selfies de um dizer: a poética de zack magiezi no instagram1 · participação e como uns e outros...

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Selfies de um dizer: a poética de Zack Magiezi no Instagram 1 Jacob dos Santos BIZIAK 2 Resumo Em 2016, Zack Magiezi lançou Estranherismo, uma coletânea de textos poéticos publicados em seu perfil no Instagram, rede social marcada, principalmente, pelo compartilhamento de fotos entre os usuários. Importante, aqui, destacar a origem do trabalho do poeta, uma vez que isso revela interessantes elementos de reflexão sobre a relação entre política e estética nos meios digitais. Como já parece sugerir o título do livro, os pequenos textos de Magiezi caracterizam-se por estranhar, suplementar (no sentido derridiano) sentidos os quais se acreditavam estabilizados pelas repetições do uso da linguagem. Pensamos que a prática poética de Magiezi proporciona um meta- pensamento da linguagem, de maneira a se desconstruir e reconsiderar sentidos aparentemente estáveis. Dessa forma, o que teríamos é o uso da plataforma digital do Instagram de maneira a se problematizar politicamente, por meio da linguagem e da prática poéticas, o habitus dos usuários da rede social e do próprio sujeito contemporâneo. Haveria, então, uma estetização do meta-pensamento político; algo próximo da “partilha do sensível” discutida por Rancière (2009), na qual as práticas artísticas modernas assumiriam poder de exemplaridade política. Palavras-chave: Instagram. Política. Estética. Análise do discurso. 1 Trabalho apresentado no simpósio Os discursos da/na mídia: efeitos de sentido, sujeito e sociedade”, coordenado por Dantielli Assumpção Garcia (UNIOESTE) e Giovanna Benedetto Flores (UNISUL) durante a ABRALIN, realizado de 06 a 10 de março de 2017, na UFF (Universidade Federal Fluminense). Artigo desenvolvido dentro do âmbito de pesquisa de pós-doutorado pela USP de Ribeirão Preto (sob supervisão da Professora Livre Docente Lucília Abrahão e Souza); pesquisador membro do E- L@DIS: Laboratório Discursivo (FFCLRP/USP), em que coordena o grupo de estudos “Gêneros sexuais e discurso”; coordenador e pesquisador do G.E.Di (Grupo de Estudos do Discurso, do IFPR, campus Palmas). Dedico à minha prima Natália Biziak este artigo, cuja escrita se fez no dia em que recordamos um ano de sua morte: foi um momento intenso de circulação de memória, muito dela reverbera nesta escrita. 2 Instituto Federal do Paraná, IFPR, Campus Palmas, Colegiado de Letras, Palmas, Paraná, Brasil - [email protected].

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Selfies de um dizer: a poética de Zack Magiezi no Instagram1

Jacob dos Santos BIZIAK2

Resumo

Em 2016, Zack Magiezi lançou Estranherismo, uma coletânea de textos poéticos

publicados em seu perfil no Instagram, rede social marcada, principalmente, pelo

compartilhamento de fotos entre os usuários. Importante, aqui, destacar a origem do

trabalho do poeta, uma vez que isso revela interessantes elementos de reflexão sobre a

relação entre política e estética nos meios digitais. Como já parece sugerir o título do

livro, os pequenos textos de Magiezi caracterizam-se por estranhar, suplementar (no

sentido derridiano) sentidos os quais se acreditavam estabilizados pelas repetições do

uso da linguagem. Pensamos que a prática poética de Magiezi proporciona um meta-

pensamento da linguagem, de maneira a se desconstruir e reconsiderar sentidos

aparentemente estáveis. Dessa forma, o que teríamos é o uso da plataforma digital do

Instagram de maneira a se problematizar politicamente, por meio da linguagem e da

prática poéticas, o habitus dos usuários da rede social e do próprio sujeito

contemporâneo. Haveria, então, uma estetização do meta-pensamento político; algo

próximo da “partilha do sensível” discutida por Rancière (2009), na qual as práticas

artísticas modernas assumiriam poder de exemplaridade política.

Palavras-chave: Instagram. Política. Estética. Análise do discurso.

1 Trabalho apresentado no simpósio “Os discursos da/na mídia: efeitos de sentido, sujeito e sociedade”,

coordenado por Dantielli Assumpção Garcia (UNIOESTE) e Giovanna Benedetto Flores (UNISUL)

durante a ABRALIN, realizado de 06 a 10 de março de 2017, na UFF (Universidade Federal

Fluminense). Artigo desenvolvido dentro do âmbito de pesquisa de pós-doutorado pela USP de Ribeirão

Preto (sob supervisão da Professora Livre Docente Lucília Abrahão e Souza); pesquisador membro do E-

L@DIS: Laboratório Discursivo (FFCLRP/USP), em que coordena o grupo de estudos “Gêneros sexuais

e discurso”; coordenador e pesquisador do G.E.Di (Grupo de Estudos do Discurso, do IFPR, campus

Palmas). Dedico à minha prima Natália Biziak este artigo, cuja escrita se fez no dia em que recordamos

um ano de sua morte: foi um momento intenso de circulação de memória, muito dela reverbera nesta

escrita. 2 Instituto Federal do Paraná, IFPR, Campus Palmas, Colegiado de Letras, Palmas, Paraná, Brasil -

[email protected].

Abstract

In 2016, Zack Magiezi launched Estranherismo, a collection of poetic texts published in

his profile on Instagram, a social network marked mainly by the sharing of photos

among users. It is important here to highlight the origin of the poet's work, since this

reveals interesting elements of reflection on the relationship between politics and

aesthetics in digital media. As the title of the book seems to suggest, Magiezi's little texts

are characterized by strange, supplementary (in the Derridean sense) senses which

were believed to be stabilized by repetitions of the use of language. We think that

Magiezi's poetic practice provides a meta-thought of language, in order to deconstruct

and reconsider seemingly stable senses. Thus, what we would have is the use of

Instagram's digital platform in order to problematize politically, through poetic

language and practice, the habitus of social network users and the contemporary

subject itself. There would then be an aesthetization of political metaphysics; something

close to the "sensible sharing" discussed by Rancière (2009), in which modern artistic

practices would assume power of political exemplarity.

