carvalho, salo de. considerações sobre o discurso das reformas processuais penais

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Considerações sobre o discurso das reformas processuais penais * Salo de Carvalho * § 1 o . À guisa de introdução. O objetivo do presente artigo é avaliar o(s) discurso(s) de reforma do Processo Penal brasileiro, mais especificamente do Código de Processo Penal (CPP), no interior das alterações operadas na estrutura processual na década de 90 (‘Direito Penal fernandino1 ). Partimos do pressuposto que os atuais projetos de reforma parcial do CPP são fruto de amplo programa reformador que teve início com as normas penais e processuais penais programáticas (‘Constituição penal dirigente’) que legitimaram uma nova estrutura repressivo-penal. Desde já, portanto, é fundamental destacar que o texto é crítico às reformas, principalmente ao projeto de reforma do CPP – não do sentido de reforma em si, mas do modelo de reforma operado/pretendido – e, conseqüentemente, crítico aos discursos (re)produtores deste pensamento. * CARVALHO, Salo. Considerações sobre o discurso das reformas processuais penais. In: Doutrina (13). RJ: Instituto de Direito, 2002. p. 316 – 339. * Advogado. Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito. Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da PUCRS e UNISINOS, e do Programa de Doutorado ‘Derechos Humanos y Desarrollo’ da Universidad Pablo Olavide (UPO) – Sevilha/ES. 1 A expressão ‘Direito Penal fernandino’ é utilizada por Miguel Reale Jr, quando constata que “o vício que caracteriza a produção da legislação penal dos últimos tempos, mormente nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique, de início se restringindo á legislação extravagante e à Parte Especial do Código, atinge, agora, a Parte Geral do Código Penal. O Direito Penal ‘fernandino’ faz da década de 90 um dos momentos mais dramáticos para o Direito brasileiro, pois era imprevisível que se produzissem em matéria repressiva tantas soluções normativas ao sabor dos fatos, sob o encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa. O elenco de leis penais esdrúxulas, eivadas de inconstitucionalidade e que beiram o ridículo, é longo e não caberia aqui ser lembrado” (REALE Jr., Miguel. Mens legis insana, corpo estranho, p. 23). Muito embora a expressão seja cunhada para diagnosticar a estrutura das reformas modificativas do Direito Penal, não temos dúvida que é perfeitamente compatível com o atual estado do Direito Processual Penal brasileiro moldado durante o mesmo período (década de 90).

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Page 1: CARVALHO, Salo de. Considerações sobre o discurso das reformas processuais penais

Considerações sobre o discurso das reformas processuais penais*

Salo de Carvalho*

§ 1o. À guisa de introdução. O objetivo do presente artigo é avaliar o(s)

discurso(s) de reforma do Processo Penal brasileiro, mais especificamente do Código de

Processo Penal (CPP), no interior das alterações operadas na estrutura processual na década

de 90 (‘Direito Penal fernandino’1). Partimos do pressuposto que os atuais projetos de

reforma parcial do CPP são fruto de amplo programa reformador que teve início com as

normas penais e processuais penais programáticas (‘Constituição penal dirigente’) que

legitimaram uma nova estrutura repressivo-penal.

Desde já, portanto, é fundamental destacar que o texto é crítico às reformas,

principalmente ao projeto de reforma do CPP – não do sentido de reforma em si, mas do

modelo de reforma operado/pretendido – e, conseqüentemente, crítico aos discursos

(re)produtores deste pensamento.

* CARVALHO, Salo. Considerações sobre o discurso das reformas processuais penais. In: Doutrina (13). RJ: Instituto de Direito, 2002. p. 316 – 339. * Advogado. Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito. Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da PUCRS e UNISINOS, e do Programa de Doutorado ‘Derechos Humanos y Desarrollo’ da Universidad Pablo Olavide (UPO) – Sevilha/ES. 1 A expressão ‘Direito Penal fernandino’ é utilizada por Miguel Reale Jr, quando constata que “o vício que caracteriza a produção da legislação penal dos últimos tempos, mormente nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique, de início se restringindo á legislação extravagante e à Parte Especial do Código, atinge, agora, a Parte Geral do Código Penal. O Direito Penal ‘fernandino’ faz da década de 90 um dos momentos mais dramáticos para o Direito brasileiro, pois era imprevisível que se produzissem em matéria repressiva tantas soluções normativas ao sabor dos fatos, sob o encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa. O elenco de leis penais esdrúxulas, eivadas de inconstitucionalidade e que beiram o ridículo, é longo e não caberia aqui ser lembrado” (REALE Jr., Miguel. Mens legis insana, corpo estranho, p. 23). Muito embora a expressão seja cunhada para diagnosticar a estrutura das reformas modificativas do Direito Penal, não temos dúvida que é perfeitamente compatível com o atual estado do Direito Processual Penal brasileiro moldado durante o mesmo período (década de 90).

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§ 2o. O eficientismo na reforma do Processo Penal na década de 40. O Decreto-

Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941, que instituiu o ainda em vigor Código de Processo

Penal, foi marcado pelo signo da eficiência da repressão penal. De corte nitidamente

autoritário, pois inspirado na reforma operada no Código de Processo Penal italiano pelo

Ministro Rocco (Ministro da Justiça de Mussolini), a legislação codificada optou pela

minimização dos direitos e garantias fundamentais, adotando um modelo processual de

natureza inquisitiva.

A assertiva é clara se observarmos a justificativa dos legisladores.

Segundo a exposição de motivos, não obstante a necessidade de coordenação

sistemática das regras do processo penal num código único para todo o Brasil – não

esqueçamos que até então existiam Códigos de Processo Penal estaduais –, “impunha-se o

seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado

contra os que delinqüem”2. Para os reformadores, as leis de processo penal vigentes na

época “asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela

evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se

torna necessariamente defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à

expansão da criminalidade”. Assim, “urge que seja abolida a injustificável primazia do

interesse do indivíduo sobre o da tutela social. O indivíduo, principalmente quando vem de

se demonstrar rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar,

em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra

o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social”3.

A opção pelo repressivismo em detrimento das garantias individuais é

naturalmente advogada, tanto que afirmam os reformadores: “este o critério que presidiu à

elaboração do presente projeto de Código”4.

Não obstante adotar um sistema de justificação absolutamente irreal e inexplicável

empiricamente, ou seja, vincular o incremento normativo e a consolidação de um sistema

2 Exposição de Motivos do Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941), § II. (A reforma do processo penal vigente). 3 Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, op. cit., § II. 4 Ib. ibdem., § II.

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de garantias individuais contra o poder estatal desregulado ao aumento e estímulo da

criminalidade, o projeto foi coerente e harmônico em sua fundação político-criminal ao

construir um aparato processual penal ‘eficiente’ à repressão instrumentalizado por uma

matriz processual inquisitiva.

A meta eficientista é clara e pulverizada nas várias fases do procedimento: na

manutenção do inquérito policial5; na ação penal ex officio, na estrutura das provas e no

sistema judicial de gestão6; nas hipóteses amplas e abertas de justificação da prisão

preventiva7; no regime de impugnações e nulidades8; nas possibilidades de alteração do

objeto e do conteúdo da denúncia pelo juiz na sentença penal9 et coetera.

