporalização; do que é isto, o homem, enquanto envio

de ser propriamente si-mesmo. Por isso, nosso título: Ser homem no Grande Sertão:

Travessia, Tempo, Ser. Assim, as questões constitutivas da travessia humana, ao ganhar corpo

a partir da sucessão de acontecimentos, envios e desvios do homem/jagunço que foi Riobaldo,

tais questões com-prometem tanto a obra como a discussão da temporalidade, num mesmo

diálogo. Comprometem-se mutuamente num empenho de enfrentamento do desafio de travar

um diálogo entre o que é uni-versal e o que se dá na tra-vessia de Riobaldo. Isso porque a

própria palavra travessia já traz em si mesma o desafio do universal e particular, vertendo-se

enquanto o tornar-se o próprio que se é e deve ser, diante da mesma travessia que a todos foi

dada: o ser homem humano. Existe é homem humano: travessia. Isto quer dizer: o que existe,

ou seja, o que é próprio do existir, é, propriamente, o homem humano universal, que sempre e

somente é travessia se for travessia própria.

Na tentativa de corresponder a tão elevado convite, proposto pela obra Grande Sertão:

Veredas, nossa investigação se subdividirá, pois, em três momentos. O primeiro momento

intitulado, O Projeto Compreensivo da Travessia de Riobaldo, pretende mostrar de maneira

introdutória o enraizamento da questão da temporalidade no interior da obra Grande Sertão:

Veredas. Segundo a análise de uma passagem da obra, serão levantadas questões que

dialoguem diretamente com o questionamento da temporalidade. A ideia é mostrar que a

própria mobilização da narrativa em si, enquanto impulso de auto-compreensão, materializado

na necessidade de Riobaldo compreender sua travessia de vida, decorre de um núcleo de

questões que estão necessariamente relacionadas com o questionamento da originariedade

misteriosa do tempo. A hipótese inicial é que Riobaldo narra sua vida, e, ao narrá-la realiza o

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seu impulso especulativo de decifração da vida e da morte, cedendo corpo e matéria para a

potência de sucessão e vertência que advém do próprio tempo. No entanto, o vertedouro do

tempo aparecerá existencialmente no homem tão somente como ações, mobilizadas por afetos

fundamentais.

No capítulo II, O Destino de Riobaldo: do Medo, da Coragem, serão questionados

justamente esses afetos fundamentais que atravessaram Riobaldo, e que irão compor sua

travessia. Neste capítulo, realizaremos uma leitura do episódio da iniciação da travessia de

Riobaldo. Ali encontraremos as marcas profundas que constituíram e impulsionaram as ações

do nosso narrador. Numa busca de auto-compreensão de si mesmo, Riobaldo descobre a

necessidade de seu destino, descobre a necessidade que é ter-de-ser corajoso para realizar

suas ações mais próprias. Com o seu rito iniciático, Riobaldo inaugura uma caminhada de

auto-reconhecimento dos próprios limites e possibilidades, à medida que descobre-se

constituído de medo e coragem. Esse processo se inicia naquela breve travessia, para se

concretizar ao longo da sua vida. Não obstante esse processo só encontrar termo na hora da

morte, demarcaremos o episódio do pacto como o ponto alto do reconhecimento do seu

próprio, o reconhecimento do modo de ser que é o modo de ser-si-mesmo mais próprio. Esse

auto-reconhecimento irá ensejar a investigação da questão da liberdade como inserção no

círculo tensional entre possibilidade e limite.

Assim, no capítulo III, A travessia de Riobaldo: liberdade, ação, temporalidade, será o

momento de investigar propriamente as relações de circularidade existentes entre as questões

fundamentais que se apresentaram no projeto compreensivo de Riobaldo, a saber: liberdade,

ação e tempo. Na verdade, todas essas questões comparecem em toda a investigação, porém,

sem lhes serem reconhecidas as delimitações temáticas. Ao analisarmos o episódio do pacto,

encontraremos a oportunidade de afirmar a tarefa fundamental da travessia de Riobaldo como

realização de vida, no ser e precisar ser o si mesmo que poderia e deveria ser. Isto se constitui

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propriamente como ação e liberdade, realizando-se como instante temporal originário,

comportando, nesse círculo, o importante de sua travessia. Comportando a tensão existencial

entre vida e morte.

Deste modo, a obra Grande Sertão: Veredas irá refletir fundamentalmente um modo de

ser homem, e irá colocar em questão a vida, entendida como conquista existencial das

condições originárias do tempo. Isto pretende dizer que viver é apropriar-se da ação

necessariamente própria e livre que se perfaz num atravessamento de caminho. Aí estarão

dispostas as condições originárias da temporalização própria do tempo. Assim, tempo será

estruturado por ação e liberdade, enquanto temporalização do atravessamento corajoso dos

caminhozinhos da humanidade do homem. Eis a tese que deverá ser atravessada.

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I. O PROJETO COMPREENSIVO DA TRAVESSIA DE RIOBALDO

Por que Riobaldo conta a travessia da sua vida? Encontrar respostas para esta pergunta

promoverá o encaminhamento e desdobramento de nossa investigação. Riobaldo contou pela

primeira vez sua história ao Compadre Quelemém para que sua dor passasse.1 Riobaldo tinha

uma dor! Qual foi a dor de Riobaldo, que o motivou a contar sua história? Sua dor decorre de

um fato, isto é, de um feito, decorre da possibilidade de ter vendido sua alma para o diabo.

Riobaldo conta para Quelemém sua travessia e alivia sua dor. Através do Compadre

Quelemém2, seu com-padre clemente, Riobaldo ganha o alívio para essa dor, ganha o perdão,

ganha a inocência de sua culpa3: ―Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase

iguais...‖4. Em sendo iguais, a dor de Riobaldo é também a dor de ter comprado sua alma do

diabo. Como comprou? Comprou ou vendeu? Comprou e vendeu?

Essa é uma questão da travessia de Riobaldo: a compra/venda. Questão que o faz contar

sua travessia, a travessia de sua vida. Mas, porque estamos tratando de travessia de vida, esta

não é a única questão que aparece na obra Grande Sertão: Veredas, como não é a única

questão que impulsiona o contar de Riobaldo. Por se tratar de atravessamento de vida, há

muitas outras grandes questões. Com a vida, vivendo a vida, se aprende a viver e vivendo ―se

1 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 607.

2 Cf. o Professor Manuel Antônio de Castro, em seu ensaio Grande ser-tao: diálogos amorosos, ―Certamente o

nome Quelemém está ligado à corruptela popular do nome Clemente. Nele e por ele o sagrado exerce a sua

clemência, pois a questão que acompanha as indagações de Riobaldo está ligada à culpa. Na obra, porém, esta

questão está ligada à questão do destino‖, CASTRO, Manuel Antônio de. Grande Ser-tao: diálogos amorosos. In:

Veredas no sertão rosiano. Org. Antônio Carlos Secchin [et al]. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, pp. 160-161.

3 A propósito da questão da culpa de Riobaldo, o Professor Eduardo F. Coutinho, em seu livro Grande sertão:

veredas. Travessias, afirma que a culpa ―constitui a base das especulações metafísicas que Riobaldo desenvolve

mais tarde e que, por sua vez, motivam o relato de sua vida ao interlocutor‖, COUTINHO, Eduardo F. Grande

sertão: veredas. Travessias. 1.ed. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 98. Essa questão será retomada em nosso

capítulo III, item 1. O Pacto e a culpa.

4 ROSA, 2006, p. 607.

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aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas‖5. Que perguntas, que questões se

aprende a fazer, vivendo? Aprende-se com a vida a elaborar outras maiores questões acerca da

própria vida. Que outra maior questão Riobaldo fez a cerca de sua vida? O que é a vida? Vida:

―Ah, esta vida, às não vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande‖6. Vida é

travessia perigosa, e perigo é a travessia da vida.7

Riobaldo contou a grande travessia8 perigosa que foi sua vida. Por quê? Ele responde:

―Conto minha vida, que não entendi‖9. Riobaldo conta o que não entendeu da travessia da sua

vida; contou para que a vida não ficasse ―sendo sempre o confuso dessa doideira que é‖10

. É

preciso achar o norteado da vida, é preciso encontrar o norte, o sentido da vida. Por isso

contou. Riobaldo precisava entender a grandeza da vida, os grandes perigos pelos quais foi

atravessado, suas culpas, suas dores, sua vida, suas questões, e também seus amores.

Precisava entender tudo o que há de mais importante na vida. E para entender sua vida, era

preciso entrar no círculo de compreensão da própria vida, isto é, precisava ser lançado,

precisava ser jogado na vida do sertão para viver, e além disso, precisava aprender a conviver

com a morte. Pois, a travessia da vida é a questão do viver entre a vida e a morte.11

Querer

entender, querer compreender a sua travessia, a travessia da sua vida, este foi o seu projeto

5 Ibid., p. 413.

6 Ibid., p. 422.

7 Cf. Ibid., p. 542.

8 A propósito da palavra travessia, o Professor Eduardo F. Coutinho afirma que ―se no nível denotativo, o

vocábulo se refere às andanças de Riobaldo pelo sertão, suas marchas e contramarchas em prol da causa dos

jagunços, no plano conotativo ou simbólico, ele indica o percurso existencial empreendido pelo personagem em

busca do sentido das coisas e da condição humana. A vida, no romance, é uma travessia, busca do conhecimento,

processo de aprendizagem só interrompido na hora da morte, e cada passo dado pelo homem em seu caminho

constitui um instante de risco que o coloca diante do mistério e do desconhecido. Daí a máxima de Riobaldo:

‗Viver é muito perigoso‘‖, COUTINHO, 2013, pp. 110-111.

9 ROSA, 2006, p. 490.

10 Ibid., p. 484.

11 Cf. CASTRO, 2007, 142.

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narrativo, um projeto compreensivo12

. Queria compreender justamente a questão que é ser

entre vida e morte, a questão que é ser homem13

no Grande Sertão que é a vida.

Ao que parece, esse era o credo, a crença poético-existencial de Guimarães Rosa:

cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa

nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher

seu lugar, em servir à verdade e aos homens. [...] Por isso, tudo é muito simples para

mim, e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como o meu credo é

simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. [...] A

vida deve fazer justiça à obra, e a obra à vida.14

Encontramos nesse credo a mesma questão que motivou Riobaldo a narrar sua estória.

Riobaldo precisava cumprir a tarefa de encontrar o seu lugar e o seu tempo, para encontrar o

sentido de sua vida, para conhecer, para compreender-se a si mesmo, compreendendo sua

12

Reservadas as proporções e diferenças de interesses, o que chamamos projeto compreensivo, pode-se

identificar com o que se chamou projeto poético-existencial ou projeto moral. Em linhas gerais, pode-se

caracterizar o projeto poético-existencial, mencionado pela Professora Maria Lúcia Guimarães de Faria, como

sendo a questão fundamental de assumir as rédeas do existir e que ―que encena o advir do homem a si mesmo

como realização máxima da vocação de grandeza que se aloja em seu coração‖, FARIA, Maria Lucia Guimarães

de. O magistério rosiano do existir. Revista Diadorim. Vol. 13. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013, p. 165. A

Professora defende que as estórias de Guimarães Rosa encerram uma importante experiência existencial. Cf.

Maria Lucia, ―A mais importante hermenêutica é a da própria vida. [...] Existir é no nada, porque viver é um

contínuo atravessar sobre o abismo. A vida é perigosa, porque não cessa de se enviar em experiência. O homem

deve aprender a existir na concruz dos caminhos do bem e do mal, do dia e da noite, do ser e do não-ser, de

acordo com a insubstancialidade de sua condição de destinatário da morte. A pedagogia do autêntico existir é a

motivação que singulariza a estória rosiana‖, FARIA, 2013, p. 164. Conforme o Professor Ronaldes de Melo e

Souza, ―Riobaldo se vale do rito terapêutico da palavra, ou seja da encantação lírica ou katharmós verbal. // Em

suma: mediante a correlação analítica e interpretativa de diálogo e catarse, ou seja, mediante a clarificação

hermenêutica do diálogo cujo lógos é um katharmós verbal, nossa tese não visa senão ao desvelamento e à

compreensão do projeto moral de Riobaldo‖, SOUZA, Ronaldes de Melo e. Ficção e verdade: diálogo e catarse

em Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Clube de Poesia de Brasília, 1978, p. 20. Em uma análise do conto

O espelho, o Professor Álvaro Martins Andrade também menciona a existência de um projeto moral que

atravessa toda a obra de Guimarães Rosa. Analisando o conto ele afirma que ―Aí se encontra sob a forma de

‗resumo‘ ou ‗abreviado‘, - muitas vezes mesmo sob a forma de síntese didática. – não apenas a vir-ao-mundo, a

descoberta do mundo e a instauração do ser, mas todo o pensamento do autor, sua visão moral de mundo e de

homem, as linhas centrais do verdadeiro projeto moral que é, em última instância, toda a obra rosiana‖,

ANDRADE, Álvaro Martins. O espelho de Guimarães Rosa. In: Revista de Letras. Vol. 14 N. 1. São Paulo:

UNESP, 1972, pp. 49-71.

13 Cf. o Professor Manuel Antônio de Castro, todos os fatos que entretêm o enredo de Grande Sertão: Veredas

são, no fundo, ―pretextos para tecer, poeticamente, especulações em torno do homem e de seus problemas. O

homem problemático constitui o cerne da obra e de todo o seu desdobrar-se‖, CASTRO, Manuel Antônio de. O

homem provisório no grande ser-tão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

14 LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.) Guimarães Rosa:

seleção de textos. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, pp. 73-74.

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18

travessia, seu ser, compreendendo o seu prazo, o seu quinhão, o seu ―entre-tempo

determinado pelo nascimento e pela morte‖15

, entre onde se dá o seu destino como travessia.

Riobaldo, pois, narra para compreender sua travessia. Nossa investigação irá procurar

explicitar esse projeto compreensivo. Propomos marcar o princípio dessa tarefa interpretativa

de tempo, de travessia, de ser a partir da seguinte passagem de Grande Sertão: Veredas16

:

Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida

de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e

da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao

suceder. O que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho do

que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!17

15

CASTRO, 2007, p. 153.

16 A partir daqui, GSV.

17 ROSA, 2006, p. 100.

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19

1. Decifração

Para compreendermos adequadamente esta passagem, deve-se pensar cada frase, numa

procura cuidadosa. Neste ponto, se inaugura um momento privilegiado de interpretação.

Riobaldo inicia esta passagem, afirmando: Eu queria decifrar as coisas que são importantes.

Na primeira frase destacada, Riobaldo declara sua pretensão, que poderia ser entendida como

um querer, extensível a todos os fatos e feitos narrados. Assim, pode-se considerar esse querer

como sendo o querer de seu relato. Esta é a sua pro-cura, seu empenho existencial de cura,

cura para sua dor. Riobaldo já não está mais moendo no a’spro e possui algum distanciamento

dos acontecimentos narrados. Aqui, o leitor não tem acesso ao exato vivido, à vida vivida,

mas sim à elaboração narrativa do que foi experienciado. Mas tanto a vida vivida como a vida

experienciada compõem uma única e mesma travessia. Riobaldo queria se apropriar do que

foi importante para a sua travessia, queria se apropriar do que lhe era próprio. E o que nos é

próprio a todos nós? O que nos é mais próprio consiste em aquiescer na apropriação do

sentido e vigor do viver mesmo, que é um deixar-se ser tomado pela morte, pelo nada, pelo

vazio que nos encaminha a partir do vir-a-ser da travessia.18

O momento da narração é um momento de meditação e mediação dos fatos e feitos, pois

há prazo para pensar, para especular ideia, há tempo para contar. O que interessa agora é que

o especular ideia, o pensar que está em causa nesta passagem não é qualquer pensar, mas é

18

O Professor Manuel Antônio de Castro responde: ―O que nos é próprio é o ser. Não simplesmente o ente como

vida vivida, mas o ente enquanto ser na vida experienciada. Na vida experienciada não é o ente o sujeito. Não.

Ela consiste em deixar-se ser tomada pela morte como sentido e vigor do viver, enquanto eros, então surge a

unidade. Fazer a travessia é deixar-se ser tomado pela morte. Então o morrer não é um fim, um término da vida,

mas a vida potencializada pelo não-ser, pelo nada, pelo vazio, no vir-a-ser em que consiste a travessia como

destino. Esse vir-a-ser é sempre um ser-do-entre, um entre eros e morte. Onde a medida do ser é o não-ser, onde

a medida de eros é a morte. Nesta experienciação não há mais dois Riobaldos, mas um único trans-figurado por

um outro agir. Aos dois Riobaldos correspondem dois agires, onde um busca, no fundo, o outro para o

manifestar numa realização única enquanto travessia. O que vigora aí, portanto, é a tensão abismal do ‗entre‘,

enquanto o ‗mesmo‘‖, CASTRO, 2007, p. 153.

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20

sim um pensar marcado por uma inclinação, qual seja a decifração. Riobaldo quer decifrar

algo, não quer simplesmente pensar por pensar, por raciocinar, por se ocupar e esperdiçar

tempo. Ele quer descobrir o que é importante. Riobaldo quer descobrir o mistério19

de sua

travessia, quer descobrir, quer decifrar o modo como poderá se apropriar do sentido e vigor do

seu viver, da sua travessia. Isto significa que ele quer compreender, quer se apropriar no

sentido mesmo dos mistérios de sua travessia. Esta decifração é tal como a resolução de um

enigma. Mas que enigma? Qual foi o enigma mais importante da sua vida? O que é o mais

digno de se pôr em questão, que poderá ocupar e preocupar a especulação de Riobaldo,

enquanto se empenha em narrar e decifrar?

A palavra de-cifrar já traz em si o anúncio de um enigma. Cifrar significa codificar,

para ocultar o sentido, transpor para um código secreto, para que poucas pessoas possam

compreender, só umas raríssimas pessoas20

. A palavra decifrar vem da língua grega, da

palavra kryptestai. Encontramos no fragmento 123 de Heráclito o sentido da decifração que

Riobaldo estava empenhado em realizar. Diz o fragmento: Physis kryptestai philei. O

Professor Manuel traduz como: ―A nascividade excessiva apropria-se no nada excessivo‖21

. A

nascividade excessiva de que fala o fragmento é a própria Vida em sua totalidade. É sua

totalidade que cria e recria tudo o que há, tudo o que vive, tudo o que se mostra e manifesta-se

em sua força inauguradora. A totalidade da Vida, da nascividade, é na verdade a própria

realidade. A totalidade da realidade é a nascividade excessiva, a physis. Ocorre que essa força,

19

O Professor Álvaro Martins Andrade, em seu ensaio O espelho de Guimarães Rosa, compara GSV e o conto.

Ele afirma: ―O problema do narrador é o mesmo de Riobaldo no Grande Sertão: Veredas [...] o mistério do

humano. Por isso estrutura e forma narrativa são tão semelhantes em peças tão diferentes‖. ANDRADE, 1972, p.

51. Como se afirma no conto, tudo é mistério, e ―Nessa categoria do mistério será o homem quem permanecerá

sempre como núcleo, fonte e desafio‖, ANDRADE, 1972, p.52.

20 ROSA, 2006, p. 100.

21 CASTRO, 2007, p. 151. Numa outra tradução/interpretação: ―A realidade ama velar-se. Ou seja: O que não

cessa de vigorar desdobrando-se apropria-se no velar-se. O que não cessa de vigorar velando-se é o acontecer

poético da realidade.‖, CASTRO, Manuel Antônio de. "Vigorar, 1". In: CASTRO, Manuel Antônio

de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em:

http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Vigorar.

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essa vitalidade, essa inauguração intensiva, constante, incessante, no que se dá e se realiza,

também se oculta excessivamente e se dirige à destruição. Essa ocultação é co-pertinente e co-

originária à nascividade excessiva. Riobaldo quer decifrar justamente a apropriação da

nascividade de sua vida, que se apropria na ocultação de sua morte, ou seja, o velar-se

excessivo de sua vida. A Vida, a nascividade poética do homem, entendida como fato da

realidade, em todas as suas possibilidades de envios e desvios, é elevada, é apropriada em sua

destruição. O homem em sua misteriosa sucessividade de estados, ao longo de nascimento e

morte, é devorado por essa força de ocultação; esse é o kryptestai da physis, compreendido

existencialmente. Esse movimento de brotação por si e para si da Vida, se oculta com a

mesma intensidade e vigor excessivo no sempre velar-se da Morte. Isto, o homem observa

como passagem de tempo, como atravessamento de vida. É justo o engendramento cíclico e

autônomo dessa força, desse vigor, (nascimento-morte, velar-desvelar) que nos dá a

experiência do tempo, e de sua sucessividade.

Sem perder de vista aqui o sentido fundamental da narrativa GSV, do querer decifrar as

coisas importantes, podemos dizer que o impulso de perguntar sobre o que é

fundamentalmente importante, pode-se dizer também como um perguntar pela Vida, pela

realização concreta da Vida como tempo, pelo acontecer desse mistério, desse enigma que

raríssimas pessoas estão preparadas para compreender.

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22

2. Vertências

Eis a segunda frase: E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço,

mas a matéria vertente. Nela está sendo tratado o que é importante, pensado a partir do que

será narrado, do que irá aparecer na fala do narrador ao longo da obra. Agora Riobaldo

explicita um pouco mais o que ganhará importância e o que será contado, em vista de sua

especulação. Primeiramente, de modo negativo, Riobaldo afirma o que não está em causa em

sua contação. Ele não está tematizando o modo de vida do sertanejo, um modo de vida dentre

muitos outros possíveis, ainda que seja o modo de vida que constitui a vida do jagunço

Riobaldo. Ainda que toda a narrativa seja imanente ao universo sertanejo, mais

especificamente, ao modo de vida do jagunço, não é isto o que está em questão. O modo de

vida do jagunço não é a questão fundante da obra, ou melhor, não é desta matéria que trata a

narração. A questão a se considerar é outra. Mas o que é ser jagunço? É curioso se deparar

com a pergunta/questão que por diversas vezes o narrador de GSV enuncia: quem foi o

jagunço Riobaldo?22

Ainda que as questões fundamentais da obra sejam configuradas a partir

do modo de vida do jagunço Riobaldo, não está nisto o que deve ser pensado. O que é, pois, o

mais fundamental e intrigante, enigmático, que deve ser decifrado? O que merece toda a

atenção, segundo o dito e narrado, é a matéria vertente. O que se conta, pois, o que se narra, o

que merece importância é a matéria vertente.

22

A seguir, destaco algumas das passagens que sugerem um autoquestionamento da existência por parte de

Riobaldo. Em momento apropriado pretendo voltar a esta questão com mais detalhes. Por ora, destaco as

passagens: ―Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?‖, ROSA, 2006,

p. 311; ―é preciso, por aí, o senhor ver: quem é que era e que foi aquele jagunço Riobaldo!‖, ibid., p. 471; ―O

jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja.‖, ibid., p. 216;

―Eu era assim. Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutu-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o

jagunço Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na remotidão.‖, ibid., p. 544; ―sendo o chefe Urutu-

Branco, mesmo dizer – o jagunço Riobaldo...‖, ibid., p. 578.

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23

O que podemos entender por essa expressão que só aparece nesta passagem? A matéria

aí possui a qualidade de ser vertente. A matéria é vertente por assumir para si a ação de verter

e isto a qualifica enquanto vertência. Verter diz fundamentalmente fazer correr as águas de

um rio. Pode-se entender verter ainda como ressumar. Ressumar diz o mesmo, porém

diferente. A palavra verter entendida como ressumar enfatiza um deixar sair, dando passagem

às águas de um rio até que se chegue ao sumo, à suma perfeição, ao perfeito, acabado, cheio

de si mesmo, puro e inocente. O que se verte é a matéria vertente da vida de Riobaldo, sua

travessia, verte-se a si mesma como a própria matéria vertente. A palavra verter vem do latim

vértĕre, que por sua vez vem do verbo vertō (vortō). Vertō resguarda sua proximidade com

vertex/vortex, que em seu sentido próprio aponta para turbilhão, redemoinho, de água, de

vento ou de fogo. Vertō pode significar, em sentido próprio, voltar e virar e ainda transformar

e mudar. Reflexivamente a palavra vertō indica o movimento de voltar-se para, transformar-

se, para narrar-se a si mesmo. É importante destacar que o verter de vertō, o mesmo que

aparece juntamente com a preposição/prevérbio trāns, contido na palavra tra-vessia,

atravessar, atravessamento: ―Existe é homem humano. Travessia‖23

.

Podemos tomar a expressão matéria vertente como sendo uma tal matéria que torna-se

e entorna-se, que se derrama como a água de um rio, dos rios que atravessam a travessia de

Riobaldo. A matéria que se verte como a vertência enigmática da materialidade imaterial do

tempo, o correr e escorrer do tempo, em direção à sua consumação. Podemos tomá-la como

a vertência da matéria-tempo, que corre da vida para a morte, da morte para a vida, num

fluxo vazante que inaugura possibilidades e limites para as realizações humanas. Matéria

vertente é aquilo que Riobaldo quer narrar.

23

ROSA, 2006, p. 608.

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24

3. Medo, Coragem

A próxima fala de Riobaldo exige uma atenção de leitura especial. Só para lembrar, diz

Riobaldo: Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer

tantos atos, dar corpo ao suceder. Esta fala deve ser meditada em três momentos, pois há

muito o que pensar em cada uma de suas partes, apesar de sua aparente simplicidade. Querer

entender é o mesmo que querer decifrar. Isto caracteriza o querer de Riobaldo como um

querer especulativo, existencial, fundamental. Não se trata aqui, em GSV, de um querer que

quer algo, que quer uma coisa. O querer que está aqui em jogo é o querer com-preender. Mas

o que se quer compreender, isto sim, é a questão, é uma questão e, como tal, merece a devida

atenção. O querer de Riobaldo mostra-se como um tal impulso, uma tal inclinação que possui

o mesmo enraizamento do querer da filosofia24

, que quer entender a realidade e o real, sua

gênese. A frase tomada como questão para a nossa leitura está dividida em três partes:

1. Eu queria entender do medo e da coragem;

2. e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos;

3. dar corpo ao suceder.

Nas duas primeiras partes, veem-se duas ideias complementares. Na primeira Riobaldo

quer entender sobre o medo e sobre a coragem. Pode-se supor que o que está em questão

nesses dois humores (medo e coragem) é a possibilidade do agir, da ação, entendida como

decisão, que faculta ao homem o fazer tantos atos. Mas ser e estar simplesmente na

possibilidade do medo e/ou da coragem não satisfaz o mover-se da ação, assim como não

24

Cf. o Professor Álvaro Martins Andrade, ―Embora não se possa dizer que Guimarães Rosa é um filósofo de

sistema, – no sentido em que se falaria de um spinosa ou de um Kant, – tampouco se pode deixar de reconhecer

a formulação de um pensamento, – no sentido de um conjunto de significações constantes, passível de

organização e estruturação coerentes. Daí ser possível falar-se de uma visão de mundo, de uma concepção de

homem, de uma epistemologia e de uma ética rosianas‖, ANDRADE, 1972, p. 49.

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25

satisfaz o querer entender de Riobaldo. Ele quer entender mais. Quer entender como tais

humores empurram ou não o homem a realizações. Ele quer entender o que move o homem a

agir, ele quer entender também a gã. Pode se dizer o mesmo de outra maneira: Riobaldo quer

entender as ações e suas disposições de humor, ou seja, estão em jogo a ação e o querer que

também move a ação, a gana. Parece que a última parte da frase arremata, reúne, engloba as

duas outras partes e as reúne na enunciação. Riobaldo quer entender do medo e da coragem e

da gã que promove ação, ou seja, ele quer dar corpo ao suceder das ações no tempo de uma

vida.

Riobaldo quer entender do medo e da coragem. O que tem o medo e a coragem de tão

importantes, a ponto de Riobaldo querer entender acerca desses dois humores fundamentais?

O que esses dois humores poderiam esclarecer sobre a questão do tempo, em GSV? Reinaldo

Diadorim foi quem ensinou a Riobaldo a importância da coragem: ―Carece de ter coragem.

Carece de ter muita coragem...‖25

. Esse é o destino do homem: ter coragem. Essas disposições

de humor determinam a ação humana. Mas como determinam? Coragem é o humor exigido

pela própria vida.26

A coragem deve ser um salto, o maior dos saltos: tem coragem quem salta

na vida, para a vida. Enquanto disposição, ela é disposição de mundo e de vida. Coragem

assim entendida é afeto, pathos de vida, o pathos do mundo, seu vau27

. O fundamento do

mundo é a própria coragem. Neste sentido, coragem fica sendo o que oportuniza a passagem,

isto é, a travessia do humano na terra.

E qual é a questão que está na raiz do sentir medo e/ou coragem é algo ainda mais

fundamental, ainda mais radical para a constituição do humano: a liberdade. O medo e a

coragem, radicam na questão da liberdade. O que se deve entender por liberdade? Não

25

ROSA, 2006, p. 108.

26 Cf. ibid., p. 318.

27 Ibid., p. 305.

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26

estamos interessados em entender liberdade como liberação de, liberação de impedimentos,

liberação de limites. A liberdade, segundo Riobaldo, deve ser entendida enquanto aquilo que

se faz, se realiza, no interior mesmo dos mais graves limites, liberdade para saltar sobre si

mesmo, liberdade para o salto, um salto no interior dos próprios limites, da própria travessia.

Liberdade exige a coragem do salto sobre si mesmo, para alcançar a si mesmo. O homem não

precisa ser livre de para alcançar liberdade; mas deve ser livre para.28

28

Cf. Do caminho do criador, NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para

ninguém. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 93.

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27

4. Gã

Além do medo e da coragem, Riobaldo queria entender também da gã que empurra a

gente para fazer tantos atos. Riobaldo quer entender sobre a gã. O que é isto, gã? Diante

dessa palavra, será necessário decidir acerca de seu sentido, que sentido ela irá receber. Como

diz Riobaldo, ―Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe‖29

.

Manuel Antônio de Castro ao interpretar a palavra gã, decide-se por conceder-lhe o

sentido da primeira gutural sonora do alfabeto sânscrito, que corresponderia à letra G.

Teríamos, assim, a gã como sendo o próprio Guimarães e também o Grande Sertão ―numa

junção poética de nome, arte e ser‖30

. Guimarães, entendido como força de criação, assim

como a grandiosidade da abertura do sertão, estariam em comunhão, comungando da mesma

força poética. Ambos os nomes estão numa referência privilegiada para com a abertura de ser.

Um e outro na realização do obrar da linguagem, da arte. Essa interpretação está

perfeitamente em concordância com a pressuposição da poética de Rosa, que afirma a

interpenetração entre linguagem e vida.31

Assim, o que estaria em questão é o

autoconhecimento de si (homem) e da realidade (sertão), o inaugural, e por isso poético, da

relação entre o homem e o sertão, na afluência originária da copertinência de ambos, que é o

próprio fundar da realidade.

Numa outra interpretação, Nei Leandro de Castro, em seu inventário vocabular de GSV,

afirma que gã é a forma apocopada da palavra gana, possuindo um sentido de ímpeto.32

Esta

29

ROSA, 2006, p. 156.

30 CASTRO, 2007, p. 143.

31 Cf. LORENZ, 1991, p. 62.

32 CASTRO, Nei Leandro de. Universo e vocabulário do Grande Sertão. 2. ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982,

p. 113.

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interpretação subsiste nas traduções para o Espanhol, para o Inglês e para o Alemão. A

palavra foi traduzida para o Inglês como passions33

, paixões. Para o espanhol, a palavra gã

passou a gana34

, vontade. Para o alemão, a palavra é vertida para Lust35

. Nas três traduções,

gã passou a significar no idioma final o sentido de ímpeto, desejo, vontade intensa, entendidas

como impulso apetitivo, uma forte disposição de humor, que mobilizaria o agir humano.

Assim entendido o sentido da palavra, Riobaldo quer compreender o princípio que move a

ação. Ele quer entender o princípio, a origem, a gênese que move o homem a realizar tantos

atos. Assim, é a partir da reflexão de si e a partir de si, que ele busca entender a força das

ações, o princípio, a origem. Não é de um conceito universal que ele irá principiar o

entendimento, mas é a partir da hermenêutica de suas próprias ações, de seus próprios envios

e desvios, que Riobaldo procura compreender-se. Riobaldo quer compreender o princípio que

move e empurra o homem a realizar tantas ações. Quais ações? Os tantos atos da sua

travessia.

Será ainda ocasião de pensar o que é agir e suas ações ao longo da obra. Por ora, temos

duas possíveis amarrações para a palavra gã, até aqui: a primeira corresponde a uma

referência ontológica fundamental, relação constituída e principiada no entrelaçamento entre o

33

Segue todo o trecho que está sendo interpretado, na tradução para o Inglês: ―I would like to decipher the things

that matter. And what I am relating is not the life of a backwoodsman, a jagunço though he was, but relevant

matters. I would like to understand about fear and about courage, and about the passions that drive us into doing

so many things, that shape to events. What leads us into strange, evil behavior is that we are so close to that

which is ours, by right, and to do not know it, do not, do not!‖, in ROSA, Guimarães. The devil to pay: in the

backlands. Tradução de James L. Taylor e Harriet de Onís. New York: Alfred A Knopf, 1963, p. 83.

34 Segue todo o trecho que está sendo interpretado, na tradução para o Espanhol: ―Yo querría descifrar las cosas

que son importantes. Y lo que estoy contando no es una vida de sertanero, sea que fuese yagunzo, sino la materia

vertiente. Querría entender del miedo y del valor, y de la gana que le empuja a uno a hacer tantos actos, dar

cuerpo al suceder. Lo que le induce a uno malas acciones extrañas es que uno está cerquita de lo que es nuestro,

por derecho, y no lo sabe, no lo sabe, ¡no lo sabe!‖, in ROSA, Guimarães. Gran sertón: veredas. Venezuela:

Fundación Editorial el perro y la rana, 2008, p. 93.

35 Segue todo o trecho que está sendo interpretado, na tradução para o Alemão: ―Was ich schildern möchte, ist

nicht das Leben eines Sertanejo, der vielleicht ein Jagunço war, sondern das Bedeutsame. Ich möchte so gern

wissen, wie es um die Angst, um den Mut bestellt ist, um die Lust, die den Menschen zu den absonderlichsten

Taten treibt und den Ereignissen ihren Stempel aufdrückt. Was die Leute zu seltsamen bösen Taten verführt, ist,

daß wir unserem Eigentum so nahe sind und es nicht wissen, nicht wissen, nicht wissen!‖, in ROSA, Guimarães.

Grande sertão: roman. Tradução de Curt Meyer-Clason. Köln-Berlin: Kiepenheuer & Witsch, 1964, p. 96.

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homem (Guimarães) e a abertura da realidade (Grande Sertão), na medida em que se constitui

como o querer entender de Riobaldo; a segunda está configurada como a força, o impulso, o

motor do agir humano, desvelando-se como um tipo de humor, que levaria a realizar ações, as

ações humanas. Além dessas direções, o que mais a palavra pode receber? Há mais alguma

articulação possível? Sempre há! O que mais pode caber na gã do humano?

Há um outro sentido para a palavra gã. Em nossa Língua a palavra designa também um

instrumento musical, o gã, que é mais conhecido como agogô36

. A palavra agogô acena para

outros sentidos, segundo o vocabulário da Língua Yoruba37

, de onde ela provém. Os

substantivos ago ou agogo, significam sino ou relógio. Ago pode ser também um copo, donde

se pode verter água para se beber, uma caixa pequena, onde se pode ocultar uma joia. É

interessante ainda a palavra ãgó, que pode ser usada em expressões como sair do caminho,

sair da minha rota, ou sair do caminho do cavalo. Temos na proximidade de agogo a palavra

akòko, que significa um ponto temporal (passado, presente, futuro), uma dimensão da

temporalização do tempo. Outra palavra bem próxima à akòko é akókùn, que significa a parte

de algo que é deixada para trás, o que resta, depois que algo se foi ou que se finalizou, que se

consumou. A variação akókà indica aquilo que é primeiro numa série, o primeiro que é

contado numa série. Por fim, temos ainda a palavra akóki, cuja função é saudar quem se

encontra num caminho.

Há um estudo do pesquisador Edilberto José de Macedo Fonseca sobre o agogô. Em seu

ensaio “...Dar Rum ao Orixá...” ritmo e rito nos candomblés ketu-nagô38

, ressalta a

36

Atualmente, a palavra gã (agogô) é reconhecida como pertencente ao vocabulário oficial de nossa Língua,

constando do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5ª edição, de 2009, obra realizada pela Academia

Brasileira de Letras. A consulta da palavra está disponível na página eletrônica da Instituição.

37 BOWEN, T. J. Grammar and Dictionary of the Yuroba Language. New York: Appleton & Co., 1858.

38 FONSECA, Edilberto José de Macedo. “...Dar Rum ao Orixá...” ritmo e rito nos candomblés ketu-nagô. In:

Revista Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares. v. 3, n. 1. Rio de Janeiro: UERJ – Instituto de Artes,

2006.

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30

importância do desempenho do gã em relação aos demais instrumentos percussivos, nos

rituais religiosos do povo Nagô, cuja língua é o Ioruba. O gã se insere como um instrumento

guia, que organiza ritmicamente o andamento dos outros instrumentos. Ele ―possui o status de

―maestro‖ no conjunto orquestral. Seus toques servem de base para a prática dos atabaques e

funcionam como ponto de orientação para a performance dos tocadores, os alabês e ogãs‖39

.

Neste sentido, gã poderia ser, segundo o que Riobaldo queria entender, a força do

tempo que dá o ritmo e impulsiona o agir do homem.40

Ou poderia ser simplesmente uma

forma apocopada para a palavra vingança, gã, procedimento semelhante realizado pelo autor

de GSV, alterando a forma esperada para a grafia da palavra grandeza, onde aparece grã41

.

Pois vingança mobiliza muita coisa, principalmente ―obrar vingança pela morte atraiçoada de

Joca Ramiro!...‖42

Mas, deixemo-la descansar e decidir por si mesma.

39

FONSECA, 2006, p. 103.

40 Esta interpretação para a palavra gã, certamente, ultrapassa as pretensões de Guimarães Rosa. Basta recorrer à

indicação das traduções, acima destacadas, para constatar que sua intenção aponta para um sentido diverso

dessas articulações apresentadas. Comparando as traduções, observa-se uma regularidade de sentido em sua

tradução para outros idiomas. Vale ainda lembrar que Rosa aprovou o trabalho de tradução de Meyer-Clason,

que verteu Grande Sertão: Veredas para o Alemão, tendo o autor, ele mesmo, acompanhado a tradução da obra,

cf. ROSA, Guimarães. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason:

(1958-1967). Org. e notas de Maria apparecida Faria Marcondes Bussolotti. Rio de Janeiro: Nova Fronteira:

Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2003. No entanto, mesmo levando em consideração este

fato, ainda assim isto não inviabiliza a interpretação. Em entrevista, o próprio autor se considera aberto à

possibilidade de ser convencido de que há metáforas onde ele mesmo não havia previsto. A propósito de

possíveis conflitos com os tradutores de sua obra, em especial, o Curt Meyer-Clason, Guimarães Rosa declara o

seguinte: ―Confesso com muito prazer que Meyer-Clason me convenceu de que uma passagem de meu romance

– na realidade se tratava de uma metáfora – era mais convincente na tradução alemã que em meu original. É

claro que aceito isso, e em uma nova edição brasileira pretendo adaptar esta passagem à versão que Meyer-

Clason encontrou em alemão. A isto eu chamo cooperação, co-pensamento‖, LORENZ, 1991, p. 96.

41 Cf. Riobaldo, ―Afirmo que não entendi a grã do que ele disse, porque naquela hora as ideias nossas estavam

acompanhadas surdas, um do outro a gente desregulava‖, ROSA, 2006, p. 533. Ver a notação para grã, em

MARTINS, Nilce Sant‘Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 3. ed. São Paulo: EDUSO, 2008, p. 252.

42 ROSA, 2006, p. 446.

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31

5. Corpo da sucessão

Riobaldo queria dar corpo ao suceder. Esta expressão está diretamente relacionada ao

querer entender de Riobaldo, pois encerra a oração: Queria entender do medo e da coragem, e

da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. A questão do corpo

tem ganhado destaque no âmbito acadêmico. Mas o que é corpo?43

Todos temos um corpo,

mas quando se fala corpo, e se entende o corpo humano, um corpo material, feito de sangue e

carne, exclusivamente matéria-corpo, com suas partes, sua exterioridade, interioridade (as

entranhas), a forma, a matéria, com tudo isso temos determinado o sentido segundo o qual

será compreendido corpo, meu corpo, seu corpo. De corpo toda a gente entende. Mas não se

está tratando aqui desse corpo. Que sentido, que razão temos a oferecer para a palavra corpo,

enquanto corpo do suceder? A questão nesta passagem sobre o corpo, o dar corpo que se

questiona na obra possui outra matéria. Ele possui a matéria vertente em sua constituição.

Destacamos algumas vertências de corpo. Daí o entendimento pode começar a encorpar.

A obra diz corpo de muitas maneiras. Diz Riobaldo em algumas passagens:

1. ―o que o corpo a próprio é: coração bem batendo‖44

;

2. ―O Garanço parado quieto, sempre empinado com a frente do corpo, semelhando que o cupim ele

tivesse abraçado. A morte é corisco que sempre já veio. [...] Peguei, com meus braços: não adiantava –

era corpo. Ele estava defunto de não fechar boca – aí, defunto airado‖45

;

3. ―Aturado o que se pegou a ouvir, eram aqueles assombrados rinchos, de corposo sofrimento, aquele

rinchado medonho dos cavalos em meia-morte, que era a espada de aflição‖46

;

4. ―haviam de ter rogado praga. De pensar nisso, eu até estremecia; o que estremecia em mim: terreno do

corpo, onde está a raiz da alma‖47

;

43

Consultar o ensaio Notas Sobre o Corpo, em FOGEL, Gilvan. Notas sobre o corpo. In: Arte: corpo, mundo e

terra. Org. Manuel Antônio de Castro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

44 ROSA, 2006, p. 138.

45 Ibid., p. 215.

46 Ibid., p. 340.

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5. ―Condenado de maldito, por toda lei, aquele estrago de homem estava; remarcado: seu corpo, sua

culpa!‖48

;

6. ―A outra, Hortência, meã muito dindinha, era a Ageala, conome assim, porque o corpo dela era tão

branquinho formoso, como frio para de madrugada se abraçar...‖49

;

7. ―Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma?‖50

;

Segundo estas passagens, corpo se propõe, respectivamente, como: 1. corpo é vida; 2. corpo é

morte; 3. corpo é gravidade; 4. corpo é terra; 5. corpo é culpa; 6. corpo é prazer; 7. corpo é

amor. Claro, a determinação do corpo em cada uma das passagens poderia receber outras

direções de sentido. Porém, estamos certos de que corpo é mais do que corpo material.

Segundo o Professor Manuel Antônio de Castro, dar corpo é o modo como a obra GSV

elabora, a partir da narração de Riobaldo, a experienciação da ―referência sempre enigmática

das questões de entre-ser‖51

. Estas questões são propriamente a vida, a morte, a gravidade da

dor, a terra do sertão, a culpa, etc. Tudo isso compõe o corpo do suceder da vida, da travessia

de Riobaldo, de seu tempo. Dar corpo ao suceder significa fazer aparecer através da narração

a matéria vertente da travessia de Riobaldo. O corpo da sucessão é o prazo de Riobaldo, é o

seu tempo entre nascimento e morte, é matéria vertente, matéria vertida, corporificada,

corporificando a sucessão da travessia enquanto questão. Suceder é a própria destinação

histórica de Riobaldo, é o seu destino. Suceder diz o acontecer, o tornar-se, do verter-se, do

vir-a-ser, que na sucessão perfaz o homem que foi Riobaldo.

47

Ibid., p. 388.

48 Ibid., p. 494.

49 Ibid., p. 526.

50 Ibid., p. 576.

51 Ibid., p. 157.

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6. Ação estranha, ação própria

O que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho do que é

nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! Chegamos à última parte da fala de

Riobaldo, que conclui a explicitação do seu projeto compreensivo. Afirmam-se duas

possibilidades de afinação para o agir. Fala-se aqui de uma dupla realização que impulsiona o

agir. A primeira que logo de cara aparece é a ação estranha, e em sendo estranha, caracteriza-

se como má ação. Mas, é má por um único motivo: a ação estranha ganha essa qualidade de

ser má, justo por ser estranha, por sobrevir de fora, de um outro, o que inclina a ação vem de

outro, é externa, exterior a constituição própria de quem age. A ação é má porque é um tornar-

se, uma realização de vida, que advém de outro. Em poucas palavras, a ação não é própria.

Por oposição, temos a ação própria, apropriada, que vem, não do outro, mas de si, a

partir de si. Tem-se, pois, a ação própria e a ação imprópria. O homem que desejar realizar

boas ações, isto é, ações próprias, deve estar inicialmente atento à proveniência da ação. Isto

para quem deseja (quer) realizar boas ações. Para quem está no interesse de realizar as ações

próprias, deve estar no movimento de descoberta daquilo que nos é mais próximo. Este é o

empenho, pois, de quem deseja acertar na ação e realizar uma boa ação, no sentido do que é

próprio. Para isso acontecer, é essencial ser capaz de ver o que é próprio, o que está mais

perto, o que é nosso por direito. O problema é que a gente não sabe, ou seja, não vê. Se não

sabe como é que vai entender? Neste sentido a tarefa de concretização da ação própria deve

tornar visível o próprio, o que está perto, e ainda não se sabe. Essa é a tarefa de Riobaldo, esse

é o seu círculo vital, isto é o que ele quer entender.

Vamos tentar seguir a marcha da travessia de Riobaldo enquanto um dar-se conta de

suas ações próprias/impróprias. Procurar expor o projeto compreensivo de Riobaldo significa

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buscar elaborar esse empenho de autodescobrimento da sua travessia, que é um

atravessamento da vida em direção à morte. O caso é que para ver isso, o seu próprio, será

necessário enfrentar a questão dos afetos, a questão da liberdade, a questão da ação e a

questão da temporalidade. É através do círculo entre esses termos que veremos a travessia de

Riobaldo como homem do sertão. Tudo isso aponta para a necessidade de uma interpretação

radical da noção de tempo na obra Grande Sertão, bem como aponta para uma estranha

confluência entre esses âmbitos de questionamento. Este será o pacto de leitura que deverá ser

desdobrado daqui por diante.

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II. O DESTINO DE RIOBALDO: DO MEDO, DA CORAGEM

Para assumirmos a tarefa de explicitar o projeto compreensivo da travessia de Riobaldo,

vamos assumir aqui a investigação das marcas de medo e coragem que sua vida lhe reservou

como destino. Ao longo deste capítulo será discutido, basicamente, o destino de Riobaldo ante

o medo e a coragem. A pergunta que irá guiar a discussão aqui será: qual foi o destino de

Riobaldo: o “pobre menino do destino...”52

? Pode-se perguntar também de outra forma: o que

há por detrás do pano do destino de Riobaldo?53

Ele mesmo se questiona sobre a força

coercitiva do destino, sobre a possibilidade de alterar o destino durante o correr da vida. Há

uma passagem em que ele se pergunta sobre a relação entre o acaso e o destino: ―Ah, e se não

fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte?‖54

. E

noutra passagem, questiona sobre a possibilidade de retroceder a passagens específicas de sua

travessia: ―Será que tem um ponto certo, dele [do destino] a gente não podendo mais voltar

para trás? Travessia de minha vida‖55

. Destino e travessia, assim implicados. Riobaldo

conheceu o seu destino, ao menos em parte, à medida que mais se tornava próximo de Zé

Bebelo, convivendo e caminhando com os jagunços: ―Com eles eu estava vindo, então, o

senhor vê. Vinha, para conhecer esse destino-meu-deus. O que me animou foi ele predizer

que, quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, e ele dava baixa e alta de me ir

52

Ibid., p. 17.

53 Ibid., p. 35.

54 Cf. Riobaldo, ―Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas

importantes, todas, em caso curto de acaso foi que se conseguiram – pelo pulo fino de sem ver se dar – a sorte

momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido,

qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma respostas. As vezes essa ideia

me põe susto‖, Ibid., p. 126.

55 Ibid., p. 289.

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m‘embora‖56

. Apesar de poder debandar da travessia pelo sertão, Riobaldo não o fez e seguiu

em frente em seu destino de jagunço, alcançando, aos poucos, sua própria travessia.

Apesar de ter sido consciente, em parte, dos envios de seu destino, Riobaldo não sabia

que estava muito remarcado pelo destino de amar57

. A relação entre destino e amor é

fundamental para compreender sua travessia pelo Grande Sertão, pois que coração já é, em

parte, destino, é meio destino.58

Na verdade, Riobaldo teve mais do que um destino de amor.

Otacília foi seu destino, assim como Diadorim. Otacília foi seu destino escolhido:

Mas, por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços.

Diadorim pertencia a sina diferente. Eu vim, eu tinha escolhido para o meu amor o

amor de Otacília. Otacília – quando eu pensava nela, era mesmo como estivesse

escrevendo uma carta.59

Já com Diadorim, o destino de amor era outro:

Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo? É, toda a vida, de longe a

longe, rolando essas braças águas, de outra parte, de outra parte, de fugida, no

sertão. E uma vez ele mesmo tinha falado: – “Nós dois, Riobaldo, a gente, você e

eu... Por que é que separação é dever tão forte?...” Aquilo de chumbo era. Mas

Diadorim pensava em amor, mas Diadorim sentia ódio.60

No entanto, apesar de todo ódio, quando o destino é ―dado, maior que o miúdo, a gente ama

inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas”61

. E, ainda que fatal,

esse foi o destino de amor compartilhado por Riobaldo e Diadorim. O próprio Diadorim

pergunta a Riobaldo: ―‗Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos?‘ – ‗Reinaldo,

56

Ibid., p. 132.

57 Há duas leituras fundamentais para esta temática: o ensaio O amor na obra de Guimarães Rosa, de Benedito

Nunes, NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. São Paulo: Editora 34,

2009; e o ensaio Ser-tao: diálogos amorosos, de Manuel Antônio de Castro, CASTRO, 2007.

58 Cf. Riobaldo, ―Dormindo com um pano molhado em cima dos olhos e com a nuca repousada numa folha de

faca, de noite o destino da gente às vezes conversa, sussurra, explica, até pede para não se atrapalhar o devido,

mas ajudar. Crendice? Mas coração não é meio destino?‖, ROSA, 2006, p. 399.

59 Ibid., p. 428, grifo meu.

60 Ibid., p. 428, grifo meu.

61 Ibid., p. 139, grifo meu.

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pois eu morro e vivo sendo amigo seu!‘ – eu respondi. Os afetos‖62

. Afeto parece ser isto, o

fatal do coração, que nos reserva muitas surpresas ao longo de nossas travessias. Afeto toma

posse dos envios do destino, na verdade afeto é meio destino. Não podemos esquecer que

Riobaldo também teve o destino de amar Nhorinhá, um destino que teria virado toda sua

história:

Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas;

mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na

Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus

olhos e minha boca. De lá para lá, os oito anos se baldavam. Nem estavam. Senhor

subentende o que isso é? A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha

aumentado de ser mais linda.63

Essa foi a corda de três tentos do destino de amor que conduziu Riobaldo pelo sertão. Mas

Riobaldo não esteve apenas a mercê do seu destino de amor.

Além do amor, podemos perguntar: o que mais determinou o destino de Riobaldo?

Segundo o senso comum, destino é algo de fatal, a fatalidade, o fatalismo da vida. Não

obstante, destino fala propriamente do envio a uma destinação, a um sentido de vida, a uma

travessia. Destinação ou atravessamento é o direcionamento de uma vida, remetendo essa vida

a uma consumação, ao perfazimento de uma história. Sendo assim, a história, o todo dos

envios e re-envios destinais que consumaram as ações de Riobaldo, tudo isso corresponde ao

seu destino. Envios, assim, perfazem destino. Porém, perfazem não segundo um movimento

de fora para dentro, mas sim, no sentido contrário. Envios constituídos de ações que

configuraram, por sua vez, o destino, engendradas desde o interior dos mais profundos afetos.

De seu afeto, isto é, de sua capacidade de ser afetável decorreram ainda outros modos de

62

Ibid., p. 148.

63 Ibid., p. 100.

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sentir, outros afetos, outros humores fundamentais que também explicam o seu destino. Tais

humores é que serão investigados agora: são eles o medo e a coragem.64

Portanto, o caráter fundamental da questão do sentir de Riobaldo será aqui enfatizado,

privilegiando-se dois humores específicos: o medo e a coragem, que oscilam ao longo da obra

GSV. Com isso, o sentir de Riobaldo ou seu humor, será o primeiro elemento a ser

incorporado à discussão da temporalidade, entendido como elemento constitutivo desta

instância temporal originária que pretendemos investigar. Assim, este capítulo visa descrever

a importância do humor de Riobaldo para a constituição de sua experiência temporal. Para

tanto, num primeiro momento, sob o título Riobaldo, entre Medo e Coragem: Travessia, a

estratégia a ser adotada será tematizar o medo a partir do episódio da iniciação de Riobaldo

com o menino (Diadorim). Nessa primeira etapa, o objetivo será tornar evidente a questão do

medo no interior da obra GSV, bem como indicar o instante de uma transformação, a

transformação de Riobaldo diante de seu medo. Esta leitura será encaminhada a partir do

relato de Riobaldo ao atravessar o Rio-de-Janeiro para o rio São Francisco, sendo enfatizada

nessa leitura a descrição dos afetos que marcaram sua transformação.

Num segundo momento, a pretensão será refletir sobre a questão do medo em geral

presente na obra GSV, como uma tentativa de mapeamento de sua abordagem, oportunizando,

assim, a reflexão acerca do medo em algumas de suas formas. Será a ocasião de preparar a

elaboração das questões fundamentais acerca do medo que irão nortear o encaminhamento da

investigação, buscando questionar a relação que o medo apresenta em razão da vida e da

morte. O título que irá nomear esta fase será Vida e o sarro de medo. Serão apontadas duas

modalidades fundamentais do medo: o medo produzido dentro do homem e o medo

depositado por força de ações externas.

64

Há uma relação intrínseca entre amor, medo, coragem que poderá ser explorada em momento oportuno.

Afirma Riobaldo: ―digo: que se teme por amor; mas que, por amor, também, é que a coragem se faz‖, Ibid., p.

456.

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39

Em decorrência das considerações alcançadas até este ponto, será inevitável formular

um princípio geral para o medo. Esta formulação irá decorrer de uma constatação: o medo é

um modo de sentir-se que se evidencia como constitutivo do modo de ser humano. A

dificuldade enfrentada será esclarecer o fundo desta constituição, frente à enumeração de

tantas formas do medo. Daí o título a que nos dedicaremos: A maneia de medo e o afeto

enraizado. Considerando as questões levantadas, torna-se necessário canalizar os esforços da

investigação para esclarecer a questão da origem do medo, e, não só do medo, mas de todo

sentir. O medo da morte será reafirmado como o medo mais radical.

Diante desse contexto, seguiremos para o título De-Janeiro: rio da consagração, onde

será realizada a comparação entre dois momentos fundamentais da narrativa: a travessia

iniciática de Riobaldo que o insere num outro modo de ser e o enchimento da narrativa. Com

isso, será destacada a necessidade de uma leitura que alcance um caráter compreensivo, que

ultrapasse as ambiguidades do medo. Aqui será enfatizado o caráter do sentir de Riobaldo

frente a sua transformação. Transformação esta que só pôde ocorrer devido ao medo de

Riobaldo, o que gerou sua união com o menino Diadorim e o encaminhou para a consecução

do pacto.

Em seguida, completando esse impulso de reunião do princípio e do fim num só ponto,

Claráguas: medo e destino pretende confirmar a importância do medo na travessia de

Riobaldo, não só em sua travessia iniciática, mas em toda a sua travessia pelo Grande Sertão.

O objetivo aqui será apontar um sentido para o seu destino, que brota, que tem sua origem no

medo. Não tivesse sentido medo, Diadorim não teria feito parte do destino de Riobaldo.

Já com o título Espelho e sua transformação pesável, o intuito será promover um

aprofundamento na questão do medo. A investigação irá retomar a questão da transformação

de Riobaldo, procurando relacioná-la com medo com os seus processos de espelhamento. A

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40

constatação desconcertante que será tematizada aponta outros rumos para a investigação,

apresentando o medo como medida de humanidade com a qual Riobaldo se mediu em sua

travessia. A partir dessa descoberta, Riobaldo transforma-se e passa a assumir uma outra

medida, a medida da coragem.

Finalmente, diante disso, a tarefa será compreender melhor essa nova medida, essa nova

dimensão do sentir, a coragem, com o título Coragem: o vau do mundo. Este humor será não

só uma nova medida que Riobaldo irá buscar para medir-se, mas também irá se apresentar

como o vau do mundo, o fundamento do mundo, do sertão. Na verdade, em última instância,

tudo isso leva à conclusão de que o medo e a coragem são modos de o homem medir-se frente

à realidade, e que medo e coragem são dois modos constitutivos do humano. Ver além da

dicotomia será o grande desafio que se apresentará a partir daqui. Isto irá apontar para a

experienciação de tempo, originariamente compreendido.

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41

1. Riobaldo, entre Medo e Coragem: Travessia

Pode-se dizer que Riobaldo inicia sua narrativa, em GSV – inicia em seu sentido mais

próprio – a partir do ponto em que relata o primeiro fato65

que se deu em sua travessia: a

travessia do Rio-de-Janeiro.66

Primeiro ou início, neste caso, é o mesmo que princípio ou

origem.67

Sua iniciação não aparece na narrativa e nem tampouco em sua vida, como sendo o

primeiro fato de sua história, cronologicamente considerada. Sua iniciação trata de um

princípio, do seu princípio, de sua origem, de sua gênese. Primeiro fato, primeiro feito, aqui

diz origem, nascimento, aurora. O que está sendo nomeado como iniciação trata

especificamente do relato de sua travessia do Rio-de-Janeiro com o menino (Diadorim). Isto,

este feito, sua iniciação, nesta travessia, Riobaldo a toma como o primeiro fato de sua vida, o

fato que formou passado para ele, o que pertence mais a Riobaldo, o seu passado próprio, sua

história. Este ponto da obra marca o princípio da narrativa, a narração propriamente dita: aí

principia o destino de Riobaldo.

65

Cf. Ibid., 2006, p. 100.

66 Segundo Manuel Antônio de Castro, ―tomando o ritual da iniciação de Riobaldo e Diadorim no rio como

ponto de partida e depois fôssemos acoplando os demais fatos, veríamos que a obra está dividida em três grandes

momentos. O primeiro momento. Este começa como rito de iniciação‖, CASTRO, 2007, p. 162.

67 Segundo a brilhante leitura desenvolvida pelo Professor Gilvan Fogel da obra GSV, a qualificação do fato

como primeiro ―quer dizer inaugurador, fundador e, neste sentido, arcaico, originário. O originário é o

determinante. E determinante é aquilo que, ao longo de um movimento, de um percurso, insiste como o que

persistentemente atravessa. É, portanto, o que per-faz, em per-sistindo, per-passando e, assim, perdurando. Ele, o

originário, é o ‗tempo‘, o ‗aion‘, do devir de um possível acontecer. O ‗per‘, acima escandido, fala do vigor ou

da força de ser ‗ao longo de‘. Assim, originário, ao contrário do mero início, que se abstém e se exime depois de,

de fora, des-interessadamente, dar o piparote ou o arranque inicial, é o que está sempre se originando. Originário

fala da insistência do originar-se de origem, do começar de começo. Originário é, portanto, o que insistentemente

se re-pete, o que insistentemente precisa se repetir, isto é, se re-tomar. Assim, o acontecimento arcaico ou

originário – o começo – é privilegiado, ele tem ou é um privilégio, quer dizer, uma lei própria: numa obra, isto é,

ao longo de um movimento de perfacção, o acontecimento ou o fato originário é o que acontece em todo

acontecer; é o que sub-fala em todo falado e mesmo a força do que se cala se cala em tudo que aí é calado‖,

FOGEL, Gilvan Da pobreza e da orfandade sem vergonha: considerações sobre o Riobaldo, de ―Grande sertão:

veredas‖, de João Guimarães Rosa, publicado em SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante (Org.). Ensaios de

filosofia: homenagem a Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 73.