Keywords: Instagram. Policy. Aesthetics. Discourse analysis.

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.

(Carlos Drummond de Andrade)

O famoso poema de Carlos Drummond de Andrade foi escolhido como abertura

das reflexões que iniciaremos aqui. Dessa forma, o dizer, aqui construído, revela sua

prática dialógica desde o início. O livro Sentimento do mundo (ANDRADE, 2012b) –

cujo poema homônimo está anteriormente reproduzido – segundo já consagrado pela

historiografia literária, possui um caráter específico dentro do conjunto da obra de

Drummond. Assim como ocorre com a coletânea de poemas A rosa do povo (2012a),

estamos diante de livros cujo caráter de reflexão política vai sendo revelado por mais de

um elemento: por exemplo, a temática geral que abarca os textos e o contexto de

publicação dos dois livros (que se dá, respectiva e seguidamente, na cronologia do

autor, em 1940 e 1945), período correspondente à Segunda Guerra Mundial. Podemos

dizer, no entanto, que a relação com a política vai além desses dois elementos

apontados.

Na perspectiva de Rancière, em A partilha do sensível (2009), a relação entre

estética e política se consolida porque estabelece maneiras de visibilidade e de

legibilidade. Portanto, a obra de arte fundamenta, dá base à política, enquanto

(re)organização dos signos. Dessa forma, por meio das transformações que vão se

processando no entendimento do que é arte, ocorrem deslizamentos nas possibilidades

de compreensão da realidade externa à obra. Diante disso, o poema citado possui sua

prática política além da escolha temática, uma vez que estabelece maneiras novas de ler

e entender o que é um poema, por exemplo, revendo a necessidade da existência de

rimas e de métrica regular. Dialogando com certa “tradição”3 vanguardista, o poema

propõe novas possibilidades de leitura e de percepção da vida, da guerra, da morte, da

impotência dos sujeitos:

3 Colocamos aspas, aqui, porque, na esteira de Compagnon (2010), um dos paradoxos vividos pelas

vanguardas, dentro do que muitos convencionaram chamar de Modernidade, reside na relação ambígua,

mais que contraditória (já que são faces da mesma moeda, com valores não se anulando, mas se

alimentando) com a tradição. Por um lado, a sensação – efeito discursivo – de que se estaria fazendo algo

completamente novo, que instaurasse um novo tempo e uma nova relação com a arte. Por outro lado, o

horror do encontro com seu próprio duplo, no sentido bem próximo ao que Freud (2010) desenvolve

sobre o Unheimlich: aquilo que se perdido, esquecido, ultrapassado, retorna; causando efeitos. As

vanguardas e seus artistas, muitos deles teóricos sobre o fazer artístico, tiveram de tentar aprender a lidar

com o fato de que também se converteriam em tradição a partir do momento em que começassem a

influenciar outros poetas, escritores, pintores etc.

Se o conceito de vanguarda tem um sentido no regime estético das

artes, é desse lado que se deve encontra-lo: não do lado dos

destacamentos avançados da novidade artística, mas do lado da

invenção de formas sensíveis e dos limites materiais de uma vida por

vir. É isso que a vanguarda “estética” trouxe à vanguarda “política”,

ou que ela quis ou acreditou lhe trazer, transformando a política em

programa total de vida (RANCIÉRE, 2009, p. 43-44).

Portanto, a arte pode transformar a política em programa de vida, uma vez que

institui formas sensíveis em que os próprios limites materiais da existência se

colocariam em posição de por vir, de novo acontecimento. Vejamos, por exemplo,

como o ritmo da primeira estrofe é construído com base em quebras sintáticas que

ocorrem nas conjunções, preposições ou com o uso de vírgulas. Dessa forma, a primeira

estrofe constitui um único período que vai sendo lido de maneira truncada,

acompanhando a sensação de cisão, de desencontro que o eu lírico relata. Os sentidos

criados para, inicialmente, concatenar orações (como o “e” aditivo; o “mas”

adversativo; a preposição “em”, contraída na forma “na”, expressando situação, local),

ambiguamente, vão sendo organizados pelo recurso poético chamado de enjambement

ou “encavalgamento” (Candido, 2006). A leitura de cada verso, então, é quebrada, para,

em seguida, fazer elo novamente. A essa estrutura, acrescenta-se um sujeito cindido

entre os seus desejos (perdido entre alianças e rupturas), o que quer fazer e a realidade

do mundo exterior, onde existem “escravos” e “lembranças” que “escorrem”.

O mesmo recurso do enjambement usado na primeira estrofe ocorre, também,

na segunda, mas provocando novo funcionamento do poema. Nela, os versos criam

novas relações com a última palavra de cada linha antecedente. Nessa perspectiva, o

“céu” do primeiro verso não se relaciona somente com o “levantar”, mas com estar

“morto”; o “morto” do terceiro não se relaciona somente com o “eu”, mas com o

“desejo” deste; o “morto” do quarto não se relaciona somente com o desejo, mas com o

“pântano sem acordes”. Com isso, a significação de cada verso vai se revelando

duplicada, uma vez que pode ser lida na sua unicidade ou em relação com o verso que

lhe segue. Essa relação entre o um e o outro dialoga com a tensão que o eu lírico

representa na textualização de seu dizer, angustiado entre sua capacidade limitada de

ação e a ausência de limites para o desejo, o sonho. Ou seja, está estabelecido, por

palavras e escolha lexical, um “sentimento do mundo” que se é obrigado a suportar, a

carregar, apesar de só haver “duas mãos”.

