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SABERES DOCENTES E PRáTICAS DE ENSINO DE LíNGUA PORTUGUESA: LEITURA, ESCRITA, ANáLISE LINGUíSTICA E GRAMáTICA

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de Língua portugueSa:

Leitura, eScrita, anáLiSe LinguíStica e gramática

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Maringá2012

editora da uniVerSidade eStaduaL de maringá Reitor: Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho Vice-Reitora: Profa. Dra. Neusa Altoé Diretor da Eduem: Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini Editora-Chefe da Eduem: Profa. Dra. Terezinha Oliveira

conSeLHo editoriaL Presidente: Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini EditoresCientíficos: Prof.Dr.AdsonCristianoBozziRamatisLima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Angela Mara de Barros Lar Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Profa. Dra. Cecília Edna Mareze da Costa Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Prof. Dr. Luiz Roberto Evangelista Profa. Dra.Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Raymundo de Lima Profa. Dra. Regina Lúcia Mesti Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Profa. Dra. Rozilda das Neves Alves Prof. Dr. Sezinando Luis Menezes Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis

eQuipe tÉcnica Fluxo Editorial: Edilson Damasio Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanati Hundzinski Vania Cristina Scomparin ProjetoGráficoeDesign: MarcosKazuyoshiSassaka ArtesGráficas: LucianoWiliandaSilva Marcos Roberto Andreussi Marketing: Marcos Cipriano da Silva Comercialização: Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima

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Maringá2012

Formação de ProFessores em letras - ead

saberes docentes e práticas de ensino de

língua Portuguesa: leitura, escrita, análise linguística e gramática

Aparecida de Fatima Peres (Organizadora)

29

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coleção Formação de professores em Letras - ead Copydesk: Rosane Gomes Carpanese

Apoio técnico: Luciana de Araujo Nascimento

Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331

Revisão Gramatical: Maria Regina Ponte

Edição e Produção Editorial: Carlos Alexandre Venancio

Eliane Arruda

Manuela Sanchez

Copyright © 2012 para o autor

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo

mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos

reservados desta edição 2012 para Eduem.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Saberes docentes e práticas de ensino de língua portuguesa: leitura, escrita, análise lingüística e gramática / Aparecida de Fátima Peres, organizadora. -- Maringá: Eduem, 2012. 120p. 21cm. (Formação de professores em Letras – EAD; n.29)

ISBN no prelo

1. Língua portuguesa – Estudo e ensino.. 2. Língua portuguesa – Formação docente.

CDD 21.ed. 469.5 1

S115

Endereço para correspondência:

eduem - editora da universidade estadual de maringá

Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário

87020-900 - Maringá - Paraná

Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392

http://www.eduem.uem.br / [email protected]

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Sobre os autores

Apresentação da coleção

Apresentação do Livro

capítuLo 1

Afinal, o que é preciso saber para ser professor?Aparecida de Fatima Peres

capítuLo 2

Objetivos do ensino de língua portuguesaAnnie Rose dos Santos

capítuLo 3

Uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

Lilian Cristina Buzato Ritter

capítuLo 4

A produção de textos na Educação BásicaCláudia Valéria Doná Hil

capítuLo 5

Ensino de Língua Portuguesa: análise linguísticaSandra Regina Cecilio

capítuLo 6

Conteúdos gramaticais: proposta pedagógicaTânia Braga Guimarães

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umárioS

> 101

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ANNIE ROSE DOS SANTOS

Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras

(UEM). Mestre em Filologia e Linguística Portuguesa (Unesp-Assis). Doutoranda em

Estudos da Linguagem (UEL).

APARECIDA DE FATIMA PERES

Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras

(UEM). Mestre em Letras (UEL). Doutora em Estudos da Linguagem (UEL).

CLÁUDIA VALÉRIA DONÁ HILA

Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras (UEM).

Mestre em Linguística Aplicada (UEM). Doutora em Estudos da Linguagem (UEL).

LILIAN CRISTINA BUZATO RITTER

Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras (UEM).

Mestre em Linguística Aplicada (UEM). Doutora em Estudos da Linguagem (UEL).

SANDRA REGINA CECILIO

Professora do Quadro Próprio do Magistério do estado do Paraná. Graduada em

Letras (UEM). Mestre em Estudos da Linguagem (UEL). Doutora em Estudos da Lin-

guagem (UEL).

TÂNIA BRAGA GUIMARÃES

Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras

(UEM). Mestre em Letras (UEM). Doutora em Estudos da Linguagem (UEL).

obre as autorasS

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Os 54 títulos que compõem a coleção Formação de Professores em Letras fazem

parte do material didático utilizado pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatu-

ra em Letras, habilitação dupla, Português-Inglês, na Modalidade a Distância, da Uni-

versidade Estadual de Maringá (UEM). O curso está vinculado à Universidade Aberta

do Brasil (UAB) que, por seu turno, faz parte das ações da Diretoria de Educação a

Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior

(Capes).

A UEM, na condição de Instituição de Ensino Superior (IES) proponente do curso,

assumiu a responsabilidade da produção dos 54 livros, dentre os quais 51 títulos fica-

ram a cargo do Departamento de Letras (DLE), 2 do Departamento de Teoria e Prática

da Educação (DTP) e 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE). O pro-

cesso de elaboração da coleção teve início no ano de 2009, e sua conclusão, seguindo

o cronograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento

da Educação (FNDE), está prevista até 2013. É importante ressaltar que, visando a

atender às necessidades e à demanda dos alunos ingressantes no Curso de Graduação

em Letras-Português/Inglês a Distância, da UEM, no âmbito da UAB, nos diferentes

polos, serão impressos 338 exemplares de cada livro.

A coleção, não obstante a necessária organicidade que aproxima e estabelece a

comunicação entre diferentes áreas, busca contemplar especificidades que tornam o

curso de Letras uma interessante frente de estudos e profissional. Deste modo, as

três principais instâncias que compõem o curso de Letras na modalidade a distância

(Língua Portuguesa, Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa e

Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes) são contempladas com livros que

são organizados tendo em vista a construção do saber de cada área. Semelhante cons-

trução não apenas trabalha conteúdos necessários de modo rigoroso tal como seria

de esperar de um curso universitário, como também atua decisivamente no sentido de

proporcionar ao aluno da Educação a Distância a autonomia e a posse do discurso de

modo a realizar uma caminhada plenamente satisfatória tanto em sua jornada acadê-

mica quanto em sua vida profissional posterior. Isso só é possível graças à competência

e comprometimento dos organizadores e autores dos livros dessa coleção, em sua

maior parte ligados aos departamentos da Universidade Estadual de Maringá envol-

vidos neste curso, além de convidados que enriqueceram a produção dos livros com

sua contribuição. A excelência e a destacada contribuição científica e acadêmica desses

presentação da ColeçãoA

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autores e organizadores são outros elementos que garantem a seriedade do material

e reforça a oportunidade que se abre ao aluno da Educação a Distância. Além disso, o

material produzido poderá ser utilizado por outras instituições ligadas à Universidade

Aberta do Brasil, abrindo uma perspectiva nacional para os livros do curso de Letras

a Distância.

Além do trabalho desses profissionais, essa coleção não seria possível sem a con-

tribuição da Reitoria da UEM e de suas Pró-Reitorias, do Centro de Ciências Humanas,

Letras e Artes da UEM e seus respectivos representantes e departamentos, da Diretoria

de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do

Ensino Superior (Capes) e do Ministério da Educação (MEC). Todas essas esferas, de

acordo com suas atribuições, foram de suma importância em todas as etapas do traba-

lho. Diante disso, é imperativo expressar, aqui, nosso muito obrigada.

Por último, mas não menos importante, registramos nosso agradecimento especial

à equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe

técnica, pela dedicação e empenho, sem os quais essa empreitada teria sido muito

mais difícil, se não impossível.

Rosângela Aparecida Alves Basso,

Organizadora da coleção.

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A disciplina Prática de Formação de Professor de Língua Portuguesa, do Curso

de Letras-EAD, tem como objetivos: 1) possibilitar a reflexão sobre o momento da

transposição didática das práticas linguísticas: leitura, produção textual, análise lin-

guística e gramática; 2) criar condições para a reflexão teórico-prática sobre aspectos

situacionais e interacionais envolvidos no ensino-aprendizagem de língua portuguesa;

3) desenvolver competências para a análise e produção de materiais didáticos.

Para subsidiar essa disciplina, este livro, composto por seis capítulos, além de dis-

cutir os saberes necessários ao professor de Língua Portuguesa, relaciona as práticas

linguísticas já mencionadas a métodos de transposição didática.

No primeiro capítulo, Peres aborda as mudanças acerca do conhecimento científi-

co, ocorridas ao longo do tempo, bem como as implicações disso em relação aos sabe-

res necessários à formação de professores. Para tanto, apresenta um contraste entre o

paradigma da racionalidade técnica e o da epistemologia da prática. Em seguida, versa

sobre os saberes que integram a base de conhecimentos desses profissionais e como

essa base influencia a formação da identidade deles.

No segundo capítulo, Santos faz um breve resgate teórico sobre os objetivos do en-

sino de língua portuguesa no Brasil. Inicialmente, a autora discorre sobre como e onde

esse ensino surgiu, para, em seguida, expor como os propósitos do ensino de língua

materna se modificaram ao longo das décadas até chegarem à contemporaneidade.

No terceiro capítulo, Ritter apresenta uma proposta pedagógica de leitura, anco-

rando-se teoricamente na perspectiva dialógica da linguagem. A autora configura um

plano de aula de leitura e dialoga com discussões teórico-metodológicas tecidas ante-

riormente em um capítulo do livro “Leitura: aspectos teóricos e práticos”. Nessa tenta-

tiva de articular teoria e prática, a autora analisa criticamente uma crônica de Moacyr

Scliar e, com a mesma crônica, compõe a proposta pedagógica de leitura.

No quarto capítulo, inicialmente Hila expõe diferenças teórico-metodológicas en-

tre redação e produção de textos, contextualizando-as com as concepções de lingua-

gem que norteiam o ensino da produção textual. Como exemplo metodológico de

trabalho com a escrita, a autora define a sequência didática como um instrumento que

presentação do livroA

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possibilita a interlocução real entre aluno e escrita. De modo particular, o artigo de

opinião é apresentado como forma de didatizar o trabalho com a produção de textos.

No quinto capítulo, Cecilio discute o ensino de língua portuguesa, enfatizando

o ensino-aprendizagem da análise linguística na educação básica. Após a discussão

teórica, há uma contribuição pedagógica com a apresentação de uma possibilidade de

trabalho gramatical, envolvido com atividades de leitura, objetivando articular a teoria

estudada com a prática de sala de aula.

No sexto capítulo, Guimarães faz uma breve retomada de como era concebido o

ensino dos conteúdos gramaticais e como ele deve ser realizado agora, segundo as

direções apontadas pelas diretrizes vigentes. A autora também orienta o aluno de Le-

tras a elaborar um plano de aula, uma vez que o planejamento faz parte do cotidiano

docente (quer na formação inicial, quer na continuada). Ao longo da elaboração de um

plano de aula de gramática, que apresenta como exemplo, a autora discute a seleção

de material e os critérios de avaliação, considerando a relevância que se deve conferir

a questões de uso corrente na língua portuguesa, em oposição a questões de baixa

frequência ou arcaicas.

Esperamos que este livro, escrito a tantas mãos, contribua para sua formação como

professor de Língua Portuguesa.

Aparecida de Fatima Peres

Organizadora

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1 afinal, o que é preciso saber para ser

professor?

Aparecida de Fatima Peres

Os demais capítulos que compõem este livro discutirão questões específicas sobre

o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa. Tais questões auxiliarão o aluno de Le-

tras-EAFORMAD a preparar os Planos de Aula que deverão ser feitos durante o Está-

gio Supervisionado III – espaço de aprendizagem da profissão docente na formação

inicial.

Este capítulo, porém, abordará fatores que propiciam reflexões sobre possíveis

respostas à pergunta: Que saberes identificam um professor? Responder a essa

questão se justifica porque a identidade de qualquer profissional envolve formação

inicial e continuada. E, como o Curso de Letras-EAD contempla a formação inicial

de professores, ele tem como um dos seus compromissos subsidiar esses futuros

profissionais com conhecimentos sobre componentes didáticos, pedagógicos e

conteudísticos que envolverão o seu trabalho em sala de aula.

Esta discussão se inicia com fato de o conhecimento científico imutável (tido como

substrato para a educação) ser um dos muitos aspectos (antes inquestionáveis) postos

em xeque com a chegada do século XXI.

Conceber o conhecimento científico como imutável consiste no paradigma da

ciência moderna, ou paradigma da racionalidade técnica, para o qual o papel da

teoria é abrir “caminhos para o domínio da realidade natural e social pelo homem”

(MIZUKAMI et al., 2002, p. 11). Nessa concepção, a realidade não depende do ser

humano, porém ele pode descrevê-la e agir sobre ela.

A formação de professores, alicerçada nesse ponto de vista, entende a prática

pedagógica como consequência da aplicação teórica. Contudo o questionamento

do imutável implicou mudanças conceituais não apenas sobre o conhecimento, mas

também sobre o contexto escolar.