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42

É inevitável destacar que este fato primeiro, primevo, primitivo, seu princípio aparece

na cronologia de sua narração imediatamente após a passagem que caracterizamos

anteriormente como sendo indicativa de seu projeto compreensivo68

. No parágrafo seguinte a

esta passagem, Riobaldo já prepara o seu leitor para contar isto, sua travessia no de-Janeiro, o

acontecimento primeiro e fundante de sua trajetória, de seu destino. Haveria uma relação

direta entre o que Riobaldo deseja entender (do medo e da coragem) e sua travessia do de-

Janeiro em direção ao Chico69

? O caso é que ele nunca mais se esqueceu desse

acontecimento, uma vez que, segundo suas palavras, foi aquilo que pôde avistar de maior em

toda sua vida, ―foi aquele rio. Aquele, daquele dia‖70

da sua travessia. Riobaldo afirma querer

entender do medo e da coragem e, em seguida, busca recordar este acontecimento que jamais

pode esquecer e que foi incomparável a qualquer outro fato. Este foi o acontecimento de sua

vida, o mais importante. Que relação poderia ser destacada, além do fato de ser este o

acontecimento mais importante de sua vida? Riobaldo queria entender das coisas importantes.

Como será possível conectar e correlacionar seu projeto compreensivo com este fato? É

possível mesmo afirmar que sua necessidade de compreensão das questões relativas ao medo

e à coragem decorre daí, deste acontecimento fundante. Mas, deixemos os fatos falarem por si

mesmos, sem corrermos o risco de sobrecarregar na interpretação.

Em havendo ou não alguma relação, não obstante, devemos perguntar: o que Riobaldo

está querendo evidenciar para o seu ouvinte acerca de sua iniciação, de sua história/estória? O

que há de tão importante para se ressaltar nesta travessia, a ponto de tê-la como marca

inaugural de sua vida? O que é tão importante aqui para que este acontecimento seja a

demarcação de uma aurora, a sua aurora, o seu amanhecer?71

Que descoberta desencadeia o

68

Cf. o capítulo anterior.

69 Forma afetiva para referenciar o Rio São Francisco.

70 ROSA, 2006, p. 106

71 Cf. Ibid., p. 107.

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43

seu amanhecer pessoal? Por que tudo isso é tão significativo? Qual é o sentido fundamental

que poderá ser atribuído ao fato que se deu e um dia se abriu72

em vista da travessia no

Grande Sertão? Como afirma o narrador do conto de Guimarães Rosa, O espelho, ―Tudo,

aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos‖73

. Sendo assim, que mistério este fato

primeiro está resguardando em segredo? A propósito do contar este fato ao seu ouvinte, este

princípio de sua vida, avaliando o que se passou, Riobaldo pondera e diz o seguinte:

eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais

do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por

isto foi que a estória eu lhe contei eu não sentia nada. Só uma transformação,

pesável. Muita coisa importante falta nome.74

Riobaldo quer chamar a atenção de seu interlocutor para este fato, para o mistério desse

fato, para o seu segredo, para o fato de que, a partir daquele momento, ele não teve mais

medo. Ele queria contar o fato, para ressaltar, para evidenciar que após aquela travessia, após

tudo o que aconteceu, ele não sentia mais nada, ele não sentia nada, ele não sentia medo. Este

é o pontual, o fundamental, o fulcro da estória, de sua história, deste relato. Mas, Riobaldo

teve algum medo antes dessa travessia? Durante? Riobaldo não teve medo mais, depois da

travessia do de-Janeiro? É preciso escutar desarmado. Que transformação pesável foi essa que

acometeu Riobaldo? O que se deve pensar acerca do pesável de sua transformação? Que coisa

importante é essa, a transformação que se deu na travessia, para a qual não há nome? É

preciso escutar mais do que o que ele está dizendo, pois Riobaldo não está falando tudo nesta

estória: faltam palavras para explicar. É preciso ser todo atenção para escutar, pois enquanto

―nada acontece, há um milagre que não estamos vendo‖75

. A que milagre/mistério/segredo

Riobaldo está se referindo? O que é isso que ele não está dizendo? Vamos escutar com

72

Cf. Ibid., p. 100.

73 ROSA, João Guimarães. O espelho. In: Primeiras estórias. 15. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001c.

74 ROSA, 2006, p. 109.

75 ROSA, 2001c, p. 119.

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atenção a sua estória, o fato fundamental, fundante, a travessia do de-Janeiro, para tentar ouvir

aquilo que não está sendo dito, para saber do milagre que não estamos vendo. Este será o

nosso esforço neste item: tentar corresponder a este desafio, a saber, encarar e ver o mistério

desse acontecimento, desse fato.

Em linhas gerais, o relato da travessia do Rio-de-Janeiro, momento em que Riobaldo

conhece o menino (Diadorim) conta um fato muito simples.76

Quando menino, para pagar

uma promessa – e promessa é dívida, pois deve ser paga a todo custo – após ter alcançado a

graça de curar-se de uma doença, Riobaldo vai até o porto do de-Janeiro para esmolar

dinheiro, para juntar um tanto de dinheiro. Depois de ter alcançado certo valor, metade da

quantia seria destinada ao pagamento de uma missa; a outra metade seria depositada numa

cabaça para ser lançada no Rio São Francisco. Nessa ocasião, Riobaldo encontra o menino

(Diadorim), que o convida a atravessar o rio numa canoa. O núcleo central do relato é

exatamente essa travessia.

É preciso dar bastante atenção aos humores de Riobaldo frente a esse acontecimento,

pois isto será propriamente o que será observado agora. Ele é arrebatado por humores durante

o atravessamento do rio. Vamos tentar evidenciar esses humores, colocar a lupa sobre eles,

com o objetivo de evidenciar sua importância.

O primeiro momento em que Riobaldo relata algum tipo de humor é quando afirma que

o menino parecia estar com vergonha. Em diálogo com o menino, Riobaldo lhe atribui

vergonha:

76

Indico duas sínteses brilhantes acerca desse episódio de GSV. O primeiro é realizado pelo Professor Manuel

Antônio de Castro, em seu ensaio Ser-tao: diálogos amorosos, CASTRO, 2007. O segundo foi escrito por

Gilvan Fogel, em seu ensaio Da pobreza e da orfandade sem vergonha: considerações sobre o Riobaldo, de

“Grande sertão: veredas”, FOGEL, 1999.

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– ―Meu tio planta de tudo. Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou de

morte de minha tia...‖ Assim parecesse que tinha vergonha, de estarem comprando

aquele arroz, o senhor veja.77

Ele não relata nenhum indício objetivo que indique, na expressão do menino, essa vergonha

que está apontando. Não há fato algum que leve Riobaldo a acreditar que o menino estava

com vergonha devido ao seu tio não ter sido capaz de plantar arroz, em função da morte de

sua esposa. Para Riobaldo, o menino estava sentindo vergonha deste fato, considerando que

seu tio plantava de tudo. Segundo isto, o menino sentia vergonha, pois seu tio deveria ter

cumprido a tarefa de plantar arroz, mas não conseguiu, não cumpriu, não foi forte o

suficiente: deveria ter feito e não fez. Seria isto realmente uma falha capaz de provocar

vergonha? Ressalte-se que esta é uma interpretação de Riobaldo – o que poderia também ser

explicado de outra forma.

Um pouco mais adiante, ainda no diálogo inicial com o menino, Riobaldo afirma seu

estado de ânimo. Agora sim, trata-se do seu próprio sentir-se: ele declara estar sentindo

vergonha por estar esmolando.

Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha

de estar esmolando‖78

Riobaldo sente vergonha de estar ali no porto do de-Janeiro para pedir esmola. Ele está

atravessado por vergonha, na medida em que está no porto com esta finalidade, ele está

pagando uma dívida, contraída pela mãe, a dívida de uma promessa. Ele está pagando uma

dívida, é devedor, e, de repente encontra o menino. Um menino ―bonito, claro com a testa alta

e os olhos aos-grandes, verdes‖79

. Parece que sua compreensão do mundo, das coisas, das

pessoas, da realidade, está atravessada pelo sentido da vergonha. Além de perceber, melhor,

77

ROSA, 2006, 102.

78 Ibid., p. 103.

79 Ibid., p.102.

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ver a vergonha no menino, ele também vê e sente vergonha em si mesmo. Sua compreensão

do mundo passa pela lente da vergonha, ele está crivado por ela, atravessado por ela. Por isso

viu vergonha no menino. Parece que Riobaldo estava vendo no menino a vergonha que ele

estava sentindo. Sente vergonha de sua ação, do que está executando, do que está fazendo no

porto. Estava esmolando, diante de um menino tão belo, tão altivo, tão cheio de segurança em

si80

, tão inteirado, com um modo ―suave de ser‖81

, todo forte, todo força. Antes do momento

em que encontra o menino e mantém com ele um diálogo de apresentações gerais, nada de

sentir em seu próprio corpo, alguma vergonha. Ele já estava nesta ação há três ou quatro

dias.82

Antes da aparição do menino, Riobaldo não havia sido tocado por este modo de sentir-

se. Porém, isto não significa que não tivesse vergonha em sua compreensão de realidade, em

seu ânimo, guardada em seu íntimo, em seu coração, em seu corpo. Sua vergonha estava

guardada.

Um dado importante a ser destacado diante de tudo isso é que o menino estava

exercendo alguma influência sobre o ânimo de Riobaldo: a simples presença do menino

estava provocando modificações em seu ânimo. Riobaldo estava desejoso de sua presença.

Por quê? Que magnetismo foi esse que o menino exerceu sobre Riobaldo? Ele mesmo o

declara:

Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse,

sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira –

só meu companheiro amigo desconhecido.83

Recebeu de onde esse desejo de permanecer próximo ao menino? O que importa dizer dessa

influência, desse afeto, é que, neste momento Riobaldo estava sendo tomado, estava já sendo

80

Cf. Ibid., p. 104.

81 Ibid., p. 104.

82 Cf. Riobaldo, ―Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu mais gente‖, Ibid., p. 102.

83 Ibid., p. 103, grifo meu.

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atravessado por uma transformação. O menino transmitia algum afeto a Riobaldo, transmitia

calma:

Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas,

luziam um efeito de calma.84

Riobaldo estava totalmente afetável, ele estava atravessando aquele instante a esmo85

, estava

fora de seu controle, estava sendo conduzido pelo menino, ia à toa, sem rumo. Seu afeto pelo

menino chegou a tal radicalidade que desejava também afetá-lo: Riobaldo queria que o

menino gostasse dele86

. Em seu entendimento, em sua compreensão, sentiu em si que o

menino também se simpatizava por ele87

, sentiu que se afinaram num mesmo pathos, num

mesmo afeto. Segundo Riobaldo, toda essa afetação era simpática, era recíproca.

Por um lado vemos Riobaldo ser afetado pelo menino, e, por outro, sua vergonha se

intensificar. Parece que seu sentimento de vergonha vai se agravando, à medida que

permanece exposto à simples presença do menino. Primeiro, conversando com o menino vê

nele alguma vergonha; depois, continuando a conversa, sente vergonha em si mesmo, em

virtude de sua ação, o ato de esmolar – tem coisa estranha aí.

Quando o menino convida Riobaldo para passear de canoa, ocorre um aumento desse

seu modo de sentir-se, do sentir vergonha. Talvez, porque a partir daí esteja ocorrendo algo

nessa relação que inicia uma troca mais intensiva de afetos. Passa a ocorrer uma comunhão

entre o menino e Riobaldo. Uma situação, um contato, um toque se repete a partir desse

momento do relato: um corpo toca outro corpo. E esse toque não se dá apenas no aspecto

físico do corpo – o que é corpo? –, mas o toque se dá também pelo afeto, pelo sentir – o que é

84

Ibid., pp. 103-104.

85 Cf. Ibid., p. 104.

86 Cf. Riobaldo, ―Eu queria que ele gostasse de mim‖, Ibid., p. 104.

87 Cf. Riobaldo, ―Senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo‖, Ibid., p. 103.

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sentir? Isso, certamente está indicando a ocorrência de algo muito sutil e fundamental, muito

singelo e profundo: temos aí, neste fato, neste toque, a ponta do mistério que promove a

transformação de Riobaldo. O trecho diz respeito ao convite do menino. Diz Riobaldo:

Me perguntou se eu vinha. Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto

desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão,

para me ajudar a descer o barranco.88

Por enquanto, parece que nada esta acontecendo. Não há a menor importância nisto: o menino

deu a sua mão a Riobaldo. O menino ajuda Riobaldo a descer o barranco. E só. Só?!

No parágrafo seguinte, Riobaldo retoma esse momento em que é tocado pela mão do

menino, ao ser ajudado a descer o barranco. Riobaldo estava já dentro da canoa, e em sua

narração, inesperadamente recorda o instante em que acabara de ser tocado:

As canoas eram algumas, elas todas compridas, como as de hoje, escavacadas cada

qual em tronco de pau de árvore. Uma estava ocupada, apipada passando as sacas de

arroz, e nós escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma no

fundo. Sentei lá dentro, de pinto em ovo. Ele se sentou em minha frente, estávamos

virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado

do rio. O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão

bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa

me dava um aumentante receio.89

A narratividade é inesperadamente interrompida por essa lembrança, que aparece como

fragmento de memória querendo retornar incontinente para sua consciência: o fato de ter sido

tocado pelo menino. Esta memória ganha destaque e quebra a lógica do narrado. Ele repete

este enunciado e descreve a mão do menino: imediatamente fica perturbado. Note-se que ele

estava já no momento em que ambos haviam entrado na canoa, um de frente para o outro.

Mas o fato de ter sido tocado pela mão do menino, só por isso, somente isto foi suficiente para

fazê-lo retroceder na cronologia para recuperar o momento em que é segurado pela mão do

88

Ibid., p. 103.

89 Ibid., p. 103.

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menino. Na mesma frase em que descreve a mão do menino, diz sentir-se agora vergonhoso,

perturbado. Riobaldo estava afetado e sentia uma perturbação, encontrava-se desnorteado,

alterado. Neste momento, ele estava experimentando, melhor, estava passando, estava

iniciando outra leve transformação. Riobaldo per-turbado, era agora atravessado por uma

turbação; seu humor sofreu uma transformação – pesável – estava inteiramente comovido e

abalado. Abalado pelo quê? O que estava abalando tão profundamente o humor, o ânimo de

Riobaldo? Riobaldo estava de tal modo se diferenciando de si mesmo, que mal conseguia

atribuir sequer uma palavra que pudesse explicar esta efusão interna de afeto. A frase seguinte

diz pouco do que sentia: ―O vacilo da canoa me dava um aumentante receio‖90

. Ainda será a

ocasião de tratarmos do que vem a ser um receio para Riobaldo, mas, pode-se adiantar que

receio é um modo de sentir-se que equivale a sentir medo, a ter medo, é um princípio de

medo. A vergonha agora torna-se medo, um medo-receio. O agravamento da vergonha

começa a dar lugar para um outro modo de sentir-se: a vergonha está gerando medo, ou está

se transformando em medo. O que queremos dizer é que a vergonha está dando lugar ao sentir

medo. Não é por causa da vergonha que Riobaldo está sentindo medo, mas, parece, que a

vergonha está se diferenciando e abrindo espaço para sentir medo. Ainda não é o medo

propriamente, mas um princípio de medo, um leve medo. Um receio aumentante que irá se

agravar, irá se aprofundar, até se tornar o medo mesmo, o medo maior.

À medida que Riobaldo alcança os limites do de-Janeiro, sua canoa começa a adentrar

as águas do-Chico. Eles começam a passar do de-Janeiro para o do-Chico; passam das ―águas

claras‖91

do quase ―só um rego verde só‖92

para o ―todo barrento vermelho‖ 93

do-Chico. O

que era receio, passa a medo maior94

. Segundo suas próprias palavras,

90

Ibid., p. 103.

91 Ibid., p. 104.

92 Ibid., p. 105.

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com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela

terrível água de largura: imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num

ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A

feiura com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe

para si o de-janeiro, quase só um rego verde só.95

Esse medo não é comparável a nenhum outro tipo de medo. E é justamente esse tipo, esse

modo, essa qualidade de medo que agora irá atravessar Riobaldo. A partir desse ponto do

relato é possível acompanhar o agravamento, a intensificação, a potencialização do sentir de

Riobaldo num modo particular e especial de medo.

Nesse ponto da travessia, Riobaldo pede para voltar, pede para interromper a destinação

da canoa naquele atravessamento. Pede ao canoeiro e ao menino. Apesar de sua inquietação,

só sua, Riobaldo não tem argumentos para fazer com que a empreita seja interrompida. Tanto

o menino quanto o canoeiro estão num outro tônus, numa outra tonalidade de humor. Isto é o

que se pode observar na sequência da narrativa:

– ―Daqui vamos voltar?‖ – eu pedi, ansiado. O menino não me olhou – porque já

tinha estado me olhando, como estava. – ―Para quê?‖ – ele simples perguntou, em

descanso de paz. O canoeiro, que remava, em pé, foi quem se riu, decerto de mim.

Aí o menino mesmo se sorriu sem malícia e sem bondade. Não piscava os olhos. O

canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali, na barra, entre duas águas, menos

fundas, brincando de rodar mansinho, com a canoa passeada. Depois, foi entrando

no do-Chico, na beirada, para o rumo de acima. Eu me apeguei de olhar o mato da

margem. Beiras sem praia, tristes, tudo parecendo meio pôdre, a deixa, lameada

ainda da cheia derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou os onze

metros. E se deu que o remador encostou quase a canoa nas canaranas, e se curvou,

queria quebrar um galho de maracujá-do-mato. Com o mau jeito, a canoa

desconversou, o menino também tinha se levantado. Eu disse um grito. – “Tem nada

não...” – ele falou, até meigo muito. – “Mas, então, vocês fiquem sentados...” – eu

me queixei. Ele se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao

canoeiro, com uma palavra só, firme mas sem vexame: – “Atravessa!” O canoeiro

obedeceu.96

93

Ibid., pp. 104-105.

94 Ibid., p. 105.

95 Ibid., pp. 104-105.

96 Ibid., p. 105, grifo meu.

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A transformação, fazendo passar de vergonha para medo, agora, passa a ser mais evidente, já

está se operando em Riobaldo e se manifestando em suas atitudes, suas ações. Isto se vê, por

exemplo, na mudança do olhar de Riobaldo, a propósito do que nas margens dos rios antes

chamava a atenção por sua beleza, no ―mato da beira, em pé, paredão, feito à régua

regulado‖97

, com suas flores, que, em decorrência da transformação que se instala, agora

passa a ser compreendida, isto é, passa a ser vista como mato da margem, as suas beiras sem

praia era só tristeza, aparência podre e lameada.98

No instante da travessia, na passagem do de-Janeiro para o do-Chico, o seu sentir é de

medo, medo puro, medo só. Esta é a declaração de Riobaldo para este momento, o momento

de sua travessia para o do-Chico. Diz ele: ―Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo!‖99

. A

recordação de Riobaldo desse ponto de sua travessia indica só medo, sentir medo só. A sua

travessia, naquele momento, ao entrar num rio grande, foi tão somente isto: o medo maior.

Também não é para menos, pois como irá afirmar Riobaldo, o São Francisco, o rio capital,

―partiu minha vida em duas partes‖100

. Em seguida, imediatamente, Riobaldo completa o

quadro do seu sentir: esse medo também era acompanhado por vergonha. Foi de medo e de

vergonha que se constituiu o sentir de Riobaldo, naquele instante.

Enxerguei os confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo se ir até lá?

Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é cheio de baques, modos

moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo. Apertei os dedos no pau da

canoa.101

Riobaldo não sentia outra coisa além disso: medo e vergonha. Nem sequer pensava em algo.

O medo era maior, medo só, em sua solidão, de medo. Nem pensar, nem lembrar: Riobaldo

97

Ibid., p. 104.

98 Cf. Ibid., p. 105.

99 Ibid., p. 105, grifo meu.

100 Ibid., p. 310.

101 Ibid., p. 105, grifo meu.

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sentia o medo imediato102

, seu medo não tinha qualquer mediação. O medo de Riobaldo, por

ser imediato, atingia diretamente, sem mediação, seu corpo. Seu corpo era puro medo: corpo e

medo era uma coisa só, em sua solidão. Não havia espaço para pensar, para especular ideia

alguma. E, apesar de, num suspiro, ter conseguido ascender a uma esperança, esta se

desvaneceu também imediatamente: a esperança de, em a canoa virando, se agarrar nela,

emborcada mesmo, para poder sobrenadar e chegar até o seco. O que Riobaldo não sabia

naquela época é que a canoa que escolheram era afundadeira.103

Ele tentou prever o que

poderia acontecer e quis antecipar sua resolução: quis buscar alguma segurança, quis algo que

pudesse lhe oferecer confiança de que sairia bem daquela situação medonha. Mas, a canoa

que eles escolheram era de madeira burra, ela afunda inteira, concluiu o canoeiro. Não há,

portanto, asseguramento algum. Era só medo, imediato, sem mediação; o que quer que fosse,

nem pensamento, podia mediar seu medo.

Riobaldo não conseguiu nem sequer ter lembrança de sua autoimagem: ele não

consegue afirmar com clareza algo sobre sua aparência. Nenhuma esperança, nenhuma

lembrança clara: só o medo imediato. Deduz que diante desse medo, de tamanho medo que

teve, deve ter arregalado bem os olhos. Essa é a única possibilidade a que consegue alcançar

para a sua autoimagem, esse foi o comportamento possível que Riobaldo atribuiu a si mesmo

para aquele momento. Não teve certeza de si. Anos após ter passado por esse acontecimento,

não conseguiu formular a sua autoimagem mnemônica, com alguma segurança. Esta foi a

ocasião, em que pela primeira vez Diadorim, melhor, que o ainda menino fala a Riobaldo

sobre a necessidade da coragem:

Quieto, composto, confronte, o menino me via. – “Carece de ter coragem...” – ele

me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Dói de responder: – ―Eu não sei

nadar...‖ O menino sorriu bonito. Afiançou: – ―Eu também não sei.‖ Sereno, sereno.

Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. – ―Que é que a gente sente,

102

Cf. Ibid., p. 105.

103 Cf. Ibid., p. 409.

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quando se tem medo?‖ – ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter

raiva. – ―Você nunca teve medo?‖ – foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: –

―Costumo não...‖ – e, passado o tempo dum meu suspiro: – ―Meu pai disse que não

se deve de ter...‖ Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: – ―... Meu pai é o

homem mais valente deste mundo.‖104

Tudo se resumiu a isto: medo e vergonha. Vergonha de sentir medo? Vergonha a ponto de às

lágrimas chegar, por medo? Foi isso que o menino viu em Riobaldo e por isso lhe disse da

importância da coragem. Sua vergonha chegou até a produzir uma dor, uma espécie de dor.

Riobaldo conhecia essa dor, o sentir dor, sentir vergonha, de medo. Sentimentos que não eram

conhecidos por parte do menino? Tivera sempre uma educação, não para a vergonha da dor,

mas para a coragem e valentia para enfrentá-la.105

Nem o menino nem o canoeiro pareciam

bem saber o que era medo, medo nenhum. Este era barranqueiro106

; aquele foi educado para a

coragem. E Riobaldo?

A avaliação de Riobaldo para aquele acontecimento, o daquele dia, o acontecimento

fundamental de toda a sua vida, o que houve de maior, mais perturbador, mais inquietante foi

aquilo, o rio, o encontro dos rios, o do Chico e o bambalango de suas águas, seu roda-a-

roda.107

E ainda uma vez mais, uma última vez ainda, nesse atravessamento, o menino toca

Riobaldo, põe mão na mão, e, um pouco mais de afeto é transposto para Riobaldo:

E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha

pele, no profundo, desse a minhas carnes alguma coisa.108

O menino põe a mão em Riobaldo para lhe dizer que era também animoso. O menino diz a

Riobaldo que ele também tem ânimo, também tem em si um forte humor, não qualquer

104

Ibid., p. 106, grifo meu.

105 Cf. Ibid., p. 106.

106 Cf. Ibid., p. 106.

107 Cf. Riobaldo, ―o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia‖, Ibid., p.

106.

108 Ibid., p. 107.

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humor, mas que é constituído por um humor radical, fundamental, um ânimo: Riobaldo é

animoso. Animoso tal como... animoso como quem? E assim, nesse instante, Riobaldo afirma

ter amanhecido sua aurora. Agora estava diferente. Até sua vergonha se alterou. Sua

vergonha passou a ter outra qualidade.109

Tirante o que se segue após chegarem à outra

margem, o cruzamento com o mulato que o menino atingiu com sua faca quicé, o menino

(Diadorim) repete ainda uma vez sua máxima de coragem: ―carece de ter coragem. Carece de

ter muita coragem...‖110

.

Depois de tudo isso, depois dessa travessia, Riobaldo afirma não ter sentido mais medo.

Não sentia nada. Melhor, sentia nada. Como já foi dito, este é o pontual da estória. Por isso

ela foi contada. Tudo se deu em maio111

, o mês das noivas – corrigindo: no tempo de comprar

arroz. O menino tocou a mão de Riobaldo, e, assim, agora, não teve mais medo e sua

vergonha mudou de qualidade. E foi isso! Só. Só?! Depois, quando Riobaldo reencontra o

menino, já se apresentando como Reinaldo, Riobaldo relata o reencontro recuperando o toque

da mão.112

Mesmo que provisoriamente, podemos agora tentar responder às perguntas com as quais

iniciamos esta discussão e que ainda não foram esclarecidas. Perguntamos acima: por que a

travessia dos rios é uma marca inaugural na vida de Riobaldo? Essa travessia parece ter

evidenciado a importância do medo e da coragem como questão, senão para toda a obra GSV,

ao menos, por ora, para a narração de Riobaldo de sua breve travessia entre rios. Defendemos

a hipótese de que a questão do medo exerce importância fundamental para a obra de modo

109

Cf. Riobaldo, ―Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que eu sentia agora era de outra qualidade‖, Ibid., p.

107.

110 Ibid., pp. 108-109.

111 Cf. Riobaldo, ―se estava no mês de maio, digo – tempo de comprar arroz, quem não pôde plantar‖, Ibid., p.

104.

112 Cf. Riobaldo, ―O menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais

adivinhado e conteúdo; isto também. E ele sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se

chamava o Reinaldo‖, Ibid., p. 138.

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geral, e não se restringe a esta passagem apenas – o que ainda deverá ser confirmado. A

travessia dos rios é fundamental pelo encontro, pelo afeto, pela comunhão que se estabeleceu

entre Riobaldo e Diadorim (menino). Esse é o indicativo de uma transformação. E não só por

isso, mas porque Riobaldo descobriu algo fundamental, que o fez deixar de sentir medo. No

simples atravessar, misteriosamente, Riobaldo foi tomado, afetado por um outro modo de

sentir-se. O menino transmitiu algo para Riobaldo. Ele teria transmitido sua coragem para

Riobaldo? Se for esse o caso, por que Riobaldo não passou a sentir coragem? Ao invés disso,

ele sentiu nada. Essa foi a sua descoberta, apesar de ainda persistir muito mistério em torno

dessa transformação. Com tudo isso, sustenta-se a hipótese de Riobaldo querer entender

acerca do sentir medo, pois este fato repousa no interior do mistério de que foi testemunha e

que lhe transformou o ânimo, o mistério da transformação pesável. E assim, tudo o que temos

é só a ponta do mistério, seu princípio, sua superfície. Será preciso afundar mais nesse rio, nos

mistérios de Riobaldo.

Devemos perguntar seriamente se esta transformação evitou que Riobaldo sentisse mais

medo, ou não sentisse alguma qualidade específica de medo. Após a travessia, Riobaldo

sentiu novamente algum tipo de medo? Poderíamos afirmar, ainda que provisoriamente, que

este medo maior a que se refere Riobaldo foi seu medo da morte. O medo da morte parece ser

uma qualidade de medo que se dá imediatamente, que se apodera do corpo e que soterra,

destrói, inviabiliza toda e qualquer possibilidade de suputar, calcular, racionalizar e que leva,

nesse movimento, também, qualquer estado de segurança, confiança certeza, controle. Talvez,

este seja o maior dos medos a que poderíamos investigar, o medo da morte, que provoca essa

incerteza diante de tudo, diante da vida. Parece ter sido este o seu medo na travessia. Para que

seja confirmada esta suposição, teremos de realizar um breve levantamento dos medos que

aparecem na obra, para daí buscar alguma estratégia para validar tal afirmação.

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2. Vida e o sarro de medo

Já que o medo maior de Riobaldo, na travessia, parece ter sido o medo da morte, isto

que é medo deve possuir também alguma relação com vida. Aqui será a ocasião, pois, de

sugerir essa relação, ou relações: morte-medo, vida-medo. Considerando a hipótese que vimos

enfatizando para a questão do medo e da coragem, torna-se indispensável explicitar para a

investigação esta determinação, este cruzamento entre medo-vida, medo-morte. Portanto, é

preciso questionar essas relações na obra GSV. O que é propriamente medo para a narrativa,

isto é, para a vida de Riobaldo? Qual é a relação entre o medo e sua travessia no Grande

Sertão? Como o medo esteve presente ao longo da vida de Riobaldo e que função

desempenhou? Além disso, para que a investigação mantenha seu fio condutor, é

indispensável não perder de vista que a questão do medo deve também esclarecer sua relação

com a temporalidade. O que o medo pode dizer do tempo, na obra? Em havendo alguma

relação entre o medo e a temporalidade, o medo possui um tempo específico? Que tempo o

medo tem, ou seja, qual é o tempo do medo?

Antes de procurar responder a todas estas questões, será necessário sustentar a

afirmação de que há, de fato, na obra, alguma relação entre vida e medo, entre medo e morte.

Para evitar que estas indagações fiquem ressoando sem a devida ponderação, é preciso

questionar inicialmente como medo e vida se cruzam, se tocam. Parece que há, sim, uma

relação entre medo e vida. Uma possível evidência que poderemos tomar como sustentação

dessa interpenetração, vida-medo, é o chamamento à coragem, repedidas vezes enunciado na

obra, conclamando coragem para o enfrentamento dos perigos da vida. Carece de ter

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coragem, muita coragem113

, posto que viver é negócio muito perigoso114

. Viver é uma

ocupação perigosa, por isso, a necessidade da coragem. Vida parece ser coisa que também dá

medo!

A obra GSV convida o seu leitor a pensar o que é o medo no interior de uma complexa

rede, com muitos nós e cruzamentos, rede de simples asserções, de questionadoras

meditações. Em uma de suas passagens, tratando da questão do medo, Riobaldo confessa ter

em grande conta a instrução de seu ouvinte, por estar em condições de efetuar o estudo dessas

matérias115

. Também escutamos naquela declaração de Riobaldo, em seu projeto

compreensivo, que ele queria entender do medo – e também da coragem. Isto, o medo, no

âmbito de suas especulações116

, nos parece ser algo de extrema relevância, como sendo uma

das principais questões que ele queria decifrar. Por essa importância, apenas isto já indica

alguma relação entre medo e vida. Medo: uma questão fundamental. Isto, o medo, é um

convite ao pensar, encaminhado ao leitor. Para atender a esta solicitação, faremos um breve

levantamento sobre a compreensão que Riobaldo apresentou acerca do medo. Com isto,

pretende-se seguir algumas de suas indicações, em passagens que caracterizam o medo ou que

dele deem algum apontamento.

Afinal, o que é que Riobaldo sabia acerca dessa questão fundamental: o medo e qual é

sua relação com a vida? Para guiar a investigação, eis uma de suas afirmações acerca do que o

medo é:

113

Cf. Ibid., pp. 108-109.

114 Cf. Ibid., p. 10.

115 Cf. Ibid., p. 232.

116 Cf. Riobaldo: ―me inventei neste gosto, de especular ideia‖, Ibid., p. 10.

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um produzido dentro da gente, um depositado; e que às horas se mexe, sacoleja, a

gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só estão é

fornecendo espelho. A vida é para esse sarro de medo se destruir; jagunço sabe.117

A partir dessa afirmação de Riobaldo que, de algum modo responde à nossa inquietação – o

que é o medo? –, muitas outras perguntas vêm à tona. Por que o medo é caracterizado como o

que se produz dentro da gente, e que, ao mesmo tempo, é algo depositado? Haveria duas

origens para o medo? Como se dá isto que é o medo, sendo produzido dentro do homem, e

também podendo ser depositado, de fora? Parece que o medo é algo que surge, que tem sua

causa dentro da gente, melhor que brota desde o interior, é algo interno ao humano, provém

desde si e a partir de si mesmo, a partir do interior, da constituição mesma do humano. E,

ainda: algo de externo, porque depositado. Depositado como? Por quem? Seria possível

depositar medo em alguém? Antes: seria possível depositar ou transferir algum humor?

A indicação que o narrador nos dá, na passagem acima, informa que o medo parece

enganar.118

Em horas decisivas, às horas, o medo se mexe e se sacoleja e, assim, engana

quem por ele é tomado, quem é regido por medo no fazer e mexer119

. Como é enganado o

homem? Como o homem é tomado pelo medo? Pensa-se que o medo pega120

na gente por

causas. Pensa-se conhecer a causa do medo, o que o provocou. Seria o medo mesmo aquilo

que é enganoso, ou é o espelho que engana? Saber a causa do medo oferece a aparente

impressão de asseguramento, certeza, controle sobre esse modo de sentir-se. Controle,

asseguramento, promovido pelo saber sobre o medo, por saber de onde vem o medo. Mas a

causa do medo é mera aparência, aparência de causa: no fundo é só espelhamento, como

117

Ibid., pp. 366-367.

118 A ideia de que o medo pode enganar está também em outra passagem, destacada a seguir: ―Na Serra do

Cafundó – ouvir trovão de lá, e retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau em

ilusão, como quando foi menino‖, Ibid., p. 27. O medo em dadas circunstâncias pode criar ilusão, enganar.

119 Cf. Ibid., p. 10.

120 Cf. Riobaldo, ―Davidão pegou a ter medo de morrer‖, Ibid., p. 84. E ainda: ―um dia, o Faustino pegava

também a ter medo, queria revogar o ajuste!‖, Ibid., p. 85.

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afirma Riobaldo. Para o que, exatamente, a afirmação está apontando, quando fala do

espelhamento do medo? O que Riobaldo quer que seja visto nessa indicação? Que jogo é esse

que fica insinuado, esse jogo de espelho?121

Seria este jogo de espelhos que levou Riobaldo a

pensar/especular que o menino sentia vergonha? Continuemos.

O trecho em análise sugere haver duas origens para o medo, uma que se produz dentro

do homem, outra que é depositada. Independentemente disso, o medo, ou melhor, a causa do

medo é apenas o resultado de um processo de espelhamento, em que talvez, o pensar seja o

próprio fundo do espelhamento. Em seguida, Riobaldo fala do sarro de medo, borra, saburra,

resíduo, crosta, resíduo sólido que persistiu, que persiste, hipóstase. Se entendermos medo

como sarro, medo seria o que sub-está, o que sub-existe: medo seria aquilo que é subsistente.

Subsistente a quê? Para tudo aquilo que é subsistente, a Filosofia tem um nome: a velha

conhecida substância, hypostasis, hypokeimenon, em uma palavra contemporânea:

fundamento. O medo seria o fundamento de algo. De quê? Das ações humanas? Da vida?

Conforme as próprias palavras de Riobaldo, seria mais acertado dizer que algo é o

fundamento do medo: a gente acaba acreditando, pensando, especulando, que o medo é por

causas, tem uma causa, tem um fundamento nisto ou naquilo. Especula-se que algo é a causa

do medo, seu fundamento, mas, daí, se vê e se descobre que é só espelhamento: jogo de

espelho. Então, o sarro não é o próprio medo, mas sim seu fundamento. Riobaldo está

dizendo que o sarro de medo deve ser destruído, ou seja, seu fundamento deve ser extirpado.

Isto significaria, pois, que se deve destruir o próprio processo de espelhamento do medo, que

121

Há um relato de Riobaldo confessando sua valentia como construção de uma imagem em espelho, na ocasião

de sua tentativa de atravessar o Liso do Sussuarão, sob o comando de Medeiro Vaz. Cf. Riobaldo, ―Eu estava

meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais receio daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cá não

madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que

sei: que, para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho –

caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência foi comprada a todos custos,

caminhou com os pés da idade‖, Ibid., p. 46. Se a coragem de Riobaldo é mesmo apenas uma auto-imagem

projetada por quem se vê, isso é outra questão. O que nos interessa aqui é sua afirmação em idade avançada, que

nos leva a conclusão de que ter coragem para vencer medo é algo que pode ser reduzida à elaboração

especulativa diante de um espelho.

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leva ao estabelecimento, melhor, à instalação das causas do medo, de causas para o medo.

Este é o sarro que se deve destruir? Seria isto? Mas por que deveríamos ver nisto um engano?

Por que o sarro/fundamento do medo engana, ou pode enganar, por oferecer-se como

fundamento, como causa, como espelho? Como se dá esse processo de espelhamento, na

especulação, que instaura o fundamento do medo, sua causa, enquanto algo enganoso? Por

que é enganoso? O que é um espelho para enganar? Responder a essas perguntas é tarefa do

leitor de GSV. Para ser seu leitor não basta apenas ouvir suas palavras. É preciso mais: é

preciso entender do medo, mirar e ver propriamente, no mesmo sentido especulativo de

Riobaldo. É preciso compartilhar do mesmo sentido, é necessário ser simpático e conforme ao

seu sentido. É preciso ser afetado e constituído pela mesma visão.

Na passagem que destacamos acima, foi sugerido que há na obra duas explicações para

a proveniência do medo: uma encontra seu fundamento, sua causa, no ambiente exterior,

comportando as relações interpessoais e mundanas, cotidianas, na medida em que o medo se

coisifica, constituindo a influência externa do medo. Tem-se medo disto ou daquilo,

exteriormente, coisisticamente, o medo vem de uma coisa. Sabe-se, neste caso o que dá medo,

do que se tem medo: o medo provém de uma coisa. Há por sua vez uma outra proveniência

para o medo, ou, uma outra forma do medo, uma outra fonte, origem, causa, melhor, uma

outra dimensão em que o medo surge, dimensão interna ao homem, em que o medo brota, faz-

se, cresce de dentro do homem, um medo em alma122

, num espaço123

, num oco, um oco no

ânimo124

, bem lá no meio do coração.

No caso do medo exterior, se é que podemos dizê-lo deste modo, este é um modo de

sentir-se que, à medida que o percebemos, aparece, igualmente, a sua causa, sendo indicada

122

Cf. Ibid., p. 30.

123 Cf. Riobaldo, ―Raiva tampa o espaço do medo‖, Ibid., p. 573.

124 Cf. Riobaldo, o medo ―faz oco no ânimo do mais valente qualquer...‖, Ibid., p. 533.

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como certa e segura. E, por considerar-se causa do medo, esta pode ser manipulada, o que

altera o estado do medo, interferindo diretamente na causa. Isto porque é uma forma de medo

que tem propósito. Essa categoria de medo tem intenção, tem propósito, é proposto, pro-

posto, posto por alguém adiante de, diante de alguém e daí o medo pode pegar. É posto na

vida, numa vida e pode ser alterado, dependendo de circunstâncias ou até mesmo dependendo

da vontade. Esta categoria de medo está submetida a um propósito.125

Ele, o medo, nesse

caso, depende do propósito, da intenção, dos objetivos da ação em que o homem está

envolvido, em que está posto. Se a ação é de guerra, luta, batalha, não há espaço para medo e,

daí, se pode ―escoicear, feito burro bruto, dá-que, dá-que, dá-que‖126

. Nestes casos, o medo

que teria sido pro-posto, se sai, ou seja, o jagunço consegue retirá-lo. Ele atende a uma causa,

a uma intenção e atinge mesmo e tão só é o ―trivial do corpo‖127

.

A propósito desse medo externo, decorrente das relações interpessoais cotidianas,

engendradas nas veredas do Grande Sertão, o medo que pode ser depositado, Riobaldo afirma

pretender extinguir, destruir. Isto se diz a partir de sua própria fala: ―ninguém tem a licença de

fazer medo nos outros, ninguém tenha‖128

. Apesar de Riobaldo querer acabar com esse modo

de ser tomado pelo medo, ele possui um saber que lhe permitia também fazer medo nos

outros, em dadas circunstâncias: ele misturava as matérias129

e podia mexer com a matéria do

medo também. Afora Zé Bebelo, Riobaldo também era projetista130

e manipulava medo – não

foi por acaso que se tornou chefe –, e, por isso, experimentava projetar medo nos outros. Isto

se vê, a manipulação de medo, por exemplo, nas seguintes passagens: ―Eu tinha de encher de

125

Isso explica a afirmação de Riobaldo, acerca do medo se sair da gente: ―No mato, o medo da gente se sai ao

inteiro, um medo propositado‖, Ibid., p. 20, grifo meu.

126 Ibid., p. 20.

127 Ibid., p. 200.

128 Ibid., p. 394, grifo nosso.

129 Cf. Ibid., p. 365.

130 Cf. Ibid., p. 511.

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medo as algibeiras de Zé Bebelo‖131

; ―Que tal Zé Bebelo [...] quando mal irado, ou quando

conforme querendo impor medo a todos‖132

; e também Diadorim sabia dessas manipulações

do medo: ―Diadorim, jaguarado, mais em pé que um outro qualquer, se asava e abava, de

repôr o medo mór. Ele veio marechal‖133

. No entanto, apesar dessa manipulação do medo,

destaque-se o que é importante para Riobaldo, o direito que era o seu e que deveria se

estender a todos: ―O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero –: é que ninguém

tem o direito de fazer medo em mim!‖134

.

Mas é possível mesmo manipular o sentir da gente, esse humor que é o medo? Uma das

estratégias empregadas por Riobaldo foi ensinada pelo compadre Quelemém, para a sua

manipulação do medo. Diz Quelemém:

Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo desejo a gente

realizar alcança – se tiver ânimo para cumprir, sete dias seguidos, a energia e

paciência forte de só fazer o que dá desgosto, nojo, gastura e cansaço, e de rejeitar

toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que, maior e melhor, ainda,

é, no fim, se rejeitar até mesmo aquele desejo principal que serviu para animar a

gente na penitência de glória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas

coisas mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma.

Isso é do compadre meu Quelemém. Espécie de reza?135

Segundo o que afirma Quelemém, para alterar o ânimo basta desejar firmemente, e ainda

praticar a privação dos prazeres, como ato de fé e confiança na proteção divina. Isto se a

situação permitir privar-se dos prazeres, pois há circunstâncias em que não há nem mesmo a

possibilidade de maiores privações, visto que a própria situação é de extrema privação de

prazeres e apaziguamentos. Nestes casos, o socorro vem da alegria. Alegrando-se, por

exemplo, Riobaldo pretendia manipular o medo: ―me alegrei. O medo se largava de meus

131

Ibid., p. 348.

132 Ibid., p. 510.

133 Ibid., p. 436, grifo meu.

134 Ibid., p. 394, grifo nosso.

135 Ibid., p. 153.

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peitos, de minhas pernas. O medo já amolecia as unhas. Íamos chegando numa tapera, nas

Lagoas do Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastos bons. O que resolvi, cumpri. Fiz‖136

.

Livrou-se do medo.

Riobaldo conta também o caso de sujeito medroso que pretende ganhar coragens

comendo coração de onça.

Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras aragens. Cabeça alta – digo.

Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo,

não me entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. O que há, que se

diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se puder comer cru o coração de

uma onça-pintada. É, mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas

matar à mão curta, a ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito

medroso, que tem muito medo natural de onça, mas que tanto quer se transformar

em jagunço valentão – e esse homem afia sua faca, e vai em soroca, capaz que mate

a onça, com muita inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis!137

Além de coração de onça, Riobaldo contou também que jagunço, para exercitar suas

coragens, comia o cru de cobra para manter sua valentia. Este é um dos perversos exercícios

para manter coragem e não abrandar nem esmorecer a alma, o ânimo.138

Há também o relato de outras estratégias para se vencer o medo. Diz Riobaldo: ―a gente

raivava alto, para retardar o surgir do medo – e a tristeza em crú – sem se saber por que, mas

que era de todos, unidos malaventurados‖139

. E ainda: ―cada um gritava para os outros

valentia de exclamação, para que o medo não houvesse. Aí os judas xingávamos. Para não se

ter medo? Ah, para não se ter medo é que se vai à raiva. A sebo!‖140

. Numa outra estratégia de

manipulação de medo, o jagunço se afirma ruim diante dos companheiros, para mostrar

136

Ibid., p. 154.

137 Ibid., p. 154.

138 Cf. Riobaldo, ―O senhor vigie esses: comem o crú de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal não se

abrandar nem esmorecer, até Só Candelário, que se prezava de bondoso, mandava, mesmo em tempo de paz, que

seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de

perversos exercícios de experiência‖, Ibid., p. 170.

139 Ibid., p. 296, grifo meu.

140 Ibid., p. 344.

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valentia: ―Obra de opor, por medo de ser manso, e causa para se ver respeitado. Todos tretam

por tal regra: proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a gente ao redor é duro

dura‖141

.

Não obstante, comer coração de onça, carne crua de cobra, e tantas outras formas de se

espantar o medo, este ânimo não pode ser controlado totalmente pelo homem. Com todas as

estratégias possíveis que eram adotadas por Riobaldo e pelos jagunços, há uma medida para

esse controle. O próprio Riobaldo afirma que ―não queria ter medo” do Hermógenes.142

Porém, ele declara em diversas passagens ter sido tocado pelo medo: ―O Hermógenes – ele

dava pena, dava medo‖, mas do demônio, completa, ―não se pode ter pena, nenhuma‖. Isso

porque ―ele é – é dôido sem cura. Todo perigo‖143

, todo medo. E até mesmo Zé Bebelo pode

ter tido medo do Hermógenes, levando em consideração o que foi declarado por Riobaldo.

Esta ocasião foi no julgamento, a propósito do destino que o Hermógenes estava indicando

para Zé Bebelo. Este pode ter revelado o seu medo, diante da sentença declarada do

Hermógenes: ―‗Ih! Arre!‘ – foi o que Zé Bebelo ponteou. Assim contracenando, todo o tempo

– medo do Hermógenes remedou, de feias caretas‖144

. Ainda que, segundo as palavras de

Riobaldo, conquanto Zé Bebelo estivesse contracenando, poderia estar de fato mostrando seu

medo, para dele, do medo, se esquivar. Até Diadorim, que segundo Riobaldo nunca tivera

medo, sendo jagunço de coragem inteirada, seu medo declarou: ―...A ser que você viu o

Hermógenes e o Ricardão, gente estarrecida de iras frias... Agora, esses me dão receio, meu

141

Ibid., p. 22.

142 Cf. Ibid., p.170.

143 Ibid., p. 235.

144 Ibid., p. 264.

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medo...‖145

. E Diadorim fez medo em Riobaldo.146

E Riobaldo declara ter escutado seu medo

na hora do duelo entre Diadorim e o Hermógenes.147

Apesar disso, o saber fazer medo, encher de medo, impor e repor medo nos outros, nos

homens, o essencial disto não está em saber ou não saber manipular essas matérias. Mas sim,

que o medo é algo que faz-se. O que é importante nessa matéria é que medo não é coisa

totalmente controlável e manipulável, porquanto vida e medo, são constitutivos, veremos. O

medo faz-se, a possibilidade do medo está já instalada desde e a partir do próprio ânimo do

homem. E disso, Riobaldo também estava ciente. Medo é coisa misteriosa que pega, que

cresce, contamina. O medo tem movimento próprio. Diz Riobaldo: ―enquanto houver no

mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam – o contagioso‖148

. Esse

movimento autônomo do medo parece ser aquele produzido dentro da gente. Se o homem não

controla o medo, o medo é que controla o homem? De qualquer modo, medo e vida estão

intimamente relacionados. Resta-nos aprofundar nessa hipótese e saber como se relacionam

propriamente vida e medo.

145

Ibid., p. 284.

146 Cf. Riobaldo, ―E Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva‖, Ibid., p. 191.

147 Cf. Riobaldo, ―O senhor soubesse... Diadorim – eu queria versegurar com os olhos... Escutei o medo claro

nos meus dentes... O Hermógenes: desumano, dronho – nos cabelões da barba... Diadorim foi nele... Negaceou,

com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só...‖, Ibid., p.

596, grifo meu.

148 Ibid., p. 394.

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3. A maneia de medo e o afeto enraizado

Chegamos a um fato: o medo possui também uma dinâmica própria. Ele simplesmente

pega. O medo pega até mesmo nos homens mais valentes. Esse foi o caso de Davidão,

jagunço brabo, pegou medo um dia: ―Vai, um dia, coisas dessas que às vezes acontecem, esse

Davidão pegou a ter medo de morrer‖149

. O mesmo se deu com Zé Bebelo. Sua hora de ter

medo também chegou: ―Ele concebia medo. Conheci. Estava. Zé Bebelo pegou a principiar

medo! Por quê? Chega um dia, se tem‖150

. Se tem medo sem qualquer explicação! Zé Bebelo

pegou a ter medo do risco de doença e morte. Na época, Riobaldo se riu do medo de Zé

Bebelo, mas depois, afastado do asp’ro151

da vida, conheceu diferente o sentido do medo. Tal

regra parece constituir o humano. Este princípio constitutivo, Riobaldo só o pôde formular em

idade avançada, com os pés da idade152

. Quando jovem, se riu por dentro, do medo que Zé

Bebelo estava sentindo. Porém, ao recordar desse medo, concluiu:

Assim mesmo, em errei; disso não sabia. Mas o cabedal é um só, do misturado viver

de todos, que mal vareia, e as coisas cumprem norma.153

Ainda jovem, Riobaldo não sabia desse princípio fundamental que rege o sentir medo. Por

isso riu e errou. Depois é que soube algo acerca do funcionamento do sentir humano – isto

indica que Riobaldo já sabia algo do medo, quando formulou seu projeto. O viver misturado,

o misturado viver de todos a que ele se refere, faz cumprir uma norma: o medo simplesmente

passa de um para outro, de repente, sem manipulação nem propósito, sem quê nem porquê, o

149

Ibid., p. 84.

150 Ibid., p. 400, grifo meu.

151 Cf. Ibid., p. 10.

152 Cf. Ibid., p. 46.

153 Ibid., p. 400.

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medo passa de um para outro. Nisso, nesse princípio não há variação: o sentir contamina. Essa

é a norma do humano: a norma do misturado viver, essa é a regra. Possivelmente, em

decorrência desta regra foi que Riobaldo se transformou, a partir da regra do misturado viver

que contagia afetivamente. O contágio serve tanto para o medo quanto para a coragem. Está

nisto o cabedal, o bem, o patrimônio do humano, sua herança – seu quinhão, veremos –, o

próprio, o que é nosso por direito.

A maturidade lhe deu uma apreciação mais arguta do medo. Riobaldo entendeu que o

medo é um sentir que pode passar: ―Alguém estiver com medo, por exemplo, próximo, o

medo dele quer logo passar para o senhor‖154

. Apesar disso, é possível resistir, em certa

medida: ―se o senhor firme aguentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem sua redobra e

tresdobra, que até espanta‖155

. Na verdade, o fortalecimento da coragem, esse aguentar-não-

ter-medo, diz também de segurança, firmeza de permanecer seguro em si mesmo, de não

temer. Mas, apesar disso, chega uma hora que o medo vem. Até mesmo Zé Bebelo, que

―sempre se suprira certo de si, tendo tudo por seguro‖156

, agora bambeava.

Este fato leva a uma observação desconcertante, em vista de até mesmo Zé Bebelo ter

sentido medo: uma hora todo homem pega medo, perde sua segurança, sua firmeza, sua

certeza. A verdade é que uma hora o medo surge. Diz Riobaldo em outra passagem: ―Eu

sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz oco no ânimo do mais valente qualquer...

Com tanto, eu fui e disse: – ‗Tudo na vida cumpre essa regra...‘‖157

.

154

Ibid., p. 400.

155 Ibid., p. 400.

156 Ibid., p. 400.

157 Ibid., p. 534.

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A regra à qual a passagem se refere diz que todo humano é atravessado por medo, em

alguma medida, em algum momento, em algum instante ele simplesmente surge. Tal regra

decorre da observação que Riobaldo realizou acerca do funcionamento, melhor, do

cumprimento da vida. Tal regra é a fragilidade e a grandeza do humano, a um só tempo. Nela

estão inscritos os limites e as possibilidades do humano, enquanto medo e coragem. A

dificuldade de compreender esta regra está em pensá-la sem ignorar a força dessa

ambiguidade. Aguardemos até o momento de considerar o valor dessa ambiguidade, de

maneira adequada. Por enquanto, devemos dirigir o olhar para a questão do medo.

Esta observação de Riobaldo nos leva a uma conclusão importante, e ao mesmo tempo,

desconcertante, pois que o sentir medo se apresenta como um sentir inevitável. Além de não

poder ser manipulado sempre, o medo é um sentir que irá surgir, sem avisar. Daí a conclusão:

o medo é constitutivo do humano. Há uma passagem decisiva de GSV, na qual esta

interpretação estará pressuposta. Vejamos o que ela pode ainda acrescentar a este saber. Diz

Riobaldo:

Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que maneia. Em esquina que me veio.

Bananeira dá em vento de todo lado. Homem? É coisa que treme.158

Com esta afirmação, Riobaldo exprime sem qualquer senão que o que perfaz o humano, o que

constitui a humanidade do homem, é medo. O que é o humano, ou seja, o que é isto, o

homem? Riobaldo pergunta. Homem é isto, é este ser, é este vivente que treme, que sente

medo, e que não pode deixar de sentir. Medo participa disso que o homem é, e não poderia

deixar de participar. Riobaldo não está falando de qualquer medo, do trivial do corpo. O

trivial do corpo é controlável, pode ser manipulado. O medo a que ele se refere aqui é o medo

que maneia. Medo: um tal sentir que maneja o homem, que move ou promove o agir do

158

Ibid., p. 152, grifo meu.

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homem, que governa, que prende com uma maneia, com uma correia. O medo governa o agir

do homem, dá limites, paralisa e até, ou se quiser, controla, determina, ao modo da maneia,

que pode prender tanto quanto se prende o cavalo, impedindo de correr, e/ou impelir a

galopar. Prende, governa, impede ou impele o animal que é o homem a agir, caminhar. Isto

seria o que o medo faz no homem? O medo maneia o homem.

Isto implica dizer que o sentir medo não é passível de ser manipulado pelo homem, pelo

menos o medo, aquele medo que maneia, ainda que, aqui ou ali, o medo possa ser purgado159

,

mudando o coração, por exemplo. Antes disso, o medo é o que determina a ação do homem,

melhor, determina o próprio homem e, consequentemente, suas ações. Mas como? Como o

medo poderia estar na constituição do humano e, por isso, interferir na ação, em sua

constituição? A constatação desse fato aponta para a outra proveniência do medo que

anunciamos anteriormente: o medo em alma, o medo que está na constituição do homem, no

oco, no sentir, o medo que cresce a partir de sua alma, do seu corpo.

Diante de tudo isso, será necessário recolocar o medo como questão radical. Talvez,

perguntar sobre seus modos, sua forma, o que lhe dá forma e enforma. Perguntar: como o

medo determina o homem, sua vida? Há formas e formas de medo. Riobaldo aprendeu em sua

travessia que o medo sempre reaparece de diversos modos, ele ―resiste por si, em muitas

formas‖160

. O medo é ―sentido sorrateiro fino, que outros e outros caminhos‖161

vai tomando.

Assim, há muitas modalidades de medo a se evidenciar a partir de GSV. Já de range rede,

narrando sua travessia, Riobaldo conta diversas situações e especulações acerca das

159

Cf. Riobaldo, ―Eu estando com um vapor na cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração de posto. E a

viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do medo: grande vão eu atravessava‖, Ibid., p. 152, grifo

meu.

160 Ibid., p. 357.

161 Cf. Riobaldo, ―Como que o medo, então, era um sentido sorrateiro fino, que outros e outros caminhos logo

tomava.‖, Ibid., p. 453.

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qualidades de medo. A angústia162

, a cautela163

nos envios do bando, as decisões e

realizações164

, a incerteza165

, o susto166

, muitos são os modos de manifestação do medo, que a

todo momento se mostra de um certo modo. Pode-se até afirmar que a coragem/valentia vem

do medo.167

Até mesmo dor – do corpo ou da ideia – é coisa medonha, isto é, é coisa que

fornece medo.168

Tudo isso induz a investigação para a necessidade de distinção dos modos de

manifestação do medo, pois há medo e medo. Como diz Riobaldo, ―Cada hora, de cada dia, a

gente aprende uma qualidade nova de medo!‖169

. E para sabermos quais qualidades de medo

atravessaram Riobaldo e também todo o Sertão, todo sertanejo, seria mesmo proveitoso

investigar com mais atenção esses modos, para, assim, buscar ver como o medo se instala no

homem, onde surge, de que maneira brota, para, diante disto, podermos dizer sobre sua

formação e contaminação.

Não obstante, escutar a experiência de nosso narrador será sempre a atitude mais

ponderada, pois apesar de dizer querer saber acerca dessa matéria, como se não soubesse, ele

sabe mais do que o suficiente para orientar a discussão aqui encaminhada. Riobaldo, na sua

fase de especulação, compreendia melhor isto que o medo é. Tomemos dele nossas lições.

Riobaldo, diga:

162

Cf. Riobaldo, ―Ah, fiquei de angústias. O medo resiste por si, em muitas formas‖, Ibid., p. 357.

163 Cf. Riobaldo, ―A outra receita que descumpri, era a de repartir o pessoal em turmas. Cautelas... Que não. Eu

fosse ter cautela, pegava medo, mesmo só no começar. Coragem é matéria doutras praxes‖, Ibid., pp. 448-449.

164 Cf. Riobaldo, ―Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, hoje. Você escolheu Marcelino Pampa,

você decidiu e fez...‖ Era. Gostei, em cheio, de escutar isso, soprante. Ah, porém, estaquei na ponta dum

pensamento, e agudo temi, temi‖, Ibid., p. 87.

165 Cf. Riobaldo, ―Na verdade. Aquela hora, eu, pelo que disse, assumi incertezas. Espécie de medo? Como que o

medo, então, era um sentido sorrateiro fino, que outros e outros caminhos logo tomava‖, Ibid., p. 453.

166 Cf. Riobaldo, ―Mas, nos tons do velho Ornelas, eu tinha divulgado um extravago de susto, recuante, o leve

medo de tremor. Isso foi o que me satisfez‖, Ibid., p. 456.

167 É o medo que dá a força da coragem. Esta é a hipótese a que chega Riobaldo, conversando com Alaripe

acerca desta questão: ―Tudo tu vê, Alaripe: eu acho que o enjôo da paz será também algum outro medo da

guerra...‖ – ―Pode que seja.‖ – ―E mas só o medo da guerra é que vira valentia...‖, Ibid., p. 463, grifo meu.

168 Ibid., p. 21.

169 Ibid., p. 87.

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Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da gente volteia, mas em certos

modos, rodando em si mas por regras. O prazer muito vira medo, o medo vai vira

ódio, o ódio vira esses desesperos? – desespero é bom que vire a maior tristeza,

constante então para o um amor – quanta saudade... –; aí, outra esperança já

vem...170

Aqui, o medo figura como um sentir que se relaciona com os outros sentires, por regras.

Segundo sua compreensão, esta passagem enquadra alguns modos do sentir, algumas das

disposições fundamentais de humor do humano. Umas relacionando-se com as outras,

entretendo-se numa dinâmica de alterações que poderiam ser mais bem investigadas,

focalizando-se os seus volteamentos, observando-se o giro dessas disposições: prazer, virando

medo; o medo, virando ódio; o ódio, desespero; desespero, tristeza; tristeza, amor; amor,

esperança.171

Segundo esta dinâmica, o sentir pode ser entendido como um modo de

compreender-se, de compreender-se inserido numa situação, num contexto, em cada

momento, no mundo, na vida, no sertão, que, segundo Riobaldo, volteia, muda-se, altera-se,

em função do seu movimento, sua dinâmica própria, suas regras, em função das mais variadas

situações.

Com este volteamento, talvez seria possível explicar aquela variação do sentir de

Riobaldo, que foi indicada na ocasião em que se observou sua disposição de humor, durante a

travessia do de-Janeiro.172

Lembremos que a vergonha entreteve uma relação intima com o

medo. Talvez, seria o caso de demorar neste jogo de variações, nos matizes do seu humor,

nesse roda-a-roda do sentir, para entendermos como os mais diferentes humores se cruzam e

se alteram. No entanto, apesar de todo proveito que seria retido dessas análises, devemos nos

manter firmes no curso em que estamos, dando continuidade à escuta da narração de

170

Ibid., p. 232, grifo meu.

