safatle, vladimir. sofrer hoje, segundo lacan

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SAFATLE, Vladimir. Sofrer hoje, segundo Lacan. Acessado em: 11 de julho de 2014 Dispon!el em: h""p:##re!is"acul".uol.com.$r#home#201%#0&#so'rer(hoje(se)undo(lacan# S*F+E+ *-E, SE/D* LAA  o ser3 ea)ero di5er 6ue -ac6ues Lacan 'oi respons3!el por uma das mais in'luen"es eperi7ncias in"elec"uais da se)unda me"ade do s8culo 20. Tal in'lu7ncia ul"rapassou em mui"o os limi"es das re'le9es so$re a clnica do so'rimen"o ps6uico. a !erdade, Lacan aca$ou por se "rans'ormar em in"erlocu"or pri!ile)iado nos campos da "eoria li"er3ria, da "eoria social, da 'iloso'ia, dos es"udos cul"urais, dos es"udos de )7nero, en"re ou"ros. 3 mui"as ra59es 6ue podem ser le!an"adas para jus"i'icar o 'a"o dele "er sido, jun"amen"e com Freud, o nico psicanalis"a a conse)uir se impor com in"erlocu"or pri!ile)iado nos campos das di"as ci7ncias humanas.  o en"an"o, h3 uma ra5o 6ue merece des"a6ue, mas 6ue 8 in'eli5men"e pouco eplorada. ;oucos se a"en"aram para o 'a"o de Lacan "ra5er uma no!a de'ini<o do 6ue de!emos compreender por =so'rimen"o ps6uico>. ?mpressionados pela sua maneira de u"ili5ar o es"ru"uralismo para de'inir o inconscien"e, de in"e)rar, no 6uadro es"ru"uralis"a, as discuss9es re'eren"es @ irredu"i$ilidade do sujei"o, de de'ender 6ue os seres humanos so assom$rados pela procura de um )o5o para al8m do princpio do pra5er, en"re "an"os ou"ros "emas, aca$amos por es6uecer como no cerne da eperi7ncia lacaniana encon"ra(se uma de'ini<o ino!adora de =so'rimen"o ps6uico>. cer"amen"e "al de'ini<o 6ue 'orneceu ao pensamen"o lacaniano sua 'or<a de in'lu7ncia na con"emporaneidade. ;or mais 6ue o "ermo possa parecer no pro$lem3"ico, 'alar da eis"7ncia de al)o como =so'rimen"o ps6uico> "ra5 uma s8rie de conse6u7ncias. ;rimeiro, implica di5er 6ue h3 al)o 6ue de!emos compreender por =psi6ue> ou, ainda, =men"al>. ;or =men"al> en"endemos normalmen"e os 'enBmenos Ccomo cren<as, desejos, a'e"os, sen"imen"os cuja causalidade no podem ser comple"amen"e redu"!eis @ causalidade prpria aos 'enBmenos 'sicos. Em$ora admi"amos o paralelismo en"re es"ados men"ais e es"ados cere$rais, 6uem admi"e a eis"7ncia on"ol)ica de al)o como o men"al, admi"e 6ue no se  pode simplesmen"e redu5ir os primeiros es"ados aos se)undos, 6ue es"ados men"ais no so apenas maneiras mais re$uscadas de desi)narmos es"ados cere$rais. * reconhecimen"o de um paralelismo no implica, necessariamen"e, a elimina<o de um de seus polos. Des"a 'orma, a in"er!en<o em um es"ado cere$ral, mesmo 6ue al"ere a con'i)ura<o do es"ado men"al, no elimina o processo 6ue o )erou. Em ou"ras pala!ras,

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SAFATLE, Vladimir. Sofrer hoje, segundo Lacan.Acessado em: 11 de julho de 2014Disponvel em: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/09/sofrer-hoje-segundo-lacan/