Esse contexto foi alterado principalmente em razão das novas demandas, uma vez

que indivíduos das classes menos favorecidas passaram a frequentar a escola – antes

privilégio da elite. Diante disso, foi preciso dar ao ensino um caráter mais dialógico,

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em consonância com o contexto cultural dessa nova clientela, a fim de atender suas

necessidades e superar desigualdades sociais.

Por conseguinte, aumenta-se a complexidade do trabalho docente, posto que,

em vez de se ocupar com um conhecimento inquestionável, o professor começou a

lidar com um conhecimento em construção. A educação, por seu turno, passa a ser

entendida “como um compromisso político, carregado de valores éticos e morais”

(MIZUKAMI et al., 2002, p. 12).

Isso implica que, para ser professor, não basta concluir um curso composto por

conhecimentos teóricos específicos com técnicas para ensiná-los. A formação docente

passou a exigir o domínio de práticas reflexivas e competentes, ou seja, além de conhe-

cimentos específicos, o professor necessita de outros saberes tão importantes quanto

os conteúdos específicos para bem desempenhar o seu trabalho. Isso significa que esse

profissional precisa de uma formação alicerçada também na epistemologia da prática

profissional, ou seja, de uma formação que o leve a refletir sobre sua ação pedagógica.

Na perspectiva da racionalidade técnica, conforme Schön (2000), o profissional tem

preocupações com problemas instrumentais e procura formas adequadas para solucio-

ná-los. As soluções para tais problemas se dariam por meio de teorias e de técnicas deri-

vadas da pesquisa sistemática e seriam sempre fixas e não ambíguas. Assim, mesmo nas

situações em que isso não funciona, ou seja, quando a aplicação da teoria não é possível

de forma bem clara, o profissional analisa o fato por meio de observações padronizadas e

busca modos de descobrir regras que ainda não se tornaram explícitas. Não há, portanto,

questionamento das teorias e das regras, porque, “nessa visão, os fatos são o que são e a

verdade das crenças é passível de ser testada estritamente com referência a elas. [...] Todo

o conhecimento profissional baseia-se em um alicerce de fatos” (SCHÖN, 2000, p. 39).

Já na perspectiva da epistemologia da prática, que requer reflexão sobre a ação na

busca de soluções para os problemas, além da aplicação de regras já estabelecidas, há

também respostas para o inesperado por meio de invenções e experimentos imediatos

para testar novas compreensões sobre um mesmo fato. Em casos assim, o profissional

“comporta-se mais como um pesquisador tentando modelar um sistema especializado

do que como um ‘especialista’ cujo comportamento é modelado” (SCHÖN, 2000, p. 39).

No caso da formação de professores, promover uma educação profissional com

base no diálogo equitativo entre teoria e prática significa negar a sobreposição da

ciência básica à ciência aplicada e desfazer a relação mecânica e linear entre o conhe-

cimento teórico e a prática concreta de sala de aula. Significa estabelecer uma relação

em que teoria e prática possibilitem ao futuro professor refletir sobre os problemas

e as dinâmicas gerados por sua atuação na prática, porque nem tudo tem uma res-

posta correta e nem sempre as teorias se encaixam em todos os casos. Isso implica,

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consequentemente, conceber o professor como um prático reflexivo.

Esse raciocínio vai ao encontro das considerações de Altet (2001) quanto à

organização e à formalização dos saberes necessários à prática pedagógica. Segundo

a autora, “a reflexão sobre os saberes profissionais e sua explicitação permitem ao

professor inventar suas próprias normas estratégicas, as que mais convêm aos

contextos, aos alunos, à situação encontrada e que melhor a explica” (ALTET, 2001,

p. 34).

Para a autora, “o professor é um profissional da aprendizagem, da gestão das

condições de aprendizagem e da regulação interativa em sala de aula” (ALTET, 2001,

p. 26). Ao realizar seu trabalho, ele precisa desenvolver “competências profissionais”

que envolvem os conhecimentos teóricos e as competências específicas da profissão

docente que repousam sobre uma base de conhecimentos racionais, científicos ou

de conhecimentos oriundos da prática. Por conseguinte, a profissão docente é “um

processo de racionalização dos conhecimentos postos em práticas eficazes em uma

determinada situação”; e ser um professor competente significa conseguir mobilizar

conhecimentos na prática de quaisquer situações, implica “tornar-se um profissional

reflexivo, capaz de analisar as suas próprias práticas de resolver problemas, de inventar

estratégias” (ALTET, 2001, p. 26).

Mas, afinal, quais seriam os conhecimentos e os saberes necessários a esse

profissional reflexivo? De acordo com Altet (2001, p. 26), o professor “é, antes de

tudo, um profissional da articulação do processo ensino-aprendizagem em uma

determinada situação, um profissional da interação das definições partilhadas”. Mas

que conhecimentos devem compor esse processo?

Conforme Shulman (1987, p. 8), se as categorias da base de conhecimentos para o

professor fossem organizadas, elas deveriam incluir, no mínimo:

– conhecimento do conteúdo;– conhecimento pedagógico geral, especialmente dos princípios amplos e da estratégia de direção e de organização da sala de aula, os quais parecem ultra-passar o assunto conteudístico;– conhecimento do currículo, com particular compreensão dos materiais e dos programas que servem como “ferramentas de ofício” para os professores;– conhecimento do conteúdo pedagógico: aquele amálgama especial de con-teúdo específico e pedagogia, ligado somente à função do professor, a sua pró-pria forma de conhecimento profissional;– conhecimento de alunos e suas características;– conhecimento do contexto educacional, abrangendo desde os trabalhos do grupo da sala de aula até a administração das escolas, as características gerais e culturais das comunidades; e– conhecimento dos fins educacionais, propostas, valores, filosofia e funda-mentos históricos (SHULMAN, 1987, p. 8, tradução da autora).

afinal, o que é preciso saber para ser professor

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Consoante Shulman (1987), quatro são as fontes principais para a construção da

base de conhecimentos para o ensino:

1) saberes dos conteúdos disciplinares;

2) materiais e ambiente do processo educacional institucionalizados (currículo,

livro didático), organização e administração escolar e a estrutura da profissão

docente;

3) pesquisas em educação, organizações sociais, aprendizagem humana, ensino

e desenvolvimento e outros fenômenos socioculturais que afetam a ação dos

professores;

4) conhecimento de sua própria prática.

Os saberes referentes aos conteúdos disciplinares abarcam o conhecimento, a

compreensão, as habilidades e a disposição que devem ser ensinados aos alunos. Tal

conhecimento resulta do acúmulo de leitura e dos estudos dos conteúdos de uma área

específica e dos saberes históricos e filosóficos da natureza do conhecimento desse

campo de estudo.

Segundo o autor, sendo o ensino uma profissão do aprendizado e o professor

um membro da comunidade escolar, este deve entender as estruturas do assunto de

interesse, os princípios da organização dos conceitos e os princípios de investigação

que ajudam responder a perguntas como: Quais são as ideias e habilidades importantes

nesse domínio? Como as novas ideias são acrescentadas e como as ideias deficientes

são descartadas para os produtores de conhecimento nessa área? Quais são os papéis

e os processos de um bom saber ou de uma boa investigação? Essas considerações

sobre a fonte do conhecimento do conteúdo implicam necessariamente que o

professor tenha não só uma profunda percepção quanto a um assunto particular, mas

também conhecimentos que lhe sirvam de suporte para agir como um propiciador da

aprendizagem dos alunos. O professor tem responsabilidades especiais em relação ao

conteúdo, servindo como fonte primeira para a aprendizagem dos estudantes quanto

ao assunto de interesse, e isso envolve a maneira pela qual a compreensão lhes é

conduzida quanto ao que é essencial sobre um assunto e ao que é periférico. Essas

responsabilidades apontam profundas exigências ao professor quanto à interpretação

das estruturas do assunto de interesse e às suas atitudes frente ao que está sendo

ensinado e aprendido. Esses muitos aspectos do conteúdo de conhecimento, então, são

propriamente entendidos como uma característica central da base de conhecimentos

para o ensino.

Quanto aos materiais e ao ambiente do processo educacional institucionalizados,

Shulman (1987) observa que, para alcançar os objetivos da organização escolar,

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são criados materiais e estruturas para o ensino-aprendizagem, os quais incluem: o

currículo com seus objetivos e sequências; testes e materiais de provas; instituições

com suas hierarquias, seus sistemas de funções e regras explícitos e implícitos;

organização profissional dos professores com suas funções de negociação, mudança

social e proteção mútua; agências governamentais para a região junto aos âmbitos

estadual e federal; e mecanismos de administração e financeiro.

Como os professores funcionam necessariamente como a parte interior de uma

matriz criada por esses elementos, usando-os e sendo por eles usados, eles (os

professores) têm de conhecer o território e os mecanismos do ensino, pois estes

englobam os recursos do trabalho e as condições contextuais que também facilitarão

ou inibirão os esforços para a qualidade da educação.

Os saberes concernentes à educação formal constituem a terceira fonte e se referem

ao corpo de desenvolvimento da literatura educacional dedicada à compreensão do

processo da educação, do ensino e da aprendizagem. Essa fonte inclui as descobertas

e os métodos da pesquisa empírica em áreas do ensino, da aprendizagem e do

conhecimento humano, bem como os fundamentos normativos, filosóficos e éticos

da educação.

A quarta fonte da base de conhecimentos é o conhecimento do professor sobre sua

própria prática. Consequentemente, uma das mais importantes tarefas para a pesquisa

comunitária, segundo Shulman (1987), é trabalhar com profissionais para desenvolver

representações codificadas da compreensão da prática pedagógica dos professores

competentes.

A questão dos saberes do professor é abordada ainda por Tardif (2002, p. 36), para

quem o saber docente é “um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos

coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares,

curriculares e experienciais”. Em um sentido mais amplo, conforme o autor, o saber

“engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes

dos docentes, ou seja, aquilo que foi muitas vezes chamado de saber, de saber-fazer e

de saber-ser” (TARDIF, 2002, p. 60).

Consoante o autor, os saberes da formação profissional se referem às ciências

humanas, da educação e da ideologia pedagógica – aqueles transmitidos pelas

instituições de formação de professores. No campo das ciências humanas, professor

e ensino são objetos do saber; e, como tais ciências não estão limitadas à produção

de conhecimentos, elas procuram associá-los à prática do professor, objetivando a

prática científica. Entretanto a prática docente não é somente um objeto de saber das

ciências da educação, porque ela envolve ainda os saberes chamados pedagógicos, os

quais abordam doutrinas e concepções oriundas de reflexão sobre a prática educativa,

afinal, o que é preciso saber para ser professor

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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envolvendo, inclusive, referenciais ideológicos relacionados à prática. Esses saberes

se unem também às ciências da educação, visando a legitimar cientificamente suas

concepções por meio da integração destas aos resultados de pesquisas.

Há ainda os saberes disciplinares, também adquiridos pelos professores no âmbito

de sua formação – inicial ou continuada. Tais saberes se referem aos diversos campos

do conhecimento (história, geografia, línguas, literatura etc.) e são dispostos na forma

de disciplinas em cursos distintos nas universidades.

Os saberes curriculares, por seu turno, estão relacionados aos programas escolares

que devem ser efetivados pelos professores. Eles “correspondem aos discursos,

objetivos, conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e

apresenta os saberes sociais por ela definidos e selecionados como modelos da cultura

erudita” (TARDIF, 2002, p. 38).

Por fim, os saberes experienciais são os saberes específicos desenvolvidos pelos

professores com base no trabalho cotidiano e no meio em que atuam. Esses saberes

“brotam da experiência e são por ela validados. Eles incorporam-se à experiência

individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber-fazer e de saber

ser” (TARDIF, 2002, p. 39).

Além dessas considerações, Tardif (2002) observa que o saber do professor deve

estabelecer-se na interface entre o social e o individual e adverte ser preciso fugir do

mentalismo e do sociologismo.

Segundo o autor, “o mentalismo consiste em reduzir o saber, exclusiva, ou

principalmente, a processos mentais (representações, crenças, imagens, processamento

de informações, esquemas, etc.) cujo suporte é a atividade cognitiva dos indivíduos”

(TARDIF, 2002, p. 11). Nesse caso, portanto, o contexto social que envolve os indivíduos

não é contemplado na constituição das significações, dos sentidos. Contudo, como

observa o autor, são sociais os saberes dos professores, porque (1) esse saber é

partilhado por um grupo de agentes com formação comum, os quais trabalham em

uma mesma organização (a escola), estando, desse modo, sujeitos às mesmas regras;

(2) a posse de tais saberes paira sobre um sistema que garante sua legitimidade

(universidade, sindicatos, ministério da educação), ou seja, seu trabalho tem um

reconhecimento social, e assim “o que um professor deve saber ensinar não constitui,

acima de tudo, um problema cognitivo ou epistemológico, mas sim uma questão

social” (TARDIF, 2002, p. 13); (3) o trabalho do professor não é um trabalho solitário,

mas interativo, pois envolve outros sujeitos carregados de marcas sociais – os alunos;

(4) o que os professores ensinam e a forma como ensinam se alteram com o tempo

e com as mudanças sociais, de acordo com o que é reconhecido como relevante para

cada contexto; (5) esse saber é adquirido em um contexto de socialização profissional.

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Em suma, os saberes do professor não são conteúdos cognitivos definidos de uma só

vez, mas são construídos socialmente ao longo de sua vida.