171 Numa outra passagem, Riobaldo sugere a estimulação da raiva para substituir o medo, conforme ―Eu

questionava, comigo, que eles deviam de lavorar maior raiva. Raiva tampa o espaço do medo, assim como do

medo a raiva vem.‖, Ibid., p. 573.

172 Cf. item deste capítulo, 1. Riobaldo, entre medo e coragem: travessia.

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Riobaldo, uma vez que o ganho será maior se investigarmos o que é fundamental para a

compreensão do medo. Precisamos compreender a regra, e não seus casos variados.

Riobaldo afirma algo que atende perfeitamente a esta nossa necessidade de

compreender o fundamental, a regra, o princípio, a norma o que não se deixa a mercê de tais

variações e volteamentos. O importante e fundamental se mantem sempre segundo a mesma

regra. Qual regra? Quais regras determinam o volteamento do sentir? O importante, neste

caso é o que permanece constante. Diante de tanta variação do sentir, e ainda frente às

variações do medo, Riobaldo dá prosseguimento à elaboração de seu saber. Este saber sobre o

sentir nos lança no essencial. A propósito das variações do sentir, diz ele ainda, dando

continuidade a sua narração acerca da regra do volteamento:

Mas, a brasinha de tudo, é só o mesmo carvão só. Invenção minha, que tiro por tino.

Ah, o que eu prezava de ter era essa instrução do senhor, que dá rumo para se

estudar dessas matérias...173

Anteriormente, como líamos, esta mesma passagem tratava do sentir e suas variações. Agora

o narrador destaca a origem do sentir, de todo sentir. Agora, tem-se a origem, a causa, o fundo

do sentir, a norma, a regra de qualquer sentir. Por isso, o questionar não deve recair sobre os

volteamentos proporcionados pelo sentir, que sempre estão sobredeterminados pelas situações

diversas, pelos contágios, pelos muitos atravessamentos a que no sertão o jagunço está sempre

afeito, sendo sempre afetado por parentes174

de medo. A questão que irá direcionar a

investigação deve recair sobre a origem, e não sobre a diversidade. Sendo assim, seguindo o

saber de Riobaldo, perguntemos: qual é o carvão que embrasado – vivo, animado, carvão em

brasa só, só sendo carvão só – dá origem para toda qualidade de sentir? Com isso, nossa

questão não deve se empenhar na catalogação dos medos, pois o medo volteia e sempre acaba

173

Ibid., p. 232, grifo meu.

174 Cf. Riobaldo acerca de Zé Bebelo, ―medo, ou cada parente de medo, ele cuspia em riba e desconhecia‖, Ibid.,

p. 130.

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resistindo em muitos sentires, ludibriando a especulação, dando apenas espelho, como sua

causa. A questão mesma está no que devemos compreender, isto é, a origem do medo. Assim,

a investigação estará mais próxima do que o medo é. Mas o que Riobaldo entende como

sendo o carvão e a brasa do medo, afinal?

Riobaldo forneceu uma pista que, talvez possa permitir o esclarecimento desse carvão,

dessa brasa, dessa origem do sentir. Riobaldo afirma algo que remete nossa interpretação para

o fundo, para o profundo dos mistérios do sentir. Ele afirma que

Medo agarra a gente é pelo enraizado.175

Estaria esse enraizamento nas proximidades do carvão que origina o sentir? Pode ser que sim.

Mas, que proximidade é esta entre carvão e raiz que estamos sugerindo e que permitiria

esclarecer a gênese do medo? O que levaria a seguir e aprofundar até o fundo dessa raiz

poderia nos levar a explicar o que é a brasa de todo sentir? Saber que isto, que esse fundo,

esse carvão é que guarda o segredo da origem do medo, o essencial e importante. Pode-se

dizer que o medo prende, agarra, abraça, pega o homem pelo enraizado e, assim, o maneja, o

controla puxando pelas rédeas do enraizado, puxando por aquilo que está enraizado no

homem. O que é esse enraizado? Esse enigma, pelo visto, necessita de adivinhação. O que é

isto que o medo agarra, prende, pega e abraça? Devemos perguntar o que é o enraizado do

homem. Podemos tentar adivinhar e afirmar que esse enraizado está mesmo no seu corpo.

Homem não é coisa que treme?! O medo, o temor... o tremor, é a indicação de que o medo

agarrou o homem pelo corpo: é o corpo que treme – o que é corpo? Mas ainda não nos

questionamos sobre o que vem a ser uma raiz, para que dê a ver o local, o âmbito, onde o

medo agarra.

175

Ibid., p. 153.

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O medo agarra o homem pelo enraizado. O enraizado a que se refere Riobaldo parece

ser o corpo, isto é, afeto. O medo toma, ataca, agarra, pega, isto é, afeta aquilo que é afetável,

que é sensível, o seu corpo. O que no homem perfaz afeto é o próprio corpo, o corpo do

homem, seu ânimo. A passagem-questão sugere que o medo atinge o homem no enraizado,

em seu enraizamento afetivo, no seu corpo, no mais intimo do seu corpo: no coração. Parece

que o medo atinge o homem pelos seus afetos, amizades, amores... Ouçamos a passagem

completa, pois ela poderá iluminar o agarrar do medo. Ela diz o seguinte:

Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a

criatura solta [sem raiz, sem afetos]. Medo agarra a gente é pelo enraizado.176

Nesse caso o desespero solta, afrouxa as raízes do homem, na verdade, faz perder as raízes,

para que o medo não tenha onde agarrar e afetar. Nesta passagem Riobaldo opõe desespero e

medo. O desespero funciona como remédio para a tristeza do medo. Isto porque torna o

homem solto dos seus enraizamentos e, consequentemente, liberado de ser eivado de medo.

Riobaldo está dizendo que o medo ataca pelo enraizamento do homem, pelo enraizado. O

medo agarra, eiva, contamina, infecta, mancha e maneja o homem através do enraizado, pelo

que formou, pelo que criou raiz no corpo, no coração, na alma, no oco do homem.

Afinal, o que diz a palavra raiz? O entendimento disto pode se mostrar decisivo para

confirmar o modo como age o medo, para esclarecer a infecção, o contágio do medo e

também, por sua vez, indicar sua origem, seu carvão, sua brasa. O que é uma raiz no trivial da

língua: parte inferior de uma planta, que promove sua fixação no solo, exercendo a função de

conduzir nutrientes e água para a manutenção da vida; num sentido figurado, raiz pode

significar também germe, princípio, origem e ainda ligação e vínculo. Raiz sendo o que

promove a fixação do homem na terra, no sertão, exerce assim a função de sustentação,

176

Ibid., p. 153

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mantém o homem de pé, firme em si, confiante. Sendo o que sustenta o homem firme em si

mesmo, ao mesmo tempo, o alimenta, promovendo a manutenção da sua vida, é o que

alimenta sua alma, seu corpo, seu coração e promove suas ações. Em sendo o seu princípio,

origem, o enraizado aponta para o nascimento do homem, seu início, seu princípio, marcando

suas vinculações afetivas mais profundas. Então, daí, esse enraizado é agarrado e atacado

pelo medo, o medo agarra o homem nisso, a partir desse solo, ou melhor, o medo agarra o

que se prende ao solo profundo do corpo do homem, pega o homem pelo que nutre e fixa o

seu corpo, o que o sustenta; o medo ataca em seu princípio, em suas ligações e vínculos mais

fundamentais, seus afetos.

No caso de Riobaldo, qual é a sua raiz mais profunda? Qual é a fonte, a origem, de todo

o seu sentir, a brasinha de tudo, que determina seus mais variados sentires? Qual é o seu

carvão, sua brasa, onde fica, em Riobaldo, esse vão, esse carvão, esse oco? Vamos guardar

estas perguntas, para que elas ganhem a gravidade que merecem. Por enquanto, antes de

encerrar esta discussão, será o caso de perguntar por aquele estado de desespero quieto de que

falamos acima e que libera, solta o homem de seus enraizamentos e, assim, o põe livre

também do medo. Esse sentir específico pode até mesmo dar a ver de modo mais evidente a

origem do medo. Talvez esse desespero seja até mesmo proveniente do medo, talvez seja uma

variação, uma espécie de medo radical. O medo, um medo tão radical, tão fundamental, que

de tão intenso pode chegar a fazer o homem – animoso – chegar a sentir nada. Será necessário

ainda pensar sobre o mais radical sentir medo, aquele que se manifesta mais próximo do

interior, da brasa, do carvão só, mais no enraizado. Pergunte-se pelo sentir mais radical, pelo

medo mais fundamental que conseguirmos apontar. Para essa qualidade ou invenção de

medo, Riobaldo tece um breve comentário:

Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que

tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia com um grande cansaço.

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Em minhas fontes, cocei o aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode

haver sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo.177

Qual é o maior de todos os medos que pode haver sempre, porque sempre há, e que ainda não

há? Esta afirmação o leitor deve decifrar, deve entender. É preciso procurar uma resposta,

uma explicação, um entendimento para o que seja tal invenção de medo. Isto é para decifrar,

ao modo da decifração do enigma da esfinge, pois se o leitor não sabe, está fora do círculo de

compreensão, e, assim, não entenderá; se não entende, como é que vai entender?178

Será

devorado! Mas, para quem não entende, que é o nosso caso, há uma alternativa: quem não

sabe, procura adivinhar. Adivinhar com o corpo, com os sentidos.179

Portanto, é preciso

adivinhar, ainda uma vez. É preciso entrar nesse círculo, ainda que através da adivinhação,

para entender este mistério.

Que medo é esse, afinal, do que sempre há e ainda não há, que agarra a gente pelo

enraizado e arranca todo o enraizamento do homem, deixando ele solto, vazio, sentindo nada?

Adivinho: é o medo da morte! O medo mór que sentimos ante a morte! O medo ante as costas

do mundo, o medo pavor180

ou o medo mistério181

, medo do desconhecido, o que há sempre e

que sempre ainda não há. O porvir irremissível, insuperável, certo e indeterminado da

morte.182

Morte, como a entende Riobaldo, é ―corisco que sempre já veio‖183

. É o raio, é o

súbito, é o derradeiro e inesperado, que acomete todo e qualquer homem, em qualquer tempo.

177

Ibid., p. 152, grifo meu. Pode interessar conectar essa expressão, costas do mundo, com uma outra expressão,

navegar por detrás das coisas. Esta foi mencionada num diálogo entre Riobaldo e Lacrau a propósito do pacto.

Riobaldo pergunta ao Lacrau se era capaz de fechar pacto com o Diabo. Este responde o seguinte: ―Ah, não,

mano, quero lá não navegar por detrás das coisas...‖, Ibid., p. 409.

178 Cf. Riobaldo, ―Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?‖, Ibid., p. 211.

179 Cf. Riobaldo, ―O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende‖, Ibid., p. 29.

180 Cf. Ibid., p. 23.

181 Cf. Ibid., p. 60.

182 A relação entre o sentir de Riobaldo e a morte será ainda explorada mais à frente, relacionando-se com a

questão da temporalidade, no próximo capítulo, A travessia de Riobaldo, liberdade, ação temporalidade.

183 Ibid., p. 215.

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A morte não avisa nem espera uma oportunidade. Isto porque, para todo e qualquer homem, a

sua morte ―já está em edital‖184

. Isto significa que cada um tem a sua própria morte, sua morte

própria. O problema é que não se sabe para quando está marcada. Mas o homem deve tê-la

presente, pois sua morte será ―uma só‖185

. Isto quer dizer que morte, a minha morte, deve se

compreender como acontecimento extraordinário, fundamental, importante, inevitável, certo e

que ainda não veio, e que sempre já veio, porque sempre está encaminhada, encaminhando-se,

aproximando-se – tudo isso parece estranho, por enquanto. Morte é o acontecimento que faz o

homem, um homem, todo homem, passar do oco que é a vida, a sua vida, para o ocão186

, para

o maior vazio, que é e está nas costas do mundo. Os grandes vazios. Talvez possamos

interpretar esse grande vazio como a maior liberdade que pode o homem alcançar em vida.

Mas, vamos com calma.

Talvez, o esvaziamento provocado por esse medo radical, o medo mor, o medo das

costas do mundo seja o mesmo vazio que afetou Riobaldo e o transformou em seu rito

iniciático, tornando Riobaldo mais que oco: ocão. Retomemos, por ora, a travessia dos rios

para, quem sabe, recuperar algo que deixamos passar acerca do medo.

184

Ibid., p. 581.

185 Ibid., p. 335.

186 Cf. Ibid., p. 225.

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4. De-Janeiro: rio da consagração

Riobaldo teve ou não algum medo após sua iniciação no de-Janeiro? Teve medo na

travessia do rio e depois de sua iniciação, não teve mais? Riobaldo foi só coragem, só valentia

após a travessia dos rios? Seu relato parece sugerir que após sua transformação, não teria mais

sentido medo, não teria mais sentido nada, somente aquela transformação pesável. Essa

transformação também requer ainda esclarecimentos. Na medida em que o sentir medo

figurou como a questão da iniciação, seria razoável esperar que não sentisse mais medo

algum, visto que se transformou, tornou-se outro. Tornou-se, afinal, o quê? O que Riobaldo se

tornou após a travessia do rio? Enfim, teve ou não medo depois do atravessamento do rio?

Na verdade, esta é uma pergunta bem trivial para o leitor atento de GSV e sua resposta já foi

dada anteriormente. Sim, Riobaldo continuou a ter medo. Isto foi constatado através das

análises anteriores, considerando as palavras de Riobaldo. Esta resposta está resguardada no

fato de todo homem ter medo, ser constituído de medo, visto que homem é coisa que treme.

No entanto, será necessário ainda esclarecer este caráter paradoxal do medo: o caráter

fundamental do medo, sua necessidade, bem como o destino de se destruir todo fundamento

de medo. Ser no medo, destruir o medo, e manter-se na sustentação desta ambiguidade

fundamental187

.

187

Em seu livro Ficção e verdade: diálogo e catarse em Grande Sertão: Veredas, o Professor Ronaldes de Melo

e Souza ressalta uma importante característica estrutural da referida obra de Guimarães Rosa. Ronaldes acentua a

importância do princípio geral que determina toda a estrutura narrativa de GSV. Ele recupera ―o princípio geral

de reversibilidade‖ descrito pela primeira vez por Antonio Candido, em seu ensaio O homem dos avessos.

Segundo o Professor Ronaldes, ―Estes diversos planos da ambiguidade se conjugam e compõem uma dialética

extremamente viva, que sugere e solicita, para além do dilema de ser ou não ser, formas mais plenas de

integração.‖, cf. RONALDES, 1978, p. 26. (Série Compromisso – Nº 3). Este princípio geral de reversibilidade,

que marca a leitura por uma constante necessidade de tomada de posição interpretativa exige uma atitude que

ultrapasse os dilemas decorrentes das ambiguidades estruturais da obra. Conforme Antonio Candido, prendem-se

a este princípio de reversibilidade as diversas ambiguidades que consegue apontar: ―Ambiguidade da geografia,

que desliza para o espaço lendário; ambiguidade dos tipos sociais, que participam da Cavalaria e do banditismo;

ambiguidade afetiva, que faz o narrador oscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília e o amor profano da

encantadora ‗militriz‘ Nhorinhá, mas entre a face permitida e a face interdita do amor, simbolizada na suprema

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Então: teve e não teve medo? Seria esse o motivo, talvez, por que Riobaldo quisesse

entender do medo e da coragem. Que qualidade de medo queria ele extirpar de sua vida? O

medo depositado ou o medo produzido a partir de si mesmo, isto é, aquele medo originado no

próprio e a partir do próprio homem? Poderíamos supor, então, que há medo bom e medo

mau? Também ainda não pensamos como Riobaldo conquistou sua vida própria, já que teve

medo. Aliás, na verdade, nem mesmo levantamos esta questão: se conquistou ou não o

próprio de sua existência, se conseguiu ver/saber o que estava pertinho dele, por direito, e que

o levaria a boas ações próprias188

. Que identidade, melhor, que constituição ambígua é essa,

composta pelo medo e pela coragem, por medo bom e medo mau?189

ambiguidade da mulher-homem que é Diadorim; ambiguidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o

Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem. Estes

diversos planos da ambiguidade compõem um deslizamento entre os pólos, uma fusão de contrários, uma

dialética extremamente viva, – que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de

integração do ser. E todos se exprimem na ambiguidade inicial e final do estilo, a grande matriz, que é popular e

erudito, arcaico e moderno, claro, obscuro, artificial e espontâneo.‖, cf. CÂNDIDO, Antônio. O homem dos

avessos. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.) Guimarães Rosa: seleção de textos. 2.ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1991, p. 305. (Coleção Fortuna Crítica – 6). Cândido completa ainda esta posição de

compatibilização da ambiguidade e das ambivalências, indicando a mistura entre os níveis do real e do irreal, do

aparente e do oculto, do dado e do suposto. Ele afirma que a ―coerência do livro vem da reunião de ambas, [...]

manifestando o caráter uno, e total, do Sertão-enquanto-mundo‖, CANDIDO, 1991, pp. 305-306. Diante disto,

acredito que este caráter estrutural de ambiguidade apresenta-se também nas formas do medo, promovendo,

assim, uma infinidade de variações do sentir e do medo. Ao estender este princípio para a ambiguidade

decorrente dos processos do medo, será possível alcançar alguma inteligibilidade para este fenômeno.

188 Cf. Riobaldo, ROSA, 2006, p. 100.

189 Será de extrema importância desenvolver no futuro um estudo comparativo que tenha por objetivo confrontar

as considerações acerca do medo e da coragem, em GSV, com as investigações de Aristóteles sobre o mesmo

tema, em sua Retórica e em sua Ética a Nicômaco. Na Ética, Aristóteles abre o Capítulo 6, do Livro III,

recuperando suas conclusões de que a coragem é um meio-termo entre o temor e a temeridade. Quem é leitor de

Aristóteles sabe que alcançar esse meio-termo significa ter já desde sempre ou ter adquirido com esforço através

da experiência uma elevada capacidade de compreensão que qualificaria tal homem como virtuoso. Esta

capacidade elevada de compreensão da situação na qual o homem age ou deve agir diz respeito à phronesis, a

virtude da ponderação ética. Em minha dissertação de Mestrado em Filosofia, sob o título O conceito de

apropriação como questão fundamental do projeto hermenêutico de Paul Ricoeur, realizei um estudo

comparativo em que a phronesis desempenhava um importante papel para a atividade de compreensão,

especificamente em seu momento de aplicação hermenêutica, sob o título Uma revisão do conceito de aplicação,

através de Gadamer. Segundo Aristóteles, a phronesis é uma virtude dianoética que relaciona a parte racional da

alma com a parte ética, relacionada às ações. Como diz Aristóteles, ―A sabedoria prática [phronesis] deve, pois,

ser uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir‖, ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel

Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 145, grifo meu. Neste caso, como afirma

Aristóteles, ―temer certas coisas é até justo e nobre, e vil o não se arrecear delas‖, ARISTÓTELES, 1984, p. 90.

Assim, pode-se concluir que há medos que produzem bem. Aristóteles aponta ainda no Capítulo 9 uma inter-

relação entre coragem (andreia - ajndreiva), medo (phóbos - fovbouς) e temeridade ou confiança (tharros -

qavrrh). Tenho certeza de que este estudo futuro poderá contribuir sobremaneira para uma interpretação das

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O leitor de GSV, para não naufragar em seus rios e desvios, deve ter sempre em mente –

além da coragem interpretativa – o que Riobaldo afirma nas primeiras páginas de seu relato:

―O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre

é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!‖190

, a um só tempo.

Cabe lembrar que seu destino, como foi ressaltado acima era destruir o sarro de medo, o

fundamento do medo, e não o medo em si mesmo, para que pudesse conquistar vida. A visão

do leitor, sua compreensão deve antes promover a festa do pensamento, que é ver nas

diferenças, divergências, incongruências, e ambiguidades, uma unidade possível. Tal

sabedoria de leitura exige ver no todo da diversidade o que reúne num sentido.191

Possivelmente nisto encontraremos a regra que opera nos volteamentos do sentir, já que

fizemos a escolha de concentrar a atenção no fundamental, no essencial, no universal do sentir

de Riobaldo.192

Para que a investigação seja capaz de compreender adequadamente esta aparente

contradição, decorrente da ambiguidade fundamental do medo – sentiu e não sentiu medo –

presente na interpretação, uma pergunta simples irá orientar agora a reflexão. Assim, será

possível elaborar um pouco melhor a questão do medo. Foram indicadas muitas nuances e

variações para o fenômeno do medo. No entanto, eis a pergunta que pode conduzir a

investigação ao aprofundamento de nossa compreensão acerca do fenômeno do medo: como o

medo de Riobaldo operou ao longo de sua travessia pelo Grande Sertão? Melhor: em seu

operar, qual foi o papel que o medo desempenhou na travessia de Riobaldo? Responder a tal

ações de Riobaldo à luz da ética, bem como considerar ainda um estudo retórico de seus discursos, pois através

de sua elaboração discursiva ele manipulava medo e coragem.

190 ROSA, 2006, pp. 11-12, grifo meu.

191 O filósofo antigo Heráclito, a isto chamava sabedoria, em seu Fragmento 50: ―Não pertencendo, na escuta, a

mim mas a postura recolhedora: deixar pôr-se o mesmo: está em vigor um envio sábio: um unindo tudo‖,

HEIDEGGER, Martin. Logos (Heráclito, fragmento 50). In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2010, p.

199.

192 Cf. item anterior, A maneia de medo e o afeto enraizado.

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questionamento conduzirá a investigação ao esclarecimento do modo como o medo

configurou o seu caminho, como o medo determinou sua travessia. Consequentemente, será

possível ver aquele princípio, aquela regra que rege o sentir do humano de maneira mais

clara. Como, isto? Considerando não a diversidade de formas do medo, mas sim valorizando

agora uma interpretação que reúna os dois extremos fundamentais de GSV: seu princípio e

seu fim, sua abertura inaugural e seu telos, sua perfeição, seu perfazimento. Nossa hipótese

diz que: esclarecer o modo como o medo operou na travessia de Riobaldo irá, paralelamente,

nos possibilitar vislumbrar alguma relação entre o medo e a temporalidade.

Muitas foram as manifestações de medo de Riobaldo. Ser-nos-ia impossível tratar de

todas, com a devida atenção, explicitando cada caso de medo, cada situação especifica. Aqui,

teremos de selecionar as circunstâncias de seu medo a serem analisadas. Há duas situações

particularmente especiais que tratam do medo de Riobaldo e que parecem estar

intrinsecamente relacionadas. Estas duas situações que marcam o medo de Riobaldo é que

serão aqui destacadas. A primeira diz respeito ao seu primeiro relato de medo, o medo na

travessia do Rio-de-Janeiro, situação a que já foi apresentada uma análise prévia. A segunda

situação aparece no final da obra, pouco antes de Riobaldo relatar o duelo final entre

Diadorim e o Hermógenes. Relacionando esses dois pontos, essas duas pontas de sua

narrativa, acreditamos que será possível compreender o sentido geral do medo diante da

obra. A hipótese a ser testada aqui diz que, ao demonstrar uma necessária convergência

entre o princípio e o fim da obra, a investigação estará realizando o esclarecimento da

função do medo para o destino de Riobaldo. Daí irá decorrer nossa compreensão da

temporalidade.

A propósito da primeira situação de medo que será destacada, já foi enfatizado o humor

de Riobaldo, onde buscamos evidenciar a importância do medo para a investigação da obra.

Agora, será oportuno enfatizar ainda mais a questão do medo relativo ao processo de

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transformação de Riobaldo, enquanto um divisor de águas, que selará o destino de Riobaldo,

perfazendo sua história/estória, seu destino.193

Lembremos que tudo começa no porto de um

rio, o de-Janeiro. Aliás, ainda não sabemos o que é, no que consiste um rio. Afinal, o que é

isto, um rio? Segundo a caracterização do Professor Gilvan Fogel,

Rio é um eterno símbolo da Vida. Mesmo uma conjugação de eternidade – da

corrente, do fluxo da Vida. Eternamente, quer dizer, a sempiternidade da Vida como

o único âmbito possível, como o lugar do tempo, enquanto e como temporalidade.194

Rio, assim, é vida. O modo de vigorar de um rio possui, pois, como princípio, a sustentação, a

con-jugação de uma eterna inauguração da vida, do fluxo, do tempo. O rio é o lugar do

tempo. No correr de suas águas, o rio mostra o fluxo do próprio tempo instaurando-se, do

tempo próprio. Que é isso? E essa instauração é a marca de uma origem, do princípio, da

inauguração. Esse foi o primeiro rio de Riobaldo e, segundo ele afirma, rio é coisa que nunca

pode parar por completo, pois, se parassem, não seriam os rios, rio. Rio é coisa que dá

movimento na vida, horas novas. Segundo suas palavras, ―os rios não dormem. O rio não quer

ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. [...] Rebebe o encharcar

193

Conforme Antônio Cândido, o momento do pacto nas Veredas Mortas figura no ensaio O homem dos avessos

como sendo o rito iniciatório que determina tanto o destino de Riobaldo bem como o cumprimento de sua tarefa.

Conforme suas palavras: o pacto com o diabo ―parece corresponder a um rito iniciatório equivalente ao de certos

romances de Cavalaria, e até certo ponto da própria regra da Cavalaria Militante‖, cf. CÂNDIDO, 1991, p. 303.

O Professor Ronaldes parece também ratificar esta posição interpretativa, na medida em que, comentando o

estudo de Antônio Cândido, afirma que ―Na consciência de Riobaldo, o diabo surge como dispensador de

poderes e como encarnação das forças terríveis que habitam as galerias da alma. A cena do pacto representa,

portanto, uma iniciação às avessas, em que se assimilam os poderes demoníacos que possibilitam a vitória de

Riobaldo contra os judas‖, RONALDES, 1978, p. 27. Apesar disso, tomarei como rito primeiro a travessia do

de-Janeiro, exercitando a interpretação de Manuel Antônio de Castro. Em minha leitura, sugiro inicialmente que

a iniciação com o menino abre o rito; no Pacto teremos, não uma iniciação, mas sim uma confirmação de sua

transformação, uma confirmação de coragem, tendo Riobaldo de provar que possui coragem em si mesmo, em

seu ânimo, coragem necessária para o enfrentamento dos perigos da vida, o que será posto em prática ao longo

de sua perseguição final ao Hermógenes; e, assim, encontraria o desfecho de sua iniciação, ao cumprir o destino

que assumiu de reger, ele mesmo, o bando que pôs fim à guerra, ao cumprir a vingança ante a morte de Medeiro

Vaz.

194 Cf. FOGEL, 1999, pp. 81-82

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dos brejos [...] Recolhe e semeia areias‖195

. Em seu movimento próprio, os rios querem

engrossar suas águas e ganhar profundidade.

Portanto, que fique claro: não estamos diante de um rio qualquer, mas sim do de-

Janeiro: rio Janeiro, o rio primeiro, que inaugura o desenrolar de uma época, o desdobrar-se

da época de Riobaldo, sua hora, seu destino, seu princípio e seu fim, num só rio, num só fluxo

de águas, moendo-se numa só vida, abrindo uma vida inteira. Estamos tratando do rio-vida

que irá se engrossar, se aprofundar nas águas do São Francisco. Pode-se perguntar: o que é

esse rio, o de-Janeiro? Um rio de águas claras. Na verdade a pergunta adequada seria mais

bem formulada assim: o que nos diz esse rio para a iniciação/transformação de Riobaldo e

para o seu destino? O que é esse rio, o daquele dia, que Riobaldo não mais esqueceu? Que

experiência sua travessia promoveu para Riobaldo? Ele também se pergunta por esse sentido:

―para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino?‖ Parece que Riobaldo

logo em seguida responde: ―acho que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente,

depois, nas vezes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, para quê? por quê?‖196

.

Seguindo a indicação de Manuel Antônio de Castro, em seu precioso estudo Grande

ser-tao: diálogos amorosos,

O nome Janeiro se origina do personagem-questão mitológico: Janus. É um deus de

duas cabeças ligado ao tempo enquanto sucessão da vida: uma que olha para trás e

outra para a frente, ou seja, indica o tempo de passagem entre passado e futuro, entre

fim e começo.197

195

ROSA, 2006, pp. 434-435.

196 Ibid., pp.149-150. Nesta passagem, vê-se novamente Riobaldo apontar para o aprendizado de uma

convergência entre a alegria e a tristeza, cf. ―O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar

alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha

em que se quer, de propósito – por coragem”, Ibid., p. 318.

197 CASTRO, 2007, pp. 158-159.

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Caso sigamos esta interpretação, Janus ou Jano198

, sua simbologia, seu sentido arqueológico,

nesse caso, estaria qualificando o rio, este rio, o Rio-de-Janeiro. Este rio que determina

Riobaldo, como rio de seu princípio, principia o ato inaugural de sua travessia, de seu tempo

de passagem, determinando seu prazo. Este é o rio que abre seu destino, sua travessia, seu

tempo, sua vida, sua partida o real de sua existência, sua existência mesma.199

Riobaldo estava

no porto do rio e partiu repentinamente numa travessia. O seu medo maior apareceu

justamente neste instante, no instante desse atravessamento fundamental, nessa hora nova,

nesse ―instantezinho enorme‖200

. O seu medo maior foi vir canoando e dar num rio grande, de

repente, sem espera, indeterminadamente, inesperadamente, sem previsão.

Há uma questão importante que negligenciamos até aqui sobre os rios de Riobaldo. A

questão-rio de Riobaldo, Rio-baldo, Rio-represado, barrado, falho e carente, origina-se na

travessia do de-Janeiro para o do-Chico. A paz e a beleza que encontra no de-Janeiro, é

198

Jano, deus romano, dos mais antigos figura em seus registros mitológicos com dois rostos, em contraposição:

um de seus rostos dirige o olhar para frente, no outro rosto o olhar é direcionado para trás. Segundo Pierre

Grimal, em seu Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Jano teria sido o inventor do uso dos barcos e ainda

do dinheiro. Isto está representado nas moedas romanas antigas, que ―tinham numa das faces a efígie de Jano e o

reverso representava a proa de um barco‖. Teria sido Jano, também, segundo Grimal, quem promoveu um

processo de civilização dos habitantes do Lácio, tornando-os conscientes de leis e ainda do cultivo do solo. Jano

teria realizado também um milagre que salvou Roma de invasores: Jano teria feito ―brotar diante dos assaltantes

uma nascente de água quente que os atemorizou e pôs em fuga‖, GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia

grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 5. Ed. Rio de Janeiro: Bertrande Brasil, 2005, p. 258. Segundo

Grimal, Jano é o deus dos princípios e das travessias, das passagens. Ele cuida da passagem da paz para a guerra

e vice versa, deixando abertas as portas do seu Templo em tempos de guerra; cuida do princípio do ano – daí o

nome designado para o primeiro mês do ano: Janeiro.

199 Cf. Riobaldo, ―Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da

travessia‖, ROSA, 2006, p. 64.

200 Ibid., p. 393. A palavra instante não aparece aqui de modo banal, mas sim aponta para um sentido originário

do tempo que ainda será desdobrado em nossa investigação. Apesar disso, pode-se adiantar alguma indicação de

seu sentido conforme a grande contribuição de leitura da obra GSV, realizada pelo Professor Fernando Pessoa,

em seu ensaio Da travessia do Grande Sertão (O destino de Riobaldo). Segundo suas palavras, pretendendo

pensar a coragem de Riobaldo em sua travessia pelo Sertão: ―Quanto tempo dura um instante? Ao contrário do

agora, que por ser concebido por um tempo repartido em passado, presente e futuro, vem e passa, o instante

constitui o acontecimento no qual o tempo voltando-se para si mesmo, se concentra na reunião circular da

simultaneidade de seu princípio com o seu fim. O instante é a unidade da totalidade temporal; o acontecimento

em que o tempo é todo tempo o tempo todo: comigo as coisas não têm hoje e ant‘ontem amanhã: é sempre‖ (94

[em minha edição de GSV, p. 140]) – um tempo no qual não há antes ou depois, menos ou mais, nascimento ou

morte: o instante é a eternidade que perfaz a travessia do grande sertão, a origem do tempo, fundamento do

destino. O sertão é sem tempo, travessia de um instantezinho enorme‖, PESSOA, Fernando. Da travessia do

Grande Sertão (O destino de Riobaldo). In: SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante et all (Org.). Gilvan Fogel.

Coleção Pensamento no Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Hexis Editora, 2013, p. 249.

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acompanhada e seguida da moagem barrenta, vermelha e terrível de um rio grande. Há na

passagem de um para o outro uma contra-posição de paz e conflito, de calmaria e turbilhão,

de medo e coragem. No entanto, o que prevalece é uma união dos dois rios. Essa travessia

marca o rito iniciático201

de Riobaldo para a sua existência própria: existência que ao mesmo

tempo em que comporta o medo maior, reflete a necessidade da coragem que se deve ter para

o enfrentamento disto: da existência, da travessia da existência, da existência da travessia, de

seu nascimento próprio, do rio-baldo. O seu rito iniciático é marcado por um caráter de afeto e

união, apesar do conflito entre os rios. Isto foi o negligenciado até aqui. Nessa travessia está

marcada uma união. Do mesmo modo que, nas moedas romanas antigas, a dupla face de Jano

pode ser interpretada simbolicamente supondo-se a união de dois seres202

, ou ao menos pode

pretender indicar o laço estreito que une dois seres distintos, assim ocorre nessa travessia: o

destino de Riobaldo e o destino de Diadorim se unem neste momento como um destino

comum, comungado, compartilhado por dois seres distintos, num único destino. Essa união

pode mesmo ser explicada como sendo de interesse de Riobaldo, interesse confirmado por

Riobaldo, quando se compara a um rio, querendo unir-se a Diadorim: ―Em Diadorim era que

eu pensava, de fugir junto com ele era que eu carecia; como o rio redobra‖203

, e assim, poder

também fazer parte de suas carnes, do seu corpo.

Deste modo, a disposição dos dois na canoa lembra a dupla face de Jano: ―Ele se sentou

em minha frente, estávamos virados um para o outro‖204

. Assim como na efígie de Jano, a

imagem de Riobaldo e Diadorim compõem duas faces distintas, ligadas por afeto, numa

201

Cf. Manuel Antônio de Castro, ―Que é um rito iniciático é evidente. Numa ordem não cronológica, mas

poético-ontológica, aí se dá o princípio e o início do ‗isto‘ que constitui como tal o que o narrar se narra‖,

CASTRO, 2007, p. 158.

202 Cf. o interessante estudo numismático da imagem de Jano, realizado pela pesquisadora Maria Teresa Pradas

Blasco, BLASCO, Maria Teresa Pradas. La imagen numismática de Jano. UNED. Espaço, Tiempo y Forma,

Série II, H.ª Antiga, 2013, p. 226.

203 ROSA, 2006, p.184.

204 Ibid., p. 103

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travessia. Aqui as faces estão uma voltada para a outra, o que supõe, ainda uma vez, a união

de dois sentidos distintos, convergindo para um mesmo ponto, para o afeto mútuo de

Riobaldo e Diadorim. No caso de Jano, a efígie de dupla face se opõe: uma face aponta para o

passado, a outra aponta para o futuro. Durante a travessia, vê-se o contrário dessa oposição:

há uma concentração, que faz convergir e aproximar para um mesmo centro, para um mesmo

ponto, para um mesmo instante temporal, suas histórias e possibilidades, num único destino. É

um casamento que perdura por toda a sua travessia – e além. A própria narrativa sugere essa

união, esse casamento, um casamento para a vida toda205

, entretendo amizade de amor206

.

Diante da igreja no Carujo, repentinamente, Riobaldo lembra: ―Homem com homem, de mãos

dadas, só se a valentia deles for enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado

a lado, par a par, a vai-a-vida inteira‖207

. E, pelo visto, sua valentia era tal que lhe permitiu

mesmo declarar o seu amor por Riobaldo, um amor ―mal encoberto em amizade‖208

.

Foi nessa travessia que se deu o nascimento de Riobaldo. Foi aí que ele nasceu, que

amanheceu sua aurora. Seu nascimento foi diferente, como afirma: ―O senhor saiba: eu toda

a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente‖209

. Que nascimento diferente teve

Riobaldo? Riobaldo pensou forro, ele nasceu forro, livre, liberto, alforriado, livre de dívidas –

quais? Responde: ―Eu estava no porto do de-Janeiro, com minha capanguinha na mão,

ajuntando esmolas para o Senhor Bom-Jesus, no dever de pagar promessa feita por minha

205

Cf. Riobaldo, ―Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem,

mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que

atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida‖, Ibid., p. 138, grifo meu.

206 Cf. Riobaldo, ―Mas a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáveis, em

amizade de amor‖, Ibid., p. 138.

207 Cf. Riobaldo, ―Ali naquele lugar, o Carujo, no reabrirem, depois de uns meses, a igreja, o defunto tinha se

secado sozinho... Ao por tanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já disse. Homem com

homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado a

lado, par a par, a vai-a-vida inteira.‖, Ibid., p. 502.

208 Cf. Riobaldo, ―fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade.

Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me

reprovei – na hora‖, Ibid., p. 289.

209 Ibid., p. 15.

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mãe, para me sarar de uma doença grave‖210

. E com isso, promessa paga? Antes de sua

travessia, Riobaldo faz sua paga ao Chico e a Deus, junta um tanto de dinheiro para cumprir

promessa. É preciso ainda pensar, sem precipitação, o que foi essa sua liberdade, liberdade

que recebeu quando nasceu, forro, liberto. Pois, apesar de Riobaldo ter nascido livre, seu

destino foi conjugado com o destino daquele menino. O próprio Riobaldo se questiona sobre

isto, sobre essa questão de liberdade-prisão: ―Fui cativo, para ser solto? Um buraquinho

d‘água mata minha sede, uma palmeira só me dá minha casa. Casinha que eu fiz, pequena – ô

gente! – para o sereno remolhar‖211

. O caso é que eles tiveram uma relação conjugal, con-

jugo: caminharam par a par com o mesmo jugo.

Riobaldo não se envergonha ―por ser de escuro nascimento‖212

. Seu nascimento é

marcado de mistério. O que marca a passagem de seu nascimento decorre do fato de ter

sentido medo da morte e, depois da travessia, ter sentido nada. Qual é o sentido desse nada?

Sentir nada não quer dizer sentir nada de medo, pois sentiu medo depois. Sua iniciação foi o

seu nascimento, marcou o seu nascimento. Como ele mesmo diz, ―sou donde eu nasci‖213

, e o

lugar donde nasceu, o determina. Determina de tal maneira que o lugar de seu nascimento

deve ser considerado sagrado214

. O lugar do seu nascimento deve ser sagrado, porque houve

ali uma consagração, uma união entre Riobaldo e Diadorim. Mas por que isso seria sagrado?

O que é o sagrado? Sagrado é o lugar de abertura da realidade e de união215

, é o lugar de

210

Ibid., p. 110.

211 Ibid., p. 435.

212 Ibid., p. 41.

213 Ibid., p. 290.

214 Cf. Riobaldo, ―Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado‖, Ibid., p. 42.

215 Cf. o Professor Manuel Antônio de Castro, ―Em que consiste o sagrado? Este, se formos à etimologia,

mostrará uma outra realidade diferente daquela apreendida pelo religioso. O sintoma maior desta outra realidade

está na não separação, no âmbito do sagrado, entre mal e bem. O sagrado diz do lugar de abertura da realidade,

onde tal separação e divisão não existe. O criminoso, por exemplo, que entrasse num templo, passava a fazer

parte de um lugar onde não mais poderia ser perseguido nem punido. O âmbito do sagrado não comporta as

dicotomias metafísicas‖, CASTRO, Manuel Antônio de. Tempos de metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1994, p. 71.

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instauração de princípio e fim, é o lugar, é a instância de acontecimento de vida, de geração,

de devir, transformação, convergência, lugar de Ser, lugar de Nada, do ambivalente e do

paradoxo.216

Sagrado é Deus – e o Diabo, se o sagrado comporta a ausência das dicotomias –,

o desconhecido, o mistério, o silêncio. Sagrado é o lugar de manifestação e acolhimento do

divino, de doação. É um instante de iluminação e revelação que aponta, acena, indica um

caminho de devoção e sacrifício.

Isso indica o porquê de Riobaldo ter medo de nascimento: ―Ah, medo tenho não é de

ver morte, mas de ver nascimento‖217

. O lugar, melhor, o âmbito sagrado do nascimento,

determina uma devoção, uma doação, um destino de sacrifício onde será exercitada e

cumprida uma ação, uma tarefa sacrificial. No caso de Riobaldo, ele assumiu como tarefa ser.

Nada mais sagrado para a dimensão do humano, do que assumir esta tarefa, este sacrifício,

esta ação essencial e própria. Por tudo isso, Riobaldo mantinha uma estreita ligação com

Diadorim218

. E não só com Diadorim, mas com rios, suas águas, claráguas. O caso é que foi

assim que Riobaldo nasceu, nasceu e se conjugou com aquele menino: ―Sentei lá dentro, de

pinto em ovo. Ele se sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro‖219

Como

pinto em ovo, Riobaldo estava na canoa esperando para sair, para nascer, para partir, naquela

travessia, para o desconhecido, de frente para o menino, com quem iria compartilhar seu

destino conjugal. Assim foi que nasceu, conjugado, forro, represado, barrado, falho e carente.

216

Cf. o Professor Igor Fagundes, em seu ensaio Sagrado, FAGUNDES, Igor. Sagrado. In: CASTRO, Manuel

Antônio de (Org.) et all. Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014, p. 215.

217 ROSA, 2006, p. 60.

218 Há que se levar em conta que Diadorim ou Deodorina (Maria Deodorinada Fé Bettancourt Marins), segundo o

estudo de Julia Conceição, ―parece uma alteração da forma que seria Diodorina, de Diodora, que segundo

Nascentes, vem do grego Diódoros, de dio, raiz que se acha em Zeús, Diós o deus Seus, e dôron, dom, presente,

pelo lat. Diodoru com o penúltimo longo. Dom divino, presente de Zeus‖, SANTOS, Julia Conceição Fonseca.

Nomes dos personagens em Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1971, p.120. E ainda a

respeito do radical grego di, como afirma o Professor Antonio Jardim, em seu livro Música: vigência do pensar

poético, ―O radical di é na verdade Divi que é o dativo de Zeuv", e quer dizer deus, o que brilha, duas vezes, o

desconhecido. Gerou em português, muitas vezes por via do latim dis, o sentido da dualidade, da alteridade, do

desconhecido‖, JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 79.

219 ROSA, 2006, p. 103

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5. Claráguas: medo e destino

Bem, mas a questão, não nos esqueçamos, é a comparação do medo de Riobaldo presente

em dois pontos da narrativa. Em sua iniciação, sim, teve medo: ―Tudo foi isso: tive medo‖220

.

Riobaldo teve medo nessa passagem, nessa travessia do Rio-de-Janeiro para o do-Chico, de

um rio para outro rio. E há uma informação importante que Riobaldo quer que seu leitor

saiba. Riobaldo quer que o leitor saiba e, além disso, que esse mesmo leitor recorde: ―Saiba o

senhor, o de-Janeiro é de águas claras‖221

, ressalta o narrador. Mas o que há de tão importante

nessa informação, nesse fato? A claridade de suas águas é muito importante, parece.

A importância dessa informação se encontra justamente articulada com a questão do

medo de Riobaldo, na outra passagem que queremos destacar. Tal passagem figura, como foi

dito, no final da obra. Nossa hipótese de leitura pretende afirmar a inter-relação entre os dois

momentos da obra. Neste momento derradeiro que iremos destacar agora, parece que

Riobaldo está relembrando sua travessia pelo de-Janeiro. Parece que há uma reminiscência

desse momento em sua fala, uma recordação. Do que Riobaldo estava se recordando? Do

menino? De sua transformação pesável? Riobaldo nunca se esquecera daquele menino, ainda

que não soubesse seu nome, mesmo ―depois, tantos anos todos‖222

. Vejamos, afinal, a

transcrição da passagem que queremos destacar. Segue abaixo:

O senhor supute: lado a lado, somando, derramavam de ser os trezentos e tantos –

reinando ao estral de ser jagunços... Teria restado mais algum trabuco simples, nos

Gerais? Não tinha. E ali era para se confirmar coragem contra coragem, à rasga de se

destruir a toda munição. Dessa guisa enrolada: como que lavrar uma guerra de

dentro e outra de fora, cada um cercado e cercando. Recompor aquilo, no final? Só

220

Ibid., p. 105.

221 Ibid., p. 104, grifo meu.

222 Cf. Riobaldo, ―Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir com ela, nem pude me despedir direito do

Menino. De longe, virei, ele acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele. Mas não carecia. Dele

nunca me esqueci, depois, tantos anos todos‖, Ibid., p. 109.

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com a vitória. Duvidei não. Nasci para ser. Esbarrando aquele momento, era eu,

sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava. E conheci:

oficio de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não tive! Não

tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu vencer:

ilha em águas claras... Conheci. Enchi minha história.223

A circunstância da batalha, da guerra que estava narrando, era de confirmação de coragem. A

questão era de avaliar quem tinha de fato coragem. Era coragem contra coragem. Só havia

uma única opção: ter coragem. A estória só poderia ser contada, recomposta, dando vitória ao

bando de Riobaldo. Só havia esta opção, nenhuma outra. Ele, Riobaldo, não duvidou que

venceria pela coragem, isto porque ele teve a certeza, a confiança de que nasceu para ser.

Riobaldo era só confiança. Nasceu para ser? Quando Riobaldo nasceu para ser? Naquele

instante da travessia? Ser o que? Coragem pura? Ser corajoso é o modo de ser que se carecia

de ser neste momento, nesta guerra, interna e externa, guerra de dentro, guerra de fora. Isto se

confirmou propriamente em seu corpo, em sua atitude: Riobaldo era o mais alto, o mais

valente, mais corajoso, o que conquistou mais realce. Neste instante, Riobaldo ficou sabendo.

O que ficou sabendo? O que conheceu naquele momento de tão importante? Diz Riobaldo:

conheci: oficio de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não

tive!224

Seu destino era o destino de coragem, melhor, este era o seu envio, essencial. Neste instante

ele conheceu: Riobaldo tinha o destino de não ter medo. Ele devia ser só coragem. Este

deveria ser o seu ofício: só coragem, e não ter medo algum. Isto é o que parece estar dito neste

fragmento. Não há acréscimos nessa leitura.

223

Ibid., p. 591.

224 Ibid., p. 591.

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A passagem não termina aí. Este trecho que foi destacado é seguido ainda de mais um

período que torna a leitura um pouco mais complexa e até mesmo confusa, duvidosa, se

quiser, ambígua. Continua Riobaldo:

Não tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu

vencer: ilha em águas claras... Conheci.225

Esta passagem é extremamente ambígua. Esta parte de sua fala, bem pequena, quase no final

do parágrafo, torna a compreensão estranha, no mínimo. Até este ponto, a leitura segue,

inegavelmente, no sentido de valorização e afirmação da coragem, negando qualquer forma

de medo. Até imediatamente antes dessa parte de sua fala, a coragem é o sentido de sua

existência: a afirmação da coragem e a superação do medo: eis o destino do homem Riobaldo.

Mas Riobaldo diz: ―Ter medo nenhum. Não tive! Não tivesse, e...‖226

. Há uma sutil

interrupção do sentido, do destino de negação de medo. Interpretar esta passagem buscando

resguardar o sentido da coragem parece impossibilitar a compreensão. Por quê? Parece que o

discurso apela para que o leitor construa a seguinte leitura:

Não tivesse [medo], e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo

meu vencer: ilha em águas claras... Conheci. Enchi minha história.227

A construção esperada seria: Tivesse [medo], e tudo se desmanchava... Ou: Se eu tivesse tido

medo... algo se desmanchava. Desmanchava o que? Seu destino de coragem228

. Não obstante,

225

Ibid., p. 591.

226 Ibid., p. 591.

227 Ibid., p. 591.

228 O Professor Fernando Pessoa, ao abordar a travessia dos rios de Riobaldo em sua iniciação, afirma a

correlação entre sua iniciação, sua travessia, seu destino: ―Um fato que, um dia, se deu, se abriu, indica o

acontecimento inesperado, subido, de um instante extraordinário. Por ser inesperado, este fato não foi planejado

por nenhuma antecipação, ele caracteriza um acontecimento que surpreende; e surpreender é pegar em flagrante,

improvisar repentinamente uma ação. Esse repentino compõe a estrutura do instante, a subitaneidade desse

acontecimento extraordinário. O extraordinário corresponde ao espanto que, abalando as referências ordinárias

do cotidiano, transforma as compreensões habituais que temos de nós mesmos, dos outros e do mundo – de tudo.

Todo súbito acontecimento de um fato extraordinário inaugura algo novo, constitui uma abertura original; por

isso Riobaldo diz que este fato foi o primeiro. O primeiro, aqui, não é aquele que ocupa o lugar inicial numa

sequência linear, quantitativa e progressiva, mas o que tem primazia, é fundamental e elementar, origem que

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a frase começa com uma negativa: Não tivesse... Em síntese, se nossa interpretação estiver

correta, a passagem pretende mesmo dizer o seguinte:

[Se eu] Não tivesse [tido medo], tudo se desmanchava delicado para distante de

mim, pelo meu vencer: ilha em águas claras...

Esta passagem fica entremeada. Ela está posta entre dois enunciados temporalmente

diversos. Primeiro Riobaldo diz: E conheci. O verbo está marcado pelo tempo pretérito

perfeito do modo indicativo. Esse é o modo verbal que trabalha com o verossímil, com o real.

Não há dúvida, não pode haver: Riobaldo conheceu seu destino naquele instante. Conheceu

seu destino real, qual seja: não ter medo, nenhum, nenhuma qualidade de medo. Não tive!,

afirma Riobaldo, logo em seguida. Ele está absolutamente certo disso, de seu destino e ainda

de não ter tido medo. Tal fato está sendo tomado como fato real, acabado, e resolvido: sem

medo algum. Ele está declarando isto, não ter tido medo. Até esse momento, sem qualquer

dúvida.

Porém, de repente, inesperadamente, sem aviso, o nosso narrador muda o tempo e o

modo verbal. Ele passa nesse momento, do tempo pretérito perfeito do modo indicativo para o

pretérito imperfeito do modo subjuntivo. Não tivesse, e... Agora, tal fato, não é mais certo,

real, seguro, mas duvidoso, incerto, impreciso. Agora há, sim, dúvida, e só dúvida. O seu

destino de não ter medo entra na esfera do talvez: Talvez, se eu não tivesse tido medo... Ele sai

de sua certeza e inicia uma conjetura. Parece que nesse instante ele se volta para si mesmo

para conjeturar, sem certeza, como se esta fala fosse apenas um pensar alto em suas

recordações. Vale lembrar que incerteza é já uma qualidade de medo, como foi destacado

abre e perfaz o aberto. Um fato primeiro é aquele que deflagrando uma necessidade, demanda travessia, instaura

destino‖, PESSOA, 2013, p. 251. E ainda, seguindo em seu texto, afirma: ―O acontecimento primeiro, o instante

extraordinário que transformou toda a sua vida, foi o aparecimento da coragem; ela é o fundamento do destino de

Riobaldo, a origem, o começo e comando, princípio e fim da travessia do grande sertão‖, ibid. p, 253.

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acima.229

Nesse comentário, seu falar alto, esta recordação engendra uma hipótese. Nem

sequer conclui o raciocínio, e termina esta fala com reticencias. Logo após, retorna à sua

certeza: Conheci. Retoma o tempo pretérito perfeito, e, assim, enche sua estória.

Se Riobaldo tivesse tido mesmo sempre toda coragem possível, ele teria acabado,

obviamente, sempre vencendo. Alias, teria desde sempre vencido, pois nunca teria conhecido

medo algum. Se ele não tivesse tido medo, o que teria se desmanchado para longe? Somente

o seu destino de coragem? Se Riobaldo tivesse desde sempre tido só, e tão só, coragem, teria

sempre vencido e terminaria como ilha em águas claras... Como ilha em águas claras? Que

águas? De que rio? Nas águas claras do de-Janeiro? Ou nas águas claras do Urucuia, a paz das

águas, claráguas?230

De qualquer maneira, tudo teria se desmanchado e sobraria apenas uma

ilha, em águas claras se, em sua travessia do Rio-de-Janeiro, Riobaldo não tivesse tido medo.

Não teria tido também na travessia de sua iniciação, iniciação alguma. Não teria ganhado o

afeto do menino. Seu destino não teria sido atado e conjugado pelo mesmo jugo, cruzado na

mesma sina, na sina da jagunçagem: não teria cruzado com a sina do menino. Não teria parte,

pacto, com Diadorim, nem com o diabo. Não teria terminado a travessia unido a Diadorim

(Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins), misteriosamente conjugado, parmente231

. Foi só

porque Riobaldo teve medo, que Diadorim passou a fazer parte melhor de sua pele, de seu

corpo, no profundo de suas carnes.232

Por isso, ele cumpriu esse seu destino de coragem: do

medo Riobaldo passou a coragem. Medo e coragem o constituíram.

Neste momento, Riobaldo pode ter aprendido que ―O que induz a gente para más ações

estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não

229

Cf. Riobaldo, ―assumi incertezas. Espécie de medo? Como que o medo, então, era um sentido sorrateiro fino,

que outros e outros caminhos logo tomava‖, ROSA, 2006, p. 453.

230 Cf. Ibid., pp. 27-28.

231 Cf. Ibid., p. 33.

232 Cf, Riobaldo, ―E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no

profundo, desse a minhas carnes alguma coisa‖, Ibid., p. 107.

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sabe‖233

. E isso, na verdade, tem ainda outro nome: amor. Como afirma Riobaldo, ―amor é a

gente querendo achar o que é da gente‖234

. E o que é da gente? Foi não saber isso, o que é da

gente, essa verdade, que fez Riobaldo realizar ações estranhas em sua travessia pelo Grande

Sertão. Quais ações? Para encontrar o que era seu, o medo foi necessário? O medo foi

constitutivo de seu ser naquele momento inicial de sua travessia, e, também, fundamental no

restante da travessia, de toda a travessia no Grande Sertão, inclusive no pacto – superar o

medo foi um dos motivos do pacto. Neste instante, Riobaldo conheceu o que era o seu

próprio, sua existência própria: ―Conheci. Enchi minha história”235

. E o medo participou

disso, dessa descoberta, de sua travessia, de modo fundamental. Riobaldo aqui, ali, naquele

instante fica sendo perfeito, acabado, completado em sua história, em sua sina, em seu

destino, ainda que falho, represado, carente. Ainda que seja também constituído de medo.

Esse ponto parece estar marcando o fim da narrativa. Este é o fim, a consumação de

Riobaldo, a consumação de um envio, de seu destino, de sua ação, que se concretizou e que

perfez sua história/estória, seu destino. A ação de Riobaldo termina ali. Se Riobaldo tivesse

tido desde sempre coragem, ele não teria cumprido o destino que foi consagrado naquela

travessia inicial, inaugural. O destino de ser chefe jagunço, de ter seguido Diadorim etc. Não

teria sido possível conhecer sua travessia, pelo menos esta.

Numa outra passagem, observamos também Riobaldo sugerir este desmanchar do seu

destino, aquele que Riobaldo teve iniciado na travessia do de-Janeiro, unindo-o a Diadorim,

caso não tivesse executado sua tarefa de coragem. Antes mesmo de chegar ao combate final

travado com o Hermógenes, Riobaldo já havia meditado sobre o seu destino. Se tivesse

233

Ibid., p. 100.

234 Ibid., p. 361.

235 Ibid., p. 591.

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encontrado ainda uma só vez Nhorinhá, e tivesse deixado a chefia em que foi Urutu-Branco,

tudo se desmancharia para longe. Conforme afirma Riobaldo,

Do que hoje sei, tiro passadas valias? Eh. – fome de bacurau é noitezinha... Porque:

o tesouro do velho era minha razão. Tivesse querido ir lá ver, nesse Riacho-das-

Almas, em trinta e cinco léguas – e o caminho passava pelo São Josezinho da Serra,

onde assistia Nhorinhá, lugarejo ditoso. Segunda vez com Nhorinhá, sabível sei,

então minha vida virava por entre outros morros, seguindo para diverso

desemboque. Sinto que sei. Eu havia de me casar feliz com Nhorinhá, como o belo

do azul; vir aquém-de. 236

Se tivesse ficado com Nhorinhá, sua vida teria tomado outros rumos, sua vida teria virado.

Teria casado, nem com Diadorim, nem com Otacília, mas com Nhorinhá. E continua sua

meditação.

Maiores vezes, ainda fico pensando. Em certo momento, se o caminho demudasse –

se o que aconteceu não tivesse acontecido? Como havia de ter sido a ser? Memórias

que não me dão fundamento. O passado – é ossos em redor de ninho de coruja... E,

do que digo, o senhor não me mal creia: que eu estou bem casado de matrimônio –

amizade de afeto por minha bondosa mulher, em mim é ouro toqueado. Mas – se eu

tivesse permanecido no São Josezinho, e deixado por feliz a chefia em que eu era o

Urutu-Branco, quantas coisas terríveis o vento-das-nuvens havia de desmanchar,

para não sucederem? Possível o que é – possível o que foi. O sertão não chama

ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repente se

estremece, debaixo da gente... E – mesmo – possível o que não foi. O senhor talvez

não acha? Mas, e o que eu estava dizendo, mas mesmo pensando em Nhorinhá, por

causa. Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se

desprezou... Mas, como jagunços, que se era, a gente rompeu adiante, com bons

cavalos novos para retroco. Sobre os gerais planos de areia, cheios de nada. Sobre o

pardo, nas areias que morreram, sem serras de quebra-vento.237

Não obstante, acabou casando-se com Otacília. Ainda que as suas memórias não lhe deem

fundamento, seguiu o curso daquele destino que foi aberto na travessia do de-Janeiro.

Agora, para mantermos o fio da investigação, devemos recuperar as perguntas com as

quais iniciamos este confronto entre princípio e fim, no item anterior. Perguntamos acima:

como o medo de Riobaldo operou ao longo de sua travessia pelo Grande Sertão? Isto é: que

papel o medo desempenhou na travessia de Riobaldo, de modo geral? E ainda: o que nos diz

236

Ibid., p. 521-522.

237 Ibid., p. 521-522.

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esse rio para a iniciação/transformação de Riobaldo e para o seu destino? Que experiência

aquela travessia promoveu para Riobaldo e Diadorim (menino)? Perguntamos também, no

item Vida e o sarro de medo, pela relação entre vida e medo e, com isso, foi elaborada uma

pergunta semelhante às que já enunciamos: como o medo esteve presente ao longo da vida de

Riobaldo e que função desempenhou?

Há algo ainda muito importante para ser revelado e que não conquistamos. Isto, este

algo, será fundamental para que não se produzam especulações equivocadas para estas

perguntas. Portanto, será necessário tratar da transformação, dedicando a ela a devida

importância, para que, ao visualizarmos o todo deste acontecimento, possamos ver a relação

vida-medo de Riobaldo. Riobaldo foi transformado nessa travessia. Que transformação foi

essa ainda não esclarecemos. Podemos supor que essa transformação está intimamente

relacionada com medo, coragem, destino, vida, espelho... Uma coisa é certa, o medo

constituiu a vida de Riobaldo e instaurou seu destino, constituiu sua vida, apresentando-lhe o

que carecia de ser superado pela coragem: medo. Mas superado para quê? Para transformar-

se, para converter-se. Repita-se a pergunta que fizemos: O que Riobaldo se tornou após a

travessia do rio?238

É certo que Riobaldo se tornou um homem destinado.

Essa transformação se deu no mesmo lugar em que Riobaldo nasceu, melhor, onde

despertou sua aurora e lá deve ser um lugar sagrado. Sagrado, talvez, porque naquele

momento algo sagrou-se. Algo aconteceu naquela travessia que simplesmente sagrou-se.

Sagrado foi o lugar de seu nascimento. Neste nascimento, podemos especular, a vida de

Riobaldo foi sagrada ao desconhecido, a Deus, a Di-adorim.239

A Ele foi dedicado, quando

Riobaldo sacrificou-se para dedicar uma oferenda ao Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus

238

Cf. item 4. Deste capítulo, De-Janeiro: rio da consagração.

