salo de carvalho o papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo

Upload: flmrangel

Post on 29-Oct-2015

66 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

  • O Papel dos Atoresdo Sistema Penal

    na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiadoda Aplicao da Pena)

  • www.lumenjuris.com.br

    EditoresJoo de Almeida

    Joo Luiz da Silva Almeida

    Adriano PilattiAlexandre Freitas CmaraAlexandre Morais da RosaAury Lopes Jr.Bernardo Gonalves FernandesCezar Roberto BitencourtCristiano Chaves de FariasCarlos Eduardo Adriano JapiassCludio CarneiroCristiano RodriguesDaniel SarmentoEmerson GarciaFauzi Hassan ChoukrFelippe Borring Rocha

    Conselho Editorial

    Firly Nascimento FilhoFrederico Price GrechiGeraldo L. M. PradoGustavo Snchal de Goff redoHelena Elias PintoJean Carlos FernandesJoo Carlos SoutoJoo Marcelo de Lima Assafi mJos dos Santos Carvalho FilhoLcio Antnio Chamon JuniorLuigi BonizzatoLuis Carlos AlcoforadoManoel Messias PeixinhoMarcellus Polastri Lima

    Marco Aurlio Bezerra de MeloMarcos ChutMarcos Juruena Villela SoutoMnica GusmoNelson RosenvaldNilo BatistaPaulo de Bessa AntunesPaulo RangelRicardo Lodi RibeiroRodrigo KlippelSalo de CarvalhoSrgio Andr RochaSidney Guerra

    lvaro Mayrink da CostaAmilton Bueno de CarvalhoAndreya Mendes de Almeida Scherer NavarroAntonio Carlos Martins SoaresArtur de Brito Gueiros Souza

    Conselho Consultivo

    Caio de Oliveira LimaCesar FloresFirly Nascimento FilhoFlvia Lages de CastroFrancisco de Assis M. TavaresGisele Cittadino

    Humberto Dalla Bernardina de PinhoJoo Th eotonio Mendes de Almeida Jr.Ricardo Mximo Gomes FerrazSergio Demoro HamiltonTrsis Nametala Sarlo JorgeVictor Gameiro Drummond

    Rio de JaneiroCentro Rua da Assemblia, 10 Loja G/Hcep 20011-000 CentroRio de Janeiro - RJ Tel. (21) 2531-2199 Fax 2242-1148

    BarraAvenida das Amricas, 4200 Loja E Universidade Estcio de S Campus Tom Jobim cep 22630-011Barra da Tijuca Rio de Janeiro - RJTel. (21) 2432-2548 / 3150-1980

    So PauloRua Correia Vasques, 48 CEP: 04038-010 Vila Clementino - So Paulo - SP Telefax (11) 5908-0240 / 5081-7772

    BrasliaSCLS quadra, 402 bloco D - Loja 09cep 70236-540 - Asa Sul - Braslia - DFTel. (61)3225-8569

    Minas GeraisRua Araguari, 359 - sala 53 cep 30190-110 Barro Preto Belo Horizonte - MG Tel. (31) 3292-6371

    BahiaRua Dr. Jos Peroba, 349 Sls 505/506cep 41770-235 - Costa Azul Salvador - BA - Tel. (71) 3341-3646

    Rio Grande do SulRua Padre Chagas, 66 - loja 06 Moinhos de Vento - Porto Alegre - RSCEP: 90570-080 - Tel. (51) 3211-0700

    Esprito SantoRua Constante Sodr, 322 Trreo CEP: 29055-420 Santa Lcia Vitria - ES.Tel.: (27) 3235-8628 / 3225-1659

  • Salo de CarvalhoMestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito

    Ps-Doutor em Criminologia (Universidade Pompeu Fabra, Barcelona)Professor Adjunto do Departamento de Cincias Penais da UFRGS

    [htt p://antiblogdecriminologia.blogspot.com/]

    O Papel dos Atoresdo Sistema Penal

    na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiadoda Aplicao da Pena)

    CriminologiaS: Discursos para a Academia

    Editora Lumen JurisRio de Janeiro

    2010

  • Copyright 2010 Salo de Carvalho

    Categoria: Criminologia

    Produo EditorialLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.no se responsabiliza pela originalidade desta obra.

    proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou pro-cesso, inclusive quanto s caractersticas grfi cas e/ou editoriais. A

    violao de direitos autorais constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei n 10.695, de 1/07/2003), sujeitando-se busca e apreenso e

    indenizaes diversas (Lei n 9.610/98).

    Todos os direitos desta edio reservados Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    --------------------------------------------------------------------------------

  • O livro dedicado aoProfessor Doutor Tupinamb Pinto de

    Azevedo, pelo seu compromisso republicano e democrtico com a Universidade pblica e pela

    sua militncia pela humanizao do Direito Penal.

  • O presente trabalho seria impossvel sem o apoio da equipe do

    Escritrio Alexandre Wunderlich & Salo de Carvalho Advogados Associados, integrado por Antnio Tovo Loureiro,

    Camile Eltz de Lima, Elisngela Franco Lopes, Fernanda Luft Tessaro,

    Gisele Maldonado Barcellos, Juliana Oliveira Rocha, Karina Reginatt o

    dos Santos, Lilian Christine Reolon, Natalie Ribeiro Pletsch, Paula Lopes,

    Paulo Saint Pastous Cale , Renata Saraiva e Sueli dos Santos Meireles.

    A anlise dos dados somente foi possvel pelo apoio dos Mestres

    e Mestrandos Alexandre Costi Pandolfo, Gregori Elias Laitano,

    Marco Antnio de Abreu Scapini, Raccius Pott er, Marcelo Mayora

    Alves, Nereu Lima Filho e Thayara Castelo Branco.

    Mariana de Assis Brasil e Weigert, Amilton Bueno de Carvalho,

    Alexandre Wunderlich e Rafael Braude Canterji, leitores atentos e interlocutores privilegiados,

    possibilitaram o amadurecimento de inmeras questes trabalhadas na

    pesquisa.

    Rodrigo Ghiringhelli Azevedo contribuiu com importantes

    indicaes de leitura.

  • Lia Weigert Bressan auxiliou na elaborao dos grfi cos e Thas

    Weigert realizou inmeras revises no texto.

    Elena Larrauri P oan, de forma muito amvel, possibilitou a realizao dos estudos de Ps-

    Doutorado na Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona, durante os anos de 2008 e 2009, e forneceu

    a orientao segura para o desenvolvimento e aprimoramento das ideias presentes na pesquisa.

    A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia

    (SAL/MJ), atravs do Projeto Pensando o Direito, possibilitou o fi nanciamento parcial do trabalho, cujo resultado

    exposto na criao do banco de dados e anlise documental dos julgados.

  • ix

    Sumrio

    Apresentao ........................................................................... xiii(Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Salo de Carvalho)

    Apresentao ............................................................................ xixRicardo Timm de Souza (PUCRS)

    Introduo ................................................................................. 1

    PARTE IA FORMAO CULTURAL

    DOS ATORES PROCESSUAISE O CENRIO PUNITIVISTA CONTEMPORNEO

    1. Vontade de Punir: Populismo Punitivo e Pnicos Morais ...... 7

    2. Crimes e Prises no Sculo XXI ............................................. 15

    3. Punitivismo e Reinveno das Prises .................................... 273.1. Populismo Punitivo e a Reinveno da Priso no Brasil: Diagnstico Normativo..................................... 323.2. O Grande Encarceramento ........................................... 363.3. A Centralidade do Crcere na Lgica Punitivista: Substitutivos Penais ....................................................... 47

    4. Os Atores e as Agncias Punitivas no Brasil: Filtros Inci- dncia do Poder Penal ............................................................. 59

    5. Os Paradoxos do Sistema Jurdico-Penal Brasileiro ............... 675.1. A Falta de Controle e de Transparncia ...................... 675.2. Cifras Ocultas, Inefi cincia Resolutiva e Alta Puni- tividade ........................................................................... 69

    6. As Instituies da Persecuo Penal e a Formao Cultural dos seus Atores: a Tradio Inquisitria ................................. 73

  • x6.1. Estrutura do Sistema Inquisitrio e as suas Conse- quncias na Formao dos Atores Processuais ......... 776.2. Mentalidade Inquisitria e Formas de Produo da Verdade ........................................................................... 84

    7. Os Atores da Persecuo Penal e a Cultura Punitivista Con- tempornea .............................................................................. 97

    7.1. As Funes do Ministrio Pblico na Nova Ordem Constitucional e o Perfi l Poltico-Criminal dos seus Integrantes ....................................................................... 997.2. As Funes da Magistratura na Persecuo Criminal .. 103

    PARTE IIAPLICAO DA PENA

    E PUNITIVISMO NO BRASIL(EXPERIMENTO E

    ESTUDO DE CASOS)

    8. Aplicao Judicial da Pena no Brasil: Tema, Problema e Pro- cedimento Metodolgico da Investigao ................................ 115

    8.1. Referenciais Bibliogrfi cos (Fase 01) ........................... 1188.2. Levantamento Jurisprudencial (Fase 02) .................... 1198.3. Critrios de Corte do Nmero Total de Acrdos: Metodologia, Objetivos e Dados de Anlise ............. 1228.4. Levantamento da Jurisprudncia Nacional e Cria- o do Banco de Dados ................................................. 137

    8.4.1. Levantamento de Dados no Supremo Tribunal Federal ..................................................................... 1378.4.2. Levantamento de Dados Superior Tribunal de Justia ....................................................................... 138

    9. A Motivao Judicial na Defi nio da Pena ........................... 145

    10. Estrutura da Aplicao da Pena no Brasil ............................ 15110.1. Eleio da Pena Cabvel .............................................. 15210.2. Quantifi cao da Pena ................................................ 153

    10.2.1. Pena-Base ................................................................ 15510.2.2. Pena Provisria e Pena Defi nitiva ....................... 160

    10.3. Qualidade de Pena (Regime) e Substitutivos Penais .. 161

  • xi

    11. Critrios de Aplicao da Pena-Base pelos Tribunais Supe- riores no Brasil: Anlise Qualitativa .................................... 165

    11.1. Advertncia: Sobre o Contedo dos Julgados e os Critrios da Anlise Qualitativa ................................ 16911.2. Valorao e Conceituao das Circunstncias Judi- ciais ................................................................................. 170

    11.2.1. Dupla Valorao de Circunstncias: Violao ao Princpio Ne Bis in Idem ........................................ 17111.2.2. Culpabilidade: Impreciso Conceitual ............... 17911.2.3. Volatilidade dos Conceitos de Personalidade e Conduta Social ....................................................... 184

    12. Problemas na Aplicao da Pena Provisria (Atenuantes e Agravantes) pelos Tribunais Superiores no Brasil: Anlise Qualitativa ............................................................................. 193

    12.1. Aplicao de Atenuantes Abaixo do Mnimo Legal ... 19312.2. (In)Constitucionalidade da Agravante da Reinci- dncia............................................................................. 197