Desta maneira, no projeto “não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um

mal-avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos

de formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal-

compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se

transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal”10.

A reforma da década de quarenta, portanto, tem como epicentro a constrição das

barreiras formais (garantias processuais) que racionalizam a repressão penal. Coerente,

5 A justificativa em manter o arcaico instituto do Insquérito Policial foi a existência de distritos remotos nas comarcas do interior e, conseqüentemente, as ‘dificuldades operacionais’ (Ib. ibdem., § IV). 6 Segundo a Exposição de Motivos, “(...) o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar ao final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que parecerem úteis ao esclarecimento da verdade” (Ib. ibdem, § VII). 7 Refere o projeto: “O interesse da administração da justiça não pode continuar a ser sacrificado por obsoletos escrúpulos formalísticos, que redundam em assegurar, com prejuízo da futura ação penal, a afrontosa intangibilidade de criminosos surpreendidos na atualidade ainda palpitante do crime e em circunstâncias que evidenciam sua relação com este”. Desta forma, “a prisão preventiva, por sua vez, despreende-se dos limites estreitoa até agora traçados à sua admissibilidade. Pressuposta a existência de suficientes indícios para a imputação da autoria do crime, a prisão preventiva poderá ser decretada toda a vez que o reclame o interesse da ordem pública, ou da instrução criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal”. (Ib. ibdem, p. VIII). 8 Dizem os reformadores: “como já foi dito de início, o projeto é infenso ao excessivo rigorismo formal, que dá ensejo, atualmente, à infindável série das nulidades processuais. Segundo a justa advert~encia de ilustre processualista italiano ‘um bom direito processual penal deve limitar as sanções de nulidade àquele estrito mínimo que não pode ser abstraído sem lesar legítimos e graves interesses do Estado e dos cidadãos’” (Ib. ibdem, § XVII). 9 A dizer: “O projeto, generalizando um princípio já consagrado pela atual Lei do Júri, repudia a proibição da sentença condenatória ultra petitum ou a desclassificação in pejus do crime imputado. Constituía um dos exageros do liberalismo o transplante dessa proibição, que é própria do direito privado, para a esfera do direito processual penal, que é um ramo do direito público. Não se pode reconhecer ao réu, em prejuízo do bem social, estranho direito adquirido a um quantum de pena injustificadamente diminuta, só porque o Ministério Público, ainda que por equívoco, não tenha pleiteado maior pena” (Ib. ibdem, § XII). 10 Ib. ibdem., § II.

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pois, o projeto, com a tônica autoritária da política da época e com o modelo ideológico de

Defesa Social11.

§ 3o. O ‘discurso único’ das reformas processuais penais contemporâneas. Se a

reforma da década de 40 colocava em crise a estrutura garantista inerente ao processo penal

11 Segundo Baratta, a ideologia da Defesa Social perfaz a estrutura das Ciências Penais e do senso comum sobre criminalidade desde a construção da moderna teoria do Direito Penal. Nasce com o pensamento ilustrado e revigora seus postulados com o tecnicismo, sendo, nuclearmente, a estrutura da Escola Positiva italiana.

A ideologia da Defesa Social nasce como sistema de controle social de reação contra a criminalidade. O controle social tem no sistema penal (espécie daquele gênero) engenharia específica, programada funcionalmente para a erradicação da criminalidade. Segundo Baratta, esta ideologia está inserida no universo macrossociológico capitalista, nascendo no tempo da Revolução Francesa e inserindo seus postulados no movimento de Codificação Penal. Com o câmbio do Estado liberal ao social-intervencionista, foi remodelada pela Criminologia etiológica, na vertente lombrosiana e ferriana. Apresenta, porém, em todas suas nuances, em que pese divergências sobre as concepções relativas ao homem e à sociedade, padrão de cientificidade que é repassado e apropriado pelo senso comum (every day theories), perfazendo não somente a realidade repressiva do sistema penal, mas também o senso comum do homem da rua sobre a criminalidade e a pena (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica y Crítica del Derecho Penal, p. 36 e seguintes).

Apesar das diferença relativas ao método e objeto em cada modelo de (re)produção da Ciência Penal (classismo, positivismo e tecnicismo), a Ideologia da Defesa Social apresenta funcionalidade justificante (legitimadora) e racionalizadora da intervenção punitiva – “el hilo conductor del análisis está dado por una consideración fundamental: el concepto de defensa social corresponde a una ideologia caracterizada por una concepción abstracta y ahistórica de sociedad entendida como una totalidad de valores e intereses” (BARATTA, Alessandro. Op. cit., p. 42).

Em nossa realidade marginal, a ideologia da Defesa Social, agregada ao Movimento da Defesa Social), legitima modelo de superpositivismo de combate à criminalidade (SANTOS, Juarez Cirino. As Raízes do Crime, p. 51) suscetível de reconstrução a partir da seguinte principiologia elaborada por Baratta: (a) princípio da legitimidade: o Estado, através de suas agências (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias) representa a legítima reação da sociedade na reprovação e condenação dos indivíduos desviantes, reafirmando os valores e normas sociais; (b) princípio do bem e do mal: a infração às normas é considerada como dano social e o delinqüente como elemento disfuncional e negativo, fragmentando de forma maniqueísta a estrutura social entre os fiéis cumpridores da lei e aqueles que dela zombam; (c) princípio da culpabilidade: o delito representa atitude reprovável porque contraria os valores e normas sociais homogêneas sancionadas por legislador racional; (d) princípio do fim ou da prevenção: a função da pena oscila entre a prevenção geral negativa, impondo intimidação e contramotivação ao indivíduo, e a prevenção especial positiva, atuando como ressocializadora; (e) princípio da igualdade: os criminosos representam uma minoria, sendo que a lei penal incide paritariamente contra todos indivíduos que a infringe; (f) princípio do interesse social e do delito natural: o delito representa a ofensa aos bens comuns, aos interesses fundamentais e essenciais da sociedade (conferir a construção e descontrução deste modelo ideológico em BARATTA, Alessandro. Op. cit., p. 44 usque 123).

Conclui Vera Andrade que a ideologia da Defesa Social se mantém constante até nossos dias, principalmente porque cria um mitologia altamente digerível sobre o Direito Penal: “a ideologia da defesa social sintetiza, desta forma, o conjunto das representações sobre o crime, a pena e o Direito Penal construídas pelo saber oficial e, em especial, sobre as funções socialmente úteis atribuídas ao Direito Penal (‘proteger bens jurídicos lesados garantindo também uma penalidade igualitariamente aplicada para os infratores’) e à pena (controlar a criminalidade em defesa da sociedade, mediante a prevenção geral - intimidação - e especial - ressocialização)” (ANDRADE, Vera. Dogmática e Sistema Penal: em busca da segurança jurídica prometida, p. 231).

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da modernidade em decorrência do discurso de Defesa Social inspirado na luta contra a

impunidade, hodiernamente nossa realidade, apesar de caracterizada por um grau

extremamente superior de complexidade, não é muito diversa (leia-se: os argumentos são

absolutamente similares, apesar de potencializados por categorias diferenciadas e por uma

realidade totalmente outra).

