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VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11 Oct. 2002 Governança participativa e planejamento de longo prazo: o caso do governo do estado do Rio Grande do Sul, Brasil Jáckson De Toni 1 [email protected] 1. A experiência brasileira de planejamento A transição de uma sociedade oligárquica-exportadora para outra do tipo urbana-industrial – pode ser considerado como o início da incorporação do planejamento como uma função pública “moderna”, processo que foi inaugurado no período do primeiro governo Vargas durante a década de trinta 2 . Duas características, a bifrontalidade a sedimentação passiva foram construídas desde este processo e perduram como marcas genéticas do Estado brasileiro. Conforme Nogueira, “Disso resultou um Estado precocemente hipertrofiado e todo multifacetado, cujas diversas camadas constitutivas – superpostas por sedimentação passiva -, acabam por alimentar a formação de uma macrocefálica bifrontalidade: ligadas aos múltiplos interesses societais por inúmeros e muitas vezes invisíveis fios, duas avantajadas cabeças – uma racional-legal, outra patrimonialista – iriam se comunicar e se interpenetrar funcionalmente em clima de recíproca competição e hostilidade, impedindo a imposição categórica de uma sobre a outra, retirando coordenação do todo e fragilizando o comando sobre as diversas partes do corpo estatal. Do império ...aos anos 30, da ´democracia populista´ ao regime militar autoritário, essa seria uma componente ineliminável do Estado Brasileiro” (1998, p. 93) Conforme Ianni (1986) a trajetória do desenvolvimento brasileiro sempre foi submetida a duas grande macro-tendências, a crescente participação estatal na economia e uma política econômica planejada ou voltada para objetivos de estabilização macroeconômica. Este autor demonstra o processo de “racionalização” da economia através da ação garantidora e organizadora da intervenção estatal, seja na viabilização das condições gerais de produção quanto na regulação jurídica e administrativa dos mercados. Uma estratégia de desenvolvimento mais nacionalista, muito vinculada às contribuições da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), predominou nos períodos 1930-45, 1951-54 e 1961-64. Ela tinha como pressuposto a generalização do planejamento indicativo de Estado como forma de organização da intervenção pública na economia de modo a garantir a nacionalização dos centros de decisão, especialmente sobre os investimentos em bens de capital e infra-estrutura de base. Uma outra estratégia de “desenvolvimento econômico associado” (Ianni,1986) predominou nos períodos 1946-50 , 1955-60 e desde 1964. Este projeto assumia a subordinação aos centros dinâmicos de decisão vinculados às 1 Economista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional, Técnico em Planejamento da Secretaria de Estado da Coordenação e Planejamento do Rio Grande do Sul, Brasil e professor do Curso de Especialização em Gestão Pública participativa da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Agosto de 2002. 2 Esta retrospectiva é uma síntese baseada na primeira parte do artigo “Do Orçamento Participativo ao Planejamento Estratégico- as possibilidades da gestão democrática do Estado “, do autor, publicado nos anais do VI Congresso do CLAD, 2001.

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VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11 Oct. 2002

Governança participativa e planejamento de longo prazo: o caso do governo do estado do Rio Grande do Sul, Brasil

Jáckson De Toni1 [email protected]

1. A experiência brasileira de planejamento

A transição de uma sociedade oligárquica-exportadora para outra do tipo urbana-industrial – pode ser considerado como o início da incorporação do planejamento como uma função pública “moderna”, processo que foi inaugurado no período do primeiro governo Vargas durante a década de trinta2. Duas características, a bifrontalidade a sedimentação passiva foram construídas desde este processo e perduram como marcas genéticas do Estado brasileiro. Conforme Nogueira,

“Disso resultou um Estado precocemente hipertrofiado e todo multifacetado, cujas diversas camadas constitutivas – superpostas por sedimentação passiva -, acabam por alimentar a formação de uma macrocefálica bifrontalidade: ligadas aos múltiplos interesses societais por inúmeros e muitas vezes invisíveis fios, duas avantajadas cabeças – uma racional-legal, outra patrimonialista – iriam se comunicar e se interpenetrar funcionalmente em clima de recíproca competição e hostilidade, impedindo a imposição categórica de uma sobre a outra, retirando coordenação do todo e fragilizando o comando sobre as diversas partes do corpo estatal. Do império ...aos anos 30, da ´democracia populista´ ao regime militar autoritário, essa seria uma componente ineliminável do Estado Brasileiro” (1998, p. 93)

Conforme Ianni (1986) a trajetória do desenvolvimento brasileiro sempre foi submetida a duas grande macro-tendências, a crescente participação estatal na economia e uma política econômica planejada ou voltada para objetivos de estabilização macroeconômica. Este autor demonstra o processo de “racionalização” da economia através da ação garantidora e organizadora da intervenção estatal, seja na viabilização das condições gerais de produção quanto na regulação jurídica e administrativa dos mercados.

Uma estratégia de desenvolvimento mais nacionalista, muito vinculada às contribuições da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), predominou nos períodos 1930-45, 1951-54 e 1961-64. Ela tinha como pressuposto a generalização do planejamento indicativo de Estado como forma de organização da intervenção pública na economia de modo a garantir a nacionalização dos centros de decisão, especialmente sobre os investimentos em bens de capital e infra-estrutura de base. Uma outra estratégia de “desenvolvimento econômico associado” (Ianni,1986) predominou nos períodos 1946-50 , 1955-60 e desde 1964. Este projeto assumia a subordinação aos centros dinâmicos de decisão vinculados às

1 Economista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional, Técnico em Planejamento da Secretaria de Estado da Coordenação e Planejamento do Rio Grande do Sul, Brasil e professor do Curso de Especialização em Gestão Pública participativa da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Agosto de 2002. 2 Esta retrospectiva é uma síntese baseada na primeira parte do artigo “Do Orçamento Participativo ao Planejamento Estratégico- as possibilidades da gestão democrática do Estado “, do autor, publicado nos anais do VI Congresso do CLAD, 2001.

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economias centrais. Neste segundo cenário o planejamento como instrumento de organização do Estado foi submetido a um crescente processo de diminuição do impacto técnico-político: confinado a setores específicos, restrito à formalização dos orçamentos públicos ou limitado à ocorrência intermitente de planos de estabilização econômica. Deste período histórico anterior ao fim dos governos militares os maiores processos de planejamento estatal são caracterizados pelos planos de viés tipicamente macroeconômico com objetivos centrados no desenvolvimento e mais recentemente na estabilização monetária e fiscal. Alguns exemplos marcantes e simbólicos deste período são o Plano SALTE, elaborado no governo Dutra em 1948, coordenado pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), priorizando as áreas de saúde, alimentação, transporte e energia. Foi abandonado em 1952; o Plano Trienal, elaborado sob a coordenação de Celso Furtado para o período 1963 a 1965 no governo João Goulart. O plano tinha como objetivo explícito o desenvolvimento econômico, tentava repassar aos salários o crescimento da produtividade do período imediatamente anterior. De um lado promovia as “reformas de base”, particularmente a Reforma Agrária, apontava uma reorientação do processo de substituição de importações, mas por outro, estava premido por objetivos de curto prazo como a estabilização dos preços, o índice chegou a 50% em 1962 e os Planos Nacionais de Desenvolvimento, para os períodos 1972/74 e 1975/79 objetivaram altas taxas de crescimento do PIB ancoradas na indústria básica, no aumento a renda per capita e na melhoria dos indicadores sociais. Baseado no binômio “desenvolvimento e segurança” os PNDs atuaram sob forte esquema repressor dos governos militares financiados pelo endividamento externo. Grandes obras projetadas nesta época como a rodovia Transamazônica, a irrigação do Nordeste ou a ampliação das redes de esgoto só demonstraram a ambição bem como o deslocamento do planejamento em relação à realidade do país.

No período que vai do pós-guerra até o fim do regime militar com certeza o processo mais significativo de planejamento estatal foi a elaboração do Plano de Metas (1956-1961) no governo Kubitschek. Pelo menos três fatores fizeram deste processo um ponto notável: (a) estabilidade institucional e contexto democrático favorecendo a participação, (b) amplo consenso sobre o tema do desenvolvimento nacional e (c) acertos de política externa e interna viabilizando recursos econômicos. Segundo Nunes (1999) o governo JK foi um governo notabilizado pelo sincretismo político, garantindo a permanência de uma coalizão partidária durante todo o mandato que começava no PTB de João Goulart e o controle do Ministério do Trabalho, passando pelo PSD dele mesmo, com fortes vínculos rurais até o apoio parlamentar da UDN. Esta estratégia política, flexível, por vezes dúbia, apoiada na fragilidade da estrutura partidária garantiu viabilidade para o plano. Nas palavras de Nunes (1999):

“ao mesmo tempo que se apoiava nas agências insuladas para realizar as tarefas do desenvolvimento, Juscelino utilizava a política tradicional de empreguismo para consolidar apoio político: protegia as agências insuladas e lhes garantia acesso aos recursos, enquanto geria o resto do sistema político de modo a reduzir potenciais contestações às metas desenvolvimentistas e às suas formas de alcançá-las” (Nunes, 1999, p 112).

Tecnicamente o Plano focalizava o setor energético, a construção de rodovias, o desenvolvimento da indústria automobilística, a construção naval, a auto-suficiência de petróleo e uma nova capital, Brasília, trabalhada habilmente como idéia-força, emblema do período e meta-síntese do plano. Sob a égide do nacional-desenvolvimentismo o Plano

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articulava conceitos como “ponto de estrangulamento”, “pontos de germinação”, “ponto de estrangulamento externo” (a capacidade para importar, 43% dos recursos foram destinado para financiar importações) e “demanda derivada” a partir de uma visão integrada e nacional. O desenho administrativo do Plano possuía traços que o aproximam de algumas soluções gerenciais mais contemporâneas. JK optou por montar uma rede de órgãos paralelos à administração direta, com base na avaliação de que executar uma reforma administrativa seria custoso demais (Lafer, 1997). Tal rede era formada por “Grupos Executivos” (criados por decreto) e “Conselhos de Desenvolvimento” articulando órgãos-chave da administração indireta, responsáveis não só pelo processo decisório, mas também, pelas estratégias de implementação, tais como o BNDE, o Banco do Brasil – Cacex e a Sumoc (Superintendência da Moeda e Crédito, precursora do BACEN)3. A capacidade de governo repousava, basicamente, na natureza ágil e flexível da estrutura administrativa (as “ilhas de eficácia”), na autonomia financeira e orçamentária dos órgãos envolvidos na execução das metas setoriais e na neutralização da interferência parlamentar no processo.

No período dos governos militares o Ministério do Planejamento era encarregado de coordenar os divesos planos setoriais. O IPEA (instituto de planejamento) é diretamente vinculado à Secretaria de Planejamento da Presidência (SEPLAN-PR) e se desdobra em vários institutos vinculados para cuidar do planejamento propriamente, do orçamento e do centro de desenvolvimento responsável pela formação de pessoal especializado. Esta arquitetura institucional, baseada na disciplina e na valorização hierárquica do planejamento como controle e domínio foi eficaz até a transição democrática. Nos anos noventa as sucessivas reformas administrativas de natureza gerencialista (privatização, desobrigação do Estado na prestação de serviços, adoção de critérios mercantis de avaliação, precarização das relações de trabalho, etc...) desmontaram a capacidade residual ainda instalada de planejamento federal.