Por outro lado, não obstante essas ponderações, o autor alerta sobre o perigo de se

cair no sociologismo, pois este “tende a eliminar totalmente a contribuição dos atores

na construção concreta do saber, tratando-o como uma produção social em si mesmo

e por si mesmo” (TARDIF, 2002, p. 14-15).

Nesse sentido, nega-se a capacidade de o professor transformar sua situação, sua

ação. Assim, para o autor, ainda que os saberes dos professores sejam construídos

socialmente, é preciso considerar sua subjetividade, porque, por meio dela, na sua

atuação, eles adaptam seus saberes e os transformam de acordo com sua situação de

trabalho. Logo, “os saberes de um professor são uma realidade social materializada

através de uma formação, de programas, de práticas coletivas, de disciplinas escolares,

de uma pedagogia institucionalizada, etc., e são também, ao mesmo tempo, os saberes

dele” (TARDIF, 2002, p. 16).

Haja vista essa dualidade constituinte do saber docente, o autor propõe que esse

saber seja entendido como um todo preso pela trama de seis fios condutores.

O primeiro fio condutor respeita ao fato de que “o saber dos professores deve

ser compreendido em íntima relação com o trabalho deles na escola e na sala de

aula” (TARDIF, 2002, p. 16). Isso implica que os saberes do professor estão imbricados

no seu contexto de trabalho, de modo que podem ser entendidos como a própria

realização desse trabalho.

O segundo fio condutor se refere à diversidade do saber, porque, segundo Tardif

(2002), quando indagados sobre seus saberes, os professores abordam conhecimentos

e um saber-fazer pessoais – saberes curriculares, dos programas, dos livros didáticos,

dos conhecimentos disciplinares que ensinam, de sua experiência de vida e elementos

de sua formação profissional. Assim, seus saberes são plurais e heterogêneos, pois

envolvem conhecimentos oriundos de fontes diferentes: família, universidade, colegas

de trabalho, cursos de reciclagem etc.

O terceiro fio condutor concerne à temporalidade do saber. O caráter temporal

dos saberes do professor, segundo Tardif (2002), está fundamentado no fato de eles

serem adquiridos ao longo da vida desse sujeito. A temporalidade, contudo, não

se limita a isso, porque ela envolve também a carreira profissional do professor, a

qual está envolvida em um processo temporal de construção dos saberes necessários

para a realização do seu trabalho. Aliás, não se pode esquecer que a carreira docente

envolve várias etapas e características: socialização, consolidação da experiência, fases

de continuidade, de ruptura ou de transformação referentes às concepções sobre seu

trabalho, mudanças ambientais de trabalhos (classe, bairro, nível de ensino), além, é

afinal, o que é preciso saber para ser professor

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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claro, da “questão da identidade e subjetividade dos professores, que se tornam o que

são de tanto fazer o que fazem” (TARDIF, 2002, p. 20-21).

O quarto fio condutor relaciona a experiência de trabalho como fundamento do

saber ao modo como os professores mobilizam os saberes que caracterizam o seu

trabalho, já que estes vêm de fontes diversas e são construídos ao longo do tempo.

Dessa relação, surgem questões como: Haveria uma hierarquização entre os saberes

do professor? Se há, a partir de que critérios ela é estabelecida? Todos os saberes são

usados pelo professor? Tais saberes lhe causam dilemas?

O quinto fio condutor envolve saberes humanos a respeito de seres humanos, pois

o trabalho docente é fundamentalmente interativo. Portanto, em seu desenvolvimento,

é preciso conhecer o outro – aquele(s) com quem se trabalha –, conhecer seus papéis

no processo de interação concreta. Esse conhecer deve envolver os poderes e as regras

concernentes ao contexto de trabalho, aos valores, à ética etc.

O sexto fio condutor abarca os saberes e a formação de professores. Nesse quesito,

para Tardif (2002), considerando os saberes do professor e as realidades específicas do

seu trabalho, é necessário repensar a formação para o magistério com o objetivo de

buscar “uma nova articulação e um novo equilíbrio entre conhecimentos produzidos

pelas universidades a respeito do ensino e os saberes desenvolvidos pelos professores

em suas práticas cotidianas” (TARDIF, 2002, p. 23).

Um tecido a partir desses fios é desejável, porque a formação de professores,

pautada na aplicação de conhecimentos disciplinares, sem conexão com o contexto

de atuação profissional, não surte efeito no contexto educacional. Isso significa que é

preciso envolver outros conhecimentos no processo de formação, a fim de ultrapassar

os limites da aquisição de teorias e sua aplicação por meio de estágios.

De acordo com Tardif (2002), o tempo destinado ao aprendizado do trabalho, ou

seja, o domínio progressivo dos saberes necessários à realização da prática docente,

também está relacionado à identidade do professor. Isso se justifica porque a

construção de conhecimentos teóricos e técnicos que preparam o profissional para o

desempenho de suas necessidades somente se torna possível ao longo do tempo. Da

mesma forma, é ao longo do tempo que a prática possibilita ao aprendiz familiarizar-

se com o ambiente e com os saberes necessários à efetivação de suas funções. Isso

significa que determinados saberes da profissão docente só podem ser adquiridos e

construídos em situações reais – não se limitam, portanto, a conteúdos circunscritos

em cursos de formação institucionalizados. Aliás, Tardif (2002) observa que muitos

objetos, questões e problemas relacionados à função docente não correspondem,

ou correspondem muito pouco, às teorias obtidas na universidade e produzidas pela

pesquisa na área de Educação – “para os professores de profissão, a experiência de

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21

trabalho parece ser a fonte privilegiada de seu saber-ensinar” (TARDIF, 2002, p. 61), pois

na experiência do labor envolvem-se aspectos como a personalidade do professor, sua

vivacidade, seu entusiasmo, seu amor aos alunos. É também da experiência cotidiana

que ocorrem a partilha de conhecimentos sociais e a integração dos professores com

o contexto escolar (conhecimento partilhado entre os pares, respeito dos pais e dos

alunos, atividades pedagógicas, material didático, programas de ensino).

Por essa razão, Tardif (2002, p. 61) conclui que os saberes profissionais do

magistério “parecem ser, portanto, plurais, compósitos, heterogêneos, pois trazem

à tona, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e manifestações do saber-

fazer e do saber-ser bastante diversificados e provenientes de fontes variadas”. O autor

observa ainda que tais fontes podem ser de naturezas diferentes, tais como: a família;

as escolas primária e secundária; os estudos pós-secundários não especializados; os

estabelecimentos de formação de professores; os estágios; os cursos de reciclagem;

o uso das “ferramentas” dos professores (programas, livros didáticos, cadernos de

exercícios, fichas etc.); a prática do ofício na escola e na sala de aula; a experiência dos

pares; etc. Para o autor, consequentemente, esses saberes podem ser caracterizados

pelo que se chama de sincretismo, porque a constituição do seu conjunto não provém

de uma unidade teórica.

Outro motivo que faz o autor caracterizar os saberes docentes como sincréticos está

no fato de o trabalho docente ser permeado, frequentemente, por situações únicas e

instáveis – característica que inviabiliza a aplicação de técnicas predeterminadas, ou

seja, não funciona conforme o modelo de aplicação da racionalidade técnica (SCHÖN,

2000).

Um terceiro motivo que justifica o sincretismo do trabalho do magistério, conforme

Tardif (2002), é o fato de o professor precisar mobilizar, no exercício de suas atividades,

diferentes tipos de raciocínio.

Acerca do raciocínio do professor, Shulman (1987) observa que a meta da formação

desse profissional não é doutriná-lo ou treiná-lo para se comportar de modos prescritos,

mas educá-lo para pensar profundamente sobre o seu ensino, bem como desempenhá-

lo de forma consciente. Esse raciocínio requer tanto um processo de pensar no que o

professor faz quanto um conjunto adequado de fatos, princípios e experiências que

lhe fundamente. O professor deve, então, usar sua base de conhecimentos para prover

suas escolhas e ações. Sua formação, portanto, tem de trabalhar com as convicções

que guiem as ações do professor, com os princípios e as evidências que estão sob suas

escolhas. Tais escolhas podem ser predominantemente arbitrárias ou idiossincráticas,

ou podem fundamentar-se em princípios éticos, empíricos, teóricos ou práticos que

tenham apoio significativo entre membros da comunidade docente.

afinal, o que é preciso saber para ser professor

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Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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O autor observa que, quando se examina o ato de ensinar, é comum enfatizar as

características do raciocínio dos professores, as quais podem explicar suas decisões

para a ação. Todavia é preciso cautela para não colocar ênfase imprópria nesses

profissionais, pois suas decisões são selecionadas conforme os fins que pretendem

alcançar. Ensinar, portanto, é um ato efetivo e normativo – está relacionado a meios

e fins –, e os processos de raciocínio estão sob ambos. Consequentemente, a base de

conhecimentos tem de tratar não apenas dos propósitos da educação, mas também

dos métodos e das estratégias da educação.

As considerações de Shulman (1987) envolvem o que ele chama de processo do

raciocínio e da ação pedagógicos – processo composto por um ciclo de atividades de

compreensão,transformação,instrução,avaliaçãoereflexão.

A compreensão, de acordo com Shulman (1987), respeita ao fato de que ensinar

é primeiro entender. Assim, antes de ensinar, o professor precisa compreender

criticamente o que ensinará, ou seja, espera-se que ele entenda o que ensina

e, se possível, que entenda de modos diversos (por exemplo, tem de saber como

determinado assunto se relaciona com outros dentro de uma mesma área e como tais

relações ocorrem). Compreender os propósitos da educação também é fundamental

no processo de raciocínio e de ação pedagógicos. Isso envolve os resultados da

aprendizagem dos alunos, suas ações na sociedade, criação de oportunidades para

alunos vindos de contextos culturais diferentes etc. O processo de raciocínio e ação

pedagógicos toma, consequentemente, o rumo da transformação que os professores

realizam pelo desempenho do seu trabalho.

Quanto à atividade de transformação, o autor observa que os conteúdos a

serem ensinados devem ser transformados de alguma maneira, a fim de motivar o

aprendizado dos alunos. As transformações requerem uma combinação dos seguintes

passos: (1) preparação do material, interpretado de forma crítica para o uso – essa

preparação envolve a interpretação e o exame críticos dos materiais de instrução em

termos do entender do professor sobre o assunto, ou seja, ele examina o material

pedagógico, levando em conta a própria compreensão, e pergunta se é adequado

para o ensino; (2) representação das ideias na forma de analogias e metáforas –

pensamento sobre as ideias fundamentais do conteúdo da lição e sobre os modos

alternativos de representar os alunos; (3) seleções instrutivas a partir de métodos

e modelos de ensino, as quais acontecem quando o professor tiver de mover ou

reformular o conteúdo para efetivar a instrução ou desenvolver uma metodologia; (4)

adaptaçãodarepresentaçãoparaascaracterísticasgeraisdealunosespecíficose

decontextosespecíficos – processo em que se ajusta o material às características dos

alunos (especificidades que podem afetar suas respostas – gênero, idioma, cultura,

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23

motivações, conhecimento prévio, diferentes formas de representação, concepções,

expectativas, motivos, dificuldades ou estratégias que poderiam influenciar os modos

como os alunos interpretam o conteúdo), isto é, desempenho do ensino pensado,

planejado – explicita ou implicitamente.

Quanto à atividade da instrução, ela envolve o desempenho observável da variedade

do ato de ensinar e inclui muitos dos aspectos cruciais à pedagogia: organização e

administração da sala de aula; discussão; explicações claras, apresentando descrições

vividas, nomeando e conferindo trabalhos, interagindo efetivamente com os alunos,

por meio de perguntas e sondagens das respostas, das reações, dos elogios e das

críticas.

A avaliação se refere à verificação da compreensão dos alunos no processo

pedagógico. Ela também é dirigida ao próprio ensino do professor, às lições e aos

materiais empregados em suas atividades. Nesse sentido, ela conduz diretamente à

reflexão e, portanto, requer todas as formas de compreensão e de transformação já

abordadas.

O momento da reflexão ocorre quando o professor “olha” para o ensino e observa

como ele ocorreu, reconstruindo reordenando e/ou recapturando os eventos, as

emoções e as realizações. É como se fosse um processo pelo qual um profissional

aprende pela experiência. A reflexão não é somente uma questão de disposição ou

um jogo de estratégias, mas é também o uso de tipos particulares de conhecimentos

analíticos que afetam o trabalho do professor. Isso implica que o cerne desse processo

deve estar em consonância com os fins almejados.

Enfim, a compreensão nova é o resultado da conclusão do ciclo do processo

de raciocínio e da ação pedagógicos, o qual leva o professor a uma compreensão

aperfeiçoada acerca dos propósitos e assuntos relativos ao ensino, aos alunos e até

a sua ação pedagógica. A compreensão nova não acontece automaticamente; assim,

mesmo depois da avaliação e da reflexão, ela leva o professor sempre ao ponto de

partida, formando um círculo.

Apesar de Shulman (1987) ter apresentado os processos do modelo do raciocínio

e da ação pedagógicos em sequência, o autor adverte que esses processos podem

acontecer em uma ordem diferente. Alguns podem até mesmo não ocorrer em

determinadas situações de ensino. Uns podem ser confusos; outros, elaborados.