SOFRER HOJE, SEGUNDO LACANNo ser exagero dizer que Jacques Lacan foi responsvel por uma das mais influentes experincias intelectuais da segunda metade do sculo 20. Tal influncia ultrapassou em muito os limites das reflexes sobre a clnica do sofrimento psquico. Na verdade, Lacan acabou por se transformar em interlocutor privilegiado nos campos da teoria literria, da teoria social, da filosofia, dos estudos culturais, dos estudos de gnero, entre outros. H muitas razes que podem ser levantadas para justificar o fato dele ter sido, juntamente com Freud, o nico psicanalista a conseguir se impor com interlocutor privilegiado nos campos das ditas cincias humanas.No entanto, h uma razo que merece destaque, mas que infelizmente pouco explorada. Poucos se atentaram para o fato de Lacan trazer uma nova definio do que devemos compreender por sofrimento psquico.Impressionados pela sua maneira de utilizar o estruturalismo para definir o inconsciente, de integrar, no quadro estruturalista, as discusses referentes irredutibilidade do sujeito, de defender que os seres humanos so assombrados pela procura de um gozo para alm do princpio do prazer, entre tantos outros temas, acabamos por esquecer como no cerne da experincia lacaniana encontra-se uma definio inovadora de sofrimento psquico. certamente tal definio que forneceu ao pensamento lacaniano sua fora de influncia na contemporaneidade.Por mais que o termo possa parecer no problemtico, falar da existncia de algo como sofrimento psquico traz uma srie de consequncias. Primeiro, implica dizer que h algo que devemos compreender por psique ou, ainda, mental. Por mental entendemos normalmente os fenmenos (como crenas, desejos, afetos, sentimentos) cuja causalidade no podem ser completamente redutveis causalidade prpria aos fenmenos fsicos. Embora admitamos o paralelismo entre estados mentais e estados cerebrais, quem admite a existncia ontolgica de algo como o mental, admite que no se pode simplesmente reduzir os primeiros estados aos segundos, que estados mentais no so apenas maneiras mais rebuscadas de designarmos estados cerebrais. O reconhecimento de um paralelismo no implica, necessariamente, a eliminao de um de seus polos. Desta forma, a interveno em um estado cerebral, mesmo que altere a configurao do estado mental, no elimina o processo que o gerou. Em outras palavras, se admitir, por exemplo, que depresso descreve um estado mental, ento serei obrigado a afirmar que a interveno medicamentosa em neurotransmissores como a serotonina e a dopamina pode suspender os sintomas da depresso, mas no me permite, por si s, lidar com o processo que a gerou.Um lacaniano tenderia a afirmar que a causalidade prpria ao mental, ou ainda, a causalidade psquica, estaria vinculada ao impacto da normatividade social na constituio dos indivduos. Mental seria a dimenso dos valores, das normas e dos modelos de ordenamento que internalizamos a fim de constituirmos expectativas de vida bem sucedida. Ou seja, ele seria a dimenso do universo de smbolos e imagens que organiza nossos modelos de socializao. Faculdades e funes psicolgicas que normalmente vinculamos ordem do mental (como a imaginao, a ateno, a memria, entre tantas outras) seriam, na verdade, produtos de normatividades sociais. Neste sentido, se a psiquiatria atual tende a reduzir o mental ao orgnico, teramos aqui um outro risco, a saber, a reduo do mental ao social. Se no primeiro caso, a clnica tende a ter seu lugar tomado pela fisiologia e pela neurologia, no segundo, ela parece prestes a transformar os condicionamentos sociais (como a pretensa caracterstica falocntrica de nossas sociedades) em norma instransponvel.No entanto, uma leitura atenta de Lacan demonstra como seu esforo maior consiste em reconhecer a irredutibilidade do mental tanto ao orgnico quanto ao social. Ele , na verdade, o ponto singular de contato entre estas duas esferas. Lacan (e neste ponto ele sempre foi fiel a seu estruturalismo) tende a reduzir a dimenso do social linguagem, j que todos os sistemas da vida social seriam estruturados como uma linguagem. Mas tal estratgia tem ainda uma funo suplementar. Ela lembra como todo sofrimento psquico deixa marcas na linguagem, ele se deixa ler na sintaxe da lngua. Para Lacan, por exemplo, a psicose se mostra na dificuldade do sujeito em utilizar metforas, h uma dimenso estilstica de mal romance no romance individual do neurtico. Neste sentido, a anlise sempre ser indissocivel de um trabalho com a lngua que o paciente montou com seus sintomas, inibies e angstias.Se Lacan sensvel ao impacto da linguagem e de seus limites na determinao das possibilidades de nossa experincia, ele nunca foi indiferente, por sua vez, organicidade do corpo. Mas, longe de ser uma normatividade vital completamente organizada, o corpo, principalmente, um princpio de desestabilizao de toda norma. Desta forma, da relao tensa entre a fora de ordenamento da linguagem e a potncia negativa do corpo que nasce, para Lacan, a ideia do mental.Lacan costumava dizer que todas as formas de sofrimento psquico podiam ser reduzidas a desdobramentos de problemas de reconhecimento social do desejo. Sendo assim, o trabalho com a linguagem podia aparecer como cerne de uma clnica que procura, acima de tudo, redimensionar as possibilidades de reconhecimento graas aos mecanismos colocados em circulao pela transferncia.Mas este desejo tambm desejo do corpo, desejo da afirmao desordenada e desestabilizadora do corpo.Isto permitiu a Lacan inverter uma clssica ideia sociolgica. Segundo ela, existiria um sofrimento social prprio modernidade e caracterizado pelo sentimento de perda de horizontes estvel de referncia, perda dos vnculos a modos tradicionais de julgamento e de definio de papeis sociais. Os indivduos seriam, assim, cada vez mais ansiosos devido ausncia de normas claras no questionveis de conduta.Haveria, com isto, um sofrimento ligado aos riscos de indeterminao social, aos riscos de anomia trazidos pelo horizonte aberto da modernidade.Lacan lembra que, atualmente, podemos fornecer uma leitura inversa.Sofremos porque os padres de ordenamento de nossas normas, de nossa linguagem, de nossa identidade e de nossos valores no nos permite lidar com a indeterminao que vem do corpo. Por isto, ele foi um dos primeiro psicanalista a compreender como o enfraquecimento do Eu no era exatamente um problema a ser resolvido pela clnica, mas algo que a clnica deveria usar a seu favor.Este dossi procura explorar a maneira lacaniana de compreender a natureza do sofrimento psquico na contemporaneidade.Ele serve, assim, para explicar porque Lacan utiliza categorias clnicas aparentemente ultrapassadas, como neurose, histeria, obsesso e psicose.Maneira de lembrar ao leitor que a definio de categorias clnicas no simplesmente uma deciso vinculada pretensa eficcia do tratamento, mas diz muito a respeito do tipo de poltica que a noo de normalidade traz e do que entendemos, afinal, por eliminar o sofrimento. Talvez ao final fique claro, ento, porque Lacan costumava dizer para muitos sujeitos, o sintoma aquilo que eles tem de mais real.