239 Cf. nota 218, a propósito da relação etimológica entre as palavras Deus e Diadorim.

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da Lapa240

, naquela cabaça tapada e breada. Seu destino foi consagrado a Di, ao

desconhecido, ao que brilha, a Diadorim com seus ―esmerados esmartes olhos, botados

verdes, de folhudas pestanas [que] luziam um efeito de calma‖241

. Riobaldo sacrifica-se em

favor do desconhecido, do inesperado, do súbito. Naquele momento, o destino de Riobaldo é

dedicado ao desconhecido, ao menino desconhecido, o seu ―companheiro amigo

desconhecido‖242

, a Diadorim, à Deodorina, à alegria, à coragem. E assim, do mesmo modo,

Riobaldo recebe também um presente, uma dádiva: o menino passa a fazer parte de sua pele,

suas carnes, seu corpo.243

O menino desconhecido passou a fazer parte dele, de Riobaldo, de

seu destino.

Até aqui, falou-se muito e vagamente em destino.244

Apesar disso, qual foi de fato o

destino de Riobaldo e sua relação com medo? Diadorim também lhe perguntou acerca do seu

destino, se Riobaldo sabia qual era o seu destino. A circunstância foi aquela em que Diadorim

parecia incomodado com a possibilidade de Riobaldo estar gostando de Otacília.245

Ao que

240

Francisco de Mendonça Mar, o fundador do Santuário do Bom Jesus da Lapa, nasceu em Lisboa 1657 e

faleceu em Bom Jesus da Lapa, 1722. Sua biografia diz que Francisco de Mendonça Mar ou Francisco da

Soledade, ao ser ―tocado pela Divina graça, se resolveu a deixar o trafego do mundo, e buscar o deserto mais

remoto para chorar suas culpas e fazer por elas penitência, [...] foi penetando os Sertôes‖ e acabou descobrindo o

a gruta, na qual está situado o Santuário, cf. PITA, Sebastião da Rocha. Historia da America Portugueza desde o

ano de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa Ocidental: Na

officina de Joseph Antonio da Sylva, 1730, pp. 452-453.

241 ROSA, 2006, pp. 103-104.

242 Ibid., p. 103.

243 Cf. a leitura de Gilvan Fogel, ―lá pelo terceiro ou quarto dia, ‗de repente‘ isto é, súbita, imediata ou

abissalmente, em sua mão estendida, aberta, vazia, cai-lhe uma esmola, uma prenda: um presente. É o próprio

menino, é Dia-dorim, que é o que se dá e se faz através ou pela via do dom, da dádiva, do presente e, também

por isso, inútil e gratuitamente. Sobra. Excesso, superabundância. Transcendência. Tudo isto é ‗dia-doréomai‘,

dado, distribuído, repartido, inútil e gratuitamente, a título de dom, presente‖, FOGEL, 1999, p. 75.

244 Cf. expressões que utilizei ao longo de minha argumentação: Destino de coragem, destino de não ter medo,

ofício de destino real, princípio de destino, destino aberto, instauração de destino, destino de ser, destino de

travessia, destino próprio, cumprir destino, destino unificado, destino conjugal, destino consagrado, destino de

ser chefe, desmanchar do destino.

245 Vale lembrar que Riobaldo gostava de Diadorim também por destino. Cf. Riobaldo, ―E tudo neste mundo

podia ser beleza, mas Diadorim escolhia era o ódio. Por isso era que eu gostava dele em paz? No não: gostava

por destino, fosse do antigo do ser, donde vem a conta dos prazeres e sofrimentos‖, ROSA, 2006, p. 377.

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Diadorim repergunta e Riobaldo responde: ―Se nanja, sei não. O demônio sabe...‖246

. O

demônio sabe do destino de Riobaldo, o Diabo, o Di, o desconhecido sabe de seu destino. Isso

veremos com maior clareza no pacto, pois Riobaldo também consagrou o seu destino ao

diabo.

Por tudo que foi dito aqui, enquanto discutíamos as claras águas de nosso narrador,

podemos dizer que seu destino real era ter medo, naquele momento, naquele instante

inaugural, em sua travessia dos rios, pois isto, o destino, promoveu um encontro, um presente

para sua vida. Seu presente foi conhecer Diadorim e, com isso, Riobaldo sofreu uma

transformação pesável. Diadorim exerceu influência sobre o corpo de Riobaldo e esse fato foi

responsável por promover uma transformação que irá se consumar no pacto com o diabo. Essa

transformação tornou Riobaldo pesável. Isto quer dizer que Riobaldo estava sob influência de

um outro peso, de uma outra medida para o seu ser. Riobaldo descobriu uma outra sustentação

em seu ânimo. Ele não soube dar um nome para esta transformação. Só, e tão só, ele podia

sentir nada, ele não sentia medo, não sentia nada, só sentia uma transformação, pesável.

Pode-se adiantar que, naquele momento, Riobaldo descobriu algo de si mesmo, em

função daquela travessia: descobriu o que já possuía e não sabia. Ele descobriu que é também

animoso247

, tal como Diadorim. Riobaldo descobriu, naquele momento, que possuía também

ânimo. Que ânimo? Descobriu que tinha ânimo, força, alma, espírito, vida, descobriu que

tinha coragem. Animoso é um adjetivo que vem do latim animosus, e que em sentido próprio

diz daquele homem que é corajoso, intrépido, ardente, que tem grandeza. Assim, é que

Riobaldo se transforma e descobre-se pesável, com outro peso, com outra medida. Mas a

246

Cf. Riobaldo, ―Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava

raiva. De repente. / – ‗Você sabe do seu destino, Riobaldo?‘ / Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mão

dele, meio ocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má loucura de tudo

aquilo. Tremi não. / – ‗Você sabe do seu destino, Riobaldo?‘ – ele reperguntou. Aí estava ajoelhado na beira de

mim. / – ‗Se nanja, sei não. O demônio sabe...‘ – eu respondi – ‗Pergunta...‘‖, Ibid., pp. 195-196.

247 Cf. Diadorim, ―Você também é animoso...‖, Ibid., p. 107.

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transformação não se encerra aí. Ele ainda terá de passar pela provação desse peso que

descobriu em si mesmo, o que irá ocorrer no episódio do pacto, momento em que irá sopesar

suas forças, ―como quem pula a largura dum barranco, como quem saca sua faca para

relumiar‖248

. Essa foi a sua transformação. Transformação que deve a Diadorim, guiando249

seu ânimo, na travessia. E daí decorre o seu destino. O destino que irá encaminhar e conduzir

sua vida desde o seu princípio até o seu fim, até encher sua estória.

248

Ibid., 411.

249 Cf. Riobaldo, ―Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo

de couro, guiando meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa afundadeira‖, Ibid., p. 409.

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6. Espelho e sua transformação pesável

No item anterior, ficou demonstrado que o sentir medo atravessou a vida de Riobaldo

desde a sua iniciação até a consumação de sua travessia. Isto significa que o medo constituiu

ou perfez o seu destino, sua vida. O medo tornou Riobaldo perfeito, à medida que perfez seus

atravessamentos, compondo, assim, sua vida, sua história. Resta agora esclarecer como esse

medo operou existencialmente na vida de Riobaldo. Argumentamos anteriormente acerca da

presença do medo em algumas situações pontuais. Mas qual é a relação disso com a existência

humana em si mesma? Com essa questão, queremos saber acerca do fundo, o porquê, a causa

desta sina? Sentir medo não é algo de que as pessoas se orgulhem, muito menos quando

estamos tratando de jagunços. Não estaríamos cometendo um erro em afirmar tal necessidade,

tal constituição do humano? Podemos nos questionar também acerca do porquê de o homem

dever ser o ser dotado de um tal modo de ser, do modo de ser no medo.

Ora Riobaldo quer destruir o sarro de medo, ora o medo exerce papel fundamental em

seu destino. Isto é ambíguo, paradoxal. O que está além desta ambiguidade? É preciso buscar

uma perspectiva em que essa ambiguidade se dilua e passe a mostrar algo mais essencial.

Podemos dizer que, para além disso, buscando superar essa ambiguidade fundamental,

encontramos o homem humano, que, fundamentalmente, é constituído de afeto, humor. E isto,

humor, seja lá qual for, de algum modo, determina o destino do homem humano. Lembremos

que Riobaldo queria extinguir o fundamento do medo e não o medo em si mesmo. Ele queria

destruir o sarro de medo e não o sentir. Assim, pode-se dizer que ele queria extinguir o

processo interno de atribuição de causas para o medo, o pensar, que aponta causas para o

sentir. Parece que ele queria mesmo extinguir o processo de racionalização dos afetos. Esta

nossa hipótese parece ser confirmada segundo o próprio Riobaldo. Para Riobaldo, ―o sarro do

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pensamento‖ sempre acaba interferindo e alterando as lembranças, a história. O pensamento

confunde o sentir, a ponto de o sujeito achar ―que, o que um dia tivessem falado‖ para ele

seria para ofender, e, assim, se põe “significado de culpa em todas as conversas e ações‖250

.

Deste modo, o problema seria propriamente o modo de operar do pensamento e não o sentir, o

humor medo em si mesmo.

Até aqui, as articulações formuladas partiram da fala do narrador de GSV. Será

necessário agora revisar nossas conclusões acerca do medo, as conclusões acerca da relação

entre medo e vida, medo e morte, pois foi com elas que iniciamos estas discussões. Será

necessário retomar o caráter geral do medo como processo de espelhamento, para ver nele,

neste processo enganoso do pensamento, nesta constituição, sua realidade estrutural,

diríamos, existencial, para tentar ver nisso, essa necessidade que parece perfazer o humano e

que perfez Riobaldo.

250

Riobaldo faz uma distinção entre pensamento e inteligência. Disso, pode-se concluir ainda que o homem não

é enganado pelo medo, mas sim pelo próprio modo de operar do pensamento. Cf. Riobaldo, ―Do que de uma

feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de

uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também,

igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas,

uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca

tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o

que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O

senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era

minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando

pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é

a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum

conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que

raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma

coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o

que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto –

inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas. Lembro

que naquela manhã também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à paz – com vontade de alegria – como

se estimasse recebendo um aviso. Demorei bom estado, sozinho, em beira d‘água, escutei o fife dum pássaro:

sabiá ou saci. De repente, dei fé, e avistei: era Diadorim que chegando, ele já parava perto de mim‖, Ibid., pp.

236-237. O Professor Manuel Antônio de Castro, em seu ensaio Grande ser-tao: diálogos amorosos, também

procura alertar o leitor de GSV para semelhante distinção, no que concerne à leitura da obra: ―Jogados na

questão do sertão, só nos resta empreender uma caminhada de apreensão e compreensão, não racional, mas

enquanto travessia poético-ontológica‖, CASTRO, 2007, p. 143. Assim, há duas modalidades de compreensão:

uma compreensão racional e uma compreensão poético-ontológica. Segundo ele, para a obra GSV, deve-se optar

pela segunda.

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102

Estivemos, na verdade girando e girando em círculos, ao sabor dos volteamentos do

medo de Riobaldo, sem chegar ao fim, ao fundo, ao fundo último deste mistério que é medo.

Talvez, o problema decorra do fato de estarmos desde sempre procurando a causa do medo

para poder explicá-lo. Esta advertência já havia sido emitida pelo narrador. Procuramos a

causa última, a causa primeira, o fundamento do medo. Talvez, o problema esteja neste

procedimento de busca de causa e fundamento. É possível que a origem do medo esteja

mesmo na superfície, no corpo. Isto significa que o sarro de medo não foi destruído ainda, o

que impediu a investigação de afundar neste mistério, neste âmbito encoberto. De todo modo,

agora temos as condições propícias para compreender este fundo sem fundo, esse mistério, a

região abissal do medo. Agora, isto requer elaborar com maior clareza a questão que poderá

levar a ver isso que o medo é, em sua constituição própria. É preciso ver a radicalidade do

medo explicitando sua estrutura, ou melhor, seus segredos, caso isto seja possível. Do

contrário, ficaremos apenas visualizando os reflexos de um espelho, num jogo de

espelhamento, um jogo que faz apenas retirar algumas mascaras, que operam por nossa

própria especulação, pela especulação da investigação, e que sempre e a cada vez irá apenas

descobrir mais uma qualidade de medo, mais uma máscara para o medo mesmo.

Riobaldo já havia nos alertado sobre este fato, sobre esta questão. O medo é

um produzido dentro da gente, um depositado; e que às horas se mexe, sacoleja, a

gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só estão é

fornecendo espelho.251

Nesta passagem, não fica determinado o momento, o instante, o tempo, a hora em que o medo

se mexe dentro da gente. Isto porque, vimos, o medo está sempre presente. Mas a questão é

que, nestes momentos fundamentais em que o medo se mostra, o sentir da gente manifesta-se

como medo, isso sacoleja dentro da gente e nessas movimentações pensamos que este sentir

251

ROSA, 2006, pp. 366-367 grifo meu.

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103

possui alguma causa, pensamos que ele tem um porquê. A gente pensa que é por causas, por

isto, por aquilo. Na verdade, nesse nosso modo de pensar ou especular, só é possível fornecer

uma coisa: a coisa a que se atribui a causa do medo. Isto, essa causa, essa coisa é apenas

imagem num espelho. Este pensar fornece tão só um espelhamento, não fornece a coisa

mesma, sua origem. Isso porque o próprio pensar, enquanto ato de reflexão, é um modo de

espelhamento. Vimos tomando até aqui, sem discutir, que o pensar, o especular ideia, é um

ato de reflexão que reflete, tal como um espelho faz, fornecendo uma imagem uma ideia.

Especular e pensar resguardam uma profunda intimidade com a reflexão produzida por um

espelho. Mas o que é um espelho? Que relação é possível apontar entre homem e espelho?252

E entre medo e espelho? Na relação entre medo e espelho, o que se pensa que é a causa do

medo, na verdade, o que causa o medo, segundo Riobaldo é apenas uma imagem refletida no

espelho. O que atribuímos ao medo com sendo sua causa é mero espelhamento. Mas um

espelho nunca é só um espelho, pois nunca aparece por si mesmo: ninguém vê o espelho, mas

sim seu reflexo.

252

Sô Candelário, por exemplo, lidava com seu medo de lepra através de um espelho que carregava em sua

algibeira. Cf. Riobaldo, ―Que Sô Candelário caçava era a morte. E bebia, quase constantemente, sua forte

cachaça. Por quê? Digo ao senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. [...] Lepra demora tempos,

retardada no corpo, de repente é que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer. Sô Candelário

tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de

em sangue se arranhar. E carregava espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada‖, Ibid., pp. 243-244.

Diadorim tinha também uma capanga, onde guardava tesoura, tesourinha, pente, sabão, pincel, navalha, e,

também, espelho. Ele presenteou Riobaldo, certa vez, com outra navalha e pincel naquela sua capanga com

lavores e três botõezinhos. Cf. Riobaldo, ―Aí nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o Reinaldo e eu não

estávamos com sono, ele foi buscar uma capanga bonita que tinha, com lavores e três botõezinhos de abotoar. O

que nela guardava era tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e navalha. Dependurou o espelho

num galho de marmelo-do-mato, acertou seu cabelo, que já estava cortado baixo. Depois quis cortar o meu. Me

emprestou a navalha, mandou eu fazer a barba, que estava bem grandeúda. Acontecendo tudo com risadas e ditos

amigos – como quando com seu arreleque por-escuro uma nhaúma devoou, ou quando eu pulei para apanhar um

raminho de flores e quase caí comprido no chão, ou quando ouvimos um him de mula, que perto pastava. De

estar folgando assim, e com o cabelo de cidadão, e a cara raspada lisa, era uma felicidadezinha que eu

principiava. Desde esse dia, por animação, nunca deixei de cuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo, no mais

tempo, comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu, naquela dita capanga‖, Ibid., p. 145. Teria dado

também seu espelho?

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104

Quando Riobaldo teve medo na travessia de sua iniciação, o rio foi seu espelho.253

Na

verdade, em sua iniciação, Riobaldo teve a experiência de dois rios/espelhos: o primeiro

mostrou suavidade, paz, brilho, calmaria, segurança; entrando no segundo rio, o medo que

teve surgiu em consequência da mudança, da alteração de tudo isso; o seu medo maior foi dar

sem espera nesse rio de feiura, se moendo todo barrento, vermelho, uma aguagem bruta,

traiçoeira, cheia de baques moles, sussurros de desamparo. O que esse espelho/rio mostrou a

Riobaldo para que ele tivesse tido tanto medo? Riobaldo teve medo da morte? Sim, mas seu

medo da morte foi apenas a imagem de um espelhamento, que, em verdade, ocultou um

mistério que não percebemos. O que mostrou o espelho do rio além de seu medo da morte? O

que ele ocultou? Isso, o medo de cair no rio e morrer, foi só o espelhamento a que tivemos

acesso. Além disso, ocorria um mistério que não estávamos vendo, mas que foi visto por

Riobaldo – apesar de não vermos. A imagem que se mostrou para nós foi a causa do seu medo

de cair no rio e morrer. No entanto, o que não se mostrou para nós leitores e que foi visto por

Riobaldo? Isto é o que queremos saber. Um espelho mostra mais do que uma simples

imagem. Isto porque sua imagem é apenas aparência de causa, é só a ponta do mistério. O

mistério mesmo está, não no que se mostrou, mas naquilo que se ocultou, no mostrar-se. O

que está oculto neste espelho, no espelho desse rio, no espelho de Riobaldo? As águas dos

rios não são apenas águas, aguagens, mas também espelho.

Há uma outra passagem bastante relevante que devemos considerar a propósito disto

que um espelho pode pretender mostrar. Esta relação se refere ao jogo entre coragem-água-

espelho, que ilustra essa nossa intuição. Quando Riobaldo pede aconselhamento à sua

palmeira estimada, ao buriti, ele aponta esta relação entre espelho, água e coragem. Quando

pretende se aconselhar com o buriti, quando este lhe responde, este revela a necessidade de

253

Consultando o conto O espelho, de Guimarães Rosa, será possível concluir que há uma relação primitiva

entre água e espelho, conforme a fala de seu narrador: ―primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água

quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal‖, ROSA, 2001c, p.

121. Esta mesma relação irá aparecer também na obra GSV, ao longo de toda a sua narrativa.

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105

seu espelho, de sua água, porque carece de reafirmar ou confirmar sua coragem. Parece que

sua coragem é fortalecida com o azul do céu. Conforme Riobaldo,

Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo

azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho.254

Nesta passagem, apesar de Riobaldo estar tratando da necessidade do buriti em manter-se

numa proximidade com sua coragem, através do espelho da sua água, pode-se também

associar a função do espelho à questão do medo. De maneira oposta à coragem, o medo

manteria uma relação de afastamento, retraimento, recolhimento, encobrimento. Segundo o

que é destacado na passagem acima, o espelho/água do buriti passa a ser essencial, visto que o

aproxima de sua coragem, ou mesmo lhe dá coragem o céu azul – por conseguinte, afastando

o medo. Assim, o espelho desvela o que há de mais próprio para o buriti: o azul, sua coragem.

Podemos perguntar, então: o que elas, as águas, refletem e, nessa reflexão desvelam de

fundamental para Riobaldo? O que as águas de sua travessia desvelaram e velaram, além de

seu medo da morte, para que Riobaldo se tornasse diferente, transformado? O que é que ele

descobriu de fundamental para a sua vida, para o seu destino? Riobaldo descobre

simplesmente o que ele já desde sempre foi: animoso. Riobaldo descobre que também possuía

coragem. Descobriu que era já corajoso, pois é preciso já ser possuidor de coragem para se

tornar corajoso, animoso.255

É preciso já estar tocado por isto, por coragem, para que ela opere

nele. Coragem é um modo de sentir-se, assim como o medo. E isto é revelado por seu

espelho-rio.

254

ROSA, 2006, pp. 309-310.

255 De acordo com o Professor Fernando Pessoa, ―Riobaldo, a fim de indicar os ocultos caminhos da vida, conta

o exemplo de como o homem precisa se apropriar de sua coragem através da experiência de um acontecimento

que abre, inaugura, desperta o que ele é. É preciso já ter coragem para tornar-se corajoso. Esta dinâmica

circular de vir a ser o que já se é constitui o acontecimento apropriante de um instante extraordinário, o súbito

abrir-se do destino, tempo da travessia – Aquela travessia durou só um instantezinho enorme‖, cf. PESSOA,

2013, p. 249, grifo meu.

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106

O Professor Manuel Antônio de Castro, em sua leitura já bastante amadurecido da obra

GSV, no texto Grande Ser-tao: diálogos amorosos, tratando de expor sua interpretação para o

propósito de Riobaldo em especular ideia, nos oferece uma valiosa explanação a respeito do

sentido que podemos atribuir à palavra espelho. Segundo suas palavras:

Especular vem do verbo latino speculare, que diz pensar no sentido de re-fletir,

enquanto se abrir para a abertura e deixar advir a luz. Por isso, o verbo deu origem à

palavra espelho, o que reflete quem ou o que se olha como imagem, onde o espelho

não é a imagem nem quem ou o que se olha, mas a mediação enquanto lugar da luz

pela qual algo se torna visível. 256

Recorrendo-se à etimologia da palavra espelho, vemos que esta guarda a sua proveniência no

pensar, num modo de pensar específico. Que modo de pensar? O speculare latino.

Originalmente, este diz acerca do processo de pensar, refletir, que se estrutura como um abrir-

se para receber luz. O especular ideia é, pois, um abrir-se para ver a luz do que se mostra.

Esse mostrar, essa mostração do que se mostra só advém à vista do especulador, caso este

esteja aberto a receber esta luz. Daí, o sentido do speculare se estendeu para o sentido do

objeto espelho. O espelho faz uma mediação entre o que se mostra e o especulador, aquele

que se põe diante de um espelho. O espelho não é a causa do que se mostra, nem muito menos

é a própria coisa que se mostra. O espelho é a rigor o que faz a mediação, o que torna possível

o mostrar-se do que se mostra. O espelho é o lugar que torna possível o mostrar-se.

Mas, devemos perguntar: mostrar-se do quê? O que se mostrou para Riobaldo? Que se

mostrou e como se mostrou? Seguindo ainda as indicações do Professor Manuel:

O que no especular ele [o espelho] re-flete [e mostra] pelo advento da luz na

abertura da clareira? Refletir é alguém deixar emergir na abertura a luz da reflexão

enquanto medida, onde a luz da reflexão é a própria medida, na medida em que se

procura a medida do que é próprio e se dá na abertura.257

256

CASTRO, 2007, p. 154.

257 Ibid., p. 154.

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107

Esta consideração de Manuel Antônio de Castro fornece o vislumbre de um cenário

inteiramente diverso do que veio sendo construído até aqui, a propósito de nosso

entendimento da relação medo-coragem-vida-morte, oferecendo as indicações essenciais para

a nossa compreensão do que vem a ser um espelho.

Todos nós, todo homem sempre está de algum modo aberto à adveniência de luz no

especular. Isto porque ser homem é ser numa abertura, numa clareira. A questão que se impõe

é saber que luz advém à clareira. Ou seja, o que se ilumina e através do que se ilumina, é o

que deve ser esclarecido. Riobaldo viu, tal como pôde compreender, a sua travessia, a sua

abertura, a sua condição. Recorrendo ao seu sentir, Riobaldo compreendeu-se, de alguma

maneira, segundo um sentir-se bem determinado. Sabemos bem o sentir que Riobaldo

conhecia: vergonha e medo. Riobaldo via sua vida, sua condição, sua situação de atravessador

de rio a partir de, segundo a sua própria luz, a luz de seu medo. Seu medo foi a luz que

iluminou sua vida naquele instante, naquele átimo. A luz do medo era a luz que Riobaldo via,

que Riobaldo conhecia. Esta luz foi tão radical e tão intensa que chegou ao ponto de sentir

medo em seu corpo imediatamente, sem reflexão da razão, por isso medo imediato. Seu medo

passou a ser a própria mediação: tudo foi isso: medo. Medo foi a mediação de sua experiência,

foi o médium, o elemento em que Riobaldo se viu, naquela travessia. Dada a radicalidade e

imediatidade do seu medo, Riobaldo foi só medo, o medo mesmo. A medida de Riobaldo foi

sua medida de medo. Mas Riobaldo não viu apenas o seu medo. Riobaldo viu mais do que a

luz do seu medo. Em sua travessia nos rios, quando teve medo, o seu medo maior, Riobaldo

recebeu uma outra luz. Que outra luz Riobaldo viu naquela travessia? Diz: ―O menino sorriu

bonito. [...] Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz‖258

, ―luziam um efeito de

calma‖259

. Essa luz, a luz de Diadorim menino, iluminou o modo como Riobaldo se via em

258

ROSA, 2006, p. 106, grifo meu.

259 Ibid., p. 104.

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sua situação, em sua travessia. Além de ver a luz de Diadorim, Riobaldo viu também o rio. O

rio passou a ser o seu mediador, teve o rio como mediador, como espelho para iniciar a

transformação. Seu medo foi apresentado no espelho das águas do rio. Riobaldo teve a luz de

Diadorim e o espelho das águas para poder ver seu medo.

Inicialmente, sua travessia figurou como travessia de medo. Seu médium, seu elemento

era só e tão só medo. Mas o espelho do rio e a luz de Diadorim foi o que lhe permitiu

compreender seu medo. O medo da morte foi o que apareceu para Riobaldo. Mas, devemos

perguntar: o que mais se tornou visível para Riobaldo com a mediação do rio, para além da

causa do medo? Como disse o Professor Manuel, o espelho é o lugar da luz através do qual

algo se torna visível. O rio, enquanto espelho, tornou visível para Riobaldo o seu próprio

medo, o medo que estava sentido: o medo de morrer, seu medo maior. O rio fez a mediação

entre Riobaldo e o seu si mesmo, seu ensimesmamento de medo. O si mesmo de Riobaldo foi

só medo de morrer, e, por isso, também vergonha. Mas, o que mais a luz de Diadorim estava

tornando visível para Riobaldo, enquanto o rio moía e apavorava? O medo apareceu como a

medida de sua abertura. Riobaldo viu que o medo era a única luz a que ele recorria para ver o

mundo, o sertão: era a luz do medo que lhe permitia ver a realidade, o rio, a vida, si mesmo.

Assim compreendido, o medo deixa de ser um mero sentimento interno e subjetivo, e se torna

aquilo que estava perfazendo o seu ser, como medida de auto-compreensão, auto-especulação.

Riobaldo viu seu medo da morte e passou a autocompreender-se, enquanto ente constituído de

medo. O medo estava sendo a sua medida, a medida do humano. Tratamos do medo maior,

não do trivial do corpo.

A causa do medo apareceu como medo da morte, e sendo a morte uma causa, um

fundamento para o medo, este, na verdade, se oferece como medida de humanidade. Essa

interpretação redireciona nossa investigação radicalmente para um outro sentido, um sentido

existencial. Não se trata, pois, de procurar a causa do medo, pois ela, a causa, está apenas é

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dando espelho, está indicando o lugar, o ponto, a instauração de um espelho e seu

espelhamento. A causa é tão só um sarro. O medo serve de medida para o homem, é um

modo possível de medir a humanidade do homem. O medo é um modo de o homem medir-se

ante a morte – e também ante a vida. Apesar de o medo se apresentar como medida de sua

humanidade, não obstante, deu-se ainda uma outra medida, tão fundamental quanto o medo,

enquanto Riobaldo atravessava o rio. Que outra medida lhe foi apresentada na travessia dos

rios? A outra medida para o humano foi dada pela luz de Diadorim, a luz da coragem, a

medida da coragem: Carece de ter coragem, muita coragem260

.

Diante destas conclusões, temos agora condições de responder nossa interrogação

acerca da transformação pesável pela qual passou Riobaldo, e que por vezes adiamos. Parece

que essa transformação pesável lhe deu a oportunidade de assumir uma nova medida, um

novo peso para si mesmo. Essa transformação lhe deu uma outra régua, outra medida. Deu a

Riobaldo a possibilidade de se medir diferente. Na compreensão de Riobaldo, ele era igualado

a todos, nivelado com os outros jagunços.261

Na verdade, nesta travessia, Riobaldo descobriu

que poderia assumir outra medida segundo a qual seria medido o seu ser. Porém, não é

Riobaldo que escolhe a sua medida, é a abertura que dá a sua medida. Podemos adiantar que a

abertura que irá lhe dar outros limites, outra medida é o lugar do pacto, a encruzilhada das

Veredas Mortas.262

Em sua iniciação, Riobaldo apenas se dá conta da medida do seu medo e

260

Cf. Ibid., pp. 108-109. Cf. o Professor Fernando Pessoa, em seu ensaio, Da travessia do Grande Sertão (O

destino de Riobaldo), ―o destino de Riobaldo, como travessia do grande sertão, começa com a descoberta da

coragem – ela é a condição fundamental de seu desempenho, porque a coragem dispõe o homem no ânimo de

perfazer as fronteiras do sendo (ente) em seu todo e, assim, abrir-se à essência das coisas: a coragem ensina ao

homem ser na vigência da própria conjuntura e, perpassando a sua ultrapassagem, descobrir o sentido de ser na

travessia de seu acontecimento‖, PESSOA, 2013, p. 255.

261 Cf. Riobaldo, ―No formato da forma, eu não era o valente nem mencionado medroso. Eu era um homem

restante trivial. A verdade que diga, eu achava que não tinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço não

gostava. [...] Medida de muitos outros igualasse com a minha, esses também não sentindo e não pensando‖,

ROSA, 2006, p. 66.

262 Conforme o Professor Manuel Antônio de Castro, ―a luz da reflexão só aparentemente é um exercício de

quem reflete. Nessa ação, quem age é tanto quem reflete a partir da luz que se dá na abertura enquanto reflexão

quanto o que se procura na reflexão: a luz enquanto a medida. No especular o que advém é o eidos/ideia, mas

quem a doa é a luz enquanto a medida do especular, o que media o especulador na busca do que é em sua

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descobre uma outra medida, a medida da coragem. Riobaldo parece ter compreendido que o

espelhamento do medo é uma estrutura existencial de auto-medição e auto-compreensão, de

medida de ser. Já no momento do pacto com o diabo, na ―encruzilhada pobre de

qualidades‖263

, nas Veredas Mortas, Riobaldo irá medir-se com o Pai do Mal, para contratar

seu pacto. A impressão que dá é que Riobaldo estava se olhando num espelho, e, na medida

em que se olha, olha para o interior de seu sentir, seu medo, sua medida, vê que o medo que

estava tendo não passava de um espelhamento: ―Eu não ia temer. O que eu estava tendo era o

medo que ele estava tendo de mim!‖264

.

O que Riobaldo sentiu naquele instante foi medo, pois tirou espantosas palavras de

dentro de seu tremor. Apesar disso, ele não queria escutar o tremor de seus dentes e queria ser

um homem novo em folha. Se resolvesse atentar contra sua própria vida, se resolvesse se

matar: quem iria impedir? Nesse momento ele se viu, em sua medida, mais mil vezes. Ele

enfrentaria a sua própria morte, se preciso. Riobaldo se viu, se mediu com o Pai da Mentira,

se viu, isto é, mediu-se de igual para igual com o Diabo, com o Di, o desconhecido. Houve

ali, naquele instante, naquele átimo, um espelhamento em que Riobaldo viu, ou melhor, que

Riobaldo provou para ele mesmo que o medo que ele estava sentindo, que sempre sentiu, era

o medo espelhado que vinha do Manfarro, ele viu que seu medo provinha do rôr de nada do

Sempre-Sério, do Demo. Riobaldo viu, nessa especulação, nesse espelhamento o Solto-eu que

ele é, que todo homem é e que quando se descobre se tem medo. Riobaldo tem medo de

homem humano265

. Viu, se viu num rôr de nada. Riobaldo viu seu nada, seu horror de nada, e

reflexão a partir de e na abertura. Especular é um saber do ser, mas tanto um como outro são doação da medida

advinda na abertura. Por isso, a medida é o não-ser do ser enquanto se doa no vir-a-ser do que especulando se

especula a partir da abertura. Em Grande sertão: veredas a abertura será o lugar do pacto, a entre-cruzilhada

das Veredas Mortas, que depois se tornam Veredas Altas. Especular é sempre se experienciar na ambiguidade

do entre, o espelho. Especular é dialogar em seu sentido profundo‖, CASTRO, 2007, p. 154.

263 ROSA, 2006, p. 419, grifo meu.

264 Ibid., p. 418.

265 Cf. Ibid., p. 406.

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ele queria mesmo isso: ―o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada‖266

.

Quem não quer nada, não quer algo, não quer um algo, alguma coisa, não quer nenhum fundo

nem fundamento, nem sarro, nem causa. Quer nada simplesmente. E de tanto querer nada, ele

―queria só tudo‖. Nada equivalendo a tudo. Ele queria uma ―coisa, a coisa, esta coisa: eu

somente queria era – ficar sendo!‖267

Será o caso ainda de analisarmos o instante do pacto com o devido cuidado que este

acontecimento merece. Por enquanto, aqui, deve ficar evidente a sacada de Riobaldo, a súbita

compreensão que teve sobre a questão de seu espelhamento. Um espelho pode mostrar mais

do que uma imagem? O espelho mostrou o humano, em sua constituição própria. O espelho

mostra a máscara com a qual o humano se apresenta ou pode se apresentar. No caso de

Riobaldo, sua máscara era de medo. A imagem do espelho, a causa do medo, o medo, pode

mostrar o que é a constituição do homem e sua estrutura: o homem é, ilumina-se, mede-se por

medo – e coragem.

Caso seja possível sustentar tal leitura, podemos perguntar ainda, o que os mais variados

espelhamentos (causas, fundamentos) de medo de Riobaldo podem nos dar a ver? Quando ele

teve medo de nascimento268

, medo de governar269

, medo de si mesmo270

, medo do que é certo,

266

Ibid., p. 420.

267 Ibid., p. 420.

268 Cf. Riobaldo, ―Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão

nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver

nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio‖, Ibid., p. 60, grifo meu.

269 Cf. Riobaldo, ―mais disse: – ―Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, hoje. Você escolheu

Marcelino Pampa, você decidiu e fez...‖ Era. Gostei, em cheio, de escutar isso, soprante. Ah, porém, estaquei na

ponta dum pensamento, e agudo temi, temi. Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de

medo!‖, Ibid., p. 87, grifo meu.

270 Cf. Riobaldo, ―Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra, eu vencendo, aí estremeci num

relance claro de medo – medo só de mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maior do que eu mesmo;

e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadas dava. Que eu de repente me perguntei, para não me responder: – “Você

é o rei-dos-homens?...” Falei e ri. Rinchei, feito um cavalão bravo. Desfechei‖, Ibid., p. 139, grifo meu.

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porém indeterminado271

, medo de errar272

, medo de matar273

, medo do pacto274

, medo de

perder Diadorim275

, medo de homem humano276

. O que esses medos dão a ver, além do que

aparece como causa do medo, no jogo de espelhamento? Para que referência eles apontam,

todos esses medos? Com essa investigação seria constatada apenas a estrutura existencial do

humano, constituído pelo sentir.

O que deve ser estabelecido, por ora, é a hipótese, a especulação, a pista que possa nos

dar a ver a estrutura do sentir. Poderíamos colocar esta especulação, este espelho, agora, na

ordem do destino de Riobaldo. Parece que em todos os casos a questão fundamental que pôs o

medo em evidência e o espelhamento de sua causa foi sua relação com o destino, o seu

destino. Riobaldo estava em todos os casos medindo-se com a vida e com a morte, ou seja,

271

Cf. Riobaldo, ―Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse: – ―Tudo temos de ter cautela... Se eles já

souberam notícia de que você fugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo te matar mediato, por

culpas de desertor...‖ Ouvi retardado, não pude dar resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que

maneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá em vento de todo lado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia

me levando sem data. Burros e mulas do lote de tropa, eu tinha inveja deles... Tem diversas invenções de medo,

eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia com um

grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode haver

sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo.‖, Ibid., p. 152, grifo meu.

272 Cf. Riobaldo, ―Acho que eu não tinha conciso medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de errar –

de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei: medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive.

Medo de errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo-de-errar, a gente

estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado‖, Ibid., p. 185, grifo meu.

273 Cf. Riobaldo, ―O raciocínio, que dele eu gostava, constante de admiração; e pela necessidade. Medonho e

esquisito achei, que fosse para ter de matar completo Zé Bebelo. Como é que? Mas ele abria lugar demais, o

perto demais, sobre papel que não era o pra ele, a meu parecer. Pelo que eu tinha precisão de me livrar, daquele

movimento sem termo nem nenhumas outras ociosidades‖, Ibid., p. 365, grifo meu. E ainda: ―As vontades de

minha pessoa estavam entregues a Diadorim. A razão dele era do estilo acinte. Só previ medo foi de que ele

falasse para eu mesmo ir voltar lá, por minhas próprias acabar a Ana Duzuza‖, Ibid., p. 37.

274 Cf. Riobaldo, ―Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha? O senhor reza

comigo. A qualquer oração. Olhe: tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao

senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a

alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem

nenhum comprador...‖, Ibid., p. 485, grifo meu.

275 Cf. Riobaldo, ―O senhor soubesse... Diadorim – eu queria ver-segurar com os olhos... Escutei o medo claro

nos meus dentes... O Hermógenes: desumano, dronho – nos cabelões da barba... Diadorim foi nele... Negaceou,

com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só...‖, Ibid., p.

594, grifo meu.

276 Cf. Riobaldo, ―Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de

outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães – eles achavam questão natural, que podiam ir

salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror que me deu – o senhor

me entende? Eu tinha medo de homem humano‖, Ibid., p. 406.

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com o seu destino. Poderíamos mesmo afirmar a confrontação de Riobaldo com seu próprio

destino como sendo o seu grande pacto. A contratação do pacto de assumir o seu próprio ser

como destino e desafio de travessia, assumindo o seu quinhão, o seu próprio, a sua herança,

o que é seu por direito. Ser homem é ser travessia; ser travessia é ser tempo; ser tempo e

travessia é ser humano: ser homem humano. E ser homem humano é ser no modo de ser da

liberdade, ser nonada, ser tempo, travessia, medo, coragem...

Sem atropelar o compasso que vimos imprimindo a caminhada, com a demora

necessária para se pensar e esclarecer cuidadosamente as questões aqui apresentadas,

podemos dizer que Riobaldo sofreu uma transformação pesável. Riobaldo foi transformado

em sua estrutura existencial, em sua travessia. Passou a fazer parte de sua estrutura uma outra

possibilidade de medida. Mas, não podemos desconsiderar que, segundo o Professor Manuel

Antônio de Castro,

Toda travessia implica uma transformação ambígua. Assim sendo, os ritos

iniciáticos são uma travessia onde o iniciar implica um introduzir não numa outra

realidade que se oporia à primeira, mas no dimensionar a realidade na qual já se está

lançado pelo que lhe está oculto. E o que sempre se oculta é a morte. Iniciar é fazer

morrer. Toda travessia se dá na tensão vida-morte, dimensionada na e como

experienciação.277

Com isso, evidencia-se o papel da coragem e do medo como estrutura necessária e existencial

do sentir. Riobaldo não deixa de sentir medo, mas entra numa nova relação consigo mesmo. O

sentir de Riobaldo passa a se configurar, a se reestruturar a partir da radicalidade do sentir

medo e coragem. Medo e coragem passam a perfazer a sua humanidade.278

A medida da

277

CASTRO, Manuel Antônio de. "Travessia, 7". In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e

Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Travessia. Acesso em: 20

de novembro de 2015. Acesso em: 20 de novembro de 2015.

278 Apesar da oposição entre medo e coragem, ambos coexistem tensionados, paradoxalmente. Quanto a isso,

vale considerar as afirmações do importante estudo do Professor Eduardo Coutinho, em seu livro Grande sertão:

veredas. Travessias, onde afirma que a linguagem na obra GSV se caracteriza ―pela confluência de vários

elementos, frequentemente opostos, que coexistem em constante tensão, pondo em xeque a todo instante a lógica

cartesiana, calcada no binarismo excludente das alternativas ou/ou e substituindo-o sempre que possível pela

proposta de uma lógica inclusiva, indicada na narrativa pelo paradoxo ―Tudo é e não é‖, repetido diversas vezes

ao longo do relato. Esse cunho questionador do romance, que tem a ambiguidade como um princípio estrutural

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coragem se mostrou como uma necessidade para o cumprimento existencial de seu destino. O

que se ocultava, pois, era a estrutura existencial do sentir medo-coragem. Essa transformação

é qualificada por ele como uma transformação pesável porque ela lhe traz um novo peso, ela

possui um peso que é o próprio peso da existência, o peso de conquistar sua existência

própria, diante da vida e da morte. Isto, a conquista do próprio, a conquista da própria

existência exige tal peso. Este é o peso da vida, da realização da vida. Riobaldo media-se com

medo, por medo, pela medida do medo. Agora sua medida será testada, melhor, será provada,

em sua destinação, pela medida da coragem e isto irá implicar uma nova série de desafios.

básico, é, a nosso ver, uma das grandes contribuições da obra para o quadro da literatura brasileira do século

XX‖, COUTINHO, 2013, pp. 79-80.

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7. Coragem: o vau do mundo

Medo e coragem são duas disposições fundamentais na obra GSV. São disposições de

humor que estruturam o sentir. Medo e coragem dão a modulação das ações de Riobaldo em

seus envios pelo Sertão. Medo e coragem modulam Riobaldo. Isto pretende dizer que seu

sentir determina, dá os limites, impõe o contorno de suas ações, isto é, modela a frequência, o

ritmo das ações e, assim, perfaz o modo de ser de Riobaldo que queria só ficar sendo279

. Na

verdade, medo e coragem modulam todo homem, o homem do sertão, o homem do ser.

Riobaldo queria entender do medo e também da coragem. A coragem completa o

entendimento acerca da estrutura do sentir de Riobaldo e, com isso, evidencia-se o sentido

segundo o qual a vida de Riobaldo foi regida, ou seja, evidencia o seu destino, sua ação. Por

isso, Riobaldo queria também entender da coragem, acerca da coragem. Buscando agora

esclarecer essa dimensão do sentir, daremos continuidade ao encaminhamento que vimos

desenvolvendo neste capítulo, a saber, a correlação entre destino, medo e coragem. Parece que

esta é a questão da vez.

Mas que coragem Riobaldo pretendia entender? Queria entender de um tipo específico

de coragem ou de sua própria? A coragem em geral? Uma coragem específica? Para quê?

Questionamentos semelhantes àqueles que decorreram do medo, reaparecem. Pode-se afirmar

agora sem muitos riscos, sem perigo, que Riobaldo, ao apontar para a necessidade de entender

do medo e da coragem, pretendia, por isso, compreender-se e compreender, por sua vez, o que

foi sua vida, suas memórias, sua própria coragem, seu coração, a vida, o sertão. Vamos por

partes. Riobaldo pretendia compreender a si mesmo, compreendendo as ações dos outros, dos

corajosos do sertão, dos grandes. Ele se espelhava nos grandes jagunços (Diadorim, Joca

279

Cf. ROSA, 2006, p. 420.

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Ramiro, Zé Bebelo, Hermógenes280

). Investigando-se a si mesmo, para entender os outros;

investigando os outros, para compreender-se a si, num jogo de espelhos. Assim, Riobaldo

auscultou o seu coração e o dos homens, o coração do sertão, auscultou o coração e a

coragem, o profundo, o raso do mundo.

Em sua narração, quando Riobaldo diz que queria entender do medo e da coragem281

,

para que pudesse declarar tal querer, já estava ciente, já havia visto, já estava impregnado do

sentido e do saber acerca da coragem – e do medo. Ele já havia atravessado muitos rios

quando afirmou querer entender da coragem. Riobaldo já havia sido tocado pela questão da

coragem desde a sua iniciação, do contrário não teria sido capaz de perguntar. Como já foi

ressaltado, segundo o Professor Fernando Pessoa, ―É preciso já ter coragem para tornar-se

corajoso”282

. Esse círculo virtuoso também é defendido pelo próprio Riobaldo, quando sugere

o círculo do entendimento: se não entende, como é que vai entender?283

Se viu, sabe, se não

viu, não há como saber. Para perguntar sobre algo, é preciso já ter visto esse algo, do

contrário, não há condições para perguntar, não há nem sequer a possibilidade de querer

saber, querer entender. Por isso, é preciso já ter sido tocado por coragem, para que de

coragem possa querer entender. E, ainda segundo o Professor Pessoa, entrar nesse círculo, ou

seja, cumprir a necessidade de tornar-se corajoso, a partir da coragem que já se tem,

corresponde a um movimento de apropriação de uma sina, de um destino, apropriação de uma

280

Apesar de todos sabermos da rivalidade entre Riobaldo e Hermógenes, há admiração entre ambos, ainda que

ambígua e recíproca. Isto se conclui das seguintes passagens: conforme Riobaldo, ―O senhor entenderá? Eu não

entendo. Aquele Hermógenes me fazia agradados, demo que ele gostava de mim. Sempre me saudando com

estimação, condizia um gracejo amistoso ou umas boas palavras, nem parecia ser o bedegueba‖, Ibid., p. 187. E

ainda, ―D‘o Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor, gostei. – ―Riobaldo, Tatarana! É o é...‖ –

ele me governou, de repente. Aceitei‖, Ibid., p. 210. E ―Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem

regulada somente para diante, somente para diante; e o Hermógenes estava deitado ali, em mim encostado – era

feito fosse eu mesmo‖, Ibid., pp. 213-214. E também ―Em tudo reconheci: que o Hermógenes era grande

destacado daquele porte, igual ao pico do serro do Itambé, quando se vê quando se vem da banda da Mãe-dos-

Homens – surgido alto nas nuvens nos horizontes. Até amigo meu pudesse mesmo ser; um homem, que havia‖,

Ibid., p. 409.

281 Ibid., p. 100.

282 Cf. PESSOA, 2013, p. 249, grifo meu.

283 Cf. Riobaldo, ―Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?‖, ROSA, 2006, p. 211.

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vida própria. Como ele afirma, “Esta dinâmica circular de vir a ser o que já se é constitui o

acontecimento apropriante de um instante extraordinário, o súbito abrir-se do destino, tempo

da travessia‖284

. Isto significa que: a descoberta transformadora de Riobaldo, em sua

iniciação, dispôs o seu destino, destino este que ainda carecia de ser cumprido.

Vemos nisto a relação coragem-medo-destino-temporalidade. E depois de já ter

atravessado e cumprido esta sina, o que Riobaldo faz ao longo da narração é tão só recuperar,

recordar, reapresentar ao leitor, ao seu ouvinte, o seu saber, o seu não-saber, suas questões

que decorrem desse círculo, o círculo que é a inserção na vida, para que sejam repensadas,

para que sejam partilhadas. É assim que vai dando corpo ao suceder, vai dando corpo ao

tempo da sua travessia, ao extraordinário que constitui o instante da vida. Isto parece tornar

evidente a tarefa fundamental que vimos empreendendo em nossa investigação: desde o início

o que estava orientando nossa investigação era a busca por recompor o caráter circular que há

entre Riobaldo descobrir o que é e tornar-se o que sempre já poderia ser. Iluminar as

questões de Riobaldo a partir de sua força própria, a força desse círculo de inserimento na

vida, nos dará o direto de ver tais questões operando na obra.

Como círculo, não pode cessar de circular. Recomecemos, pois, novamente,

perguntando: o que é isto, a coragem em geral? Coragem é uma qualidade, um atributo, uma

virtude humana ou uma coisa de que se tem posse, que se controla? Coragem não é uma coisa,

que se pode ter guardada na algibeira. Devemos perguntar: o que é isto, a coragem, enquanto

medida do humano? A coragem que está em questão, neste sentido, é a coragem de Riobaldo.

Daí pode-se perguntar ainda o quão corajoso ele foi em sua travessia. Que coragem foi a

coragem de Riobaldo? Sua coragem foi inteirada tal como a de seu par Diadorim?285

Qual é o

sentido de afirmar que alguém é corajoso? Coragem implica ausência de medo? O medo é o

284

Cf. Riobaldo, ―Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber?‖, Ibid., p. 211.

285 Cf. Ibid., p. 109.

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oposto da coragem? Seria a coragem uma medida, a medida de coragem, assim como o medo

serve de medida, refletido num espelho? Como se manifesta, como se mostra, como se prova

coragem? De que isso nos interessa para compreendermos a noção de temporalidade, a que a

obra nos dá a ver?

Vamos tentar nos concentrar em dar uma resposta à primeira pergunta: o que é isto, a

coragem? O que é a coragem em geral? Ou antes de tudo: o que sabemos sobre coragem? A

palavra coragem recolhe o seu sentido a partir da palavra francesa courage.

Etimologicamente, coragem é uma adaptação da palavra corage, courage, coração. Neste

sentido, coração e coragem é o mesmo, o mesmo sentido, a mesma raiz, a mesma força, o

mesmo ânimo. Coração e coragem provêm do mesmo vocábulo latino cor (cordis), que diz,

coração, espírito. A propósito, o cor de coragem e coração também diz algo do que Riobaldo

entende por corpo: ―o que o corpo a próprio é: coração bem batendo‖286

. Assim, corpo287

é

coração batendo no compasso do mais certo288

, do mais acertado, no bem bater, no bom

ritmo. Agora: corpo, coração, coragem: um e o mesmo, formando uma unidade. Disso,

Riobaldo já estava ciente: de que ―coragem – é o que o coração bate; se não, bate falso [bate

errado]. Travessia – do sertão – a toda travessia‖289

. Coragem e coração é do que se precisa

para toda e qualquer travessia, e ainda um corpo: isto é, um coração batendo certo. Carece de

se ter, justamente, coragem-corpo-coração, na travessia, no sertão, na vida: isso é o que a

vida espera de todo e qualquer homem: ―O que ela quer da gente é coragem‖290

. A vida quer

286

Ibid., p. 138, grifo meu.

287 Aqui o corpo não aparece mais como medo imediato, conforme destacado anteriormente. Agora, após a

transformação, o corpo de Riobaldo está sintonizado pela coragem.

288 Cf. o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa: ―‗Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto...

Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades,

eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...‘ E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo‖,

ROSA, Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2001a, p. 85.

289 ROSA, 2006, p. 502.

290 Ibid., p. 318.

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do homem isto: coragem, coração, corpo. Para corresponder a esta exigência, que é vida, é

preciso ter coragem: muita coragem291

, e ainda, por extensão, muito corpo, muito coração292

.

Viver é ação – cor-ação – que, para ser bem consumada, realizada, perfeita, carece de se

―conservar coragem‖293

, e coração no peito, bem batendo, compondo, perfazendo corpo, um

corpo, consumando um corpo próprio, o próprio corpo, o corpo do suceder da vida própria.

Portanto, coragem/coração/corpo é o que se exige para a ação de viver.

Mas que tipo de coragem foi a coragem de Riobaldo? Que coragem se devia conservar,

para consumar a sua vida? Muitas são as variações, tipos, qualidades e intensidades, modos,

modulações, momentos e tempos de coragem descritas na obra GSV, do mesmo modo como

ficou constatado anteriormente com a análise da questão do medo. Aqui temos: coragem de

guerra294

, coragem comum295

, coragem esporeada296

, coragem precisada297

, coragem calma298

,

291

Cf. Diadorim, ―Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem...‖, Ibid., p. 109.

292 Cf. Guimarães Rosa, ―veja, penso desta forma: cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é

concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu

lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem, ou

chegam a fazê-lo quando é demasiado tarde. Por isso, tudo é muito simples para mim, e só espero fazer justiça a

esse lugar e a essa tarefa. Veja como o meu credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são

uma mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é apenas uma maldita

invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas totalmente distintas. Acho isso ridículo. A vida

deve fazer justiça à obra, e a obra à vida. Um escritor que não se atém a esta regra não vale nada, nem como

homem nem como escritor. Ele está face a face com o infinito e é responsável perante o homem e perante a si

mesmo. Para ele não existe uma instância superior. Para que você não tenha de me interrogar a esse respeito,

gostaria de explicar meu compromisso, meu compromisso do coração, e que considero o maior compromisso

possível, o mais importante, o mais humano e acima de tudo o único sincero. Outras regras que não sejam este

credo, es poética e este compromisso não existem para mim, não as reconheço. Estas são as leis de minha vida,

de meu trabalho, de minha responsabilidade. A elas me sinto obrigado, por elas me guio, para elas vivo. Mesmo

com a melhor boa vontade não posso fazer mais confissões, porque tudo que possa me acontecer na vida está

contido aí, ou não vale a pena ser chamado de confissão‖, LORENZ, 1991, pp. 73-74, grifo meu.

293 ROSA, 2006, p. 48.

294 Cf. Riobaldo, ―Conforme mais me deram explicação, aquele não oferecia perigo mais de tornar a se juntar

com os outros bebelos e vir outra vez de armas contra a gente: porque se tinha providenciado de rezar nele uma

reza de tirar a coragem de guerra, feito ato, mandraca de se abobar! Tudo tinha graça‖, Ibid., pp. 141-142.

295 Cf. Riobaldo, ―Tomei coragem mais comum‖, Ibid., p. 272.

296 Cf. Riobaldo, ―Tudo o melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não devia de ajudar a quem vai por

santas vinganças?! Devia. Nós não estávamos forte em frente, com a coragem esporeada? Estávamos. Mas,

então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, do pé-

depato, o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que minha alma

soletra‖, Ibid., p. 301.

297 Cf. Riobaldo, ―E entreguei o escrito a Zé Bebelo – minha mão não espargiu nenhum tremor. O que regeu em

mim foi uma coragem precisada, um desprezo de dizer; o que disse: – ―O senhor, chefe, o senhor é amigo dos

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coragem gentil e preguiçosa299

, a coragem melhor300

, a mór coragem301

, coragem contra

homem302

, coragem de decisão303

, coragem que não pisca304

, coragem de comandar305

. A

coragem em Riobaldo, assim como o medo, foi variável306

. Em outra ocasião, façamos uma

incursão mais justa e cerrada no interior das coragens de Riobaldo, para ver melhor a coragem

soldados do Governo...‖ E eu ri, ah, riso de escárnio, direitinho; ri, para me constar, assim, que de homem ou de

chefe nenhum eu não tinha medo. E ele se sustou, fez espantos‖, Ibid., pp. 334-335.

298 Cf. Riobaldo, ―No assim simples eles obedeceram, tanto um, tanto o outro. Mas estavam muito armados.

Momentos que foram, eu louvei a coragem calma daqueles dois, que de qualquer longe recanto um soldado

talvez estivesse em poder de derrubar por belprazer. Porque os soldados não pertenciam nessa cerimônia.

Afiguro o que pensei‖, Ibid., p. 359.

299 Cf. Riobaldo, ―Seo Ornelas ou Hilário – ‗Me ensinou um meio-mil de coisas... A coragem dele era muito

gentil e preguiçosa... Sempre só depois do final acontecido era que a gente reconhecia como ele tinha sido

homem no acontecer...‘‖, Ibid., p. 459.

300 Cf. Zé Bebelo, ―Rapaz, você é um que aceita o matar ou morrer, simples igualmente, eu sei, você é

desabusado na coragem melhor – que é a da valentia produzida...‖, Ibid., p. 368.

301 Cf. Riobaldo, ―Se eu fosse filho de mais ação, e menos idéia, isso sim, tinha escapulido, calado, no estar da

noite, varava dez léguas, madrugada, me escondia do largo do sol, varava mais dez, passava o São Felipe, as

serras, as Vinte-e-Uma-Lagoas, encostava no São Francisco bem de frente da Januária, passava, chegava em

terra cidadã, estava no pique. Ou me pegassem no caminho, bebelos ou Hermógenes, me matassem? Morria com

um bé de carneiro ou um au de cão; mas tinha sido um mais destino e uma mor coragem. Não valia? Não fiz.

Quem sabe nem pensei sério em Diadorim, ou, pensei algum, foi em vezo de desculpa. Desculpa para meu

preceito, mesmo. Quanto pior mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar. De mim, toda

mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de

fuga‖, Ibid., p. 184.

302 Cf. Lacrau, ―Pactário ele era, se avezando por cima de todos. – ―Você, que não cede nenhum valor à alma,

você, Lacrau, era capaz de fechar desse pacto?‖ – eu indaguei. – ―Ah, não, mano, quero lá não navegar por

detrás das coisas... Coragem minha é para se remedir contra homem levado feito eu, não é para marcar a meia-

noite nessas encruzilhadas, enfrentar a Figura...‖ Calado, considerei comigo. Esse Lacrau tirava a sensatez da

insensatez. Outras informações ele disse. O senhor não é como eu? Sem crer, cri‖, Ibid., p. 409.

303 Cf. Riobaldo, ―Declaro ao senhor: hora chegada. Eu ia. Porque eu estava sabendo – se não é que fosse

naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão‖, Ibid., p. 418.

304 Cf. Riobaldo, ―Diadorim, semelhasse maninel, mas diabrável sempre assim, como eu agora eu estava contente

de ver. Como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja

toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro‖, Ibid., p. 428.

305 Cf. Riobaldo, ―O que eu tinha, que era a minha parte, era isso: eu comandar. Talmente eu podia lá ir, com

todos me misturar, enviar por? Não! Só comandei. Comandei o mundo, que desmanchando todo estavam. Que

comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem. Mais coragem que todos. Alguém foi que me ensinou

aquilo, nessa minha hora? Me vissem! Caso que, coragem, um sempre tem poder de mais sorver e arcar um

excesso – igual ao jeito do ar: que dele se pode puxar sempre mais, para dentro do peito, por cheio que cheio,

emendando respiração... À fé, que fiz. Se não vivei Deus, ah, também com o demo não me peguei – refiro; mas

um nome só eu falava, fortemente falado baixo, e que pensado com mais força ainda. E que era: – Urutu

Branco!... Urutu Branco!... Urutu Branco!... Cujo era eu mesmo. Eu sabia, eu queria.‖, Ibid., p. 554.

306 Cf. Riobaldo, ―Então, Diadorim veio me fazer companhia. Eu estava meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais

receio daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é:

coragem em mim era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar

em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de valentia; ou

cara de ruindade! Mas minha competência foi comprada a todos custos, caminhou com os pés da idade. E, digo

ao senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer quando Deus manda, depois quando o diabo pede se perfaz.

O Danador!‖, Ibid., p. 46.

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que sentiu, em suas variações, onde será o caso de perguntar pelas variações e modos de

manifestação de coragem. Por ora, devemos firmar o passo para o sentido que conduz à

resposta para a seguinte pergunta: o que é a coragem em geral?

Apesar de afirmar querer entender da coragem, Riobaldo sabia algo acerca de coragem e

respondeu indiretamente a esta nossa pergunta. Disse ele: ―Vau do mundo é a coragem...‖307

.

Um pouco antes, afirmava Riobaldo: ―O vau do mundo é a alegria.‖308

. Afinal, qual é o vau

do mundo: alegria ou coragem? Antes de determinar que vau é o mais acertado, vale dizer

sobre ele, sobre o vau. Vau guarda íntima relação com rio, mar, águas, aguagens. Vau é a

parte rasa do rio, onde se pode passar andando309

, é a viga que sustenta a estrutura da

embarcação, onde se assenta o assoalho, o tabuado. Em seu sentido figurado indica a hora

propícia, a oportunidade, a hora justa310

. Do verbo latino vādō, dizemos caminhar, dirigir-se,

destinar-se. Com o adjetivo vadōsus, dizemos do que tem qualidade de muitos vaus, muitos

caminhos – veredas – nos quais podemos atravessar, passar, o que tem várias superfícies, que

nos dão a possibilidade de caminhar. O vau, portanto, é a superfície que nos dá a possibilidade

de tocar o fundo, o fundo que é a superfície, a superfície que é o fundo. A profundeza do

fundo, ou seja, a superfície, é que dá ao homem a possível caminhada, sustentando o caminho.

307

Ibid., p. 305.

308 Ibid., p. 305.

309 Vale relacionar essa compreensão, de que o vau do mundo é a coragem, com o momento da travessia

iniciática, com o exato momento da passagem entre os dois rios, destacado acima em Riobaldo, entre medo e

coragem: travessia, p. 16. Cf. ―O canoeiro, sem seguir resolução, varejava ali, na barra, entre duas águas, menos

fundas, brincando de rodar mansinho, com a canoa passeada. Depois, foi entrando no do-Chico, na beirada,

para o rumo de acima. Eu me apeguei de olhar o mato da margem. Beiras sem praia, tristes, tudo parecendo meio

pôdre, a deixa, lameada ainda da cheia derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os seis ou os onze

metros. E se deu que o remador encostou quase a canoa nas canaranas, e se curvou, queria quebrar um galho de

maracujá-do-mato. Com o mau jeito, a canoa desconversou, o menino também tinha se levantado. Eu disse um

grito. – ―Tem nada não...‖ – ele falou, até meigo muito. – ―Mas, então, vocês fiquem sentados...‖ – eu me

queixei. Ele se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma palavra só,

firme mas sem vexame: – ―Atravessa!‖ O canoeiro obedeceu‖, Ibid., p. 105, grifo meu.