    13. Aplicao da Pena Defi nitiva pelos Tribunais Superiores no Brasil: Anlise Qualitativa .................................................... 201

    13.1. Quantifi cao da Minorante da Tentativa ................ 20113.2. Critrio de Aplicao e de Aumento da Pena do Crime Continuado ....................................................... 20413.3. (Des)Proporcionalidade do 4, Art. 155 do Cdi- go Penal ......................................................................... 20813.4. Motivo de Valor Social, Intensidade da Emoo e Provocao da Vtima: Critrio de Diminuio de Pena ................................................................................ 21213.5. Arma de Fogo Desmuniciada e 2, Inciso I, Art. 157, Cdigo Penal ............................................................... 21413.6. Concurso de Causas Especiais de Aumento de Pena . 215

    14. Questes Processuais na Aplicao da Pena pelos Tribunais Superiores no Brasil: Anlise Qualitativa ............................ 219

    14.1. Dever de Fundamentar a Aplicao da Pena ........... 21914.2. Questo Probatria: Confi sso. Fundamentao de Juzo Condenatrio e No-Aplicao da Atenuante ..227

  • xii

    CONCLUSES

    15. As Reformas Penais e o Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Encarceramento em Massa ................................... 231

    16. O Estado Penal e os Atores das Cincias Criminais ............. 239

    17. Resistncias (Im)Possveis .................................................... 245

    18. Concluso Especfi ca: Reformas Penais, Punitivismo e Res - ponsabilidade Poltico-Criminal: Duas Propostas Legislativas . 253

    18.1. Vedao Expressa ao Encarceramento ...................... 25418.2. Responsabilidade Poltico-Criminal ......................... 257

    19. Atuao no Campo Punitivo e Reduo de Danos ............... 263

    20. Concluso Especfi ca: Limites e Critrios de Aplicao da Pena e Punitivismo no Brasil ............................................... 267

    Bibliografi a .................................................................................. 273

  • xiii

    Apresentao

    CriminologiaS: Discursos para a Academia

    A ideia de lanar uma coleo acadmica na linha de pes-quisa da Criminologia surgiu da constatao do avano da disciplina no Brasil.

    Nas ltimas duas dcadas, dois institutos, vinculados fundamentalmente rea do direito o Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e o Instituto Brasileiro de Cincias Cri-minais (IBCCrim) , com muita competncia, congregaram os fruns de debate criminolgicos, realizando eventos, fi nan-ciando publicaes, realizando concursos, dentre uma srie de importantes e destacadas atividades. No campo edito-rial, as revistas Discursos Sediciosos (ICC) e Revista Brasileira de Cincias Criminais (IBCCrim) e as colees Pensamento Criminolgico (ICC) e Monografi as (IBCCrim) foram respons-veis pela divulgao, ao pblico nacional, de trabalhos clssi-cos e de inovaes no pensamento criminolgico. Assim, ao mesmo tempo em que estes veculos resgataram importan-tes obras, com a traduo de textos fundamentais, lanaram novos autores que hoje representam o que h de melhor na academia criminolgica brasileira. Nilo Batista e Alberto Silva Franco podem ser nominados como os legtimos representan-tes do esforo que move os Institutos para consolidar uma tradio crtica nas Cincias Criminais do Brasil.

    Paralelamente ao desenvolvimento do campo dos estu-dos criminolgicos vinculados ao Direito, a dimenso e o im-pacto das diferentes manifestaes da violncia sobre o tecido

  • xiv

    social e a incapacidade do sistema de segurana pblica e de justia criminal em responder de forma minimamente efi cien-te e juridicamente correta as demandas de controle do crime comearam a chamar a ateno dos cientistas sociais. Possvel indicar como marco inicial, para alm de trabalhos pioneiros, a criao, nos anos 80, do Ncleo de Estudos da Violncia (NEV), na Universidade de So Paulo, e os trabalhos reali-zados por pesquisadores, como Srgio Adorno, Paulo Srgio Pinheiro, Alba Zaluar, Luiz Eduardo Soares, Jos Vicente Tavares dos Santos, Roberto Kant de Lima e Michel Misse. E seguindo esta gerao de investigadores, novos pesquisado-res vm desvendando os mecanismos de produo e reprodu-o social e institucional da violncia no Brasil.

    Nos anos 90, os estudos sobre a violncia e a seguran-a pblica deixaram de ser exclusividade dos estudiosos do Direito Penal e passaram a constituir um dos campos mais destacados da produo acadmica no mbito de programas de ps-graduao em Sociologia, Antropologia e Cincia Poltica, com a criao de grupos de pesquisa em vrios cantos do pas. Representativos deste crescimento so os Grupos de Trabalho realizados nos Encontros Nacionais da Associao Nacional de Ps-Graduao em Cincias Sociais (Anpocs) e nos Congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e da Associao Brasileira de Antropologia (ABA) so-bre Violncia, Confl itualidade e Administrao Institucional de Confl itos, no obstante o crescimento da produo de teses e dissertaes sobre estes temas.

    Com base nestes estudos, dispomos hoje de um impor-tante acervo de pesquisas de diferentes perspectivas terico--metodolgicas que permite indicar caminhos para o enfren-tamento de um problema cujas vias de equacionamento esto

  • xv

    inexoravelmente vinculadas s possibilidade de construo democrtica no Brasil.

    Neste mesmo perodo de consolidao do Instituto Carioca de Criminologia e do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, e de desenvolvimento dos estudos sobre vio-lncia, confl itualidade e segurana pblica no mbito das Cincias Sociais, a Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul lanou o projeto de criao do Programa de Ps-Graduao em Cincias Criminais. Sob a coordenao da incansvel Ruth Gauer, desde a sua fundao em 1996, o PPGCCrim destacou- se como o primeiro programa nacional de ps-graduao com rea de concentrao especfi ca nas Cincias Criminais e linhas de pesquisa que contemplam, de um lado, o campo da Criminologia e do Controle Social e, de outro, com perfi l normativo, a Dogmtica Jurdico-penal (sis-temas penais contemporneos).

    A primeira gerao de mestres formados pelo PPGCCrim da PUCRS, capitaneada por Alexandre Wunderlich, orga-nizou-se em torno do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC). O !TEC mobilizou o cenrio universitrio do Rio Grande do Sul e sua publicao ofi cial (Revista de Estudos Criminais) ganhou destaque no panorama nacional. Na atu-alidade, uma nova gerao de mestres em cincias criminais que frequentou o PPGCCrim inova o saber criminolgico. Aglutinados no Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA), estes jovens pesquisadores oxigenam o debate na academia gacha, consolidando pesquisas de vanguarda no campo cri-minolgico a partir de uma clara percepo das fronteiras e dos horizontes da disciplina sobretudo a radical diferencia-o que demarca a Criminologia como o saber autnomo e cr-tico da limitada anlise normativa fornecida pelas Dogmticas Penais, mesmo as autodenominadas crticas.

  • xvi

    A srie CriminologiaS: Discursos para a Academia inau-gura seus trabalhos com a publicao de cinco dissertaes representativas dessa dupla vertente de estudos criminol-gicos, em dilogo com o Direito, a Filosofi a, a Psicanlise e as Cincias Sociais: Alexandre Costi Pandolfo (A Criminologia Traumatizada: um Ensaio sobre Violncia e Representao dos Discursos Criminolgicos Hegemnicos no Sculo XX), Carla Marrone Alimena (A Tentativa do (Im)Possvel: Feminismos e Criminologias), Fernanda Bestett i de Vasconcellos (A Priso Preventiva como Mecanismo de Controle e Legitimao do Campo Jurdico), Jos Antnio Gerzson Linck (A Criminologia nos Entre-Lugares: Dilogos entre Incluso Violenta, Excluso e Subverso Contempornea), Marcelo Mayora Alves (Entre a Cultura do Controle e o Controle Cultural: um Estudo sobre Prticas Txicas na Cidade de Porto Alegre).

    Em conjunto com as publicaes dos coordenadores da coleo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (Sociologia e Justia Penal: Teoria e Prtica dos Estudos Sociocriminolgicos) e Salo de Carvalho (O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo: o Exemplo Privilegiado da Aplicao da Pena) , a srie inaugural de CriminologiaS: Discursos para a Academia refora o papel da academia na construo de um slido saber crtico.

    Em uma era de pasteurizao e de mercantilizao dos saberes, com o ensino universitrio imerso na lgica atuarial das metas quantitativas e com o imprio da lgica manuals-tica que traduz o descomprometimento do mercado editorial com a publicao de srias obras propeduticas e de investiga-es especfi cas em temas sensveis, a academia nacional vive seu perodo de maior crise. Neste cenrio de educao vir-tual, muitos pesquisadores termo utilizado neste momento para designar o investigador comprometido com a formao e a densifi cao do pensamento acadmico crtico encontram-

  • xvii

    se no dilema entre o imobilismo ou o assimilacionismo, ou seja, entre cair no ostracismo e abandonar projetos srios ou aderir lgica do mercado educacional e agir pensando exclusiva-mente na sua promoo pessoal, fenmeno este que pode ser denominado de carreirismo acadmico.

    Todavia, conforme reivindica Ricardo Timm de Souza, necessrio transformar a crise em crtica.

    Desde a perspectiva estridentemente transdisciplinar que orienta as pesquisas publicadas nesta coleo, a possibilida-de de um saber criminolgico crtico visualizada atravs do dilogo franco com os demais campos das humanida-des, notadamente a Sociologia, a Antropologia, a Filosofi a e a Psicanlise, e com os saberes tradicionalmente desqualifi -cados pelas cincias como profanos, sobretudo a Arte. Sem, contudo, cair na tentao de disciplinar a transdisciplinaridade, isto , criar um novo campo hermtico e dogmtico a partir da conciliao de dois ou mais discursos cientfi cos. No por outra razo a enunciao do ttulo da coleo no plural.

    A srie de publicaes de trabalhos essencialmente aca-dmicos (monografi as, dissertaes e teses) pretende cons-truir mais um espao de dilogo, ser mais um canal de divul-gao do pensamento crtico. E reivindicar a postura crtica implica, necessariamente, em realizar autocrtica, o que re-fl etido na perspectiva de desconstruo que os investigado-res associados tm sobre as falsas imagens acadmicas que habitam determinadas mentes e certas instituies. A ironia kafk iana do subttulo da coleo pauta esta gaia abordagem que conduz o projeto.

    O projeto CriminologiaS: Discursos para a Academia est vinculado formalmente ao Departamento de Cincias Penais da UFRGS e ao Departamento de Direito Penal e Direito Processual Penal da PUCRS. No entanto, apesar do

  • xviii

    localismo da coordenao, o conselho editorial foi formado de maneira a dar representatividade nacional e abrangncia transdisciplinar, no limitando o projeto determinada re-gio ou a campo de investigao.

    Fundamental, pois, o apoio da Editora Lumen Juris, que vem apostando na divulgao de trabalhos com caractersticas distintas daqueles que habitam a grande imprensa editorial na rea das Humanidades, sobretudo no campo do Direito.