O primeiro PPA nacional (1991/95) não foi muito diferente do viés economicista e fiscal dos antigos Orçamentos Plurianuais de Investimento da lei 4.320 e da Constituição autoritária de 1967, não havia sistema de avaliação e o governo responsável pela sua execução foi deposto no processo de impeachment. O segundo PPA (1996/1999) apesar de mais articulado e consistente que o primeiro não passou de um “plano econômico normativo de médio prazo”, concebia um só cenário, executou somente 20% dos programas previstos (Garcia, 2000, p. 14). As novidades do segundo PPA ficaram por conta da montagem de um sistema de informações gerenciais e adoção de um estilo gerencial mais próximo da tradição empresarial (programa “Brasil em Ação” envolvendo 42 projetos do PPA). O terceiro PPA (2000/2003), ainda em curso quando este texto foi escrito apresentou várias inovações metodológicas bem definidas e positivas: o programa passou a ser unidade básica de conexão entre Plano e orçamento, houve uma simplificação e flexibilização das categorias funcionais classificatórias, a referência à solução de problemas passou a ser explícita na solução de problemas (como recomendam as novas abordagens de planejamento), os programas foram detalhados em projetos e atividades como produtos e metas definidas para monitoramento por indicadores,

3 Nunes (op.cit.) denomina de “insulamento burocrático” o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra as interferências externas (dos atores políticos, p.ex.). A informação é super-valorizada, o ambiente de trabalho é complexo e a “arena” de disputas e acesso das demandas populares é controlada. O insulamento burocrático associado ao “ universalismo de procedimentos” seriam o contrapeso para outras duas “gramáticas” do Estado brasileiro, o clientelismo e o corporativismo.

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a definição dos programas foi precedida de um estudo sobre oportunidades de desenvolvimento ( sobre os eixos nacionais de integração), etc...

O planejamento público tem sido ao longo da tortuosa construção do Estado brasileiro fundamentalmente normativo e linear na sua concepção teórica e metodológica de aplicação. Quase todo ele inspirado e nucleado por problemas de inspiração no campo da macroeconomia. Reduzir o planejamento público a um conjunto de técnicas de racionalização ou de alocação econômica foi o resultado mais visível deste período. Segundo Garcia (2000) os anos de autoritarismo e economicismo deixaram marcas profundas inclusive na Constituição Federal de 1988:

“...A Constituinte...não consegue superar a concepção normativa e reducionista do planejamento governamental herdada dos militares e seus tecnocratas...mesmo com a democratização do país; com a política a ganhar espaço e importância, com a multiplicação dos atores sociais, com o ritmo de produção e difusão das inovações tecnológicas acelerando-se; com o conhecimento e a informação conquistando relevância; com a comunicação ascendendo à condição de recurso de poder e integração; e com a clara percepção de que se ingressara em uma época de rápida mudança de valores culturais; ainda assim, o planejamento governamental foi concebido sob um enfoque normativo e economicista.” (Garcia, 2000, p. 8)

As sínteses possíveis que resumem a construção do planejamento como procedimento público até a transição para a democracia nos anos oitenta poderiam ser resumidas nos seguintes pontos:

(1) O planejamento é subordinado a uma ótica reducionista do ponto de vista teórico que o limita ao manejo e operação de ferramentas de organização estatal e/ou regulação de mercados privados ou setores sob concessão federal ou estadual. Os exemplos mais nítidos deste enquadramento teórico é a confusão comum entre o conceito de planejamento no setor público com técnicas de racionalização de trabalho ou processos produtivos, com o simples uso de ferramentas gerenciais ou técnicas de organização & métodos transplantadas para a área pública.

(2) O viés econômico-normativo praticamente organiza todo processo de planejamento. Apesar da ampliação das funções do IPEA nos anos oitenta e da criação de uma Secretaria de Planejamento e Coordenação vinculada diretamente ao centro político do governo federal (Presidência da República), o tema permanece fortemente vinculado à racionalidade econômica e corporativamente atrelado ao quadro e as carreiras dos profissionais de economia. Os traços desta característica podem ser identificados em todos os planos de estabilização e crescimento Econômico ( Salte, Trienal, PAEG, PNDs, etc...) e na limitação da atividade burocrática (produção de política pública) à confecção da peça orçamentária anual, sendo esta, profundamente normativa e formal. O antigo “Orçamento Plurianual de Investimentos” (Lei 4.320/64 e Constituição de 1967) foi praticamente o única estratégia de concretização e materialidade do processo de planejamento.

(3) O planejamento no setor público, como de resto as demais políticas públicas tem a marca genética da exclusão, da não-participação e da ausência absoluta de controle social sobre seus meios e fins. A nossa cultura política impregnada de golpismos e práticas autoritárias que se expressam na cidadania restringida e regulada, na fragmentação do aparelho de Estado e no enorme fosso que separa sociedade civil da sociedade política fez

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das práticas de planejamento reduto inatingível aos grupos organizados ou aos simples cidadãos. O economicismo, a ausência de metodologias mais flexíveis, o jargão tecnicista em muito contribuíram para excluir qualquer possibilidade participativa na prática de planejamento público, mesmo naquele estritamente vinculado ao tema urbano-espacial na esfera municipal.

2. Uma perspectiva contemporânea: o desmonte institucional

Nos anos setenta e oitenta o planejamento governamental brasileiro se consolida ainda como atividade restrita ao uso e aplicação de modelos de desenvolvimento econômico, na sua absoluta maioria desenvolvidos em centros universitários ou consultoras norte-americanas. Alguns estados, como Minas Gerais, tentam repercutir na esfera sub-nacional a experiëncia através de planos qüinqüenais relativamente bem sucedidos.

Nos anos oitenta fatores relacionados à conjuntura e às opções políticas dos setores hegemônicos aceleraram o processo de desmonte institucional e recuo dos sistemas de planejamento constituídos no ambiente macroeconômico anterior. Segundo Haddad (1997) o fracasso dos planos de ajuste recomendados pelo FMI nos anos oitenta teve impactos perversos sobre a capacidade de planejamento governamental. As disfunções na distribuição da renda, com redução drástica dos salários e crescimento dos juros e capital financeiro, o desmantelamento da máquina pública, desestímulos ao quadro funcional e desorganização dos serviços, resultado de sucessivas tentativas de reformas administrativas mal-sucedidas e as constantes mudanças nas regras do jogo econômico, como os confiscos ou mudanças no sistema de indexação compuseram uma conjuntura altamente desfavorável para a programação de investimentos e o planejamento público e privado de longo prazo.

A ortodoxia liberal justificou no mesmo período uma retirada quase total do Estado em setores tradicionalmente influenciados pelos investimentos públicos, como energia e infra-estrutura, e sedimentou um princípio de conduta ética e moral que fazia apologia ao viés mercantil de uma possível saída para a crise, não sem antes demonizar e culpar a influência do Estado como variável explicativa central.

Pode-se, conforme é comentado a seguir, sistematizar as principais causas da decadência do planejamento público nos últimos tempos, conforme Garnier (2000), ainda que de forma paradoxal pois nos períodos de ruptura e transição é que se impõe a demanda por sistemas planejados estrategicamente. O planejamento para o desenvolvimento (de viés estruturalista) hegemônico nos países latino-americanos sofreu restrições de toda ordem.

A primeira ordem de obstáculos diz respeito aos problemas da crise fiscal, das restrições tipicamente financeiras do modelo desenvolvimentista adotado que implicou, como se sabe, em pesados déficits fiscais, sem geração de renda ou poupança capaz de sustentar o modelo no longo prazo. A “hipoteca” sobre o futuro destes países se fez cobrar no impacto negativo das dívidas externas e internas, nas crises internacionais do final dos anos setenta. A segunda ordem de problemas diz respeito ao enorme déficit social acumulado neste mesmo período. Produto de um sistema que gerou concentração fantástica da renda, a crise e os sucessivos processos de ajuste combinaram abertura externa com recessão interna, gerando ondas maciças de desemprego, queda da renda e do consumo. As políticas sociais já não

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compensaram a multidão de excluídos que incluiu também parcelas crescentes das camadas médias, antes a principal base de apoio para o modelo. Um terceiro conjunto de fatores está ligado ao esgotamento institucional de serviços públicos sem qualidade ou cobertura, de perda da capacidade de direção de governos, da gestão fiscal caótica ou da cultura institucional que se desagrega diante do clientelismo, da ineficiência e corrupção. A crise fiscal revelou de forma dramática um tipo de Estado prisioneiro de grupos de interesse, ineficaz para garantir o desenvolvimento social e incapaz de reconstituir um projeto nacional. No front externo a globalização diminui o espaço e a autonomia da esfera política, subordinando a governabilidade à estabilidade dos fluxos financeiros internacionais.

Este grande diagnóstico das causas do desmonte institucional do planejamento governamental latino-americano já estava identificado em seminário sobre Planejamento e Gestão realizado pelo ILPES e CLAD em Agosto de 1989. Segundo Affonso (1989),

“A ‘crise do planejamento’ na América Latina aparece, assim, sobreposta à reversão do ciclo industrial interno, à ruptura do padrão de financiamento calcado no endividamento externo e à difícil transição democrática. Neste contexto, ante a dificuldade de se dirimir os conflitos e dividir as perdas entre os setores empresariais a resultante foi, de um lado, uma violenta compressão salarial e, de outro, um movimento de ‘privatização’ do Setor Público com os diferentes interesses privados lutando através do aparato estatal pela manutenção de suas margens de lucro e vantagens institucionais” (pág. 145).

O fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento nos últimos anos do governo Geisel (1978-80) teria sido, para este autor, a chancela para a incapacidade das elites nacionais no Brasil em constituir um projeto nacional de desenvolvimento. A ruptura do padrão de financiamento, através da deterioração da arrecadação fiscal, da política equivocada de preços públicos, do alto endividamento externo e da espiral inflacionária sepultaram as possibilidades de retomada do planejamento como vinha sendo praticado pelas agências públicas no período anterior.

Como bem sintetiza Garnier (2000) as transformações no equilíbrio político-ideológico das últimas décadas (o domínio das ideologias liberais-mercantis) completaram um quadro onde as políticas públicas se distanciam dos objetivos de desenvolvimento sustentado e se concentram na lógica do curto prazo, para uma administração de resultados financeiros e econômicos, fortalecendo uma retórica anti-política que é sucedânea do discurso fundamentalista anti-estatal.

3. Planejamento e gestão do território sub-nacional.

O regionalismo é um fenômeno comum na formação social e econômica da sociedade brasileira, desde a perspectiva da autonomia de regiões marcadas por dinâmicas quase-autárquicas de desenvolvimento até o tema da integração territorial e a formação de um Estado sob um pacto federativo instável e complexo. Para o planejamento de governo o tema regional abre a perspectiva de – como movimento político e administrativo – colocar na agenda política a ação coordenada do Estado focada no território. O centro deste enfoque objetiva constituir o planejamento do desenvolvimento territorial como objetivo para assegurar maior eficácia aos projetos no território, integrar e descentralizar a execução de

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políticas públicas, especialmente quando as diferenças na dinâmica regional de desenvolvimento são fontes de tensões e conflitos históricos.

Haddad (1997) denomina o período governamental de 1964 até 1982 (primeira eleição para governos estaduais depois do golpe militar de 1964) no que diz respeito às práticas de planejamento público de “planejamento para negociação”. Num quadro de esvaziamento crescente dos instrumentos de política econômica sub-nacionais houve uma clara indução para simplificação de procedimentos, minimizando a relação entre objetivos e instrumentos e aumentando a importância do controle e monitoramento. A prática de planejamento estadual neste período foi quase sinônimo da capacidade dos Estados em bem negociar investimentos públicos federais ou privados no seu território. Este processo de perda da autonomia decisória sugeriu um roteiro diferenciado de planejamento conforme a tabela a seguir:

Planejamento Clássico-normativo Planejamento “para negociação” Elaboração do diagnóstico dos problemas potenciais

para o desenvolvimento Geração de informação sobre o contexto econômico do

Estado

Formulação de uma estratégia de desenvolvimento. Diagnóstico dos problemas potenciais de desenvolvimento.

Definição dos objetivos prioritários Identificação de oportunidades resultantes de

investimentos da União, setor privado ou agências internacionais.