310 Cf. Riobaldo, ―em hora justa e certa, nunca tive medo‖, Ibid., p. 160.

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Assim, podemos dizer: o vau do mundo, a superfície do mundo, o que sustém um

caminho para o caminhar é a alegria e a coragem. Coragem e alegria – que é alegria? –: o vau

do mundo, a possibilidade de caminhar os caminhos do mundo, o fundo, a superfície, por

onde o homem se destina, se encaminha, se dirige a. Coragem, pois, podemos tomá-la como o

fundo superficial, a profundidade do mundo, a condição de possibilidade dos envios e desvios

do mundo, o coração, o corpo do mundo. Coragem é a hora, é o tempo da travessia. Do

mesmo modo que sertão tem medo de tudo311

, tem também coragem. A coragem do sertão

aparece em suas árvores aparece em tudo.312

A coragem está nas árvores, esta no ar, está em

tudo. Daí Riobaldo sorvia sua coragem: do mundo, do sertão. Por isso a coragem é o vau do

mundo. Como ele mesmo afirma, ―coragem, um sempre tem poder de mais sorver e arcar um

excesso – igual ao jeito do ar: que dele se pode puxar sempre mais, para dentro do peito, por

cheio que cheio, emendando respiração... À fé, que fiz‖313

. A coragem parece ser um

elemento tal que envolve tudo no sertão e que o jagunço deve aprender a absorver. Jagunço

deve desenvolver a capacidade de absorver a coragem do sertão, do mundo, o vau do mundo.

Coragem, sendo o fundo e profundo superficial do mundo, é, por isso, origem. Assim

entendida, coragem/coração/corpo diz algo sobre a origem, sobre o princípio, sobre a

inauguração do mundo e seu destino, diz sobre a vida. Seria isto a coragem em geral?

A coragem tal como foi apresentada fica sendo um fundo, ou seja, é o vau que, de tão

fundamental, dele não se pode prescindir na travessia. Isso também é dito por Riobaldo:

―Razão e feijão, todo dia dão de renovar. A coragem que não faltasse; para engolir, a polpa

311

Cf. Riobaldo, ―O sertão tem medo de tudo‖, Ibid., p. 313.

312 Cf. Riobaldo, ―Devido que, nas beiras – o senhor crê? – se via a coragem de árvores, árvores de mata, indas

que pouco altaneiras: simaruba, o anis, canela-do-brejo, pau-amarante, o pombo; e gameleira. A gameleira

branca!‖, Ibid., p. 509.

313 Ibid., p. 554.

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de buriti e carnes de rês brava‖314

. Até a comida pode faltar na travessia, mas não falte

coragem. Coragem é matéria da praxe dos impossíveis: ter coragem é ―crer nos impossíveis,

só‖315

. Ter coragem é o mesmo que ter fé, confiança, ter coragem é estar seguro da realização

do impossível. Fé, segurança, confiança ―não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é

o quente da pessoa‖316

, seu coração, sua brasa vital, sua coragem. Fé é coisa que está no

entorno do coração, do corpo, da coragem. Fé e coragem se avizinham no coração quente do

homem. Não se tira fé do que já está feito e pronto. Não carece. É preciso dedicar fé àquilo

que é mesmo impossível. A fé verdadeira se dirige ao que ainda está por se fazer, que ainda

está quente, por estar ainda sendo feito, sendo realizado. O que está nesta condição? Talvez,

destino, travessia, enquanto se atravessa. Assim, fé, entendida como modalidade de coragem,

é algo fundamental para toda e qualquer travessia. Riobaldo, em sua fase madura pensava na

coragem como algo divino: ―eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que Ele é

bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo‖317

.

Deus, o Di, o desconhecido é alegria, fé e coragem, o adiante da travessia, o por-vir, o futuro,

o destino a se cumprir.

Numa outra passagem, Riobaldo explora novamente essa associação ambígua de

sentidos entre Deus, fé, alegria e coragem:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí

afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que

Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da

alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na

314

Cf. Riobaldo, ―Aí, não viessem me dizer que a gente estava só com três dias de farinha e carne-seca. Toleima.

Todo boi, enquanto vivo, pasta. Razão e feijão, todo dia dão de renovar. A coragem que não faltasse; para

engolir, a polpa de buriti e carnes de rês brava‖, Ibid., p. 448, grifo meu.

315 Cf. Riobaldo, ―Eu fosse ter cautela, pegava medo, mesmo só no começar. Coragem é matéria doutras praxes‖,

Ibid., p. 449.

316 Cf. Riobaldo, ―Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da

pessoa‖, Ibid., p. 56.

317 Ibid., p. 313.

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horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes

achava. Ao clarear do dia.318

Riobaldo afirma que o correr da vida, em seu embrulhar todas as coisas, embaralha os

contrários, por isso, nesta condição de passagem, de travessia, ela quer do homem coragem. É

preciso ter coragem para sustentar-se de pé no correr do rio da vida. Além de seu querer, o

querer da vida, somos também governados pelo querer de Deus. Ele quer que sejamos alegres.

Vida e Deus são, pois, as duas instâncias, as duas dimensões da realidade que exigem do

homem algo: coragem e alegria, respectivamente. Deus quer que tenhamos alegria na alegria,

ele quer que sejamos alegres em momentos de alegria – o que é a coisa mais natural. O mais

natural é esperar que o homem tivesse alegria na alegria, isto é, espera-se que o homem se

deixe afetar, sintonizar-se pela alegria da vida em situações aprazíveis, alegres, festivas.

E a alegria na tristeza da guerra? É para esse sentido que Riobaldo aponta o desígnio

mais fundamental de Deus: Ele quer que sejamos alegres ao máximo, à última potência, nas

situações de tristeza, de guerra, de ódio, vingança, sofrimento e peleja. Ter alegria, ser tomado

de alegria em momentos de adversidade, a grande alegria – que alegria? Assim, alegria requer

coragem, coragem compõe-se de alegria, e por isso coragem é o ânimo da decisão, do

propósito, da decisão de acatar e cumprir um destino, ou seja: o envio do viver. Eis um modo

fundamental de coragem: coragem para a alegria. Coragem de alegria sem quê nem porquê,

só por alegrar-se, alegrar-se só, sem motivos, de repente, de propósito, mas sem propósito

algum, sem razão alguma. Isso é o mesmo que ter fé. Não há nenhum sentido racional no fato

de ter alegria na tristeza, isso é um despropósito. A menos que se esteja tratando de prática de

fé, confiança. Por isso mesmo, ter alegria, essa exigência de alegria deve ser cumprida através

de coragem, corpo, coração, fé. Isto é coragem, ter coragem de sentir alegria, a grande alegria,

no meio, no interior, no fundo da tristeza, na tristeza do medo. Ter alegria na tristeza, por

318

Ibid., p. 318.

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coragem, por ter coração forte, vivo, embrasado, animoso: isto é também ganhar corpo,

manter firme um corpo, seguro e confiante, o coração bem batendo, corpo vivo.

Pode-se dizer ainda que, para além das oposições medo-coragem, bem-mal319

, deus-

diabo, segundo a fala do catrumano Teofrásio, tudo está mesmo é conforme a gente, conforme

o homem, para além do bem e do mal. Riobaldo lhe interroga sobre o sertão, se o sertão é

bom. Ao que o catrumano responde:

―Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – ... ele tira ou dá, ou agrada ou

amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo.‖

[...]

Respondeu com uma insensatez, ar de ir me ferir, por tanto; jacaré já! Respondeu,

apontando com o dedo para o meu peito. Desgostou de meu debique? Dele o dito, eu

não decifrava. Sertanejo sem remanso.320

Com isso, pode-se dizer que o sertão é conforme o homem. O homem sente medo, sente

coragem, e, por isso, o sertão conforma-se, ganha forma, conforme o homem. O que é

propriamente esse estado de conformidade ao humano? Não significa, certamente, que a

percepção das coisas será sempre relativa a um homem que vê, que sente, que vive. Nem que

é um homem quem causa e forma o sertão, o mundo. Não se trata de nenhum subjetivismo,

centrismo, ou coisa que valha. Riobaldo não percebeu o propósito daquilo, não entendeu por

que o catrumano apontou o dedo no peito de Riobaldo. Não decifrou o dito e a indicação.

Estaria o catrumano apontando para o coração de Riobaldo, pretendendo dizer que a

conformidade do sertão é, melhor, está conforme o coração do humano?

319

Vale considerar, a propósito da ultrapassagem da dicotomia bem e mau, reflexão proposta pelo conto Chronos

kai anangke, de Guimarães Rosa, segundo a fala do destino, ou Providência: ―Queres saber quem somos? Os que

me julgam bom, denominaram-me Providência; os que me temem, chamam-me Destino... Contudo, não sou bom

nem mau, pois maldade e bondade são sentimentos puramente humanos!...‖, ROSA, João Guimarães. Chronos

kai anangke. In: Antes das primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 65. Ressalte-se, também,

a nota 215 de minha tese, em que o Professor Manuel Antônio de Castro aponta para o caráter de ausência de

dicotomia presente no âmbito sagrado.

320 ROSA, 2006, p. 521, grifo meu.

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Estar conforme, podemos dizer, é ganhar forma com, conformar-se, vir à luz e dispor-

se, conforme o coração, a coragem do homem. A ênfase da conformação, aqui, deve recair

sobre o tornar-se visível segundo esse movimento de con-formação, de concretude321

, de

concrescer e dispor-se, de estar disposto segundo o vau do mundo que é a coragem. Esse

conformar-se é o dispor-se do sertão e do homem num arranjo, numa estruturação de

coragem. Essa conformação diz também de um adequar-se, ajustar-se às condições, aos

limites, que inclui também medo. Ajustar-se e concordar com as condições que foram

dispostas, para com elas conformar-se, com alegria e coragem frente à tristeza do medo. Estar

conforme o homem, quer dizer estar conforme o coração, a coragem. O mundo estar conforme

o coração do homem equivale a dizer que o homem está conforme o coração, a coragem do

mundo, que dele se demanda para o viver. Podemos perguntar: como isto se dá? Como se dá a

conformação que está em questão? O sertão conforma-se através do olhar do homem? O

homem conforma-se por meio do sertão? Essa é uma boa questão.322

A relação vida-medo que ocupou o item Vida e o sarro de medo possibilitou entrever

também esta condição de conformidade a que estamos nos referindo. Viver é negócio

perigoso, mas perigoso para quem? Para quem tem medo? Viver é muito perigoso, mas nem

sempre. Pergunta a si mesmo, Riobaldo: ―Viver nem não é muito perigoso?‖323

. Ao longo de

sua narração ele responde: ―Viver é muito perigoso, mesmo‖324

. Porém, viver é e não é

321

Cf. meu ensaio Concreto, GALERA Fábio. Concreto. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.) et all. Convite

ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014.

322 Acredito que esta relação de conformidade esteja oferecendo uma boa oportunidade para se pensar a relação

homem-sertão a partir de um sentido existencial, funcionando como modulador das relações entre o mundo e o

homem. Elejo a analítica existencial de Martin Heidegger como ilustração exemplar, no campo da Filosofia, com

a noção existencial de ser-no-mundo, para descrever esse processo de conformação da realidade. A proposito

dessa relação homem-sertão, o Professor Eduardo F. Coutinho sugere uma relação complexa entre homem e

sertão, que oscila de acordo com a relação estabelecida. Segundo suas palavras, ―O sertão não é, na obra de

Rosa, um mero antagonista do homem, mas antes uma região múltipla, complexa e ambígua, construída sob um

eixo semântico plural que oscila de acordo com a maneira de o homem relacionar-se com ela‖, COUTINHO,

2013, p. 109.

323 ROSA, 2006, p. 35.

324 Ibid., p. 269.

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perigoso, viver é e não é coisa que dá medo na gente. Como diz: ―Viver é muito perigoso; e

não é não. Nem sei explicar estas coisas‖325

. Na verdade, viver só é perigoso para quem não

sabe viver. Quem não sabe viver, tem medo de viver, porque não aprendeu: ―Viver – não é? –

é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.

O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca...‖326

.

Por isso, o sertão, o real, a vida só é perigosa conforme a gente. Tem-se medo,

conforme a gente. Tem-se coragem conforme a gente. Tudo depende de como o homem irá se

medir frente à vida, frente à morte. E, independente dessa automedição, vida demanda o

enfrentamento de medo com coragem. Riobaldo sabe dessa conformidade, dessa sintonia,

dessa harmonia com o sertão quando afirma: ―Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: quem

foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?‖327

. Riobaldo sabe a resposta. Sabe tanto, está tão

sintonizado nisto, neste mistério, que ele mesmo se identifica328

com o sertão: ―Sertão é o

sozinho. [...] Sertão: é dentro da gente‖329

. E como o ―sertão é do tamanho do mundo‖330

, o

sertão-mundo é medo, e é coragem. Pode-se dizer que as costas do mundo é o medo, e o vau

do mundo é a coragem. O que há aí de comum é o mundo. Deixemos assim, por enquanto,

ouvindo o ressoar desses mistérios em consonância com a canção de Siruiz, convocando a

coragem para o cumprimento do destino de Riobaldo.

Remanso de rio largo,

viola da solidão:

quando vou p’ra dar batalha,

convido meu coração...331

325

Ibid., p. 312.

326 Ibid., p. 585.

327 Ibid., p. 311.

328 Guimarães Rosa também afirma essa identificação entre o sertão e Riobaldo. Em sua entrevista a Günter

Lorenz, Guimarães rosa afirma: ―Riobaldo é o sertão feito homem e é meu irmão‖, LORENZ, 1991, p. 95.

329 ROSA, 2006, p. 309.

330 Ibid., p. 73.

331 Ibid., p. 119.

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III. A TRAVESSIA DE RIOBALDO: LIBERDADE, AÇÃO, TEMPORALIDADE

De acordo com o capítulo anterior, podemos dizer que medo e coragem coexistem

paradoxalmente num mesmo fundo – tensionados, é claro. A questão fundamental não é saber

se Riobaldo teve medo ou coragem. A verdadeira questão é o tornar-se o que se é frente ao

sentir-se, pois daí, do sentir da gente irá brotar o impulso para o agir próprio e necessário,

dispondo Riobaldo no perfazer-se livre, em sua própria travessia, instaurando o instante

fundador de sua temporalidade, inserindo Riobaldo numa experiência temporal originária –

daí a pergunta que tentaremos responder: como se dá a realização do tempo, existencialmente

compreendido, na travessia de Riobaldo? Essa coexistência de medo e coragem é o que

provocou o envio de Riobaldo para a sua travessia, seu destino, que irá oferecer a Riobaldo a

possibilidade de confrontação com a radicalidade de sua liberdade e finitude e ainda de sua

ação necessária. Para ter coragem, melhor dizendo, para conhecer o modo de ser corajoso

fundamental, é preciso saber também o que é sentir medo. Para ter coragem, Riobaldo teve de

dar-se conta do seu medo na travessia do rio. O que, por sua vez, para que saiba acerca de sua

máxima possibilidade (liberdade, ação, temporalidade), as possibilidades decorrentes da

maior coragem, e assim vir a realizar o que ele pode ser, será preciso experimentar sua

coragem na encruzilhada do pacto. Medo e coragem irão dar a Riobaldo o seu limite certo332

.

Isto é o que ainda veremos. Daí a necessidade de Riobaldo entender do medo e da coragem.

Na verdade, tudo isso está na constituição do mesmo fundo, o mesmo carvão só. O que é esse

fundo? Podemos dar a esse fundo o nome de liberdade, finitude, temporalidade, ação e

também sentir. Isto porque, todas essas dimensões da realidade são fundamentalmente

constitutivas do devir de ser homem, do tornar-se o que se pode e deve ser. Um outro nome

332

Ibid., p. 402.

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para dizer todas essas coisas é travessia. Isto é o que está em questão: a travessia de Riobaldo,

constituída de liberdade, ação, temporalidade, isto é, o ser acontecendo no fundo sem fundo,

no oco333

que é o homem334

.

Demarcaremos agora o encaminhamento de nossa investigação, colocando em relevo

um círculo que fará girar como um redemoinho liberdade, ação, temporalidade. É nele que o

pensamento irá exercitar-se. Esse círculo pretende dizer o seguinte: enquanto temporaliza-se

propriamente, tempo funda, origina, ou melhor, faz-se como o simples e gratuito que é

liberdade. Ou seja, em sua constituição originária, tempo é a articulação fundamental de

possibilidade, articulação essa possibilitadora da realização da ação humana como

liberdade. Numa outra forma de dizer, mais simples: tempo é liberdade. Este é quer indicar

que tempo, o que chamamos de tempo em sua origem existencial, em sua gênese ontológica,

já se deu como liberdade para a ação própria, antes que pudéssemos contar e calcular tempo.

Assim, tempo dá-se como liberdade para o agir próprio e necessário.

Por outro lado, para que seja círculo, na outra volta, liberdade precisa ser tempo, do

contrário, não seria círculo. Mas, será que esse precisar ser não estaria provocando um

constrangimento das noções de liberdade e de tempo? Afirma-se: liberdade é tempo. Isto quer

dizer: na medida em que liberdade é o que gratuitamente perfaz toda e qualquer

possibilidade do humano, todo e qualquer modo de ser e realizar-se do homem, agindo e

realizando-se, tendo de ser a cada vez uma necessidade essencial insuperável, a liberdade é o

fundamento possibilitador do acontecer temporal humano, e, por isso, a gênese da

333

Cf. o Professor Gilvan Fogel, ―o homem é um oco (!), um buraco (!), que vem a ser o que é, a saber, homem,

à medida que faz, que realiza, que age, melhor, à medida que, em fazendo, realizando, agindo, se faz, e assim,

vem a ser – vem a ser o que é, a saber homem‖, FOGEL, Gilvan. Sentir, ver dizer: cismando coisas de arte e de

filosofia. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, pp. 31-32.

334 Tomarei como pressuposta a interpretação do que seja o homem, a partir da formulação de Martin Heidegger

acerca do Dasein, da existência humana, enquanto ser-no-mundo, elaborada em Ser e Tempo, sem

necessariamente explicitar suas referências e articulações, cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução

revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

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historicidade do homem. O é que está presente na sentença, liberdade é tempo, deve ser

compreendido como um fazer-se, como um perfazer de tempo que, ao se perfazer, o homem

possui, ou melhor, é possuído por suas possibilidades mais próprias e fundamentais: isto

significa que o homem realiza assim um destino de ser, agindo própria e essencialmente, isto

é, elaborando uma história, sua história própria, sua travessia335

.

Deste modo, afirmamos que tempo é liberdade, e, liberdade é tempo. Ainda que estas

afirmações careçam de uma mínima demonstração, ainda que tenham sido enunciadas sem

nenhum esforço aparente, aguardemos e guardemo-nos junto a elas em seu silêncio,

silenciosamente, para delas poder suspeitar ou a elas questionar ao longo da meditação. Nas

próximas páginas, o esforço será pensar, isto é, ver como liberdade é capaz de aparecer como

tempo, à medida que o tempo deverá aparecer como liberdade. Eis o círculo. Nesse percurso,

tentaremos conquistar essa posição, esse ponto de partida, que, igualmente, será nosso ponto

de chegada. E onde entra, nesse círculo, o termo ação? Já entrou. A ação é justamente o que

dará concretude ao círculo. A ação será justamente a realização de liberdade e tempo

enquanto atravessamento de caminho, enquanto travessia, a travessia de Riobaldo. E aí, pode-

se dizer também liberdade é ação, e ação é tempo, e vice-versa. Nesta perspectiva, tempo,

ação e liberdade estão co-determinados. Nossa tarefa será tentar demonstrar essa co-

determinação e ainda tentar tornar visível esta circularidade, buscando assegurar a

originariedade e a razão de ser de nosso ponto de partida. Tendo em vista tal objetivo,

tentaremos cumpri-lo seguindo um roteiro dividido em sete passos.

Com o primeiro item, O pacto e a culpa, o objetivo será elaborar uma síntese do

episódio do pacto, buscando demonstrar que tal episódio promove a oportunidade de

Riobaldo se apossar de suas possibilidades mais próprias, visualizando suas possibilidades de

335

Cf. o Professor Fernando Pessoa, em seu ensaio Da travessia do grande sertão (o destino de Riobaldo),

―travessia significa a liberdade de ser fundamento originário de si mesmo‖, PESSOA, 2013, p. 246.

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ser. O pacto marca, na verdade, a consumação do seu rito iniciado na travessia do de-Janeiro,

completando, assim, aquela transformação pesável. Podemos adiantar também que essas

possibilidades de ser levantadas a partir do pacto perfazem fundamentalmente sua culpa,

entendida como necessidade de realização, como a incompletude que é o homem. Isto só se

torna claro quando Riobaldo conquista a inocência dessa culpa assumindo para si o seu por-

fazer.

Para completar a interpretação do episódio do pacto, faremos uma leitura de tal

passagem da obra GSV, buscando mostrar os argumentos para entender o pacto como o ponto

fundamental da obra onde ocorre a abertura dos caminhos de Riobaldo. Por isso o título Ficar

sendo na encruzilhada: a abertura dos caminhos. O episódio do pacto será entendido como a

oportunidade de Riobaldo assumir seu poder-ser-mais-próprio, assumindo a tarefa de sua

liberdade, ação e temporalidade originária. Essa tematização irá evidenciar a tensão existente

entre dois modos possíveis de temporalidade: as horas de todos e a as horas da gente. A

primeira ajunta e amortece a possibilidade de diferenciação e singularização do humano; a

outra oportuniza justamente o tempo próprio ao autoconhecimento. Ao optar pela última

modalidade temporal, Riobaldo irá experienciar o tempo como instante inaugural e será capaz

de ver o seu todo tempo.

Com o terceiro passo desse roteiro, Liberdade: alegria e coragem de um pobre

caminhozinho, vamos começar a explicitar aquele círculo, tratando de pensar a compreensão

de Riobaldo para a questão da liberdade. Com isso, veremos a articulação entre liberdade e

necessidade, isto é, limite, finitude, no interior da compreensão de Riobaldo. Liberdade, para

ele, irá aparecer segundo uma interpretação pré-ontológica, onde será explicitado o caráter

fundamental da liberdade, entendendo-a como possibilidade própria, apropriação de

possibilidades fundamentais, liberadas segundo a constituição existencial do homem, isto é, a

partir da tensão entre possibilidade e limite. Esta concepção de liberdade será atravessada por

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um modo específico de humor, disposição, afeto, articulado com as necessidades, os limites

dados enquanto caminho possível. A alegria ou a coragem de assumir os limites do que se

abre como destino será o humor fundamental para a sua compreensão de liberdade.

Em seguida, com o título O prazo da travessia: ação como realização de caminho,

buscaremos dar mais um passo no interior daquele círculo, buscando demonstrar a relação

existencial necessária entre liberdade e tempo, enquanto atravessamento de caminho, o

caminho aberto e livre que se inaugurou com o pacto. Nossa argumentação irá buscar

demonstrar que a liberdade, para que seja realizada no interior de um caminho deverá ser

desdobrada como o movimento de uma ação própria, o que implica necessária e

irrevogavelmente um horizonte temporal, um sentido temporal a se fazer, através do

cumprimento de uma ação, ou se preferir, enquanto a expiação de culpa. Neste sentido, irá se

confirmar a necessidade de um caminhozinho certo, próprio, estreito, que ao ser

compreendido, será mais um elemento que dará a Riobaldo a possibilidade de ver o seu todo

tempo, a completude de seu destino, de sua travessia.

Nosso quinto passo pretende tratar com maior profundidade a questão da ação, buscado

explicitar sua constituição existencial, para elaborarmos a noção de ação presente nessa

dimensão própria e originária da travessia de Riobaldo. Afundaremos um pouco mais no

círculo entre liberdade, ação e temporalidade. O título desse passo será Um círculo: ação,

liberdade, temporalidade. Para conseguirmos visualizar a ação existencial de Riobaldo,

vamos ter de retroceder ao ponto em que ação não rivalizava com a dimensão teorética da

vida. A ação só poderá ser vista como ação existencial caso ela apareça fora do âmbito

causalista da realidade, âmbito este que sustenta a dicotomia teoria-prática. Só assim ação

poderá ser compreendida como vigor de realização vital e necessário, dando a ver

fundamentalmente o fazer-se de tempo. Ação, pois, será compreendida segundo um horizonte

temporal aberto para a realização concreta da liberdade, o que evitará seu caráter meramente

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formal e/ou subjetivo. Assim, o sentido fundamental de ação será a expressão de uma decisão

radical do tornar-se próprio.

Em seguida poderemos buscar compreender a concepção de tempo presente na obra

GSV. Com este intuito, vamos discutir a seguinte temática: O tempo no Grande Sertão:

sempiternidade e finitude. Agora sim vamos tentar elaborar a questão acerca da temporalidade

na obra GSV. Agora será a ocasião de tratar da pergunta: como Riobaldo entende a questão do

tempo? Aqui vamos começar a elaborar a estrutura da experiência temporal de Riobaldo,

enquanto uma articulação entre sempiternidade e finitude. Estarão em tensão essas duas

dimensões existenciais da temporalidade originária. É graças a essa estruturação articulada

que Riobaldo será capaz de ver a totalidade de seu tempo, à medida que ele se dá conta de sua

própria finitude, ou seja, sua morte. Esta apreensão de si mesmo, Riobaldo experiencia nas

Veredas Mortas, na encruzilhada do seu pacto.

Por fim, no sétimo passo, A hora da gente: o instante da coragem de decisão,

pretendemos demonstrar a autenticidade e legitimidade da circularidade entre liberdade, ação

e temporalidade, atravessados por coragem. Neste item, o círculo aparece unificado através da

experiência temporal do instante, temporalidade em que Riobaldo consegue entrever o seu

todo tempo. O seu tempo de vida, o seu prazo, aparece estruturado por sua coragem de

decisão. Sua coragem de decisão, ou podemos dizer, sua decisão antecipadora, ao promover o

contato de Riobaldo com sua finitude, promoverá, igualmente, a concentração circular de

liberdade, ação e temporalidade, enquanto um círculo de auto-realização. Este será o

momento em que Riobaldo irá experienciar a estrutura existencial originária de tempo.

Em cumprindo este itinerário, pretende-se demonstrar uma compreensão da

temporalidade mais própria da existência do homem, a temporalidade experimentada por

Riobaldo, entendendo esta via como tarefa e como destino, mostrando o perfazer-se do

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humano numa singularização, devendo ser conquistada, na medida do possível próprio de

cada um.

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1. O pacto e a culpa

Agora temos de dar corpo a uma hipótese complementar de nossa tese: o episódio do

pacto concretiza as possibilidades mais próprias de Riobaldo, isto é, suas possibilidades de

ser.336

Esta hipótese de leitura para o pacto promove uma retomada de nosso Capítulo II - O

destino de Riobaldo: do medo, da coragem, pois para ser capaz de realizar o pacto, Riobaldo

carecia de conhecer os seus limites, os limites de seu sentir medo/coragem. Estivemos

empenhados em demostrar esse autoconhecimento, especialmente no item 6. Espelho e sua

transformação pesável. Esta interpretação propõe uma ligação entre aquela transformação

pesável e o episódio do pacto. Riobaldo só seria capaz de contratar o pacto, se conhecesse

seus limites337

e possibilidades mais próprias, suas possibilidades de medir-se ante a vida e a

morte. Assim, o pacto promove o seu autoconhecer-se338

. É preciso dizer que isto se iniciou

com a travessia do rio. De acordo com a leitura do Professor Manuel Antônio de Castro, a

iniciação e o pacto são momentos complementares da narrativa. Assim, ―o rito [iniciático] se

passa em dois lugares diferentes, embora interligados: A travessia se dá na água e a prova se

dá na terra‖339

, isto significa que a iniciação irá culminar no pacto340

. Podemos considerar

ainda, segundo Manuel, que o pacto é ―o segundo grande momento no destino de Riobaldo: o

336

O Professor Manuel Antônio de Castro ratifica o sentido aqui empregado para a palavra pacto, como pacto de

vida: ―no caso presente, diz muito mais um pacto consigo mesmo como auto-diálogo do que é e não é. É o pacto

do auto-diálogo, porque se trata de um pacto onde se pactua a doação do ser e do não ser pelo sagrado. Por isso,

o que se negocia [no pacto] é a alma, ou seja, o que nós é próprio. Então o pacto é o pacto pelo que é próprio,

pelo apropriar-se‖, CASTRO, 2007, p. 169. Assim, entende-se o pacto como abertura para o próprio de

Riobaldo, ou seja, de sua alma, do seu caráter animoso.

337 Cf. Riobaldo, na encruzilhada das Veredas Mortas, ―Ali eu tive limite certo‖, ROSA, 2006, pp. 401-402.

338 O Professor Manuel Antônio de Castro utiliza a expressão auto-diálogo para dizer justamente de um processo

de autoconhecimento. Ele diz que o pacto é precedido de um retiro, e tal retiro é justamente o ―momento que se

dá o auto-diálogo enquanto uma auto-reflexão, um mergulho profundo no ser do que é e no nada do que não-é‖.

Diz ainda que ―toda a obra nos fala desse auto-diálogo. Toda ela converge para o lugar e momento do pacto‖,

CASTRO, 2007, p. 167. Assim, pode-se dizer que ―o pacto é, no fundo, o auto-diálogo no e pelo qual se é e não

é no sendo‖, na vida, na existência, ibid., p. 171.

339 Ibid., p. 160.

340 Cf. Ibid., p. 158.

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acontecer do pacto‖341

. O pacto irá acontecer nas Veredas-Mortas, lugar que possui, em

verdade, outro nome: Veredas Altas. Com o pacto, Riobaldo tem acesso à sua liberdade

concreta, à sua ação própria e à sua temporalidade originária. Tudo isso se dá no instante

mesmo do pacto. Portanto, nossa argumentação para tal hipótese será elaborada mediante uma

leitura do episódio em questão, dispensando-se atenção para o fato de Riobaldo realizar na

Coruja a consumação daquela transformação pesável, iniciada na travessia do de-Janeiro.

Como argumentamos anteriormente, na travessia do rio de-Janeiro, Riobaldo descobre a

necessidade da coragem, quando menino. Porém, esta descoberta é insuficiente para torná-lo

corajoso, tal como precisava ser. Não basta descobrir-se animoso para tornar-se o que deveria

ser, isto é apenas um passo: é preciso também atravessar sua prova de coragem, isto é

conquistar-se. Riobaldo precisava se tornar propriamente o que descobriu ser: animaso,

corajoso. Ele precisava conquistar isto; ele devia conquistar seu ser, através de uma ação

essencialmente própria, e, para isso, carecia de ter a oportunidade, o kairos, o lugar e a hora

propícia. Era necessário, para tanto, tempo, o tempo oportuno, para tornar-se propriamente o

que devia ser. Riobaldo precisava se revestir de coragem, ―da mais-força, de maior-

coragem‖342

. Riobaldo deveria mergulhar inteiro de cabeça naquela sua coragem ―que vem,

tirada a mando, de setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da gente‖343

, do seu

ânimo. Desde aquele momento da travessia, em que se descobre tocado por outra

possibilidade de medida, até se encontrar – jagunço – no bando de Zé Bebelo, seguindo o

destino de vingar a morte de Joca Ramiro, naquele retiro taperado, na Coruja, não houve

ocasião para assumir inteiramente aquela transformação, que se iniciou com a presença e com

o auxílio de Diadorim. Antes de chegar a esse ponto de sua vida, Riobaldo ainda não sabia

que para se tornar ele mesmo, propriamente, devia se destacar do bando. Isso ele depois

341

Ibid., p. 160.

342 ROSA, 2006, p. 421.

343 Ibid., p. 421.

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acabou aprendendo: ―Um ainda não é um: quando ainda faz parte com todos. Eu nem

sabia‖344

. Riobaldo não sabia, mas logo soube que fazendo parte com todos, era apenas mais

um jagunço, não possuía a distinção que deveria assumir. Como deveria se destacar, então?

Somente de uma maneira: através do pacto.

No entanto, há algum tempo, de alguma maneira, Riobaldo já estava entrevendo a

necessidade e a radicalidade do pacto, crescendo desde e a partir de si mesmo, desde e a

partir de sua necessidade. Há algum tempo, ele já estava se dirigindo e se preparando para

esta transformação derradeira. Esse projeto queria, por si, ser concretizado; o pacto passou a

ser uma exigência vital, desde o próprio Riobaldo, desde o próprio pacto. Riobaldo declara

estar sendo tomado por essa ideia e também que vinha preparando-se para o pacto: ―se não é

que fosse naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão. Senti esse

intimado‖345

. Repare-se que Riobaldo recebeu tal coragem. Na verdade, era sua vida, seu

destino, que vinha preparando Riobaldo para o pacto; faz tempo que essa preparação vinha

sendo elaborada, desde a iniciação no rio. Riobaldo já vem sentindo uma transformação

pesável desde aquela época. O pacto vinha tomando conta de seu juízo. Ele estava sentindo

uma transformação em seu humor, vivia irritado, dormia pouco e com muito custo.346

E era

justamente nessas horas que a ideia do pacto mais lhe ocupava a mente:

Nessas horas da noite, em que eu restava acordado, minha cabeça estava cheia de

ideias. Eu pensava, como pensava, como o quem-quem remexe no esterco das vacas.

Tudo o que me vinha, era só entreter um planejado. Feito num traslo copiado de

sonho, eu preparava os distritos daquilo, que, no começo achei que era fantasia; mas

que, com o seguido dos dias, se encorpava, e ia tomando conta do meu juízo: aquele

projeto queria ser e ação!

344

Ibid., p. 185.

345 Ibid., p. 418.

346 Cf. Riobaldo, ―Todos, de em antes, me davam por normal, conforme eu era, e agora, instantantemente, de dia

em dia eu ia ficando demudado. Com uma raiva, espalhada em tudo, frouxa nervosia. – ‗É do fígado...‘ – me

diziam. Dormia pouco, com esforços‖, Ibid., p. 402.

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Ele já havia entrevisto a transformação que o pacto iria provocar em sua vida, em sua

existência. Acerca disto, desta coisa cravada, do pacto, acerca do projeto do pacto, dizia

Riobaldo: ―eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das beiras do rio finge que volta

para trás, como a baba do boi cai em tantos sete fios‖347

. Vislumbrava a irreversibilidade das

consequências desse ato, da sua sina348

. Isto se lê quando Riobaldo começa a descrever o

retiro taperado que a Coruja proporcionou ao bando de Zé Bebelo: ―E ali, redizendo o que foi

meu primeiro pressentimento, eu ponho: que era por minha sina o lugar demarcado, começo

de um grande penar em grandes pecados terríveis. Ali eu não devia nunca de me ter vindo; lá

eu não devia de ter ficado‖349

. Que penas Riobaldo deveria sofrer? Ainda que o pacto seja

qualificado como o princípio de pecados terríveis, segundo sua declaração, isto fazia parte de

seu destino e ele estava ciente disto.

De acordo com Riobaldo, o relato desse episódio sofrido, ruim, falho, esse castigo do

tempo todo ficado lá, na Coruja, não é passível de ser inteiramente recuperado, em toda a sua

extensão e força, pois tamanho sofrimento acaba escapulindo da memória. Mas por que é que

esse sofrimento escapole da memória e escapole das palavras? Assim como se deu na

travessia de sua iniciação, a propósito de seu sentir-se transformado e pesável, afirmou:

―Muita coisa importante falta nome‖350

. Isto quer dizer que há coisas importantes, e tais coisas

não são passíveis de serem descritas, narradas, contadas, inteiramente, devido à sua grandeza

e intangibilidade. Encontrar a palavra certa é dificultoso. Essa mesma dificuldade, a

impossibilidade de dizer o que é grandemente importante, o indizível das coisas importantes,

ocorreu novamente com o episódio do pacto. Segundo suas palavras, ―isso [o pacto] não é

347

Ibid., p. 403.

348 Cf. o Professor Fernando Pessoa, em seu ensaio, ―Riobaldo não era o do certo, mas o da sina. Jogado no

acontecimento da situação, perpassando a ultrapassagem de sua conjuntura, aprende o que fazem na necessidade

do que se abre‖, PESSOA, 2013, p. 257.

349 ROSA, 2006, p. 401, grifo meu.

350 Ibid., p. 109.

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falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite.

Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!‖351

. Ocorreu ali algo da ordem do sagrado e, por isso,

a palavra comum não é suficiente. A palavra aí, isto é, a linguagem, deve estar sintonizada

com a fala do sagrado, para que possa dizer o que não é falável352

. A razão para essa

dificuldade de dizer acerca do pacto decorre do fato de o seu interlocutor não ter estado lá,

não ter escutado ―a lugúgem do canto da mãe-da-lua‖353

, o urutau354

. Segundo Riobaldo, já

que não estivemos lá, não seríamos capazes de estabelecer em nossa compreensão sua tristeza

quinhoã355

.

Mas, devemos perguntar: porque não somos capazes de estabelecer sua tristeza

quinhoã? Isto é: por que não somos capazes de compreender sua tristeza, tristeza essa

351

Ibid., p. 422, grifo meu.

352 Podemos considerar também aqui a oposição que há entre a dimensão do sagrado e a dimensão da

racionalidade. Para isso, ver a leitura desenvolvida pelo Professor Manuel, apontando como sentido profundo do

pacto a oposição entre o poder sagrado de concertar e o poder humano de consertar, que irá implicar em dois

modos de pensar: o pensar como raciocinar, próprio ao homem e o pensar poético, próprio à dimensão do

sagrado, cf. CASTRO, 2007, p. 163.

353 ROSA, 2006, p. 402. É interessante notar que ao longo da obra GSV há mais duas outras passagens em que

Riobaldo se refere à ave conhecida popularmente como mãe-da-lua ou urutau. Uma dessas passagens aparece

quando Diadorim sente ciúmes de Riobaldo: ―Por longe, a mão-da-lua suspirou o grito: – Floriano, foi, foi, foi...

– que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim

fica mirando, apaixonada abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio pesaroso.

Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva. De repente. – ‗Riobaldo, você está gostando dessa

moça?‘‖, Ibid., p. 195, grifo meu. A outra aparece após o término da batalha de três dias com os Hermógenes.

Cf. Riobaldo, ―Madrugada de meia-noite. A lua já estava muito deduzida, o morro e o mato misturados.

Relanceei em volta. Todo o mundo dormindo. Só o chochorro mateiro, que sai de debaixo dos silêncios, e um ô-

ô-ô de urutau, muito triste e muito alto‖, Ibid., p. 560, grifo meu.

354 Conforme o verbete mãe-da-lua, constante do Dicionário do Folclore Brasileiro, esta é uma ave ―noturna, seu

canto melancólico e estranho, lembrando uma gargalhada de dor, cercou-a de misterioso prestígio assombrador.

[...] Só quem haja ouvido o grito da mãe-da-lua pode medir a impressão sinistra e desesperada que ele provoca

durante a noite‖. Esta ave possui uma função simbólica contra a sedução sexual: ―A pele da ave noctívaga

jurutauí preserva as donzelas das seduções e faltas desonestas. Conta-se que antigamente matava-se para isso

uma destas aves e tiravam a pele que, seca ao sol, servia para nela assentarem as filhas, justamente nos três

primeiros dias do início da puberdade. Parece que esta posição era guardada por três dias, durante os quais as

matronas da família vinham saudar a moça, aconselhando-a a ser honesta. No fim desses dias, a donzela saia

curada, isto é, invulnerável à tentação das paixões desonestas, a que seu temperamento, destarte modificado, a

pudesse atrair‖. Na medida em que essa prática sofre atualização cultural, todo esse cerimonial foi abolido e ―se

limitavam a varrer o chão sob a rede da moça com as penas da urutauí ou jurutauí‖. Câmara Cascudo conta

também, numa outra versão para a lenda da mãe-da-lua, que a índia guarani ―Nheambiú transformou-se em

urutau, por ter morrido seu amado Quimbae; noutra lenda (do rio Araguaia, entre os carajas) Imaeró se mudou

nessa ave, porque Taina-Can (estrela d‘alva ) preferiu sua irmã Denaquê para esposa‖, CASCUDO, Luís da

Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. São Paulo: Ediouro, 2000, p. 533.

355 ROSA, 2006, p. 402.

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qualificada como quinhoã, tristeza que é proveniente de seu quinhão?356

Quinhão de quê? Por

que não somos capazes de compreender o peso dessa dimensão sagrada que ele experienciou?

O que se sagrou e consagrou que não somos capazes de ver com clareza, mas que ele pôde

ver357

, e que além de ver pôde experienciar? Seu quinhão. O que sucedeu, pois, nesse pacto

que não é passível de explicação? Seu quinhão. Após a tripla evocação do demo, Riobaldo

declara: ―Ele [o diabo] não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso

imaginado‖358

. Assim, como Riobaldo poderia ter assinado algum pacto, se houve nada, se

ninguém ou nada se deu ou se mostrou, se apresentou? E se nada aconteceu, porque isso, esse

lugar demarcado é o ―começo de um grande penar em grandes pecados terríveis‖359

? Por que

todo esse barulho, feito apenas em razão de seu quinhão? Já dissemos antes e é oportuno

repetir: ―Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo‖360

. Que milagre se

deu naquele pacto? Todas essas perguntas podem ser respondidas de uma só vez, e ainda de

muitas maneiras, mas todas elas podem apontar para uma única ideia, uma única origem. Esta

origem será o fundo de nossa argumentação; esta é a nossa hipótese de leitura: Riobaldo

alcança, com o pacto, o seu ser mais próprio.361

356

Segundo a pesquisadora Nilce Sant‘Anna Martins, a palavra quinhoã é derivada da palavra quinhão, relativa

ao sentido de distribuir fortuna, aquinhoar, MARTINS, 2008, p. 408.

357 Cf. Riobaldo, ―Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias, e de tantas coisas passadas diversas

eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse

por minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o

todo tempo‖, ROSA, 2006, p. 424, grifo meu.

358 Ibid., p. 422.

359 Ibid., p. 401.

360 ROSA, 2001c, p. 119.

361 Conforme o ensaio de Antônio Cândido, O homem dos avessos, no pacto Riobaldo adquire ―certeza da

própria capacidade‖. Segundo Cândido, ―este ato [...] parece corresponder a um rito iniciatório‖ e ―significa,

neste livro, caminho para adquirir poderes interiores necessários à realização da tarefa‖. Sua iniciação

corresponde a uma assimilação das ―potências demoníacas que abrem caminho a todas as ousadias‖, ibid.

Completa dizendo que o ―diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se

devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraça-la na dureza

que permitirá realizar a tarefa em que malograram os outros chefes‖, CÂNDIDO, 1991, pp. 302-303. Tal

posição, como pretendo demonstrar, é passível de ser questionada, no ponto em que tais forças provém única e

exclusivamente do próprio Riobaldo, descobrindo, sim, suas capacidades, possibilidades, e limites.

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Como diz Riobaldo ―tudo é pacto‖362

, e se tudo é pacto está incluído ai o homem, o

humano do homem. Como afirma Manuel Antônio de Castro, ―Todos somos destinados e

pactários, em diferentes níveis. Cada um tem o seu quinhão, a parte da partilha dentro da

excessividade poética do real‖363

, aquela excessividade inaugural, criativa, nascitiva, vital,

poética, que se apropria na ocultação excessiva da morte e do nada364

. Portanto, cada um tem

seu pacto. O que cabe a cada um de nós é saber o nosso quinhão, a tristeza que vem de

nossos medos365

, os medos que nos constituem, mas também nossa alegria, a alegria da nossa

coragem.366

Isso foi o que Riobaldo conquistou com o pacto. Isso foi o que apareceu para

Riobaldo no episódio do pacto: ele conheceu o seu quinhão, conheceu a sua tristeza quinhoã,

e juntamente com essa tristeza em cru, conheceu também sua alegria. Riobaldo soube o que

lhe cabia na partilha, no aquinhoar-se da excessividade da vida, tanto para a vida (nascimento)

quanto para a morte (finitude). Mas por que seu quinhão, sua parte na partilha confere

tristeza? Que tristeza é essa, afinal? É a tristeza do medo constitutiva de seu quinhão. Mas que

tristeza o seu quinhão lhe traz? O seu penar? A que pena Riobaldo foi condenado? Por que

pecados terríveis ele deveria agora penar ao longo de todo o seu prazo de vida, em seu

quinhão? Após o pacto, irreversivelmente, Riobaldo deveria cumprir a pena de ser o que ele

devia ser, sua pena de coragem:

De em desde muito tempo. Custoso pior não sendo, no arrevesso. Só o que

demandava era uma fúria de quente frieza, dura nos dentes, um rompante de grande

coragem. Ao que era por tanto negrume e carregume, a mais medonha

362

ROSA, 2006, p. 312, grifo meu.

363 CASTRO, 2007, p. 158.

364 Cf. destacamos no item 1. Decifração, do Capítulo I. O projeto compreensivo da travessia de Riobaldo.

365 Cf. Riobaldo, ―O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem

como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca‖, ROSA, 2006, p. 153, grifo meu. E ainda: ―Assim Joca Ramiro

tinha morrido. E a gente raivava alto, para retardar o surgir do medo – e a tristeza em cru – sem se saber por

que, mas que era de todos, unidos mal-aventurados‖, Ibid., p. 296, grifo meu.

366 Cf. Riobaldo, ―O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da

alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de

propósito – por coragem‖, Ibid., p. 318, grifo meu.

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responsabilidade possível – ato que só raro mas raro um homem acha o querer para

executar, nesses sertões todos.367

Esta era a ―certeza de se ser, a segurança destemida, e o alto destino possível da gente‖368

.

Essa medonha responsabilidade de coragem vinha acompanhada ao mesmo tempo de sua

tristeza de medo, pois, assim como ocorreu no rito de iniciação, no pacto também se dá ―a

disputa de medo e coragem‖369

. Com essa responsabilidade medonha, Riobaldo não tinha

licença de não se ser, ―não tinha os descansos do ar‖370

. Este modo de sentir-se refletia no

corpo um ―friôr de dentro e de fora‖, a ―solidão duma friagem‖ que jamais sentira e que

jamais largaria Riobaldo, e que ainda o impediria da possibilidade de se esconder novamente

de si mesmo371

, mesmo que por um instante.

A tristeza quinhoã de Riobaldo, deve ser compreendida a partir de um sentido

existencial. Sua tristeza também pode ser compreendida a partir da mesma força, o mesmo

sentido, que anima a palavra culpa372

. Na verdade, a tristeza quinhoã decorre de sua culpa. A

questão aí é: o que é culpa? Günter Lorenz pergunta a Guimarães Rosa, em entrevista,

pedindo-lhe para caracterizar Riobaldo: ―E o seu Riobaldo?‖373

. Ao que obtém a seguinte

resposta: ―Riobaldo é algo assim como Raskolnikov, mas um Raskolnikov sem culpa, e que

entretanto deve expiá-la‖374

. Mas o que se entende aqui por culpa, afinal? O que significa,

neste caso, expiar culpa? A essa pergunta, a melhor resposta de todas as respostas possíveis,

367

Ibid., p. 403.

368 Ibid., p. 404.

369 CASTRO, 2007, p. 170.

370 ROSA, 2006, p. 420.

371 Ibid., p. 423.

372 Não obstante as muitas possibilidades de leitura para o episódio do pacto, optei por ratificar a intepretação do

Professor Manuel Antônio de Castro e também do Professor Gilval Fogel, a propósito do pacto na economia

geral da obra GSV. Em minha interpretação o pacto e a culpa possuem um sentido ontológico existencial, o que

torna minha interpretação distante de qualquer aproximação e ou variação para um sentido psicológico que a

culpa e o pacto poderiam assumir.

373 LORENZ, 1991, p. 96.

374 Ibid., p. 96.

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foi dada pelo Professor Gilvan Fogel, a partir de seu ensaio Da pobreza e da orfandade sem

vergonha: considerações sobre o Riobaldo, de “Grande sertão: veredas”375

:

Culpa (dívida, débito) fala da irrevogável situação humana de im-perfeição, quer

dizer, fala do fato de ser o homem o único ente que é sempre um por-fazer, sempre a

necessidade de ser uma tarefa de auto-realização, pelo fato de jamais ser dado ou

aparecer pronto, feito, acabado. O homem é sempre a necessidade de lançar-se numa

ocupação, num quefazer, para completar o oco, que é sua vida; para ―encher‖ o

―buraco‖, que é sua existência. Neste sentido, a vida humana é essencial ou

constitutiva im-perfeição, in-completude – ―deficiência‖, ―carência‖, ―pouco‖,

pobreza. Daí ser o homem, sempre sua própria destinação, sempre a destinação do

seu ―lugar‖, através de seus afazeres, de suas fainas, de suas ocupações e lidas.

Culpa é, irrevogavelmente, seu lugar e, por isso, a Vida é necessária e

constitutivamente atividade, ação. Por precisar ser esta ação, esta atividade, revela-

se ela também irrevogavelmente ―pouca‖, ―pobre‖. É mesmo ação, a atividade do

pouco, do pobre, do por-fazer. Vida é, então, em-si e por-si culpada – a saber, em

dívida, em débito com ela própria, frente a ela mesma. E aí está a dor: a dor do

esforço, a dor do por-fazer, que é imposta pela situação do pouco, do pobre. Vida é

precisar fazer vida; Vida é irrevogável, incontornável esforço – ―pena‖, ―trabalho‖.

Neste sentido, o homem precisa ―expiar‖, quer dizer, cumprir ou realizar, o pouco, o

pobre, a culpa, que ele é. Neste sentido, ainda, ―expiação‖ diz: necessidade de

ocupação.376

Nisto, nesta caracterização de culpa, culpa como a ação necessária de auto-realização, nós

encontramos a pista para compreender o quinhão de Riobaldo. Seu quinhão, sua herança, o

que lhe foi legado pela vida não passa de culpa, dívida débito com a própria vida. Nisto

consiste a dor, o sofrimento, a tristeza de sua herança, a tristeza do quinhão de Riobaldo, o

medo que curte, que cura a tristeza de ter-de-ser e se tornar o que se é. O destino de Riobaldo

era ser, ele nasceu para ser377

. Riobaldo é culpado, é devedor, precisa pagar com dor a vida

que recebeu, o seu destino, a promessa de sua vida – promessa muito maior do que aquela

paga no rio São Francisco –, pois que esta dívida para com a vida se paga com sangue e suor,

ou seja, com mais vida. Riobaldo, por ser culpado, devedor à vida, deve cumprir e realizar o

seu destino que é ter-de-fazer, de ocupar-se com o sentido do seu ser. Segundo Gilvan, essa é

a condição do humano, a expiação, o esforço que deve ser feito para auto-realizar-se. E, nessa

375

FOGEL, 1999.

376 Ibid., pp. 66-67.

377 Cf. destacado no item 5. do capítulo anterior, Claráguas: medo e destino, Riobaldo nasceu ―para ser‖, ROSA,

2006, p, 591.

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necessidade, triste, nesta tristeza im-perfeita de seu quinhão, Riobaldo irá aprender a alegrar-

se: é na tristeza, nessa condição de pobreza e orfandade na/da vida que Riobaldo irá assumir o

dever de alegrar-se, por coragem, conforme vimos anteriormente378

: ficar ―inda mais alegre

ainda no meio da tristeza!‖379

.

É importante destacar que Riobaldo não se rebela contra a sua culpa; ele assume sua

culpa, sua dívida, seu precisar ser e fazer o que deve ser: Riobaldo acata a designação de seu

destino para cumprir e realizar o seu ser. Como diz Gilvan Fogel, ―Riobaldo é o herói

carregado do próprio destino, isto é, ‗cheio‘ da irremediável constituição de si mesmo,

decidido a vir-a-ser o que pode e, então, o que precisa ser‖380

. Para falar de culpa, ou seja,

para visualizar o modo como a culpa de Riobaldo é assumida, o Professor Gilvan elabora uma

leitura sobre a iniciação no de-Janeiro. É desde a iniciação que Riobaldo começa a assumir o

sentido de sua culpa, o sentido de expiar sua necessidade, e, por isso, sua vergonha ganha

uma outra qualidade: ―Riobaldo começa como que a alegrar-se do pouco, do pobre, no pouco,

no pobre e até por causa (graças ao) do pouco e pobre, que se mostram como a força da

suficiência‖381

. Assim, Riobaldo ganha o pathos382

(humor) da ―alegria, que é o vau do

mundo!‖383

.

378

Cf. item anterior, 7. Coragem: o vau do mundo. A questão da alegria será ainda novamente explorada, quando

tratarmos da questão da liberdade.

379 ROSA, 2006, p. 318.

380 FOGEL, 1999, p. 70.

381 Ibid., p. 79.

382 Acrescento ainda, conforme a interpretação do Professor Manuel Antônio de Castro, que, nesse pathos cabe

também o medo de Riobaldo: ―destino é ambíguo e se concretiza no pathos, ou seja, na paixão arrebatadora,

onde convivem concretamente o profundo prazer e alegria e a profunda dor e medo. Por isso, assumir o destino é

deixar o pathos acontecer enquanto coragem‖, CASTRO, 2007, p. 158.

383 FOGEL, 1999, p. 80.

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Até sua vergonha se alterou, passou a ter outra qualidade384

. Alterou-se por que motivo?

Sua vergonha se altera, ganha uma outra forma, um outro sentido, quando Riobaldo adquire a

inocência de sua culpa. Segundo o Professor Gilvan, Riobaldo passa a ter

vergonha da vergonha que anteriormente, ao entrar no rio, teve. Quer dizer, agora,

desde a revelação e a evidência de que rio não quer nada, de que o rio não quer ser

mais forte e que não quer ameaçar, sufocar, destruir, matar – agora, então, ele se

envergonha, se ―vexa‖, da vergonha que teve de ser ―fraco‖, de ser ―pouco‖, de ser

―menos forte‖ do que ―devia‖ e ―precisava‖ ser...385

Essa alteração da qualidade da vergonha só ocorre porque Riobaldo percebe que sua culpa é

inocente. Porém, esta inocência não o libera, não o redime de sua culpa, do precisar fazer

próprio da culpa. Nesse caso, inocência diz apenas que Riobaldo assume ser nisso, ser culpa,

ser necessidade, ser a ocupação necessária e irremediável de cuidar de seu próprio ser como

luta, como conquista,

e assim, tomando sobre si como necessidade e destino inúteis este modo de ser, que

é, então, como o enviar-se de rio – inutilmente, gratuitamente, com a alegria e o

despojamento de quem ou do que nada quer, nada precisa querer ou ser para fora ou

para além (ou aquém!) deste puro jazer desde nada e para nada...386

Esse caráter inútil e gratuito presente na culpa de Riobaldo está também marcado em sua

compreensão do que seja o ser jagunço, enquanto um modo de ser: ―jagunço não passa de ser

homem muito provisório‖387

. Ao ter retornado para junto de seus companheiros, após o rito do

pacto, escogita Riobaldo acerca dessa inutilidade do jagunço: ―a função do jagunço não tem

seu que, nem p‘ra que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina‖388

.

384

Cf. Capítulo anterior, item 1. Riobaldo, entre medo e coragem: travessia. Segundo a fala de Riobaldo,

―Amanheci minha aurora. Mas a vergonha que eu sentia agora era de outra qualidade‖, ROSA, 2006, p. 107.

385 FOGEL, 1999, p. 87.

386 Ibid., pp. 87-88.

387 ROSA, 2006, p. 413.

388 Ibid., p. 424.

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Apesar de tudo o que foi dito, podemos perguntar: como Riobaldo vê sua culpa, como

ele a compreende? Como Riobaldo compreende a culpa do seu pacto? Ele responde:

O pacto nenhum – negócio não feito. A prova minha, era que o Demônio mesmo

sabe que ele não há, só por só, que carece de existência. E eu estava livre limpo de

contrato de culpa, podia carregar nômina; rezo o bendito! Trastempo, mais outras

coisas sobrevinham, mas por roda normal do mundo, ninguém podia afiançar o

contrário. Apus pedra por sobre pedra, não guardo lembrança. Eu era o chefe. [...]

Acho que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo.389

As culpas de Riobaldo não tiveram julgamento nem sentença: por isso Riobaldo tem culpas

em aberto390

. Riobaldo aceita que tem culpas – quais? –, ainda que não saiba exatamente

quando elas começaram. Começaram no São Francisco, quando se consagra ao

desconhecido391

, na iniciação? Na Coruja? Ele se pergunta: ―Quando foi que eu tive minha

culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o

sozinho‖392

. O caráter aberto de suas culpas lhe causava medo, pois não tinha certeza se

vendera ou não, ou para quem vendera sua alma:

Olhe: tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao

senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe,

não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este,

meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador...393

Se não há comprador, Riobaldo pode ter vendido sua alma para si mesmo: somente ele esteve

nas Veredas Mortas.

Para encerrar essa discussão de culpa, gostaríamos de destacar a compreensão madura e

equilibrada de Riobaldo acerca do sentido que deve ser empregado para a palavra,

389

Ibid., p. 469.

390 Cf. Riobaldo, ―Todo tormento. Comigo, as coisas não têm hoje e ant‘ontem amanhã: é sempre. Tormentos.

Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me entende, se

é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível‖, Ibid., p. 140.

391 Cf. item 4., do capítulo anterior, De-Janeiro: o rio da consagração.

392 Ibid., p. 309.

393 Ibid., p. 485.

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determinando, por sua vez, a qualidade de sua própria culpa. Esta compreensão, elaborada já

em sua fase de especulação, de range rede, dá à culpa um sentido de inocência, o mesmo

sentido destacado pelo Professor Gilvan. Em se tratando do Grande Sertão, não podemos

esquecer que ―tudo é e não é...‖394

, inclusive culpa, essa palavra tão carregada de pesar e

sofrimento. A primeira ocasião que queremos destacar já aparece no início da obra GSV,

quando Riobaldo relata o caso dos quatro filhos do Aleixo, três meninos e uma menina.

Aleixo era homem afamilhado, porém era também um tipo que seria capaz de matar ―só para

ver alguém fazer careta...‖395

. E assim fez: matou um velhinho que passava esmolando, por

motivo nenhum. Menos de um ano após matá-lo, seus filhos adoeceram de sarampo, e com

isso os olhos de todos inflamaram e ―restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de

luz dessa nossa‖396

. Depois disso, o tal do Aleixo demudou-se, transformou o rumo de sua

alma para a banda de Deus. Com isso, Riobaldo se questiona: ―Se sendo castigo, que culpa

das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!‖397

. O Aleixo mesmo sofreu nenhuma

pena; ele estava inteiramente inocente das maldades que cometeu. Ou seja: nenhuma culpa. E

os meninos, o que teriam feito para restarem cegos? Qual era a culpa das crianças? Esse

questionamento de Riobaldo parece ensinar-lhe que o sistema lógico de punição/culpa que

regia, ou rege, o mundo, o sertão, não é coerente, isto é, é incerto. O que, por princípio, já

desqualifica a ideia da função da culpa, tal como se entende ordinariamente, como

instrumento de punição. Por esse motivo Riobaldo teve a reprovação do Compadre

Quelemém, em virtude de suas incertezas398

.

394

Ibid., p. 11.

395 Ibid., p. 12.

396 Ibid., p. 12.

397 Ibid., p. 13.

398 Cf. Ibid., p. 13.

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A mesma crítica de Riobaldo se desdobra também em relação a sua própria vida,

relacionando o pacto e a culpa, extrapolando para o âmbito geral do sertão:

Ah, pacto não houve. Pacto? Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia

tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um morrer em

vez do outro – e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser

fazer outro pacto, com Deus mesmo – posso? – então não desmancha na rãs tudo o

que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça

comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? Às vezes não

aceito nem a explicação do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa

falta.399

E ainda vemos Riobaldo se questionar a propósito da culpa de seu amor por Diadorim:

De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas

roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa?

Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é

assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...400

Segundo a própria especulação de Riobaldo, falta algo para tornar coerente a questão da

culpa, como forma de punição. Sendo assim, a culpa de Riobaldo é passível de ser

compreendida em um sentido de dívida existencial, o por-fazer-se de si mesmo.