    Assim, a aposta que a srie CriminologiaS: Discursos para a Academia atinja uma grande parcela de leitores des-contentes com o marasmo editorial brasileiro e ansiosos para receber contedo acadmico de qualidade, em oposio l-gica manualesca que vem preponderando no mercado.

    Porto Alegre, inverno de 2010.

    Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PUCRS) Salo de Carvalho (UFRGS)

  • xix

    Apresentao

    CriminologiaS

    A combinao etimolgica greco-latina criminologia atravessa no momento presente a crise gerada pelo fruto de-senvolvido, ao longo do tempo, desde sua prpria genealogia, exatamente como seus infi nitos assemelhados da socio-logia antropo-logia, da mito-logia bio-logia. Ramos da cincia ou do saber da questo pelo ser em algum de seus aspectos ou formas, para falar como os inarredveis ancestrais de todo o conhecimento cientfi co ocidental, os fi lsofos gregos que se perguntam, sempre presentes, pela razo de seu prprio existir em funo dos objetos no qual se focam , navegam todos esses conceitos no mar tempestuoso da indeterminao que perdeu a conscincia de sua raiz, ou seja, a visibilidade real de seu sentido, na iluso de que este fosse to bvio que todo falar sobre se tornasse suprfl uo. O fl uxo gerador das linguagens, que geram os conceitos, que a Filosofi a organiza em termos causais e categorias atravs do logos, oportunizando assim o surgimento e desenvolvimento das cincias, levanta, ao assu-mir feies de especialidades, prematuramente, na agitao da modernidade e no frenetismo da contemporaneidade, o vo temerrio da auto-sufi cincia. Vos prematuros e teme-rrios so vos de caro: a queda longa, proporcional exata-mente pretenso de auto-sufi cincia. Restam os destroos: a questo do sentido.

    , portanto, da questo do sentido que se trata dir-se-ia fi losofi camente: a questo da multiplicidade dos sentidos. E a an-

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    xx

    fi bologia da palavra sentido, sbia como todas as palavras que resistiram ao tempo, j diz tudo. Sentido aponta cami-nhos, direes possibilidades, ousadia, tlos; sentido aponta origens, fontes, ancestralidade, arch. Ao mesmo tempo. O tem-po da tica. Porque a questo do sentido , nada mais, nada menos, do que a questo de saber o que fazer com o tempo de que se dispe. E fazer mesmo em sua intelectualizada verso de tramas complexas de conceitos , necessariamente, uma questo tica.

    A racionalidade encontra, assim, sua necessidade mais profunda, que , igualmente sua condio de sobrevivncia em meio tempestade: percorrer fi losofi camente a arque-olo-gia das categorias, refazendo caminhos, passando por lgicas, conceitos e suas tramas, procurando chegar fons vitae das linguagens que se do no tempo, transformando-o em tem-pos ou seja, rompendo fi nalmente com a unidade de Jnia a Jena, esses dois mil e quinhentos anos que so os nossos e dos quais vivemos , e que, tomando uma outra vereda que aquela sediciosa que culmina nas cores ftuas, nos exotis-mos hipcritas e na infi nitas razes ardilosas que justifi cam o indecente, desemboque no instante de origem dos tempos que ainda restam: os instantes de desconstruo da violncia. Mltiplos como os instantes que ainda restam. Pluralizados como algum que descobre no estar s no mundo. Variados como os que encontram uns aos outros. Atentos tentao da auto-sufi cincia. Com verdadeiro S fi nal.

    Ricardo Timm de Souza (PUCRS)

  • 1Introduo

    A anlise dos dados de encarceramento no Brasil nas duas ltimas dcadas permite diagnosticar o ingresso do pas no cenrio punitivista internacional. No entanto esta situao de encarceramento em massa gera verdadeiro paradoxo, pois este de perodo recrudescimento das leis penais , ao mesmo tempo, o momento de transio e de consolidao democrti-ca aps a experincia dos anos de Ditadura Militar.

    Neste quadro, a investigao pretende analisar o papel dos atores do sistema penal, sobretudo dos operadores do di-reito, no panorama poltico-criminal punitivista que se inst-aura paralelamente promulgao da Constituio de 1988 e luta pela constitucionalizao das leis penais e processuais penais no Brasil.

    A abordagem dos temas de investigao , fundamental-mente, criminolgica e crtica, embora o objeto de anlise (critrios judiciais de aplicao da pena) esteja, em princpio, vinculado dogmtica jurdico-penal. que a perspectiva cri-minolgica permite olhar sensvel sobre as agncias e os ato-res que sustentam o sistema punitivo brasileiro, sem incorrer nos vcios paleopositivistas comuns anlise dogmtica que, no caso, estaria limitada ao horizonte interpretativo do direito penal normativo, portanto.

    O texto inicia com refl exo que procura aterrissar os dis-cursos penalgicos no panorama punitivista que marca os pases ocidentais. Desta forma, pretende realizar o diagns-tico normativo e emprico dos fatores que contriburam para a adeso nacional s polticas de encarceramento. Outrossim,

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    2

    procura encontrar elementos histricos que forneam pistas sobre a edifi cao autoritria das instituies jurdico-penais brasileiras. Identifi ca, pois, a formao cultural inquisit-ria dos operadores jurdicos nacionais, dado que possibilita compreender a natural identifi cao da poltica e da jurdica criminal brasileira com o projeto transnacional de grande en-carceramento.

    Com o objetivo de demonstrar empiricamente os efei tos da formao inquisitria dos atores da cena jurdica e a sua adeso ao punitivismo fenmeno derivado do que se deno-minar como vontade de punir , foi realizado levantamento de dados e anlise qualitativa de julgados dos Tribunais Su-periores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justia). A partir da criao de instrumento de anlise, foram verifi cados os critrios utilizados pelos Tribunais Superiores para quantifi cao da pena carcerria. O perodo de anlise foi delimitado no primeiro semestre de 2008.

    A hiptese que orientou o trabalho foi a de que a forma-o autoritria das instituies penais e a insero dos seus atores na cultura inquisitria permitem a adeso do Brasil s polticas globais de hiperencarceramento, situao que acaba sendo densifi cada na realidade marginal da Amrica Latina.

    O objetivo da investigao, portanto, o de analisar o pa-pel dos atores do sistema penal no cenrio punitivista e os refl exos na poltica criminal brasileira. Apesar de os dados relativos ao encarceramento serem absolutamente preocupantes, parte-se do pressuposto de que a anlise exclusiva da situao prisio-nal insufi ciente, pois revela apenas os resultados legislativos de processo que atinge toda a persecuo penal, da investiga-o do fato execuo da pena.

    A investigao da formao cultural e das tendncias po-ltico-criminais dos atores que pem em marcha a persecuo

  • 3Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    criminal permite compreenso global do problema e, em con-sequncia, facilita projetar alternativas viveis para reduo dos danos causados pelo projeto punitivista de edifi cao de Estados penais.

    Importante referir que a presente publicao fruto de dois projetos de pesquisa complementares.

    A pesquisa documental realizada nas Cortes Superio-res foi fi nanciada pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a partir de pesquisa apresentada para a linha de pesquisa sobre pena mnima, do projeto Progra-ma Pensando o Direito, da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do Ministrio da Justia. Realizada ao longo do ano de 2008, foi criado banco de dados e desenvolvida anlise quali-tativa dos julgados pelo grupo de investigao que, naquele momento, estava vinculado ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Criminais da PUCRS. O trabalho foi fi nalizado e o relatrio aprovado pelos tcnicos da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL).

    Em paralelo pesquisa sobre pena mnima, foi realizado estudo sobre o papel dos atores jurdicos na realidade poltico--criminal punitivista junto ao programa de Ps-Graduao em Direito, linha de Criminologia, da Universidade Pompeu Fa-bra, Barcelona. Esta investigao de ps-doutoramento, reali-zada nos anos de 2008 e 2009, sob a orientao da Profa. Dra. Elena Larrauri P oan, foi concluda em maio de 2010, com a apresentao e aprovao de ensaio terico homnimo ao presente livro.

    A pesquisa neste momento publicada , portanto, verso unifi cada e reduzida dos produtos fi nais destes dois projetos autnomos, devidamente harmonizados, revisados e atuali-zados.

  • PARTE IA Formao Culturaldos Atores Processuaise o Cenrio Punitivista

    Contemporneo

  • 71.Vontade de Punir: Populismo

    Punitivo e Pnicos Morais

    A crise do Welfare State nos pases centrais, que culmi-na na dcada de 80, imprime profundas alteraes no cenrio poltico-econmico mundial e, agregada aos efeitos provoca-dos simbolicamente pela queda do Muro de Berlim, cria as condies de implementao das polticas neoliberais no fi nal do sculo XX.

    No novo cenrio, com a constrio dos investimentos em polticas pblicas na rea social, a estrutura de apoio e de avaliao dos condenados criada pelo correcionalismo demonstra-se invivel. Por outro lado, a prpria legitimidade de manuteno fi nanceira do modelo ressocializador ques-tionada, pois no discurso poltico ofi cial o momento o de estabelecer prioridades nos investimentos pblicos, restando a recuperao dos condenados em plano secundrio.

    A desestabilizao do pensamento correcionalista pro-vocada por dois distintos discursos deslegitimadores. O pri-meiro, relativo deslegitimao poltico-econmica, deriva da falta de capacidade ou de interesse poltico-econmico em manter a estrutura penal-welfare; o segundo, referente desle-gitimao terico-acadmica, decorrncia das crticas sobre a interveno estatal com objetivo de correo dos condenados (criminologia crtica e garantismo penal) e falta de contro-

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    8

    le sobre regime de penas altamente fl exveis (teoria do justo merecimento).

    As desqualifi caes que atingem o modelo penal inter-vencionista abrem espao para alteraes nas fi nalidades po-lticas da punio e, subsidiariamente, nas construes teri-cas sobre os sistemas de penas. Importante perceber, porm, que estas desqualifi caes so direcionadas desde locais po-ltico-ideolgicos absolutamente distintos: a deslegitimao estrutural advm do pensamento poltico conservador e a te-rica das tendncias acadmicas crticas, no sendo cabveis, portanto, quaisquer aproximaes.

    Outrossim, paralelo ao avano do pensamento con-servador no espao poltico, o Ocidente assiste, a partir da dcada de 80, ao real crescimento nas estatsticas criminais relativas aos tradicionais crimes violentos e, ao mesmo tem-po, ao surgimento de novas formas de dano que fomentaro novas espcies de criminalizao. H, portanto, signifi cativa mudana quantitativa e qualitativa do fenmeno crime ou da questo criminal. Entende-se por questo criminal os fenmenos relativos s prticas delitivas e suas circunstncias, ou seja, as formas do delito, seu o modo de execuo, as consequncias que produz e grau de vitimizao que provoca. Alteraes na questo criminal provocam, inexoravelmente, modifi caes na questo penal, ou seja, nos procedimentos e nos mecanismos de atribuio de responsabilidade regidos pelo direito penal e processual penal.