O direito e o processo penal, seguindo o rumo traçado pela economia, vivem

atualmente sob a égide do pensamento único. No Brasil, o discurso penal único é o da

imprescindibilidade de reforma dos Códigos – Código Penal, Código de Processo Penal e

Lei de Execução Penal.

A filosofia e a política já demonstraram como todo pensamento único tende e

potencializa estruturas totalitárias, visto que sua forma de legitimação é pela exclusão do

‘outro’. Foucault, ao avaliar a microfísica dos espaços discursivos, percebe que todo poder

requer um saber que lhe dê legitimidade e que todo saber tem pretensões de poder12. Por

isso extremamente pertinente a metáfora de Lenio Streck quando profetiza que a crítica

(‘outro’ em relação ao ‘um’ – pensamento único) ainda será condenada pelo hediondo

crime de ‘porte ilegal de fala’ – “(...) é necessário chamar a atenção dos

operadores/intérpretes para o fato de que, nesse processo, de (inter)mediação, pelo qual a

dogmática jurídica (re)produz os discursos de verdade, estes ‘nunca são o resultado de um

emissor isolado, estando vinculados a uma prática comunitária organizada em torno de

uma subjetividade específica dominante. Nenhum homem pronuncia legitimamente

palavras de verdade se não é filho (reconhecido) de uma comunidade ‘científica’, de um

monastério de sábios’ (Warat). E é justamente desse monastério de sábios que emana a

‘fala autorizada’ que (re)produz o habitus do campo jurídico. Os eleitos, enfim, aqueles

que podem falar/dizer-a-lei-e-o-Direito, recebem o cetro (o skeptron da obra de Homero)

de que fala Bourdieu. Estão, assim, (plenamente) autorizados a fazer, inclusive, ‘extorsões

de sentido’ e ‘abusos significativos’. E que se rebelar, quem tiver a ousadia de desafiar

esse processo de confinamento discursivo, enfim, quem tentar entabular um contra-

discurso, um discurso crítico, responde(rá) pelo (hedinodo) crime de ‘porte ilegal da

fala’”13.

12 Neste sentido, conferir FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, p. 170. 13 STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 202.

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Não podemos esquecer, também, que a tendência de qualquer discurso autoritário

é estabelecer-se como universal, negando o pluralimo, o localismo e o multiculturalismo –

valores tão caros aos pensadores da teoria crítica dos Direitos Humanos14. Com efeito, o

local da crítica ao pensamento totalizante normalmente é o da ‘fogueira’

(acadêmica/científica), visto que destituída da necessária ‘legitimidade’ auferida pelos

detentores do saber/poder.

Em realidade, na era das teorias gerais os pressupostos deixaram de ser discutidos.

Eles (pressupostos) são (im)postos, pré-determinando o ponto de partida prático-teórico da

ciência processual penal – v.g. a noção de teoria geral do processo que incapacita pensar o

direito processual penal desde sua matriz genealógica que é o direito penal15.

Hoje, no entanto, somam-se aos antigos mitos novos standart’s que passam a ser

consumidos pelos acadêmicos e pelos operadores do direito com uma naturalidade

aterrorizante.

§ 4o. Os signos conformadores do discurso único das reformas processuais penais

contemporâneas. Se o pensamento autoritário freqüentemente invocou a necessidade de

maior eficácia dos aparelhos repressivos do Estado contra a impunidade, minimizando as

garantias (cognição) e maximizando a repressão (poder), embasando políticas de segurança

intolerantes, na atualidade a conformação do discurso (re)define-se por novos signos. O

discurso da celeridade (dromologia processual), da informalização (minimização dos

procedimentos) e da criação de modelos de justiça penal consensual (privatização do

14 Sobre a teoria crítica dos direitos humanos, conferir HERRERA FLORES, Joaquín. Hacia una visión compleja de los Derechos Humanos, p. 19 – 78; HINKELAMMERT, Franz J. La inversión de los Derechos Humanos, p. 79 – 133; SÁNCHEZ RUBIO, David. Acerca de la Democracia y los Derechos Humanos: de espejos, imágenes, cegueras y oscuridades, p. 63 – 98; e SENENT DE FRUTOS, Juan Antonio. Notas sobre una teoría crítica de los Derechos Humanos, p. 117 – 129. 15 Sobre a crítica e os problemas derivados do modelo teórico da Teoria Geral do Processo, bem como seus efeitos no direito processual penal, conferir, entre outros: COUTINHO, Jacinto. A lide e o conteúdo do processo penal; BAETHEGEN, Walter Eduardo. Contra a idéia de uma teoria geral do processo; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, p. 23 – 58; LEITE, Luciano Marques Leite. O conceito de ‘Lide’ no processo penal: um tema de teoria geral do processo, p. 181-195; TUCCI, Rogério Lauria. Considerações acerca da inadmissibilidade de uma teoria geral do processo, p. 85 – 127; VIDIGAL, Luis Eulálio de Bueno. Por que unificar o direito processual?, p. 40 – 48; e WUNDERLICH, Alexandre. Por um sistema de impugnações no processo penal constitucional brasileiro, p. 28.

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processo penal)16, são tendências político-criminais que fundam as reformas legislativas –

“a transparência, a desburocratização e a celeridade são corolários da estrutura

acusatória adotada pelo novo processo penal”17.

Não obstante a retomada da retórica de efetividade e luta contra a impunidade que

gerou CPP de 1941, as reformas contemporâneas potencializam-se por discursos

aparentemente garantistas que, coadunados com o pressuposto eficientista, deflagram um

processo de crise na estrutura constitucional de tutela dos direitos e garantias individuais,

operando uma inversão ideológica no discurso questionador (garantismo penal). Assim,

empregando terminologia própria das correntes humanistas, os arautos das reformas

apropriam-se do discurso crítico, afirmando a adoção de uma base teórica mas definindo,

na operatividade do sistema, efeitos totalmente diferenciados. Tem-se, pois, evidenciada, a

histórica disfunção entre os discursos oficiais e a efetividade prática do sistema.

§ 5o. As inúmeras faces ideológicas do movimento reformista e o déficit de

garantismo. Nosso diagnóstico aponta uma crise de inúmeras faces no sistema de garantias

constitucionais. A primeira delas é fornecida pelo velho modelo autoritário de plena

eficácia repressiva (discurso da ação penal eficiente), típico dos movimentos político-

criminais conservadores da década de 60. Estes movimentos, tradicionalmente identificados

com a ‘direita punitiva’ e conhecidos academicamente como Movimentos de Lei e Ordem

(MLO) – ideologia conexa com ação (ideologia em sentido positivo) – “compreendem o

crime como o lado patológico do convívio social, a criminalidade uma doença infecciosa e

o criminoso como um ser daninho”18. A referida ideologia exploraria “o medo, criando um

clima de pânico, de alarme social”19, de tal forma que o Direito Penal, em sua acepção

panpenalista, seria visto como o único instrumento idôneo para solucionar o problema da

violência e da criminalidade.