Quantificação dos objetivos em metas Processo negocial de programas e projetos.

Organização de sistemas de controle e avaliação do plano

Organização de sistemas de controle e avaliação do plano.

As atividades de planejamento estadual neste período estiveram concentradas na preparação de estudos e projetos para disputar as oportunidades de investimentos com outras unidades da federação, num quadro permanente de barganha política entre os diversos grupos de pressão regional e o arco de alianças com os setores dominantes a nível federal. É evidente que a redução do planejamento regional ao aproveitamento espasmódico de oportunidades de investimento incentivou a fragmentação do pacto federativo, alimentou a “guerra fiscal” entre unidades da federação e consolidou um tipo de postura intelectual nos organismos de planejamento de exogeneidade da política de desenvolvimento, de dependência dos centros decisores externos4.

A extensão da crise fiscal aos Estados, o processo de redemocratização dos anos oitenta e o reforço da autonomia regional e local pós-constituição de 1988 marcam a adoção de estratégias alternativas de planejamento pelos Estados incorporando aspectos de (a) reprogramação endógena do desenvolvimento, (b) compensação e (c) ativação social

4 Esta “sensibilidade subalterna” na cultura política rio-grandense sempre encontrou (ora na resignação em direção à “integração ao centro”, ora na “rebeldia” em direção à autonomia regional) ressonância no discurso do fatalismo e da “decadência estadual” que a parte o jogo de interesses tinha eventualmente justificações concretas na instabilidade da agropecuária, nas oscilações cambiais, no esgotamento da fronteira agrícola e na concorrência real de produtos de valor mais agregado do eixo SP-RJ.

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(Haddad, 1997).

(a) reprogramação endógena do desenvolvimento: envolve de um lado o ajuste fiscal e financeiro, modernização da máquina administrativa, privatizações, desregulamentação de atividades e parcerias público-privado;

(b) compensação: esta estratégia é centrada na neutralização dos impactos adversos da política macroeconômica a nível regional, através de ações mitigadoras ou compensatórias;

(c) ativação social: objetiva atualizar recursos potenciais e latentes na economia regional e local, ainda não mobilizados por causa de um padrão de organização político-cultural inadequado ou não empreendedor.

Aquela estratégia que mais se aproxima de um modelo mais democrático de desenvolvimento seria a função de ativação social. Este modelo de planejamento do desenvolvimento regional adota a perspectiva “de baixo para cima”, isto é, pressupõe que o crescimento se inicia espontâneamente ou de forma incentivada (política fiscal ou de crédito, por exemplo) em determinadas áreas no território e posteriormente se difunde para os demais setores. A operação deste paradigma está diretamente relacionada ao capital social5 presente no território, notadamente a fatores sócio-culturais, históricos e institucionais que impulsionam ou não ambientes de inovação, aprendizado e solidariedade social.

Os componentes essenciais desta estratégia seriam:

• “atribuição de prioridades para programas e projetos que sirvam às necessidades básicas da população (alimentação, habitação, serviços de infra-estrutura econômica e social, mobilizando ao máximo a utilização de recursos locais;

• provisão de acesso amplo à terra como principal fator de produção e como principal base (juntamente com o nível de renda real) para o consumo nas áreas rurais e para a formação de patrimônio das famílias de baixa renda em áreas urbanas;

• garantia de maior grau relativo de autodeterminação para as áreas periféricas, em relação à utilização e à transformação das instituições existentes (ou criação de novas), para a promoção de seu desenvolvimento em função de seus próprios objetivos;

• seleção e adoção de processos tecnológicos que preservem plena utilização de recursos abundantes localmente “ (Haddad, 1997, p. 24).

A estratégia da “ativação social” dá ênfase à mobilização de recursos locais contra uma concepção de busca quase com “fervor quase religioso” e incondicional de investimentos externos, públicos e privados. A suposição é de que a manutenção do estilo de vida próprio, da pluralidade cultural e das atividades voltadas ao atendimento das necessidades básicas da população são elementos de diminuição da vulnerabilidade das economias locais e regionais aos impactos negativos das crises externas e conseguem sustentar e generalizar

5 Emprega-se o termo “capital social” no sentido em que é dado por Putnam (“Comunidade e Democracia, a experiência da Itália Moderna”, FGV, 1996). É um conceito que designa um conjunto de características não diretamente mercantis que organizam as relações sociais em determinados grupos e territórios na direção da cooperação, solidariedade e confiança mútua entre os agentes de modo a viabilizar ou facilitar as ações de caráter coletivo. Segundo o Banco Mundial são as instituições, relações e normas que conformam a qualidade e quantidade das interações sociais de uma sociedade como um fator de coesão social, incluem-se as redes sociais, horizontais e verticais, sistemas de governança e institucionalidade, judiciário e regime político.

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endogenamente um ciclo de desenvolvimento. Conceito de desenvolvimento que é certamente mais do que o crescimento do PIB per capita ou da quantidade de telefones por mil habitantes...

Storper (1994) defendendo a criação de trajetórias tecnológicas próprias para o desenvolvimento regional aponta a necessidade de apostar nas instituições regionais como verdadeiras “convenções” de conduta dos agentes econômicos públicos e privados. Estas condutas seriam definitivamente reguladas e estimuladas pela ação estatal na criação de centros regionais de difusão tecnológica capazes de agenciar projetos de desenvolvimento, na capacitação de mão-de-obra necessária para o redirecionamento da matriz produtiva, na criação de centros de serviços de apoio e de intercâmbio de informações inter-firmas e na promoção de fundos de desenvolvimento tais como linhas de crédito e fomento específicas para cada configuração territorial.

Portanto, pode-se concluir que a experiência de planejamento regional no Brasil tem marcadamente duas fases muito distintas. A primeira delas iniciada no pós-guerra, simbolizada pelo longo período e constituição do parque industrial nacional no ciclo desenvolvimentista, foi marcada pelas grandes intervenções no território. Grandes obras de infra-estrutura rodoviária, energética ou de transportes para garantir as condições gerais de reprodução do grande capital e socializar custos de implantação das grandes plantas industriais. Uma segunda fase inicia com a crise fiscal dos anos oitenta com a drástica redução de recursos públicos para projetos de desenvolvimento, diminuição da capacidade de intervenção pública e esgotamento do modelo desenvolvimentista com quase todas as empresas do então chamado “setor produtivo estatal” em dificuldades financeira e/ou produzindo bens e serviços de baixa qualidade.

4. A trajetória do planejamento no Estado do Rio Grande do Sul.

O Rio Grande do Sul é o estado mais meridional do Brasil, fazendo fronteira a sudoeste com o Uruguai e a Noroeste com a Argentina. Com dez milhões de habitantes (2000) distribuídos em 497 municipalidades e uma taxa de urbanização de 81,6% 6 o estado tem uma formação sócio-econômica peculiar. Há grosso modo três grandes macro-regiões com dinâmicas urbano-regionais diferenciadas. A primeira compreende a porção nordeste do território que foi originariamente industrializada e vinculada às conexões com os maiores centros produtores e consumidores nacionais, esta região compreende um eixo regional de polarização industrial entre as cidades de Caxias do Sul (360 mil habitantes) e a capital do Estado, Porto Alegre (1,2 milhão de habitantes). A segunda parte é representada pela região mais ao sul cuja dinâmica econômica é menor e há predomínio da pecuária, cultivo do arroz e grande concentração fundiária. A terceira parte da região mais o norte do Estado tem base econômica mais diversificada com alguns pólos industrias (máquinas agrícolas), presença dominante do setor primário em pequenas propriedades, com cultivo da soja em propriedades maiores. Ao longo das últimas quatro décadas verifica-se um movimento de

6 Os dados quantitativos sobre a situação do Rio Grande do Sul podem ser encontrado no site www.fee.tche.br da Fundação de Economia e Estatística vinculada à Secretaria de Estado da Coordenação e Planejamento, SCP.

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“desconcentração concentrada” ou “transbordamento” do crescimento industrial a partir do pólo influenciado pela capital, que rapidamente se converte em centro de serviços.7

A identidade econômica do Estado fundamenta-se, no decorrer do século XIX, na exportação do charque (carne salgada para alimentação de escravos no Brasil-império) para os centros cafeeiros e açucareiros da economia brasileira. Esta atividade, com fraca demanda e poucos efeitos externos, não logrou estabelecer forte integração com os mercados nacionais. A região, mesmo assim, conseguiu colocar-se como o quarto Estado no ranking nacional até o início do século passado. Entre os fatores potencialmente explicativos desta trajetória certamente encontram-se a disseminação de uma cultura de “proprietários livres” formalizada pelas sucessivas levas de imigrantes desde 1820 que criaram uma cultura produtiva de pequenas propriedades agrículas na parte nordeste e depois norte do estado, estímulo a um pequeno mercado interno, com fortes taxas de escolarização e identidade sócio-cultural. Um fato importante que marca um aspecto notável da cultura política regional foi o domínio - a partir do conflito armado de 1893-1895 (chamada “Revolução Federalista”, transição para o período republicano) – do Partido Republicano Rio-Grandense. Um partido burocratizado, disciplinado, com nítida opção positivista, agregava desde setores da pecuária dominante até parte do colonato e camadas médias urbanas. Sob o governo de Borges e Castilhos o Estado regional intervém ativamente na constituição de infra-estrutura básica para assegurar a reprodução do capital e a integração aos mercados nacionais. O Estado positivista – regulador da atividade econômica de “interesse social” - promoverá, de fato, as primeiras experiências de planejamento governamental: o Plano Geral de Viação do Estado, de 1913. O resultado de sucessivas encampações da rede ferroviária (1920) e do porto de Rio Grande (1919), vitais para circulação do produto da pecuária e integração com outros mercados consumidores. Com o fim da chamada “República Velha”, a partir da reorganização política-econômica forjada pela “Revolução de 30”8 o Estado do Rio Grande do Sul será progressiva e inexoravelmente reativo aos ciclos de expansão e crise da economia nacional, particularmente do centro mais dinâmico no sudeste (economia paulista).

Esta integração como fornecedor de produtos agro-industriais semi-processados – subordinada à decisão de investimento do centro comprador paulista – não impediu, mas ao contrário, estimulou um certo grau de especialização regional (couro-calçado, máquinas agrícolas, indústria fumageira, terciário especializado, etc...) fortemente estimulado pelo ação planejada do Estado. Este tipo de planejamento cumpriu essencialmente um papel articulador e organizador da acumulação capitalista regional, isto é, serviu como mediação política-institucional entre os setores da oligarquia regional mas tradicionais ligados a pecuária sulista-extensiva e os setores urbano-industriais vinculados aos interesses externos à economia regional.

Segundo Dalmazo (1992) no período imediatamente posterior ao da consolidação do

7 Sobre o processo de desindustrialização de Porto Alegre e a relação entre a dinâmica urbano-regional e o crescimento econômico há referências importantes que podem ser consultadas especialmente em Alonso, J. e Bandeira, P. (1988) A desindustrialização de Porto Alegre: causas e perspectivas, Ensaios, FEE, v9, n.1, p.3-28 e Bandeira, P. (1988) O Rio Grande do Sul e as tendências geográficas do crescimento da economia brasileira, FEE, Porto Alegre. 8 a repercussão modernizante e centralizadora sobre a formação do Estado brasileiro já foi comentada no primeiro item deste trabalho.