    O novo ambiente poltico-econmico e social possibilita o desenvolvimento daquilo que Denis Salas nominou como vontade de punir.1 A vontade de punir, que emerge como sinto-ma do sistema poltico, segue a mesma lgica da vontade de

    1 Salas, La Volont de Punir, pp. 103-138.

  • 9Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    sistema que caracteriza as cincias (criminais)2. Como legado da racionalidade instrumental, a vontade de sistema se carac-teriza pela construo de modelos polticos e cientfi cos a par-tir de frmulas totalizadoras de compreenso dos fenmenos, circunstncia que produzir imagens e representaes falsas, como a de que a reduo da complexidade do problema ga-rante estabilidade e segurana.

    O sintoma contemporneo vontade de punir, que atinge os pases ocidentais e que desestabiliza o sentido substan-cial de democracia, propicia a emergncia das macropolticas punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos poltico- criminais encarceradores (lei e ordem e tolerncia zero) e das teorias criminolgicas neoconservadoras (atuarismo, geren-cialismo e funcionalismo-sistmico).

    Neste cenrio, Elena Larrauri aponta quatro fatores que possibilitam condies de consolidao do populismo puni-tivo nos pases ocidentais: (1) o neoliberalismo econmico, que rompe com a ideia de Estado Social e defi ne formas de gover-nar atravs do crime, consolidando Estados punitivos; (2) o neoconservadorismo poltico, que enfatiza a mensagem da peri-culosidade da delinquncia; (3) o sentimento de insegurana ontolgica, derivado dos novos riscos e da desagregao da co-munidade local e do grupo familiar tradicional, que se projeta nos grupos econmicos-sociais vulnerveis; e (4) o aumento continuado do delito e seu redimensionamento em formas or-ganizadas e transnacionais.3

    A prisionalizao massiva contempornea no pode, po-rm, ser restringido ao aumento do nmero de delitos, inclu-sive porque as taxas internacionais de criminalidade violenta,

    2 Sobre a vontade de sistema nas cincias criminais, conferir Carvalho, Antima-nual de Criminologia, pp. 35-54.

    3 Larrauri, Populismo Punitivo... y como Resistirlo, pp. 11-14.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    10

    em geral, tm sido reduzidas, conforme ser demonstrado. Percebe Larrauri, portanto, que as taxas de encarceramento so construes polticas decorrentes de decises em distintas esferas: (...) o aumento de pessoas que esto na priso no repro-duz o aumento da delinquncia, mas multiplicidade de outros fato-res, como decises legislativas, sensibilidade judicial e capacidade e limites do prprio sistema para processar os diversos atos delitivos.4

    Portanto a questo seria defi nir quais os fatores que pos-sibilitam afi rmar ser determinada realidade poltico-criminal classifi cada como punitivista ou, em termos mais precisos, se os dados relativos aos ndices de encarceramento seriam sufi -cientes para indicar o nvel de punitivismo de uma sociedade.

    Apoiada em Nelken, Larrauri constata que uma socieda-de poderia ser considerada no punitiva por ter baixas taxas de encarceramento, mas, em termos de controle social infor-mal, ser bastante intolerante com o delito e o desvio, fator que possibilitaria fosse adjetivada como punitivista. De igual for-ma, extenso rol de delitos previstos na Lei penal, seguido de cominaes abstratas de penas altas, poderia indicar adeso s polticas punitivas, porm o baixo grau de incidncia das agncias punitivas na efetivao do programa criminalizador indicaria baixo nvel de punitividade.5

    No obstante, indicadores de anlise como sentimento de impunidade e sensao de insegurana, comumente expostos pelos meios de comunicao de massa como contedo de demandas criminalizantes, poderiam indicar baixo grau de punitivismo decorrente de alta taxa de inefi cincia do siste-ma penal ou da alta tolerncia da comunidade com prticas delituosas.

    4 Larrauri, Populismo..., p. 14.5 Larrauri, La Economia Poltica del Castigo, pp. 02-03.

  • 11

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    No entanto estes referentes de anlise, apesar de relevan-tes em termos poltico-criminais pelos indcios que fornecem ou pela simbologia que representam, apresentam incontest-veis difi culdades de averiguao, fato que torna question-vel sua utilizao como critrios de graduao dos nveis de punitividade social. A ausncia de instrumentos efi cazes para demonstrabilidade emprica de indicadores como sentimento de impunidade e sensao de insegurana, amplamente utilizados como argumentos de ampliao do punitivismo pelos empre-endedores morais, torna voltil a associao entre medo e da-manda sancionatria.

    notrio, pela sua prpria natureza, que categorias que projetam sentimentos e sensaes se constituem como indi-cadores imprecisos, sendo altamente questionveis as meto-dologias que procuram realizar sua comprovao e calcular sua intensidade. Difcil e impreciso, portanto, confi rmar ou refutar se efetivamente, em determinada sociedade, a sensa-o de insegurana e o sentimento de impunidade so altos ou baixos.6 No obstante, anlise dos discursos poltico-crimi-

    6 A partir da dcada de 70, com as preocupaes decorrentes das campanhas de pnico moral, inmeras metodologias foram criadas para realizar a graduao do sentimento de insegurana. O signifi cado e a valorao da insegurana pblica em relao ao crime adquirem dimenses emocionais, cognitivas e comportamentais que projetam distintas nfases metodolgicas.

    Conforme destacam Gerber, Hirtenlehner e Jackson, em especial referncia s pesquisa sobre segurana na Alemanha, ustria e Sua, modelos explicativos, ferramentas empricas e discusses polticas foram recebidas e muitas vezes adotadas acriticamente (Gerber, Hirtenlehner & Jackson, Insecurities about Crime in Germany, Austria and Switzerland, p. 151).

    Apontam os autores, contudo, que inmeras e distintas fontes e mtodos tm sido utilizados, circunstncias que alteram, inclusive, o foco se comparadas s investigaes sobre medo do crime nos pases europeus continentais e anglo-saxes enquanto a literatura britnica e americana enfatiza o papel da vizinhana e da comunidade, a pesquisa alem est mais preocupada com o impacto das incertezas globais e remotas no bem-estar dos cidados (Gerber, Hirtenlehner & Jackson, Insecurities..., p. 152).

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    12

    nais revela sua utilidade publicitria e/ou ideolgica, normal-mente para substancializao de prticas punitivas violentas.

    Conforme inmeros estudos criminolgicos tm de-monstrado, o medo do delito e o delito mesmo so fenme-nos distintos, e na maioria dos casos o sentimento de insegu-rana excede superlativamente a realidade criminal. Segundo Hassemer, criminalidade e medo do crime no so como a coisa e a sua imagem no espelho. Sentimento de ameaa e insegurana no so meros refl exos de ameaas reais, mas tambm consequncia de circunstncias de dessocializao e intranquilidade sociais.7

    Todavia, conforme sustenta Barry Glassner, um dos pa-radoxos da cultura do medo que srios problemas permanecem ignorados, apesar de originarem precisamente aqueles perigos que a populao mais abomina.8 Dentre estes principais fatores de ansiedade, a quantidade e a gravidade dos crimes encontra destaque. Demonstra Gassner, porm, que os pnicos morais, conceito trabalhado por Cohen9, so normalmente amplifi ca-dos pelos meios de comunicao de massa, que interpretam e expressam incidentes isolados como epidemias, causando traumas sociais. Em precisa anlise sobre a forma e o conte-

    Note-se que a defi nio do foco de interpretao do aspecto comunitrio ao global implica necessariamente a alterao da estratgia de pesquisa, sendo incabvel pensar em adequao e concretude de dados. Sobretudo em pases sem tradio em pesquisas criminolgicas empricas o mesmo em tabulao estatsticas de dados sobre crime e criminalidade como o caso do Brasil.

    7 Hassemer, Segurana Pblica no Estado de Direito, p. 163.8 Glassner, The Culture of Fear, p. xxvi.9 O conceito de pnico moral, introduzido pela teoria do etiquetamento em

    especial por Stanley Cohen no clssico estudo Folk Devils and Moral Panics (1972) adquiriu, no fi nal do sculo passado, importncia fundamental para anlise e compreenso da cultura ocidental. No por outra razo categoria instrumenta da sociologia, psicologia social, antropologia, jornalismo e, logicamente, das cincias criminais.

    Sobre as origens da categoria, os problemas e as limitaes conceituais, e as perspectivas contemporneas, conferir Garland, On the Concept of Moral Panics, pp. 09-30.

  • 13

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    do de abordagem da questo criminal realizada pela mdia norte-americana, o autor expe os mecanismos de constru-o dos pnicos atravs de falsas imagens ou de representaes distorcidas da violncia. Gangues juvenis, homicidas em srie, cybercriminosos, adolescentes armados, manacos estupradores, trafi cantes de drogas e sequestradores de crianas so caracte-rizados como os superpredadores urbanos que geram instabi-lidade e caos na sociedade norte-americana contempornea. O exagero nos dados e a inverso do signifi cado dos indicadores ofi ciais de violncia permitem que o autor revele por que os nor-te-americanos tm medo das coisas erradas.10

    Pesquisa realizada por Roberts, Stalans, Indermaur e Hough, a partir de entrevistas no Canad, Estados Unidos, Inglaterra, Austrlia e Nova Zelndia, demonstra como (...) as pessoas tendem a crer que h mais delito do que existe, que o delito mais grave do que realmente e que as penas que os Tribunais im-pem so menos severas do que realmente so. Ou seja, tende a crer que a situao est mais descontrolada do que efetivamente est: mais delito, sempre de carter violento e condenaes benevolentes.11 No entanto expem os pesquisadores que as mesmas pesso-as ao serem informadas dos princpios que regem o sistema penal e ao serem confrontadas com casos reais julgados pelo

    10 O subttulo do livro de Glassner provocativo: why americans are afraid of the wrong things: crime, drugs, minorities, teen moms, killer kids, mutant microbes, plane crashes, road rage, & so much more. No captulo 02 (Crime in the News: Tall Tales and Overstated Statistics), o autor aborda a mdia dos Estados Unidos como fonte de produo de pnico. Neste sentido, conferir Glassner, The Culture..., pp. 23-49.

    Analisando o caso brasileiro, especifi camente a questo carioca, a partir da anlise histrica da consolidao do medo na formao cultural, conferir Batista, O Medo na Cidade do Rio de Janeiro, pp. 75-121.

    11 Roberts, Stalans, Indermaur & Hough Apud Larrauri, Populismo..., p. 18.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    14

    Judicirio, normalmente concluem de forma similar ao enten-dimento do juiz.12

    Vivel concluir, pois, que a formao do imaginrio so-cial sobre crime, criminalidade e punio se estabelece a par-tir de imagens publicitrias, sendo os problemas derivados da questo criminal, no raras vezes, superdimesionados. A hipervalorizao de fatos episdicos e excepcionais como re-gra e a distoro ou incompreenso de importantes variveis pelos agentes formadores da opinio pblica, notadamente os meios de comunicao de massa, densifi cam a vontade de punir que caracteriza o punitivismo contemporneo.