A rápida análise acima esboçada serve-nos de parâmetro interdiscursivo para

entendermos a proposta de Jacques Rancière (2009) quando se refere à política como

tendo uma base estética4. Ou seja, as diferentes maneiras de se interpretar as realidades,

de organizar signos, enfim, de criar o visível e o legível afetam, diretamente, a ação dos

sujeitos em sua existência em comunidade. Daí, o autor cria a ideia de “partilha do

sensível”:

Denomino partilha do sensível o sistema de evidência sensíveis que

revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que

nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível

fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum compartilhado e partes

exclusivas. Essa repartição de espaços, tempos e tipos de atividades

que determina propriamente a maneira como um comum se presta à

participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (...) A

partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em

função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade

se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências

ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível

no espaço comum, dotado de uma palavra comum etc. Existe,

portanto, na base da política, uma “estética” que nada tem a ver com a

“estetização da política” própria à era das massas, de que fala

Benjamin. Essa estética não deve ser entendida no sentido de uma

captura perversa da política por uma vontade de arte, pelo pensamento

do povo como obra de arte. (...) É um recorte dos tempos e dos

espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao

mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de

experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer

sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade

para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo

(RANCIÈRE, 2009, p. 15-16, grifos do autor).

A longa citação torna-se necessária para nos ajudar a refletir o que, aos poucos,

estamos entendendo, aqui, sobre o entrelaçamento entre a política e a estética: não se

trata de estabelecer formas de governar ou controlar por meio das obras; mas, sim, de

uma outra perspectiva. Uma obra artística, como o poema de Drummond, por exemplo,

ao mesmo tempo em que deixa elementos de significação evidentes, deixa outros menos

visíveis, menos óbvios. Essa relação que é estabelecida sobre o (in)visível é uma

escolha estética que revela modos de funcionamento que tem ação política no sentido de

4 Rancière (2009, p. 13), por estética, compreende, além de uma teoria geral da arte, “um modo de

articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de

pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia de efetividade do pensamento”.

que pode inverter, deslocar, olhares e percepções, de maneira que alguns consigam

ver/ler o que se está elaborando, ao mesmo tempo, em que outros não lerão/verão ou,

para que o consigam fazer, precisam ter sua maneira de experienciar o espaço e o tempo

(des)construídos, colocados em novo contexto de possibilidades. Assim, o que é dito

estabelece um regime de hiância entre o que se vê e o que não se vê, o que se diz e o

que não se diz, deslocando competências da visão e da fala.

Portanto, a política possui uma base estética, à medida que formas de

acontecimento da linguagem determinam “o que se dá a sentir” (RANCIÈRE, 2009, p.

16). Por isso, a leitura de um poema de Drummond, pode trazer, em uma aparente

contradição, quem consegue e quem não consegue ver/ler o que ali funciona enquanto

linguagem, discurso. Isso é uma prática política, já que, nela, o óbvio mistura-se,

constantemente, ao ignorado, esquecido e/ou alienado.

Com isso, nossa intenção, neste trabalho, é fazer um estudo de alguns poemas de

Zack Magiezi, cuja atividade de publicação concentra-se no Instagram, uma rede social

de compartilhamento de fotos. A partir dessas reflexões, acreditamos que há uma

poética organizadora de, ao menos, parte da produção do escritor e que nos permite

pensar se, ao se apropriar do meio digital como suporte para seus textos, há um

desenvolvimento estético que inclua uma prática discursiva política por meio do

deslocamento de lugares comuns dos sentidos. Para tanto, a Análise do Discurso

francesa será poderosa aliada em nossas leituras, por meio de conceitos como

esquecimento, ideologia, sujeito do discurso e interpelação.

Levar em conta a especificidade do suporte usado para publicação dos poemas,

uma rede social de compartilhamento de fotos, nos parece fundamental. Além disso, o

Instagram opera tanto por aplicativo para celulares quanto página de internet, podendo

ser acessado por indivíduos com ou sem perfil cadastrado na plataforma, o que aumenta

o uso da rede social, ainda que alguns profiles sejam bloqueados como “privados” pelos

usuários. É importante, então, levarmos em conta esses detalhes de operação, uma vez

que se trata do meio escolhido para divulgação principal do trabalho de Magiezi:

E na estruturação das novas práticas sociais propiciadas pelo advento

da rede, uma das ilusões correntes é a de tudo se poder dizer, para

todos, publicar, como se fosse óbvio dizer de si, ilustrando os

esquecimentos constitutivos que Pêcheux conceituou e que

explicaremos: no ato de dizer, desdizer e silenciar, o sujeito é

assujeitado, porém imaginariza que ele é a origem do seu dizer; ao

apagamento de outros sentidos provocado pela ideologia. (...) As

inúmeras possibilidades da rede, as possibilidades de navegação, são

expostas ao olhar do sujeito navegador de um modo peculiar que

rompe com a linearidade textual. Ao contrário de um livro que é

degustado em seu início e fim, com um corpo que tem rosto, orelhas,

dorso, camadas, costas, ou ainda, palpável, a rede eletrônica

aparentemente não tem fim, é dismorfa, é uma grande rede que é dita

“fisgar” todos os peixes. Entretanto, nesta materialidade de silício, os

indícios de completude, por outro lado, trazem também a opacidade

(...) (PATTI; GIORGENON, 2011, p. 86-89).