Porém, a fim de controlar sua prática e proporcionar a aprendizagem aos alunos, os

professores precisam ser hábeis em lidar com tais processos.

A habilidade para isso, entretanto, envolve fatores contextuais em que o trabalho

docente seja valorizado. E valorizar esse trabalho “significa dar aos professores

condições para analisar e compreender os contextos histórico, social, cultural e

afinal, o que é preciso saber para ser professor

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organizacional que fazem parte de sua atividade docente” (PIMENTA; LIMA, 2008, p.

14).

Espera-se que esse texto seja uma semente para a produção de tais condições no

campo desse processo de formação inicial de professores, que é o Curso de Letras-EAD.

Referências

ALTET, M. As competências do professor profissional: entre conhecimentos,

esquemas de ação e adaptação, saber analisar. In: PAQUAY, P.; PERRENOUD, P.;

ALTET, M.; CHARLIER, É. (Org.). Formando professores profissionais: Quais

estratégias? Quais competências? 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 23-35.

MIZUKAMI, M. G. N.; REALI, A. M. M. R.; REYES, C. R.; MARTUCCI, E. M.; LIMA,

E. F.; TANCREDI, R. M. S. P.; MELLO, R. R. Escola e aprendizagem da docência:

processos de investigação e formação. São Carlos: EdUFSCar, 2002.

PERES, A. F. Saberes e identidade profissional na formação de professores de

Língua Portuguesa. Maringá: Eduem, 2010.

PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, A.

(Org.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

p. 77-91.

______. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a

aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

SHULMAN, L. S. Knowledge and teaching: foundations of the New Reform. Harvard

Educational Review, Cambridge, n. 1, vol. 57, p. 1-22, Febr. 1987.

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.

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25

Objetivos do ensino de língua portuguesa

Annie Rose dos Santos

A língua portuguesa abrange grande variedade de conteúdos didáticos, e muitas

vezes nem mesmo o professor sabe por onde iniciar seu trabalho. Produção textual,

leitura, análise linguística, compreensão e interpretação de textos, gramática... O que

deve ser ensinado primeiramente? Como inserir esses conhecimentos em situações

reais de uso da língua materna? Esses e outros questionamentos têm preocupado os

profissionais de Letras em todo o país e gerado novas reflexões acerca da maneira

como a língua portuguesa é ensinada nas escolas.

Embora a língua portuguesa apresente um considerável grau de complexidade, é

importante termos em mente que quem dá vida à língua somos nós, os próprios falan-

tes, e que, uma vez adquirida a experiência linguística oral, qualquer pessoa é capaz de

aprender a sua estrutura gramatical. As pessoas que falam a língua portuguesa desde a

infância possuem uma ‘gramática internalizada’ e instintivamente sabem reconhecer as

palavras e as formações da língua nos diferentes contextos, além de saber combiná-las

de formas variadas, expressando-se nas diversas situações comunicativas.

O ensino de língua portuguesa, todavia, necessita de avaliação constante. Apesar

da relevância de cada conteúdo didático, é importante que este seja planejado e or-

ganizado de modo que os objetivos do professor sejam plenamente atingidos. Nesse

sentido, os postulados de Bechara (1985) e de Travaglia (2008) são pertinentes quan-

do assinalam que o objetivo da escola reside na formação, aperfeiçoamento e controle

das diversas competências linguísticas do aluno, ressaltando que o objetivo do ensino

de língua materna é prioritariamente desenvolver a competência comunicativa.

Neste capítulo, trataremos dos objetivos do ensino de língua portuguesa no Brasil.

Para tanto, discorreremos inicialmente sobre como e onde esse ensino surgiu, para,

em um segundo momento, abordarmos como os objetivos do ensino da língua mater-

na se modificaram ao longo das décadas e como chegaram a nós.

Tomamos como base para este texto os estudos desenvolvidos por autores como

Soares (2004), Meserani (2002), Travaglia (2008), Possenti (2004), entre outros que

se debruçaram na pesquisa deste tópico – os objetivos do ensino da língua materna.

2

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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breVe HiStÓrico do enSino de Língua portugueSa no braSiL

Soares (2004) enuncia que, em cada momento histórico brasileiro, a constituição

da disciplina português foi determinada por elementos externos, por exemplo, as

condições sociais, econômicas e culturais que subjazem à escola e ao ensino, e por

elementos internos, tais como a natureza dos conhecimentos sobre a língua, o nível

de desenvolvimento desses conhecimentos e a formação dos profissionais atuantes

nessa área.

Sendo assim, a retomada desses elementos ajuda a entendermos o ensino da língua

portuguesa no passado e serve para compreendermos o atual momento do ensino

dessa língua no país.

No Brasil Colonial, o português ensinado nas escolas era tão somente instrumento

para a alfabetização dos filhos da elite, não sendo componente curricular, pois não

era a língua oficial do país. No país conviviam três línguas: a língua portuguesa do

colonizador, a língua geral – as línguas indígenas aqui faladas – e o latim – ensinado

pelos jesuítas no ensino secundário e superior. Prevalecia a língua geral, para facilitar a

comunicação entre portugueses e indígenas e entre os indígenas falantes de diferentes

línguas (SOARES, 2004).

Soares (2004) afirma ainda que a língua portuguesa não integrava o currículo escolar

no Brasil Colônia. As reformas implantadas pelo Marquês de Pombal em Portugal e em

suas colônias (incluindo-se o Brasil), em meados do século XVIII, tornaram obrigatório

o uso da língua portuguesa, sendo proibida a utilização de outras línguas. Para a

autora, essas medidas contribuíram largamente tanto para a consolidação da língua

portuguesa no Brasil quanto para a sua inclusão e valorização na escola.

No século XVIII, foi implantado também o ensino da gramática, o qual, inicialmente,

buscava servir de apoio ao ensino-aprendizagem da gramática latina. Gradativamente,

todavia, a língua latina perdeu seu uso e valor social e, consequentemente, foi extinta

do programa de ensino brasileiro, e no século XX a gramática da língua portuguesa

fortaleceu-se como uma área de conhecimento, embora, de acordo com Soares (1996),

ainda ‘alheia’ à língua portuguesa.

O ensino dessa gramática tinha por base a concepção de língua exterior ao indivíduo

e era focada nos alunos das classes sociais mais favorecidas. Sua finalidade era que eles

conhecessem e reconhecessem o sistema linguístico (SOARES, 2004), centrado em

uma única modalidade de gramática, a tradicional.

A partir da década de 50 do século XX, houve expansão do número de vagas na

escola e do acesso da camada menos favorecida da população, e foram implementadas

modificações nas disciplinas curriculares e nos objetivos da instituição escolar. O ensino

da disciplina português também foi alterado, e gramática e texto, assim como estudos

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sobre a língua e estudo da língua, passaram a integrar a disciplina com conteúdo

articulado. Soares (2004, p. 167) pontua que ora era na gramática da língua que se

buscavam elementos para a compreensão e interpretação do texto, ora era no próprio

texto que se buscavam as estruturas linguísticas para a aprendizagem da gramática.

Meserani (2002) propala que, nos anos 60 do século XX, ocorreu uma revolução na

comunicação, quando teve início uma competição entre escola e meios de comunicação

de massa, como a televisão. O autor acrescenta que era “hora de se pensar um novo

sistema educacional e não só de continuar remendando um modelo exausto e obsoleto.

[...]; era “um tempo de novas ciências e de novas propostas educacionais” (p. 19).

Segundo o autor, no ensino da língua materna teve início a preocupação de

fundamentação na linguística, porém os espaços escolares continuaram a ser ocupados

pela gramática tradicional, e a escola continuou “esperando por uma lingüística que lhe

seja aplicável” (p. 20). O confronto da escola com a televisão, corroborando Meserani

(2002), forçou novas atitudes escolares, porque esta percebeu que a televisão viera

para ficar e que teria de ensinar a ler e a escrever de modo mais eficaz para poder

concorrer com esses novos meios de comunicação de massa.

Soares (2004) assinala que, nos anos 1970 e início dos anos 1980, houve um “hia-

to na primazia da gramática no ensino do português” (p. 168). A Lei de Diretrizes e

Bases da Educação (LDB) número 5692/71 ocasionou uma mudança significativa nas

disciplinas curriculares, entre elas o português, “resultante da intervenção feita nesse

transcurso histórico pelo governo militar instaurado em 1964” (p. 169).

Nas palavras da autora,

A nova lei [...] punha a educação, segundo os objetivos e a ideologia do regime militar, a serviço do desenvolvimento; a língua, no contexto desses objetivos e dessa ideologia, passou a ser considerada instrumento para esse desenvolvi-mento. A própria denominação da disciplina foi alterada, não mais português, mas comunicação e expressão (SOARES, 2004, p. 169).

Com a mudança na LDB, os objetivos do ensino de língua portuguesa passaram

a ser pragmáticos e utilitários, pois a ordem era “desenvolver e aperfeiçoar os

comportamentos do aluno como emissor e recebedor de mensagens, através da

utilização e compreensão de códigos diversos – verbais e não verbais” (SOARES, 2004,

p. 169). Trata-se, assim, do desenvolvimento do uso da língua.

Meserani (2008, p. 21) expõe que nos anos 1970 são observados os problemas

decorrentes do ensino de redação iniciado nos anos 1960. Para o autor, três questões

se sobressaem: 1) a respeito da metodologia e das técnicas de ensino, de como ensinar;

2) a respeito dos modos e critérios de avaliação; e 3) a respeito dos gêneros e tipos

de textos, do que ensinar. Esses aspectos geraram dúvidas e discussões inimaginadas

objetivos do ensino de língua portuguesa

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pela escola da primeira metade do século XX, as quais, por sua vez, propiciaram o

surgimento de estudos teóricos e propostas didáticas nessa década e nas posteriores.

Na segunda metade dos anos 1980, foram eliminadas as denominações comunicação

e expressão e foi recuperada a denominação português para a disciplina dos currículos

do ensino fundamental e médio, por uma medida do Conselho Federal de Educação,

que respondia, dessa forma, aos insistentes protestos da área educacional (SOARES,

2004, p. 170).

Esses protestos significavam a rejeição de uma concepção de língua e de ensino

que não encontrava apoio nem nos contextos político e ideológico da década de 80

do século XX, período em que ocorreu a redemocratização do país, nem nas novas

teorias da área de ciências linguísticas que principiavam a chegar ao campo do ensino

da língua materna (SOARES, 2004, p. 171).

As ciências linguísticas, em conformidade com Soares (2004), contribuíram

para o ensino do português, visto que alertaram a escola para as diferenças entre

as variedades linguísticas efetivamente faladas pelo aluno e a variedade de prestígio,

chamada padrão culto, que se lhes pretendia (e se pretende atualmente) ensinar nas

aulas de língua materna. Na visão da autora, a redemocratização da escola fez que o

ensino da língua portuguesa fosse direcionado aos alunos que levavam para a sala

de aula uma heterogeneidade linguística que exigiu (e que ainda exige) uma nova

postura dos professores frente às diferenças dialetais, como novos conteúdos e nova

metolodogia de ensino para a disciplina de português.

Geraldi (1997) registra que os anos 1980 representam um marco decisivo no

ensino de língua materna. O ensinar era foco de estudos, e o aprender passa a ser foco

de interesses (RAUPP, 2005). Nessa década, a Linguística chega à escola desdobrada em

Psicolinguística, Sociolinguística, Linguística Teórica, Pragmática, Análise do Discurso,

todas direcionadas ao ensino da língua materna.

Instaura-se uma concepção de linguagem que vislumbra a língua como enunciação,

discurso, e não apenas como comunicação, e que, portanto, inclui as relações da língua

com aqueles que a utilizam, com o contexto em que é utilizada e com as condições

sócio-históricas de sua utilização, resultante de uma nova concepção de gramática,

de seu papel e de sua função no ensino de português (SOARES, 2004). Interação é a

palavra-chave na década de 80 do século XX (RAUPP, 2005).

Soares (2004, p. 173) assinala que não são apenas as ciências linguísticas que

propiciam novas orientações para a disciplina português. Em sua acepção, três áreas

de estudos e pesquisas recentes – a história da leitura e da escrita; a sociologia da

leitura e da escrita; e a antropologia da leitura e da escrita –, ao investigar e analisar as

práticas históricas de leitura e escrita, as práticas sociais de leitura e escrita e os usos e

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funções da leitura e escrita em distintos grupos culturais, “introduzem a necessidade de

orientar o ensino da língua materna também por perspectivas históricas, sociológicas

e antropológicas”.

A autora pondera que

Três questões atualmente em discussão na área educacional brasileira só pode-rão ser esclarecidas e decididas, no que se refere à disciplina português, se se buscar realizar essa articulação e síntese: a definição de parâmetros curriculares para a disciplina português, a reformulação dos cursos de formação de pro-fessores dessa disciplina, a avaliação dos livros didáticos para essa disciplina (SOARES, 2004, p. 174).

o enSino de Língua portugueSa na atuaLidade

Assim como Soares (2004), os profissionais da educação e os interessados no en-

sino da língua materna discutem muito os problemas das aulas de língua portuguesa

no país, especialmente sobre o motivo de os programas de ensino não terem êxito.

Luft (2003), por exemplo, afirma que o ensino de língua portuguesa é essencial para a

formação do indivíduo. Entretanto, precisa ser revisto, porque, ao se ensinar as regras

gramaticais, grande parte dos professores ignora a língua falada pelo aluno, implican-

do que a língua objeto de estudo fica muito distante da prática efetiva, e, se não há

aproximação, não há aprendizado.