    Desta forma, em face da inconstncia e da inconsistncia de dados sobre os mecanismos informais de controle social e da ausncia de demonstrabilidade emprica de variveis emo-tivas como sentimento de insegurana e de impunidade ele-mentos que poderiam ser compreendidos metodologicamen-te como mecanismos de anlise e medio , o instrumento eleito para defi nio do nvel de punitivismo ser o dos ndi-ces de encarceramento. Assim, na linha de Larrauri,13 o termo punitivismo ser empregado na pesquisa como sinnimo de elevadas taxas de prisionalizao, exatamente por serem as pol-ticas de encarceramento a principal ferramenta do populismo punitivo.

    12 Roberts, Stalans, Indermaur & Hough Apud Larrauri, Populismo..., p. 18.13 Larrauri, La Economia..., p. 03.

  • 15

    2.Crimes e Prises no Sculo XXI

    O cenrio poltico-criminal dos pases ocidentais, cen-trais e perifricos, nas duas ltimas dcadas, sofreu signifi -cativa alterao. As taxas de encarceramento, que se manti-nham relativamente estveis em comparao com o aumento populacional, a partir do fi nal da dcada de 70, demonstram vertiginoso crescimento.

    Inegavelmente, conforme antecipado, no mesmo pero-do houve aumento dos ndices de criminalidade, fato que, em tese, justifi caria o acrscimo dos nveis de encarceramento. No entanto, a expanso das polticas criminais encarcerado-ras no se explica exclusivamente pelo aumento nos ndices de delitos registrados, sendo dois dados importantes para sua anlise autnoma e para compreenso da tendncia de revi-talizao da instituio prisional: primeiro, porque o cresci-mento do nmero da populao reclusa foi substancialmente superior, em termos quantitativos e qualitativos, ao aumento do registro de crimes; segundo, porque delitos e prises no so fenmenos necessariamente vinculados, constituindo-se como realidades distintas.

    Alguns aspectos preliminares so necessrios para com-preenso destas duas hipteses traadas como pressupostos de anlise do punitivismo contemporneo.

    Apesar das relevantes crticas aos fundamentos da po-ltica criminal correcionalista que orientaram a reforma da legislao penal e penitenciria da maioria dos pases ociden-

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    16

    tais no fi nal do sculo XX, o procedimento de individualiza-o cientfi ca da pena proposto pelo paradigma penal-welfare possibilitou inmeras formas de fl exibilizao da priso. Dentre os instrumentos mais notrios de descarcerizao, o aperfeioamento do sistema progressivo propiciava que o condenado, ao longo de sua trajetria na instituio, conforme o nvel de adeso e de adaptao ao programa ressocializador, evolusse de grau, sendo paulatinamente transferido dos regi-mes severos para instituies de maior liberdade. Concludas as etapas de desinstitucionalizao, o condenado fi nalizaria o cumprimento de sua pena em liberdade, observadas deter-minadas condies e sob a vigilncia dos rgos de controle penitencirio (livramento condicional, parole). Frise-se, porm, que a fl exibilizao da pena poderia ser, a qualquer momento, revogada, inclusive com a determinao de regime de cumpri-mento de pena mais severo que o da condenao, em caso de descumprimento das condies impostas ou reincidncia.1

    Alm da gradual fl exibilizao do cumprimento de pena pelo sistema progressivo, includo o instituto do livramento condicional, srie de substitutivos penais foram, ao longo do tempo, incorporados pelo modelo correcionalista de forma a descentralizar a pena de sua modalidade exclusivamente car-cerria. Priso domiciliar, suspenso condicional da pena, li-mitao de fi nal de semana, interdio temporria de direitos, prestao de servios comunidade, proibio de frequncia em determinados locais, pena de multa entre inmeras outras modalidades de respostas penais, foram agregadas institui-o priso como formas de proporcionar, conforme o caso es-pecfi co e de acordo com as condies pessoais do condenado,

    1 Sobre os procedimentos de individualizao executiva da pena e o controle da identidade do condenado, conferir Carvalho, Pena e Garantias, pp. 182-188.

  • 17

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    a individualizao da pena criminal com a efi caz adequao ao tratamento corretivo.

    Desta forma, em razo das inmeras alternativas puniti-vas criadas, ou seja, das vrias possibilidades de sano penal existente, o acrscimo nos nveis de delitos registrados pelas agncias de controle e julgados pelo Poder Judicirio no implicava, necessariamente, aumento dos nveis de encarce-ramento. Ademais, a conscincia do sistema punitivo acerca das cifras ocultas da criminalidade delitos cometidos mas no registrados pelos rgos ofi ciais e das cifras de inefi cincia das agncias penais delitos registrados mas sem desdobrar procedimentos efi cazes para a atribuio de responsabilidade penal ao autor , permitia, ainda na plena vigncia do cor-recionalismo, constatar a efetiva inexistncia de relao e de dependncia entre crimes e penas.

    Elena Larrauri lembra que o fato de que o aumento da pri-so no se produza de forma correlacionada com os ndices de delitos uma concluso majoritariamente aceita por toda a literatura crimi-nolgica, seja qual for sua orientao ideolgica.2

    Os dados apresentados por Garland sobre o registro de crimes e os ndices de aprisionamento nos Estados Unidos, entre 1950 e 1998, e na Gr-Bretanha, entre 1925 e 1998, so signifi cativos e demonstram esta ausncia de correlao.3 Percebe-se da exposio realizada pelo autor que o aumento do registro do nmero de crimes nos Estados Unidos ocorre a partir do incio da dcada de 60 e atinge seu pice nos anos de 80 e 92, apesar de estabilizar-se quantitativamente entre 76 e 98. De forma distinta, a curva de encarceramento apresenta crescimento gradual neste perodo, com vertiginoso aumen-

    2 Larrauri, La Economia..., p. 04.3 Garland, The Culture..., pp. 208-209.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    18

    to a partir das dcadas de 80 e 90. Na Gr-Bretanha, embora os nmeros acerca do aumento de crimes e de prises sejam mais prximos, similar leitura possvel.

    Em sentido semelhante, Wacquant, ao constatar que basta uma nica estatstica para fazer sobressair a falta de cone-xo fl agrante e crescente entre crime e encarceramento nos Estados Unidos: em 1975, o pas prendia 21 criminosos para cada 1.000 crimes graves (homicdio, estupro, agresso, roubo, assalto e furto de carros); em 1999, este nmero havia chegado a 106. Se conside-rarmos o crime como uma constante, a sociedade norte-americana cinco vezes mais punitiva hoje do que era h um quarto de sculo.4

    Zimring, a partir da anlise de dados dos ltimos anos, demonstra que nos Estados Unidos houve substancial decrs-cimo nas taxas de crime, apesar de o ndice de encarceramen-to seguir aumentando. Conclui, porm, ser assimtrica a rela-o entre crime e punio e no corresponder a diminuio do nmero de registros de ilcitos com o incremento das penas ou, ao contrrio, ter a restrio da punio relao direta com a aumento do delito.5 A variao de um destes fatores (cri-me ou pena), embora possa ter impacto no outro elemento de anlise, no fator determinante.

    Dados atualizados coletados junto ao United States Bureau of Justice Statistics permitem esta concluso. A partir de 1992, os ndices de registro de crimes violentos homicdio, estupro, roubo e roubo qualifi cado , nos Estados Unidos, ini-ciam signifi cativo processo de declive. Conforme os nmeros apresentados pelo rgo estatstico ofi cial norte-americano, trs so os indicadores de medio da quantidade de delitos

    4 Wacquant, O Lugar da Priso na Nova Administrao da Pobreza, p. 10.5 Zimring Apud Larrauri, La Economa..., p. 04.

  • 19

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    graves: dados de vitimizao,6 crimes registrados pela pol-cia7 e prises em fl agrante em casos de crimes violentos.8 A conjugao destas trs variveis permite realizar a estimativa do nmero total de crimes violentos.

    Grfi co 01EUA: Nmero Total de Crimes Violentos (1973-2007)

    Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

    Anlise do nmero de homicdios por 100.000 ha-bitantes, indicador internacional para medio do nvel

    6 Os dados de vitimizao correspondem estimativa do nmero de homicdios de pessoas com idade acima de 12 anos registrados pela polcia, acrescida do nmero de estupros, roubos e roubos qualifi cados a partir da pesquisa de vitimizao (Bureau of Justice Statistics, Four Measures of Serious Violent Crimes).

    7 Os dados de registro policial correspondem ao nmero de homicdios, estupros, roubos e agresses includos no Uniform Crime Reports do FBI, excluindo roubos em estabelecimentos comerciais e crimes cujas vtimas envolvidas tinham idade inferior a 12 anos (Bureau of Justice Statistics, Four).

    8 Os dados de prises em fl agrante em crimes violentos correspondem ao nmero de pessoas presas por homicdio, estupro, roubo e roubo qualifi cado, conforme relatrios apresentados pelas autoridades policiais ao FBI (Bureau of Justice Statistics, Four).

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    20

    de violncia dos pases, refora a concluso apresentada pelas estatsticas oficiais sobre a substancial queda dos ndices de delitos violentos nos Estados Unidos nas lti-mas dcadas. Aps o contnuo decrscimo entre os anos de 1991 e 2000, momento no qual os ndices so reduzi-dos de 9,8 para 5,5 homicdios por 100.000 habitantes, ocorre sua estagnao.

    Grfi co 02EUA: Registro de Homicdios (1960-2008)

    9,5

    6,85,6

    5,65,4

    8,69,6

    7,36,2

    4,65,1

    8,3

    02468

    1012

    60 62 65 69 73 77 81 85 89 93 97 01 05 09

    ndice de Homicdios por 100.000 Habitantes

    Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

    No entanto de forma inversamente proporcional encon-tram-se os nveis de prisionalizao, pois nas duas ltimas dcadas houve substancial incremento no grau de encarcera-mento, fator que confi gurou os Estados Unidos como pas de maior contingente de pessoas presas no mundo. Estimativas apontam que 01 em cada 04 presos no mundo encontra-se de-tido em prises norte-americanas.

  • 21

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    Grfi co 03EUA: Taxas de Encarceramento (1980-2008)

    Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

    Segundo dados do International Centre for Prison Studies do Kings College de Londres, ao final de 2008, os Estados Unidos atingia a cifra de 2,3 milhes de pessoas encarceradas, correspondendo a 753 presos por 100.000 habitantes. Acrescentando nestes nmeros os condena-dos no envolvidos na forma carcerria de execuo pe-nal (probation e parole), o nmero de pessoas sob vigiln-cia penitenciria atingia 7,2 milhes. Em termos univer-sais, apenas a Rssia se aproxima destes nmeros, mas com ndices significativamente inferiores (610 presos por 100.000 habitantes em 2009).