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movimento de trinta o planejamento não foi efetivado por um órgão centralizado dentro da estrutura estatal. A setorialidade do planejamento público pode ser constatada pela atuação do DAER (1937) responsável pelo Plano Rodoviários Estadual de 1938 e da Comissão de Coordenação de Transporte (1953) encarregada do Plano Rodoviário ou – por exemplo - da Comissão Estadual de Energia Elétrica (1947) encarregada de gerenciar os planos de eletrificação. Na verdade o aparelho institucional regional para o planejamento do desenvolvimento começou a ser montado ainda na fase final da República Velha como a Diretoria de Agricultura, Indústria e Comércio criada em 1928 por Getúlio Vargas (1928/1930) que desdobrou-se mais tarde (1936) na Secretaria da Agricultura do Estado.9 Alguns exemplos significos do planejamento setorial deste período estão elencados na tabela seguinte:

Plano setorial Finalidade Instituição

Plano Rodoviário Estadual

(1938)

Consolidou uma malha de 7.400 Km de estradas (3.900 Km não pavimentadas) e consumiu 22% das receitas tributárias

entre 1938/43

Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem e DNER a

partir de 1945.

Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul

(1945)

Permitiu subir de 2.300 kw em 1947 para 127.237 kw em 1956. Executado com recursos do tesouro do estado, federais (DNOS) com estatização de

geradoras e distribuidoras locais privadas.

CEEE, parcerias federais com o Departamento Nacional de Obras

de Saneamento (DNOS).

Plano de Desenvolvimento Agrícola

(1936)

Fomento agrícola, melhoramento de espécies, incentivo à mecanização, defesa sanitária animal e vegetal e

incentivos à colonização das fronteiras agrícolas do Estado.

Secretaria da Agricultura e Ministério da Agricultura (federal)

Plano de Saneamento Urbano (1943)

Executar serviços de abastecimento de água e esgoto. Em 1943 somente 21

cidades possuíam abastecimento regular de água.

Secretaria de Obras

Uma tentativa de sintetizar um conjunto de planos setoriais foi representada pelo I Plano de Obras, Serviços e Equipamentos durante o governo de Ernesto Dornelles em 1954. Neste plano surge pela primeira vez na história do planejamento gaúcho uma visão de conjunto dos serviços públicos, um esforço racionalizador do gerenciamento do aparelho de Estado e intensa articulação com o planejamento nacional.

A organização formal do sistema de planejamento do Estado iniciou num segundo período marcado pelo intenso debate político-ideológico das duas grandes correntes: a inserção mais subordinada do Estado como fornecedor de matérias primas (bloco PSD/UDN) e a outra de

9 É verdadeiramente notável a proliferação de organismos estatais para organizar/articular pressões de agentes econômicos tradicionais no período inicial de industrialização gaúcha e unificação de um mercado nacional: Instituto de Carnes (1934), Instituto do Arroz (1934), Instituto da Banha (1936), Instituto do Vinho, do Fumo, do Mate (1936), Associação de crédito e assitência rural (1955), Comissão de Silos e Armazéns (1952).

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uma inserção mais autônoma, reivindicatória, advogando a diversificação produtiva a partir das potencialidades locais (bloco PTB/PRP/PSP). Em 1959 foi criado o Gabinete de Administração e Planejamento (GAP) e o Conselho de Desenvolvimento do Estado (CDE), como instâncias básicas de centralização das informações financeiras, fiscais e acompanhar o processo de industrialização. O GAP e o CDE gerenciaram a execução de dois planos importantes na época: o II Plano de Obras, Serviços e Equipamentos (1959 – 1962) e o Plano de Investimentos e Serviços Públicos (1964 – 1966), este último representou uma “... proposição mais ousada e complexa de planejamento global da economia gaúcha “ (Dalmazo, 1992,pág. 110).

É interessante registrar que, segundo Lenz (1980), a perda progressiva de autoridade do gabinete de planejamento na época esteve relacionada aos conflitos entre a esfera técnica e os gestores políticos dos órgãos setoriais, com a predominância destes últimos na decisão final. Esta autora identifica neste processo a existência de dois estilos de planejamento: um do tipo “incremental” – relacionado diretamente à conveniência política dominante e outro “globalista” mais relacionado à racionalidade técnica. Esta assertiva revela, de um lado, uma crítica sadia às estratégias políticas que nem sempre são pensadas como demandantes de viabilidade técnica, mas por outro lado, revela uma separação ilusória entre a sempre “boa técnica” e a eterna “má” política, na verdade os processos de planejamento governamental possuem natureza técno-política (coomo será visto na parte em que é abordada a renovação metodológica do planejamento público adiante).

A implantação pioneira no Brasil do orçamento-programa (em 1962) permitiu a consolidação da vinculação entre planejamento e orçamento e como resultante maior eficácia na alocação dos recursos públicos. A influência positiva dos resultados do Plano de Metas a nível nacional (embora este pouco tenha alvancado a economia gaúcha) impactaram positivamente na credibilidade do planejamento regional. Em 1967 foi criada a Comissão Central de Planejamento centrada na elaboração do orçamento estadual, sob influência da nova legislação federal (Lei 4.320 de 1964). A necessidade de estabelecer os Orçamentos Plurianuais de Investimento para períodos de três anos (o primeiro foi para o período 1968 –1970, segundo a Lei Complementar n. 3/67), a complexidade crescente das variáveis envolvidas nos diversos planos setoriais e na atuação da administração indireta fez com que em 1969 fosse criada a Secretaria de Coordenação e Planejamento (SCP), unificando os organismos anteriores e centralizado toda ação de planejamento estadual. Para formação de quadros técnicos e gerentes capazes de sustentar o processo de planejamento foi criada a Fundação de Economia e Estatística e o Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos (atual FDRH) vinculados à SCP, no ano de 1973 e 1972 respectivamente.

A experiência estadual de planejamento mais global no período 1959 –1974 foi reveladora “...do abismo existente entre a definição de um plano com objetivos e metas e as ações planificadas, quando não se controlam os instrumentos e as variáveis básicas (política econômica e recursos). A dimensão de tais fatores conduziu à simplificação na forma do planejamento estadual, centrando-se na capacidade latente de negociação e de articulação com o Governo Federal, através da gestão política, da formulação de diagnósticos e da organização e do controle das finanças estaduais para drenar e atrair recursos e investimentos do Estado e de capitas privados” (Dalmazo, 1992, pág. 134).

Nos anos noventa o formato institucional do planejamento de governo em âmbito estadual foi definido pela Constituição de 1988 que estabeleceu a confeção dos Planos Plurianuais

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(PPA) com duração de quatro anos, iniciando no início do segundo ano do mandato executivo, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com a função de fixar os parâmetros gerais de gestão orçamentária, fiscal e tributária para o ano seguinte e a Lei de Orçamento Anual (LOA) 10. O atual PPA 2000/2003 em vigor no Estado do Rio Grande do Sul estabelece três grandes diretrizes11: (a) desenvolvimento econômico com ênfase nos aspectos redistributivos, geração de emprego e renda e diversificação produtiva a partir dos sistemas locais de produção; (b) qualidade de vida para todos que focaliza na afirmação de direitos, garantias de inclusão social e políticas sociais universais e (c) a democratização da gestão pública com a implantação do orçamento participativo, transparência administrativa e qualificação das relações de trabalho com o funcionalismo público estadual. O plano é estruturado em 113 Programas totalizando um total de R$ 19 bilhões de recursos em investimentos (preços de março de 1999) para sua execução de fonte tributária (55,7%) e empréstimos ou receitas da administração indireta. Um resumo da distribuição da Despesa prevista no Plano Plurianual está na tabela a seguir (não inclui empresas estatais). A previsão financeira do plano não abrange serviços meios, inativos e despesa de pessoal de serviços meio.

Receitas Em reais (R$)

Estimativa da Receita 33,4 bilhões

Despesas (1) (2)

Atividades Fins - Despesas Correntes 10,6 bilhões

Atividades Meio - Despesas Correntes 10,0 bilhões

Despesas de Capital 4,0 bilhões

Serviço da Dívida 1,5 bilhões

Transferência a Municípios 7,4 bilhões

(1) Por exigência legal só é apresentado no Plano Plurianual as despesas de capital e as despesas correntes de atividades fins.

(2) O investimento das empresas estatais soma R$ 1,1 bilhões.

A base metodológica para elaboração do PPA foi construída considerando três elementos centrais : (a) a ênfase fortemente regionalizada (conforme art. 165 da CF/1988 e lei complementar estadual 10.336/1994), considerando a tradição dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento – COREDES12 (b) a combinação com a tradição setorial de planejamento

10 Como parte integrante do projeto de “Reforma do Estado” (aprovado em 1995) e ajuste fiscal do governo federal brasileiro foi promulgada em maio de 2000 a Lei de Responsabilidade Fiscal reforçou o sentido geral de planejamento fiscal, recomendou participação popular no processo e reforçou o papel disciplinador da LDO. 11 O documento integral pode ser obtido no sitio www.scp.rs.gov.br 12A sua construção, objeto de inúmeras outras tentativas até chegar ao formato final, remonta ao início da década de 90, após um período de maturação tanto por parte dos órgãos encarregados do planejamento

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que é historicamente muito forte, as secretarias de Estado surgiram da execução de planos setoriais e (c) o envolvimento direto do centro de governo no acompanhamento e decisão sobre eventuais ajustes ao longo do processo. Conforme o diagrama a seguir:

PROGRAMADE

GOVERNO

PLANEJAMENTOGLOBAL/

SETORIAL

IMAGEM OBJETIVO

MACRODIRETRIZES – DESENVOLVIMENTO DE VERDADE – QUALIDADE DE VIDA PARA TODOS – GESTÃO PÚBLICA E DEMOCRÁTICA

INTE

RAÇÕ

ES IN

STIT

UCIO

NAIS

PLANEJAMENTOREGIONAL

DECISÃO - IMPLEMENTAÇÃOCentro de Governo Secretarias

DIAGRAMA SUCINTO DO SISTEMA DEPLANEJAMENTO ESTATÉGICO

ACO

MPA

NHAM

ENTO

5. As perspectivas do planejamento regional participativo.

O desenvolvimento de uma região está intimamente associado à capacidade de organização social e mobilização dos seus diversos atores na sustentação de estados crescentes de desenvolvimento. A endogenia do desenvolvimento como visão que rapidamente ganha espaço metodológico nos planejamentos estaduais – de maior ou menor escala – recupera o conceito de espaço local, economia das redes e mercados alternativos para setores não convencionais. As formas participativas de planejamento – nucleadas na rede de compromissos inter-atores sociais – são o complemento indispensável para viabilizar estas experiências. Ao contrário do paradigma tradicional de planejamento normativo tecnocrático

regional e da articulação com as regiões no Estado, como pelos agentes regionais e entidades civis que participaram desta primeira etapa. Sua criação objetivava cumprir com a finalidade de suprir a falta de instâncias de articulação regional, constituindo-se paralelamente em instrumento de mobilização da sociedade e fórum de discussão e decisão a respeito de políticas e ações que visassem o desenvolvimento regional. Foram criados pela Lei nº 10.283, de 17/10/94.

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que, mesmo modernizado, só admite o processo participativo como homologatório de decisões já processadas, na perspectiva do desenvolvimento endógeno, baseado nos sistemas locais de produção e geração de renda, a participação é essencial para a produção das soluções de compromisso.

O conceito de sustentabilidade do desenvolvimento igualmente dialoga com a metodologia participativa porque só se viabiliza através de sucessivas sínteses e pactos entre as instituições em torno de consensos mínimos de macro-diretrizes e objetivos de longo prazo. A sustentabilidade não se restringe, neste caso, ao aspecto ambiental ou à relação entre a taxa de consumo dos recursos vis à vis a taxa de renovação e conservação dos mesmos. Há que se considerar necessariamente uma dimensão econômica da sustentabilidade, uma dimensão social – que é centrada na inclusão social – e uma dimensão política relativa à permanência e estabilidade de certas estratégias dominantes e processos de decisão coletivos.