O objetivo do ensino de uma língua para os falantes dessa língua deve centrar-se

na possibilidade de levá-los ao domínio efetivo das habilidades de leitura e escrita,

audição e oralidade. A escola, campo de aplicação desse ensino por excelência, deve

formar alunos capacitados como leitores, que sejam capazes de produzir qualquer

tipo de texto, usando também a modalidade oral. Esse objetivo, realçamos, somente

será alcançado com a prática constante, uma vez que ler e escrever são atividades

primordiais no ensino de língua.

Infelizmente, ao observarmos a prática de ensino de língua portuguesa nas escolas

brasileiras, constatamos que esse objetivo está muito distante de ser atingido. Notamos

grande defasagem na escrita de nossos alunos, quando confrontada com o padrão da

norma culta que deve ser ensinado nas escolas, uma consequência das aulas de língua

portuguesa ao longo dos anos de escolaridade, muitas vezes descontextualizadas,

fragmentadas, sem uma sequência, com exemplos distantes da realidade e da prática

linguística dos alunos.

Assim, defendemos que o ensino de língua portuguesa com enfoque na escrita e na

comunicação é mais produtivo do que, por exemplo, o ensino das normas gramaticais

desvinculadas das situações cotidianas e das formas de língua faladas pelos alunos.

objetivos do ensino de língua portuguesa

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Se, ao ingressarem na escola, as crianças já possuem uma gramática internalizada,

cabe à escola, portanto, explorar a sua expressividade, permitindo que suas variedades

linguísticas sejam desenvolvidas, aperfeiçoadas, bem como o desenvolvimento das

variedades linguísticas de prestígio, visando à adequação às diversas situações

sociocomunicativas. Essa prática leva ao ensino da norma culta por contraste –

comparando-se a língua de que se tem posse com a língua que é exigida como

padrão na sociedade, almejando que as crianças gradativamente se apropriem do

novo modelo, sem receios e sem imposição por parte do professor.

Isso, todavia, não tem ocorrido com muita frequência no ensino escolar, e o que

deveria levar os alunos a uma reflexão e aprendizagem – o ensino das variedades

linguísticas – acaba ocasionando certa confusão. Reforçamos que é papel da escola

propiciar ao educando o estabelecimento de uma analogia entre a sua variedade

linguística e a variedade padrão, a fim de que ele perceba que diferentes situações

sociais pedem diferentes registros linguísticos e que o domínio da variedade padrão

proporcionará mais condições de se adequar às imposições sociais (SILVA, 2009).

obJetiVoS do enSino de Língua portugueSa

Apresentamos, na sequência, alguns objetivos do ensino de língua materna na

visão oficial (Ministério da Educação) e as sugestões para a melhoria desse ensino na

concepção de linguistas brasileiros que se dedicam a estudar essa questão.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) – doravante PCNs – pos-

tulam como objetivos gerais do ensino de língua portuguesa para o Ensino Funda-

mental o desenvolvimento progressivo de uma competência em relação à linguagem

que permita aos educandos resolverem problemas da vida cotidiana, terem acesso

aos bens culturais e alcançarem a participação plena no mundo letrado.

Para que esses objetivos sejam atingidos, os PCNs assinalam que o ensino de

língua portuguesa deve ser organizado para tornar os alunos capazes de expandir

o uso da linguagem em instâncias privadas, usando-a eficazmente em instâncias

públicas, “sabendo assumir a palavra” e produzir textos orais e escritos de forma

coerente, coesa e adequada aos destinatários, aos objetivos a que se propõem e aos

assuntos tratados.

Na perspectiva dos PCNs, os alunos devem ser capazes de usar diferentes registros,

incluindo os mais formais, adequando-os às mais diferentes situações comunicativas;

de conhecer e respeitar as diversas variedades linguísticas do português falado; de

compreender os textos orais e escritos, interpretando-os corretamente; de valorizar

a leitura como fonte de informação, sendo capazes de recorrer aos materiais escritos

em função dos objetivos que pretendem; de refletir sobre a língua, conhecendo e

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31

analisando criticamente os seus usos como veículo de valores e de preconceitos de

classe, credo, gênero ou etnia, entre outras prescrições (BRASIL, 1997).

A esse respeito, Travaglia (2008, p. 17-20) faz importantes reflexões, as quais

culminam em objetivos para o ensino de língua materna: 1) desenvolver a

competência comunicativa dos usuários da língua (falante, escritor, ouvinte,

leitor), ou seja, a capacidade do usuário de utilizar a língua de forma adequada nas

diferentes situações comunicativas; 2) levar os alunos a dominar a norma padrão

da língua e ensinar a variedade escrita da língua, distinta da variedade oral; e,

ainda, propiciar ao aluno o conhecimento da instituição linguística, mostrando como

ela é constituída e como se apresenta socialmente, haja vista que a competência

linguística deve se estender a todos os campos do conhecimento humano. O autor

adverte que, ao dar aula de uma língua para falantes dessa língua, é necessária a

indagação: “para que se dá aulas de uma língua para seus falantes?”, ou, ainda, “para

que se dá aulas de Português a falantes nativos de Português?”.

Possenti (2004, p. 318) enuncia que se deve “criar condições efetivas para a

escrita e a leitura constantes – transformá-las em práticas diárias e mais ou menos

intensas”, acrescentando que os professores da língua materna devem

escalonar as questões relativas à norma culta, para criar condições que per-mitam efetivamente que os estudantes possam tornar-se falantes dessa moda-lidade e, ao mesmo tempo, que sejam capazes de alterar pelo menos parcial-mente as atitudes lingüísticas que incorporam em sua vida pré-escolar, em geral preconceituosas.

Travaglia (2008) assevera que a escola deve “propiciar o contato do aluno com

a maior variedade possível de situações de interação comunicativa por meio de um

trabalho de análise e de produção de enunciados ligados aos vários tipos de situações

de enunciação”. Dito de outra maneira, é preciso que haja abertura à pluralidade de

discursos, única maneira de a escola abrir-se à vida e à comunidade.

O autor acresce que é importante para o ensino uma teoria que “trata

especificamente do texto” e o concebe como “espaço intersubjetivo”, resultante

da “interação entre os sujeitos da linguagem que atuam em uma situação de

comunicação para atingir determinados objetivos” (TRAVAGLIA, 2008, p. 20).

Concordamos com o autor quando enuncia ser relevante para o ensino de língua

materna a forma como o professor concebe a linguagem e a língua, porque a “concep-

ção de linguagem” do professor é tão importante quanto a postura que este tem em

relação à educação.

objetivos do ensino de língua portuguesa

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

32

aS concepÇÕeS de Linguagem e oS obJetiVoS do enSino de Lín-

gua portugueSa

Julgamos pertinente discorrer, mesmo que brevemente, acerca das concepções de

linguagem e a forma como elas conceituam o ensino de língua portuguesa.

Há três concepções de linguagem: a linguagem como expressão do pensamento,

para a qual as pessoas não se expressam bem porque não pensam. Nessa concepção,

a premissa para o ensino de língua portuguesa é a de que existem regras a serem se-

guidas para a organização lógica do pensamento e, por consequência, da linguagem.

Essas regras constituem as normas do bem falar e do bem escrever, aparecendo nos

estudos linguísticos tradicionais, resultando no que se denomina gramática norma-

tiva ou tradicional (TRAVAGLIA, 2008, p. 21-22). Nessa vertente, o modo como o

texto, usado em cada situação de interação comunicativa, encontra-se constituído

independe de para quem se fala, em que situação se fala (onde, como, quando),

bem como para que se fala.

Ainda citando Travaglia (2008), a segunda concepção vislumbra a linguagem

como instrumento de comunicação, como meio objetivo para a comunicação. Nela,

a língua é tida como um código, um conjunto de signos combinados conforme re-

gras, capaz de transmitir uma mensagem de um emissor a um receptor. O objetivo

do ensino de língua portuguesa é ensinar esse código aos falantes da língua para

que haja efetivamente a comunicação. Nessa concepção, em conformidade com o

autor supracitado, o falante tem em sua mente uma mensagem a transmitir a um

ouvinte, isto é, informações que quer que cheguem ao outro; para tanto, ele coloca

essa mensagem em código (codificação) e a envia para o outro por intermédio de

um canal (ondas sonoras ou luminosas). O outro, então, recebe os sinais codifica-

dos, transformando-os novamente em mensagem (informações). Ocorre, assim, a

chamada decodificação.

A terceira concepção, em consonância com Travaglia (2008, p. 23), conside-

ra a linguagem como forma ou processo de interação. Nessa vertente, o sujeito,

ao utilizar a língua, não apenas traduz/exterioriza um pensamento ou transmite

informações a outrem; ele age, atua sobre o interlocutor (ouvinte ou leitor). A lin-

guagem é vista como um local de interação humana, em determinada situação de

comunicação e em um contexto sócio-histórico e determinado. O objetivo do ensi-

no da língua portuguesa é a interação comunicativa, é levar os usuários da língua

a interagirem como sujeitos que ocupam lugares sociais e falam e ouvem desses

locais conforme as formações imaginárias (imagens) estabelecidas pela sociedade.

O que caracteriza a linguagem é o diálogo em sentido amplo (BAKHTIN , 2003); a

interação verbal constitui a realidade fundamental da linguagem.

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Isso posto, reiteramos a assertiva de Travaglia (2008) quanto à relevância de o pro-

fessor de língua materna conhecer e reconhecer as concepções de linguagem utili-

zadas por ele ao ensinar, pois assim seus objetivos de ensino ficarão mais evidentes,

permitindo melhor resultado em sala de aula.

Salientamos que as três concepções de linguagem são importantes e atingiram, (e

atingem), cada uma a sua maneira, determinados propósitos no ensino da língua, já

que refletem o momento sócio-histórico e político do país quando foram amplamente

empregadas. O professor de língua materna pode e deve fazer uso dessas concepções

de linguagem em sala de aula, desde que plenamente convicto dos objetivos que

pretende alcançar com os alunos ao empregar cada concepção de linguagem.

Obviamente, a concepção de linguagem que atualmente norteia o ensino-

aprendizagem de língua portuguesa em todo o país é a terceira concepção acima

descrita: a que concebe a linguagem como processo de interação, a que busca levar os

alunos a interagirem de fato na sociedade, por meio do ensino de gêneros textuais em

real circulação social.

conSideraÇÕeS FinaiS

Neste capítulo, procuramos apresentar, de modo sucinto, o percurso do ensino

de língua portuguesa no país desde a implementação do sistema oficial de ensino

brasileiro. Vimos os diferentes objetivos do ensino da língua materna, atendendo às

políticas vigentes em cada momento histórico, sobretudo no decorrer do século XX.

Percebemos que as alterações mais significativas nos objetivos do ensino de português

ocorreram na década de 1980, quando novos estudos, fundamentados nas ciências

linguísticas, foram desenvolvidos e aos poucos inseridos na escola.

Convém a ressalva de que os objetivos de língua portuguesa ainda não foram ple-

namente atingidos devido a uma série de fatores internos e externos à escola. Como

fatores internos, destacamos a deficiência na formação docente; a estrutura falha do

sistema escolar, que entre outros não contempla no programa de língua materna os

conteúdos que privilegiam a oralidade, o trabalho com a variante linguística do aluno;

as leis e programas nacionais (como os PCNs) que são criados, mas que, pelos motivos

que não nos cabe aqui discutir, não são integralmente cumpridos pelos profissionais da

educação, entre outros inúmeros problemas; e, como fatores externos, apontamos o

fato de coexistirem no país duas normas-padrão da língua portuguesa (BAGNO, 2004):

uma, a do discurso oficial e das gramáticas, que apenas existe na escrita, e outra, a da

oralidade dos falantes, que muito difere da norma padrão escrita, e que infelizmente

não é ensinada nas escolas. Há ainda outros fatores, além dos já citados, que dificultam

o ensino-aprendizagem da língua portuguesa nas escolas, culminando nos péssimos

lugares que o Brasil ocupa em rankings internacionais (tais como o Pisa, 2009).

objetivos do ensino de língua portuguesa

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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Pontuamos que as pesquisas desenvolvidas pelos estudiosos e a criação de novas

teorias de ensino não são suficientes se os professores de língua portuguesa, mediadores

do ensino da língua materna, não se dispuserem a rever constantemente sua prática

em sala de aula e não optarem pela mudança de estratégia e de foco na busca por

melhores resultados com os educandos. Realçamos que apenas o comprometimento

e a responsabilidade dos educadores como um todo – os profissionais da educação

– propiciarão ao ensino de língua materna, a disciplina português, ser mais bem

direcionado, adequado às expectativas e às necessidades reais dos aprendizes,

condizente com a sociedade atual e com os cidadãos que queremos formar.

Referências

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BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Janeiro: Padrão, 1985.

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Portuguesa, v. 2.

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a 8ª séries). Brasília, DF, 1999b. Disponível em: <http://www.mec.gov.br>. Acesso

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GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

LUFT, Celso Pedro. Língua & liberdade por uma nova concepção da língua materna.

8. ed. São Paulo: Ática, 2003. [1985].

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Paulo: Cortez, 2008.