Para fechar essa interseção entre pacto e culpa, podemos concluir com toda segurança

que a culpa de Riobaldo possui uma qualidade muito especial, e isso ele mesmo reconheceu.

Com as palavras de Riobaldo: ―A culpa minha, maior, era meu costume de curiosidades de

coração‖401

. Riobaldo era curioso de seu coração. Curioso é uma palavra originada do

adjetivo cuidadoso, zeloso. Quem é curioso, nesse sentido quer fortemente desvendar, está

empenhado em saber, conhecer o coração. Cūriōsus, do latim, é o adjetivo adequado ao

homem que toma cuidado, que é diligente, minucioso. Deste modo, o próprio Riobaldo

declara ser o cuidador, o investigador do coração, investigador de sua coragem e de seu

medo. Esta sim é a sua maior culpa. Por isso Riobaldo queria entender do medo e da 399

Ibid., p. 312, grifo meu.

400 Ibid., p. 495.

401 Ibid., p. 462, grifo meu.

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coragem402

. E cuidar do coração, podemos dizer, é o mesmo que cuidar de si mesmo, cuidar

de suas possibilidades mais próprias, o que leva Riobaldo a espiar e penar, ao saber e ao sabor

do seu coração, do seu sentir.

402

Ibid., p. 100.

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2. Ficar sendo na encruzilhada: a abertura dos caminhos

Finalmente, devemos agora elaborar aquela leitura que nos comprometemos a realizar: a

leitura do episódio do pacto, buscando visualizar a abertura dos caminhos de Riobaldo, a

abertura de seu poder-ser-mais-próprio. É a partir do pacto que Riobaldo poderá assumir sua

liberdade concreta, sua ação própria, sua temporalidade originária – o que iremos

argumentar ao longo deste capítulo. Tudo isto decorre da necessidade do pacto, a necessidade

de expiar sua culpa. Para expiar sua culpa, não bastava ser jagunço. Para Riobaldo não

bastava ser apenas esse modo de ser: como disse, ele ―não era capaz de ser uma coisa só o

tempo todo‖403

. Além da coragem de se ―remedir contra homem levado‖404

, a coragem própria

de todo bom jagunço, Riobaldo carecia de mais coragem, de muita coragem, a coragem que é

capaz de fazê-lo ―navegar por detrás das coisas...‖405

, navegar por entre as costas do mundo,

enfrentando, assim, o seu pior medo, o medo ―que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que

já principia com um grande cansaço. Medo do que pode haver sempre e ainda não há‖406

.

Riobaldo, com o pacto, poderia ultrapassar seu medo da morte, que é o mesmo medo da vida.

Portanto...

Como dizíamos, fazia tempo que Riobaldo meditava sobre a execução do pacto. Ele

planejava, estudava a realização do pacto em todas as suas minúcias407

, colhendo informações

403

Ibid., p. 469.

404 Ibid., p. 409.

405 Ibid., p. 409.

406 Ibid., p. 152.

407 Cf. Riobaldo, ―Vai, um dia, eu quis. Antes, o que eu vinha era adiando aquilo, adiando. Quis, assim, meio às

tantas, mesmo desfazendo de esclarecer no exato meus passos e motivos. Ao que, na moleza, eu tateava. Digo!

comecei. Tinha preceito. O que seja – primeiro, não se coma, não se beba, e é; se bebe cachaça... Um gole que

era fogo solto na goela e nos internos. Não quebrava o jejum do demo. No que eu confiei que estava pronto para

ir avante: no que eram obras de chão e escuridão. Engano meu. A aguardar, até à hora, eu carecia de não deixar

que nem um fiozinho de ideia comum em mim esvoaçasse‖, Ibid., p. 403.

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e detalhes408

. Porém, apesar de todo o seu planejamento, na Coruja, começou a pensar na

demora do pacto ―com uma qualidade de remorsos‖409

. Devido à sua falta de decisão, sonhou

coisas muito duras e chegou ao ponto de sentir desprezo410

de si mesmo, por ter adiado tanto o

pacto. Diante do seu próprio impasse, essa sensação de imobilidade, a estagnação de ―parar ali

envelhecendo os dias, na Coruja‖411

, relaxando seus propósitos412

, bem como a raleza dos

projetos de Zé Bebelo, projetos de faz-de-conta, assim, Riobaldo é tomado por uma sombra

vergonhosa, por ter começado todo o empenho necessário ao pacto e ainda ―não ter tido

firmeza para levar a acabado‖413

aquele seu projeto, de encontrar o Maligno na encruza e

―fechar o trato, fazer o pacto!‖414

. Riobaldo torna a sentir aquela sua velha vergonha, a mesma

qualidade de vergonha que sentiu durante a travessia do rio, a qualidade de vergonha de quem

sabe o que deve ser e fazer, mas que, ainda assim, não conquistou a coragem suficiente para

tanto; vergonha de ainda não ter manifestado a posse de um ―rompante de grande coragem‖415

suficiente, a coragem necessária à sua provação de inteireza, prova que o levaria a tornar-se

um. Não bastava, para Riobaldo invenção de coragem416

, isto não iria garantir a realização do

pacto.

É assim que Riobaldo se questiona acerca de seu próprio ser: o que Riobaldo é, afinal?

Isto ele já havia se perguntado antes: ―quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?‖417

. Esse

seu autoquestionamento é herança de antigas queixas: ―Conforme eu pensava: tanta coisa já

408

Cf. Riobaldo, ―já sabia do modo completo, o que eu tinha de proceder, sistema que tinha aprendido, as

astúcias muito sérias‖, Ibid., p. 403.

409 Ibid., p. 404.

410 Cf. Riobaldo, ―Por isso, eu tinha grande desprezo de mim‖, Ibid., p. 404.

411 Ibid., p. 405.

412 Ibid., p. 403.

413 Ibid., p. 405.

414 Ibid., p. 410.

415 Ibid., p. 405.

416 Ibid., p. 411.

417 Ibid., p. 311.

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passada; e, que é que eu era?‖418

. Quem é, pois, Riobaldo? Ele mesmo responde, com pesar e

insatisfação de quem devia ter sido, devia ter chegado a existir419

, mas que ainda não

alcançou ainda a hora propícia. Segundo sua resposta, eis o que Riobaldo é: ―Um raso jagunço

atirador, cachorrando por este sertão. O mais que eu podia ter sido capaz de pelejar certo, de

ser e de fazer; e no real eu não conseguia. Só a continuação de airagem, trastejo, trançar o

vazio‖420

. Riobaldo possui total consciência de que deveria ter pelejado certo o que não estava

conseguindo. Devia ter lutado firme e batalhado; mas contra o quê? Contra o Hermógenes?

Ou contra si mesmo, para tornar-se o que podia e devia ser? O que continuava sempre era seu

ódio e sua hesitação vacilante, trançando o vazio, conquistando coisa alguma.

Mas, por que Riobaldo não conseguia conquistar isto que deveria ser? Ele já sabia, já

havia pensado nisto:

Ah, então, sempre achei: por causa de minha costumação, e por causa dos outros. Os

outros, os companheiros, que viviam à-toa, desestribados; e viviam perto da gente

demais, desgovernavam toda-a-hora a atenção, a certeza de se ser, a segurança

destemida, e o alto destino possível da gente.421

Riobaldo sabia que o problema decorria dele mesmo, a falha era sua, por sua costumação

junto aos outros integrantes do bando. Os jagunços do bando estavam sempre e

demasiadamente à-toa e desestribados, isto é, sem desempenharem o esforço necessário para

existir; sem a firmeza necessária para se manterem determinados, resolutos, de pé por si

mesmos. O contrário disto se via no seô Habão, por exemplo, ―um toco de pau, que não se

destorce, fincado sempre para o seu arrumo‖422

. Assim, nessa condição, desgovernavam a

atenção que deveriam ter; desgovernavam a segurança necessária de ser o que deveriam ser,

418

Ibid., p. 404, grifo meu.

419 Cf. passagem do conto O espelho, ―E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: –

‗Você chegou a existir?‘‖, ROSA, 2001c, p. 128.

420 ROSA, 2006, p. 404.

421 Ibid., p. 403.

422 Ibid., pp. 413-414.

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deixando de cumprir o alto destino que cabe a cada um. Riobaldo não era capaz de cumprir

seu alto destino, porque se desgovernava junto aos outros jagunços. Por isso deveria fazer o

pacto, para poder se destacar deles.

Esse estado de indistinção que começava a incomodá-lo foi percebido ainda em outro

momento. Quando Riobaldo passa a receber os cuidados de Raymundo Lé, que cozinha chá

de urumbeba. Naquela hora, Riobaldo comprova ―como era usual a gente estimar os

companheiros, em ajuntado‖423

. Nesse instante, nessa hora, Riobaldo percebe num arpêjo, que

esse estado de indistinção pode levá-lo a cometer ações estranhas por alguma ordem política.

O caso foi que nessa ambiência de companheirismo, ajuntando a todos, ―os amigos bondosos,

se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não

refugando a sacrifícios para socorro‖424

, o jagunço Sidurino sugere que o bando todo estava

mesmo precisando era de um ―vero tiroteio, para exercício de não se minguar...‖425

. Isto

porque o bando todo estava passando por uma má sorte: o líder do bando, Zé Bebelo, estava

caipora. O problema para Riobaldo é que Sidurino estava propondo que atacassem alguma

vila sertaneja para pandegar e vadiar. Conforme Riobaldo,

Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei,

também. Mas mal acabei de pronunciar, eu despertei em mim um estar de susto,

entendi uma dúvida, de arpêjo: e o que me picou foi uma cobra bibra.426

Riobaldo se deu conta, nesse instante, que estava prestes a cometer uma ação nada natural,

nada humana. Estava prestes a cometer ruindades427

, más ações estranhas428

, somente por

força desse ajuntado com os outros:

423

Ibid., p. 406.

424 Ibid., p. 406.

425 Ibid., p. 406.

426 Ibid., p. 406.

427 Ibid., p. 407.

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Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um

arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães – eles achavam

questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e

regra de se espreguiçar bem. O horror que me deu – o senhor me entende? Eu tinha

medo de homem humano.429

Com isso, Riobaldo percebe quantas doideiras poderiam estar regendo a vida desses jagunços.

Riobaldo declinou de sua decisão, encontrando apoio em Diadorim, conforme todos

concluíram: ―O inimigo é o Hermógenes‖430

.

A última ocasião em que Riobaldo novamente sente necessidade de se destacar do

bando pode ser observada a partir da presença do seô Habão. Ele aparece na Coruja, pois

precisava cuidar comercialmente do que era seu, espiando à moda gerencial431

. Conversando

com ele, Riobaldo percebe sua gana:

eu entendi a gana dele: que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros,

que a gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros

dele. Até enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e

aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal: cobiçava a gente para escravos!

Nem sei se ele sabia que queria. Acho que a ideia dele não arrumava o assunto assim

à certa. Mas a natureza dele queria, precisava de todos como escravos. Ainda

confesso declarado ao senhor: eu não tivesse raiva daquele seô Habão.432

Riobaldo entendeu que seô Habão apenas estava cumprindo sua sina, de tudo reduzir a

conteúdo433

, isto é, ele reduzia tudo e todos a quantidades e à sua propriedade. Isso fez

Riobaldo sentir nervosias434

, mas declara mais de uma vez não sentir raiva do seô Habão. Que

nervosidade era essa? Ele estava enervado com o quê, já que não tinha raiva do seô Habão?

Diz Riobaldo que sua nervosia decorria do simples ato de ouvir seô Habão dizer seus planos

428

Ibid., p. 100.

429 Ibid., p. 406.

430 Ibid., p. 407.

431 Cf. Ibid., p. 413.

432 Ibid., pp. 415-416.

433 Cf. Ibid., p. 415.

434 Cf. Ibid., p. 415.

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para os homens do Sucruiú: ―Disse que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção

de rapadura. Ao que a rapadura havia de ser para vender para eles do Sucruiú, mesmo, que

depois pagavam com trabalhos redobrados‖435

. Riobaldo estava enervado com a possibilidade

de manter-se na condição de subordinado, de subalterno, a mercê das ordens de alguém.

Riobaldo não queria se tornar enxadeiro de seô Habão e de mais ninguém. Riobaldo precisa

se destacar e conquistar-se; ele precisava conquistar seu próprio destino. Riobaldo precisava

deixar a certeza e segurança que encontrava junto do chefe Zé Bebelo, junto aos outros

companheiros jagunços. Isso porque a natureza do homem ―não cabe em nenhuma certeza‖436

e, justamente por isso precisava cumprir sua sina própria, ainda que incerta. Era urgente para

ele assumir esta nova condição. A atitude de Riobaldo frente ao pacto faz com que ele se

destaque do bando, assim como ocorre quando peixe põe a cabeça fora d’água437

, pedindo,

ainda que seja apenas por algum tempo. Riobaldo precisava de um milagre e tal milagre só

poderia vir do pacto.

Com essa tensão interna – de um lado, obedecendo às ordens desencontradas de Zé

Bebelo, de outro, querendo conquistar seu destino –, Riobaldo consegue se achar438

, encontra

o que deve realizar. Riobaldo toma a sua resolução final para realizar o pacto. Tomou essa

resolução, pois chegou a sua hora propícia, simplesmente porque estava sabendo, sentiu esse

intimado, varias coisas desconvinham nele mesmo: as ideias pequenas que o aborreciam, os

tantos fatos que iriam logo suceder. Precisava cumprir o pacto, como ―espécie de

necessidade‖439

. Riobaldo foi intimado a contratar o pacto com o Tristonho, para ―negociar

435

Ibid., p. 415.

436 Ibid., p. 417.

437 Cf. Riobaldo, ―– ―Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos‖ – me explicou

o compadre meu Quelemém. Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que

tudo ajunta e amortece – só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho

pediu‖, Ibid., pp. 138-139.

438 Cf. Riobaldo, ―Afora eu. Achado eu estava‖, Ibid., p. 418.

439 Ibid., p. 418.

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nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas‖440

. Riobaldo foi pensando e se preparando

durante um dia inteiro. Fazia tempo que não descabia em si ―de tão em arrojo‖441

. E

retrocedeu e refugiu de todos, de Diadorim, e de Zé Bebelo, principalmente.

Foi estudando os caminhos que levavam ao ponto exato do pacto. Riobaldo não podia

fazer o pacto em qualquer lugar: ―Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos‖442

. E

encontrou esse lugar: ―Essas veredas eram duas, uma perto da outra [...] No meio do cerrado,

ah, no meio do cerrado, para a gente dividir de lá ir, por uma ou por outra, se via uma

encruzilhada. Agouro?‖443

. Essas eram as Veredas-Mortas, que poriam fim às suas horas

mortas; lá Riobaldo encontrou sua encruzilhada, a concruz444

dos seus caminhos. Lá Riobaldo

tirou de dentro de seus tremores as espantosas palavras:

Eu fosse um homem novo em folha. Eu não queria escutar meus dentes.

Desengasguei outras perguntas. Minha opinião não era de ferro? Eu podia cortar um

cipó e me enforcar pelo pescoço, pendurado morrendo daqueles galhos: quem-é-que

quem que me impedia?! Eu não ia temer. O que eu estava tendo era o medo que ele

estava tendo de mim! Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da Mentira?

Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuía sangue derramável. Viesse,

viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu

era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da gente? Como

podia? Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali, querendo, próprio para afrontar

relance tão desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de nada.445

Foi assim que se sentiu sem arriação nem cansaço. Riobaldo estava sendo ele mais mil vezes,

estava de igual para igual com o diabo, medindo-se com ele. Ainda que a ocasião fosse ―para

440

Ibid., p. 411.

441 Ibid., p. 418.

442 Ibid., p. 419.

443 Ibid., p. 401.

444 Conforme o Professor Manuel Antônio de Castro, importante ressaltar que a concruz, a encruzilhada

corresponde a um lugar de convergência e divergência mútua, é um lugar de conflito, de tensão interna, que

promove harmonia: ―Encruzilhada, como lugar do pacto, não é um mero cruzamento transversal de dois

caminhos, de duas veredas. As duas veredas indicam aí os caminhos do dia e da noite e constituem uma con-cruz

onde vai acontecer o en/entre, o pacto. A con-cruz da encruzilhada se deve ver a partir do en- no qual se reúnem

as dimensões horizontais e verticais. A encruzilhada dos caminhos do dia e da noite nos remete à disputa da

divergência convergente e da convergência divergente dessas duas manifestações cosmogônicas do sagrado‖,

CASTRO, 2007, p. 169.

445 ROSA, 2006, p. 419.

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sobrosso, para mais medo‖446

. Justamente por isso, por que o momento era de grande medo,

Riobaldo não tinha licença de não ser o que ele devia ser, ―não tinha os descansos do ar‖447

.

Riobaldo não podia falhar, não podia hesitar, não podia esquecer a razão que o havia levado a

comparecer naquela encruzilhada:

E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu

queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar

sendo!448

A coisa mais importante que fez Riobaldo tratar seu pacto era somente isto: ele queria ficar

sendo449

. Riobaldo queria propriamente o que era seu:

O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era,

duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia.450

Riobaldo queria ficar sendo, queria ser mais do que o que ele era, enquanto jagunço; Riobaldo

queria e podia: mais do que isso, ele carecia, ele precisava ser isso. Riobaldo precisava ficar

sendo mais mil vezes ele mesmo. Isso era mais do que querer e poder: ser nessa intensividade,

446

Ibid., p. 420.

447 Ibid., p. 420.

448 Ibid., p. 420.

449 Segundo o Professor Manuel Antônio de Castro, ―no mais profundo do profundo de Riobaldo, o que o leva ao

pacto é o amor. Mas que amor? Aqui, argumenta com motivos ético-sociais. Se continuasse ‗mero‘ jagunço, o

pai de Otacília não consentiria no casamento dela com um jagunço sem honradez. Nesta linha de raciocínio, o

fazer o pacto implica também um poder alcançar o amor de Otacília, isto é, ‗a esquecida formosura’ (p.310). //

Estes dois motivos não são separados: Para enfrentar a questão do mal se dispõe para o pacto, mas na medida em

que este é impulsionado pelo Bem (justiça e ética) e pelo Belo (amor) enquanto obra de arte‖, CASTRO, 2007,

p. 166. A propósito do amor como motivação para o pacto, Riobaldo declara: ―Só um vexame, de minha

extração e da minha pessoa: a certeza de que o pai dela nunca havia de conceder o casamento, nem tolerar meu

remarcado de jagunço, entalado na perdição, sem honradez costumeira. [...] eu achei, aí, a possibilidade capaz, a

razão maior, era uma. O senhor não quer, o senhor não está querendo saber? // Aquilo, que eu ainda não tinha

sido capaz de executar‖, ROSA, 2006, p. 410. Apesar dessas razões oferecerem uma articulação interpretativa

importante para a compreensão da obra, há ainda outros razões. Enumeremos todas: 1. Igualar-se ao Hermógenes

pelo pacto para matá-lo (o que o Professor Manuel chama de impulso para o Bem); 2. Satisfazer a honra de sua

opinião acerca da existência do diabo, cf. Ibid., p. 410 (essa motivação apresenta uma argumentação menos

forte); 3. Pelo amor de Otacília; 4. Acertar sua fraqueza de coragem. Dentre outras razões declaradas por

Riobaldo para a realização do pacto, entendo que esta atende melhor a tese aqui defendida. O próprio Riobaldo

declara ainda, já todo mobilizado pelo seu empenho no pacto, no meio da encruzilhada, afirma: ―eu já estava

perdido, provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era

que eu queria? [...] queria era – ficar sendo!‖, Ibid., p. 420, grifo meu. Riobaldo estava já desconsiderando as

motivações iniciais. A razão, seu interesse agora era só ficar sendo.

450 Ibid., p. 421.

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nessa excessividade de vida/morte, era o que ele carecia. Isso era uma necessidade; esta era

sua culpa, seu destino.

Essa transformação se dá após a tripla evocação do diabo. Na primeira vez que

Riobaldo convoca o diabo, chama-o de Lúcifer. Ele o chama duas vezes: – ―Lúcifer!

Lúcifer!...‖. Destaque-se o resultado que consegue obter a partir do chamamento. O diabo não

aparece, nada acontece. E assim, Riobaldo justifica a não-aparição do Que-Não-Fala: ―O que

a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro,

tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-

acordado dum totalzinho sono‖451

. Desde o começo, nada acontece e o que se vê, melhor, se

escuta é o vozeiro de um ser-só: o que há na noite, ainda que o diabo seja evocado na

encruzilhada? Nada se dá. Deve ser porque ―ele está misturado em tudo‖452

. O que se pode

observar é apenas o ser-só das coisas, o ser solitário e também conjunto, misturado,

indistintamente manifestos por uma só voz. O ajuntamento das coisas se dá por uma voz

única, consonante.

Chama novamente o Que-Não-Ri: – ―Lúcifer! Satanaz!...‖. Desta vez, o diabo é também

Satanaz. Sua segunda evocação resulta em silêncio, ―outro silêncio. O senhor sabe o que o

silêncio é? É a gente mesmo, demais‖453

. Agora Riobaldo percebe, não a voz dum ser-só, mas

o seu próprio silêncio454

, o silêncio de si mesmo. O sentido que ele atribui ao silêncio é o ser-

si-mesmo: silêncio é o si-mesmo, é o próprio ser, manifestando-se excessivamente. Silêncio é

451

Ibid., p. 422.

452 Ibid., p. 11, grifo meu.

453 Ibid., p. 422.

454 Cf. Manuel Antônio de Castro, ―O pacto está se realizando, porque ele está sendo tomado pela questão, pelo

silêncio que é mais do que qualquer fala e, mais, é a possibilidade não só de qualquer fala, mas também de

qualquer escuta. No entre-ser de ente e ser, transbordamos para o ser, isto é, nos movemos no ser de tudo que é,

no não-ser. Se Lúcifer é, como o nome diz, o portador da luz, Satanaz assinala na mitologia do Novo

Testamento, o seu oposto. Mas no pacto trata-se mesmo da disputa de opostos, senão não há pacto, mas

dicotomia e anulação. A disputa de opostos é o diálogo. Mas agora é o diálogo como auto-diálogo onde quem

fala é o silêncio ou segundo o fragmento 50 de Heráclito: o logos. E não mais um eu ou um tu, não mais o que

sou e o que não sou‖, CASTRO, 2007, p. 172.

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a excessividade de nós mesmos. Este silêncio que Riobaldo consegue perceber na segunda

evocação parece ser a silenciosidade que nos tensiona internamente, que paralisa e ao mesmo

tempo prepara para um grande impulso, para a realização de um grande salto sobre si mesmo,

um salto mortal cheio de vida, e, porque salto mortal, também cheio de morte.

Daí vem o terceiro chamado. Repetem-se os nomes: – ―Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus

Infernos!‖. Há uma repetição dos nomes, porém, há diferença: o Satanaz da terceira invocação

não comparece como uma figura diabólica qualquer. Satanaz agora é o ente, é a figura

máxima, é quem exerce toda e qualquer influência, é quem controla os infernos de Riobaldo.

Esse é o Satanaz dos seus infernos! Ele é o escuro, é o sombrio, é o terrivelmente medonho

que constitui Riobaldo.455

E aí, dessa terceiro chamamento, perguntamos: o que Riobaldo

obtém, melhor, o que lhe acontece? Riobaldo lembra dum rio que viesse adentro a casa de

seu pai. Diz ele: ―Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo‖456

. Riobaldo

subitamente lembra de um rio, do rio de sua infância. Vê as asas: de quem?457

E, assim, num

átimo, num instantezinho enorme, num buracão de tempo, absorve, a partir de si mesmo, a

455

A esta afirmação, corrobora a interpretação do Professor Manuel Antônio de Castro: ―Se na primeira

invocação temos o que é, na segunda, o que não é, mas parece ser, na terceira, tanto a primeira como a segunda

se dão como provindo do que há de mais profundo em cada um. No sentido comum Infernos indica lugar sub-

terrâneo em que habitam as almas dos mortos. Não é exatamente nesse sentido que Rosa o está empregando

aqui. Ele indica mais. Primeiro, notemos que Infernos não se refere apenas a Satanaz, a vírgula que os separa

indica que tanto Lúcifer como Satanaz são dos seus Infernos; segundo, não indica aí lugar dos mortos, porque ele

está vivo e, mais, precede a palavra o pronome possessivo ―meus‖. Não indica aí um lugar no qual ele esteja

localizado; terceiro, se escutarmos a palavra no que ela diz, ouviremos o quê? In-ferno se forma do pré-verbal in,

em, entre, interior, e do verbo fero, de onde se forma –fernus como local do entre, do interior, do que há de mais

profundo em nós, do que está para além de Lúcifer E de Satanaz, embora um E outro lhe co-pertençam. É o

interior do interior para o qual não há palavra. Por isso, o pacto se dá na en-cruzilhada, no entre, no interior da

convergência e divergência das duas veredas, a de Lúcifer E a de Satanaz. Nela comparecem: céu e terra,

imortais e mortais. Sertão‖, CASTRO, 2007, p. 172.

456 ROSA, 2006, p. 422.

457 Vale ressaltar a interpretação do Professor Manuel Antônio de Castro, contida em seu ensaio Ser-tao:

diálogos amorosos, acerca desta passagem: ―desde o início se faz presente o rio, mas agora não é ele que entra

no rio, mas o rio que entra nele. ―A fonte não é o passado, mas o futuro do rio que se viaja de si para si mesmo,

cavalgando a sua própria foz‖ [SOUZA, Ronaldes de Melo e. ―A criatividade da memória‖. In: SANTOS,

Francisco Venceslau dos (org.). Historicidade da memória. Rio de Janeiro, Caetés, 2001/2002, p. 31] – Vi as

asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo – Asas aqui trazem o ar onde elas se movem livremente no

aberto da clareira. Porém, tais asas lembram o cavalo alado Pégaso, o cavalo alado da poesia. Por isso, depois

que voltar para o acampamento, quando Seu Habão retorna, o cavalo estranha Riobaldo e, diante disto, ele

oferece o belo e imponente cavalo a Riobaldo. E este lhe dá o nome do poeta Siruiz, que um dia viu quando ele,

ainda jovem, se encontrou pela primeira vez com o bando de Joca Ramiro‖, CASTRO, 2007, p. 173.

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inteireza de seu poder, de suas possibilidades, de sua coragem, de sua força de decisão.

Riobaldo podia ser mais do que isso? Pergunta-se. O que sentiu, o que viu, está na ordem do

indizível, do sagrado, do mistério. Nada aconteceu.

Riobaldo se identificou com o diabo, ou com ele mesmo, e se revestiu de toda firmeza,

de todo fôlego, da maior força e coragem:

A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e

tornopío do pé-de-vento – o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final,

desses redemoinhos: ...o Diabo, na rua, no meio do redemunho... Ah, ri; ele não. Ah

– eu, eu, eu! ―Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo!‖ A pé firmado. Eu

esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei,

toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de

maior-coragem.458

Riobaldo girou dentro do redemunho, do seu próprio redemunho de ser. Ainda que,

aparentemente, nada tivesse se apresentado como o Diabo: ―Arte – o enfim que nada não

tinha me acontecido‖459

. Quando nada acontece... eis que se deu o seu milagre, o milagre de

sua autenticidade, de seu ser próprio. Riobaldo finalmente realiza o pacto, para confirmar a

constância, a firmeza, a força da sua decisão e, assim, consegue ―acertar aquela fraqueza‖460

, a

fraqueza de sua coragem, que deveria ser firme e inteirada, constante. Essa era a sua prova,

sua culpa a expiar.

É deste modo, realizando o pacto, na encruzilhada das Veredas Mortas..., é assim que

Riobaldo consegue alcançar, conquistar, concretizar seu ser próprio. Foi nessas veredas,

mortas, que Riobaldo conquistou – reconquistou – o que era seu por direito: ali ele teve seu

―limite certo”461

. Naquelas veredas Riobaldo teve seu limite, e é a partir de limite que

comparece em sua vida possibilidade, liberdade. Riobaldo faz o pacto consigo mesmo, pois

458

ROSA, 2006, p. 421.

459 Ibid., p. 424.

460 Ibid., p. 410.

461 Ibid., pp. 401-402.

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comprar e vender é o mesmo ato. No final da narrativa, Riobaldo diz já ter contado toda a sua

história para o compadre Quelemém, o que lhe dá coragem para perguntar-lhe: ―– ‗O senhor

acha que a minha alma eu vendi, pactário?!‘‖462

. Quelemém responde tranquilizadoramente:

―– ‗Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as

quase iguais...‘‖463

. Se nesse caso, no caso de Riobaldo, as ações são iguais, as ações de

comprar e vender, quando vende, na verdade está comprando a sua própria alma, isto é,

conquistando seu ânimo, isto é, torna-se o que podia ser, o que já desde sempre era: animoso.

Agora, para podemos concluir essa nossa breve leitura e reencaminharmos a

investigação para o que de fato nos interessa, a saber, o tempo, vale destacar o que há de

importante no episódio do pacto a respeito de nossa questão fundamental. Durante a

realização do pacto, enquanto esteve na encruzilhada das Veredas Mortas, Riobaldo teve a

experiência de ―um buracão de tempo‖464

. O pacto se deu nesse buraco, nessa abertura de

tempo. A experiência temporal de Riobaldo, após o episódio daquela encruzilhada, alterou-se

profundamente, pois sua percepção de tempo não se organizou mais segundo o costume de

todos. Ele afirma que

de lá em diante, jamais nunca eu não sonhei mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de

costume, que de primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um

sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem

querer, o pensar de novidades. Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas

ideias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos

esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por

minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo,

quase sem esbarrar, o todo tempo.465

De lá em diante, Riobaldo não podia mais jogar o jogo fácil do costume. Que costume? O

costume de antecipar, em sua experiência temporal, a ideia de cronologia do tempo. Riobaldo

462

Ibid., p. 607.

463 Ibid., p. 607.

464 Ibid., p. 423.

465 Ibid., p. 424.

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perdeu a possibilidade de contar os dias, como é hábito de todos, antecipando a chegada de

seus dias e suas noites. Parece que ele não poderia mais viver contando com a experiência

comum do tempo, a experiência de todos.466

Riobaldo perdeu pago467

. No contexto da

declaração de Riobaldo, podemos dizer que ele perde pago, perde os marcos do tempo, que

orientam a sequência cronológica dos dias e das noites. Podemos dizer que Riobaldo perde os

marcos, perde a de-marcação do tempo comum e habitual, com o seu pacto. De que isso seria

um sinal? Sinal de que seu tempo agora também se transformava? Com o pacto, os prazos de

Riobaldo principiam, isto é, inicia-se o seu tempo, um tempo novo, seu tempo originário e

inaugural. Ele tem agora os seus caminhos abertos na concruz. O pacto na concruz de

Riobaldo abre seus caminhos, abrindo assim, um novo tempo, novas possibilidades, pois ele

topava outra razão para fundamentar sua vida. Riobaldo ―pensava o qual, [...] o todo

tempo‖468

. O que é esse seu todo tempo? Riobaldo lembra também que isso que decorre do

pacto, na verdade, o próprio pacto, o ficar sendo decorrente do pacto, ―essas coisas são por

um prazo...‖469

. Ele está, pois, no começo dos seus prazos. Prazo que possui princípio e que

também já tem seu fim: princípio e fim se inaugurando com o pacto, num instante

fundamental.

466

A descrição dessa experiência de tempo muito se assemelha com a experiência do personagem Zviasline, do

conto Chronos kai anangke. Nele, Zviasline experimenta a eternidade do tempo e a inexorabilidade da

Fatalidade: ―O Tempo é eterno, e a Fatalidade inexorável‖, e ―Num sopro de encantamento, extinguiram-se as

luzes, e a escuridão fez pesar ainda mais o silêncio‖. Assim, Zviasline experimenta um estado alterado de

consciência, o que equivale ao estado da eternidade do tempo: ―O moço olhou o tabuleiro. E viu, atônito,

surpreso, espargir-se por sobre os escaques uma ligeira fosforescência, enquanto as figuras de ébano e marfim —

reis, rainhas, bispos, cavaleiros, torres e peões — multiplicavam-se, cresciam, adquirindo vida e movimento. Em

pouco foi toda uma multidão enchendo uma planície... // Como um filme sobrenatural, ele assistiu o desenrolar

de toda a História. E viu papas e imperadores, e reis e guerreiros, e frades e bandidos, e camponeses... De

repente sacudiu-lhe o corpo inteiro um arranco violento. Pareceu-lhe que subia, girava, voava, vertiginosamente,

absurdamente, com a trepidação de um motor monstro, como se remoinhasse no centro de um ciclone. E ele

vibrou num frêmito guerreiro, contemplando lá embaixo o tropel sangrento de mil batalhas!... // Quando a

velocidade chegou ao auge, tudo desapareceu; e invadiu-o a calma, uma sensação de plenitude, de glória

tranquila. Ele zumbia agora na treva, como um grande besouro a gravitar em torno de dois sóis de fogo, enormes

e coruscantes‖, ROSA, 2011, pp. 66-67.

467 A palavra pago pode ser empregada como: 1. substantivo masculino, que indica pequena povoação,

denotando cidade natal; 2. substantivo derivado de paga, referindo-se à pagamento; 3. adjetivo, referindo-se

àquilo que foi pago, a quantia paga. Apesar desses empregos para a palavra, todas elas encontram sua origem no

radical grego pag-, pēgnýnai, que diz fixar, unir. No latim, pāgus diz marco ou baliza, isto é, referência de

demarcação, e também aldeia ou povoação.

468 ROSA, 2006, p. 424.

469 Ibid., p. 408.

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3. Liberdade: alegria e coragem de um caminhozinho

Para dar continuidade à investigação, considerando o todo tempo, buscando entender a

constituição desse tempo novo, optamos por esclarecer agora o humor de Riobaldo e,

principalmente, esclarecer as consequências que esse humor irá trazer para o cumprimento de

seu destino. Que humor irá agora afinar seus passos, seu tempo de ficar sendo? Em

consequência do pacto, o humor que passa a animar Riobaldo é a alegria470

. O próprio

Riobaldo confirma este seu afeto, este seu modo de sentir-se: ―fui vendo que aos poucos eu

entrava numa alegria estrita, contente com o viver, mas apressadamente‖471

. Segundo

Riobaldo, ―Somente com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações‖472

.

Alegria é o humor necessário para realizar o que ele é, o que ele precisa ser, sua maior

necessidade: alegria para realizar sua culpa, sua tristeza quinhoã, o que é seu por direito. A

realização da sua culpa, a conquista do seu quinhão equivale agora, exatamente, ao iremos

tratar como liberdade. Segundo o Professor Gilvan Fogel, Riobaldo é o modo de ser que

materializa o ―‗tipo‘ da conquista da liberdade pela realização da necessidade, que é

identidade e próprio, em trilhando o só caminho, que é o seu‖473

. Riobaldo, assim, mostra-se

como um modo de ser que, para conquistar sua liberdade, precisa cumprir a realização de sua

necessidade, isto é, precisa tornar real sua identidade, seu próprio, o que é seu por direito, seu

próprio destino. Mas, para que isso aconteça, o sentido que deve orientar sua ação, a trilha, a

vereda, o caminho que deve ser atravessado é somente um: essa travessia que se torna

470

Aquela mesma alegria que Riobaldo aprendeu a sentir diante da tristeza do medo, cf. item 4. do capítulo II,

De-Janeiro: rio da consagração

471 Cf. Riobaldo, ―Nos começos [após o pacto], aquilo bem que achei esquipático. Mas, com o seguinte, vim

aceitando esse regime, por justo, normal, assim. E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita,

contente com o viver, mas apressadamente. A dizer, eu não me afoitei logo de crer nessa alegria direito, como

que o trivial da tristeza pudesse retornar. Ah, voltou não; por horas, não voltava‖, Ibid., p. 424, grifo meu.

472 Ibid., p. 418.

473 FOGEL, 1999, p. 70.

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também necessária, implica o solitário atravessamento do seu próprio caminho, o caminho

que é só seu, o caminho próprio. Deste modo, ―como conquista e realização de necessidade,

liberdade se faz sob a lei, isto é, sob a necessidade. Livre sob a lei – isso é liberdade nobre,

aristocrática. E isso, principalmente isso, é ser só. Então, trata-se de destino de solidão‖474

.

Não obstante, para cumprir seu próprio caminho, isto é, para realizar sua necessidade475

e, assim, realizar seu próprio, e consequentemente conquistar liberdade, Riobaldo carece de

entrar na sintonia de uma alegria estrita. Essa é a alegria que passa a animar seus dias, seu

tempo. O caráter estrito da alegria diz de uma espécie de alegria que deve ser muito precisa,

muito exata, muito certa, e mais, necessária. Estamos falando de uma alegria bem demarcada.

Parece haver aqui um círculo que precisa ser atravessado por Riobaldo, e que precisa ser

melhor explicitado por nós. Este círculo sugere haver uma relação, pois, entre liberdade,

caminho, alegria e, fundamentalmente, tempo – já que a alegria é o afeto de seu prazo

pactário. Deve ser por isso que Riobaldo irá dizer que liberdade é só alegria de um pobre

caminhozinho... Como Riobaldo, depois de girar na rua, no meio do redemunho, começa a

entrar numa alegria estrita, num círculo ―ró-ró girado mundo a fora, no dobrar, funil de final,

desses redemoinhos‖476

, devemos investigá-la, essa alegria, a luz do atravessamento de seu

caminho, que constitui liberdade. Que caminho? O seu; o seu pobre caminhozinho no dentro

do ferro de grandes prisões. Ainda vamos nos explicar quanto a isso. Esta será, pois, a

questão que devemos esclarecer agora: a alegria de um pobre caminhozinho, que dará a ver

liberdade. Segundo nossa hipótese, os caminhos abertos de Riobaldo engendram um círculo

entre liberdade, ação e temporalidade, após seus caminhos estarem abertos na concruz

daquela encruzilhada. Por isso, como dissemos, o episódio do pacto marca a abertura das

474

FOGEL, 2012, p. 16.

475 Conforme destacado anteriormente, no item 4., do capítulo II, De-Janeiro: rio da consagração, Riobaldo

nasceu forro, em sua iniciação. Mas sua liberdade se constitui de necessidade. Cf. o próprio Riobaldo, para ser

livre e solto, teve de ser cativo, ROSA, 2006, p. 435.

476 Ibid., p. 421.

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165

possibilidades mais próprias de Riobaldo, isto é, suas possibilidades de ser, marca a abertura

de seu poder-ser-mais-próprio.

Para o esclarecimento desse círculo, desse redemunho, vamos começar, pois, com a

alegria da liberdade, ou a liberdade da alegria, pois isto é o que aparece explicitamente no

pacto, na abertura de seus caminhos. Por questões obvias, não será possível realizar aqui um

levantamento historiográfico para o tratamento do tema da liberdade, nem tampouco isto se

coaduna com nosso interesse. A atenção ao limite temático da investigação nos obriga a tratar

da liberdade como uma questão para a obra GSV, e, por isso, se deverá buscar ver liberdade

no horizonte do fazer-se mesmo de liberdade, ou seja, ao longo da realização do destino de

Riobaldo. Teremos em mente sempre como meta responder fundamentalmente à pergunta

sobre a liberdade articulada com a noção de tempo. Eis a formulação da pergunta que deve ser

correspondida, para que essa meta seja alcançada: o que é a liberdade em seu fazer-se livre

que, por isso, poderia se dar a ver como constituição temporal de um destino? Antes de

atender a essa solicitação fundamental da investigação, segue-se à pergunta que, na ordem das

perguntas, deve ser respondida em primeiro lugar: o que é liberdade?

Ao menos nesse primeiro momento, para não corrermos o risco de cair em alguma

trama conceitual já muito bem estruturada, fundada a partir de alguma filosofia, teoria, ou

coisa que valha, vamos recorrer à fala de nosso narrador. Isto irá evitar qualquer compreensão

precipitada, que determine o que é liberdade antes mesmo de o seu fenômeno se tornar visível

para nós. Do contrário, certamente seríamos levados a resultados relativamente previsíveis. O

que queremos dizer é que o esforço por pensar liberdade não será iniciado por conceitos e/ou

teorias. A partir de tal decisão, assumiremos um pensar que deverá conquistar sua

legitimidade. Para tanto, iniciaremos reproduzindo uma passagem da fala de Riobaldo, onde

está expresso o seu saber sobre a liberdade. Diz o narrador:

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166

[...] liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do

ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto,

e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.477

Nesta aposta, Riobaldo anuncia sua apreensão de liberdade num nível altamente desafiador,

porque paradoxal. Será necessário que nosso pensamento se eleve ao mesmo nível, ou melhor,

que o pensamento entre no mesmo círculo paradoxal de entendimento, que se coloque na

mesma sintonia, no mesmo tônus, na mesma força poética – por isso, pensamento poético478

.

A liberdade aí não está dada, mas sua compreensão e sua realidade precisam ser

conquistadas. A conquista da liberdade e de sua verdade diz respeito direta e exclusivamente

ao homem. No entanto, isso não significa que a liberdade seja algo da ordem do subjetivo. A

liberdade não aparece aqui como capacidade nem como faculdade de um sujeito. Não é o

homem que se faz livre, mas a liberdade faz-se. Essa afirmação é no mínimo estranha! O

senso comum da vida diz sempre que o homem só se torna livre porque busca e conquista sua

liberdade, deliberando, decidindo seus caminhos. Assim, entende-se que liberdade se

conquista, se alcança, se adquire na marra, como se ―castra garrote com as unhas dos

dedos...‖479

ou como com ―as unhas dos pés‖480

se mata. De acordo com o senso comum, a

liberdade é algo inteiramente dependente da vontade481

. No entanto, Riobaldo não

477

Ibid., p. 307.

478 Cf. o Professor Antonio Jardim, ―O pensar poético é o pensar se manifestando realização concreta, por uma

modalidade de fazer, tal como diz o verbo poievw. Nessa manifestação, realizando, se dis-põe ao desvelamento.

Por sua vez, nesse desvelamento não há certeza, há dinâmica. Sua concretude advém precisamente da ausência

de certeza e da vigência de uma dinâmica. O pensar é apresentado como o pensar que pensa realizando,

diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulação de abstrações, como informações

coligidas para se apresentarem, no mais das vezes, como simulacro de alguma realização externa a esse mesmo

pensar. O pensar vigente como desencadeador de realidade é o que faz com que o desvelar se pronuncie‖,

JARDIM, 2005, p. 33.

479 ROSA, 2006, p. 280.

480 Ibid., p. 519.

481 Há uma discussão interessante que pode ser levantada acerca do papel da vontade segundo a questão da

liberdade, no interior da própria obra de Guimarães Rosa, mais precisamente em seu conto Chronos kai

anangke. Apesar disso, não pretendo abordar o papel da vontade na liberdade, visto que há longas discussões

acerca desse ponto, em variadas concepções de liberdade, de acordo com diversos pensadores, em diferentes

épocas. Apesar disso, vale destacar a fala de um dos personagens do conto, a personificação da Fatalidade, após

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167

compreende a liberdade como algo resultante da vontade. A liberdade, neste sentido, não está

subordinada a vontade, pois a liberdade que está sendo caracterizada aqui, a partir da fala de

Riobaldo, não é um efeito da ação do homem. Liberdade não é o resultado da ação do homem,

ainda que ação se compreenda também como reflexo da própria vontade, do voluntarismo

subjetivo.

Por isso, está também descartada a compreensão de liberdade determinada como sendo

algo resultante da razão, da meditação ou de uma indiferença. No caso em questão, o homem

livre não é aquele indiferente à realidade, à sua condição fática e fatual482

, o que o tornaria

indiferente à sua condição de ser no mundo. O que está em questão na compreensão de

Riobaldo não se afina com aquela modalidade de liberdade que é dada ao homem que se

encontra na condição de escravo, por exemplo, encontrando apenas dentro de si mesmo a

liberdade, uma liberdade interior, proveniente do intelecto ou da fé483

. Se assim fosse,

teríamos necessariamente pressuposta a separação entre interior e exterior. Estando

aprisionado, privado de sua liberdade exterior, o homem poderia gozar, ao menos, de sua

liberdade interior, através da razão ou da meditação. Disso decorreria um primeiro problema:

estando o homem privado de sua liberdade exterior, este deveria lutar para ultrapassar toda e

qualquer imposição de limites externos. Compreendida dessa maneira, a liberdade é o mesmo

que liberação. Isto significa estar livre de: livre da prisão, livre de entraves, livre de

ter insinuado, não a inexistência da liberdade nas ações humanas, mas sim a condição de autômato que o homem

representa, sendo suas ações mero reflexo de uma partida milenar de xadrez. Diz ele: ―Sim, não passáveis

primitivamente de meros autômatos, com menos independência e arbítrio talvez que estes trebelhos em que

tocam as nossas mãos¹... Entretanto, uma força imensa, formidável, desabrochou e cresceu na chama

microscópica de vossos cérebros embrionários... Essa potência que não sabeis ainda manejar, mas que vos há de

transformar em deuses, é a vontade!...‖, ROSA, 2011, p. 66. Ressalte-se, pois, a necessidade de o homem

aprender a manejar adequadamente a vontade.

482 Considerando a distinção destacada por Emmanuel Carneiro Leão, em suas Notas Explicativas para o

vocabulário de Ser e Tempo, número 11, facticidade e o adjetivo fático remetem para o plano de estruturação

ontológica da existência, ao passo que o termo fatualidade e fatual remetem para o plano de consolidação ôntica

da existência, cf. HEIDEGGER, 2008, p. 564. Aqui, empregamos os termos fática e fatual neste sentido,

remetendo à condição humana a estes dois planos de estruturação da existência, os planos ôntico e ontológico.

483 Tal concepção de liberdade aparece desenvolvida no sermão XXVII de Padre Antônio Vieira, da série Maria,

Rosa Mística. Pode-se haurir a mesma concepção em Descartes, em suas Meditações, porém, com o qualificativo

de que tal concepção de liberdade apresenta-se no mais baixo grau.

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168

empecilhos, livre de limites que o condicionem, livre de qualquer que seja a sua necessidade.

Liberdade, neste caso, faz-se a partir de liberação. A certeza comum diria que está nisso a

liberdade: a vida sem limites. Esta compreensão, por si, impõe uma pergunta: como seria

concebido um mundo, no qual os homens possuíssem uma tal liberdade, entendida, em sua

radicalidade, como ausência de limites? Só para lembrar, no pacto Riobaldo afirma ter

ganhado seus limites certos. Na verdade, essa compreensão impõe problemas talvez

insolúveis, quando se trata de pensar a liberdade considerando mais de um indivíduo, mais de

uma vontade, pois nesse caso, liberdade e vontade estão intimamente relacionadas. E, ainda

que se trate da liberdade de um homem só, irá reaparecer, sempre e novamente, limite, algum

limite, caso se trate de um homem humano. A aposta de Riobaldo vai por um caminho

diferente.

Em sendo a liberdade algo que se deva conquistar num âmbito exterior, o homem

estaria já desde sempre privado de liberdade e ela deveria ser a cada vez alcançada. A

liberdade estaria fora do homem e, por isso, este deveria se esforçar para adquiri-la. Assim, a

liberdade se mostra não como um estado interior, uma disposição intima e subjetiva. Ao

contrário, liberdade passa a ser uma coisa. A liberdade assim fica sendo uma coisa da qual o

homem tomaria posse. Liberdade como uma coisa! Nesta interpretação falta apenas explicar

como o homem adquire essa coisa-liberdade e onde ela pode ser encontrada.

Na fala de Riobaldo, a liberdade é ainda só alegria de um pobre caminhozinho, no

dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do

encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Esta é sua aposta para

a compreensão da liberdade. Mas, ainda que repetir muitas vezes sua fala possa nos dar

alguma confiança para responder à pergunta – o que é liberdade? –, isto, tal repetição, não

nos libera, não nos exime da tarefa de pensar o que está predito nesta aposta, enquanto um

saber da liberdade. Repetir não irá responder à pergunta. O pensamento, então, deverá ser

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169

capaz de ver o seu caráter encoberto. O que está encoberto, o que está ainda envolto em

mistério é a própria verdade da liberdade. O esforço da investigação deve estar voltado para

tentar ver como se constitui tal encobrimento.

Há nesta passagem dois momentos, dois enunciados. Dediquemo-nos ao primeiro, que

apresenta a liberdade como um estado de humor: liberdade é só alegria de um caminhozinho.

Mas alegria aí não diz um sentir-se alegre com algo determinado, alegre por estar num

caminho agradável, por exemplo. Alegria aparece como um estado de ânimo, uma disposição

fundamental484

. Isto é diferente de estar alegre porque se ganhou algo, estar alegre com isto ou

aquilo, subjetivamente. Riobaldo, depois do pacto, começa a se sentir alegre sem encontrar

um objeto específico de sua alegria. Alegria aí é um estar disposto, um estar lançado num

caminho de um tal modo. Por isso liberdade é só alegria e não a alegria ou uma alegria.

Assim alegria significa alegrar-se sem qualquer determinação objetiva. É uma alegria sem

propósito. Alegria, neste caso, quer dizer simplesmente um contentar-se satisfeito com o que

já se tem e já se é num caminho. Seja lá o que se tem e o que se é. Caminhozinho é o lugar

onde o homem livre deve se alegrar, ainda que seja um caminho pequeno e pobre. Este

caminho pequeno, pobre, estreito está inserido, está disponível num lugar: está dentro dos

limites de grandes prisões, no ferro de grandes prisões485

. O caminho que dá a alegrar-se é

pequeno, embora seja grande a prisão.

484

Para compreender o que seja disposição (Befindlichkeit) humor (Stimmung), entendidos como constituição

existencial do Dasein, ver §29 de Ser e Tempo. Ver ainda o tédio, interpretado como tonalidade afetiva

fundamental (Grundstimmung), particularmente a análise da primeira parte da obra Os Conceitos Fundamentais

da Metafísica, cf. HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica. Tradução de marco Antônio

Casanova. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

485 Pode ser interessante comparar a concepção de liberdade apresentada em GSV e em um outro conto de

Guimarães Rosa, – Uai, eu?. Jimirulino, o narrador do conto, encontra-se preso, por ter cometido o crime de

matar três homens, supostamente inimigos do Dr. Mimoso, seu chefe, por força da astúcia e manipulação de Dr.

Minoso, o que o leva a cumprir a pena que deveria ser de seu chefe. No final do conto, Jimirulino ainda preso

considera-se livre por ter recebido o gosto folga de pensar, nos seus três anos restantes de pena. A diferença

fundamental entre GSV e o conto é que a prisão daquele se cumpre num caminho, realizando a existencialmente

um caminho, ao passo que a prisão de Jimirulino se dá fora de um atravessamento de caminho. Cf. ROSA, João

Guimarães. – Uai, eu?. In: Tutameia (Terceiras estórias). 9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2009a.

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170

A propósito de ânimo ou humor, tratamos de pensá-lo ao longo de todo o capítulo

anterior, tratamos de pensar o afeto, a disposição de humor, como dimensão fundamental do

humano. Em nossas análises, destacamos duas disposições fundamentais privilegiadas pela

obra GSV, o medo e a coragem. Devemos destacar também que a coragem foi associada por

Riobaldo à alegria486

. A alegria é também um estado fundamental do sentir do homem. A

alegria foi compreendida como humor resultante da superação do medo, dispondo o nosso

homem, Riobaldo, numa espécie de alegria corajosa, ou, coragem alegre. Dissemos que

alegria requer coragem, coragem compõe-se de alegria. Coragem é o ânimo da decisão que

dispõe o homem para o cumprimento da alegria de um destino. Dissemos que ao se alegrar,

Riobaldo seria capaz de alterar seu estado de medo487

: ―Resolvi aquilo, e me alegrei. O medo

se largava de meus peitos, de minhas pernas. O medo já amolecia as unhas. [...] O que resolvi,

cumpri. Fiz‖488

. Lembremos ainda que o ―Vau do mundo é a coragem...‖489

, mas também

―alegria‖490

. Coragem e alegria são associadas por Riobaldo à ideia de confiança (fé)491

. Ter

alegria é uma exigência que deve ser cumprida através de coragem, corpo, coração, ao longo

de um pobre caminhozinho.

No momento, a verdade que se carece de aprender está encoberta e ninguém ensina,

qual seja: o beco para a liberdade se fazer. Aqui, neste segundo enunciado da passagem que

destacamos, a estranheza parece se agravar. Onde fica esse beco, este lugar no qual se faz

liberdade? Na prisão? Talvez, no ferro de grandes prisões, num caminhozinho. O que sabe

Riobaldo desse lugar que ninguém não ensina: o lugar da liberdade se fazer? Por que ele não

pode ensinar, já que parece saber? Como aprender, já que ninguém não irá ensinar? O lugar

486

Cf. item Coragem: o vau do mundo, no capítulo anterior.

487 Cf. item Vida e o sarro de medo, do capítulo anterior.

488 ROSA, 2006, p. 154.

489 Ibid., p. 305.

490 Ibid., p. 305.

491 Cf. item Coragem: o vau do mundo, do capítulo anterior.

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171

no qual a liberdade se faz está situado justamente num beco, numa prisão, num estreito

espaço, estreita rua – sem saída –, numa prisão que impõe limites a ferro. Parece haver aí

qualquer coisa de impensável sobre a liberdade. À primeira vista, como já anunciamos, essa

noção de liberdade assume a forma do paradoxo, tal que o pensamento lógico seria incapaz de

penetrar, devido ao seu modo de operar. A verdade deve mesmo ser algo da ordem do

absurdo. Como afirma o narrador de um conto de João Guimarães Rosa, a ―liberdade é

absurda‖492

: diríamos que é absurda porque não há liberdade como a entendemos, absurda

porque desafia o pensamento lógico. Neste segundo momento, enfatiza-se o caráter de fazer-

se da liberdade. É este o seu verbo, sua ação: a liberdade faz-se.

Voltemos. Segundo Riobaldo: liberdade ainda é só alegria de um pobre caminhozinho,

no dentro do ferro de grandes prisões. A liberdade é ainda... A palavra ainda indica um traço

importante da liberdade. Ela era e ainda493

é de um tal modo. Atualmente, a liberdade é tal

como foi um dia. Está nisto também a aposta do que seja liberdade. Ela foi de tal modo e

continua sendo. Ela tem qualquer coisa em sua constituição que ainda perdura: no passado,

foi de tal modo, e, por isso, aposta-se numa permanência de seu modo de se fazer. A

492

ROSA, João Guimarães. Sem tangência. In: Ave palavra. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009c, p.

173.

493 Corroboram a interpretação que estamos desenvolvendo acerca da liberdade, duas passagens de dois contos

distintos, escritos também por João Guimarães Rosa e que refletem uma concepção de liberdade que apresenta

pontos em comum. A primeira passagem a ser destacada, refere-se ao conto Páramo. O narrador, um aviador que

relata suas experiências acerca de uma qualidade específica de morte, que será ainda discutida à frente, a

propósito de sua possibilidade de escolha, diante de uma viagem para uma região longínqua que possivelmente o

levaria a enfrentar dificuldades, diz o seguinte: ―Foi-me dado, ainda no último momento, dizer que não, recusar-

me a este posto. Perguntaram-me se eu queria. Ante a liberdade de escolha, hesitei. Deixei que o rumo se

consumasse, temi o desvio de linhas irremissíveis e secretas, sempre foi minha ânsia querer acumpliciar-me com

o destino. E, hoje em dia, tenho a certeza: toda liberdade é fictícia, nenhuma escolha é permitida; já então, a

mão secreta, a coisa interior que nos movimenta pelos caminhos árduos e certos, foi ela que me obrigou a

aceitar‖, ROSA, João Guimarães. Páramo. In: Estas estórias. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013b, p.

265. E ainda, em um dos contos inaugurais da obra de Guimarães Rosa, Chronos kai anangke, quando o narrador

relata a experiência fantástica de Zviazline, um enxadrista participante de um campeonato internacional, o

jogador dialoga com a personificação da Fatalidade. Assim, a figura que parecia Satanás, com sua voz fanhosa,

diz o seguinte: ―ouve bem, a Terra, os humanos, e tudo o que fazem e desfazem teus semelhantes não passam de

um reflexo desta partida milenar, que estamos jogando!... Cada lance nosso vos faz mover involuntariamente à

superfície do vosso minúsculo planeta, como formigas inconscientes e vaidosas!...‖, ROSA, 2011, p. 65.

Segundo estes dois contos, a compreensão de liberdade apresentada reflete uma modalidade de liberdade que é

inteiramente determinada pelo destino.

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liberdade permanece fazendo-se hoje como era feita antes. Essa permanência indica o passado

de um fazer-se que perdura no caminho, num caminhozinho. Assim, liberdade é um alegrar-

se, é um contentar-se, um satisfazer-se com o possível livre de um caminho e que precisa

continuar a se fazer, num caminhozinho, ainda que este seja pouco e pobre. Liberdade: a

alegria de poder percorrer um pobre caminhozinho. Devemos conceber a liberdade como o

alegrar-se estrito em percorrer um caminho estreito.

A ideia de percorrer caminho, disso que Riobaldo chama liberdade, abriu uma outra

questão para ser pensada. O percorrer traz o sentido de atividade, de ação, de travessia, para

que possamos avançar na compreensão do círculo. A questão da liberdade não está em

atravessar o caminho, linearmente, para alcançar algum lugar fora, para ultrapassar, superar o

pobre caminho e encontrar algo melhor do lado de fora: o fundamental não é superar o

caminho, mas atravessá-lo, percorrê-lo, movimentar-se dentro dele e nele permanecer de pé,

firme, sustentando-se. Permanecer firme e corajoso tal como no atravessamento do rio do-

Chico, na iniciação de Riobaldo, ou valendo-se do permanecer firme no meio do redemunho.

Algumas páginas adiante do fragmento acerca da liberdade, completando seu saber, Riobaldo

afirma: ―A liberdade é assim, movimentação‖494

. Em outra passagem, na passagem do pacto,

diz: ―Ser forte é parar quieto; permanecer‖495

. Permanecer não se opõe a movimentar-se.

Permanecer aí deve-se entender como um permanecer firme, quieto, de pé, no sentido de um

caminho, no sentido de um projeto de enfrentamento, permanecendo e movimentando-se por

coragem. Permanecer esperando pode ser ―um à-toa muito ativo‖496

. Permanecer e

movimentar significam momentos de uma mesma ação: permanecer quieto e firme num

mover-se. Onde? No caminho do fazer-se de liberdade, que é o mesmo caminho que conduz

494

ROSA, 2006, p. 320.

495 Ibid., p. 420.

496 ROSA, João Guimarães. Orientação. In: Tutameia (Terceiras estórias). 9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro

Publicações, 2009b, p. 161.

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173

ao destino próprio. A questão da liberdade está justamente em encontrar-se, o homem, num

atravessamento de caminho, movendo-se propriamente, no seu próprio beco, na sua própria

prisão, sendo ele mesmo o caminho da liberdade própria. O que está dito na fala de Riobaldo

é que a verdade da liberdade é ser e estar sob limites497

, certos, de um atravessamento. Ser

livre é se deixar determinar pelos limites do próprio caminho, do destino próprio. A liberdade

é o contentar-se de ser na liminaridade, isto é, aceitar que a liberdade é um alegrar-se

corajoso que assume para si o seu estar jogado em um caminho e reconhecer nele, neste

caminhozinho, as suas possibilidades mais próprias. Reconhecer, quer dizer, dar-se conta,

aprender. Aceitar os desafios de ser num pobre caminho: é isto, a liberdade; está nisto o

motivo de alegrar-se. Liberdade é assumir os limites e imposições de ser num caminhozinho,

o caminho próprio, e, nele e por ele, alegrar-se com a liberdade que se faz, enquanto

possibilidade e limite.

No segundo enunciado, Riobaldo aponta mais precisamente para a visualização do

caráter encoberto da liberdade, no beco, pelo beco, como beco. Ainda que esteja apontando,

acenando para o beco, a verdade da liberdade está encoberta e não haverá ninguém para

ensinar. Isso é o que a gente ainda não se sabe, não sabe, não sabe. Deveremos conquistá-la.

Como aprender essa lição? Como conquistar esse ensinamento? Já supomos saber o que se

deve aprender: ver no beco (limite) a liberdade se fazer. Anteriormente, concordamos em

dizer que a liberdade está longe de ser algo subjetivo ou objetivo e ainda dissemos que ela não

é nem um estado nem uma coisa. Liberdade não é fruto da ação do homem: liberdade faz-se.