Para Boiser (1996), por exemplo, as condições de retomada do planejamento do desenvolvimento regional dependem da capacidade dos atores regionais em acumular poder político suficiente para disputar o excedente criado nacionalmente. Entretanto, para que isso seja possível todo um movimento de liderança regional, de animação regional, com agentes catalisadores de informação entrópica e criadores de sinergia deve ser posto em prática. Segundo este importante autor “...o consenso político, o pacto social, a cultura da cooperação e a capacidade de criar, coletivamente um projeto de desenvolvimento...” (p. 124), seriam centrais na ativação de um projeto regional. Mesmo que o modelo de desenvolvimento seja voltado para disputar as oportunidades externas ou atrair investimentos de outros mercados há todo um conjunto de fatores puramente endógenos que deve ser considerado e implementado.

Alguns dos problemas centrais para o desenho de uma estratégia de planejamento participativo a nível regional/estadual podem ser sistematizados segundo os elementos descritos a seguir.

(1) Precariedade ou inexistência de sistemas de informações formais e informais da população. Acesso a informação é condição essencial para o planejamento assumir uma função democrática no sistema de governo. A fragilidade dos sistemas de informação contribui para a concentração de poder em poucos e elitizados centros decisórios. Mesmo em muitos processos de planejamento a informação é produzida, mas não disponibilizada. Muitas vezes está disponível, mas é inacessível por inviabilidade de meios ou linguagem ou acontece fora do tempo político adequado para subsidiar o processo de decisão;

(2) Baixo grau de organização popular e social e tradição de fraca autonomia frente aos aparelhos do Estado pode conduzir a degenerações do processo participativo no sentido manipulatório e clientelista (participação regulada). É por isso que os processos mais bem sucedidos de planejamento participativo são aqueles próximos do universo imediato da cidadania (e do seu universo cognitivo também). Na esfera municipal o interesse dos vários grupos de pressão é imediatamente identificado, por exemplo, em torno dos serviços públicos ou obras de infra-estrutura. As vantagens deste tipo de ambiente são ainda fortes no contexto regional – que deve por isso mesmo ir além de uma simples “articulação de cidades”- e mais difíceis a nível nacional;

(3) A cultura tradicional dos sistemas de planejamento - linguagem codificada, postura tecnocrática dos corpos técnicos e grau de generalidade dos plano – aliada às deficiências

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metodológicas para trabalhar em ambientes conflitivos com múltiplos atores sociais pode criar uma “barreira de entrada” ao protagonismo social efetivo. Não se trata da “tradução” de uma linguagem tecnocrática para uma “pedagogia” popular, mas a própria negação e superação desta cultura no processo de interação entre os espaços públicos , estatais ou não, e privados de formação dos consensos sociais mínimos.

(4) A coordenação de um processo participativo de planejamento do desenvolvimento regional é dificultada pela existência de múltiplos marcos conceituais e metodológicos entre as diferentes agências estatais, estaduais e federais, a começar pelo conceito de território e delimitação das conhecidas “regiões de planejamento”. Escondidas em relatórios, diagnósticos e projetos as estruturas reais de poder, os conflitos de natureza eminentemente política operam efetivamente e determinam em última instância quanto eficaz será a coordenação das instâncias planejadoras. Antes de nivelar diferentes marcos teóricos às custas da sublimação de conflitos ou desgastes permanentes no relacionamento, o problema central parece ser da constituição de forum adequado com regras formalizadas de funcionamento e decisão para a articulação possível de acordos intra e inter governamentais. Esta última questão é o problema central da coordenação no planejamento participativo.

(5) Um outro campo de problemas, mais difusos e ideológicos, se relacionam ao freqüente reducionismo econômico do planejamento público que omite deliberadamente a influência das relações de poder nos problemas de alocação “ótima” dos recursos disponíveis. Este problema afeta diretamente as correntes mais ortodoxas da ciência econômica e os modelos macroeconômicos delas resultantes. As opções políticas, os juízos éticos e morais e a manifestação plena de marcos e paradigmas ideológicos na tradição do planejamento econômico são ausentes, ocultas ou deliberadamente omitidas para preservar interesses dominantes (cuja legitimidade retoma paradoxalmente o campo de disputa de poder).

O enfrentamento destes problemas aponta para duas grandes estratégias para a gestão democrática do Estado: (a) uma primeira é reestabelecer a coordenação planejada das funções de governo, inclusive no campo da integração entre as ações de planejamento e orçamento e (b) a renovação metodológica das metodologias, técnicas e linguagens dos planejamento público não-economicista e não-autoritário.

Debatendo a relação entre equidade, eficiência e democracia, Garnier (2000) reafirma a necessidade de retomada da capacidade de planejamento público através das funções de coordenação dos órgãos de planejamento. Segundo suas palavras

“...el papel fundamental de la planificación es el de lograr un equilibrio dinámico y mutuamente enriquecedor entre ambas perspectivas: entre la reflexión y la acción, entre la ambiciosa visión de conjunto y de largo plazo y el aqui y ahora en que siempre opera la acción política. Esta actividad de síntesis es indispensable para manter un adecuado grado de coordinacíon entre los distintos níveles del gobierno, entre las distintas políticas, entre sus distintas instituciones, y sus distintos programas...” (pág. 14).

A coordenação das políticas econômicas deve garantir a coerência, por exemplo entre a condução do sistema financeiro de âmbito estadual/regional e os objetivos de desenvolvimento econômico de longo prazo, a política tributária com a necessidade de seletividade no estímulo aos setores privados específicos e assim por diante. A sistematicidade desta coordenação é inevitável na esfera nacional quando os preços básicos da economia (juros, salários e câmbio) tendem a anular-se mutuamente, por exemplo, na

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política fiscal e monetária caso o curto prazo se converta em horizonte único de planejamento e a inércia seja a única conjuntura possível.

Já a coordenação das políticas sociais como a articulação entre políticas de saúde, assistência social, geração de trabalho e renda ou saneamento sobre um mesmo público-alvo e território são fundamentais para aumentar a eficácia e a potência cruzada de programas sociais e assim sua sustentabilidade. Na política habitacional, por exemplo, a integração das políticas de desenvolvimento urbano – variadas e complexas – com a geração de emprego e renda torna indispensável a ação coordenada e planejada sob o riso de inviabilizar o êxito dos projetos. A política econômica é um elemento decisivo para a política social e vice-versa, a introdução de variáveis políticas sobre a distribuição do peso do ajuste liberal na discussão econômica e a superação da função compensatória e focalizada das políticas sociais só pode ser operada institucionalmente num quadro de coordenação planejada.

A experiência de participação do Governo do Rio Grande do Sul, conhecida como "orçamento participativo" tem chamado a atenção pela escala e natureza do processo decisório13. Um dos desafios metodológicos colocados é como ampliar o processo participativo restrito à escolha orçamentária para o tema do planejamento estratégico de governo de longo prazo. Por isso os instrumentos jurídicos disponibilizados pela legislação em vigor, se combinados com o processo de participação direta dos cidadãos (que deve ser hierarquizada conforme os graus de liberdade que cada nível decisório condiciona), podem criar as oportunidades institucionais para o aperfeiçoamento democrático na direção do planejamento participativo, regionalizado e de caráter estratégico.

No âmbito do Rio Grande do Sul – não muito diferente do balanço que se faz a nível federal - o atual PPA 2000/2003 não cumpriu suficientemente ou com a efetividade esperada o papel de organizador das diretrizes estratégicas do governo e da execução de programas. Um dos motivos identificados é a permanência de um desenho organizacional ainda muito desarticulado do aparelho de Estado que induz à fragmentação do processo decisório e execução dos projetos e reforça um modus operandi de baixa governança participativa. O desafio, portanto, é aproveitar a oportunidade histórica que coloca a possibilidade de conexão entre este aprendizado e o período de elaboração do próximo plano (2004/2007)que inicia com o novo governo eleito em 2002.

No PPA as ações estratégicas de governo são elaboradas previamente assumindo o formato específico de diretrizes, programas e objetivos em cada unidade administrativa. Os sistemas de monitoramento, gestão e avaliação de desempenho dos programas previstos devem ser construídos no mesmo processo de elaboração de modo a compatibilizar e envolver o conjunto das organizações públicas no seu resultado. A compatibilização de conceitos, métodos e critérios de análise é pressuposto entre os órgãos públicos para transperência da

13 Com a realização de 735 assembléias públicas regionais e municipais, Orçamento Participativo-RS totalizou, em 2001 a presença de 378.340 pessoas. Realizadas nas 22 regiões do Rio Grande do Sul e nos 497 municípios, de 17 de março a 5 de junho, esta foi a etapa da participação popular direta, voluntária e universal na proposição e discussão de demandas, seguida da votação de prioridades para o Orçamento Estadual de 2002. Pelo terceiro ano consecutivo o OP-RS registrou significativo crescimento no número de cidadãos presentes nos debates sobre o orçamento público, indicando onde os recursos devem ser aplicados com prioridade pelo Estado”. Fonte: www.estado.rs.gov.br/

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ação administrativa e otimização dos fluxos de informação.

A modernização do PPA em instrumento efetivo de planejamento e gestão democrática supõe uma estratégia que se materializa em grandes processos institucionais:

(a) Desencadear o debate programático dos conteúdos estratégicos, típicos de um plano de governo, durante o processo eleitoral com todas as forças políticas, para estabelecer o necessário vínculo entre o processo democrático de escolha das diretrizes programáticas-eleitorais e sua posterior reelaboração como programa de governo.

(b) Promover desde o resultado eleitoral definitivo no processo de transição e depois nos primeiros meses do governo que inicia um processo de consultas regionais e concerto coletivo entre os atores sociais e agentes econômicos que compõe o território. Este tempo é vital para um processo participativo mínimo e para consistência técnica e política dentro das várias áreas de governo.

(c) A adoção sistemática do princípio metodológico da gestão por programas, como base para a estruturação do planejamento estratégico e do funcionamento do sistema de gestão, monitoramento e avaliação de desempenho que complementa o sistema estadual de planejamento.

Compreende-se a Gestão por Programas como um princípio metodológico de organização da administração e do gerenciamento público. Ele se traduz pela organização das atividades governamentais de forma agregada e articulada em torno de grandes programas de ação com objetivos e meios necessários para obtenção dos resultados previstos. Os benefícios decorrentes da adoção deste princípio se manifestam num conjunto de resultados:

• Maior viabilidade e articulação entre os órgãos do governo; • Definição clara das metas e prioridades da administração, bem como dos resultados

esperados; • Relações entre as ações a serem desenvolvidas e a orientação estratégica de governo; • Na alocação de recursos nos orçamentos anuais coerentes com as diretrizes e metas

do Plano; • Conferência e transparência quanto à aplicação de recursos e aos resultados obtidos; • Facilitação do gerenciamento da administração, permitindo a avaliação do

desempenho dos programas.

O resultado é que as ações organizadas em programas facilitam a articulação entre o Plano ao Orçamento e viabilizam uma gestão pautada no acompanhamento criterioso e na avaliação permanente das ações de governo. Portanto, uma estratégia participativa de planejamento a nível regional – de acordo com a experiência acumulada no Rio Grande do Sul – apontaria para os seguintes elementos:

• o aprofundamento do diálogo direto e aberto com a população (derivado do OP). • o desdobramento da unidade intrínseca entre o “social” e o “econômico” (que emerge

em nossos documentos de “Estratégia do Desenvolvimento Econômico” e de “Políticas Sociais”).

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• o foco regional presente em distintos programas de naturezas diversas.

Sobressaem, então, as necessidades de: (a) qualificar a discussão sobre desenvolvimento regional no OP, trazendo a população para o planejamento participativo; (b) efetivar a gestão participativa; e (c) superar a fragmentação inter e intra órgãos e secretarias na elaboração e na execução dos programas. As etapas deste processo poderiam ser sistematizadas conforme a proposta seguinte:

(1) ETAPA DE PREPARAÇÃO14

Nesta etapa deverão ser efetivados processos de análise e documentação objetivando uma percepção crítica sobre a performance dos projetos do poder executivo inscritos no PPA em vigor. Propõe-se um “Inventário de Programas“; um levantamento das ações executadas no período 1999-2001; uma avaliação sumária das ações composta de um questionário a ser preenchido pelas secretárias setoriais e cujos dados serão tabulados pela equipe de planejamento.