POSSENTI, Sírio. Um programa mínimo. In: BAGNO, Marcos. Lingüística da norma.

São Paulo: Loyola, 2004.

RAUPP, Eliane Santos. Ensino de língua portuguesa: uma perspectiva lingüística.

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35

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SILVA, Cristiane C. O ensino de língua portuguesa em debate: problemas e

perspectivas. [S. l.]: Artigonal, 2009. Disponível em: <http://www.artigonal.

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TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de

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http://www.meuartigo.brasilescola.com/portugues/desafios-ensino-lingua-portuguesa.

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http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/internacional/news2009. Acesso em: 09

mar. 2011.

objetivos do ensino de língua portuguesa

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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Anotações

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Uma proposta pedagógica de leitura

na perspectiva dialógica

Lilian Cristina Buzato Ritter

introduÇão

Apesar de, por mais de duas décadas, pesquisadores da área da Linguística Aplicada

terem se dedicado a trabalhos voltados ao ensino da leitura, alicerçando alguns

avanços teórico-metodológicos, no que diz respeito à referida prática na concepção

interacionista de linguagem, atualmente um dos grandes desafios da escola ainda se

encontra relacionado ao desenvolvimento de leitores críticos.

Tanto o documento oficial nacional – no caso, os Parâmetros Curriculares Nacio-

nais (BRASIL, 1998) – quanto o regional sobre política educacional – as Diretrizes

Curriculares da Rede Pública de Educação Básica do Paraná (PARANÁ, 2008) – ele-

gem, como objetivo das aulas de leitura, o desenvolvimento de atitudes e posturas

críticas do leitor frente aos textos. Nessa direção, podemos afirmar que esses docu-

mentos são permeados por diversos aportes teóricos, por exemplo, os da Linguística

Textual, da Psicologia Cognitiva, da Análise do Discurso, dos Estudos da Enunciação

e, entre todas essas contribuições, há uma convocação para a noção bakhtiniana de

gênero discursivo.

Na perspectiva teórica bakhtiniana, como já foi discutido no livro “Leitura:

aspectos teóricos e práticos”, particularmente, no capítulo “Uma prática de leitura

do gênero discursivo na perspectiva dialógica da linguagem” (CECILIO; RITTER,

2010), a compreensão não equivale ao reconhecimento da forma linguística, mas sim

à “interação dos significados das palavras e seu conteúdo ideológico, não só do ponto

de vista enunciativo, mas também do ponto de vista das condições de produção e da

interação locutor/receptor” (RECHDAN, 2003, p. 2). A grande implicação pedagógica

dessa afirmação requer, em sala de aula, a percepção do destinatário – para quem o

texto foi produzido, a que sujeito social a palavra foi dirigida; a reflexão sobre a esfera

social na qual esse enunciado concreto está inserido.

Em contexto de ensino, portanto, as ideias bakhtinianas subsidiam o que está

presente nos documentos oficiais sobre ensino de língua materna em relação à

3

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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diversidade de gêneros. Como leitores/produtores de textos, os alunos estão imersos

em práticas sociais e em atividades de linguagem letradas, pertencentes a diferentes

situações comunicativas. Para agirem e interagirem nessas situações, é necessário

que saibam empregar adequadamente os gêneros discursivos. Assim, no eixo leitura,

corroboramos Rojo (2005, p. 207), para quem essa atividade consiste

[...] mais de despertar a réplica ativa e a flexibilidade dos sentidos na polissemia dos signos, que de ensinar o aluno a reconhecer, localizar e repetir os signifi-cados dos textos [...] parece-nos ser mais útil e necessário explorar com eles (alunos) as características das situações de enunciação – relacionadas às marcas lingüísticas que deixam.

Tal ótica concebe a leitura como instauradora de diálogos na dimensão espaço-

temporal, propiciando diferentes formas de ver, de avaliar o mundo e de (re)conhecer

o outro. Nesse sentido, torna-se relevante atentar, conforme o próprio Geraldi (1991),

que um texto pode ter mais de uma leitura, mas isso não significa admitir todas,

visto que a leitura não deve ser concebida como imanente (com sentidos fixos) nem

apenas como confirmadora das hipóteses do leitor.

Consequentemente, o trabalho de co-produção de sentidos, por intermédio da

recriação do que é omitido e dos implícitos, do preenchimento de incompletudes,

é assentado na interação sujeito-leitor e texto, em suas várias possibilidades de

interpretação. O leitor, desse modo, segundo Brandão (1997), situa-se entre o

movimento de expansão e de filtragem de sentidos.

Nessa relação, consoante a autora, é criado um significado global do texto, que

não é aquele intencionado pelo autor nem pelo leitor, mas o resultante do trabalho

dialógico de ambos. O processo de reconstrução textual é realizado porque o

leitor mobiliza seus conhecimentos prévios (linguísticos, textuais e de mundo), em

determinada situação de produção de leitura, preenchendo as lacunas textuais, via

pistas interpretativas, deixadas pelo autor – o qual produziu seu texto também em

determinado contexto de produção: com uma finalidade, em certa época, em certo

local, em um suporte específico.

Até este momento, fizemos uma retomada da concepção teórica referente ao

processo de leitura já apresentada e discutida em capítulo anterior, para pontuarmos,

em seguida, o objetivo deste trabalho: apresentar aos professorandos uma proposta

pedagógica de leitura, na configuração de um plano de aula de língua portuguesa. É

importante salientarmos que a referida sugestão didática ancora-se teoricamente na

perspectiva dialógica da linguagem (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1992; BAKHTIN, 2003),

portanto, naquela que trava um diálogo com as discussões teórico-metodológicas

tecidas anteriormente, conforme explicitado.

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39

Para articular os aspectos teóricos abordados até então com a prática de sala de

aula, compondo nossa proposta pedagógica de leitura, selecionamos uma crônica de

Moacyr Scliar, publicada no jornal Folha de São Paulo, em 18/05/2009, intitulada O

carro comestível. Pensando sobre a série na qual essa prática poderia ser desenvol-

vida, sugerimos a 1.ª série do ensino médio, em virtude da densidade temática da

própria crônica e também pela complexidade enunciativa que caracteriza as crônicas

produzidas nesta esfera social, a jornalística.

A fim de organizar este capítulo, primeiramente, apresentamos uma análise acerca

da crônica selecionada, tecendo reflexões a respeito da dimensão social (condições de

produção) do gênero e, a partir daí, de alguns aspectos caracterizadores da dimensão

verbal do referido texto. Em seção posterior, sugerimos uma proposta pedagógica de

leitura como exemplo modelar de trabalho para o professor.

as dimensões social e verbal da crônica

Muito produtivo para esse estudo, em termos metodológicos, são questões

elaboradas por Rodrigues (2005), por nós adaptadas, que orientam a reflexão sobre

alguns aspectos referentes a este momento da análise: o que motiva o acontecimento

dessa crônica, ou seja, ela é uma reação-resposta a quê, a quem? Como essa reação se

manifesta na crônica? Em que lugar social o autor se posiciona? O que ele diz? Qual

sua orientação valorativa diante do que diz? Como e a partir de quem ele constrói

sua orientação axiológica? Como o autor procede diante de seu interlocutor e de

que modo ele age diante de suas possíveis reações-respostas? Como tudo isso se

inscreve materialmente na crônica?

Após um estudo analítico realizado com crônicas de Luis Fernando Verissimo (apud

CECILIO; RITTER, 2010) e Moacyr Scliar, publicadas em jornais nos anos de 2008 e

2009, de modo resumido, podemos delimitar aspectos referentes ao funcionamento

do gênero discursivo crônica, entre eles:

a) o papel social assumido pelos cronistas é o de fazer o leitor refletir, via leitura

de entretenimento;

b) o papel social do leitor, revelado discursivamente, é aquele que, por não se

contentar apenas com a informação, quer sobre ela refletir e, por isso, busca

outras opiniões que dialoguem com as suas;

c) as crônicas têm um público específico, determinado pela complexidade de

seu enunciado e pelas temáticas variadas das quais tratam, demandando uma

diversidade de conhecimentos;

d) o tom irônico e despretensioso dos autores funciona como o lugar do

estabelecimento e da ancoragem da entonação do gênero (um tom autorizado)

uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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e da sua atitude valorativa. Em consequência, o uso da ironia revela,

discursivamente, uma atitude ousada dos autores, uma vez ser símbolo do

risco que ele se dispõe a correr na defesa de seus pontos de vista. Ou, ainda,

na intenção de despertar criticamente o leitor, prevendo um leitor não apenas

desejoso de com ele interagir, mas também suficientemente competente para

fazê-lo.

Em relação ao espaço destinado às crônicas nos jornais, observamos que há

uma sistematicidade quanto a sua topografia, ou seja, ao seu lugar no interior do

jornal. Percebemos que as crônicas de Moacyr Scliar ocupam um espaço do Caderno

Cotidiano, destinado, pelo jornal, a gêneros de natureza diversa, importantes para

o cotidiano do leitor, por exemplo, dicas sobre o trânsito da cidade, notícias sobre

problemas da cidade. Quanto ao espaço de publicação, as crônicas estão na parte

superior da última página desse caderno, lugar de grande importância no jornal,

por ser a parte da página que recebe primeiramente a atenção do leitor, de acordo

com informações obtidas com profissionais do jornalismo. Tal localização garante

às crônicas um status relevante quanto a sua capacidade de mobilização do leitor.

Quanto à forma de apresentação, mantém-se sempre em destaque a identificação

da autoria por meio de letras em “caixa-alta”, na parte superior central, acima do

título da crônica, acompanhada de um trecho retirado da crônica, funcionando como

o seu olho. Além disso, antes do início da crônica, sempre é especificado, em negrito

e em fonte menor, um fragmento de uma notícia, seguido da data e do caderno de

onde a notícia foi publicada. Como já ressaltamos, esses elementos configuracionais

são constitutivos do gênero, porque indicam o lugar da sua ancoragem ideológica,

delimitando a que parte do universo temático do jornalismo ele se refere, qual o seu

horizonte temático e sua finalidade de interação.

Nessa seção Cotidiano, a crônica de Scliar ocupa o lugar de um gênero

que, historicamente, tem seu horizonte temático e axiológico orientado para a

manifestação da expressão valorativa a respeito de acontecimentos sociais do

cotidiano, que, normalmente, são vistos como cenas corriqueiras. Os participantes

da interação assumem e reconhecem esse trabalho criativo, ficcional e sensível do

autor/locutor.

Conforme já foi discutido em capítulo anterior, a autoria não diz respeito à

pessoa física, mas sim a uma posição de autoria inscrita no próprio gênero. Logo, a

concepção de autoria do gênero crônica está articulada à posição privilegiada que

o autor/locutor ocupa tanto no cenário sociopolítico quanto no artístico-literário.

Tratando-se da figura social de Moacyr Scliar, essa imagem é construída no cenário

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artístico-literário, em que ele é legitimado socialmente como um dos grandes

expoentes da literatura nacional. No caso de nosso corpus, o lugar social que Scliar

representa é a de um cronista que cria fatos ficcionais (crônicas narrativas) baseados

em notícias publicadas no próprio jornal Folha.

À luz da análise empreendida a respeito dos aspectos da dimensão social, focali-

zamos a dimensão verbal a fim de verificarmos como as relações dialógicas com os

enunciados já-ditos (elos anteriores) e os pré-figurados (elos posteriores – relações

dialógicas em razão do interlocutor) colaboram na construção dos efeitos de sentido

das crônicas. Para exemplificarmos o estudo da dimensão verbal, apresentamos a

análise da crônica O carro comestível, publicada em 18/05/2009.

A emergência das crônicas de Scliar publicadas na Folha é motivada por notícias

da atualidade (momento histórico vivido) que são enunciados discursivizados pela

esfera jornalística, especificamente, pelo próprio jornal em questão. As notícias que

servem de base para os textos do autor são configuradas em destaque, antes do

início da narrativa, em pequenos fragmentos, parecendo recortes do cotidiano. As

notícias relatam um fato recente que pode ser considerado inusitado ou até mesmo

engraçado, mas abordado de forma pouco aprofundada pelo jornal. Dessa maneira,

a notícia é alçada pelo cronista como uma espécie de mote ou fonte de inspiração

para a produção de suas crônicas.

Na crônica-exemplo, o autor/cronista parte da notícia de que britânicos

inventaram um carro de corrida com chassi de batata, o qual é movido a chocolate:

Britânicos fazem carro de corrida com chassi de batata e movido a chocolate. O carro, batizado de “WorldFirst” (O mundo em primeiro lugar, em tradução livre), tem parte do chassi feito a partir de amido de batata, usa biocombustível produzido à base de restos de chocolate e um volante feito com cenouras e outros vegetais. O carro é capaz de atingir uma velocidade de 200 km/h. “O WorldFirst descarta o mito de que a performance do carro é comprometida com o desenvolvimento de motores sustentáveis”, afirma o coordenador do projeto, James Meredith (SCLIAR, 2009).

De forma geral, a crônica O carro comestível é uma reação-resposta do cronista

à notícia (um enunciado já-dito), cujo fato pode ser considerado um grande avanço

para o mundo, pois alia tecnologia à preservação ambiental.