497

A própria ideia de espaço, aqui entendido como o espaço para a circulação num caminho, remete à ideia de

limite. Há espaço à medida que há limite, e, neste caso, em havendo limite, há, por sua vez caminho (espaço

próprio) a se atravessar. Segundo Heidegger, ―Espaço é algo espaçado, arrumado, liberado, num limite, em grego

pevraς. O limite não é onde uma coisa termina mas, como os gregos reconheceram, de onde alguma coisa dá

início à sua essência. [...] Espaço é, essencialmente, o fruto de uma arrumação, de um espaçamento, o que foi

deixado em seu limite.‖, cf. HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e conferências.

Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6. ed. Petrópolis: Vozes,

2010, p. 134. Consultar também o ensaio Limite de minha autoria, cf. GALERA, Fábio. Limite. In: CASTRO,

Manuel Antônio de (Org.) et all. Convite ao pensar. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014.

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Isto significa: a liberdade, em seu fazer-se na liminaridade, dá-se como possibilidade e limite.

Isto quer dizer que o fazer-se de liberdade torna-se visível como um dar-se, que se dá por si e

para si. É no fazer-se e nesse dar-se de liberdade que está o enigma, o encoberto, sua verdade,

o que precisamos saber. Neste ponto, é preciso perguntar como se dá a liberdade, na

liminaridade? Ou seja: como a liberdade faz-se no interior dos limites de um caminho, e que,

por si mesma, dá possibilidades? Queremos saber de que modo esse fazer-se da liberdade

poderá ser compreendido. Como faz-se? Como dá-se? Parece que estamos falando da mesma

coisa... e ao mesmo tempo de algo misterioso, paradoxal, incompreensível.

O mais misterioso disso tudo é que a liberdade se dá para mim e para cada um, para

cada homem em seu próprio caminho, em sua própria vida. O difícil é ver o seu dar-se e

fazer-se; difícil é ver a sua gênese. Cada homem possui sua própria vida e é nela, numa vida

própria, que se constituem os limites e as possibilidades da liberdade de seu caminho, de um

destino possível. Caminho e destino são o mesmo, significam uma única coisa: vida própria.

A liberdade não dá toda e qualquer possibilidade, toda e qualquer vida, mas sim

possibilidades situadas, possibilidades no interior dos limites de um caminho, de uma vida. A

liberdade se dá como disponibilidade de realização de um destino. O estranho e misterioso é

que tudo isso ocorre antes do querer, antes mesmo de o homem manifestar sua vontade. A

liberdade se dá, oferecendo-se ao homem antes de seu querer ter liberdade. Isto mostra que a

liberdade não é um resultado, um efeito, uma consequência de sua vontade: ela aparece antes

de tudo, desde sempre. Assim entendida, como possibilidade que já desde sempre se deu, a

liberdade é possibilidade que já se deu antes mesmo do homem querer ou não querer

liberdade. Neste sentido, liberdade é o que já se deu para cada homem, especificamente,

propriamente. Liberdade assim entendida é a liberdade de realização de uma singularidade,

de um caminho próprio, finito, enquanto constituição de limites e possibilidades. No entanto,

é preciso compreender adequadamente como se dá liberdade nessa anterioridade, ou seja,

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como compreender esse caráter prévio de doação de liberdade. A liberdade, assim entendida,

já desde sempre se deu. O difícil é ver o seu dar-se e fazer-se; difícil é dar-se conta do que

está pertinho do que é nosso, por direito, e que ainda não sabemos. Difícil, pois: se não sabe,

como é que vai saber? Tem que entrar no círculo, para saber-se livre. A liberdade parece

mesmo ser coisa absurda: ―A gente sempre sabe que podia ter sabido‖498

.

A partir do que foi dito, poder-se-ia supor haver uma distinção entre uma liberdade

singular e uma liberdade em geral. Antes, deveria haver a liberdade, para que, nessa e por

essa anterioridade, ela pudesse dar (causar), posteriormente, ao homem, sua liberdade

(possibilidade). O que estaria antes da possibilidade própria do homem? A liberdade em si, a

liberdade nela mesma, em potência, imóvel? E a liberdade singular, é ela a possibilidade que

se dá enquanto faz-se numa liminaridade? O que é, então, a liberdade antes dessa

singularização? O que é a liberdade entendida a partir da possibilidade antes de sua

determinação singular, ou seja, antes da determinação dos limites de uma vida singular? A

partir destas interrogações, quer-se saber o que é a liberdade em geral, isto é, a gênese de

liberdade e sua posterior singularização. Como poderemos pensar a liberdade em geral

enquanto um fazer-se e dar-se de possibilidade ainda não singularizada? É preciso tomar

cuidado com a formulação da pergunta, para que se dê a ver a liberdade em seu fazer-se

mesmo.

Antes da liberdade (possibilidade), antes do fazer-se de liberdade, há apenas nada. Nada

há antes do fazer-se de liberdade. Daí, novamente, a aposta: liberdade é ainda só... Riobaldo

aposta que a liberdade é só e apenas isto: alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do

ferro de grandes prisões. Ao se fazer cumprir esta alegria, já se fez liberdade. Por isso, esse

caráter tardio de constatação – liberdade é ainda... é ainda porque já foi antes. É tardio, porém

498

ROSA, 2009c, p. 173.

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176

originário: não há coisa mais original do que o velho, do que o arcaico, do que arcké. Além e

aquém disso, o que há? Nada. Querer ver além disso, antes disso, é pretensão desmedida, é

querer mais do que foi dado querer e conhecer, isto é, ver. Apesar desse caráter inadequado do

querer ver antes, desse querer ver a anterioridade da liberdade, ainda assim, esse querer tem

sua razão de ser. Isto mostra nada menos do que a tentativa desesperada de ver a força

geradora da liberdade, ou seja, mostra o empenho e a necessidade de compreender origem, de

compreender de onde provém a possibilidade da liberdade, a liberdade como possibilidade.

A anterioridade da liberdade em seu dar-se de possibilidade e limite só pode ter algum

sentido se for pensada em termos existenciais. Esse caráter existencial pretende apenas dizer

que é única e exclusivamente na própria existência que devemos conceber liberdade. Não há

nada antes do dar-se e fazer-se de liberdade, porque não há nada fora desse âmbito, dessa

condição, dessa estruturação de caminho, destino, vida. Assim como não há primeiro um

fazer-se e, posteriormente, um dar-se. O fazer-se de liberdade é e está no mesmo instante de

seu dar-se; do mesmo modo, o dar-se só dá possibilidade no instante de fazer-se. Quando se

deu possibilidade, liberdade já se fez; quando se fez liberdade, já foi dada, antes,

possibilidade. O que está entre homem e liberdade é só e apenas caminho, atravessamento de

caminho. Isto quer dizer que o que há é sempre caminho e apropriação de seus limites e

possibilidades. Não há homem fora de um caminho (limite-possibilidade), como não há

homem fora da existência. Esta é a situação do homem; nisto se constitui a prisão. Esta é a

pobreza do caminho: além disso, nada. Mas há que se olhar para a pobreza do caminho com

olhos de ver, pois o pobre está longe de ser pouco. O pouco é muito, se visto com os olhos

certos, com olhos de alegria, coragem, satisfação, no cumprimento de um destino, o destino

que é necessidade. Isto não é nenhuma banalidade. O dever de realização que se tem em mãos

diante dessa compreensão de liberdade é enorme. Esse é um grande compromisso: o

compromisso que Riobaldo assumiu em sua iniciação no de-Janeiro. Sua grandeza se estendeu

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177

pelo todo de sua vida. O que há antes ou depois da existência, deixemos para pensar quando

estivermos fora dela.

Tendo em vista o que havia sido proposto acima como tarefa, a saber, ver o fazer-se

mesmo de liberdade, podemos concluir, provisoriamente, que conseguimos alcançar algum

entendimento significativo para a pergunta o que é liberdade.499

Caso esta conquista possua

realmente alguma garantia interpretativa, poderemos afirmar com segurança que nosso

percurso até aqui deu acesso à liberdade num sentido originário e evitou que tivéssemos de

nos confrontar com teorias e conceitos prévios sobre a liberdade. Ao invés de nos debatermos

com conceitos, nos aproximamos de uma compreensão fundamental da liberdade extraída da

própria obra GSV. No entanto, apesar dessa aparente segurança, ainda não se colocou em

questão como será possível atestar se o dar-se de liberdade como possibilidade e limite

499

Vale ressaltar que esta compreensão de liberdade está perfeitamente sintonizada com a compreensão

elaborada pelo filósofo Søren Kierkegaard, filósofo admirado por Guimarães Rosa, conforme sua entrevista a

Günter Lorenz: ―A filosofia é a maldição do idioma. Mata a poesia, desde que não venha de Kierkgaard ou

Unamuno‖, LORENZ, 1991, p. 68. (Coleção Fortuna Crítica – 6). Essa compreensão de liberdade pode ser

encontrada no livro O conceito de angústia, KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia. Tradução de

Álvaro Luiz Montenegro Vall. Petrópolis: Vozes, 2011. Pensando sobre o conceito de angústia, Kierkegaard

analisou sua relação com a liberdade e afirmou o seguinte: ―a angústia é a realidade da liberdade como

possibilidade antes da possibilidade‖, KIERKEGAARD, 2011, p. 45. O tradutor dá uma outra possibilidade de

tradução para esta passagem, podendo ser encontrada na nota 106: ―A angustia é a realidade da liberdade

enquanto possibilidade para a possibilidade‖, Ibid., 2011, p. 198. A tradução alemã verteu esta passagem como

―die Angst die Wirklichkeit der Freiheit als Möglichkeit für die Möglichkeit ist.‖, cf. KIERKEGAARD, Søren.

Der Begriff Angst. Tradução de Hans Rochol. Germany, Hamburg: Meiner, 1984, p. 42. (Philosophiche

Bibliothek, Band 340). Note-se que em tal formulação não está em questão o caráter conceitual e meramente

formal da liberdade, mas sim a apreensão da gênese ontológica da liberdade num sentido existencial e concreto.

A liberdade, ou melhor, a realidade da liberdade, ou seja, o fazer-se mesmo de liberdade, no qual o homem

quando se vê livre já está nisto, nesta realidade, a liberdade em sua gênese originária, a liberdade em geral,

significa: possibilidade antes da possibilidade. O que dá a ver a liberdade e seu fazer-se – nas palavras de

Kierkgaard, a realidade da liberdade – é a própria angústia. Por enquanto torna-se desnecessário perguntar o que

é a angústia enquanto uma disposição de humor. Ainda que não seja de nosso interesse, pelo menos nessa

investigação, a compreensão da angústia como humor de revelação da liberdade, seu significado aponta para

algo fundamental. Segundo o que vimos discutindo até aqui, é muito curioso observar que a palavra possui

qualquer traço de semelhança com a caracterização da liberdade que foi revelada através do personagem

Riobaldo. A palavra angústia, remontando ao seu significado latino queria dizer estreiteza, limite, restrição. A

nossa palavra angústia, derivada do substantivo feminino angustǐa, angustǐae, em seu sentido próprio, quer dizer

espaço apertado, estreiteza. Assim, para Kierkgaard, a liberdade mostra-se através da angústia; para Riobaldo, a

liberdade faz-se pela alegria que se constitui na estreiteza de um caminho. Num outro estudo, seria o caso de

buscar detalhar e distinguir o que essa alegria poderia ter em comum com a angústia e com o tédio, comparando

a noção de angústia em Ser e Tempo e na preleção Que é Metafísica, HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica.

In: Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1996, e

ainda a noção de tédio profundo em Os Conceitos Fundamentais da Metafísica. Por ora, basta ter em mente que

toda e qualquer tonalidade afetiva fundamental pode despertar a transparência do caminho que conduz a uma

vida própria.

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alcançou de fato uma compreensão originária e se isso corresponde ao que a liberdade é nela

mesma, em seu fazer-se. Isto só poderá ser devidamente esclarecido e certificado, caso a

investigação alcance uma compreensão ainda mais clara do fazer-se de liberdade enquanto

atravessamento de caminho.

Certo é que a questão da liberdade não está em ultrapassar nenhum limite exterior para

situar-se fora de um caminho. Ela não está nem fora nem dentro do homem, como pretende

aquela compreensão da liberdade, que a segmenta em exterioridade e interioridade. Ser

homem é já ser na origem da liberdade, que é ser possibilidade/limite: ser homem é já desde

sempre ser possibilidade para possibilidade. Isto, ser possibilidade para as possibilidades de

um caminho, ou seja, cumprir a tarefa de alegrar-se em seu próprio caminho, só isto, por si

mesmo, indica ultrapassamento, transcendência, salto. Salto que, nem é saltar para dentro,

nem é saltar para fora, mas que é, sim, um saltar que se faz a partir de possibilidade e que se

dirige para possibilidades de ser e realizar-se como a possibilidade mais própria, no interior

dos limites de um caminho. Salto à moda do salto mortal, que exige ―o consciente alijamento,

o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra‖500

e que

permite responder positivamente à simples pergunta: ―Você chegou a existir?‖501

. Assim, a

liberdade não carece de ser adquirida, mas sim conquistada num atravessamento de caminho,

existindo. Isto decorre do fato de que a liberdade não é uma coisa nem um estado, ela dá-se e

faz-se. Podemos adiantar que talvez esteja aí mesmo, nesse fazer-se da liberdade, o que

também nos interessa nesta investigação, a saber, a relação entre a liberdade e a

temporalidade. Que a liberdade tenha qualquer coisa com o tempo, isto está apenas insinuado.

Mas, parece que o fato da liberdade ter de ser conquistada impõe uma movimentação, um

deslocamento, atravessamento que, em si mesmo implicaria uma temporalidade própria a esse

500

ROSA, 2001, p. 128.

501 Ibid., p. 128.

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179

movimento, a essa ação. Acreditamos que o fazer-se de liberdade, que está sempre encoberto,

considerado a partir de seu aspecto temporal, poderá esclarecer de modo fundamental o nexo

ontológico entre liberdade e tempo, através do esclarecimento do que seja ação.

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4. O prazo da travessia: ação como realização de caminho

No item anterior, ainda que a investigação não tenha alcançado a elaboração temática do

caráter temporal de liberdade, podemos dizer, ao menos, que conquistamos uma compreensão

de sua constituição existencial. Acima foi anunciada a hipótese de que seria possível chegar a

ver claramente o nexo ontológico entre tempo e liberdade, à medida que fosse esclarecido o

fazer-se de liberdade. Isto nos levaria a pelo menos duas confirmações: 1) no fazer-se de

liberdade já se encontra prelineada a sua dimensão temporal; 2) a partir da compreensão de

liberdade poderemos chegar a uma compreensão de tempo, entendido em seu sentido

originário. Na verdade, se estas duas confirmações estiverem asseguradas, ao menos no

âmbito de nossa investigação, é possível ainda declarar uma terceira: 3) se a liberdade já é

desde sempre determinada por uma temporalidade própria, e se é possível, por isso,

desdobrar uma interpretação acerca do tempo, partindo-se do fenômeno da liberdade, será

possível também chegar à liberdade a partir do tempo. Este seria o caminho de volta. Com

essa confirmação, estamos novamente enredados no círculo. De todo modo, temos ainda a

tarefa de demonstrar como o tempo está na liberdade, e ainda como a liberdade está no

tempo. Caso estas considerações se confirmem, isto irá garantir a legitimidade do caráter

circular entre tempo e liberdade, e, por isso, estará comprovada a originariedade hermenêutica

de nossa interpretação para o princípio do prazo de Riobaldo.

Quando tratamos de compreender liberdade, a circularidade entre temporalidade e

liberdade ficou insinuada com a ideia de duração in-sistente num atravessamento, com a

imagem de movimentação num caminho. A própria compreensão de liberdade parece ter

exigido um horizonte, uma perspectiva de realização, isto é, um caminho a ser atravessado,

para que a liberdade fosse concretizada. Na própria constituição de liberdade, é imperativo

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que seja nela concebida a ideia de ação, travessia, atravessamento, desdobrando-se,

realizando-se, para que aquela (liberdade) seja plenificada, num caminho. Isto significa que

ação também perfaz liberdade, ela é um outro momento estrutural da existência humana e se

articula necessariamente com liberdade. Sem essa composição estrutural, liberdade será

compreendida apenas em seu sentido formal e não conseguiremos alcançar a temporalidade

da liberdade. A noção mesma do fazer-se de liberdade exige que o fenômeno seja

compreendido como uma atividade existencial. Por isso, pode-se dizer que agimos

acertadamente, em termos metodológicos, a propósito da decisão de não iniciar a discussão

acerca da liberdade através de conceitos. O fazer-se de liberdade deve ser entendido como

ação, ainda que não seja atribuída a um sujeito agente, pois ela faz-se e somente precisa fazer-

se. O esclarecimento deste fenômeno, isto é, o esclarecimento do caráter de realização da

liberdade, liberdade entendida como o movimento de uma ação própria, ou seja, o fazer-se de

liberdade, irá revelar por si mesmo o seu sentido temporal. Isto porque o sentido temporal da

liberdade está na travessia e travessia nada mais é do que a consumação de ação,

propriamente compreendida como verbo de vida, de existência. Esta será nossa hipótese de

trabalho.

Por ora, vamos responder a seguinte pergunta: o que Riobaldo entende por agir? Há

uma passagem na obra GSV em que se pode verificar esta resposta, onde será iniciada a nossa

discussão sobre o que vem a ser ação. Reproduzimos aqui todo o parágrafo, pois, do

contrário, seria inviabilizada a apreensão de toda a profundidade de sua reflexão, caso fosse

suprimida alguma parte. Diz Riobaldo:

Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar,

era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que

sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito,

de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no

comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar

e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo

sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma

ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas,

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fora dessa consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano

fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado.

Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro

viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe,

em teatro, para cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num

papel...502

A primeira frase deste parágrafo indica que Riobaldo esteve à procura de algo ao longo

de sua vida, e que sempre já soube. Ele tinha um querer. Esse querer foi o motivo de sua

busca, todo o tempo. Riobaldo pelejou na procura de algo, que, segundo seu entendimento, era

algo inteiro, perfeito, completo. A qualidade de inteireza aqui parece estar apontando para o

algo a que nada falta, que é íntegro, incorruptível, tal como era a coragem de Diadorim, por

exemplo, uma coragem inteirada em peça única503

, sem fissura, a coragem a que nada falta,

nada deve. Mas, Riobaldo procurou durante toda a sua vida algo que, na verdade, já possuía.

O jagunço Riobaldo já sabia desde sempre, já tinha entrevisto a luz, o clarão, o reflexo, já

possuía o vislumbrado e o significado dessa uma coisa só, uma só coisa que era inteira.

O que era essa coisa inteirada? Conforme suas palavras:

A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma

pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe

encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber?504

Riobaldo está aqui explicitando o que é isso, a coisa inteira, que ele procurou toda a sua vida e

que já possuía. A coisa diz sobre uma regra, uma norma, uma receita de vida. Riobaldo está

tratando de afirmar que há na vida uma receita, uma pauta – musical – para ser executada na

vida, como vida. Assim, há na vida linhas que orientam todo o seu atravessamento, e que

caracterizam a travessia como um caminho certo, e, por isso mesmo, estreito. Neste caso, vida

passa a ser um destino a se cumprir enquanto caminho pre-lineado. Esse caminho certo é uma

502

Ibid., p. 484.

503 Ibid., p. 109.

504 Ibid., p. 484.

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pauta de vida, é um pauto, é um pacto, pactum. Segundo Riobaldo, ―tudo é pacto‖505

. Aqui, a

pauta, o pacto, é uma forma, um contrato que promete e compromete os pactários a uma

realização, realização relativa ao quinhão que se recebe. A coisa, a regra desse viver, de cada

pessoa viver, não se descobre sozinho, mas sim, de modo conjunto, para uma hora se separar

e caminhar só. E assim se revela a norma, a pauta, o pacto.

Há, aqui, portanto, uma norma. Riobaldo fala de uma norma, de um caminho certo,

porém estreito, que deve ser percorrido, com estrita alegria, lembremos. Cada homem possui

um caminhozinho a ser percorrido e isso é a norma. Cada homem tem o seu caminho estreito

para ser atravessado, só, e é nesse caminho estreito que o homem vai adentrando o ferro de

grandes prisões. Daí se faz liberdade. Eis a verdade que se carece de aprender e que ninguém

ensina: o beco para a liberdade se fazer. O problema é que no comum da vida, moendo no

asp’ro, sem fantasiação, o homem não vê, não consegue ver sozinho. Mas, desde que viu,

pode, poderá, deverá atravessá-lo em sua solidão.

Mas, sigamos. A conclusão é que há, sim, um norteado, um destino, de cada homem,

pois do contrário a vida seria confusa e uma só doideira. Isso, esse norteado, deve ser

cumprido através de uma ação. Segundo as palavras de Riobaldo: ―para cada dia, e cada hora,

só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa‖506

. Consumar alegremente,

corajosamente, essa ação, é que faz o coração bem bater, senão bate falso, bate errado.

Como afirma Riobaldo, ―coragem – é o que o coração bate; se não, bate falso. Travessia – do

sertão – a toda travessia‖507

. Desviar desse caminhozinho tem a consequência de o homem

realizar más ações estranhas, alheias ao seu destino, à sua pauta, à sua norma. Como já foi

destacado anteriormente, o ―que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está

505

Ibid., p. 312.

506 Ibid., p. 484, grifo meu.

507 Ibid., p. 502.

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pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!‖508

. O que é que não se

sabe e que induz à más ações estranhas? Não saber da verdade desse caminhozinho estreito do

destino e da liberdade? Essa verdade está no encoberto, e ninguém não ensina. Fora dessa lei,

―fora dessa consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o

que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado‖509

. Assim, a ação

certa consiste em cumprir o destino de realizar um caminho, o caminho que nos foi dado

realizar, atravessando-o. A dificuldade está em sempre ter de descobrir o encoberto e não se

deixar induzir a realizar más ações.510

Essa é a lei que está sempre escondida e que deve ser

vivida: a lei do verdadeiro viver. Está nisto a liberdade, possibilidades e limites, já desde

sempre projetadas para serem representados os papeis do teatro da vida, do sertão.

No entanto, pode-se objetar o seguinte: se desde sempre o caminho está já certo e

demarcado, se a continuação da vida já foi projetada e os papeis a se representar já foram

escritos, a conclusão a que se chegaria diante de tudo isso diz o seguinte: não há liberdade.

Na verdade, estamos diante de um dos paradoxo511

da vida. A questão é que a ―vida está cheia

de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe‖512

, do contrário não irá entender. Tais

caminhos ocultos da vida recebem também o resvalo, o esbarro daquilo que nos dedicamos a

508

Ibid., p. 100.

509 Ibid., p. 484.

510 No parágrafo seguinte a esta passagem, segundo a declaração de Riobaldo, fica sugerida uma dúvida acerca

da possibilidade de Riobaldo ter encontrado o seu caminho certo. Parece que seu erro, o que o levou a errar o

caminho, foi ter vendido a alma para o Diabo, no pacto realizado na Coruja. Não obstante, apesar de seu

comentário, sua ação o conduziu a realização de sua travessia. Cf. Riobaldo, ―Ora, veja. Remedeio peco com

pecado? Me torço! Com essa sonhação minha, compadre meu Quelemém concorda, eu acho. E procurar

encontrar aquele caminho certo, eu quis, forcejei; só que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em minha

mão. Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha? O senhor reza comigo. A

qualquer oração. Olhe: tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu

medo é esse‖, Ibid., p. 485, grifo meu.

511 Como afirma Guimarães Rosa, ―a vida, a morte, tudo é, no fundo, paradoxo. Os paradoxos existem para que

ainda se possa exprimir algo para o qual não existem palavras‖, LORENZ, 1991, p. 68.

512 Cf. Riobaldo, ―Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me

entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. O que há, que se diz e se faz – que qualquer um vira

brabo corajoso, se puder comer cru o coração de uma onça-pintada‖, ROSA, 2006, p. 154. Ressalte-se que, no

parágrafo imediatamente anterior, Riobaldo tratava de explicar como se livrar do medo através da alegria.

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investigar no capítulo anterior: medo e coragem. A tensão entre medo e coragem interfere, ou

seja, constitui todo e qualquer caminho. O medo e a coragem constituem modos diferentes de

encaminhamento para um mesmo caminho. Isto é determinado pelo modo como se atravessa

um caminho. A travessia, isto é, o modo de atravessamento de um caminho, poderá consumar

um mesmo caminho de diferentes modos, segundo o volteamento do sentir da gente. Em

última instância, a ciência dos ocultos caminhos está na ordem dos mistérios: quem sabe do

destino, e por isso, dos caminhos de Riobaldo, pactário, é o diabo513

.

Toda travessia é marcada pelo desconhecido, pelo inesperado, pelo incerto. A natureza

humana ―não cabe em nenhuma certeza‖514

. Esta é uma outra verdade que se carece de

considerar aqui. Segundo a observação de Riobaldo, travessia não é coisa que se determine de

maneira inexorável, ainda que se tenha o ponto de partida e o ponto de chegada, como uma

antecipação projetiva. Não adianta apenas ter um projeto, pois o próprio rio que é a vida irá

desencadear a sua execução, o seu verter-se, segundo seus próprios mistérios. Conforme suas

palavras,

tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso

as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos

lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a

nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem

diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?515

Em toda travessia, a antecipação é apenas uma tentativa de ver previamente. O que não exclui

a surpresa: ―Surpresa a gente sempre tem, o senhor sabe, mesmo em espera‖516

. Como se

questiona Riobaldo, ―Como é que vou saber se é com alegria ou lágrimas que eu lá estou

encaixado morando, no futuro? Homem anda como anta: viver vida. Anta é o bicho mais

513

ROSA, 2006, pp. 195-196

514 Ibid., p. 417.

515 Ibid., p. 35.

516 Ibid., p. 251.

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boçal...‖517

. Na verdade, nem mesmo o ponto de partida e o ponto de chegada podem ser

identificados e demarcados com precisão científica. Muito menos o meio da travessia, que é

propriamente o campo de consumação da travessia, é o real mesmo acontecendo. ―Digo: o

real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia‖518

. É

nesse entre, é nesse meio, que temos a concretização do real, entre vida e morte, entre nada e

tudo. E no atravessamento, nesse entre, no entre-caminhar do próprio caminho, não se vê o

todo. E ninguém consegue ver com total clareza o meio da travessia, o real, tal como

Riobaldo. Ver a travessia não funciona muito como escolha. Ver o real da travessia, ver a

travessia do real, no meio de seu atravessamento, não é possível. Mas por que não se vê o

real? Não é possível, porque antes de cumprir a ação, ela não se deixa ver, pois não se

consumou ainda. No atravessamento de um caminho se está ainda em ação, e, ainda em ação,

na ação de cumprir um destino, a vida não se dá a ver no seu todo, simplesmente porque não

se completou ainda: ―a vida não é entendível‖519

, porque não atingiu o todo, não encheu tal

como a narrativa. Segundo Riobaldo quem ―mói no asp‘ro, não fantasêia‖520

. Fantasiar é uma

necessidade para a narração, e a narrativa é um modo privilegiado que temos de compreender

o sertão, ou, a vida. Mas deixemos essas questões crescerem, por enquanto.

Aí perguntemos junto com Riobaldo: ―Qual é o caminho certo da gente, afinal?‖ Ele

responde: ―Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar curto quieto. Feito os

bichos fazem. Os bichos estão só é muito esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... O

senhor já sabe: viver é etcétera...‖521

O caminho certo da gente, não está no passado, nem no

futuro, nem para frente, nem para trás. O correto caminho está no instante mesmo da

517

Ibid., p. 558.

518 Ibid., p. 64.

519 Ibid., p. 140.

520 Ibid., p. 10.

521 Ibid., p. 94.

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travessia. Atravessar é o mesmo que subir, é o mesmo que superar, transcender, saltar, elevar-

se, crescer. Isto significa que atravessar corresponde a acertar o caminho. Na continuação,

isto é, na temporalização disso que é a vida (etcétera), até que o ponto final chegue,

permanecer firme, forte, quieto, no mesmo sentido, no mesmo destino, no estreito caminho,

com a estrita alegria, parar e esperar ativamente, tudo isto é ser forte e resistir às fatalidades e

fatalismos e, por isso, cumprir um destino próprio. Como foi ressaltado anteriormente,

liberdade é movimentação522

, mas também ser forte é parar quieto523

, permanecendo firme e

corajosamente. Como disse Riobaldo, ―tudo é pacto‖524

, porém todo ―caminho da gente é

resvaloso‖525

, escorrega, toca e roça muitos outros caminhos, transformando-se, convertendo-

se como os rios mudam. Isto significa que os caminhos podem demudar526

. Está nisto o

grande perigo da vida, do sertão. Tudo está ainda em aberto, por fazer e este é o perigo, pois

tudo periga, tudo pode acontecer, tudo está em risco todo o tempo: ―Travessia perigosa, mas é

a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa‖527

.

Assim, os caminhos são resvalosos e demudam durante a travessia. Há um lugar no qual

o caráter oculto e resvaloso dos caminhos poderá se revelar: na concruz dos caminhos, na

encruzilhada. Na concruz dos caminhos, o real que não se deixa ver no meio da travessia,

aparece entreaberto. Qual é a concruz dos caminhos, onde todos os caminhos se cruzam?

Saber isto, a concruz do próprio caminho, possibilita justamente a conquista de liberdade.

522

Ibid., p. 320.

523 Ibid., p. 420.

524 Ibid., p. 312, grifo meu.

525 Ibid., p. 312.

526 Cf. Riobaldo, ―Em certo momento, se o caminho demudasse – se o que aconteceu não tivesse acontecido?

Como havia de ter sido a ser? Memórias que não me dão fundamento. O passado – é ossos em redor de ninho de

coruja...‖, Ibid., p. 521.

527 Cf. Riobaldo, ―Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem:

como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão

distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às

imensidões, por sobre... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas

dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele...‖, Ibid.,

p. 542, grifo meu.

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Melhor: estar na concruz e realizar o pacto de ser é que torna o homem mais consciente dessa

condição de liberdade, aquela liberdade que se conquista num caminhozinho, a liberdade de

atravessamento dos caminhozinhos, dos seus caminhozinhos próprios, as veredazinhas528

.

Todas as possibilidades de encaminhamento se apresentam na concruz dos caminhos. No caso

de Riobaldo se vê que na concruz se dão todos caminhos, na encruzilhada do pacto, porque na

concruz todos os caminhos difluem e confluem.529

O pacto faz com que Riobaldo tenha acesso

aos seus ocultos caminhos, e, com isso, pode entre-ver o real de sua travessia, consumando

sua liberdade, experienciando sua temporalização própria, atravessando caminho.

Podemos dizer agora que chegamos a um entendimento do que seja o fazer-se de

liberdade, ainda que tenhamos apenas o seu esboço. O fazer-se de liberdade faz-se na medida

do atravessamento de um caminho, a travessia dos caminhozinhos. Com isso, não

encontramos apenas outra explicação para dizer acerca do fazer-se da liberdade, mas sim,

encontramos também o próprio caráter temporal da realização de liberdade. Isto porque

travessia equivale à conquista do tempo originário da existência, p princípio do prazo. Essa

relação entre travessia e temporalidade está já anunciada no questionamento de Riobaldo:

―são os tempos, travessia da gente?‖530

. Travessia, sendo tempo, se diz também como prazo.

Prazo de travessia é um tempo, uma temporalização que se dá entre vida e morte531

. Cada qual

tem seu tempo e seu prazo de travessia marcado, seu instantezinho enorme para cumprir,

528

Cf. Riobaldo, ―Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só

umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas‖, Ibid., p. 100.

529 Como afirma Manuel Antônio de Castro a propósito do lugar do pacto, ―O cerrado se abre numa clareira e no

meio, no entre, com todo o seu mistério, pois por sermos Entre-ser sabemos e não sabemos o que somos,

procuramos, entre-sendo, aprofundarmo-nos no entre, no meio. É a en-cruzilhada. É o estarmos no en-in-entre

da cruz. Dele difluem e para ele confluem os caminhos, as veredas da vida E da morte. É o caminho auto-poético

a travessia‖, CASTRO, 2007, pp. 168-169.

530 ROSA, 2006, p. 402.

531 CASTRO, Manuel Antônio de. ―Travessia, 6‖. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e

Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Travessia. Acesso em: 20

de novembro de 2015. Acesso em: 20 de novembro de 2015.

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marcados início e fim, ―sazão, como os meses de seca e os de chuva?‖532

. O que está entre

início e fim, encontra-se ainda encoberto, ninguém não ensina, e carece de se descobrir. A

certeza que se tem é que ser humano é ser travessia: ―Existe é homem humano. Travessia‖533

.

E travessia se realiza enquanto ação existencial se cumpre.

532

ROSA, 2006, pp. 66-67.

533 Ibid., p. 608.

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190

5. Um círculo: ação, liberdade, temporalidade

De acordo com o item anterior, podemos dizer que ação deverá ser compreendida aqui

segundo um sentido existencial. Esta tomada de posição oferece uma indicação bastante

positiva para a compreensão de seu sentido. Partindo-se de seu traço existencial, ação deve

dizer fundamentalmente acerca daquilo que constitui a existência humana. Assim, ação é o

caráter verbal da existência, é verbo de vida, de existência. A palavra aponta para o campo de

realização do humano. Previamente, poderemos determinar o seu sentido como sendo o

desdobrar-se do fazer-se temporal de liberdade. No entanto, antes de conduzirmos a

investigação a este ponto que nos interessa agora, a palavra ação precisa ser liberada de seu

caráter irrefletido. É preciso desnudá-la do que não lhe é próprio. Podemos enumerar dois

sentidos fundamentais que serão inconvenientes para a sua compreensão. São inconvenientes,

porque não convém, uma vez que impedem o acesso à sua interpretação ontológico-

existencial.

Geralmente, entende-se ação a partir das seguintes determinações: 1. ação é a

operação/atividade de um agente que imprime movimento a algo parado, inerte, ou seja, um

agente promove, isto é, causa uma modificação em algo; 2. ação é entendida como uma

composição de ações individuais que precisam aparecer como ações orquestradas e que dão

a ver uma unidade significativa de ação. Na primeira determinação, temos o princípio de

causalidade sendo enfatizado, fundamentando a ideia de que a realidade opera sob a lógica de

causa e efeito, donde sempre se pode atribuir uma causa a um fato qualquer, a um feito, por

isso, efeito. Na segunda, ainda que também esteja pressuposta a noção de causa e efeito,

compreende-se a realidade enfatizando-se a pressuposição de uma composição de ações

individuais, intencionais ou imprevisíveis, de um e/ou mais elementos agentes, que agem de

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191

modo convergente, tornando visível um sentido histórico, transposto para a linguagem,

passando a vigorar numa narrativa. A primeira foi bem explorada pelas ciências em geral e

também pela filosofia, enquanto a segunda foi especialmente explorada pela teoria da

literatura e pelas disciplinas históricas.

Em ambos os casos, há o esquecimento de uma unidade fundamental: a unidade do

modo de ser do homem como ser-no-mundo. Esquece-se aí, de que o homem e o

mundo/sertão são uma e a mesma coisa: o homem é o próprio sertão, ―Jagunço é o sertão‖534

;

―Sertão é o sozinho [...] Sertão: é dentro da gente‖535

; ―Riobaldo é o sertão feito homem‖536

;

sertão é conforme o homem537

; o sertão produz o homem538

; ―sertão é do tamanho do

mundo‖539

, e por isso, pode-se dizer que é o próprio mundo, é sertão-mundo. Portanto, nos

dois significados para a palavra ação, parte-se da compreensão ontológica da realidade, da

vida, da existência, do sertão, de que, o homem está apartado de sua realidade. Levando em

conta esta separação fundamental, não fosse a presença do homem, ou melhor, de sua

vontade, sua atividade, sua ação, tudo, toda a realidade estaria primariamente separada,

caoticamente disposta, e, por isso, incompreendida. O homem, enquanto o ente reunidor,

promoveria a juntura do real e lhe daria sentido.

Ainda que esta compreensão guarde sua razão de ser, pois o homem certamente ―faz‖

algo no sentido de reunir, deve-se antes saber de onde provém o direito de se arrogar o papel

fundante e fundamental para a constituição reunidora da realidade. Em ambas as visões,

considera-se o homem como sendo o agente fundamental, aquele que opera e faz. Esquece-se

534

Ibid., p. 311.

535 Ibid., p. 309.

536 Cf. Guimarães Rosa, acerca da identificação entre o sertão e o humano, LORENZ, 1991, p. 95.

537 Cf. ROSA, 2006, p. 521.

538 Cf. Riobaldo, ―O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê

minha narração?‖, Ibid., p. 585.

539 Ibid., p. 73.

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que o homem é parte dessa realidade, ou seja, que é também constituído por ela, e não seria

coisa alguma sem ela. Deposita-se uma fé inabalável no homem como aquele que precisa

reunir através de suas faculdades, o caos que é a vida, toda a sua doideira540

.

Assim, fica indiscutida a necessidade dessa composição, do ajuntamento, da reunião

voluntariosa entre causa e efeito, entre ações individuais. Um pensamento mais radical deve

colocar em questão a própria possibilidade de reunir. Causa e efeito são duas realidades

distintas que precisam ser reunidas pelo logos, entendido como razão humana; ações, para que

deem a ver o todo, devem ser compreendidas por um sentido unificante, produzido pelo

homem, em última instância por um deus, ou por coisa que valha. Nestas duas direções para a

interpretação de ação, o que de modo algum se coloca em questão é o que já desde sempre

tornou possível a unidade de causa e efeito, a unidade de ações num todo. O que torna

possível a reunião, num e noutro caso, é um modo de ser que só se dá no homem, enquanto

homem, como homem, qual seja o modo de ser-no-mundo, ser-no-sertão, que por si já

pressupõe, não uma separação, mas uma unidade essencial e fundamental, a mesma unidade

que possibilita o misturado viver de todos541

. Ser nesse modo de ser revela o homem como

um ser no sentido de um poder ser tocado e afetado pelo real em sua realidade. É neste fundo

que deve ser interpretada a palavra ação: entendida como modo de ser-no-mundo/sertão e que

irá garantir a realização e o cumprimento de um destino de liberdade, uma travessia.

Uma outra incompreensão também está na base dessas duas interpretações: a crença de

que o homem pode agir e não agir. Suspeitar de tal consenso causa estranheza, pois que, para

todos nós, está mais do que evidente o fato de o homem agir e não agir. O próprio Riobaldo

afirmou: ―o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo

fizer, ou deixar de fazer”... Qualquer criança sabe disso. Nessa compreensão, fazer e agir são

540

Ibid., p. 484.

541 Ibid., p. 400.

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193

um único verbo. Pode-se agir e não agir, porque podemos fazer e também não fazer algo:

neste caso, agir e fazer é o mesmo. Riobaldo deixou de evidenciar explicitamente essa

distinção, a distinção entre agir e fazer, apesar de também saber que há um agir e que o

mesmo remete para uma dimensão existencial da vida542

: existir, viver é, essencialmente ação.

Quando não se compreende a diferença entre agir e fazer, não se pensa naquilo que dá a

possibilidade dessa identificação, entre agir e fazer. Seria mesmo essa evidência algo

incontestável? Será que o homem pode realmente não agir, segundo essa dimensão

existencial? Certo é que ele pode não fazer, como afirma Riobaldo. Podemos caracterizar o

homem enquanto homem estando ele fora do âmbito da ação? Em que medida e em que

condições pode o homem não agir? Estará reservada ao homem esta possibilidade, enquanto

se pensa sua essência como possibilidade para possibilidade, ou seja, como liberdade? Se agir

e fazer é o mesmo, estas perguntas são despropositadas. Do contrário, há algo aí para se

questionar.

Se agir existencialmente significa corresponder a possibilidades abertas no interior

disso que é o existir humano, abertura que faculta ao homem ser no modo de ser para

possibilidades abertas na concruz dos caminhos, então, agir e fazer não remetem para a

mesma gênese ontológica e por isso não é facultado ao homem não agir. Se agir é concretizar

um modo de ser existente, isto é, caso agir seja fazer aparecer uma possibilidade de ser, não

é possível, não é dada ao homem a inação, enquanto o homem for entendido a partir do solo,

a partir do estrato de possibilidade para possibilidade, isto é, liberdade. Assim, neste

sentido, ação não se confunde com a ordem do fazer e produzir, entendidos como causação de

efeitos543

. Agir e fazer se copertencem e podem até mesmo se confundir, cotidianamente. No

542

Cf. Riobaldo, ―E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa‖,

Ibid., p. 484.

543 Segundo Heidegger, em Sobre o Humanismo, a essência do agir não está em avaliar a efetividade da produção

de um efeito, ou seja não está em constatar a concreção de uma vontade que intenciona produzir um efeito

específico. A medida da ação essencial não é esta. A essência do agir está num movimento existencial de

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194

entanto, são noções diferentes, apontam para dimensões distintas de constituição de vida544

. O

fazer pode repousar sobre o sentido de uma ação, enquanto ação existencial e própria. O

homem que faz ou produz algo está se movendo no interior de uma ação. Porém, isto não

pretende dizer que, justamente por isso, ação seja também e necessariamente, um fazer, que

encontraria no homem seu regente operacional, ainda que toda ação faça, produza. Seria

mesmo o caso de perguntar: o que faz e como faz uma tal ação, entendida existencialmente?

De todo modo, não é o homem o sujeito do que se pretende chamar aqui ação. Neste

caso, qual é o agente da ação? Quem age? A ação que tratamos aqui só pode ter um agente,

na medida em que o princípio que age é e está no movimento próprio de sua realização, da

realização dela mesma, da ação. Neste caso, quem age é a própria ação, é a própria

necessidade, fazendo-se, produzindo-se. O que querermos dizer é que é o próprio ato de

consumação, que conduz ―uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência‖, HEIDEGGER, Martin. Sobre o

humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974,

pp. 23-24. A rigor, somente o Ser pode ser consumado, porque somente o Ser é desde sempre. Neste sentido, a

única ação essencial que se pode conceber é a consumação da ―referência do Ser à essência do homem‖, ibid.

Em outras palavras, isto quer demonstrar que ação essencial visa promover a conquista e realização de um modo

de ser possível, que já se deu aberto para o homem como possibilidade. Na verdade o homem até pode não

querer agir essencialmente, isto é, pode não querer consumar uma possibilidade essencial que lhe foi dada e

aberta no seio de sua situação fundamental, situação esta que é ser no modo de ser de possibilidade para

possibilidade. No entanto, esta recusa deve ―pagar o preço‖ de ser no modo de ser impessoal e decadente, cf.

especialmente os §25, §26, §27 e §38 de Ser e Tempo. Isto implica na recusa da liberdade própria em seu sentido

existencial.

544 É preciso considerar uma distinção básica acerca da constituição da existência, que aponta para duas

dimensão, respectivamente: uma ôntica e outra ontológica. A dimensão ôntica se refere à estruturação básica da

vida que determina o homem a partir da lida, da ocupação com as coisas no mundo; a dimensão ontológica

remete para a estruturação do ser, compreendido em sua singularização, e aponta para os movimentos dessa

estruturação. Disso decorre a necessidade de a investigação ter compreendido a distinção entre o movimento de

cada uma dessas dimensões. Aquela que é determinada onticamente, move-se pelo fazer, enquanto a

determinação ontológica move-se pela ação. O fazer mostra-se, em certa medida, sob o comando do homem. Ao

contrário, ação provém da autoestruturação da realidade e, por isso, estrutura o homem em suas possibilidades

próprias. A ação não está sob o comando do homem, antes, é a ação que sobrevém e o determina, que age sobre

ele. Por esse motivo, a ação (Handeln) é essencialmente Cura (Sorge), ao passo que o fazer (Tun) e executar

tarefas, os afazeres da vida, determinam-se pelos movimentos de estruturação da Ocupação (Besorge). Este

último é o modo básico de relacionamento com a realidade, caracterizado em Ser e Tempo. Fazer diz o modo de

lidar com as coisas na vida prática cotidiana. É preciso ressaltar ainda que essa distinção ôntico-ontológica se dá

apenas de forma didática ao entendimento, posto que não é possível fundamentalmente separá-las. Além dessas

considerações, ver as Notas Explicativas, números 12 e 13, de Emmanuel Carneiro Leão, na Tradução de Márcia

Schuback para o tratado Ser e Tempo. Ver também o que Heidegger fala do agir essencial (wisentlichen

Handelns) no §32 de Os conceitos Fundamentais da Metafísica.

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realização de um destino que age, nesta ação. Isso está confuso e soando misterioso. Vamos

tentar melhorar a coisa.

Fazer e produzir são palavras que de algum modo revelam quem faz, revelam o agente,

podendo, assim, atribuir-se ao fazer e produzir um quem faz ou produz algo. O padeiro faz o

pão; o músico toca o instrumento. A própria gramática nos obriga a identificar um sujeito para

qualquer verbo, excetuados os casos de fenômenos da natureza. No fazer e produzir, segundo

o entendimento habitual, há sempre um quem faz e realiza. Esta pressuposição está fundada

no entendimento de que tudo o que há deve possuir uma causa primária, primeira,

identificável e controlável, que imprimiria movimento naquilo que se move, no que se

transforma, no que está sendo realizado e produzido. E tem mais: todo efeito deve ser causado

por algo que não seja ele mesmo, o efeito. Isso é apenas lógica. É assim que causa e efeito

funcionam. Deste modo, o padeiro seria quem dá forma ao pão, ele causa pão; o músico seria

o executor do instrumento: isto é, causa música. E assim por diante: a morte causa medo, etc.

Ainda que esta compreensão do fazer e produzir possa dar a impressão de algum

asseguramento, controle, conforto para os desafios e dilemas da vida, ainda que esta

compreensão constitua uma dimensão básica da vida (ocupação e preocupação), a existência

humana, não é constituída exclusiva e fundamentalmente pela relação entre causa e efeito,

entre sujeito que age e fruto da ação. Com isto, compreende-se apenas que a existência não

opera exclusivamente através do binômio causa-efeito.

Em última, ou melhor, em primeiríssima instância, não se ama por causa e efeito; não se

vive por causa e efeito; não se morre por causa e efeito. O mesmo ocorre com Poesia,

Filosofia, com Engenharia ou com Física, Matemática, Medicina. Ninguém se torna o que se é

propriamente por causa de alguma coisa ou alguém. Não é assim que alguém se torna o que é:

jagunço, filósofo, poeta, físico, matemático, médico, ou ainda escritor, padeiro, músico,

jardineiro, professor etc. Como, então, alguém vem a ser o que já é? Como Riobaldo se

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tornou o que ele já estava destinado a se tornar? Ser o que se é já é uma ação: uma ação

fundamental, existencial, a maior e melhor de todas as ações. Como é possível participar

desse perfazer uma dada ação que já se é? Agindo, atravessando um caminho próprio,

cuidando de ser o que se pode e deve ser. Com isso queremos dizer apenas, por enquanto,

que, fundamentalmente, o existir não ocorre sob uma lógica causal. Antes, deve-se

compreender causa e efeito como produto de uma necessidade e de um resultado de

compreensão possível, isto é: compreender a realidade pela lógica de causa-efeito é um modo

possível de ver realidade, sertão, vida – não o único modo, mas um modo. Há coisas que se

explicam por causa e efeito; por outro lado, há coisas que ocorrem num estrato tão radical e

fundamental da vida que não se prestam a esta lógica: a morte, por exemplo, é maior que a

lógica545

, assim como a vida. É preciso saber que estrato é este, ou melhor, como este estrato

é constituído. Este é justamente o estrato onde se funda a gênese de toda ação existencial546

.

A interpretação causal não explica o porquê alguém estava inclinado a seguir tal caminho, isto

é, não explica um destino, em detrimento de tantos outros possíveis. A interpretação causal é

capaz de explicar e representar um começo, apontar um início, mas não é capaz de mostrar a

gênese (arcké) ontológica (relativa ao ser) que torna alguém apto, atento, disponível para

assumir radicalmente um modo de ser. Não há explicação causal para isso. Assim, podemos

afirmar que a compreensão que temos de ação ultrapassa a intepretação causalista do real e

de sua realidade.

Um ponto ainda bastante importante, que requer uma revisão e que ainda subjaz desde

longa data à compreensão de ação, é o que diz respeito à separação que se deu entre vida

teórica e vida prática. Sem entrar aqui na questão de quando e como tal separação foi

instaurada, o fato é que esta separação impõe consequências fundamentais para a

545

ROSA, 2009, p. 171.

546 Uma compreensão filosófica para tal fenômeno pode ser encontrada naquilo que Heidegger compreende

como Cura. Cf. §§39-44 e ainda §§61-66, de Ser e Tempo.

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compreensão de ação. Esta separação impõe uma decisão fundamental. Em sua essência, a

ação da vida prática, dos afazeres cotidianos, não se opõe à atividade da teoria547

. Uma vida

ativa, uma bios praktikos, não exclui de modo algum o que vem a ser o modo de ser da bios

theóretikos, a vida teórica. Riobaldo também exercia a atividade do pensamento época em

que estava moendo no asp’ro: pensava no pacto, por exemplo.548

O erro é supor que há

homens, isto é, que há vida determinada essencial e exclusivamente como prática, e ainda –

como que de modo adicional à existência, como sendo uma outra possibilidade excludente da

existência – que há um modo de ser essencial, ou seja, um modo de vida, que é determinada

teoreticamente. Em suma: acredita-se que há homens que agem e, ao contrário e em oposição,

há homens que teorizam. Aqueles estariam agindo e operando nos negócios do mundo,

fazendo política etc., enquanto estes estão apartados do mundo, exercendo suas atividades

teóricas, filosóficas, especulativas. Como se poderia dizer: há homens que moem no asp’ro,

peixe vivo no moquém; há homens que especulam ideia, no range rede. Riobaldo se

questiona:

Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra

pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.549

A palavra pegante está indicando o caráter da linguagem que mobiliza o pensamento e que,

principalmente, ao mesmo tempo, mobiliza ação. Por isso, ação e pensamento, teoria e prática

estão misturadas, no misturado viver de todos.

547

Cf. HEIDEGGER, 2008, p. 118 e p. 382.

548 Cf. Riobaldo, ―Eu pensava, como pensava, como o quem-quem remexe no esterco das vacas. Tudo o que me

vinha, era só entreter um planejado. Feito num traslo copiado de sonho, eu preparava os distritos daquilo, que, no

começo achei que era fantasia; mas que, com o seguido dos dias, se encorpava, e ia tomando conta do meu juízo:

aquele projeto queria ser e ação!‖, ROSA, 2006, p. 402. A esse respeito, ressalte-se ainda as considerações do

Professor Eduardo F. Coutinho: ―é importante observar que o caráter especulativo de Riobaldo não exclui

absolutamente sua condição de homem de ação. O protagonista de Grande Sertão: Veredas é ao mesmo tempo

um homem de ação e um ser especulativo, indagador‖, COUTINHO, 2013, pp. 95-96.

549 ROSA, 2006, p. 178, grifo meu.

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É nesta unidade que ação deve receber seu sentido; é aí nesta unidade que se constitui

o estrato fundamental da existência em que ação se temporaliza. Ação aponta essencialmente

para uma realização vital e própria. Ela não se remete originariamente a um sujeito. Por

esse motivo, a ação que queremos entender aqui nada tem que dar contas da vontade de um

sujeito ou de um grupo de sujeitos organizados. Agir aponta originariamente para um vigor

de realização vital e necessário. É disto que ação deve prestar contas: a ação deve prestar

contas de sua consumação. Ela diz qualquer coisa de uma realização vital, própria,

necessária e que confere unidade ao existir humano e não um ou outro fazer específico, feito

cotidianamente. Consumação550

diz algo fundamental acerca da essência da ação.

Se concordarmos com esta caracterização de ação, então estaremos envolvidos com uma

virada radical de sua compreensão. Nesta virada, podemos perguntar: que sentido deve ser

priorizado para ação numa tal investigação que busca compreender a relação entre tempo e

liberdade? Parece razoável determinar um sentido para ação, visto que o homem está sempre

em ação e não pode estar fora do agir, pois estar numa tal possibilidade (liberdade) é já estar

agindo, isto é, ser livre (estar propriamente vivo) é sempre estar consumando um modo de ser

possível. É preciso, por isso, determinar qual o sentido, qual a direção que a nossa ação deverá

tomar. Não se deixe esquecer que o sentido da ação deverá tornar visível o fazer-se de

liberdade e ainda deverá dar a ver sua temporalidade própria. Qual é o sentido da ação, pois,

que fará visível liberdade e tempo, cada qual em sua originariedade própria? A ação de

Riobaldo poderá demonstrar o que vimos argumentando.

Pelo que foi anunciado no início desse debate, o caráter positivo de ação deve apontar

para um sentido existencial. Este caráter existencial reivindica um estado ontológico

fundamental e originário do ser humano, como modo de ser-no-mundo. Temos já entrevista a

550

Cf. HEIDEGGER, 1974, pp. 23-24.

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possibilidade de responder e corresponder à questão do sentido temporal da liberdade através

da realização, concretização, consumação de ação. Entendendo o sentido temporal de

realização de liberdade como a liberdade temporal de realização de um sentido, de uma

perspectiva de vida, de um destino, à medida que tal perspectiva se consuma, ou seja, à

medida que é plenificada, enquanto toma corpo, torna-se visível o que procuramos entender

como ação. A liberdade temporal de realização de um destino traduz o significado de

travessia. Assim, o que há de comum entre liberdade e ação repousa no fato de ambas

ocorrem ao mesmo tempo, num mesmo instante, numa travessia. Isto quer dizer que o sentido

temporal de liberdade e de ação é, em ambas, a realização mesma de uma possibilidade de

ser numa travessia, que é assumida na realização de uma vida própria e finita, realizando um

destino. Assumir essa condição de ser possibilidade para possibilidades é já a tarefa de agir,

concretizando uma ação própria no sentido que irá realizar uma tal possibilidade. Assumir o

ser no modo de ser de possibilidade, isto é o que se entende por ação, é este o seu sentido

fundamental, a ação humana mais radical possível, a travessia da vida.

Esse encaminhamento para a compreensão de liberdade e de ação a que chegamos pode

suscitar ainda o questionamento da originariedade de sua radicalidade. Por que ao se assumir

esse agir específico, em decorrência disto, caracteriza-se o agir como sendo um agir radical?

Onde deve radicar, enraizar-se, tal agir para que seja considerado, por isso, radical? A razão

de ser dessa radicalidade repousa sobre o fato de ação assumir o compromisso de concretizar

uma decisão551

fundamental. Que decisão poderá ser mais radical do que assumir a tarefa de

concretização de uma possibilidade própria, de um modo próprio de ser?

551

Em Ser e Tempo, Heidegger descreveu a decisão fundamental de que estamos tratando. No horizonte de Ser e

Tempo, decisão aparece como Entschlossenheit. Composta pelo verbo schliessen, que significa fechar e trancar,

acompanhada pelo prefixo ent-, Entschlossenheit fala justamente do movimento de destrancar e abrir. Assim,

decisão ocorre como o princípio da abertura de possibilidades de fazer e não fazer, ser e não ser deste ou daquele

modo. Heidegger caracteriza essencialmente a decisão como o ―projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se

para o ser e estar em dívida mais próprio‖, HEIDEGGER, 2008, p. 378, cf. §§54-60. Em outras palavras, isto

pretende dizer que o homem, enquanto escolhe a escolha de assumir o seu ser possível, aceita a tarefa de fundar

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Decidir vir a ser o que já desde sempre se é, significa assumir corajosamente a tarefa de

consumar, plenificar, realizar um modo de ser que já desde sempre se abriu enquanto uma

possibilidade própria. Realizar possibilidades, isto é, tornar real uma possibilidade que já se

abriu, é isto a decisão mais radical que alguém pode tomar para si, isto é o mesmo que

decidir-se por ser o que se é. Esta é a decisão mais fundamental. Esta é a única ação

existencial, a única atividade que pode dar a ver o modo próprio de temporalização da

liberdade. Esse é o único caminhozinho estreito que cada um deve seguir, para acertar no

compasso e não errar. Para que ação seja compreendida a partir de seu sentido existencial, é

preciso entender ação como verbo, como realização vital. Somente este modo de agir pode

conduzir igualmente a forma mais radical de liberdade. Tal agir precisa estar enraizado numa

decisão, numa escolha fundamental que põe em questão o sentido do ser do homem. Nesta

compreensão de ação, agir equivale a ser. Ser e agir devem coincidir, devem identificar-se, a

despeito da identificação de agir e fazer. O que se é deve coincidir com o que se faz, sendo

(agindo) enquanto faz.

Agora, recuperando aquelas questões iniciais, pode-se concluir a maneira através da

qual se vê o tempo na liberdade. O tempo está na liberdade como possibilidade de realização

de uma vida própria. O que é esta realização, demonstra-se pelo fazer-se mesmo do tempo,

temporalizando-se como ação. Esta é a possibilidade mesma de viver, de ser no sentido da

vida humana. O nosso próximo passo no interior desse círculo será iniciar o desdobramento

temporal desta possibilidade. Neste sentido, ser homem é sempre agir no sentido de

corresponder (ou não) às possibilidades abertas pela liberdade, única e exclusivamente num

sentido temporal. Portanto, agir é muito mais um corresponder, esperar, escutar, e nisto

consentir nas possibilidades abertas, nos caminhos abertos na concruz de todos os caminhos,

seu próprio ser, isto significa ser o seu próprio fundamento, à medida que vai assumindo a dívida de ter de ser.

Isto quer também dizer que decidir-se é decidir retirar o seu próprio modo de ser de suas possibilidades próprias.

Para que haja decisão, segundo o que se entende em Ser e Tempo, é preciso que se tenha colocado em questão o

ser do Dasein, que essencialmente está assentado no fundar-se sobre o nada.

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do que fazer e realizar coisas voluntariamente. Corresponder à liberdade fundamental do

homem significa consumar uma ação própria. De agora em diante, nosso objetivo

fundamental será intensificar ainda um pouco mais esse direcionamento que impõe o

exercício de consumar propriamente a ação existencial da liberdade, ao se radicalizar numa

temporalização. Portanto, seguiremos à questão: o que é tempo em seu fazer-se tempo, em sua

temporalização e como esta temporalização poderá dar a ver, agora, a concretização de

liberdade e ação?

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6. O tempo no Grande Sertão: sempiternidade e finitude

Para que as questões levantadas no item anterior possam ganhar alguma elaboração

autêntica, temos agora de perguntar: qual o sentido que pode ser atribuído à questão do tempo

segundo a obra GSV? Neste questionamento, está pressuposta a leitura da obra como sendo

uma obra que põe em destaque o questionamento do tempo. Sem nos questionarmos sobre a

autenticidade desta leitura que vimos sugerindo ao longo da investigação, não seremos

capazes de sustentar a tese de que a obra de Guimarães Rosa trata da questão da

temporalidade552

. Como, então, poderemos demonstrar que a obra está mergulhada em tal

elemento, a temporalidade, o tempo enquanto instância fundamental da existência? Para

conquistar tal autenticidade, ainda uma vez, seremos obrigados a escutar as asserções de

Riobaldo que apresentem algum caráter especulativo acerca do tempo. Seguiremos agora,

portanto, com a seguinte pergunta-guia: o que é tempo segundo as especulações de Riobaldo?

Para compreendermos sua posição, será antes necessário aceitar que a temporalidade está

inexoravelmente relacionada com a própria existência. Isso inclui ainda considerar nesta

relação o que anteriormente já foi apontado acerca de destino, amores, medo, coragem,

liberdade, morte, vida etc. Disso decorre a dificuldade em elaborar a questão de modo

552

Apesar de João Guimarães Rosa afirmar que seu propósito em GSV era libertar o homem do peso da

temporalidade, devemos compreender devidamente o sentido para esta interpretação. Cf. entrevista concedida a

Günter Lorenz: ―Lorenz: Então, novamente, também na língua o compromisso humanista, o ‗compromisso do

coração‘, do qual você falou? – Guimarães Rosa: Sim, é isso. Você, meu caro Lorenz, em sua crítica ao meu

livro escreveu uma frase que me causou mais alegria que tudo quanto já se disse a meu respeito. Conforme o

sentido, dizia que em Grande Sertão eu havia liberado a vida, o homem, von der Last der Zeitlichkeit brefreit

(18) [Liberto do peso da temporalidade]. É exatamente isso que eu queria conseguir. Queria libertar o homem

desse peso, devolver-lhe a vida em sua forma original. Legítima literatura deve ser vida. Não há nada mais

terrível que uma literatura de papel, pois acredito que a literatura só pode nascer da vida, que ela tem de ser a voz

daquilo que eu chamo ‗compromisso do coração‘. A literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que ele

escreve‖, LORENZ, 1991, p. 84.