Instrumentalizado pelo mass media, transmite ao senso comum do ‘homem da

16 Sobre estes signos conformadores dos projetos de reforma, conferir CARVALHO, Salo & WUNDERLICH, Alexandre. Diálogos sobre a justiça dialogal. 17 GRINOVER, Ada Pellegrini. A Reforma do Processo Penal, p. 66. 18 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos, p. 82. 19 TORON, Alberto Zacharias. O indevido processo legal, a ideologia da ‘Law and Order’ e a falta de citação do réu para o interrogatório, p. 98.

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rua’ um estado de perigo constante e eminente, apenas excluído pelos aparatos do Estado

Penal. Desta maneira, vê na ampliação do espectro penal, na flexibilização das regras

processuais e na implementação de penalidades severas o instrumento eficaz para conter a

ação dos criminosos que ousam desrespeitar a lei e harmonia social – “alegam seus

defensores que os espetaculares atentados terroristas, o gangsterismo e a violência urbana

somente poderão ser controlados através de leis severas, que imponham a pena de morte e

longas penas privativas de liberdade. Estes seriam os únicos meios eficazes para intimidar

e neutralizar os criminosos e, além disso, capazes de fazer justiça às vítimas e aos homens

de bem, ou seja, aos que não delinqüem”20.

Segundo João Marcelo de Araújo Jr., as principais metas dos MLO poderiam ser

sintetizadas nas seguintes teses: (a) justificar a pena como castigo e retribuição; (b)

instaurar regime de penalidades capitais e ergastulares ou impor severidade no regime e nas

instituições de cumprimento da pena; (c) ampliar as possibilidades de prisões provisórias; e

(d) diminuir o poder judicial de individualização da pena21.

Simétrico aos MLO, surge em 1982, nos Estados Unidos da América do Norte, a

‘broken windows theory’, modelo teórico de segurança pública repressivista formulado

por James Q. Wilson (papa da Criminologia conservadora norte-americana) e George

Kelling, cujo prognóstico determina a necessidade de luta passo a passo contra pequenos

distúrbios cotidianos para recuar as grandes ‘patologias criminais’22. A ‘broken windows

theory’ foi instituída como programa de segurança pública na cidade de Nova York, mais

especificamente em Manhattan, pelo então prefeito Giulianni, universalizando a política de

‘Tolerância Zero’ e seu aparente triunfo contra a delinqüência23. Leciona Wacquant que

“de Nova York, doutrina da ‘tolerância zero’, instrumento de legitimação da gestão

policial e judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e

desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de

insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência –, propagou-se

20 ARAUJO Jr., João Marcello. Os grandes movimentos de Política Criminal de nosso tempo, p. 71. 21Ib. ibidem, p. 72. 22 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria, p. 25. 23 Sobre as teorias críticas ao discurso da ‘Tolerância Zero’ e a ‘broken windows theory’, conferir WACQUANT, Loïc. Op. cit.; WACQUANT, Loïc. A globalização da ‘tolerância zero’, p. 111 – 120; WACQUANT, Loïc. Inimigos cômodos: estrangeiros e imigrantes nas prisões da Europa, p. 121 – 128; WACQUANT, Loïc. Punir os pobres; e BATISTA, Vera Malaguti. Intolerância dez, ou a propaganda é a alma do negócio, p. 217 – 222.

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através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica da guerra ao crime e

da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila os delinqüentes (reais ou imaginários),

sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros (...)”24.

Percebe-se nítida simetria entre as propostas político-criminais propugnadas pelos

MLO e pelos arautos da ‘Tolerância Zero’: ambos postulam o incremento da repressão

penal. Todavia, enquanto estes primam pela repressão à criminalidade de rua e bagatelar,

entendendo como único mecanismo de prevenção do caos e da desordem social, aqueles

reivindicam alta punibilidade às graves lesões de bens jurídicos interindividuais (v.g.

criminalidade de sangue, delitos sexuais e criminalidade patrimonial violenta).

Não obstante o fortalecimento da máquina do Estado Penal por movimentos com

postura política de ‘(extrema) direita’, nota-se na atualidade uma convergência, no plano de

segurança pública, de setores diversos da política. Assim, se historicamente o discurso de

esquerda baseou sua fala na contração do aparato penal-carcerário, em muito decorrente da

crítica à criminalização dos atos perpetrados pelos movimentos sociais contra-culturais,

hoje a perspectiva penal é fortalecida pela confluência de matrizes políticas diafônicas,

ensejando, paralelamente aos movimentos de ‘(extrema) direita punitiva’, o que Maria

Lúcia Karam define como ‘esquerda punitiva’25. Com a esquerda e a direita aliadas contra

o crime, obtemos uma potencialização das funções simbólicas do Direito Penal produzindo

um paradigma neo-criminalizador.

Segundo Helena Larrauri, a partir do final da década de setenta e início da década

de oitenta, se observa, com espanto, a facilidade na qual os movimentos progressistas

recorrem ao Direito Penal – “grupos de derechos humanos, de antirracistas, de ecologistas,

de mujeres, de trabajadores, reclamaban la introdución de nuevos tipos penales:

movimientos feministas exigen la introducción de nuevos delitos e mayores penas para los

delitos contra las mujeres; los ecologistas reivindican la creación de nuevos tipos penales

y la amplicación de los existentes para proteger el medio ambiente; los movimientos

antirracistas piden que se eleve a la categoría de delito el trato discriminatório; los

sindicatos de trabajadores piden que se penalice la infracción de leyes laborales y los

delitos económicos de cuello blanco; las asociaciones contra la tortura, después de criticar

24 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria, p. 30. 25 Neste sentido, conferir KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva, p. 79 – 92 e CLEINMAN, Betch. A esquerda punitiva: entrevista com Maria Lúcia Karam, p. 11 – 18.

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la condiciones existente en las cárceles, reclaman condenas de cárcel más largas para el

delito de tortura”26.

Segundo Scheerer, estes grupos podem ser definidos como ‘empresários morais

atípicos’ – ou, nas palavras de Silva Sánchez, ‘gestores atípicos da moral’27 –, visto que (a)

postulam suas demandas como se fosse uma questão moral; (b) exigem a formação de uma

regra geral que plasme suas convicções; (c) mostram desinteresse se os meios (penais) são

(in)justos; e (d) optam pela utilização simbólica do direito penal e processual penal28.

A aporia surge pelo fato de que a ‘nova moral criminalizadora’ é deflagrada por

movimentos humanitários e partidos políticos cuja principal estratégia, durante a década de

sessenta e meados de setenta, era exatamente a desestabilização da farsa prolatada pelos

criminalizadores de direita (MLO) – “lo proprio del modelo preexistente (esto es, del

debate en torno a la ideologia de ley y orden) era que los partidos y grupos vulgarmente

calificados como ‘de derechas’ asumieran la tesis del incremento de la seguridad a través

de una mayor presión punitiva, mientras los partidos y organizaciones ‘de izquierdas’

defendían aparentemente la postura contraria: la de la disminuición de la presión punitiva.

Así, el cambio fundamental se produce cuando la social democracia europea pasa a

asumir, en su totalidad, el discurso de la seguridad (...). Esa idea de seguridad (lo que

podríamos denominar de ‘ideología de la ley y el orden en versión de izquierda’) fue

asumida expresamente ante los medios de comunicación (...)”29.