Após a notícia-base, inicia-se uma narrativa curta, ágil, com predomínio do discurso

indireto, apresentando os elementos básicos da narrativa (fatos, personagens, tempo

e lugar), organizados na estrutura básica da narrativa, apresentada no quadro abaixo:

uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

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Quadro 1 - A estrutura composicional da crônica “O carro comestível”

Organização Estrutural Texto

a) Um momento de harmonia em que as personagens são apresentadas em um tempo e espaço:

Apresentado ao público inglês, o “WorldFirst” fez enorme sucesso. A mídia falava numa vitória da ecologia; e, como disse um líder do movimento ambiental, a partir de agora seria possível esperar uma verdadeira revolução na indústria automobilística, sabidamente uma das mais poluidoras do planeta e das mais resistentes à mudança.Efetuadas as primeiras demonstrações em grandes cidades europeias um dos coordenadores do projeto ponderou que agora seria necessário levar o carro para regiões menos desenvolvidas do planeta.Afinal, pobreza e poluição não se excluem, e o “WorldFirst”, por seus aspectos originais, poderia representar uma lição acerca de como preservar os recursos naturais sem abrir mão da tecnologia.Foi planejada, portanto, uma viagem pelo continente africano, com demonstrações em vários países. Um programa que duraria cerca de um mês, por causa das longas distâncias, mas que se iniciou muito bem; em todas as capitais em que foi exibido, o “WorldFirst” despertava assombro e admiração.

b) Introdução do conflito e seu desdobramento:

E aí, aconteceu o imprevisto.Em geral, nessas viagens, o carro era transportado por via aérea. Mas no interior da África, em regiões sem aeroporto, era preciso recorrer a um grande caminhão para isso. Uma noite, ao transitar por uma esburacada estrada, o veículo enguiçou. Muito preocupada, a equipe encarregada do “WorldFirst” tratou de procurar socorro.A pouca distância dali havia uma aldeia, um lugar paupérrimo,situado no meio de uma zona desértica, na qual a fome era constante. Aos poucos os aldeões, figuras esqueléticas, foram se aproximando.O intérprete explicou-lhes o que tinha acontecido, contou sobre o “WorldFirst”, o carro feito de batata e legumes, e movido a chocolate; perguntou por um lugar em que pudessem guardá-lo.Os habitantes da aldeia mostraram uma grande choça, vazia. Para lá foi levado o original veículo. Cansada, a equipe acomodou-se no próprio caminhão e ali dormiu.

c) Um momento máximo de tensão (clímax):

De manhã, quando foram retirar o “WorldFirst” tiveram uma surpresa: o chassi e o volante tinham sumido por completo, o tanque de combustível estava vazio. Perguntaram aos aldeões; ninguém soube ou quis informar.

d) A resolução do conflito: Quando estavam indo embora, levando o que sobrara do carro, uma mulher contou-lhes: no meio da noite, as crianças da aldeia, esfomeadas, tinham comido todo o chassi e o volante. Como sobremesa, haviam saboreado o chocolate do tanque. Nunca a nossa gente passou tão bem, disse, com um sorriso.

e) Comentário final: O mundo avança. Mas não em velocidade de carro de corrida.

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Pensemos a respeito das questões-norteadoras: o que motiva o acontecimento

dessa crônica, isto é, ela é uma reação-resposta a quê? A quem? Como essa reação se

manifesta na crônica? Em que lugar social o autor se posiciona? O que ele diz? Qual

sua orientação valorativa diante do que diz? Trata-se de questionamentos a respeito

das relações dialógicas que o cronista mantém com os enunciados já-ditos no processo

de construção de sua apreciação valorativa. Em função desse aspecto, consideramos,

na crônica em foco, o predomínio do movimento dialógico de distanciamento

(RODRIGUES, 2005). O cronista apresenta uma apreciação valorativa negativa em

relação a esse enunciado já-dito (a notícia), pois desqualifica a voz capitalista que

permeia a notícia. Ele reage ironicamente ao criar a situação em que o carro “WorldFirst”

é comido pelas crianças esfomeadas, do interior da África.

Nesse caso, o uso da ironia, como estratégia discursiva, não incide sobre um dito

do autor, mas na criação da cena referida, perpassando por toda a crônica. Ainda ob-

servamos, da mesma forma que nas crônicas do outro autor, a ironia como marca da

“heterogeneidade discursiva mostrada” (MAINGUENEAU,1989, p. 98). Esse recurso

se materializa com o uso das aspas para citar o nome do carro. Muito mais do que

uma questão gramatical, as aspas introduzem no enunciado tom irônico do cronista

em relação ao significado do nome do carro: “o mundo em primeiro lugar”.

Não nos esquecendo de que a orientação para os enunciados já-ditos e sua incor-

poração na crônica realiza-se também em função do interlocutor, ressaltamos que o

cronista constrói seu acento de valor a partir de uma determinada imagem social de

leitor/interlocutor. Desse modo, ele estabelece relações dialógicas com os enuncia-

dos pré-figurados pelo leitor (elos posteriores). Ao mobilizar o recurso discursivo da

ironia, o cronista conta com um leitor capaz de reconstruir na sua reação-resposta

os aspectos implícitos que constituem o fundo discursivo dialogizador da crônica,

considerado de domínio do leitor.

Esse movimento dialógico pode ser denominado de ativação do conhecimento

prévio (SILVA, 2008), em virtude de as informações implícitas serem ancoradas na

situação social de interação, pois dependem do conhecimento de mundo do inter-

locutor. No caso da crônica em questão, o leitor precisa conhecer, por exemplo, de

que forma os chamados países ricos propõem a discussão sobre a poluição e sua

co-responsabilidade nesse processo histórico; como os países emergentes e pobres,

como alguns do continente africano, posicionam-se e são vistos nessa discussão.

A partir desses implícitos, o leitor compreende o tom irônico dado à crônica, por

exemplo, no momento em que o “WorldFirst” é devorado pelas crianças esfomea-

das, do interior da África. A invenção britânica, que representaria um grande avanço

tecnológico, deixa de existir por causa da fome que ainda mata pessoas no mundo.

uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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Em outras palavras, ele foi literalmente devorado pelo terceiro mundo. Esse acento

de valor também se matiza pelo uso do discurso indireto e indireto livre para repre-

sentar socialmente as vozes de líderes ambientalistas e pesquisadores da indústria

automobilística britânica. No trecho: “Afinal, pobreza e poluição não se excluem,

[...]”, a voz que está imbricada com a do narrador é a de um dos coordenadores do

projeto britânico, portanto a ironia recai nesse enunciado, em virtude de países do

primeiro mundo, como a Inglaterra, deverem assumir mais responsabilidades nesse

processo de preservação do planeta.

Outro movimento dialógico com elos posteriores é o de engajamento (RODRI-

GUES, 2005), pois o cronista, em determinados momentos, coloca leitor e autor em

uma mesma posição valorativa. Esse movimento manifesta-se em certos traços estilísti-

co-composicionais, por exemplo, o verbo e o pronome na 1.ª pessoa do plural; o uso

do pronome indefinido “todos”; de perguntas retóricas; e de advérbios ou expressões

adverbiais, aspectos observados em: “[...], sabidamente uma das mais poluidoras do

planeta [...]”, ou seja, “como todos nós sabemos”.

Além das relações dialógicas de engajamento e de ativação de conhecimento

prévio, percebemos, inclusive, o movimento de interpelação do leitor, visto que

há o desejo de persuadi-lo a aderir a um ponto de vista. Nessa crônica, destacamos

como característica estilístico-composicional do referido movimento dialógico a par-

te final do texto: “O mundo avança. Mas não em velocidade de carro de corrida”.

Por meio dessa estrutura composicional - o comentário final -, o cronista impõe ao

leitor a sua avaliação sobre o fato noticiado: a velocidade do avanço do Homem (a

sua humanização) é lenta porque, enquanto se investe em pesquisas tecnológicas,

há pessoas no mundo que ainda morrem de fome. Nesse sentido, o uso do opera-

dor argumentativo “mas” e da negação, nessa parte estrutural do texto, arrematam

o distanciamento do cronista em relação ao enunciado já-dito de que esse tipo de

pesquisa representa um grande avanço para o mundo.

a proposta pedagógica de leitura

Passamos a demonstrar nossa proposta pedagógica de leitura, a qual deve ser en-

tendida como resultado do estudo e da análise expostos anteriormente. Essa sugestão

de prática está formatada na configuração de um plano de aula, conforme exigência a

ser cumprida para o desenvolvimento do Estágio Supervisionado do professorando:

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PLANO DE AULA

ESCOLA: XXXXXX PROFESSOR(A): XXX

SÉRIE:1º TURMA:XX TURNO: XX

ENSINO: ( X ) Médio ( ) Fundamental

DATA: xx/xx/xx HORÁRIO: xx DURAÇÃO DA AULA: 04 h/aConteúdo:- Leitura crítica da crônica “O carro comestível”, de Moacyr Scliar.

Objetivo geral:- Refletir sobre o funcionamento sociodiscursivo do gênero crônica.

Objetivos específicos:- Reconhecer e compreender a dimensão social (condições de produção) da crônica;- Reconhecer e compreender a dimensão verbal (marcas linguístico-enunciativas referen-tes à estrutura composicional, conteúdo temático, estilo e movimentos dialógicos com o já-dito e com o interlocutor) da crônica.

Procedimentos de ensino RecursosProcedimentos de

avaliação- De forma coletiva, propor aos alunos reflexões acerca da circulação da crônica na esfera jornalística;

- Leitura comparativa entre uma notícia, uma resenha de filme e uma crônica para se promover o estudo das ca-racterísticas sociodiscursivas da crônica (dimensão social). Esse procedimento pode ser realizado, em um primeiro momento, em duplas, para depois ser socializado no grande grupo, por meio da montagem de um quadro comparativo entre os gêne-ros selecionados a partir dos elementos de suas condições de produção;

- Estudo dos aspectos refe-rentes à dimensão verbal da crônica “O carro comestível”, por meio de exercícios de leitura que promovam a pro-dução de sentidos do texto, discutindo-se sobre o tema, a estrutura composicional e os movimentos dialógicos com o já-dito e com o interlocutor.

- exemplares do jornal A Folha de S. Paulo;

- xerox da crônica “O carro comestível”;

- xerox ou impressão de exercícios de leitura.

- participação oral nos mo-mentos de discussão;

- produção escrita dos exercí-cios de leitura.

Referências: SCLIAR, M. O carro comestível. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 maio,

2009. Caderno 2 Cotidiano.

uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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A seguir, passamos à explicação desse plano de aula, tecendo comentários e descri-

ção sobre os procedimentos de ensino sugeridos. Primeiramente, é importante obser-

varmos que, como subsidiamos teoricamente essa prática na teoria bakhtiniana e nas

propostas teórico-metodológicas dos estudos de Rojo (2005) e de Rodrigues (2005), a

aula de leitura pode ser iniciada com a reflexão sobre aspectos pertinentes à dimensão

social da crônica.

Dessa forma, em primeiro lugar, sugerimos a ênfase às características da esfera de

comunicação a que pertence o gênero e da sua situação de produção. Para essa primeira

fase do trabalho, é essencial que o aluno discuta, comente e conheça as condições de

produção e de circulação do gênero referente ao texto “O carro comestível”. Portanto,

como a crônica selecionada circulou na esfera jornalística, o contato do aluno com o

portador desse texto, o jornal A Folha de S. Paulo, é muito importante. Sabemos que a

grande maioria dos alunos de Ensino Médio não tem o hábito de ler jornal e, por isso

mesmo, pode desconhecer o fato de crônicas serem publicadas nesse portador textual.

Assim, ainda que reproduza o texto para todos, o professor deve procurar levar

o original para a sala de aula, explorando as características sociodiscursivas desse

suporte. Nesse sentido, parece-nos ser muito produtiva uma atividade como: Levar

exemplares de jornais A Folha para a sala de aula e, em conjunto com os alunos,

explorar aspectos referentes à esfera de circulação do gênero, por exemplo: quantas

seções ou cadernos esse jornal apresenta; observe o Caderno Cotidiano: quais textos

são publicados nele? Qual é o objetivo desse caderno? Nele há textos conhecidos pela

nossa sociedade como crônica? Você já deve ter lido algumas crônicas em sala de aula.

E, no jornal, por que um leitor de jornais pode querer ler crônicas? Então, qual pode

ser o objetivo de um jornal ao publicar crônicas?

O encerramento dessas discussões deve levar os alunos a perceberem, conforme já

explicitamos, que esses aspectos referentes às condições de produção são constitutivos

do gênero porque indicam o lugar da sua ancoragem ideológica, delimitando a que

parte do universo temático do jornalismo ele se refere, qual o seu horizonte temático,

sua finalidade de interação.

Na sequência da aula, o professor pode informar aos alunos que o objetivo das

próximas aulas é a leitura crítica de uma crônica, a partir do estudo das características

sociodiscursivas desse gênero. Portanto, a próxima atividade visa ao reconhecimento

do gênero crônica. O professor entrega aos alunos três textos: uma notícia de jornal

(de preferência, um texto curto), uma resenha de filme (pode ser de uma revista, por

exemplo, da Veja) e uma crônica (“O carro comestível”). Essa tarefa pode ser realizada

em duplas e consiste na leitura comparativa entre os textos, a fim de que os alunos os

diferenciem, levando em consideração as condições de produção (ou dimensão social)

de cada um.