    Ao cruzarmos os dados, temos a seguinte representao grfi ca.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    22

    Grfi co 04EUA: Curvas de Encarceramento e de Homicdios (1991-2008)

    9,8 9,5

    8,2

    6,86 5,7 5,6 5,7 5,6 5,6 5,4

    505550

    600 630669 675 685 700

    723 740760

    0

    100

    200

    300

    400

    500

    600

    700

    800

    0

    2

    4

    6

    8

    10

    12

    92 93 95 97 98 99 2001 2003 2004 2005 2008

    Homicdios Encarceramento

    Fontes: United States Bureau of Justice Statistics e International Centre for Prison Studies, Kings College (Londres)

    Observe-se, contudo, que em razo de os nmeros serem substancialmente distintos, so atribudos dois valores ao eixo vertical, gerando dados autnomos eixo vertical direito regis-tro de delitos de homicdio por 100.000 habitantes; eixo vertical esquerdo nmero de pessoas presas por 100.000 habitantes. Do contrrio, ou seja, atribuindo paridade aos valores, o cruzamento seria impossvel. Assim, o grfi co apresenta imagem simblica das distintas curvas, permitindo apenas visualizar a tendncia encarceradora do sistema norte-americano apesar da diminui-o dos ndices ofi ciais de registro de crimes violentos.

    Embora a ressalva de ser este princpio apenas referen-cial terico, no necessariamente resultado concretizado na prtica,9 sustenta Garland que no sistema penal-welfare a pri-

    9 Garland, The Culture..., p. 177.

  • 23

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    so funcionaria como a ltima instncia do sistema de con-trole, como recurso extremo no continuum do tratamento, direcionado exclusivamente queles delinquentes que no respondessem adequadamente s medidas reformadoras aplicadas em outras instituies punitivas.

    Do ponto de vista terico, o postulado da utilizao da pena, em geral, e da pena de priso, em particular, como lti-mo recurso sancionatrio do sistema penal legado do pen-samento liberal clssico, consolidado pelo direito penal con-temporneo nos princpios de interveno mnima, de frag-mentariedade ou de subsidiariedade que concentram a ideia da ultima ratio. E, diferentemente de ser conquista do modelo correcionalista, conforme sustenta Garland, o discurso de defesa da interveno mnima acompanha a trajetria dos discursos do direito penal e do direito processual penal da Modernidade, apesar de, nos dois ltimos sculos, sua con-solidao cientfi ca (dogmtica penal) ter, ao instrumentalizar a aplicao do poder punitivo, operado constantes inverses do signifi cado liberal de subsidiariedade cuja consequncia a relegitimao e ampliao do uso da pena.

    Todavia parece ser correto o diagnstico de Garland em relao ao processo de reinveno da priso no perodo ps--crise do modelo correcionalista.

    As mudanas econmicas e scio-culturais da dcada de 80, sobretudo com a consolidao da economia de mercado e do modelo poltico-econmico de gerenciamento neoliberal, impuseram radicais cmbios na estrutura dos Estados, atin-gindo diretamente os servios prestados pelas suas institui-es. Assim, o giro ao punitivismo da dcada de 90 no cor-responde apenas ao esgotamento do intervencionismo, como se as crticas acadmicas dos anos 60 e 70 tivessem o poder de provocar rupturas na estrutura poltica. O colapso do modelo

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    24

    penal-welfare decorrncia lgica da substituio do projeto de Estado de Bem-Estar (Welfare State) por estruturas estatais pautadas pelos princpios de efi cincia e controladas pela l-gica do gerenciamento atuarial.

    Assim como no perodo de transposio do Estado Liberal ao Estado Social a concepo de interveno penal re-sidual invertida em direo ao correcionalismo10, com a fa-lncia da poltica de bem-estar social as instituies do Estado Providncia igualmente entram em crise. O giro em direo ao punitivismo, com o consequente declnio das formas pu-nitivas ressocializadoras, refl exo direto do cmbio poltico--econmico, no podendo ser reduzido mudana de pers-pectiva terica do mainstream jurdico-penal e criminolgico.

    Parecem, pois, absolutamente estreis e descolados da realidade os debates acadmicos voltados a identifi car, inter-namente aos discursos das cincias criminais, as causas do

    10 Franois Ost expe a transposio das funes estatais do Estado Liberal absentesta ao Estado Social intervencionista referindo que pois como Estado protector que o Estado moderno se identifi ca. No sculo XIX, esta proteco assumir a forma minimalista da garantia generalizada da sobrevivncia, com o Estado liberal a deixar esfera privada a gesto das condies materiais de existncia. No sculo XX, em compensao, as misses do Estado alargam-se, na medida em que ele toma a seu cargo, para alm da simples sobrevivncia, a garantia de certa qualidade de vida: fala-se ento de Estado-providncia ou de Estado social (Ost, O Tempo do Direito, p. 336).

    Com nfase na ocupao e na gesto da populao excedente, Zygmunt Bauman apresenta similar diagnstico acerca das funes do Estado Social: (...) o estado de bem-estar foi, originalmente, concebido como um instrumento manejado pelo estado a fi m de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptido no meio do processo. Os dispositivos da previdncia eram ento considerados como uma rede de segurana, estendida pela comunidade como um todo, sob cada um de seus membros (...). A comunidade assumia a responsabilidade de garantir que os desempregados tivessem sade e habilidades sufi cientes para se reempregar e de resguard-los das temporrias solues e caprichos das vicissitudes da sorte. O estado de bem-estar no era concebido como uma caridade, mas como um direito do cidado, no como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro coletivo (Bauman, O Mal-Estar da Ps-Modernidade, p. 51).

  • 25

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    esgotamento do paradigma ressocializador, como se o eixo poltico estivesse condicionado ao campo terico. A imputa-o da responsabilidade sobre o avano do punitivismo para determinadas teorias criminolgicas v.g. a teoria do justo merecimento ou a criminologia crtica , no apenas desloca a poltica criminal da poltica, como superdimensiona o pa-pel das teorias, refl etindo o profundo narcisismo dos atores das cincias criminais. Nenhuma teoria (da pena) contempo-rnea, frise-se exausto, teria o poder de defi nir os rumos da poltica-criminal. Outrossim, e esta uma das principais teses propostas neste trabalho, sero os atores judiciais das agn-cias de punitividade os que, conforme o seu maior ou menor grau de identifi cao (ou de resistncia) com o projeto poltico-criminal, (des)legitimaro sua aplicao, visto serem os sujeitos que detm a capacidade de efetivar as reformas.

    Interessante perceber, ainda, que, sob o aspecto do im-pacto das alteraes poltico-econmicas na poltica criminal ocidental, os recursos de interpretao fornecidos pela cri-minologia crtica so extremamente vlidos, pois permitem compreender a infl uncia decisiva do cmbio provocado pelo neoliberalismo no direcionamento da punio e o papel exer-cido pelas instituies totais, sobretudo a priso, neste novo contexto social.

  • 27

    3.Punitivismo e Reinveno

    das Prises

    Questo preliminar a ser colocada sobre como a priso, instituio gradualmente deslegitimada durante o sculo XX, foi reinventada e elevada ao posto de principal smbolo do punitivismo contemporneo.

    A incisiva crtica criminolgica aos fundamentos jurdi-co-penais e s formas de aplicao e de execuo do potestas puniendi, agregada aos importantes avanos desinstituciona-lizadores irrompidos pela antipsiquiatria e pelo movimento antimanicomial, haviam aberto espao para a superao do modelo carcerrio de resposta punitiva. Andrew Scull, no fi -nal dos anos 70, expondo o sentimento otimista comum na academia, sustenta que a crise fi scal do Estado de bem-estar keynesiano conduzia desprisionalizao; [o que] ocorreu com os pacientes psiquitricos mas no com os delinquentes.1

    Garland, ao analisar as razes sociais do controle con-temporneo do delito, remeter exatamente nesta perspectiva seus questionamentos: por que a priso, instituio desprestigia-da e destinada abolio, constituiu-se em pilar aparentemente in-dispensvel e em expanso na vida social da modernidade tardia?2 Segundo o autor, o ressurgimento e a relegitimao das pri-

    1 Apud Braithwaite, El Nuevo Estado Regulador y la Transformacin de la Criminologa, p. 52.

    2 Garland, The Culture..., p. 199.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    28

    ses ocorreram em razo de sua utilidade na nova dinmi-ca das sociedades neoliberais no horizonte da modernidade tardia: encontrar sentidos civilizados e constitucionais de se-gregar as populaes problemticas criadas pelas instncias econmicas e sociais. Sustenta que a priso se encontra no ponto de encontro entre duas das mais importantes dinmi-cas sociais do nosso tempo: o risco e a retribuio.3 Assim, em poucas dcadas deixou de ser instituio correcional desacreditada e decadente, para constituir-se em pilar macio e aparentemente in-dispensvel da ordem social contempornea.4

    No diagnstico de Downes e Morgan, em referncia s reformas penais ocorridas no Reino Unido, a redescoberta da via criminal decorrncia da absoro pelo discurso poltico do populismo punitivo, acrescido da retrica de tolerncia zero e da lgica da ressignifi cao retributivista das funes da priso (prision works). O expansionismo punitivo, inserido no quadro emotivo da demanda social por medidas emergen-ciais, inscreve-se na cultura contempornea s expensas do devido processo e das liberdades pblicas.5

    Na hiptese de Garland, voltada para interpretao das mudanas no controle social nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha6, o uso da priso contempornea se assemelha ao

    3 Com a lgica absolutista da sano penal, castiga e protege, condena e controla. O encarceramento serve, simultaneamente, como satisfao expressiva de sentimentos retributivos e como mecanismo instrumental para gesto do risco e confi namento do perigo (Garland, The Culture..., p. 199).

    4 Garland, The Culture..., p. 14.5 Downes & Morgan, No Turning Back, p. 214.6 Ao analisar o trabalho de Garland e sua circunscrio ao universo norte-

    americano e ingls, Larrauri demonstra que as generalizaes quanto ao fenmeno da cultura do controle no podem ser aplicadas indistintamente. Assim, entende ser (...) mais frutfero que discutir que pases escapam da anlise de Garland talvez seja analisar quais so as caractersticas das sociedades que no desenvolveram tendncias to punitivas nas ltimas dcadas (Larrauri, Populismo..., p. 17).