Não devemos deixar de levar em conta que o Instagram, além de permitir o

compartilhamento de fotos entre os usuários, disponibiliza filtros (a cada atualização,

são mais e mais tipos à disposição) e outros recursos de edição das fotos; além, claro,

das legendas escolhidas para emoldurar as publicações. A cada foto divulgada, corações

podem ser preenchidos – as famosas “curtidas” –, indicando a acolhida dos demais

frequentadores da rede social, que podem, também, comentar o retrato almejado. Com

todos esses recursos, cria-se o efeito de controle sobre a imagem, de se estar

(re/des)construindo o que se intenta compartilhar, oferecer ao olhar do outro. Conforme

mencionado na citação anterior, permanece a ilusão de que se pode publicar e dizer

tudo, quando, na verdade, a linguagem intervém com sua opacidade, por meio de

práticas estéticas e políticas. Há a sensação de multiplicação de vozes que podem se

expressar na rede, uma espécie de “democracia digital”; mas há, concomitantemente,

um ganho e uma perda inevitáveis de sentido, já que editar uma foto não significa o

mesmo que publicar sem recurso visual algum, por exemplo. Escolher um efeito é negar

outros; escolher uma legenda é recusar as demais. Tudo isso ocorre direcionando-se a

um outro que, em grande parte, é desconhecido, uma vez que o domínio sobre o que se

dispõe na internet é impossível:

É preciso, portanto, que o sujeito falante funcione em uma ordem

ternária (eu-tu-ele) para produzir uma fala que possa ser socializada,

compartilhável, acordada em sentidos, e acordada no sentido de

vivificada pelo ser falante que enuncia. Transportando esta fala para

suportes audiovisuais, e, ainda, difundindo-a na mídia eletrônica (seja

ela vascularizada em blogues, sites, redes sociais, revistas e jornais

virtuais, etc), o sujeito se inscreve na rede de forma privilegiada com

sua possibilidade de expansão (publicação de sua voz em diversos

lugares) e expressão de leitura de/sobre o mundo. O ciberespaço, neste

sentido, vai reconfigurar as novas divisões de poder (ler, falar, postar,

demonstrar), afetando em pequena e larga escala as modalidades do

ser, do estar, do fazer acontecer e da transmissão dos já-ditos, à

medida que se ampliam vozes heterogêneas na composição de uma

memória social que se encontra em movimento pleno, num gerúndio

de mudanças e transformações (Idem, ibidem, p. 86-87).

Um costume que acabou se difundindo, em grande parte, pela existência de

redes de compartilhamentos de fotografias, como o Instagram, é a selfie, no qual o

fotografado e o fotógrafo são o mesmo indivíduo. Tanto isso se ampliou que os modelos

de aparelhos celulares mais novos vêm equipados com câmeras frontais prontas para

capturar os “autorretratos”. Levar isso em conta é interessante para o que estamos

pensando a respeito da prática discursiva de Zack Magiezi enquanto poeta. Para

entendermos melhor, levaremos em conta as ideias de Marcia Tiburi (2014),

desenvolvidas em um artigo de opinião publicado no site da revista Cult, intitulado

“Culto do espelho”. Nele, a filósofa propõe uma comparação da selfie com os

autorretratos, tão pródigos na história da pintura (por exemplo, em Leonardo da Vinci,

Van Gogh, Tarsila do Amaral, Frida Khalo etc). Estes, segundo Tiburi (2014),

consolidaram-se enquanto exercício de autoconhecimento na experiência de tentativa de

constituição de uma autoimagem. A selfie, apesar da aparente semelhança, revela-se

diferente, já que Tiburi (2014) afirma:

Ela diz respeito a um fenômeno social relacionado à mediação da

própria imagem pelas tecnologias, em específico, o telefone celular.

De certo modo, o aparelho celular constitui hoje tanto a

democratização quanto a banalização da máquina de fotografar;

sobretudo, do gesto de fotografar.

O celular tornou-se, além de tudo o que ele já era, enquanto meio de

comunicação e de subjetivação, um espelho. Nosso rosto é o que

jamais veremos senão por meio do espelho. Mas é o rosto do outro

que é nosso primeiro espelho. O conhecimento de nosso próprio rosto

surge muito depois do encontro com o rosto do outro. Em nossa

época, contudo, cada um compraz-se mais com o próprio rosto do que

com o alheio. O espelho, em seu sentido técnico, apenas nos dá a

dimensão da imagem do que somos, não do que podemos ser. Ora, no

tempo das novas tecnologias que tanto democratizam como

banalizam a maior parte de nossas experiências, talvez a experiência

atual com o rosto seja a de sua banalização.

Logo, a selfie se consolida como uma maneira de os sujeitos se inscreverem na

rede social de uma forma visível e legível pelo olhar do outro. Com isso, a enunciação

construída na publicação – e que ocorre por camadas de imagem, filtros, legendas,

“curtidas” e comentários – revela a sua heterogeneidade constitutiva (AUTHIER-

REVUZ, 1990). Isso que dizer que cada sujeito, para poder expressar seu dizer no

Instagram, precisa, necessariamente, se relacionar com o que está no outro, seja pelo

interdiscurso, seja pela maneira como acredita querer se mostrar ao olhar de quem virá a

observar a publicação.

A banalização a que Marcia Tiburi chama atenção relaciona-se, então, com os

esquecimentos típicos da ideologia e da constituição do sujeito como enunciador. Dessa

forma, um aparente domínio de si, da imagem a se oferecer ao outro, revela,

paradoxalmente, um desconhecimento do sujeito sobre si, já que ele não é origem nem

dono de sua enunciação. Além disso, as misturas de posicionamentos discursivos – pela

junção de imagem e comentários responsivos entre si – mostram o quanto a posição-

sujeito, a forma-sujeito, vai se deslocando ao longo da “vida” de uma publicação. Isso

ocorre a ponto de compartilhamentos em contextos diferentes gerarem deslocamentos

nos efeitos e nos sentidos; o que se relaciona, ainda, com a argumentação de Tiburi

(2014):

Um julgamento de valor no caso da hiperexposição dos rostos seria

mero moralismo se não colocasse em jogo um dos valores mais

importantes de nossa época, o que Walter Benjamin chamou de “valor

de exposição”. Somos vítimas e reprodutores de sua lógica. No tempo

da exposição total criamos a dialética perversa entre amar a própria

imagem, sermos vistos e acreditarmos que isso assegura, de algum

modo, nosso existir. No tempo da existência submetida à aparência,

em que falar de algo como “essência” tem algo de bizarro, talvez que,

com a selfie fique claro que somos todos máscaras sem rosto e que

este modo de aparecer seja o nosso novo modo de ser.