Também nesta fase deve-se iniciar intenso e sistemático treinamento de quadros técnicos especializados do órgão de planejamento e das demais instituições públicas, objetivando a ajuda efetiva que estes deverão dar no momento mesmo da elaboração dos programas em cada área, setor, departamento. O conteúdo desta capacitação deve estar sintonizado com a própria metodologia de planejamento, particularmente as técnicas derivadas das concepções mais modernas e participativas (analisadas mais adiante). Os cursos devem envolver o conjunto das Assessorias de Planejamento de cada Secretaria e órgãos vinculados. Ainda consta dessa etapa a elaboração do sistema de informações gerenciais para o monitoramento das ações de governo, para que este sirva como sistema de informações gerenciais para o conjunto de programas do PPA e na seqüência como “janela” de entrada para o acompanhamento externo.

Nesta primeira fase é importante que o núcleo de planejamento estratégico do governo lidere um processo de reflexão crítica e identificação de oportunidades e ameaças para construção de uma imagem de futuro consistente com os padrões político-culturais minimamente consensuais dos atores sociais regionais. O objetivo é partir da definição eleitoral, ainda no período de transição de governo, provocar sistematicamente, nas macro-regiões o grande debate estratégico capaz de estabelecer aqueles pactos mínimos entre atores sociais mormente adversários, colocando na agenda política regional os temas da governabilidade, do projeto de governo e da capacidade para governar, temas que sustentarão o futuro plano. Neste sentido um “marco-referencial” problematizando os grandes gargalos e desafios regionais poderá ser produzido e formatado como insumo ao debate que a sociedade faz, valorizando a reflexão coletiva sobre a relação complexa existente entre programas eleitorais e agendas de governo.

Aqui já entra em cena com força o elemento participativo mesmo antes da posse jurídica do novo governo. Se houver descontinuidade administrativa – fato normal e previsível em sistemas de revezamento democrático no governo – o processo não se inviabiliza embora

14 Esta sistematização foi debatida originariamente no Departamento de Planejamento Estratégico da Secretaria da Coordenação e Planejamento - RS, sob a coordenação da Economista Gláucia Campregher.

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exija, com certeza, um grande nível de maturidade institucional e estabilidade política das forças contendoras.

(2) ETAPA DE ELABORAÇÃO

Com o novo governo devem ser deduzidas as macro-diretrizes que orientarão a construção dos programas – as Orientações Estratégicas de Governo. A preparação desse seminário, contudo, deve exigir reflexão para que o programa de governo eleito deve dar lugar a diretrizes “estratégicas”, ou seja, que estabeleça uma ordem, ou uma hierarquia, para o enfrentamento dos problemas então declarados cruciais. Na seqüência deste seminário, outro deverá ocorrer com os Secretários e seus corpos técnicos destacados, agrupados segundo as diretrizes estratégicas advindas do evento anterior. Deste saem, então, as Orientações Estratégicas de Programas. Isso garantirá que uma nova ordem de problemas surja e a identificação de cada um destes é que deverá dar origem a cada um dos programas específicos.

Ou seja, muitos dos problemas selecionados pela cúpula do governo (os mais complexos) exigirão ações combinadas de vários setores, o que também é válido para problemas mais localizados em determinados espaços ou regiões. Outros tantos problemas de caráter mais setorial se misturarão a estes ao longo da confecção do PPA 2004 - 2007.15

Constam ainda dessa etapa a previsão dos recursos para cada área (inclusive os recursos financeiros), após a projeção das receitas e despesas públicas para o período 2004-2007, será realizada a distribuição dos recursos, cujos critérios devem ser definidos; o detalhamento das ações de cada programa; a análise de sobreposições, suas compatibilidades e incompatibilidades; e a inscrição destes no sistema de acompanhamento.

(3) ETAPA DE CONSTRUÇÃO DO SISTEMA DE GESTÃO

O que se encerra na fase anterior é a elaboração de um plano pensado para ser gerido de modo eficaz, eficiente, e com resultados claros para ser acompanhado pelo governo e pela sociedade. Para tanto, alguns elementos de gestão devem estar previamente discutidos e construídos seus instrumentos (como ocorre com a avaliação) para que aquele objetivo maior se viabilize.

Isto decorre desta nova concepção de planejamento estratégico participativo que é intensiva em gestão, o plano só se completa quando se viabiliza estrategicamente e quando há um sistema de gestão, monitoramento e avaliação de desempenho funcionando em contextos de alta responsabilidade na organização pública e estatal.

Os elementos mais importantes seriam a integração entre plano e orçamento (PPA/OP/ LDO); a regionalização dos programas (e aqui o Orçamento Participativo assume papel regional

15 O PPA pode e deve ser revisto anualmente, acompanhado por conselhos regionais do Orçamento Participativo. Entretanto deve-se formalmente assegurar uma certa coerência na proposição de novos programas com o quadro pré-existente, esta tensão faz crescer nos agentes técnico-políticos a consciência do problema; este é que deve guiar a reflexão acerca da redefinição ou criação de novas linhas de ação.

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estratégico) e a incorporação da avaliação como instrumento de gestão.16 A etapa dois e três devem ser realizadas, evidentemente, a partir do compromisso político efetivo e protagonismo direto do governo eleito que se responsabiliza publicamente pelo seu projeto.

O diagrama a seguir tenta sinalizar e resumir as principais relações articuladas de modo ideal entre o processo de consulta e decisão do Orçamento Participativo, o PPA, o Planejamento Regional e o sistema de gestão/decisão do centro de governo.

P R O G R A M A D E

G O V E R N O

P L A N O P L U R IA N U A L

P L A N E JA M E N T O A T U A L IZ A D O (V ersão E x ecu tiv a B ase 1 )

P rog ram as e A çõ es A tu a liz ad o sM etas A tu a lizad a sP rio rid ad e sE stran g u la m e n to sR e cu rso sD esd o b ram en to E sp ac ia l

E S T R A T É G IA D E D E S E N V O L V IM E N T O

A Ç Õ E S P R IO R IT Á R IA S

M O N IT O R A M E N T O

E S T A T A IS

A Ç Õ E S E P R O JE T O S A T U A L IZ A D O S

S ecre ta ria s e Ó rg ão s V in c u la d os

P L A N E J A M E N T O G L O B A LT E M Á T IC O E S E T O R IA L

(V ersão E x ecu tiv a B ase 0 )C o n cep ção d e

D e se n v o lv im en toD ire tr iz e s d e

G o v ern oP ro g ram as e

A çõ es d e G o v e rn o

IM A G E M O B J E T IV O– D E S E N V O L V IM E N T O D E V E R D A D E– Q U A L ID A D E D E V ID A P A R A T O D O S– G E S T Ã O P Ú B L IC A E D E M O C R Á T IC A

OR

ÇA

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IPA

TIV

O P L A N E JA M E N T O R E G IO N A L

(In te rface )(V ersão E x ecu tiv a

B ase 0 )

F Ó R U N S EC O N S T IT U IN T E S

S E T O R IA IS

A C O M P A N H A M E N T OE A V A L IA Ç Ã O

– P lu r ia n ua l – P la n o E x ecu tiv o – D e se m p e n ho S e rv . P ú b lico s

D E C IS Ã O - IM P L E M E N T A Ç Ã OC en tro d e G o v ern o S ec re ta ria s Ó rg ão s V in cu lad o s

P L A N E JA M E N T O R E G IO N A L

(In te rface )(V ersão E x ecu tiv a

B ase 1 )

V ersãoB ase 2

P L A N O P L U R IA N U A L E O R Ç A M E N T O D A U N IÃ O

1 7 /08 /00 1 7 :00

Fonte: SCP/DEPLAN

6. A integração necessária entre Planejamento e Orçamento

A desconexão do orçamento como instrumento efetivo de planejamento foi um dos sintomas mais emblemáticos da perda de governabilidade e capacidade de governo do Estado

16 Os indicadores de avaliação têm que contemplar oo grau em que se atingiram os objetivos, a relação entre os resultados e os custos, o efeito da ação sobre o problema e a relação ente os resultados e os objetivos inicialmente propostos, e efetividade das ações levadas a cabo pelos programas àquela associados e indicadores que retratem para os macro-problemas por trás das diretrizes um marco zero (o início do governo), para que se possa construir com mais rigor uma medida de sucesso da ação governamental.

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brasileiro. Entre os fatores responsáveis pela incompatibilização entre plano e orçamento pode-se registrar:

(a) o caráter genérico das metas definidas nos Planos Nacionais onde a “prioridade” recaia sobre as próprias funções de governo, obscurecendo a hierarquia de objetivos, ajustando-se nas conveniências político-corporativas e nas barganhas circunstanciais.17

(b) a incompatibilidade entre a estrutura de contas contábeis dos orçamentos e dos planos dificultou a verificação da execução das diretrizes planejadas através da execução do orçamento, situação que só começou a mudar a partir da flexibilização da classificação funcional-programática (estabelecida pela lei 4.320/64) a partir de 1998. Note-se que até a reforma da Constituição de 1988 – que substituiu os antigos Orçamentos Plurianuais de Investimento pelo Plano Plurianual (PPA) - o orçamento fiscal era absurdamente esvaziado pela existência de outros dois orçamentos paralelos, das estatais e o orçamento monetário.

Outros fatores menores também contribuíram para que o orçamento público se tornasse no Brasil uma verdadeira peça de ficção como a cultura inflacionária, o alto percentual de receitas vinculadas, a prática repetida de contingenciamentos lineares em função de ajustes fiscais permanentes (na ausência de critérios inteligentes de seletividade). A falta de transparência do orçamento público, que camufla muitas vezes renúncias fiscais, a falta de controle social sobre a despesa pública e a dificuldade de acompanhamento técnico somam-se aos problemas anteriores bloqueando as possibilidades de uso do orçamento como resultados final do processo de planejamento e gestão democrática. Neste contexto os orçamentos não traduziam estratégias de enfrentamentos de problemas, nem os planos se viabilizaram no orçamento como meio de financiamento de curto prazo das atividades estatais, sejam elas resultantes de despesas de natureza continuada ou investimentos pontuais de caráter mais polarizador e estratégico.

Sendo o orçamento público por definição a forma monetária para alocação de bens e serviços públicos que o mercado não pode ou deve ofertar a custos socialmente justos e eqüitativos, as soluções “ótimas” são virtualmente impossíveis. Não se pode precificar com precisão benefícios e custos de políticas claramente não mercantis ou eivadas de externalidades como as políticas sociais ou de justiça e segurança típicas do Estado (bens públicos puros). Olhando o processo desta maneira somente existe a possibilidade de construir “acordos possíveis” entre Governos e atores sociais constituídos, em soluções “sub-ótimas”, em outras palavras, o orçamento como instrumento de planejamento deixa de ser ferramenta meramente técnica – restrita ao universo contábil e fiscal – para se tornar verdadeiros “acordos políticos”.

A manutenção deste vínculo entretanto, na prática efetiva de governo, tem sido extremamente difícil no contexto da crise financeira prolongada em que vivem os governos federais e regionais no Brasil. Se a ênfase recai sobre o ajuste fiscal e a “administração do curto prazo” começa a predominar sobre qualquer outro critério de coordenação e planejamento então as secretarias e ministérios da fazenda, das finanças ou o sistema financeiro assumem um protagonismo pernicioso na coordenação das políticas. Quando este movimento institucional é consumado então perde-se definitivamente a possibilidade (e governabilidade) em vincular a dotação orçamentária às prioridades e metas estratégicas do

17 Conforme Affonso (1989), páginas 154 e seguintes.

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governo.