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linear553

. Esta falta de linearidade, na verdade, está implicada na própria compreensão do que

seja o tempo para Riobaldo.

Podemos começar dizendo que para Riobaldo, o tempo não é fundamentalmente

ordenado pela noção vulgar que todos assumimos como valida e verdadeira, como sendo algo

estendido cronologicamente, linearmente, através da imagem de uma linha reta, demarcada

por três espectros temporais – passado-presente-futuro. Segundo afirma Riobaldo, ―as coisas

não têm hoje e ant’ôntem amanhã: é sempre. Tormentos‖554

. Isto nos diz que tempo, para

Riobaldo, não lhe aparece como presente, passado e futuro, ou seja, não há tal demarcação

temporal em seu modo de experienciar tempo. Para Riobaldo, tempo é sempre; sua

experiência temporal se afirma ou se explica pela sempiternidade555

. Essa indiscernibilidade

tormentosa é provocada pela falta de demarcação clara das dimensões temporais, conhecidas

por toda gente.556

Na verdade, a indiscernibilidade das dimensões temporais corresponde a

uma instância originária de experienciação do tempo. Isso é o que parece estar dizendo o

sempre, que não distingue o hoje, do ant’ôntem e do amanhã. O tempo de Riobaldo é sempre

e ―Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera...‖557

. Sempiternidade é a palavra que fala desse

tempo originário, o tempo da vida, representado através do fluxo de um rio.

553

Conforme o Professor Manuel Antônio de Castro, ―O encaminhamento das questões em Grande sertão:

veredas não está em ordem linear nem poderia, porque não há uma ordem linear. Todas elas se implicam

mutuamente‖, CASTRO, 2007, p. 151. Ele diz ainda que a obra não é ―uma auto-biografia, onde tudo é regido

por lembranças cronológicas‖, CASTRO, 2007, p. 162. Na obra GSV, como o próprio Riobaldo afirma a

ordenação cronológica serve para as coisas de rasa importância: ―A lembrança da vida da gente se guarda em

trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar

seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância‖, ROSA, 2006, p. 99. Como ele não está

contando o que é ordinário, sua narração foge da linearidade: tudo o que Riobaldo conta é ―sério preciso‖, Ibid.,

p. 173.

554 Ibid., p. 140.

555 Cf. item 4. De-Janeiro: rio da consagração.

556 Cf. foi destacado no item 2. Ficar sendo na encruzilhada: a abertura dos caminhos, Riobaldo perde a

experiência da demarcação temporal cotidiana, após o pacto.

557 Ibid., p. 94.

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A sempiternidade é essa mesma instância em que não se posiciona um começo e um

fim; é o que desde sempre simplesmente há como instância de acolhimento de diferenças e

doação de ser, de destino; é a condição de realização de um destino enquanto horizonte de

uma caminhada ativa de busca pelo próprio; é a dimensão da realidade onde o tempo se

inaugura como sempiterna possibilidade; é o lugar onde não se tem hoje nem ant’ôntem

amanhã: as coisas são sempre. Isto diz o mesmo que eternidade. O eterno aqui é entendido

como a instância de acontecimento da vida, a eterna inauguração da vida, e, nesse

acontecimento, não é possível demarcar cronologia alguma, na medida em que o tempo se

mostra em sua originariedade. Por isso, em outro momento Riobaldo afirmou: ―de ouvir boi

berrando à forra, me vinha ideia de tudo só ser o passado no futuro. Imaginei esses

sonhos‖558

. Assim, o tempo do que está sendo é o tempo do passado no futuro. Deve ser por

isso que Riobaldo se lembrar ―das coisas, antes delas acontecerem...‖559

. A experiência

temporal de Riobaldo, com o pacto, deixa de segmentar o tempo, o que o dividiria em

passado, presente e futuro. Essas dimensões passam a interagir como uma unidade e

constituem um único fluxo temporal, vertendo como as águas de um rio. Essa dimensão do

tempo, segundo a compreensão de Riobaldo, assemelha-se ao sonho, pois foge de toda

logicidade da razão. Isso, esse caráter inaugural do tempo, é o que gera aquela sensação de

tormento, porquanto tal instância temporal não se revelar clara e distintamente, nem ser uma

experiência amena, veremos. Não há amenidade nesta temporalidade originária, pois põe em

questão o ser e o destino do homem.

Há uma passagem na obra em que Riobaldo demonstra essa experiência de tempo

através da imagem de um rio. Vale adiantar que tal imagem e tal especulação revela

558

Ibid., p. 287.

559 Ibid., p. 31.

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inequivocamente o caráter paradoxal do tempo, elevando-o, ou melhor, concretizando-o

enquanto dimensão fundamental e constitutiva da vida e, por conseguinte, da morte. Diz ele:

Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar – tem uma coisa!: eu vejo é o puro

tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida

da morte: imperfeição. Bobices minhas – o senhor em mim não medite560

Apesar de Riobaldo instruir seu interlocutor a desconsiderar essas bobices, que estão bem

longe de ser qualquer tolice, façamos o que deve ser feito: especular essa ideia. Há dois

momentos a se considerar nessa fala: o que Riobaldo vê enquanto tempo e como ele define o

tempo.

Riobaldo vê o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água.

Riobaldo vê o tempo cronológico, vulgar, o tempo do cotidiano, o tempo alisado561

. No

entanto, vê também o puro tempo, o tempo em sua origem, a nascividade do tempo, o tempo

em sua forma originária: tempo puro, mole e quieto. Riobaldo vê o tempo mole, sem forma,

fora da forma – ou fôrma – passado-presente-futuro: o tempo é mole e imensurável. O tempo

sem forma é também tempo quieto, ainda silencioso, não é tempo imóvel, mas tempo

quieto562

, que harmoniza todas as coisas e faz com que as coisas permaneçam, o tempo que é

sempre, sempiterno, a sempiternidade da vida. Esse tempo vem vindo quieto mole, como a

água dum rio563

. Essa é a imagem do tempo para Riobaldo.

560

Ibid., p. 587.

561 Cf. Riobaldo, ―Cada dia é um dia. E o tempo estava alisado‖, Ibid., p. 398.

562 O adjetivo quieto, vem do latim quiētus e diz do que repousa, do que é ou está tranquilo, calmo, pacifico. A

propósito da harmonia da quietude, ver a palestra A linguagem, de Heidegger contida no livro A caminho da

linguagem, HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. Ver ainda a

articulação entre a fala da linguagem, como consonância do quieto da di-ferença (Die sprache spricht als Geläut

Stille), no capítulo O nativo e o estrangeiro, em GALERA, Fábio. Caminho, poética acontecimento. 1. ed. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, p. 66.

563 A propósito da relação entre tempo e rio, ver também o conto Os chapéus transeuntes, ―O tempo, irretornável

como um rio; frio‖, ROSA, João Guimarães. Os chapéus transeuntes. In: Estas estórias. 6. ed. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 2013a, p. 83)

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A partir de tal imagem, Riobaldo diz o que o tempo é: tempo é a vida da morte:

imperfeição. Vida da morte? Isto é o tempo, segundo Riobaldo! A morte de uma vida, todos

conhecemos: é quando uma vida cessa de existir, quando alguém morre. Há algo ou alguém

vivo e, em algum momento, num instante, de repente, vai e morre. Entende-se! Mas, a vida da

morte, o que é? O que é mesmo vida? E morte? Vida da morte é a vida que advém da morte?

Isso é estranho! No conto Sem tangência564

, de João Guimarães Rosa, o narrador se pergunta:

―Quem morre, morreu mesmo?‖. Parece que a resposta para essa pergunta depende do que se

entende por morte. Tudo é e não é. Parece que a resposta depende do ponto de vista donde se

toma a morte, pois ela ―é maior que a lógica‖565

Ela, a morte, é uma das grandes questões do

homem. Esse mesmo narrador se pergunta: ―É possível um não-mais-futuro? Vive-se, e ri-se.

O gênio ainda não germinou bem em nós, distraídos e fracos‖566

. Adiante, o narrador do conto

retoma essa mesma questão (quem morre, morre?) e responde, ainda que tal resposta venha

de uma memória longínqua: ―Depois da vida, o que há, é mais vida... – disse-me: o que

minha mais funda memória me telegrafou‖567

. Isto parece dizer, que depois da vida que

morre, depois da morte, o que há é sempre mais vida. Nesta compreensão parece ser

reafirmada a sempiternidade do tempo e da vida, ainda que esta esteja em relação com a

morte. Na verdade, não podem não estar relacionadas vida e morte. Por isso, diante de nossa

fraqueza e de nossa distração, precisamos nos concentrar e, sim, tentar agarrar a ideia do que

Riobaldo chama vida da morte.

Sabemos a morte que sucede a vida, isto é, sabemos o que é morrer como a cessação da

vida num corpo. Mas Riobaldo não fala dessa vida e nem dessa morte, quando diz o que é o

tempo. Vida, tal como se elaborou acima, é sempiternidade, é continua e incessante

564

ROSA, 2009c, p. 171.

565 Ibid., p. 171.

566 Ibid., p. 172.

567 Ibid., p. 173

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inauguração de possibilidade. Vida da morte é a vida que decorre da morte, é a vida que

continua sempre, sempiternamente acontecendo, dando-se, doando-se. Parece que a vida da

morte está também em questão numa passagem em que Riobaldo se pergunta acerca da morte:

―a sorte também prevalecia do nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será?‖568

Segundo esta passagem, a morte é coisa da vida, como oportunidade de continuação do viver,

como reinauguração. Assim, finitude gera vida sempiternamente. Apesar de toda morte, basta

um menino nascer para que o mundo torne a começar569

. A vida de que Riobaldo fala para

caracterizar tempo, o tempo puro, é a vida que se inaugura e faz nascer a cada instante, a

partir da constituição mesma da finitude, ou seja, da morte, do nada. Como afirma o Professor

Manuel Antônio de Castro, essa vida é a vida experienciada de Riobaldo: ―Riobaldo não nos

faz uma autobiografia, mas nos narra a narração do inaugural que lhe aconteceu enquanto

destino‖570

e todo destino contempla também a morte. Segundo Manuel, ―Todos nós

nascemos com um ‗prazo‘, o entre-tempo determinado pelo nascimento e pela morte. O

‗entre‘ Nada e Tudo no dizer de Riobaldo‖571

. Mas de que morte estamos falando? O que é a

morte? Não se trata de pensar aqui, exclusivamente, a morte biológica, a morte que

interrompe o fluxo vital do organismo vivo, ―a morte final – equestre, ceifeira, ossosa, tão

atardalhadora‖572

, como afirma o protagonista do conto Páramo, de Guimarães Rosa. Isso

porque, o que entendemos por ―homem não se reduz a uma ‗unidade‘ biológica‖573

. A

primazia do que vem a ser homem está em sua dimensão ontológica. O testemunho deste fato

está em Riobaldo associar a ideia ontológica de mundo e nascimento574

.

568

ROSA, 2006, p. 239, grifo meu.

569 Cf. Ibid., p. 468.

570 CASTRO, 2007, p. 152.

571 Ibid., p. 153.

572 ROSA, 2013b, p. 264

573 CASTRO, 2007, p. 167.

574 Cf. ROSA, 2006, p. 468.

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A morte aqui em nossa discussão deve ser pensada em seu âmbito existencial e

ontológico, a ―mãe morte‖575

, ainda que nesta compreensão seja contemplada também a morte

biológica. ―A morte é corisco que sempre já veio”576

, ela ―é para qualquer momento, não se

pode estar de pijama...‖577

, está já desde sempre presente, perfazendo e constituindo vida,

toda vida humana. Há a morte marcada em edital, a morte biológica, a morte marcada antes ―

de menino nascer‖578

, ―o inenarrável rapto‖579

, ―a morte fatal‖580

, mas há ainda a morte de

cada dia, que elabora toda e qualquer possibilidade de realização do humano. É dessa morte

que estamos tratando aqui: estamos tratando de pensar a morte constitutiva da condição do

humano, sua finitude. Há uma morte definitiva, o rapto, e há a morte que se dá a cada dia e

que, essencialmente, transforma. Precisamos realizar um esforço para ver que ―a morte – não

a hora da morte – é sempre original‖581

. Ambas vão compondo e perfazendo o que é seu e

próprio por direito, seu quinhão582

, e que não se sabe, não sabe, não sabe. A morte ou o nada

é a condição do homem, é seu limite e sua possibilidade mais extrema. Na morte, recebemos a

totalidade de nosso quinhão, marcado por nascimento e morte. Com isso, cumpre-se o

movimento próprio da physis. Como destacamos anteriormente583

, temos no fragmento 123 de

Heráclito o movimento de procura a que estamos submetidos, procura por decifração

575

Ibid., p. 355.

576 Ibid., p. 215.

577 ROSA, 2013a, p. 93.

578 ROSA, 2006, p. 507.

579 Cf. ―E, que nos vem da vida, emfim? – com o continuar do ar, do chão e do relógio. A morte: o inenarrável

rapto‖, ROSA, 2009c, p. 172.

580 ROSA, 2006, p. 528.

581 ROSA, 2013a, p. 98.

582 Cf. o Professor Manuel Antônio de Castro, ―Cada um tem o seu quinhão, a parte da partilha dentro da

excessividade poética do real‖, CASTRO, 2007, p. 158, grifo meu. E ainda conforme a Professora Angela Guida,

―somos atormentados [...] pela incerteza/certeza diante do quinhão que está reservado a cada ser vivente: a

morte‖, GUIDA, Angela. A poética do tempo. 1. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, p. 71, grifo meu.

583 Cf. item 1. Descifração, do Capítulo 1. O Projeto Compreensivo de Riobaldo.

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(kryptestai) do sentido da vida. Diz o fragmento: Physis kryptestai philei. O Professor Manuel

traduz como: ―A nascividade excessiva apropria-se no nada excessivo‖584

.

Em última instância, essa excessividade nascitiva, a excessividade da vida perfaz,

constitui, engendra, cria, forma, ou se quiser, ganha corpo, enquanto suceder, enquanto

travessia, melhor, enquanto matéria vertente, que se apropria, isto é, que aquiesce em tornar-

se nada excessivo. Riobaldo se questiona: ―são os tempos, travessia da gente?‖585

. Diríamos

que sim. Travessia é tempo. São os tempos a travessia de cada um de nós, conquistando, cada

um de nós, o próprio quinhão. A travessia constitui-se dos tempos da gente. Os tempos que se

instauram como vida: ―A vida – o que há entre os dois dúbios, curvos desencontrões: o de

nascer e o de morrer?‖586

. O que há é travessia, tempo, vida, e morte, sempiternamente,

finitamente – vamos com calma.

Para exemplificar ainda um pouco mais a qualidade de morte que está sendo

compreendida aqui, podemos destacar a experiência do narrador daquele conto de João

Guimarães Rosa, Páramo587

, um aviador que sofre do mal do soroche, o mal das alturas. Ao

viajar para a cárcel de los Andes, a prisão que irá representar a Cordilheira dos Andes, devido

ao mal das alturas, o narrador relata sua experiência temporal e explica bem essa modalidade

de morte da qual estamos tratando. Ele narra a mortal tristeza que o acomete. Vale reproduzir

aqui toda a sua explanação.

Contudo, às vezes sucede que morramos, de algum modo, espécie diversa de morte,

imperfeita e temporária, no próprio decurso desta vida. Morremos, morre-se, outra

palavra não haverá que defina tal estado, essa estação crucial. É um obscuro finar-se,

continuando, um trespassamento que não põe termo natural à existência, mas em que

a gente se sente o campo de operação profunda e desmanchadora, de íntima

transmutação precedida de certa parada; sempre com uma destruição prévia, um

dolorido esvaziamento; nós mesmos, então, nos estranhamos. Cada criatura é um

584

CASTRO, 2007, p. 151.

585 ROSA, 2006, p. 402.

586 ROSA, 2013a, p. 77.

587 Ibid., pp. 261-290.

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rascunho, a ser retocado sem cessar, até à hora da liberação pelo arcano, a além do

Lethes, o rio sem memória. Porém, todo verdadeiro grande passo adiante, no

crescimento do espírito, exige o baque inteiro do ser, o apalpar imenso de perigos,

um falecer no meio de trevas; a passagem. Mas, o que vem depois, é o renascido, um

homem mais real e novo, segundo referem os antigos grimórios. Irmãos, acreditem-

me.588

É desta morte589

que parece estar tratando Riobaldo, quando fala da vida da morte, uma tal

morte que é temporária e, além disso, revela a estação crucial da vida, estação decisiva,

árdua, difícil e importante. É preciso morrer no próprio decurso da vida; durante a vida se

morre, morre-se e depois da morte a vida continua. O narrador fala da morte como um

trespassamento, como um atravessamento, que não encerra a vida biológica, não põe um

termo natural na existência – ainda que o termo natural esteja sempre prestes a se suceder. Tal

qualidade de morte torna a vida um campo de operações profundas que desmancham o íntimo

de alguém, esvaziam, promovendo uma transmutação – pesável? Tal transformação ocorre

com uma prévia destruição e esvaziamento íntimo – esvaziamento como aquele provocado

pelo medo590

–, esvaziamento de nós mesmos, o que gera o não reconhecimento de si mesmo,

abrindo os caminhos para o novo. Como sugere o narrador, cada um de nós sofre muitas

dessas transformações ao longo da vida, visto que somos um rascunho que se retoca

incessantemente até que aquela morte ceifeira nos rapte por definitivo, momento em que a

vida continua para quem fica. Mas enquanto isso não acontece, muitas mortes vão se

operando em nós, ao modo de retoques, que promovem o nosso crescimento espiritual.

Segundo afirma o narrador do conto, muitas são as mortes, ―sempre há mais outra: mais

588

Ibid., pp. 261-262.

589 Riobaldo sugere duas dimensões da morte, duas bandas: a morte que se dá na vida e a morte que se sabe na

morte mesma. Veja-se a seguinte passagem: ―Um homem morre mais que vive, sem susto de instantaneamente, e

está ainda com remela nos olhos, ranho moco no nariz, cuspes na boca, e obra e urina e restos de de-comer, nas

barrigas... Mas Marcelino Pampa era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente que lhe

fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer

parecer. E uma vela acesa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo alumiar a primeira indicação para a alma

dele – que se diz que o fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de lá, e da de cá...‖, ROSA, 2006,

pp. 581-582, grifo meu.

590 Cf. o medo que atribuímos anteriormente à morte. Segunro Riobaldo, ―Medo do que pode haver sempre e

ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo‖, Ibid., p. 152, grifo meu. Ver o item 3. A maneia de medo

e o enraizado afeto, no capítulo II. O destino de Riobaldo: do medo, da coragem.

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funda, mais espessa, mais calcada, mais embebida de espaço e tempo‖591

. Só assim o homem

pode renascer e tornar-se mais real, mais novo. Como diria Riobaldo, ―Sei que o cristão não

se concerta pela má vida levável, mas sim porém sucinto pela boa morte – ao que a morte é o

sobrevir de Deus, entornadamente‖592

. Ao longo da vida somos conduzidos a instantes onde é

inevitável falecer no meio de trevas, treva e escuridão semelhante àquela experimentada por

Riobaldo na encruzilhada das Veredas Mortas.

Para fechar suas considerações sobre a morte, o narrador nos diz algo muito importante

sobre o tempo:

Amendrontava-me, na morte, não o ter de perder o que eu possuía e era, ou fora,

essas esfumaduras. Não pelo presente, ou o passado. O que eu temia, era perder o

meu futuro: o possível de coisas ainda por vir, no avante viver, o que talvez longe

adiante me aguardava. A vida está toda no futuro.593

Seu medo da morte recaia apenas sobre a possibilidade de perder o seu futuro. Para ele não

importava perder o presente e o passado, o que fora, era e possuía: seu medo era perder o por

vir, o avante viver que o espera. Ele não diz se essa morte de que tem medo é aquela que

encerra o último suspiro594

, nem se é a morte que se dá no próprio decurso desta vida, vida

que se inicia com o primeiro choro595

. No entanto, o mais importante para ele era manter a

possibilidade mesma do futuro; é no futuro que está toda a vida, é nele que se encontram

nossas possibilidades. Diante disso, poderíamos perguntar como as possibilidades da vida são

determinadas pelo por vir, pelo avante viver? O que é esse futuro, um tal futuro inaugural? O

mais comum é determinar tais possibilidades pelo passado ou pelas ações do presente.

591

ROSA, 2013b, p. 272, grifo meu.

592 ROSA, 2006, p. 326.

593 ROSA, 2013b, p. 288.

594 Ibid., p. 261.

595 Ibid., p. 261.

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212

Para fecharmos essa discussão, considerando o que Riobaldo entende como tempo,

enquanto sempiternidade e finitude, pretendemos destacar ainda uma diferenciação

importante. Riobaldo distingue as horas de todos e as horas da gente. O contexto em que

Riobaldo irá distinguir esses dois modos de experienciação do tempo se refere ao instante em

que reencontra o menino, aquele menino da travessia do de-Janeiro. Vale dizer que o clima do

reencontro não foi da ordem do razoável comum, mas sim um reencontro que teve um

―estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo notaram‖596

. O que se estabeleceu de

maneira forte, com caráter de novo, que as pessoas notaram? O que notaram? Podemos dizer

que, naquele encontro, o que os outros notaram não era da ordem do razoável comum, não era

algo da ordem do ordinário viver. Todos os anos que se passaram, desde o tempo em que era

menino até este reencontro, parece não ter havido descontinuidade no tempo – talvez seja por

isso que as coisas para Riobaldo são sempre. Riobaldo descreve o reencontro e relembra o

toque da mão de Reinaldo, menino: ―O menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o

curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também. E ele sorriu. Digo ao

senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo‖597

. Podemos

perguntar: o que mão a mão se disse de adivinhado e conteúdo naquele instante? Ou disse

apenas o curto e ordinário? O sorriso do menino – agora o Reinaldo – perdurou, desde a

travessia do de-Janeiro. A partir daí é que Riobaldo irá distinguir as horas:

Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que

só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude

reunir relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto coisa assim se

ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o

que: o real roda e põe diante. – ―Essas são as horas da gente. As outras, de todo

tempo, são as horas de todos‖ – me explicou o compadre meu Quelemém. Que fosse

como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta

596

ROSA, 2006, p. 138.

597 Ibid., p. 138, grifo meu.

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213

e amortece – só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre:

peixinho pediu.598

Riobaldo está contando o que só conseguiu entender reunido, verdadeiramente entendido,

posteriormente àquele encontro.599

Talvez em seu range rede? Talvez contando sua travessia

para o compadre Quelemém? Talvez no próprio pacto? No ato do dispor-se do real, Riobaldo

não compreendeu a totalidade do que se atou. O que se deu, o que aconteceu naquele

instante? O que se atou foi o dispor-se do real.

A questão toda é que há nesse instante algo súbito e desconcertante. Acontece algo

desconcertante, porque novo, inesperado, imprevisto e que, ainda assim, já pertencia a

Riobaldo. Devemos prestar bastante atenção na caracterização desse dispor-se do real: ele

roda feito um redemoinho e põe diante de Riobaldo, de repente, as suas horas. Mas que

horas? Não obstante, o que pode haver de tão desconcertante nisso? O que há neste dispor de

tão importante que devemos cuidar de observar com máxima atenção? Nesse caso, o pôr-se do

real fez Riobaldo sentir o que é propriamente corpo: corpo é o bater do coração, o bem bater,

corpo é vida. Quando isso acontece, acontecem as horas da gente. O que é isto, as horas da

gente? É o que o real põe diante de nós, e que para alguém ser capaz de compreender em seu

todo, reunido, relembrado, demanda atenção e, às vezes, divinação. Às vezes, isso é o que

mão a mão diz, quando não diz o curto, mas sim, dizendo o extraordinário, o novo, diz as

horas da gente, com o coração bem batendo. Quando isso acontece, mão a mão diz a

598

Ibid., pp. 138-139.

599 Naquela época em que Riobaldo encontrou o menino/Reinaldo, obviamente, não havia ainda realizado o

pacto. Não havia ainda se tornado pactário para ser capaz de entrever essa totalidade do tempo, do seu tempo

próprio. Queremos chamar atenção para essa sutiliza, para esse pequeno detalhe, pois há uma tensão entre as

horas de todo tempo e as horas do todo tempo, assim como há uma tensão entre a sempiternidade e a finitude.

Não vamos discutir essa questão, por enquanto. Mas, acredito que esta seja uma chave importante de leitura, para

se entender, não só esta questão presente na obra GSV, mas também entender o que Guimarães Rosa validou

como sentido fundamentalmente do que queria conseguir realizar: libertar o homem do peso da temporalidade,

LORENZ, 1991, p. 84. Estaria ele empenhado, em GSV, a libertar o homem da hora de toda gente? Segundo a

pesquisadora Heloísa Vilhena de Araújo, ―Paradoxalmente, pois, ao tentar libertar o homem do tempo,

convertendo seu olhar para o paradigma do eterno, Guimarães Rosa insere-o [o homem] firmemente no tempo,

na história: faz dele o criador do tempo, o construtor da história‖, ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. Guimarães

Rosa: diplomata. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p. 47.

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adivinhação do tempo, adivinhação do destino, da vida em seu todo. Quando isso ocorre, se

dispõe o todo tempo, ou seja, o tempo que nos é mais próprio, o tempo em que a gente sente

mais o coração batendo, instante em que se vê tudo reluzir com clareza, pensando o passado

com ar de novidades. Esse entendimento, às vezes, ocorre somente em lugares demarcados.

os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar

de novidades. Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias, e de tantas

coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito

remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade.

Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o

todo tempo.600

No pacto, Riobaldo topava outra razão para coisas passadas e via o todo tempo, o todo tempo

de sua vida. As horas da gente são as horas do novo, que de novo tem apenas o olhar

extraordinário que reúne e mostra a totalidade de coisas passadas, adivinhando e inventando

lembrança de fatos esquecidos, são as horas em que há inauguração de prazos (princípio e

fim), em que o real roda e põe diante de nós o que nos é próprio, o que já era nosso e ainda

não sabíamos, mostrando o todo tempo, inesperadamente, subitamente, de repente. Nestes

instantes em que o real põe diante de nós, se impõe o próprio real enquanto destino, a

novidade, o que há de mais velho e mais fundamental: o homem humano enquanto travessia.

As horas da gente é o todo tempo. No que o real se põe diante de nós, em nossas horas,

ao esbarrar o todo tempo, esbarramos também com nossa finitude. Ver, isto é, esbarrar as

coisas atadas, reunidas significa entrever o todo tempo. Isto é o mesmo que ver a própria

finitude. Esbarrar com esse todo tempo significa o mesmo que dar-se conta da própria

finitude, ou seja, assim esbarrando, é possível entre-ver o todo tempo que se tem, se veem os

prazos, com princípio e fim. O todo tempo mostra, de repente, a totalidade da travessia, das

travessias das veredazinhas. Enquanto as horas de todos caracteriza-se como o trivial do

viver, de todo tempo, que tudo iguala, planifica, numa indistinção, as horas da gente

600

ROSA, 2006, p. 424.

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inauguram milagres, o milagre de entrever o todo tempo. As horas da gente são os instantes

raros e extraordinários em que o homem se distingue e conquista uma existência própria. Esse

é o instante em que se pode responder à pergunta: cheguei a existir 601

O que importa para nós, segundo o que foi destacado agora, é que conseguimos

esclarecer, em alguma medida, aquela experiência temporal que se iniciou com o pacto, o

princípio do prazo de Riobaldo. A experiência temporal de Riobaldo, dissemos, se explica

pela sempiternidade. Mas, essa mesma experiência deve ser pensada, também, ao mesmo

tempo, enquanto experiência de finitude. Assim, experimentando a própria finitude, enquanto

tempo inaugural, podemos entrever o modo de temporalização do tempo como liberdade e

ação, conforme estávamos empenhados em elaborar.602

Essa experiência temporal originária,

que é desencadeada pelo pacto, lança Riobaldo numa instância originária do tempo, que

concentra em si o caráter paradoxal do tempo, constituído de vida e morte, sempiternidade e

finitude. Esse é o puro tempo que Riobaldo vê, mole e quieto, em sua forma originária. Tudo

isso implica em pensar o tempo enquanto dimensão existencial da vida humana, atravessada, a

um só tempo, pela inauguração do novo e por sua apropriação na morte. Eis a relação entre

travessia e tempo; eis a vida perpassada por operações profundas, abrindo-se para o novo.

601

ROSA, 2001c, p. 128.

602 Cf. item 5. Desse capítulo, Um círculo: ação, liberdade, temporalidade.

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7. A hora da gente: o instante da coragem de decisão

Para concluir essa etapa da investigação, precisamos dar ainda um passo à frente no que

se refere à compreensão da experiência temporal de Riobaldo. Parece que agora estamos

preparados para enfrentar a questão da temporalidade, articulada como ação e liberdade.

Podemos dizer que, ao longo desse último capítulo, tanto ação como liberdade foram

compreendidas sob um fundo temporal. A dificuldade que tivemos em fixar os fenômenos

decorre, fundamentalmente, do fato de ação e liberdade aparecerem absolutamente no mesmo

instante em que o tempo se faz. O caso é que agora devemos assumir o desafio de elaborar

essa noção de temporalidade, sem perder de vista o mostrar-se de ação e liberdade. Elaborar

aqui tem o sentido de explicitar sua articulação estrutural. Assim, o nexo ontológico entre

tempo e liberdade poderá ser mais bem esclarecido, bem como sua relação com ação.

Precisamos, agora, questionar o tempo, para que nele consigamos ver a unidade daquele

círculo: liberdade, ação temporalidade. Para isso, devemos perguntar: como se estruturou o

instante em que Riobaldo conseguiu conquistar seu tempo próprio? Perguntamos pela

estruturação desse instante, querendo saber como comparecem nesse instante liberdade, ação

e, também, coragem. Quando tratamos no item anterior da tematização do todo tempo de

Riobaldo, conseguimos apenas entrever a dimensão temporal de sua travessia. Precisamos

tentar explicitar agora o desdobramento daquilo que se deu no pacto, para fixarmos o que a

investigação foi capaz de elaborar até aqui.

Para aproveitar ainda as poucas linhas que nos restam, devemos formular a questão que

deve orientar esse nosso passo reunidor. A questão: como se dá temporalmente a unidade da

estrutura temporal que, em sua forma, seria capaz de revelar ao mesmo tempo o fazer-se de

liberdade e a possibilidade de assumir uma ação existencialmente própria e finita numa

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temporalização de vida? Em outras palavras: como poderá ser vista a temporalização do

tempo, existencialmente compreendido, para que nesta estrutura se dê a ver, igualmente, a

unidade de uma vida, entendida em sua liberdade e em seu tornar-se a ação de uma

realização própria? Numa forma ainda mais simples, podemos perguntar: como se dá a

temporalização do tempo em sua forma originaria e própria? Com tal questionamento, nosso

objetivo será tentar visualizar a totalidade do que poderemos nomear como sendo a

experiência temporal de Riobaldo, considerando liberdade, ação, temporalidade e, o que não

poderia deixar de faltar, a afinação da coragem. Assim, será demonstrada a circularidade e

pertencimento dessas dimensões da vida. Tudo isto deverá aparecer enquanto um único

fenômeno, visualizado a partir da unidade estrutural do instante603

, entendido como a

experiência temporal desencadeada no pacto. Como faremos isto? Descrevendo a estrutura

existencial da coragem de decisão, entendendo-a como o fenômeno da decisão antecipadora,

descrito pela analítica existencial do pensador Martin Heidegger.

Em sua estruturação existencial, este acontecimento temporal é capaz de articular numa

totalidade tempo, liberdade e ação, afinados por um afeto, um pathos especial. Na verdade, no

caso de Riobaldo, o seu estado de humor é que abriu a possibilidade mesma dessa totalidade

temporal. Nesse instante, a gênese de tempo se faz visível de modo originário, à medida que

se torna visível como articulação possibilitadora de uma ação existencial fundamental, isto é,

de realização de vida própria; nele, no instante, vemos a liberdade se fazer, mostrando-se

enquanto um horizonte temporal projetado, apelando para a ação existencial própria. Para

descrever essa experiência e explicitar o que ocorre estruturalmente nesse acontecimento

603

O que pretendemos visualizar nesta questão já foi descrito e elaborado na ontologia fundamental de Martin

Heidegger, como instante. Em Ser e Tempo, Heidegger chama de instante (Augenblick) ―a atualidade própria,

isto é, a atualidade mantida na temporalidade própria‖, Id., 2008, p. 423. Já em Os conceitos fundamentais da

metafísica, ―O instante não é nada além da visualização do caráter de decisão, no qual se abre e se mantém

aberta a situação plena de um agir‖ HEIDEGGER, 2011, p. 196, e ainda ―o piscar de olhos essencial ao instante

aponta para um olhar de um tipo singular, um olhar que denominamos o olhar da decisão de agir na respectiva

situação, na qual o ser-aí [Da-sein] se encontra‖, Ibid., pp. 198-199. Em algumas passagens, Heidegger trabalha

o instante como instante do agir essencial (Augenblick des Wesentlichen Haldelns), Ibid., p. 199.

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originário de tempo, que reúne tempo, liberdade e ação, partiremos do fenômeno que induz o

homem a boas ações próprias, o que, segundo Riobaldo, foi sua coragem de decisão.

Segundo o pensador Martin Heidegger, a coragem de decisão de Riobaldo recebe o nome de

decisão antecipadora. É a partir daí que o tempo se faz visível dá originariamente.604

O fenômeno da decisão já apareceu anteriormente em nossa investigação, encoberto

pela formulação de um desafio: assumir a tarefa de concretização de uma possibilidade

própria605

. Nesta tarefa, está subentendida a expressão formal para a decisão, que, segundo a

elaboração de Martin Heidegger seria o ―projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o

ser e estar em dívida mais próprio‖606

. Em outras palavras, estar em dívida é assumir a

inocência da culpa607

. Essa tarefa, para que seja assumida pelo homem requer uma condição

fundamental. Em primeiro lugar, é preciso tornar-se disponível para acatar

fundamentalmente um chamado silencioso, que convoca o homem a realizar um modo de ser

próprio e extremamente singular. Esse chamado, esse apelo608

surge de uma forma irresistível

e se propõe a dar sentido à totalidade da vida, tornando-a plena de sentido. Esse apelo clama

por uma realização, de modo que é somente numa ação existencial específica que toda a

realidade ganha sentido e completude; é somente atendendo a este apelo que a vida se faz

toda, ainda que seja por um instante. Isto foi o que Riobaldo experimentou quando entendeu o

todo tempo de sua vida, no instante do pacto. Lá nas Veredas Mortas, naquele instante,

604

Cf. Heidegger no §61 de Ser e Tempo, ―Fenomenalmente, a temporalidade é experimentada de modo

originário no ser-todo em sentido próprio da presença, no fenômeno da decisão antecipadora. Se a

temporalidade aí se diz originária, então, presumivelmente, a temporalidade da decisão antecipadora constitui

um modo privilegiado do si-mesmo. A temporalidade pode temporalizar-se em diferentes possibilidades e em

diversos modos. As possibilidades fundamentais da existência, propriedade e impropriedade da presença,

fundam-se, ontologicamente, em possíveis temporalizações da temporalidade.‖, HEIDEGGER, 2008, p. 386,

grifo do autor.

605 Cf. item 5. deste capítulo, Um círculo: ação, liberdade, temporalidade.

606 HEIDEGGER, 2008, p. 378.

607 Cf. item 1. deste capítulo, O Pacto e a culpa.

608 Heidegger compreende o apelo como uma voz da consciência, entendida existencialmente. Esse apelo é ―um

modo de fala [Rede]‖, que ―possui o caráter de interpelação da presença para o seu poder-ser-si-mesmo mais

próprio e isso no modo de fazer apelo para o seu ser e estar em dívida mais próprio.‖, ibid., p. 347. Neste

sentido, o apelo é um apelo para a cura, cf. ibid., p. 367.

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mostrou-se para Riobaldo sua única possibilidade de realização de vida: ser chefe Urutu

Branco. Isto quer dizer que este apelo apela para a realização de uma possibilidade específica

de ser que, tão só e exclusivamente nela, nesta realização, será possível experimentar o vigor

e a potência do que chamamos vida própria.609

O apelo, portanto, exige uma escuta

essencial610

– nem sempre esta convocação se faz claramente audível, entendível.

Em segundo lugar, decidir-se por dar ouvidos a esse apelo exige tornar-se apto a ser

afinado por uma tonalidade afetiva que propicie acatar tal escuta fundamental no seio da

liberdade. Esta afinação exige uma grande capacidade de suportar sua própria liberdade.611

Esta aptidão é uma prontidão a estar afinado de um tal modo que, a partir dessa afinação, a

liberdade apareça radicalmente como a possibilidade de um fundar o próprio ser numa

possibilidade própria, autêntica. Essa tonalidade afetiva é explorada em Ser e Tempo como

angústia. Em Os Conceitos Fundamentais da Metafísica, ela é explorada como tédio

profundo. Na formulação de Riobaldo, essa tonalidade afetiva fundamental é tratada como

coragem612

. Eis a prontidão de Riobaldo, a prontidão para ser coragem. A coragem, de

Riobaldo, nada mais é do que uma prontidão para ser. Sem importar aqui qual tonalidade

afetiva fundamental deve afinar o homem em geral, o fato é que deve haver uma prontidão

para uma tal afinação fundamental, que irá exigir do homem uma confrontação com sua

609

Este é justo o caráter da liberdade que tentamos deixar claro no item 3. deste capítulo, Liberdade: alegria e

coragem de um caminhozinho, pois, segundo Heidegger, a liberdade ―apenas se dá na escolha de uma

possibilidade, ou seja, implica suportar não ter escolhido e não poder escolher outras‖, ibid., p. 365, grifo meu.

610 Esse modo de escuta corresponde a ―um tomar conhecimento do fato de ‗estar em dívida‘‖, ibid., p. 367. Esta

dívida caracteriza o modo de ter de ser, ou seja, existir, isto é, ser no modo de ser da cura. Cf. Heidegger, ―A

escuta legítima da interpelação equivale a um compreender de si em seu poder-ser mais próprio, ou seja, em se

projetando para o seu poder-ser e estar em dívida mais próprio.‖, ibid., p. 368.

611 Cf. §65 de Ser e Tempo, ―a decisão antecipadora é o ser para o poder-ser mais próprio e privilegiado. Isto só

é possível caso a presença possa de todo modo vir-a-si em sua possibilidade mais própria e, deixando-se vir-a-si,

suporte a possibilidade enquanto possibilidade, ou seja, exista‖, ibid., p. 409.

612 Acerca do caráter fundamental da coragem, não se pode perder de vista a ambiguidade e o paradoxo que

orientam a composição da obra GSV. Quando se fala em coragem, está sempre subentendida a presença do

medo. Ambos, medo e coragem, persistem enquanto modos constitutivos e inseparáveis do sentir de Riobaldo.

Por isso Riobaldo afirmou: ―para principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive coragem‖, ROSA,

2006, p. 127. Diz também, em outro momento, que ―em hora justa e certa, nunca tive medo‖, ibid., p. 160.

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liberdade extrema.613

Esta confrontação extrema com a sua própria liberdade radical não se dá

de modo banal, impessoal, cotidiano. O modo de dispor-se diante dessa liberdade inaugural

solicita do homem um esforço que jamais se encerra, porque exige sempre e a cada vez um

fundar-se, a cada instante, isto é, é preciso existir: não se pode ter os descansos do ar nem é

possível permitir-se não se ser614

. Em outras palavras, pode-se dizer que esta prontidão deve

assumir o desafio de sempre e a cada vez ter de ser o seu próprio fundamento.615

O fenômeno desta decisão existencial, a coragem de decisão de Riobaldo, que exige a

escuta do apelo fundamental para a atividade de realização de vida própria e ainda a

afinação por uma tonalidade afetiva que conduza ao seio da liberdade, articula-se de modo

igualmente originário com o fenômeno da antecipação. Mas antecipação aqui não quer

controlar os eventos, a travessia, seu início e seu fim. A estrutura concreta do antecipar se

refere especificamente à antecipação da morte, ou seja, diz respeito diretamente ao dar-se

conta da finitude humana. A antecipação da finitude indica concretamente uma aceitação da

finitude como condição essencial da vida. Aceitando a finitude como constitutiva da vida, isto

implica na radicalização mesma da decisão existencial, que impulsiona e concretiza a

realização de um modo de ser próprio. É por isso que na antecipação sobrevém ao homem a

613

Cf. Heidegger, o tédio profundo ―jamais conduz ao desespero sem uma transformação essencial de si mesmo,

na qual ele salta para o interior de uma outra tonalidade afetiva‖, HEIDEGGER, 2011, p. 184. Ver também a

passagem onde ele declara o caráter não absoluto de uma tonalidade afetiva na abertura radical de liberdade:

―Toda e qualquer tonalidade afetiva fundamental autêntica libera e aprofunda, ata e desata as outras. [...]

Portanto, é igualmente equivocado absolutizar uma tonalidade afetiva fundamental como a única e relativizar

todas as outras. Este procedimento é equivocado‖, ibid., p. 235.

614 ROSA, 2006, p. 420.

615 Cabe aqui advertir que este fundar está longe de ser algo da ordem da subjetividade, pois este fundar sempre

deve dar conta de sua situação fática concreta, e, portanto, da condição do homem de ser lançado e jogado no

mundo. Cf. Heidegger, ―A decisão não desprende a presença [Dasein], enquanto ser-si-mesmo mais próprio, de

seu mundo, ela não a isola num eu solto no ar‖, HEIDEGGER, 2008, p. 379. Cf. também, ―Na decisão está em

jogo o poder-ser mais próprio da presença que, lançado, só pode projetar-se para possibilidades faticamente

determinadas. O decisivo não se retira da ‗realidade‘ mas descobre o faticamente possível‖, ibid., p. 381. E

ainda, ―A decisão conduz o ser do pre à existência de sua situação. A decisão, porém, delimita a estrutura

existencial do poder-ser próprio, testemunhado na consciência, isto é, do querer-ter-consciência. Nele

reconhecemos a compreensão adequada do interpelar. Com isso, torna-se inteiramente claro que o apelo da

consciência, o fazer apelo ao poder-ser, não propõe nenhum ideal vazio de existência, mas faz apelo para a

situação‖, ibid., p. 382. Assim, não é o homem que determina suas possibilidades, mas na verdade, apenas

atende ao que lhe foi dado.

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possibilidade de agir essencial e propriamente, à medida que se compreende adequadamente a

finitude, isto é, a morte. Morte entendida como vida: a vida da morte, que é tempo.616

A finitude, além de ser um fato da vida, não podendo ser de outro modo, constituindo

toda e qualquer vida, é o que nos dá condições de apreender a totalidade do existir. A

antecipação, na verdade, não faz abreviar o encaminhamento de uma realização de vida, mas

sim torna possível o ser-todo do homem num instante inaugural. É isto o que a antecipação

faz: ao tornar a ação do homem uma realização existencialmente essencial e própria, com

isso é promovida a abertura da liberdade originária, intensificando neste instante, a

originariedade do fenômeno da temporalidade, o que unifica as ekstases temporais (por-vir,

atualidade, vigor-de-ter-sido)617

. Ou seja, se a ação existencial e própria ocorre, já se deu,

igualmente, temporalidade e liberdade próprias. E somente para lembrar: entendemos ação

existencial como sendo o cumprimento de uma travessia. Entendida deste modo, a finitude

nada mais é do que a condição de limite presente na realização de uma vida, dando-nos a

possibilidade de visualização do ser-todo de uma vida, do todo tempo, mesmo ainda que a

morte fatal e ceifeira não tenha ocorrido. Em outras palavras, estes são fenômenos que

compõem um mesmo movimento, uma mesma ação: o viver.

Neste sentido, a antecipação da morte, da finitude, é entendida como uma tomada de

consciência do limite máximo que tornará urgente a realização de uma possibilidade vital e

própria, ou seja, tornará possível a realização de um destino. Na antecipação da finitude, nessa

visualização, a possibilidade mais própria será compreendida como irremissível, insuperável,

certa e indeterminada. A antecipação da finitude dá ao homem o sentido de seu poder-ser

mais próprio, uma vez que tal antecipação abre a possibilidade de ser num modo de ser mais

616

Cf. Riobaldo, ―Tempo é a vida da morte: imperfeição. Bobices minhas – o senhor em mim não medite‖,

ROSA, 2006, p. 587.

617 Cf. HEIDEGGER, 2008, p. 410-411.

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próprio. Isto porque o modo de ser si-mesmo cotidiano do homem se torna evidente enquanto

um modo de ser impessoalmente-si-mesmo. E é neste mesmo movimento de reconhecimento

da impessoalidade, que a antecipação da finitude dá ao homem a clareza e a concessão de

retirar-se do modo de ser impessoal, para conquistar sua propriedade. E Riobaldo possui essa

clareza, quando afirma, por exemplo, que ―Um ainda não é um: quando ainda faz parte com

todos‖618

. Ou ainda quando fala das horas da gente, opondo às horas de todos, conforme

destacamos no item anterior: as horas de todos

me explicou o compadre meu Quelemém. Que fosse como sendo o trivial do viver

feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só rara vez se

consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu.619

A impessoalidade é como essa água que amortece toda diferenciação e propriedade, ajuntando

tudo e todos numa indiferença. Esta clareza, à medida que é suportada e mantida

existencialmente, através do afinação da coragem, impulsiona o homem a realizar sua

possibilidade mais própria. Portanto, é através desse poder-ser mais próprio no modo de ser

da finitude que o homem encontra o sentido de sua auto-realização.

Esse poder-ser mais próprio, que torna o um diferente de todos, saindo do ajuntamento

e amortecimento, tal como peixe pedindo comida com a cabeça fora d’água, implica na

compreensão de que essa possibilidade se caracteriza como irremissível, insuperável, certa e

indeterminada. O poder-ser mais próprio é irremissível, pois ele não poderá ser confiado a

mais ninguém. A tarefa de concretização do poder-ser só poderá ser confiada ao próprio

homem. Isto significa que o poder-ser só poderá ser assumido por si mesmo620

, isto é, somente

o homem, um homem poderá garantir a realização de sua possibilidade mais própria, à

medida que ele garante para si essa possibilidade, ou seja, somente enquanto se encontrar

618

ROSA, 2006, p. 185.

619 Ibid., pp. 138-139.

620 HEIDEGGER, 2008, p. 340.

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aberto nesta abertura. Neste sentido, a antecipação, ao tornar a irremissibilidade da finitude

uma condição da vida, é nesta mesma compreensão que tal antecipação torna possível a

singularização do homem numa realização própria. O tornar-se próprio é irremissível, do

mesmo modo como a culpa621

de Riobaldo não poderia ter sido expiada por mais ninguém, a

não ser por ele mesmo.

A possibilidade mais própria e irremissível, que se dá na antecipação da finitude é

também insuperável. Tomar ciência da insuperabilidade da morte torna o homem ciente de

sua impendência: a sua possibilidade mais extrema, sua finitude, sua morte, sempre espreita.

Ela é iminente. Como diz Riobaldo, a “morte é corisco que sempre já veio”622

. Não custa

dizer que a finitude é a possibilidade mais extrema, porque é na finitude que o homem irá

alcançar sua totalidade: o que foi ou será realizado, constitui sua máxima realização, a ação

perfeita; além e aquém disso, nada mais. É o fato mesmo de espreitar que sempre levará o

homem a se realizar segundo sua possibilidade mais extrema, pois a finitude não poderá ser

superada, porque finitude é também limite. Assim, a antecipação impede o homem de se

perder na impessoalidade, dando a ele a possibilidade de ―compreender e escolher em sentido

próprio as possibilidades fáticas que se antepõem às [possibilidades] insuperáveis‖623

.

A finitude, além de ser a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável, é

também certa e indeterminada. Certa como há caminhozinhos certos que nos são destinados,

porém, indeterminada, assim como não sabemos o real de nossa travessia. A morte está em

edital, só não se sabe o dia. A certeza que cotidianamente se atribui à finitude geralmente

enfraquece o estar-lançado na morte. Cotidianamente a morte é certa, porque não há quem

duvide da mortalidade do homem. No entanto, tal certeza encobre o estar-certo da morte,

621

Cf. item 1. deste capítulo, O Pacto e a culpa.

622 ROSA, 2006, p. 215.

623 HEIDEGGER, 2008, p. 341.

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224

porque ela é postergada para um futuro que ainda irá chegar.624

Assim, segundo a apreensão

imprópria da morte, não se pensa na morte hoje, pois sua visita é ainda distante demais. Estar-

certo da finitude humana implica necessariamente uma atitude frente ao caráter de

irremissibilidade e insuperabilidade da morte, que impõe aquela tarefa de ser a possibilidade

mais própria. Isto não ocorre na certeza cotidiana da morte imprópria. Assim compreendida, a

certeza da morte é encoberta pelo escape da morte. Ter certa a morte num modo de

impessoalidade não garante o estar-certo. Ter objetivamente uma certeza apodítica da morte

do outro não garante uma atitude originária ante a própria finitude, uma vez que a certeza da

morte deve ser a certeza da minha morte.

Isso vemos também em GSV, pois a massa de jagunços não pensava em morte. Como

diz Riobaldo: ―Vez de um, vez: todos e todos. Falo o dito de jagunço: que eles mesmos não

conseguiam saber se tinham algum medo; mas, em morte, nenhum deles pensava‖625

. Isto

corrobora a ideia de que nada vale a certeza inadequada e imprópria da morte, que é

construída por dados empíricos cotidianos. Sabe-se da morte, por ocorrências de morte, mas

isto não é estar-certo propriamente. A certeza da morte que encobre e enfraquece sua

impendência retira da morte o seu caráter de certeza. Este modo inadequado de certeza

―encobre o que há de característico na certeza da morte, ou seja, que é possível a todo

instante‖626

. E é deste modo que se dá a indeterminação da morte: por estar a todo tempo

presente enquanto verdade da abertura, a morte é certa, porém indeterminada.

Inadequadamente, o modo de ser impessoal encobre o constante acossar da morte, fugindo de

sua indeterminação, prorrogando a possibilidade da morte. Na antecipação, portanto, o

homem deve estar aberto à ameaça da morte, mantendo-se nesta ameaça.627

Isto não quer

624

Cf. HEIDEGGER, 2008, p. 332.

625 ROSA, 2006, p. 551

626 HEIDEGGER, 2008, p. 334.

627 Cf. Ibid., p. 343.

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225

dizer que o homem deva campear a morte628

, não se trata de caçar morte, mas querer a

coragem maior629

e não ter medo em hora justa e certa630

.

Diante de tudo isso, o que a decisão antecipadora, ou melhor, a coragem de decisão de

Riobaldo poderá dizer da temporalidade que tanto vimos perseguindo? O que tudo isso diz do

instante, que caracteriza a unidade da experiência temporal originária de Riobaldo? Segundo a

exposição da questão elaborada anteriormente, perguntamos: como poderá ser vista a

temporalização do tempo, para que nesta estrutura se dê a ver a unidade de uma vida,

entendida em sua liberdade e em seu tornar-se a ação de uma realização própria (travessia)?

O tempo se temporaliza por ekstases temporais. Heidegger nomeia os fenômenos por-

vir (Zukunft), vigor de ter sido (Gewesenheit) e atualidade (Gegenwart) como as ekstases

fundamentais da temporalidade originária. Estas são dimensões de temporalização do tempo.

É justamente ao fenômeno de unificação dessas ekstases que ele irá chamar propriamente

temporalidade.631

Dentre as três ekstases, o por-vir merece uma primazia especial, pois é

justamente a partir do por-vir que o homem poderá vir-a-si mesmo, propriamente. Este

privilégio se assemelha à concepção que destacamos anteriormente acerca da relação vida-

futuro, que afirma que a vida está toda no futuro632

. O por-vir é um modo de temporalização

que permite ao homem a visualização do fundo nadificante da liberdade. O por-vir, é uma

abertura, que abre a possibilidade para a possibilidade de uma retomada, de uma reconquista

do próprio, do caminho próprio e necessário. Na antecipação para a finitude, que é um modo

628

Cf. Riobaldo, ―Será que um esmorece, por medo ter? Eu não campeava a morte. Seguro nasci, sou feito‖,

ROSA, 2006, p. 210.

629 Cf. Riobaldo, ―Eu não estava caçando a morte – o senhor bem me entenda. Eu queria era a coragem maior‖,

ibid., p. 589.

630 Cf. ibid., p. 160.

631 HEIDEGGER, 2008, p. 410.

632 ROSA, 2013b, p. 288.

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de ser porvindouro do homem, o homem torna-se aberto na abertura, no ser lançado no modo

de ser-no-mundo, e assim libera-se sua liberdade, possibilidade para possibilidade.

Isto significa que, na antecipação, ao compreender a constituição finita da vida, abre-se

a possibilidade do poder-ser mais próprio, à medida que o por-vir, ao sobrevir ao homem,

recupera seu passado, isto é, sua origem, e o lança para uma retomada da origem enquanto

decisão existencial. Assim, há um encontro entre o por-vir e o vigor de ter sido, numa tensão,

que ao se sustentar como tal, instaura a temporalização da atualidade. Esta articulação

tensional do por-vir e do vigor de ter sido parece estar presente na concepção de Riobaldo

acerca do tempo, quando expõe sua ideia de ―tudo só ser o passado no futuro‖633

. Seu

presente equivale à atualidade. Esta atualidade é que irá exigir do homem uma ação

existencial, que tem sua origem a partir do interior da liberdade. Neste sentido, o vigor de ter

sido torna claro o seu precisar ser e fazer atualmente. Na sobreveniência do por-vir, aponta-se,

ou melhor, projeta-se, pela finitude, um modo de ser que se revela como sendo um precisar

ser o que já desde sempre se foi, no vigor de ter sido. O vigor de ter sido é, deste modo,

retomado, recuperado enquanto origem, a partir de sua necessidade de reconquista do até

então realizado. Esta reconquista é pura e simplesmente a operação da decisão e da ação

voltadas para a espera ativa do ter de ser numa situação: ou seja, o homem tem de ser numa

atualidade, na qual já se abriu o ser-junto ao que vem ao encontro no mundo circundante. Isto

faz com que a reconquista do ter sido se torne o poder-ser singular e próprio numa atualidade

atualizante do vigor de ter sido e do por-vir.

Este fenômeno da temporalidade é desconcertante frente à compreensão vulgar do

tempo, o que chamamos cotidianamente de passado, presente e futuro, ordenados numa linha

cronológica linear, homogênea, impessoal, objetiva, cuja passagem é medida pelos infinitos

633

ROSA, 2006, p. 287.

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agoras. Na verdade, o homem é a própria temporalidade.634

E isto nos diz que o modo

originário de lidar com o tempo não é a medição, a de-marcação do tempo. Originariamente,

o tempo não possui extensão, tal como é tratado pelo conceito vulgar de tempo.635

Na

temporalidade, não há fragmentação do tempo, pois que o tempo não é objetivo, nem

subjetivo, mas sim existencial. Essa tese é confirmada pelo caráter sempiterno do tempo, que

destacamos no item anterior, afirmando que, para Riobaldo as coisas ―não têm hoje e

ant’ôntem amanhã: é sempre‖636

. O tempo, originariamente compreendido, não é um ente no

qual se localiza o homem: ser homem é já ser tempo.637

Tempo, assim, diz o mesmo que

homem, ou ainda, liberdade, ou ainda travessia.

Para concluirmos, se acaso essas nossas reflexões estiverem corretas, e se com tudo isso

o que dissemos estiver demonstrada a circularidade entre tempo, liberdade, ação e coragem,

poderemos dizer, segundo a fala de Riobaldo:

liberdade/ação/tempo/coragem/homem – aposto – ainda é só alegria de um pobre

caminhozinho a se atravessar, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma

verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco

para liberdade/ação/tempo/coragem/homem se fazer.

634

Cf. Heidegger, em sua Conferência de 1924, pronunciada em Marburgo, O conceito de tempo, Heidegger

afirma que ―O ser-aí, apreendido em sua extrema possibilidade de ser, é o próprio tempo, não está no tempo‖,

HEIDEGGER, Martin. O conceito de tempo. In: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP. n. 2.

São Paulo: USP, 1997, p. 37.

635 Cf. HEIDEGGER, 1997, p. 27.

636 ROSA, 2006, p. 140.

637 Isto é o que se pode concluir ainda da passagem contida na Conferência Do Fundamento, pronunciada por

Gilvan Fogel, que trata de um desdobramento da frase de Pindaro, ―Vem a ser o que tu és‖. Segue a passagem

que trata de caracterizar o vocábulo instante: ―Instante, aqui, não está falando de ―agora‖ (presente) que cinde,

separa (o ―chronismós"), que disjunta, opõe e contra-põe um ―antes‖ (passado) e um ―depois‖ (futuro). Não,

instante é o nome que integra ou compõe passado (antes), presente (agora) e futuro (depois) na simultaneidade

de um gesto, de um ato, que é o do viver no imperativo do fazer-se do seu poder-ser. ―Instante‖ é o nome da

harmonia dissonante dos momentos contrários e convergentes (as dimensões do tempo – passado, presente,

futuro) do ato de existir – que é o ato de decidir o que será, a partir do que precisa ser, por já ser só este poder-

ser.‖, FOGEL, Gilvan. Do fundamento. In: Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1998, p.

186.

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228

Será o caso de recuperar nossas reflexões testando cada uma das hipóteses. Não obstante, por

ora, isto terá de ficar apenas ressoando. Por ora, será o caso de aceitar a finitude, o não-saber,

o beco insuperável do fim.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Riobaldo queria entender de muita coisa, e contou o que não entendeu de sua vida. Por

sua vez, nossa investigação queria questionar o saber e o não-saber de Riobaldo. Em alguma

medida, conseguimos corresponder às questões que orientaram inicialmente o seu projeto

compreensivo. Fomos capazes também de fazer outras maiores perguntas que não estavam

previstas. Porém, há muito o que corresponder ainda. Há muitos outros pactos a se contratar.

De todo modo, vimos que coragem é a hora propícia, é o tempo do ser-tão que todo

homem humano deve conquistar, a partir da abertura e do atravessamento da caminhada

própria. Na verdade, medo e coragem apontam para um mesmo fundo originário, o mesmo

fundo de onde aparece liberdade, ação temporalidade. O nome desse fundo é homem, o fundo

sem fundo, o oco que é a humanidade do homem. Vimos também que a apropriação do

destino de Riobaldo se cumpriu como sina, apropriando o caminho próprio de sua liberdade.

A apropriação de seu destino mostrou-se como o movimento de inserimento naquele círculo

de coragem em que Riobaldo já desde sempre esteve. Assim, quanto mais se afunda nesse

círculo de liberdade, ação e temporalidade, mas se faz cumprir destino. A suspeita inicial

estava certa: ação e liberdade são noções que estão de fato integradas. Ação e liberdade são

dimensões da realidade que, na verdade, devem ser compreendidas como a própria realização

da temporalidade do homem. Esta afirmação mostra um esboço do que vem a ser a vida do

homem enquanto destino de existir, destino de liberdade e destino de ação, em uma palavra,

destinação.

Todo o tempo, buscamos ver um único e mesmo fenômeno: o humano, destinando-se

como acontecimento extraordinário. Proteger a realização desse acontecimento que é o

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humano é a tarefa de todo homem. Salvaguardar e promover o surgimento do homem humano

em sua temporalidade própria e assumir a tarefa de consumar a referência do ser que nos foi

dada como possibilidade. Este deve ser o empenho de todo e qualquer homem: dar corpo ao

suceder, corporificando tempo, dando ao homem o corpo que lhe cabe, seu corpo histórico,

compondo o sentido histórico do corpo temporal que é. Esta é a tarefa que o homem humano

deve assumir como destino.

Ser homem é tão somente ser no destino de salvaguardar esta extraordinária

possibilidade, de ser propriamente um destino, uma destinação de ser. Está nisto sua distinção

e grandeza. A grandeza, a nobreza do homem é assumida na tarefa de realizar sua liberdade,

entendida como possibilidade e limite, tão somente realizando aquilo que precisa ser

realizado, tornando-se o que já desde sempre se é: liberdade, ação, temporalidade: destino de

ser homem. Portanto, ser homem, ser travessia, ser tempo, ser-tão, é simplesmente ser homem

humano.

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