Instituições ligadas aos Direitos Humanos, fundamentalmente organizações de

cunho não-governamental (ONG’s) vinculadas aos projetos políticos de construção da

cidadania e radicalização democrática, acabam, na atualidade, consumindo o discurso

criminalizador, digerindo-o com uma naturalidade preocupante. Desta forma, a

macrocrítica ao sistema é abandonada, havendo notória demanda por uma (re)utilização

retributivista e passional do modelo anteriormente deslegitimado.

Importante ressaltar, contudo, que potencial criminalizador/punitivo da ‘esquerda

punitiva’ acaba sendo maior que o dos tradicionais movimentos criminalizadores. Se os

MLO, potencializados pela ‘broken windows theory’, radicam seu objeto de intervenção na

26 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología crítica, p. 218. 27 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal, p. 66 usque 69. 28 Apud LARRAURI, Elena. Op. cit., p. 218. 29 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Op. cit., p. 69/70.

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criminalidade violenta (criminalidade clássica), a esquerda punitiva não apenas consome

este discurso como amplia o rol de incidência do Estado Penal. Além de ratificar a

repressão aos delitos interindividuais, formula um novo catálogo de condutas necessárias à

criminalização, fundamentalmente no que tange às condutas lesivas de bens jurídicos

coletivos e/ou transindividuais.

No Brasil, a história recente comprova a eficácia destes movimentos sociais

criminalizadores.

Se a perspectiva minimalista do Direito Penal é fruto da tradição liberal-

iluminista, com a mutação da perspectiva absenteísta estatal (Estado Liberal) para

intervencionista (Estado Social), ocorre uma alteração na estrutura repressiva. Assim, se o

Estado Social “(...) traduz normativamente as ideologias que preconizam a presença do

Estado para, superando as distorções desigualitárias geradas pelo Estado liberal, garantir

a todos o indispensável atendimento das necessidades materiais básicas”30, o direito e o

processo penal deverão atuar como instrumentos de tutela daqueles valores.

Nítido, pois, o discurso dos partidos políticos de esquerda e dos movimentos

sociais no que tange à repressão penal. Ao preconizar um Estado forte e provedor, o

discurso de esquerda opera uma (re)valorização do discurso penal em defesa de bens

jurídicos coletivos e, mais atualmente, transindividuais.

Desta forma, notamos que o processo de elaboração constitucional em 1988,

muito embora tenha fixado limites ao poder repressivo (fundamento genealógico do Direito

Penal moderno), projetou, com base e apoio nos partidos políticos de esquerda e nos

movimentos sociais, um sistema criminalizador inédito no constitucionalismo brasileiro,

conformando o que poderíamos denominar ‘Constituição Penal dirigente’. O diagnóstico é

fornecido por Luisi: “(...) de um lado nas Constituições contemporâneas se fixam os limites

do poder punitivo do Estado, resguardando as prerrogativas individuais; e de outro se

inserem normas propulsoras do direito penal para novas matérias, de modo a fazê-lo um

instrumento de tutela de bens cujo resguardo se faz indispensável para a consecução dos

fins sociais do Estado”31.

30 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais, p. 09. 31 LUISI, Luiz. Op. cit., p. 10.

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Vemos, portanto, desde o processo normativo de (re)democratização, o

nascimento de um novo modelo de Direito Penal que dificilmente se enquadra nos rótulos

‘direita’ e ‘esquerda’, visto que o pensamento repressivista atua, não esporadicamente,

como pólo catalisador de perspectivas políticas opostas. O efeito desta pouco ortodoxa

união é o alargamento do sistema penal e a minimização das garantias processuais.

Se a Constituição recepcionou os anseios punitivos dos movimentos sociais no

que tange à tutela de direitos sociais e transindividuais – v.g. a minimização de garantias

processuais em relação aos delitos de discriminação racial (art. 5o, inciso XLII); a tutela

penal do consumidor (art. 5o XXXII); a responsabilidade penal nos atos praticados contra a

ordem econômica e financeira e contra a economia popular (art. 173, § 5o); a tutela penal do

meio ambiente (art. 225); a severa punição de atos contra a criança e o adolescente (art.

227, § 4o) et coetera – não deixou, igualmente, de captar os projetos de recrudescimento

penal operado pelos MLO – v.g. o projeto de elaboração da Lei dos Crimes Hediondos (art.

5o, inciso XLIII) e a constrição de direitos nos casos de tráfico de entorpecentes (art. 5o,

inciso XLIII e inciso LI)32.

Tem-se, desta forma, na história recente do constitucionalismo nacional, a

formação de um núcleo constitucional-penal dirigente que alia os mais diferenciados

projetos políticos, e que, sob o manto retórico da construção/solidificação do Estado

Democrático de Direito (plus normativo do Estado Social de Direito), opta pela edificação

de um Estado Penal. No entanto, tais perspectivas, fundamentalmente no que diz respeito

ao ‘discurso de esquerda’, acabaram por distanciar a política criminal das tendências

garantistas de intervenção mínima, resultado das sérias reflexões, nos anos sessenta e

setenta, da crítica criminológica e da crítica dogmática (movimento do direito alternativo).

Se o sistema penal estava desvendado frente ao desmascaramento de seu verdadeiro papel

de manutenção e reprodução de sofrimento (o príncipe estava nu!), agora os próprios atores

deste exaustivo processo de transparência assumem a fala criminalizadora, coadunando

sua perspectiva com os movimentos defensivistas genocídas.

Nota Karam33 que os movimentos sociais punitivos são inebriados pela reação

punitiva, desejando e aplaudindo prisões a qualquer preço e propondo como solução a

32 Neste sentido, conferir TAVARES, Juarez. A crescente legislação penal e os discursos de emergência, p. 52/3. 33 KARAM, Maria Lucia. Op. cit., p. 79 usque 92.

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retirada de direitos e garantias penais e processuais. É criado verdadeiro contra-senso

devido à facilidade com que os ‘grupos progressistas’ recorrem ao penal/carcerário – “las

asociaciones contra la tortura, después de criticar las condiciones existentes en la

cárceles, reclamam condenas de cárcel más largas para el delito de tortura”34.

As vertentes criminalizadoras acima expostas, independentemente do aporte

ideológico, primam, em matéria penal, pelo recrudescimento penalógico e pela

maximização de tipos, e, em matéria processual penal, pela flexibilização dos

procedimentos e minimização das garantias.

§ 6o. O discurso oficial da reforma do processo penal brasileiro. Como vimos, a

reforma do processo penal na década de 40 operou-se sob o enfoque da minimização das

barreiras formais (garantias processuais) em nome de uma maior eficácia repressiva. Em

toda a exposição de motivos, fundamentalmente nos institutos anteriormente avaliados (em

especial no que tange às nulidades – auto-sancionamento estatal por violação às regras do

jogo processual), o argumento era claro: a formalidade, nominada burocracia, impede o

incremento de uma política criminal de Defesa Social.

Nítido, pois, que o estatuto processual penal em vigência possui um grande déficit

de garantismo.