  • 29

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    do gulag sovitico, visto ser utilizada como local de reserva, como zona de quarentena na qual so segregadas as pesso-as supostamente perigosas, em nome da segurana pblica. Similar s sanes pr-modernas de degredo ou banimento, as prises funcionam como forma de exlio e o seu uso est delineado menos pelo ideal da reabilitao e mais por aquilo que Rutherford denomina de eliminao.7

    Wacquant, analisando a relao dos processos econmi-cos das ltimas dcadas com as novas formas de utilizao da priso, aproxima seu olhar da realidade dos pases peri-fricos, e, ao relacionar crcere e gueto8, demonstra como a consolidao do Estado Penal restou como alternativa fren-te falncia do modelo do Welfare State. As prises, na con-temporaneidade, justifi cam-se como mecanismos de gesto da misria e dos grupos inconvenientes representados pelos mal- adaptados e desajustados sociais.9

    A perspectiva da presente pesquisa a de analisar as circunstncias que possibilitaram a assuno do punitivismo no Brasil. Compartilha a perspectiva de Larrauri quanto utilidade da compreenso dos fatores desenvolvidos em outras realidades socioculturais de forma a produzir discurso e atuao de resistncia ao punitivismo.

    Todavia, importante perceber que, apesar das especifi cidades, a poltica de conteno punitiva das camadas precarizadas do novo proletariado urbano se difundiu por todo o planeta, na esteira do neoliberalismo econmico (Wacquant, O Corpo, o Gueto e o Estado Penal, p. 12).

    7 Garland, The Culture..., p. 178.8 A representao maciamente predominante e crescente de afroamericanos em

    qualquer nvel do aparato penal tinge a segunda funo assumida pelo sistema carcerrio da nova administrao da pobreza na Amrica de uma cor desagradvel: compensar e complementar a falncia do gueto como mecanismo de confi namento de uma populao considerada divergente, desonesta e perigosa, bem como suprfl ua no plano econmico (imigrantes mexicanos e asiticos so trabalhadores mais dceis) e no plano poltico (negros pobres raramente votam e,de qualquer forma, o centro gravitacional eleitoral mudou das regies centrais urbanas decadentes para os prsperos subrbios brancos) (Wacquant, O Lugar..., p. 13).

    9 Segundo Wacquant, longe de contradizer o projeto neoliberal de desregulamentao e degradao do setor pblico, a ascenso irrefrevel do estado penal norte-americano constitui, por assim dizer, o seu negativo (ou seja, a um s tempo a revelao e a

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    30

    No mesmo sentido Bauman, ao perceber que, com a falta de emprego e a crise de fi nanciamento dos Estados para pro-mover bem-estar, a priso surge como local de reserva da popu-lao excedente: nas atuais circunstncias, o confi namento antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considervel da populao que no necessria produo e para a qual no h trabalho ao qual se reintegrar10. Neste aspecto, acrescenta os socialmente inconvenientes (excludos do processo de produo e de consumo) aos grupos perigosos identifi cados por Garland, ampliando o rol de destinatrios das prises. No panorama atual, portanto, a incriminao [e o encarceramento, por consequncia] parece estar emergindo como o principal substituto da sociedade de consumo para o rpido desaparecimento dos dispositi-vos do estado de bem-estar.11

    A hiptese sustentada nesta investigao corrobora o diagnstico dos autores, mas amplia os horizontes ao procu-rar visualizar as especifi cidades da margem latino-americana, pois, se nos pases centrais a reinveno da priso adquire funes instrumentais na nova lgica do capitalismo ps--Welfare State, sua ressignifi cao adquirir potncia em grau superlativo nos pases perifricos. Na margem, como not-rio, as conquistas do Estado Social foram simulacros e, no que

    manifestao do seu reverso), uma vez que evidencia a implementao de uma poltica de criminalizao da pobreza, que o complemento indispensvel imposio de ofertas de trabalho precrias e mal remuneradas na forma de obrigaes cvicas para aqueles que esto cativos na base da estrutura de classes e castas,bem como a reimplantao concomitante de programas de welfare reformulados com uma face mais restritiva e punitiva (Wacquant, O Lugar..., p. 11).

    Sobre o tema da consolidao do Estado Penal, conferir Wacquant, As Prises da Misria, pp. 77-152; Wacquant, Punir os Pobres, pp. 53-98; Wacquant, A Tentao Penal na Europa, pp. 07-12; Wacquant, A Asceno do Estado Penal nos EUA, pp. 13-40.

    10 Bauman, Globalizao, pp. 119-120.11 Bauman, O Mal-Estar..., p. 78.

  • 31

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    tange especifi camente dimenso do penal, os modelos cor-recionalistas foram implementados de forma residual, sendo possvel, em nvel macropoltico criminal, sustentar sua in-corporao meramente formal.

    Em termos punitivos, portanto, nos pases da Amrica Latina os discursos penalgicos neorretribucionistas, de neu-tralizao e de incapacitao ingressam com fora mxima, legitimando cientfi ca e politicamente a atuao genocida das agncias de controle. Se na experincia punitiva latino-ameri-cana a pena nunca abandonou a funo explcita de controle violento dos indivduos e dos grupos perigosos e inconve-nientes, mesmo sob a gide formal das reformas em direo ao correcionalismo, com o abandono das polticas penal-wel-fare e a ressignifi cao da priso como mecanismo exclusivo de neutralizao, a violncia da aplicao do poder punitivo ser densifi cada.

    A perversa equao que agrega as histricas omisses nas polticas sociais s polticas criminais de ampliao das hipte-ses de criminalizao e punio produz, como resultado, a bar-barizao dos espaos de encarceramento. Locais de punitivida-de cada vez mais alheios aos projetos voltados implementao dos programas de ressocializao e defi citrios em relao aos investimentos que propiciem a sobrevincia digna aos apenados (crceres, manicmios e instituies juvenis).

    Neste quadro, seja no que tange excluso da dimen-so qualitativa do idealizado projeto ressocializador, seja no que diz respeito ao incremento quantitativo nos ndices de encarceramento, as formas de aplicao e de execuo da pena criminal na realidade perifrica ingressam, no ter-ceiro milnio, como problema central das perspectivas cri-minolgicas minimamente preocupadas com a efetividade dos direitos humanos.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    32

    3.1. Populismo Punitivo e a Reinveno da Priso no Brasil: Diagnstico Normativo

    A legislao brasileira, em especial a penal e a processual penal, foi objeto de profunda modifi cao aps a publicao da Constituio de 1988. Apesar de o sistema poltico pr--Constituio ser de ntida natureza autoritria e conformar, no mbito da represso aos crimes polticos, modelo penal e poltico-criminal de exceo que contaminou as prticas punitivas e repressivas da criminalidade comum, o cenrio legislativo (formal) encontrava-se razoavelmente estvel e em associao ao welfarismo penal, sobretudo aps a Reforma de 1984, com a publicao da nova parte geral do Cdigo Penal e a unifi cao das regras penitencirias na Lei de Execuo Penal.

    A constncia legislativa em relao criminalidade co-mum pode ser caracterizada pela preservao da estrutura penal e processual penal codifi cada em realidade que deman-dava reduzidas inovaes em matria de criminalizao, pou-cas alteraes visando ao aumento de penas e escassa criao de leis penais especiais e/ou complementares. Entre o perodo das dcadas de 60 e 80, o impacto mais profundo no Cdigo Penal pode ser visualizado na descodifi cao dos crimes con-tra a sade pblica e a elaborao da Lei 6.768/76, que institui sistema integral de preveno e represso ao consumo e ao comrcio de entorpecentes (Lei de Drogas).

    A propsito, interessante notar certo paradoxo entre a estrutura jurdico-penal formal e a atuao das agncias de punitividade. Enquanto a relativa estabilidade legal era man-tida inclusive com a participao de experts de tradio libe-ral e humanitria na reforma da parte geral do Cdigo Penal e na elaborao da Lei de Execuo Penal em 1984 , a atuao do sistema repressivo, sobretudo o policial e o carcerrio, in-

  • 33

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    corporou a ideologia (de segurana nacional) e as estratgias militarizadas de combate ao crime poltico (represso ao ini-migo interno).12 Percebe-se, inclusive, que a permanncia da estrutura inquisitiva do Cdigo de Processo Penal de 1941, redigido sob a forte infl uncia do Cdigo de Rocco, facilitou, durante o perodo de exceo, a adoo de posturas autorit-rias pelos atores judiciais.

    Com a mudana no cenrio poltico no fi nal da dcada de 80, a expectativa da comunidade jurdica nacional e dos analistas do sistema penal foi a de gradual abertura e demo-cratizao dos poderes e das instituies que integravam as inmeras agncias do sistema punitivo.

    O texto constitucional de 1988, no que diz respeito mat-ria penal, apresentou, porm, ambiguidades. Apesar de manter a tradicional exposio de princpios limitadores do potestas pu-niendi, trouxe inmeras modifi caes na estrutura do direito pe-nal e do processual penal que abriram espao para o incremento do punitivismo que caracterizou a dcada de 90.

    A atividade legislativa da dcada de 90 no Brasil, po-tencializada em parte pelo conjunto de normas constitucio-nais programticas, ampliou as hipteses de criminalizao primria e enr eceu o modo de execuo das penas. Para-lelamente criao de inmeros novos tipos penais, houve substancial alterao na modalidade de cumprimento das sanes, sendo o resultado desta experincia a dilatao do input e o estreitamento do output do sistema, com refl exos di-retos no nmero de pessoas processadas e presas (provisria ou defi nitivamente).

    O exemplo mais signifi cativo da tendncia legislativo- punitivista que orientou a poltica criminal brasileira foi a re-

    12 Neste sentido, conferir Carvalho, A Poltica Criminal de Drogas no Brasil, pp. 29-42.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    34

    dao da Lei 8.072/90, a qual aumentou as penas dos delitos classifi cados como hediondos e, no que diz respeito execu-o penal, estabeleceu vedao na progresso de regime, au-mento de prazo para livramento condicional e obstruo de comutao e de indulto aos crimes nela dispostos. A obstacu-lizao do processo de desinstitucionalizao progressiva na execuo da pena estabelecida pela Lei dos Crimes Hedion-dos foi, inegavelmente, uma das principais causas do aumen-to da taxa de encarceramento no pas. E no obstante algumas decises monocrticas isoladas que reputavam inconstitucio-nal a Lei 8.072/90, em harmonia com a unanimidade da dou-trina, sobretudo a partir da edio da Lei 9.455/97 (Lei dos Crimes de Tortura), o Supremo Tribunal Federal (STF), com o intuito de pacifi car a matria, emitiu a Smula 698, afi rmando sua constitucionalidade.13 Apenas com o julgamento do HC 82.959/06 pelo Pleno do STF, por maioria de votos a Corte re-conheceu, aps 16 anos de vigncia, a inconstitucionalidade do 1 do art. 2 da Lei dos Crimes Hediondos.14

    Alm da Lei dos Crimes Hediondos, o processo de descodi-fi cao e de reforma parcial do Cdigo Penal ampliou a crimina-lizao primria, criando novos tipos penais, aumentando penas e alargando as hipteses de aplicao e de execuo das penas privativas de liberdade em regime carcerrio fechado.

    Em matria processual penal, as alteraes no Cdigo de Processo densifi caram a criminalizao secundria. No

    13 No se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progresso de regime de execuo da pena aplicada ao crime de tortura.