Com Pêcheux, dois esquecimentos fundamentais marcam a constituição dos

sujeitos por meio de sua enunciação, sendo eles constitutivos da ideologia e do sujeito;

logo, inevitáveis. Vejamos o que o autor entende pelo que denomina esquecimento dois:

Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao “esquecimento” pelo

qual todo sujeito-falante “seleciona” no interior da formação

discursiva que o domina, no sistema de enunciados, formas e

sequências que nela se encontram em relação de paráfrase – um

enunciado, forma ou sequência, e não um outro, que, no entanto, está

no campo daquilo que poderia formulá-lo na formação discursiva

considerada (PÊCHEUX, 1998, p. 173, aspas e itálico do autor).

Sendo assim, a sensação de que só é possível enunciar de uma forma é algo

inerente ao funcionamento da enunciação. Dessa forma, a ideia de que uma publicação

no Instagram só pode se dar de uma maneira ideal – a “melhor” pose, o “melhor” filtro,

a “melhor” legenda – é um efeito processado pela ação da própria ideologia, que cria

nos sujeitos a evidência, o natural. Ou seja, considerar o esquecimento dois na rede

social aqui analisada é levar em conta que uma publicação deve ser analisada, também,

pelo quê e pelo como ela escolheu não se fazer presente. Em outras palavras, o ausente

se faz presente pelo sentido que desliza entre claro e escuro, revelado e velado: tal

funcionamento se dá, em certa medida, pela ação inconsciente do sujeito e pelo material

da língua, afetada pela história. Os dizeres do Instagram, desse ponto de vista, são um

imenso mosaico de formas de se subjetivar e se oferecer como legível ao olhar de um

outro que julga observar, ler. Soma-se a isso, o esquecimento um:

Por outro lado, apelamos para a noção “sistema inconsciente” para

caracterizar um outro “esquecimento”, o esquecimento nº 1, que dá

conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se

encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Nesse

sentido, o esquecimento n º 1 remetia, por uma analogia com o

recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que (...) esse

exterior determina a formação discursiva em questão (PÊCHEUX,

1998, p. 173, aspas do autor).

Portanto, a identificação do sujeito ocorre pela linguagem, pelo discurso; logo,

pela ideologia. Sendo assim, ele é interpelado dentro de uma formação discursiva, de

forma a esquecer isso, sendo determinado pelas maneiras de enunciar, de se fazer

forma-sujeito, na e pela língua. Como resultado, o sujeito sofre o efeito de unidade, já

que emergir de uma maneira no Instagram significa, superficialmente, apagar as demais

formações discursivas com que não se identifica. Na verdade, não há unidade, mas

cisão, assim como representada no poema de Drummond que abre este trabalho. Esta

difusão ocorre, também, porque a identidade do sujeito é fluida: em um momento se

identifica; em outro, não mais, já buscando e efetivando outras relações de aliança e

ruptura dentre às e dentro das formações discursivas. Cada perfil da rede social de

fotografias pode, justamente, oferecer esse panorama do sujeito que escorre entre redes

identificatórias, atualizando discursos por meio de formas que indicam vários

posicionamentos ao longo das enunciações que opera. No caso do Instagram, isso

funciona potencializado pela intervenção do não-verbal, que também causa efeitos de

sentido, em que filtros de imagens plastificam peles e dizeres, de forma que outras

enunciações, quando deslocadas para publicações da plataforma, ganham outros

sentidos.

Por essa via de reflexão, a significação não se restringe a uma decifração linear;

e isso fica ainda mais claro e forte na internet. Em uma enunciação, ocorrem falas e

falhas, uma vez que não se diz o todo almejado e não se pode prever a ação do não-dito.

O silêncio (ORLANDI, 2001), portanto, está nos enunciados seja pela possibilidade de

ação do inesperado, seja pela censura inerente ao momento do dizer, dado que não se

enuncia fora de uma exigência mínima das condições de produção. Há algo que falha:

não como defeito, mas como resistência e potência do sentido. Entendendo-se como

fonte do seu próprio dizer, o sujeito esquece as paráfrases possíveis da enunciação que

constrói. No Instagram, as publicações, portanto, vão sendo produzidas e recebidas

como evidências, ignorando-se que tudo poderia se passar de outras formas, uma das

consequências da ideologia. O aparente equilíbrio, efeito de unidade da postagem,

então, possui muito de desequilíbrio, revelado pelos lapsos e atos falhos dos dizeres e

sobreposições de possibilidades de edição das publicações que, mais que isso, vão

sendo transportadas de uma rede para outra, de contextos para outros, como os do

Facebook, interferindo nas significações. Parece-nos que a rede eletrônica ajuda a

confirmar o postulado por Pêcheux:

O lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica)

bem que poderiam ter alguma coisa de preciso a ver com esse ponto

sempre-já aí, essa origem não detectável da resistência e da revolta:

formas de aparição fugidias de alguma coisa “de uma outra ordem”,

vitórias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a

ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio (PÊCHEUX,

1998, p. 301).