Todavia, os reformadores contemporâneos, olvidando este traço que funda o CPP,

ressucitam os velhos argumentos do legislador do Estado Novo, potencializando ainda mais

sua face autoritária. Segundo a presidente da comissão de reforma, “o processo forjado em

1940, moroso, complicado, extremamente formal, não se coaduna com sua almejada

efetividade, levando frequentemente à impunidade”35. Mister, portanto, “(...) dotar o Brasil

de instrumentos modernos e adequados, na ótica de um processo que deve assegurar, com

eficiência e presteza, a aplicação da lei penal, realçando ao mesmo tempo as garantias

próprias do modelo acusatório”36.

O perverso, na avaliação dos discursos que permeiam os dois processo de

reforma, é que a base retória (eficientismo) é idêntica, sendo que a atual,

34 LARRAURI, Elena. Op. cit, 218. 35 GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit., p. 66. 36 Ib. Ibdem., p. 74.

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inexplicavelmente(?), é apresentada como se harmônica com o projeto teórico garantista e a

estrutura do sistema acusatório37. Assim, não apenas teses incompatíveis com o garantismo

penal38 são apresentadas, como o próprio discurso garantista é apropriado por este saber

diametralmente oposto, produzindo uma viragem discursiva ínsita à sua inversão ideológica

que altera o conteúdo do saber, resultando na assunção de uma teoria falaciosa e carente de

significado por parte dos consumidores do mass media jurídico.

Esclarece Nilo Batista, ao tornar público o motivo de sua saída da comissão de

reforma do Código Penal, que a palavra-chave do texto de reforma é eficácia – diga-se que

é absolutamente possível a transposição dos argumentos pois ambos projetos (Código Penal

e Código de Processo Penal) padecem da mesma linha político-criminal. A construção de

um ‘direito penal eficaz’, portanto, “soa como teor programático, como superação de

paradigma e invenção de horizonte teórico” 39.

§ 7o. A desnaturação do processo penal da modernidade e a crise paradigmática.

A drástica ampliação que sofreu o processo penal durante o século XX, em decorrência de

novas expectativas sociais sobre seu funcionamento, obteve, como resultado, o

comprometimento de sua funcionabilidade original. A premissa pode ser verificada

claramente na produção legislativa processual frente à ‘criminalidade contemporânea’,

expressão cunhada por Hassemer para indicar um contraponto à ‘criminalidade clássica’

que condiciona e é condicionada pela estrutura liberal do direito e do processo penal. O

catedrático de Frankfurt sustenta que a criminalidade contemporânea deve ser entendida

por exclusão à criminalidade clássica. Assim, “a criminalidade moderna transcende os

direitos individuais universais, não é o corpo, a vida, a liberdade, a honra, o patrimônio

das pessoas como falava o Direito Penal clássico, mas, a capacidade funcional do

mercado de subsídios, por exemplo, no caso das fraudes aos subsídios; a saúde pública no

caso dos produtos farmacêuticos, a capacidade funcional das bolsas. Esses são os bens

37 Ib. ibdem, p. 65/6. No mesmo sentido, conferir MOREIRA, Rômulo de Andrade. A reforma do Código de Processo Penal, p. 135/6 e STOCO, Rui. Tribunal do Júri e o projeto de reforma de 2001, p. 193. 38 Quando referimos o modelo teórico do garantismo processual penal estamos harmônicos com as teses de Luigi Ferrajoli (FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale). Sobre o tema, conferir CARVALHO, Salo. Pena e Garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. 39 BATISTA, Nilo. Prezada Senhora Viégas: o anteprojeto de reforma no sistema de penas, p. 105.

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jurídicos da criminalidade moderna e do Direito Penal moderno. São bens jurídicos supra-

individuais, são universais e são vagos, muito vagos, muito genéricos. Saúde pública,

capacidade funcional do sistema de subsídios, capacidade funcional das bolsas, isso do

ponto de vista de conteúdo praticamente, nada diz”40.

O processo penal dos novecentos, devido a alta demanda criminalizadora pelos

movimentos político-criminais defensivistas e pela modificação na questão criminal com o

ingresso de novas formas de violação aos bens jurídicos, padeceu de uma perda dos limites

substanciais entre ilícitos penais e administrativos, ocasionando gradual minimização do

sentido limitativo do instrumental processual.

Ferrajoli percebe que a modificação na questão criminal gerou profunda

desordem no modelo processual penal acusatório. Por ‘questão criminal’ o autor entende a

transformação da natureza econômica, social e política da criminalidade, visto que “a

criminalidade que se impõe hoje à justiça não é mais a velha criminalidade de subsistência

que há vinte anos nos levava a denunciar o caráter de classe da administração da

justiça”41. O câmbio da questão criminal afeta o direito penal material, visto que estamos

diante de poderes criminais (criminalidade organizada) e crimes do poder (criminalidade

econômica e financeira do poder público). A mutação na forma da criminalidade obrigaria

o cientista e o político repensar as técnicas de tutela e garantia (processo). Assim, a ‘nova

questão criminal’ induz a diminuição substancial das garantias: “é uma dupla falência, que

se manifesta de um lado na crise de eficiência, e de outro na crise das garantias, e por isso

agride ambas funções de tutela que justificam o direito penal: as funções de tutela social, a

defesa das partes ofendidas contra os crimes, e as funções de garantia individual, a tutela

dos indiciados contra as punições injustas”42.

O processo de ampliação legislativa, notoriamente deflagrado pelos discursos de

emergência, gera o que denominamos ‘panoptismo legal’, ou seja, o alargamento brutal das

possibilidades de incidência da lei penal nas condutas sociais43. Se o pluralismo das fontes

40 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal, 89. 41 FERRAJOLI, Luigi. Per un programma di diritto penale minimo, p. 60. 42 FERRAJOLI, Luigi. op. cit., p. 62. 43 A partir das observações de Nilo Batista, quando percebe as relações do controle social com o modelo legislativo inflacionário, constatamos estreita sintonia do modelo maximalista com a estrutura de controle panóptico desenvolvido por Bentham e ampliado por Michel Foucault em Vigiar e punir. Diz Nilo Batista que, em decorrência dos sistemas de produção excessiva de leis penais, “se cria um Direito Penal

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do medievo produziu o discurso bélico inquisitivo, não relutamos em afirmar que o

processo de sobrecriminalização produz efeito idêntico, pois gera a desregulamentação das

condutas consideradas criminosas. No momento em que qualquer desvio passa a ser

tipificado independentemente da verdadeira lesão ao bem jurídico, qualquer conduta social

pode ser arbitrariamente considerada delitiva, restabelecendo controle determinado por

poderes administrativos de desigual incidência nos diversos estratos sociais e sem os

vínculos à lei característicos do direito e do processo penal. Portanto, “a inflação penal,

efetivamente, provocou a regressão do nosso sistema punitivo a uma situação não diversa

daquela pré-moderna(...)”44.