A coordenação entre orçamento e plano feita em bases participativas exige a dupla democratização: do orçamento e do processo de planejamento. A participação popular na discussão do orçamento – através do “Orçamento Participativo” (onde as experiências municipais são as mais conhecidas) representa um esforço para criar condições institucionais favoráveis à emergência da cidadania em novas formas de gestão sócio-estatal onde a sistemática “partilha de poder” baseada em critérios objetivos, impessoais e universais são os elementos mais fundamentais. Segundo Fedozzi (1997), este processo estabelece um novo tipo de “contratualidade”, uma “despatrimonialização” do Estado, uma ruptura com as práticas clientelistas, segundo ele

“...uma esfera pública ativa de co-gestão do fundo público municipal, expressa-se através de um sistema de racionalização política, baseado, fundamentalmente, em regras de participação e regras de distribuição dos recursos de investimentos que são pactuadas entre o Executivo e as comunidades e apoiadas em critérios previsíveis, objetivos, impessoais e universais. A sua dinâmica instaura uma lógica contratual favorável à diferenciação entre o “público” e o “privado” e, portanto, contraporia às práticas clientelistas que caracterizam o exercício patrimonialista do poder” (Fedozzi, 1997, pág. 199).

A experiência internacional (Garnier, 2000, Gault e outros, 1999) e boa parte da literatura sobre planejamento e orçamento (Affonso, 1989; Core, 2000) tem sido convergentes em pelo menos duas recomendações para efetivar a vinculação entre os dois processos:

(a) Ajustes metodológicos necessários: o orçamento deve se tornar um processo dentro do sistema de planejamento, para isso deve haver correspondência direta entre os programas – como proposta de ação e não classificação – de um e de outro. Os programas devem estar estruturados em produtos e resultados previstos com seus respectivos indicadores para acompanhamento e avaliação. Cada programa deve estar relacionado à identificação de macro-problemas concretos na esfera do projeto de governo. Só desta forma o orçamento possibilita a “gestão por programas” e não por setores ou departamentos.

(b) Adaptações institucionais necessárias: aqui dois aspectos são relevantes, o primeiro é a reconstrução da capacidade de planejamento público e o segundo é o monitoramento da execução do plano. O cumprimento do primeiro objetivo pressupõe que a coordenação orçamentária esteja subordinada às agências e organismos de planejamento, imune à simplificação e distorção da “administração do curto prazo” própria dos organismos financeiros e fazendários. Não há sentido, entretanto, em manter separado ou desvincular a elaboração do planejamento de governo do orçamento que o viabiliza, sem que o mesmo processo de planejamento possa monitorar a execução orçamentária, em sintonia com o gerenciamento da despesa e os fluxos financeiros da atividade fazendária. Por contraste e negação, a pior solução institucional e gerencial possível seria aquela que isolasse a ação de planejamento da elaboração do orçamento e esta, por sua vez, do controle de sua execução.

7. A renovação metodológica necessária

Com o aprofundamento da crise fiscal do Estado latino-americano, a retomada do processo democrático e a mudança do padrão de financiamento do do gasto público desde o final dos

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anos setenta estimulou-se a reflexão profunda e revisão dos antigos métodos de planejamento estritamente econômicos. Esta renovação metodológica – que desenvolveu-se ao largo da academia - orientou-se, nas palavras doe Haddad (1996), por um novo sistema de planejamento mais descentralizado, com maior participação (privada e comunitária), introduzindo novas técnicas de gestão, “...menos economicista e mais político-institucional...” (pág. 146). Entre estas iniciativas vêem ganhando notoriedade os trabalhos do economista chileno Carlos Matus (1993, 1997a, 1997b, 2000) conhecido como método de planificación de situaciones, que no Brasil foi divulgado no final dos anos oitenta como “PES – Planejamento Estratégico e Situacional“.

Os principais argumentos que sustentam o Planejamento Estratégico e Situacional podem ser assim resumidos:

I. Mediação entre o Presente e o Futuro. Todas as decisões tomadas hoje tem múltiplos efeitos sobre o futuro porque dependem não só da avaliação sobre fatos presentes, mas da evolução futura de processos que não controlamos, fatos que ainda não conhecemos. Portanto os critérios utilizados para decidir as ações na atualidade serão mais ou menos eficazes se antecipadamente puder analisar-se sua eficácia futura, para nós mesmos e para os outros. Qual o custo da postergação de problemas complexos ? Que tipo de efeitos futuros determinada política pública resultará ? Estes impactos futuros aumentarão ou diminuirão a eficácia do nosso projeto de governo ? Tais perguntas dizem respeito ao necessário exercício de simulação e previsão sobre o futuro, quando devemos adotar múltiplos critérios de avaliação e decisão.

II. É necessário prever possibilidades quando a predição é impossível: na produção de fatos sociais, que envolvem múltiplos atores criativos que também planejam, a capacidade de previsão situacional e suas técnicas devem substituir a previsão determinística, normativa e tradicional que observa o futuro como mera conseqüência do passado. Decorre desta percepção a necessidade de elaborar estratégias e desenhar operações para cenários alternativos e surpresas, muitas vezes, não imagináveis.

III. Capacidade para lidar com surpresas: o futuro sempre será incerto e nebuloso, não existe a hipótese de governabilidade absoluta sobre sistemas sociais, mesmo próximo desta condição há sempre um componente imponderável no planejamento. Deve-se então, através de técnicas de governo apropriadas, preparar-nos para enfrentar surpresas com planos de contingência, com rapidez e eficácia, desenvolvendo habilidades institucionais capazes de diminuir a vulnerabilidade do plano.

IV. Mediação entre o Passado e o Futuro: o processo de planejamento estratégico se alimenta da experiência prática e do aprendizado institucional relacionados aos erros cometidos. Portanto será preciso desenvolver meios de gestão capazes de aprender com os erros do passado e colocar este conhecimento a serviço do planejamento.

V. Mediação entre o Conhecimento e a Ação: o processo de planejamento pode ser comparado a um grande cálculo que não só deve preceder a ação, mas presidí-la. Este cálculo não é obvio ou simples, é influenciado e dependente das múltiplas explicações e perspectivas sobre a realidade, só acontece, em última instância, quando surge a síntese entre a apropriação do saber técnico acumulado e da expertise política. É um cálculo técno-político, pois nem sempre a decisão puramente técnica é mais racional que a política, e vice-versa. O cálculo estratégico dissociado da ação, será completamente supérfluo e formal, por

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sua vez, se a ação não for precedida e presidida pelo cálculo estratégico então a organização permanecerá submetida à improvisação e ao ritmo da conjuntura.

O enfoque proposto de metodologia de planejamento para o setor público, portanto, não é um rito burocrático ou um conhecimento que possa ser revelado a alguns e não a outros, mas uma capacidade pessoal e institucional de governar – que envolve a um só tempo perícia e arte -, de fazer política no sentido mais original deste termo. O processo de planejamento não substitui a perícia dos dirigentes, nem o carisma da liderança, ao contrário, aumenta sua eficácia porque coloca estes aspectos a serviço de um projeto político coletivo. Neste modo de ver a política, o governo e o planejamento ninguém detém o monopólio sobre o cálculo estratégico e sistemático sobre o futuro, há uma profunda diferença em relação ao antigo “planejamento do desenvolvimento econômico e social” tão comuns nos órgãos de planejamento de toda América Latina e particularmente na tradição brasileira como foi visto inicialmente.

Os métodos mais tradicionais de planejamento governamental são extremamente normativos, impessoais e se dizem neutros, pois se pretendem amparados na “boa técnica de planejamento”. Veja-se como se estruturam teoricamente tais visões:

1. Há sempre um ator que planeja e os demais são simples agentes econômicos com reações completamente previsíveis. O planejamento pressupõe um “sujeito” que planeja, normalmente o Estado, e um “objeto” que é a realidade econômica e social. O primeiro pode controlar o segundo.

2. As reações dos demais agentes ou atores são previsíveis porque seguem leis e obedecem a prognósticos de teorias sociais bem conhecidas. O Diagnóstico é pré-condição para o planejamento, ele é verdadeiro e objetivo (segue do comportamento social) , portanto, único possível, não explicações alternativas dos demais atores.

3. O sistema gera incertezas, porém são numeráveis, previsíveis enquanto tais, não há possibilidade de surpresas não-imagináveis.

4. O ator social que planeja não controla todas variáveis, mas as variáveis não-controladas não são importantes ou determinantes, não tem um comportamento criativo ou são controladas por outros atores.

5. Há nesta visão, uma aparente governabilidade, gerada pela ilusão de que as variáveis não controladas simplesmente não são importantes. A governabilidade e a capacidade de governar são reduzidas e absorvidos, em última instância, pela aparente pujança do projeto político (que é “verdadeiro” per si e portanto, auto-legitimado). Neste cenário só há uma teoria e técnica de planejamento, além do mais, suas deficiências não aparecem como problema a ser resolvido, os dirigentes se concentram mais nas relações de mando e hierarquia e no tempo gasto na tentativa de corrigir a ineficácia dos projetos (gestados convencionalmente).

Uma concepção estratégica de planejamento – como a proposta pela reflexão matusiana - parte de outros postulados. Na realidade social há vários agentes que planejam com objetivos conflitivos. A eficácia do plano depende da eficácia das estratégias dos seus oponentes e aliados. Não uma única explicação para os problemas, tampouco uma única técnica de planejamento. Neste modelo de poder compartilhado a teoria normativa e tradicional do planejamento perde toda sua validade. Normalmente pensamos que se nada deve mudar o

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planejamento é muito eficaz, embora desnecessário, por outro lado, se tudo está rapidamente mudando o planejamento é pouco eficaz, embora muito necessário. Este paradoxo aparente se dissolve quando abandonamos a idéia equivocada que associa o planejamento ao exercício inconseqüente da pura futurologia. Pensar estrategicamente neste novo enfoque pressupõe colocar as relações iniciativa-resposta de agentes criativos no lugar das relações causa-efeito, típica dos sistemas naturais.

O cálculo de planejamento é sempre interativo porque, sendo a eficácia do nosso plano dependente da eficácia do plano dos outros atores, há um componente de incerteza primordial, que é diferente de processos sociais repetitivos ou das relações das ciências naturais. Há portanto uma carga intensiva em formulação de estratégias e recursos de gestão, o oposto ao “plano-livro” estático e tradicional. O ator social ou agente econômico que planeja está inserido num jogo de final aberto, onde o próprio tempo já tem conceitos diferenciados conforme a percepção de múltiplos agentes em situação de poder compartilhado. Isto não quer dizer, entretanto que se rejeitem instrumentos e ferramentas metodológicas comumente utilizadas no planejamento normativo, ao contrário, tais ferramentas adquirem uma utilização ainda mais pragmática e eficaz.

Pode-se resumir os postulados teóricos deste enfoque metodológico nos seguintes argumentos:

I. O sujeito que planeja está incluído no objeto planejado. Este por sua vez é constituído por outros sujeitos/atores que também fazem planos e desenvolvem estratégias. Deste contexto surge o componente de incerteza permanente e o cálculo interativo que exige intensa elaboração estratégica e um rigoroso sistema de gestão. O caráter modular do enfoque estratégico deriva desta necessidade de redimensionar, agregar, combinar diferentes operações em diferentes estratégias.

II. O “diagnóstico” tradicional, único e objetivo, já não existe mais, no lugar surgem várias explicações situacionais. Como os demais atores possuem capacidades diferenciadas de planejamento, a explicação da realidade implica em diferentes graus de governabilidade sobre o sistema social.

III. Não há mais comportamentos sociais previsíveis e relações de causa-efeito estabelecidas. O “juízo estratégico” de cada ator determina a complexidade do jogo aberto e sem fim. A realidade social não pode mais ser explicada por modelos totalmente analíticos, a simulação estratégica assume nesse contexto uma relevância destacada.