O Instagram, portanto, funciona como um imenso arquivo, já que

institucionaliza maneiras de se guardar memória. Nesta rede social, o registro do que,

em um primeiro momento, aconteceu e foi dito vai sofrendo, continuamente, as

intervenções do não-ocorrido e do não-dito. Daí, os efeitos são vários, inclusive de dor,

uma vez que o possível dói, justamente porque gera significações sobre o que

acreditamos ter ocorrido. Há uma potência imensurável de registro, mas, também, uma

potência da perda; mesmo que as “curtidas”, nomeadas em números, é que estejam à

disposição de um olhar de superfície. Estamos diante de um funcionamento que não é

invenção da rede social analisada, mas é da ordem do funcionamento da linguagem:

A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma

memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas

bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um

sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é

necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de

deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um

espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos

(PÊCHEUX, 2010, p. 56).

Por isso, o dizer torna-se possível porque possui uma relação com o que lhe é

exterior, os dizeres outros, ao real da história. O “culto ao espelho”, nominado por

Tiburi (2014), processa-se como paráfrase do funcionamento discursivo da selfie, no

qual, ao mesmo tempo em que se busca uma inscrição subjetiva na/pela linguagem, esta

só pode existir pelo ato falho e pela ação da memória; de forma que uma réplica, no

interior da própria postagem, surge: a representação que ali está do sujeito revela uma

manifestação identitária, mas também a dissimula, a divide, já que é, desde sempre,

possibilidade de ser outra, de ser dizer-outro. Sob a superfície homogênea do lago dos

Narcisos da rede eletrônica, há a profundidade da água que nem se imagina, mas que

traga sujeitos, que são somente efeitos entre interlocutores, sempre em deslocamento,

não essências. Nas palavras de Lucília Maria Abrahão e Souza (2017, no prelo):

É interessante que esse silêncio não é impedimento, mas impossível

de dizer já que a palavra não entra, não cabe, não comparece nesse

núcleo duro que ela não consegue tocar. Assim, a língua tem a tarefa

de fazer instalar o vazio, materializar o furo, manifestar o buraco oco

do humano. Assim, dizendo, repetindo e tropeçando, o sujeito segue

seus trilhamentos entre significantes, emergindo entre eles. (...) Nessas

redes de associações significantes, algo se inscreve sempre

incompleto, manco, roto e capenga na voz do sujeito, instalando

justamente nela o impossível. Dito de outro modo, é pela palavra que

se dá a ver o sem palavra, o impossível palavrar, o real. (...) Ou seja, a

cada tentativa de nomear, o inominável comparece como centro em

torno do qual todos os movimentos simbólicos orbitam, em torno do

qual o sujeito faz giros de desejar. E faz poesia.

Importante acrescentar que o exposto até aqui não busca “satanizar” a rede social ou a

selfie5, mas analisar as possibilidade de (não)dizeres. Diante do exposto, tomamos como

corpus duas sequências de poemas de Magiezi publicados no Instagram sob os títulos

“Semântica” e “Glossário”. A nomeação da série, nesse caso, já aponta um caminho de

leitura para o que se apresentará ao leitor, uma vez que institui rupturas dentro do

prosaico, do evidente, dos sentidos. As publicações foram relançadas em livro (2016);

no entanto, neste nosso trabalho, interessa o suporte da internet, uma vez que

acreditamos que outros suportes materiais reverberam na recepção da textualidade.

Tanto que é muito significativo o fato de os poemas serem lançados em livro somente

após passarem pelo perfil do poeta na rede social.

As poesias escolhidas, ao provocarem rupturas no óbvio da significação, causam

uma torção da palavra sobre si mesma. Pela desmontagem do léxico escolhido, ocorre

uma reorganização da língua dentro e a partir dela mesma, em uma prática que dialoga

com a selfie. Muito dos poemas são digitados em máquina de escrever e têm sua

imagem envelhecida pela aplicação de filtros: há uma representação da memória que

intervém na leitura, como se fosse buscada uma maneira de dizer, de palavrar,

posicionada em outro tempo, atualizado pela plataforma on-line da internet6. Assim,

velho e novo inscrevem uma maneira outra de se ler, na qual o leitor pode se ater a um

sentido mais superficial ou adentrar a uma outra profundidade em função do regime de

legibilidade com que venha a se identificar. Com isso, as publicações poéticas de

Magiezi instauram uma posição política a partir do estético:

As artes nunca emprestam às manobras de dominação e de

emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito

simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos

dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E

5 Pela via de reflexão aberta por Tiburi (2014), o nome em inglês – remetendo a uma rede de conexões e

sentidos sobre identidade, autoconhecimento – demarca uma diferença da significação sobre a prática do

autorretrato. No universo da internet, dos blogs, das timelines, dos notebooks, dos Facebooks, ser selfie é

estabelecer, também, uma posição dentro de uma rede de citações, no qual a língua inglesa produz efeitos

muito além da comunicação direta; mas, também, gera condições para enunciações que não podem ser de

outra maneira. Por isso, ser autorretrato não é ser selfie, ainda que um intervenha sobre o outro como não-

dito, como interdiscurso, fazendo com que os significados deslizem a perder de vista no on line e no off

line. 6 Mais uma vez, a fal(h)a das línguas no contato entre o velho português e o novo, suportado pelo inglês.

a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se

atribuir repousam sobre a mesma base (RANCIÈRE, 2009, p. 26).