Fundamental repetir: o alargamento contemporâneo da criminalização, seja

deflagrado pelos movimentos defensivistas (MLO e ‘broken windows theory’), seja pela

‘esquerda punitiva’, corrompe as bases do garantismo penal clássico. Se na teoria da norma

e do delito o câmbio gradualmente lesa o princípio da legalidade em sentido amplo

(exaustiva utilização de normas penais em branco), o princípio da legalidade em sentido

estrito (prevalência de tipos penais abertos), o princípio da lesividade (criminalização de

auto-lesões e de delitos sem vítima) e o princípio da culpabilidade (criação de normas de

perigo abstrato), determinando a objetivização da responsabilidade penal, na esfera

processual os danos são igualmente irreversíveis.

Confirma-se, cada vez mais, a tendência de fomentar (manter) sistemas

inquisitoriais45, suprimindo os direitos de ampla defesa. Há, em nome da eficácia e luta

contra a impunidade, substancial diminuição das garantias processuais como os princípios

da presunção de inocência e do contraditório (gradual inversão do ônus da prova e inserção

de juízos de periculosidade), da individualização (taxação cada vez maior das penas), da

oralidade (ampliação das formas escritas), da imparcialidade do juiz (gestão da prova pelo

órgão julgador) e da idoneidade da prova (admissibilidade de provas ilícitas).

hipertrofiado e onipresente; o respeito cívico que o cidadão devotaria à lei justa tende a se transformar no temor calado frente à pena grave” (BATISTA, Nilo. Algumas palavras sobre descriminalização, p. 37). 44 FERRAJOLI, Luigi. La giustizia penale nella crisi del sistema politico, p. 81. 45 Nestes sentido, conferir COUTINHO, Jacinto. O papel do pensamento economicista no direito criminal hoje, p. 304-310 e TAVARES, Juarez. Op. cit., p. 44.

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§ 8o. Garantismo versus eficácia. Mesmo que se pretenda sustentar que a

terminologia eficácia deva ser lida desde a perspectiva da teoria geral do direito,

contrapondo as categorias validade e vigências das normas, a fusão do termo com a

justificativa da luta contra a impunidade (fim almejado), revela sua verdadeira natureza,

qual seja, a de servir como discurso instrumental (meio). Sobretudo porque o ‘lugar retórico

da impunidade’ (re)produz a histeria punitiva oxigenada pelo mass media – “há muito me

dei conta de que a ‘impunidade’ é um verbete de certo léxico político-criminal, que fecha

os olhos paraa inexorável punição que recai nos brasileiros pobres e negros surpreendidos

num cometimento criminal; o ‘sentimento de impunidade’, disseminado pelas agências de

comunicação do sistema penal, é estratégico para o avanço do controle social penal sobre

essa clientela selecionada. Impunidade é uma constante em todos os sistemas penais nas

sociedades de classes, circunscrita entretanto ao patriarcado; as exceções cumprem

importante função de de simular que o sistema penal é igualitário, e não seletivo, além de

reforçarem pelo avesso o mito da mobilidade social”46.

Em realidade, o que se constata é uma crise regressiva no sistema de garantias

individuais, legitimando um sistema penal pouco afeito aos parâmetros e limites impostos

pelo direito ao poder punitivo, próprios do constitucionalismo contemporâneo.

A crise do garantismo é perceptível, inclusive, como crise do sistema

jurisdicional, visto que atualmente há uma gradual substituição do papel do magistrado. A

função jurisdicional encobre cada vez mais funções administrativo-policialescas – v.g. os

poderes cautelares ex oficio (decreto de prisão, determinação de busca e apreensão, quebra

de sigilo telefônico e fiscal47 etc) – pois, como constata Afrânio Silva Jardim, é

46 BATISTA, Nilo. Prezada Senhora Viégas: o anteprojeto de reforma no sistema de penas, p. 108/9. 47 Nota ainda Boschi, muito embora a Constituição Federal tenha consagrado retoricamente um sistema acusatório, caracterizado pela separação das funções dos sujeitos no processo, “não raro ainda nos deparamos com evidências indicando exatamente o contrário”(BOSCHI, José Antônio Paganella. Ação Penal, p. 361). Entre as evidências apontadas no livro que legitimam um poder policialesco (administrativizado) do juiz, algumas nos parecem estruturantes, como os poderes conferidos para (a) discordar do pedido de arquivamento do inquérito, (b) reinterrogar o acusado, (c) ouvir, quando julgar necessário, quaisquer pessoas além daquelas indicadas pelas partes, (d) requisitar, de ofício, documentos sobre cuja notícia tiver conhecimento, (e) ordenar busca pessoal, (f) decretar prisão processual independentemente de provocação e, fundamentalmente, (g) requisitar provas e dirimir dúvidas sobre ponto relevante – “quanto à produção da prova, os juízes, invadindo o espaço das partes, continuam fazendo amplo uso da faculdade prevista no artigo 156 do CPP, embora seu indiscutível conteúdo inquisitivo, absolutamente incompatível com o modelo acusatório erigido ao nível constitucional, salvo quando a prova puder ser utilizada em favor do réu” (BOSCHI, José Antônio Paganella. Op. cit.). Lembre-se, ainda, outra característica

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indubitavelmente mais eficaz a repressão penal se aplicada administrativamente. Para evitar

tamanho arbítrio é que o “(...) processo penal representa mais uma forma de autolimitação

do Estado do que um instrumento destinado à persecução criminal”48.

Assumir, portanto, a matriz teórica garantista, impede a aceitação do discurso da

eficácia da repressão penal, visto que situadas em locais diametralmente opostos –

celeridade, informalização e privatização dos conflitos, viabilizados pela retórica da ação

eficiente e a luta contra a impunidade, não são pautas político-criminais possíveis desde o

interior de um modelo político-criminal crítico. Sua incompatibilidade é notória, padecendo

de ingenuidade os discursos que ousam congregar projetos políticos tão opostos.

Eficácia, no interior do projeto garantista, pode ter apenas um sentido: efetividade

plena das garantias e dos direitos individuais contra as violências arbitrárias (públicas e/ou

privadas).

§ 9o. Considerações finais: sobre as reformas parciais e a necessidade de

recodificação. Afirmamos que o direito e o processo penal contemporâneos padecem de

gradual perda de regulamentação fruto de processo de ampliação do horizonte

criminalizador e, conseqüentemente, da descodificação. Tal fato gera, em termos

substanciais, uma constante minimização dos limites entre ilícitos penais e administrativos,

e, em sede material e instrumental, uma profunda crise de sistematicidade, pois a

sobreposição legiferante ofusca o modelo ideal de harmonia (completude e coerência)

pregado pela dogmática jurídico-penal desde o início do século XX.

Assim, “é necessário concluir resignadamente que o Direito Penal [e processual

penal], abandonando o ideal iluminista de leis 'simples', 'claras' e 'estáveis', pela realidade

de leis 'complexas', 'confusas' e 'instáveis', ingressou na era irracional da descodificação e

das legislações especiais: isto é, a era nebulosa das leis penais usadas como instrumento

de governo e não como tutela de bens; das leis de compromisso, de formulação

indeterminada e estimativa; das leis que garantem privilégios para potentes grupos

sociais; das leis vazias, simbólicas, mágicas, destinadas tão-somente a colocar em cena a

ínsita à estrutura inquisitiva do nosso sistema processual demonstrada pela possibilidade de mudança ou correção do thema decidendum, proporcionada pelos art. 383 e 384 do CPP. 48 JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, p. 18.