IV. O planejamento deve centrar sua atenção na conjuntura, no jogo imediato dos atores sociais, o contexto conjuntural do plano representa uma permanente passagem entre o conflito, a negociação e o consenso, é onde tudo se decide. Na conjuntura concreta acumula-se ou não recursos de poder relacionados ao balanço político global da ações de governo. É por isso que “planeja quem governa”, e “governa” quem, de fato planeja. Quem tem capacidade de decisão e responsabilidade de conduzir as políticas públicas deve obrigatoriamente envolver-se no planejamento. A atividade de coordenação, assim, é indissociável do planejamento, que é , também, uma opção por um tipo organização para a ação que refere-se a oportunidades e problemas reais.

V. Os problemas sociais são mal-estruturados, no sentido de que, não dominamos, controlamos e sequer conhecemos um conjunto de variáveis que influenciam os juízos

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estratégicos dos demais agentes sociais envolvidos. Não há portanto como determinar com exatidão as possibilidades de eficácia do plano ou os resultados esperados em cada ação. Governar com plano estratégico mais do que resolver problemas significa promover um intercâmbio de problemas quando nosso objetivo é que problemas mais complexos e de menor governabilidade cedam lugar a outros menos complexos e de maior governabilidade.

VI. O planejamento não é monopólio do Estado, nem de uma força social situacionalmente dominante. O planejamento sempre é possível e seu cumprimento não depende de variáveis exclusivamente econômicas, qualquer ator, agente ou força social tem maior ou menor capacidade de planejamento e habilidades institucionais.

A visão normativa e a visão estratégica não existem em “estado puro” na prática do planejamento e nas técnicas de governo, embora a maioria dos órgãos públicos e da geração de técnicos trabalhe sobre influência predominante da primeira.

Este enfoque participativo e estratégico do planejamento de governo, no plano geral, é estruturado através de quatro grandes passos, ou fases que podem ser recursivas e não-lineares, mas que representam um sequenciamento lógico da elaboração teórica do planejamento. A seguir suas características básicas.

I . Momento Explicativo: no planejamento tradicional a realidade é dividida em setores e o método dos planejadores é tão fragmentado quanto são os departamentos dos órgãos de planejamento. O conceito de setor além de muito genérico e pouco prático é uma imposição analítica. O planejamento estratégico situacional propõe trabalhar com o conceito de problemas. A realidade é composto de problemas, oportunidades e ameaças. Esta categoria permite sintetizar a noção de explicação da realidade em suas múltiplas dimensões (inter-disciplinar) com a noção de direcionalidade do ator: saber selecionar e identificar problemas reais (atuais ou potenciais) e distinguir causas de sintomas e conseqüências já é mudar radicalmente a prática tradicional dos “diagnósticos” convencionais. Explicar a realidade por problemas também permite o diálogo e a participação com setores populares que afinal sofrem problemas concretos e não “setores” de planejamento, além de facilitar a aproximação entre “técnicos” e “políticos”. Na explicação da realidade temos que admitir e processar a informação relativa a outras explicações de outros atores sobre os mesmos problemas, isto é, a abordagem deve ser sempre situacional, posicionada no contexto.

II. Momento Normativo: após a identificação, seleção e priorização de problemas, bem como o debate sobre as causas, sintomas e efeitos estamos prontos para desenhar o conjunto de ações ou operação necessárias e suficientes para atacar as causas fundamentais dos problemas (também chamadas de Nós Críticos). Esta é a hora de definir o conteúdo propositivo do plano. O central neste modelo de planejamento é discutir a eficácia de cada ação e qual a situação objetivo que sua realização objetiva, cada projeto e isso só pode ser feito relacionando os resultados desejados com os recursos necessários e os produtos de cada ação. Os planos normativos normalmente terminam aqui, onde o planejamento situacional apenas começa, para que ações tenham impacto efetivo e real na causa dos problemas há ainda dois passos ou momentos fundamentais, o estratégico e o tático-operacional.

III. Momento Estratégico: se a realidade social não pode ser fragmentada em diferentes “setores”, se outros “jogadores” existem e tem seus próprios planos, se o indeterminismo e as surpresas fazem parte do cotidiano, então o debate sobre a viabilidade estratégia das

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ações planejadas não é só necessário como indispensável. Toda estratégia é uma exploração consciente do futuro, ela resulta da situação diferenciada dos vários atores em relação à problemas, oportunidades e ameaças. A parte a grande quantidade de conceitos envolvendo o termo “estratégia” aqui vamos adotá-la com um conjunto de procedimentos práticos e teóricos para construir viabilidade para o plano, para garantir sua realização com máxima eficácia. Dois instrumentos-processos cabem aqui: a análise de cenários e a análise criteriosa dos demais atores sociais ou agentes. Os cenários representam distintas reflexões, limitadas pela qualidade da informação disponível, sobre possíveis “arranjos” econômicos, institucionais, políticos, sociais, etc., capazes de influenciar positiva ou negativamente a execução das ações planejadas. Ao permitir a simulação sobre as condições futuras os cenários permitem a antecipação das possíveis vulnerabilidades do plano e a elaboração de planos de contingência necessários para minimizar os impactos negativos. Já a análise dos demais agentes envolvidos no espaço do problema-alvo do plano é imprescindível para identificar o possível interesse e motivação de cada um e o tipo de pressão que é (ou será) exercida em relação às ações planejadas. É obvio dizer que a elaboração de cenários e o “estudo do outro” só tem um grande objetivo: desenhar as melhores estratégias para viabilizar a máxima eficácia ao plano.

IV. Momento Tático-Operacional: é o momento de fazer, de decidir as coisas, de finalmente agir sobre a realidade concreta. É quando tudo se decide e por isso do ponto-de-vista do impacto do plano é o momento mais importante. Neste momento é importante debater o sistema de gestão da organização e até que ponto ele está pronto para sustentar o plano e executar as estratégias propostas. Para garantir uma resposta positiva será preciso acompanhar a conjuntura detalhadamente e monitorar não só o andamento das ações propostas, mas também a situação dos problemas originais. Deve-se reavaliar criticamente todo o processo interno de tomada de decisões, o sistema de suporte à direção, como os sistemas de informações, devem ser revistos e reformulados. Outros temas vitais neste momento são a estrutura organizacional, o fluxo interno de informações, a coordenação e avaliação do plano, o sistema de prestação de contas, as ferramentas gerenciais existentes e necessárias e finalmente a forma, dinâmica e conteúdo da participação democrática na condução do plano. Não podemos esquecer que o planejamento estratégico só termina quando é executado, é o oposto à visão tradicional do “plano-livro” que, separando planejadores dos executores, estabelecia uma dicotomia insuperável entre o conhecer e o agir. Na tabela a seguir há uma comparação sintética entre o enfoque tradicional e o proposto.

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ASPECTOS E PROCEDIMENTOS ABORDAGEM CONVENCIONAL ABORDAGEM PROPOSTA (1) Objeto do Planejamento Situação passiva Situação ativa e complexa

(2) Explicação da realidade Baseada em diagnósticos e leis Apreciação situacional

(3) Concepção de Plano Normativo e prescritivo Jogadas sucessivas e apostas

(4) Análise estratégica Consulta de especialistas Análise de viabilidade técno-política

(5) Atores Sociais Genéricos Específicos e com trajetórias definidas

(6) Conceito de Operação Ação isolada do plano Medição entre plano e ação

(7) Papel da Gestão Não é um problema do plano É onde tudo se decide, momento central do plano.

(8) Agenda da direção Domínio das urgências e improvisação Domínio das importâncias e do planejamento estratégico

(9) Prestação de Contas Não há ou tem função ritual. É sistemática e orienta a qualificação da gestão.

(10) Gerenciamento do Plano Gerência por setores ou departamentos, domínio da rotina

Gerência por Operações, domínio da criatividade, intensivo em

gestão.

A filosofia de planejamento de inspiração matusiana não é uma “panacéia”, possuindo vários pontos mais vulneráveis de construção teórica ou sistematização de ferramentas, especialmente nos momentos relacionados ao sistema de gestão e acompanhamento do planejado18. Entretanto, isto não invalida em absoluto a contundente crítica ao economicismo dominante no planejamento público e uma série de conceitos como a “análise situacional”, a vinculação da estratégia como parte do plano, a centralidade da análise de problemas, verdadeiras ferramentas teóricas para desenhar um novo processo de planejamento & gestão, bem como reverter o desmonte a que estes setores foram submetidos recentemente.

Conclusões

O termo “governança” surgiu a partir dos relatórios do Banco Mundial nos anos oitenta e noventa sobre desenvolvimento como sinônimo de “bom governo” (bom para o que ? ou para quem ?), no Webster a palavra inglesa governance pode ser traduzida pela forma como é exercida a autoridade, o gerenciamento de recursos públicos, a capacidade de desenhar, formular e implementar políticas públicas.

O que se propõe quando associamos os problemas da equidade, da eficiência e da democracia relacionados à reforma do aparelho de Estado é a reinvenção democrática do

18 Sobre as críticas ao PES, nos marcos matusianos, pode-se citar como referência o trabalho de Cecílio, L. (1994) Contribuições para uma teoria da mudança do setor público, em Inventando a mudança na saúde, São Paulo, Hucitec.

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Estado na direção de uma governance participativa, não tecnocrática, nem modernamente “gerencial”, se isto significar a assepsia da política, o isolamento da esfera técnica das construções políticas que distinguem o estado natural do Estado pactuado, consentido, concertado entre atores e agentes diferentes, adversários ou não.

As experiências progressivas de transformação do planejamento de médio e longo prazo – os PPAs - a nível nacional demonstraram a enorme potencialidade para avançar em termos técnicos, aperfeiçoando os mecanismos jurídicos, uniformizando metodologias, melhorando os sistemas de monitoramento e informação, mas sobretudo aponta para a possibilidade de incorporar processos participativos como é o caso Orçamento Participativo. Formas mais democráticas de planejamento e orçamento já são praticadas hoje no Brasil por dezenas de prefeituras e estados regionais sob os mais diversos nomes e dinâmicas.

Pode-se supor que na medida em que a governabilidade fiscal e financeira forem aumentar numa visão otimista de recuperação financeira dos estados, será possível recuperar o correto balanceamento institucional entre as unidades de planejamento e aquelas que controlam o “caixa”. Novos métodos de planejamento – agora prontos para lidar com a incerteza, com problemas difusos e com cenários e atores em disputa – aos poucos plantam “sementes teóricas” nas novas gerações de planejadores, gestores políticos, parlamentares e dirigentes partidários de várias matizes ideológicas fornecem suporte ético-moral para superar o abismo entre a esfera técnica e política. A politização crescente da sociedade que cobra resultados eficazes e acesso democrático aos “negócios do Estado” e a necessidade de defender o sistema democrático da predação do mercado desregulado – ao lado de outros fatores intervenientes – recolocarão inexoravelmente o tema do planejamento público na agenda contemporânea.

Todo o fio condutor que orienta a possibilidade de recuperar a capacidade de planejamento do Estado na esfera regional, considerando a extrema dificuldade imposta pelo pacto federativo que progressivamente reconcentra meios no Estado nacional e descentraliza encargos, deve portanto, assumir um conceito de governança participativa sem instrumentalizar a participação ou diminuí-la simplificando-a no nível rotineiro de uma simples good pratice.

Uma nova forma de fazer planejamento pode, neste caso, ser uma caminho de condução do governo para novos patamares de governabilidade, de sustentação social. Para isso só há uma única prerrogativa cara mesmo para as forças políticas mais libertárias: a efetiva disposição política para construir espaços de transferência de poder ao povo organizado, de mobilizar os quadros públicos para um compromisso efetivo com a direção do Estado, em colocar cada vez mais processos de democracia direta e universal no centro de uma nova governance, uma utopia possível.

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