Ainda segundo Rancière, os regimes da arte – e, na prática discursiva de

Magiezi no Instagram, estamos diante de um – possuem sua própria historicidade e

decisões de ruptura ou antecipação, como vemos na relação entre a publicação em rede

social de uma poesia digitada em máquina de escrever. Segundo o pensador francês,

todo regime artístico instaura três outros: ético, poético/representativo das imagens e

estético (2009, p. 27-28). O regime ético concerne ao ethos, às maneiras de ser dos

sujeitos, atuando na maneira destes se identificarem em/com uma dada formação

discursiva 7 . O regime poético atua sobre a mimesis 8 , nas formas de os sujeitos

identificarem imitações “bem feitas”, estabelecendo um posicionamento social e

político em forma de hierarquia. Com isso, o poético atua nas possibilidades de

enunciação, nos esquecimentos que sofrem os sujeitos, fazendo crer que existem obras

legítimas e outras não legítimas de se falar, fazer arte. Por fim, o regime estético seria

uma espécie de consequência dos outros dois, já que estabelece distinções entre os

modos de ser sensível à arte; com isso, trata-se de uma potência em que o sujeito se

torna estranho a si para poder haver identificação:

Esse sensível, subtraído a suas conexões ordinárias, é habitado por

uma potência heterogênea, a potência de um pensamento que se

tornou ele próprio estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-

produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um

pathos, intenção do intencional etc. Essa ideia do sensível tornado

estranho a si mesmo, sede de um pensamento que se tornou ele

próprio estranho a si mesmo, é o núcleo invariável das identificações

da arte que configuram originalmente o pensamento estético. (...) O

regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte

no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica,

de toda hierarquia de temas, gênero e artes (RANCIÈRE, 2009, p. 32-

34).

Em Magiezi, os três regimes vão se sobrepondo, como camadas, colocando o léxico

utilizado em contextos novos de significação, como se as linguagens empregadas

7 Aqui, vamos tentando aliar as propostas de Rancière (2009) com as de Pêcheux.

8 Segundo Rancière (2009), a mímesis organiza o ver, o fazer e o julgar. Em outros termos, não é um

procedimento artístico, mas um regime de visibilidade das artes.

passassem por um processo de autoconhecimento, de possibilidades de se significar (o

que se oporia à prática da selfie, conforme este foi discutido neste trabalho). Isso se faz,

então, pela intervenção do regime ético, já que atua diretamente nas construções das

formas-sujeitos que criam suas (des)identificações na rede eletrônica do Instagram. O

regime poético acontece, logo, na reconsideração das formas de arte que surgem na rede

social: uma vez que postagens, “curtidas”, legendas, selfies não são, de início,

manifestações artísticas, mas passam a compor uma nova forma que, entre on line e off

line, é construída, vista e julgada como poético. Abarcando tudo isso, o regime estético

faz emergir o singular, uma vez que proporciona novas formas da sensibilidade, nas

quais os efeitos no corpo do sujeito que enuncia e no do que lê se materializam dentro

da história e da ideologia. Como Rancière salienta, o banal assume nova posição dentro

dos efeitos gerados entre interlocutores, o que é, também, uma prática política, tornada

possível pelo estético. O mecânico, dessa forma, precisa ser reconhecido como arte:

É preciso, no meu entender, que se tome as coisas, ao inverso. Para

que as artes mecânicas possam dar visibilidade às massas ou, antes, ao

indivíduo anônimo, precisam primeiro ser reconhecidas como artes.

Isto é, devem primeiro ser praticadas e reconhecidas como outra coisa,

e não como técnicas de reprodução e difusão. O mesmo princípio,

portanto, confere visibilidade a qualquer um e faz com que a

fotografia e o cinema possam ser artes. Pode-se até inverter a fórmula:

porque o anônimo tornou-se um tema artístico, sua gravação pode ser

uma arte. Que o anônimo seja não só capaz de tornar-se arte, mas

também repositário de uma beleza específica, é algo que caracteriza

propriamente o regime estético das artes. Este não só começou bem

antes das artes de reprodução mecânica, como foi ele que, com sua

nova maneira de pensar a arte e seus temas, tornou-se possível

(RANCIÈRE, 2009, p. 46-47).

Analisemos, então, inicialmente, dois poemas da série “Semântica”.

Reproduzimos o primeiro tal qual ele comparece no perfil do Instagram:

Figura 1: imagem do perfil Zack Magiezi do Instagram

Pensando no conceito de arquivo (PÊCHEUX, 2010), memória que as

instituições sociais não modificam, criando normatizações, “casar” pertence à rede de

significações sobre as diversas manifestações dos relacionamentos humanos e/ou

amorosos, sendo algo próximo ao “contrair matrimônio”. No entanto, o termo, em caixa

alta, é duplicado em nova significação, o de “se fazer casa, moradia, lugar seguro” para

o outro do laço amoroso. Por meio de um jogo de derivação imprópria, ocorre mais do

que a mudança de classe gramatical – de verbo para substantivo – mas a nomeação de

uma nova forma de se praticar afeto dentro da rede de significações em que “casar” já

operava. Com isso, a linguagem mostra seu lapso de que, no interdiscurso e no arquivo,

há mais para ser explorado; ao mesmo tempo em que chama atenção para que haja

maneiras mais férteis de se demonstrar afeto do que pela instituição social. Uma espécie

de metalinguagem expõe, ao mesmo tempo, a precariedade (porque sujeito à falha) e a

polissemia (porque há deslizamento de sentidos) do que está retratado na página de livro

fotografada, tratada por filtros e exposta em rede social. Novas formas-sujeito, então,

são construídas e convocadas à identificação do enunciador – que propõe o desafio de

ser “casa”, ainda que fora de um “casamento” – e do leitor, que pode ceder à

possibilidade de se mover juntamente à língua que se auto representa, mais que selfie,

mas exercício de autorretrato. Língua, sujeito e rede social, juntos, se descobrem como

novos suportes de outros dizeres e perspectivas sobre a realidade: o político através do

estético.

Figura 2: imagem do perfil Zack Magiezi do Instagram

No segundo poema de “Semântica”, temos um leve borrão entre algumas letras

da datilografia fotografada. Isso não deixa de evocar as ideias de rastro, de erro, de

duplicação de uma impressão, apontando que o sentido pode ser outro, já que

assujeitado à ação da memória discursiva, agindo à semelhança de um palimpsesto.