    14 Importante registrar que mesmo aps a publicao da Smula 698, a 1 Turma do STF decidiu, em dois Habeas Corpus (HC 87.623 e HC 87.452), unanimidade, afastar a proibio da progresso de regime em casos de extorso mediante sequestro (art. 159, 1 CP) e de trfi co ilcito de entorpecentes (art. 12 c/c art. 18, III da Lei 6.368/76). Os precedentes deram origem referida deciso do Tribunal Pleno: STF, Tribunal Pleno, Habeas Corpus 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurlio de Mello, j. 23.02.06.

  • 35

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    apenas as possibilidades de priso cautelar foram (re)estrutu-radas v.g. priso temporria (Lei 7.960/89) e novas espcies de inafi anabilidade e vedao de liberdade provisria (Leis 7.716/89, 8.072/90, 9.034/95 e Lei 9.455/97) , como foi possi-bilitada modalidade de execuo de pena sem o trnsito em julgado de sentena condenatria (Lei 8.038/90), denominada execuo penal antecipada.15

    Nota-se, portanto, que no mbito do Poder Legislativo inmeros fatores contriburam para o aumento dos ndices de encarceramento:

    (a) criao de novos tipos penais a partir do rol de bens jurdicos expostos na Constituio (campo penal);

    (b) ampliao da quantidade de pena privativa de liber-dade em inmeros e distintos delitos (campo penal);

    (c) sumarizao do procedimento penal, com o alar-gamento das hipteses de priso cautelar (priso preventiva e temporria) e diminuio das possi-bilidades de fi ana (campo processual penal);

    (d) criao de modalidade de execuo penal anteci-pada, prescindindo o trnsito em julgado da sen-tena condenatria (campo processual e da execu-o penal);

    (e) enr ecimento da qualidade do cumprimento da pena, com a ampliao dos prazos para progresso e livra-mento condicional (campo da execuo penal;

    15 O Superior Tribunal de Justia, em 2005, revisou a posio que admitia cumprimento de pena sem o trnsito em julgado de sentena penal condenatria execuo penal antecipada (STJ, 6 Turma, Habeas Corpus 25.310, Rel. Min. Paulo Medina, DOU 02.02.05). At a reviso do posicionamento, os Tribunais entendiam que a interposio de Recursos Federais (Especial e Extraordinrio) contra acrdo condenatrio no suspendia os efeitos da deciso, conforme disciplina o art. 27, 2, da Lei 8.038/90. O Entendimento havia sido pacifi cado na Smula 267 do STJ (a interposio de recurso, sem efeito suspensivo, contra deciso condenatria no obsta a expedio de mandado de priso).

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    36

    (f) limitao das possibilidades de extino da pu-nibilidade com a exasperao dos critrios para indulto, graa, anistia e comutao (campo da exe-cuo penal); e

    (g) ampliao dos poderes da administrao carcerria para defi nir o comportamento do apenado, cujos refl exos atingem os incidentes de execuo penal (v.g. Lei 10.792/03) (campo penitencirio).

    A partir do diagnstico normativo, possvel dizer, em ter-mos preliminares, que a diminuio das taxas de encarceramen-to no Brasil prescindiria reforma geral no quadro legislativo, atingindo na integralidade todas as fases de persecuo crimi-nal, ou seja, da investigao policial execuo da pena.

    Todavia, apesar de se entender como correta a assertiva da necessidade de racionalizao e de ressistematizao do quadro geral dos delitos, das sanes, dos procedimentos e da execuo (law in books), lcito afi rmar que as mudanas devem necessa-riamente operar de forma intensa na cultura dos atores jurdicos que realizam a law in action. Isto porque, ao longo do processo de formao do grande encarceramento nas duas ltimas dca-das, inmeras hipteses concretas de estabelecimento de fi ltros minimizadores da prisionalizao foram criadas pelo Poder Legislativo, sendo obstaculizadas na esfera do Poder Judicirio, nitidamente infl uenciado pela racionalidade punitivista.

    3.2. O Grande Encarceramento

    Os dados quantitativos sobre encarceramento no Brasil passa-ram a ter periodicidade apenas na ltima dcada. Anteriormente, o controle do nmero de presos era realizados pelos Estados da Federao, no havendo integralizao. Atualmente, o rgo en-carregado em receber, unifi car e divulgar os nmeros sobre a situ-

  • 37

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    ao carcerria nacional o Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN), vinculado ao Ministrio da Justia.

    No entanto, apesar de no existirem condies de ana-lisar o nvel de encarceramento no perodo anterior ao in-cio da reforma no sistema punitivo, os nmeros parciais dos anos 90 e integrais da ltima dcada permitem diagnosticar a profunda imerso da poltica criminal brasileira no cen-rio punitivista internacional. O aumento de 87,87 para 247,68 presos por 100 mil habitantes nos ltimos 15 anos dado que sustenta a hiptese, sendo de difcil refutao.

    Tabela 01Brasil: Nmero de presos por 100.000 habitantes

    Ano Populao PresosPresos/100.000

    hab.1994 147.000.000 129.169 87,871995 155.822.200 148.760 95,471997 157.079.573 170.207 108,362000 169.799.170 232.755 137,082001 172.385.826 233.859 135,662002 174.632.960 239.345 137,062003 176.871.437 308.304 174,312004 181.581.024 336.358 185,242005 184.184.264 361.402 196,222006 186.770.562 401.236 214,832007 183.965.854 419.551 228,062008 189.612.214 451.429 238,102009 Sem dados 473.626 249,781

    Fonte: Censos Penitencirios (Ministrio da Justia) e do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    38

    Ao ser analisada a curva de aumento da populao carcerria nas duas ltimas dcadas, nota-se que a opo poltico-criminal autoritria de recrudescimento dos apa-relhos punitivos tem obtido xito. Dados que, desde o pon-to de vista da crtica criminolgica, tomam dimenses pre-ocupantes.

    Em relao aos pases da Amrica do Sul, o Brasil su-perado em nmero de presos por 100.000 habitantes pela Guiana Francesa (365), Suriname (356), Chile (297) e Guiana (260). Todos os demais pases do continente apresentam n-veis de encarceramento inferiores aos brasileiros: Argentina (154), Bolvia (82), Colmbia (151), Equador (126), Paraguai (95), Peru (146), Uruguai (193) e Venezuela (79) dados relati-vos ao binio 2006-2008.16

    Se proposta comparao dos ndices apresentados pelo Brasil com os dos pases da Comunidade Europeia (dados de 2006)17, percebe-se que o grau de encarceramento supera em grande medida pases como Portugal (104,3), Espanha (146,1), Frana (91,6), Itlia (65,2), Inglaterra (145,1) e Alemanha (95,8), aproximando-se de pases do Leste, como Azerba o (211,9), Litunia (237,0), Moldvia (230,0) e Polnia (229,9). Os pases mencionados so ultrapassados apenas pela Estnia (321,6), Georgia (302,7), Ucrnia (355,3) e, notoriamente, pela Rssia (608,6), pas com a maior densidade populacional encarcera-da do continente.

    Como ressaltado anteriormente, os Estados Unidos per-manecem com a maior taxa de encarceramento mundial, atin-gindo em 2007 o nmero absoluto entre presos provisrios e

    16 Dados colhidos pelo International Centre for Prison Studies (ICPS).17 Council of Europe, Annual Penal Statistics 2006, p. 18.

  • 39

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    defi nitivos de 2.293.157, correspondendo a 756 presos por 100 mil habitantes.18

    Grfi co 05Brasil: Curva de Encarceramento 1994-2009

    87,87 95,47108,36

    137,08 135,66 137,06174,31185,24

    196,22214,83 228,06

    238,1 249,78

    0

    50

    100

    150

    200

    250

    300

    1994 1995 1997 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

    Fonte: Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN)

    Signifi cativo nos dados apresentados pelo Brasil o nme-ro de presos provisrios, cujo percentual varia, na mdia dos l-timos 05 anos, em torno de 30% da populao carcerria.

    18 Bureau of Justice Statistics, Prisioners in 2007, p. 04.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    40

    Tabela 02Brasil: Relao Presos Condenados e Presos Provisrios

    (2000-2009)

    AnoTotal dePresos

    PresosProvisrios

    PresosCondenados

    2000 232.755 80.775 151.9802001 233.859 78.437 155.4222002 239.345 80.235 159.1102003 308.304 67.549 240.2032004 336.358 86.766 249.5922005 361.402 102.116 259.2862006 401.236 112.138 289.0982007 422.590 127.562 295.0282008 451.429 138.940 312.4892009 473.626 152.612 321.014

    Fonte: Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN)

    Em termos absolutos, apesar de o nmero de mulhe-res encarceradas ser infinitamente menor que o de ho-mens, nota-se que nos ltimos anos o volume da popu-lao feminina presa supera, proporcionalmente, a mas-culina. Se no ano de 2000 o nmero de mulheres presas era de 10.112, no primeiro semestre de 2009, havia 24.068 encarceradas, correspondendo a 5,12% do total de brasi-leiros nas prises.

    No que diz respeito relao presas provisrias e presas condenadas, os ndices so similares aos da populao encar-cerada masculina, girando em torno de 30%.

  • 41

    Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

    Tabela 03Brasil: Mulheres Condenadas e Presas Provisrias (2000-2009)

    Ano PresasPresas

    ProvisriasPresas

    Condenadas2000 10.112 3.382 6.7302001 9.873 3.373 6.5002002 10.285 3.536 6.7492003 9.863 2.700 7.1632004 16.473 8.174 8.2992005 12.925 3.894 9.0312006 17.216 4.170 13.0462007 19.034 5.228 13.8062008 21.594 6.535 15.0592009 24.686 8.671 16.015

    Fonte: Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN)

    A substancial diferena entre as populaes presas masculina e feminina diz respeito espcie de crime pra-ticado. Enquanto o fenmeno da prisionalizao masculi-na caracterizado pela pluralidade dos crimes, com certa prevalncia dos patrimoniais, a maioria das mulheres se encontra presa em decorrncia de delitos vinculados ao trfi co de entorpecentes.

  • CriminologiaS: Discursos para a Academia

    42

    Tabela 04Brasil: Populao Carcerria Masculina

    e Espcies de Crimes (2009)

    CrimeNmero

    de Presos ProporoHomicdio* e Latrocnio** 60.489 12,88%Furto*** 61.440 13,08%Receptao, Estelionato eApropriao 17.476 3,72%Roubo**** 108.824 23,17%Extorso e Sequestro***** 6.083 1,29%Trfi co de Drogas****** 73.877 15,73%Crimes Sexuais 17.283 3,68%Demais Crimes 124.074 26,45%

    Total 469.546 100%

    Fonte: Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN)

    * Esto representadas nos nmeros as formas tentadas, simples e qualifi ca-das.

    ** O delito de latrocnio, apesar de ser cometido contra o patrimnio, em face do resultado morte foi vinculado com o homicdio, de forma a dar a representati-vidade pelas consequncias.

    *** Esto representadas nos nmeros as formas tentadas, simples e qualifi ca-das.

    **** Esto representadas nos nmeros as formas tentadas