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diligência na luta contra certas formas de criminalidade; das leis 'hermafroditas' com

forma de lei mas sustância de ato administrativo; das leis cultivadoras do clientelismo,

corporativas, para negociações do voto por privilégios particulares; das leis tecnicamente

desalinhadas e ilógicas, inspiradas na 'liberdade de expressão', de cada vez más árdua

compreensão; das leis-expediente, do casuísmo, para sobreviver diariamente e quase

sempre mal; das leis 'burocráticas', meramente sancionadoras de genéricos preceitos

extrapenais”49.

A tendência dos sistemas punitivos de se transformarem cada vez mais em

sistemas de controle administrativizados, e sempre menos penais em decorrência do

processo de descodificação, produz séria crise no conjunto das normas e dos mecanismos

que negam a informalidade de controle social50. O sintoma do pampenalismo corrói a

estrutura garantidora do direito penal que tem como pressuposto genealógico a tutela dos

direitos fundamentais.

Percebe Ferrajoli que devemos observar o fato de que os modelos penais da

atualidade ‘(...) ofuscaram os confins entre as esferas do ilícito penal e do ilícito

administrativo, ou seja, dos ilícitos, transformando o direito penal em uma fonte obscura e

imprevisível de perigos para qualquer cidadão, olvidando sua função simbólica de

intervenção extrema contra ofensas graves e oferecendo, portanto, o melhor terreno à

cultura de corrupção e ao arbítrio”51.

Ao desregulamentar as normas e as sanções dos desvios puníveis, bem como ao

desjudicializar o processo de resolução do caso penal e de execução da pena, a estrutura do

controle social formal retoma modelo penal irracionalista, cuja ausência de garantias ao

indivíduo perfila um sistema ‘bárbaro’ de contenção da violência. “A inflação penal –

conclui Ferrajoli – provocou a regressão do nosso sistema punitivo a uma situação não

diferente daquela pré-moderna (...)”52.

Não basta, portanto, em nosso discurso, advogar a plenitude da estrutura

acusatória e a necessidade de manutenção de instrumentos de limitação da violência

arbitrária. Se o garantismo pode ser entendido como tecnologia dirigida à minimização do

49 MANTOVANI, Ferrando. Valori e principi della Codificazione penale: le esperienze italiana, francese e spagnola a confronto, p. 263. 50 FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo, p. 44. 51 FERRAJOLI, Luigi. La pena in una società democratica, p. 532. 52 FERRAJOLI, Luigi. La giustizia penale nella crisi del sistema politico, p. 81.

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poder punitivo ilegítimo através de vínculos formais e materiais balizados pelo respeito à

dignidade humana, é extremamente necessária a recomposição do sistema penal, processual

penal e punitivo.

Para Mantovani53, fundamental sustentar, tendo como pressuposto a negação das

legislações emergenciais, a recodificação das leis penais e processuais penai. Mais, percebe

Ferrajoli54 a necessidade de introdução, em sede constitucional, de uma ‘reserva de código’

penal e processual penal como forma de impedir respostas meramente simbólicas do poder

público às demandas sociais criminalizantes55. Criar-se-ia, pois, uma meta-garantia

destinada a imunizar as garantias penais e processuais penais das reformas parciais,

assistemáticas e contingenciais, colocando um freio à inflação penal que tem provocado

regressão inquisitiva do direito e do processo penal56.

A ‘reserva de código’ estabeleceria que todas as normas penais e processuais

penais deveriam ser introduzidas no corpo dos Códigos, não podendo ser nenhum

dispositivo desta natureza criado senão com a modificação do estatuto principal. A

orientação dar-se-ia pelo princípio: “toda matéria penal e processual penal no Código,

nada fora do Código”. Assim, o legislador ficaria vinculado ao sistema, sendo obrigado a

trabalhar pela sua unidade e coerência.

O programa de direito penal mínimo, estruturado em amplo processo de

descriminalização e na ‘reserva de código’, qualificaria o potencial garantista do direito que

é a radical tutela do pólo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento

do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução.

Neste sentido, tendo em vista o movimento de Reforma do Código de Processo

Penal, entendemos pertinente colocar em discussão a necessidade de absoluta

recodificação, pois “la privatización y la deformalización [do processo] son, por lo demás,

una consecuencia seguramente ineludible de la expansión [do direito penal]”57.

53 MANTOVANI, Ferrando. op. cit., p. 263-273. 54 FERRAJOLI, Luigi. Quattro proposte di riforma delle penne, p. 50. 55 Sobre a implementação de uma ‘reserva constitucional de código’, conferir o editorial da Revista Estudos Criminais, número 04, do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC) (Porto Alegre: ITEC/Nota Dez, 2001. p. 07 – 08. 56 FERRAJOLI, Luigi. La pena in una società democratica, p. 538. 57 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Op. cit., p. 76.

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Discordamos, portanto, dos reformistas que, ao sustendar a inexeqüibilidade de

uma reforma total, opta por reformas tópicas, demonstrando demasiado otimismo na

fundação de um modelo acusatório garantista em sólida base inquisitiva.

A justificativa apresentada é de que uma reforma total, seguida de um processo de

recodificação da matéria esparsa, “(...) não seria exeqüível operacionalmente. A

morosidade da própria tramitação legislativa dos códigos, a dificuldade prática de o

Congresso Nacional aprovar um estatuto inteiramente novo, os obstáculos à atividade

legislativa de um Parlamento assoberdado por Medidas Provisórias e por Comissões

Parlamentares de Inquérito, tudo milita contra a idéia de uma reforma global do Código

de Processo Penal”58.

O recurso aos argumentos de Jacinto Coutinho nos parece salutar: “(...) é

necessário discutir imensamente antes de tentar mudar – de verdade! – a estrutura; e não

há que temer as eventuais deficiências do Parlamento e os jogos políticos, muito menos

fazendo de conta que eles não existem ou não têm importância porque não dizem respeito à

questão. Por esta dimensão, é inescurecível discurso político aquele que avança contra

uma reforma global com a idéia da dificuldade prática de se conseguir, no Parlamento,

uma mudança do gênero. Mas nenhum mal há nisso, em se fazer discurso político; muito

pelo contrário. No atual estágio do direito, espaço não há para propostas neutrais e

alheias às ideologias”59.

Às fortes palavras do processualista paranaense agregamos as conclusões de

Mantovani quando professa que “(...) a existência ou não do 'clima político' necessário

para a recodificação não é problema da Ciência Penal [ou Processual Penal,

acrescentamos]: que o científico faça o que deve e, depois, que suceda o que tenha que

suceder”60.

Do contrário, não teremos dúvida que a democratização do processo penal

brasileiro será acometida pelo mesmo mal visualizado por Becket, e assim poderemos

indagar: democracia processual esperando Godot?

58 GRINOVER, Ada Pellegrini. A reforma do Código de Processo Penal, p. 66/7. 59 COUTINHO, Jacinto. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às Reformas Processuais, p. 141. 60 MANTOVANI, Ferrando. Op. cit., p. 273.

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