Nesse caso, o interdiscurso sobre “mudar” é revirado e tornado outro pela igualdade

sonora com o substantivo “muda”. Novamente, o campo semântico – rede discursiva –

sobre as identificações dos sujeitos se autorrepresenta em seu processo de deslizamento.

Inclusive, no poema acima, as duas estrofes representam bem a hiância temporal entre

uma percepção e outra sobre “mudar”. Como no caso anterior, um sentido não

desaparece para que o outro surja, eles vão se sobrepondo em camadas, à semelhança

dos filtros e legendas das publicações da rede social. Não se abandona um sentido para

outro: mas, sim, passamos a ler um em função do outro. O “mudar” enquanto

“transformação” é conservado para que o outro possa ser convertido em “muda”,

potência de vida e de significação, o que pode ser plantado. Dessa forma, o pequeno

poema mimetiza a própria capacidade da linguagem de frutificar: é porque pode se

transformar que é sempre ponte para o novo, apontando relações entre o já-dito e o por

vir. Sujeito e língua, prenhes de “mudança”, representados no traço borrado da máquina

de escrever, borrado, agora, pelos filtros do Instagram.

glossário

comodismo

ato de enfiar a vida

em uma cômoda apertada

Passemos, agora, a exemplos da série “Glossário”, em que, pelo saber

institucionalizado pela educação (tornado arquivo), temos a ideia daquilo que explica

termos de um idioma; por si só, uma atividade metalinguística, de torção da língua

sobre si mesma. No entanto, aqui, “comodismo” é deslocado entre contextos novos de

uso para fazer falar o ato falho da linguagem. A claustrofobia de uma “cômoda”,

somada ao ato de “enfiar”, remete às diversas manifestações de violência às quais os

sujeitos se obrigam, acreditando se tratar de segurança. Vejamos que, no poema, os

versos surgem truncados, quebrados, pelo recurso do “encavalgamento” (como vimos

em Drummond), dialogando com o tropeço da linguagem que se faz tropeço na

existência do sujeito: este, antes, identificado à segurança do que é “cômodo”; agora,

jaz disperso, fragmentado, no medo, na ausência de ar, na angústia 9 de quem foi

“enfiado” a ser “cômoda apertada”. No jogo de movimentos das vogais finais,

alternando de “o” para “a”, o regime poético de uma representação artística abraçado ao

regime estético de sensibilização sobre práticas discursivas assumidas pelas enunciações

dos sujeitos que assumem a forma do “cômodo” às custas de ser “cômoda”.

glossário

presentear

é quando a vida nos dá um hoje novinho

Nosso último exemplo traz uma relação interdiscursiva entre a prática de

oferecer presentes, “presentear” a outrem, e a possibilidade de se fazer “hoje novinho”,

“presente” temporal, sem que haja, desta vez, mudança de classe gramatical. Mais uma

vez, o “encavalgamento” comparece de forma a intensificar a expectativa do que segue,

a nova definição do verbo. A pausa entre o primeiro e o segundo versos suprime a

necessidade dos dois pontos, sem que, com isso, perca-se o vínculo entre os novos

posicionamentos discursivos abertos pela polissemia latente no léxico do idioma. Pela

9 Não nos esqueçamos da origem da palavra “angústia”: vinda do latim “angere”, que significa apertar,

sufocar. Portanto, a associação com “aperto”, “claustrofobia”, “falta de ar” não é algo distante e exerce

sua presença em nossa análise.

disjunção inerente à toda língua, o furo da significação é mimetizado pelo rompimento e

posterior laço renovado(r) dos versos. Ou seja, alguns cortes são possibilidades de

novos arranjos, e isso está na organização sintática e dos versos do curto poema. Este,

além disso, parece imitar a estrutura visual de um verbete de dicionário ou enciclopédia,

em que há um termo seguido de pontuação, esperando-se que, em seguida, o sentido se

faça presente. Na verdade – pelo lapso do léxico e da pontuação – é no intervalo da

espera pelo por vir, lembrando do que acabou de ser lido, que a significação se faz

“presentear” em “hojes novinhos”. Há algo da ordem da resistência da linguagem que

comunica aos goles, em intervalos de espera entre palavras que só fazem explicar o já-

dito. A sensibilidade despertada pela nova forma de se ler o “presente” atua como forma

política de o sujeito se reconhecer assim, “presente”.

Por fim, retomamos afirmações de Sousa (2017, no prelo, aspas da autora). Zack

Magiezi, aqui, pelo instrumental da Análise do Discurso francesa:

Deu sua resposta ao real, ao tropeço e ao horror do inominável,

perpassando algo do poético seja no ato da interpretação (psi)analítica,

seja no gesto da análise dos discursos. (...) dão pistas de efeitos do

real, efeitos do impossível que tanto os causou (e nos causa) a girar,

efeitos da língua que “excede a língua e imprime nela a marca pela

qual se faz conhecer” como ensina Milner, e por fim – por que não

dizer efeitos de amor à língua e ao saber inconsciente? – efeitos da

poesia nossa de cada dia.

Portanto, Magiezi empreende um regime estético (segundo o entendimento disso

por Rancière) que, também, é prática política, na qual a linguagem do cotidiano e do

Instagram lança sobre si a gravidez típica da língua que “erra” (no duplo sentido de ser

“errante” e de ser “erro”) para não ser fixa, mas garantir o seu nomadismo, pelo qual se

escreve e inscreve nos sujeitos, na história e nas “curtidas” e compartilhamentos que

dão visibilidade ao sentido, ainda que sob filtros de selfies que, hoje, substituem a falsa

brandura do largo de Narciso.

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