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De maneira coletiva, para concluir essa atividade, professor e alunos completam o

seguinte quadro comparativo:

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

TEXTO 1 TEXTO 2 TEXTO 3

Tema

Papel social assumido pelo autor ao escrever o texto

Papel social assumido pelo leitor ao ler o texto

Objetivo da interação estabelecida pelo texto (informar, convencer, fazer refletir, entreter, ...)

Suporte de circulação

Gênero discursivo (resenha de filme, notícia ou crônica)

O professor deve ter cuidado com a metalinguagem utilizada nesse exercício, pois

ela ainda pode não ser reconhecida pelos alunos. Portanto, cabe ao professor mediar

esses conhecimentos, se for o caso. Mas, como o objetivo é levá-los a entender o

funcionamento sociodiscursivo da crônica, e não a reproduzir essa metalinguagem, o

professor pode substituir esses termos por outros que expliquem, da mesma forma, os

elementos das condições de produção dos textos.

Para promover uma sistematização dos conhecimentos até então abordados,

o professor pode desafiar os alunos a definirem o gênero crônica, levando em

consideração sua dimensão social, ou seja, pensando sobre: quem escreve (o papel

social do autor/enunciador); para quem escreve (o papel social do leitor/interlocutor);

o que se escreve (tema); onde pode circular; com que objetivo é produzida; como se

escreve (estrutura composicional e estilo).

Apesar de as crônicas de Moacyr Scliar, publicadas na Folha, apresentarem uma

estrutura fixa - a narrativa -, o professor não pode deixar de esclarecer aos alunos que

a forma composicional desse gênero é bastante heterogênea, podendo se estruturar

como narrativa, argumentação, relato, poema etc.

uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

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À luz dessas reflexões acerca da dimensão social da crônica, o professor inicia o

trabalho em sala de aula com a crônica O carro comestível. A seguir, propomos al-

gumas questões que podem contemplar o nível de estudo da dimensão verbal desse

enunciado:

1) Já vimos que o texto lido é uma crônica e, portanto, tem o objetivo de levar

o leitor a refletir. Assim, após a sua leitura, podemos refletir especificamente

sobre o quê?

2) Podemos observar que as crônicas de Scliar, publicadas nesse jornal, sempre

são antecedidas por um fragmento de uma notícia recente. E, a partir dessa

notícia, o autor “cria” a sua crônica. Se considerarmos essa crônica como uma

reação-resposta a essa notícia, de que maneira o cronista reagiu ao fato noticia-

do: de uma forma positiva ou negativa? Justifique.

3) Essa crônica apresenta uma estrutura narrativa. Identifique as partes dessa for-

ma composicional: situação inicial, conflito, clímax, desfecho.

4) Releia este trecho: “Afinal,pobrezaepoluiçãonãoseexcluem,eo“WorldFirst”,

por seus aspectos originais, poderia representar uma lição acerca de como

preservar os recursos naturais sem abrir mão da tecnologia”. Reflita: a) Quem

faz, na crônica, essa afirmação? b) Podemos nos questionar sobre aspectos rela-

cionados ao par “pobreza – poluição”? De que forma os chamados países ricos

propõem a discussão sobre a poluição e qual sua co-responsabilidade nesse

processo histórico? Como os países emergentes e pobres, como alguns do con-

tinente africano, posicionam-se e são vistos nessa discussão?

5) O “WorldFirst” foi devorado por crianças esfomeadas do interior da África. Por-

tanto, na visão do autor, o que valeu mais a pena: o seu grande avanço tecnoló-

gico ou ter matado a fome de pessoas no mundo? Por quê?

6) A partir dessa reflexão, podemos considerar que o autor utilizou um tom irô-

nico? Além disso, o significado do nome do carro, “O mundo em primeiro lu-

gar”, nessa situação criada pelo autor, pode ser entendido como uma ironia?

Justifique.

7) Releia o trecho: “[...] a partir de agora seria possível esperar uma verdadeira

revolução na indústria automobilística, sabidamente uma das mais poluidoras

do planeta e das mais resistentes à mudança”. A “quem” o cronista se refere

ao utilizar a expressão “sabidamente” (quem “sabe”?). Assim, esse uso pode

ser considerado um recurso utilizado pelo cronista para interagir com o leitor?

Explique.

8) Se a indústria automobilística é uma das mais poluidoras e menos resistentes à

mudança, qual o impacto disso para o meio ambiente? Esse fato pode nos levar

Page 49: Saberes docentes leitura análise lingu escrita Prat_Form_Professores_web

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a questionamentos, como: em quais países esse setor da indústria mais se desta-

ca? Esses países são considerados pobres ou ricos? Então, quem deveria ter mais

responsabilidade nesse processo de preservação do planeta?

9) A crônica termina com uma avaliação do cronista em relação a essas questões:

“O mundo avança. Mas não em velocidade de carro de corrida”. Você também

tem essa opinião sobre a velocidade dos avanços do mundo? Justifique.

Entendemos também que essas atividades referentes ao estudo da crônica “O carro

comestível” podem ser o início do desenvolvimento de um módulo didático de leitura,

se o que se quer é criar oportunidades para que o aluno desenvolva sua competência

discursiva pela apropriação das características típicas da crônica. Esse trabalho pode

ser organizado didaticamente a partir da seleção de outras crônicas publicadas em

jornais, que contemplem sua diversidade temática, estrutural e estilística.

conSideraÇÕeS FinaiS

As implicações teórico-metodológicas de se assumir os gêneros discursivos como

eixo de articulação e de progressão curricular nos levam a crer que, por meio de

atividades de leitura que privilegiem a reflexão sobre os elementos sociodiscursivos

constituintes das situações de enunciação dos enunciados, as aulas de leitura podem

se tornar um espaço para o aluno se instituir como um co-produtor de sentidos dos

textos.

No processo de recepção de textos em sala de aula, ao observarmos em um texto – de

determinado gênero – suas condições de produção (dimensão social), os movimentos

dialógicos estabelecidos com os discursos já-ditos (elos anteriores) e os pré-figurados

(os elos posteriores) e a relação existente desses aspectos com o conteúdo temático,

a forma do arranjo composicional, as marcas linguístico-enunciativas, promovemos

condições favoráveis para o processo de produção de sentidos dos enunciados.

A proposta pedagógica sugerida possibilita ao aluno perceber e compreender

alguns aspectos referentes ao funcionamento do gênero discursivo crônica, na esfera

jornalística, já analisados anteriormente, destacando o papel social assumido pelo

cronista; o papel social do leitor; o objetivo da interação; o horizonte e conteúdo

temático das crônicas; os movimentos dialógicos estabelecidos com o já-dito

(que podemos também denominar de “elos anteriores”) e com o pré-figurado (ou

“elos posteriores”); sua forma composicional e estilo (via levantamento de marcas

linguístico-enunciativas).

Mais uma vez, podemos afirmar que o enfoque teórico bakhtiniano leva-nos

a experienciar o ato de ler como uma ação de réplica ativa (ROJO, 2005), pois, no

uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

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momento em que paramos diante de um texto-enunciado e nos questionamos sobre

o que motiva o acontecimento desse enunciado (isto é, ele é uma reação-resposta a

quê, a quem; como essa reação se manifesta; em que lugar social o autor se posiciona;

o que ele diz; qual sua orientação valorativa diante do que diz), estamos exercendo

nosso poder de perguntar, sem deixar nos prender a uma resposta petrificada em si

mesma. Nesse sentido, o que nos interessa é o evento discursivo, inscrito em um dado

momento histórico e social.

Por essas razões, o desenvolvimento de posturas críticas por meio da leitura é ainda

um desafio em nossa sociedade capitalista neoliberal. Pensar a leitura nesse movimento

dialógico entre leitor e autor é, nas palavras de Geraldi (2010, p. 47),

[...] enfrentar o problema de construir, no fluxo das instabilidades, uma estabi-lidade, e confessá-la ao Outro como uma posição provisória que permite pro-por a hipótese. Eis pois esta posição: instaurar a linguagem como um processo de contínua constituição que se produz na precariedade que a temporalidade implica.

E, nessa perspectiva, há a necessidade de abertura docente em termos de garantir,

no espaço dialógico, como se imagina a sala de aula, que os alunos externem e

confrontem suas leituras e que o professor, como mediador entre sujeito e objeto

de ensino-aprendizagem, busque observar suas caminhadas interpretativas. Cabe ao

professor, inclusive, procurar recompor a caminhada discente, (GERALDI, 1991),

sobretudo, quando há insucesso de leitura – sempre levando em conta as condições

de produção e de recepção de um texto de determinado gênero, no caso, a crônica.

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uma proposta pedagógica de leitura na perspectiva dialógica

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Anotações

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A produção de textos na Educação Básica

Cláudia Valéria Doná Hila

abrindo o cenário: redaÇão ou produÇão de textoS?

A sala da oitava série está inquieta. A professora, após ter lido o texto Tribos e tribos

– cada um na sua e ter feito uma breve discussão, pede para os alunos realizarem uma

atividade de escrita presente no livro didático, inserida na seção intitulada “Produção

de textos”:

Você afirmaria que a proposta acima é uma atividade de redação ou de produção de

textos? Se pensou na primeira opção, acertou. Vamos ver o porquê, situando o cenário

histórico desses termos.

Geraldi (1993) explica que o termo redação ganhou força especialmente na déca-

da de 70 do século passado, na qual as chamadas modalidades retóricas – descrição,

narração e dissertação – são eleitas textos ideais a se escrever. Explica que o termo

redação remete àqueles textos produzidos para a escola, ou seja, não há um objetivo

concreto para se escrever o que se escreve, nem tampouco uma razão para dizer o que

se diz e, muito menos, alguém para escrever (um interlocutor), diferente do próprio

professor. Leme Brito ratifica essa ideia ao afirmar que o aluno, quando escreve uma

Após discutir com seus colegas as posições dos especialistas que foram entrevistados na reportagem “Cada um na sua” redija, individu-almente, um artigo expondo o seu ponto de vista sobre o assunto. Seu texto deverá conter uma idéia principal apresentada no parágrafo ini-cial (introdução); o desenvolvimento da idéia principal (com dois ou três parágrafos), com a apresentação de argumentos que justifiquem sua posição; um parágrafo final da conclusão, isto é, uma conseqüên-cia lógica da argumentação apresentada.

In: SANTOS, M. G. V. P. Ler, entender, criar: Língua Portuguesa: 8ª. série. São Paulo: Ática, 2006. p. 43.

4

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redação, fala “para ninguém ou, mais exatamente, não saber a quem falar” (1997,

p. 19). Lopes Rossi (2002) complementa a discussão, ressaltando que esse tipo de

ensino é inadequado e está fadado ao insucesso, porque

- artificializa as condições de produção de um texto, visto que não se escreve

um texto que é produto de uma prática social autêntica;

- descaracteriza o aluno como sujeito no uso da linguagem, fazendo que ele

reproduza o próprio discurso da escola;

- não estabelece um real interlocutor (exceto o professor) para que o texto

seja produzido e para que esse interlocutor dê sentido e motivação para se

escrever;

- não tem objetivos reais para escrever, a não ser o de cumprir um exercício

escolar;

- não obedece às etapas da escrita, fundamentais para o desenvolvimento do

aluno nessa prática, como o planejamento, a escrita propriamente dita, a re-

visão e a reescrita (que trataremos um pouco mais adiante).

A chamada redação escolar tomou espaço no cenário escolar porque até meados

dessa década a concepção de linguagem presente era a de “linguagem como ex-

pressão do pensamento.” Nessa visão, acredita-se que a expressão é construída no

interior da mente do aluno, sem quaisquer influências externas. A capacidade de o

indivíduo organizar logicamente seu pensamento depende, portanto, de sua correta

exteriorização. Por isso, se existem regras e normas gramaticais a serem seguidas

e se elas se constituem como normas do bem falar e do bem escrever, a função da

linguagem passa a ser a de representar ou refletir o pensamento humano.

Em meados da década de 70, surge uma nova concepção de linguagem como

“instrumento de comunicação”. Nessa visão, a escrita é vista como modelo a se imi-

tar, característico das influências estruturalistas da época. O foco de atenção desse

ensino é a ênfase na estrutura do texto, em detrimento do conteúdo, por isso a

indicação de números de parágrafos a serem redigidos e, por vezes, a indicação de

ideias a serem expostas.

Como efeito, a redação passa a ser um mero exercício escolar, desprovida de

sentido para o aluno e, na maioria das vezes, o “coringa”, o “tapa-buracos” da sala

de aula, quando falta um professor ou quando sobra tempo na aula; em outras

situações, é proposta como tarefa de casa, pois em sala não é possível trabalhá-la.

De qualquer maneira, é um exercício, na maioria das vezes, que o aluno não teve

preparo para fazer, que não sente vontade de fazer e que não contribui para o seu

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desenvolvimento como aluno escritor de textos.

Esse tipo de proposta, de inspiração estruturalista, foi, posteriormente, atua-

lizado com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998),

que, dentre as atividades de escrita, orientadas para a educação básica, estabelece a

atividade de decalque como uma das possíveis a serem realizadas, na qual se libera o

aluno de pensar na estrutura do texto, fazendo-o pensar sobre o conteúdo. É o caso,

por exemplo, da escrita de paródias. Por isso, não devemos pensar que exercícios

de escrita de inspiração estruturalista sejam desnecessários; o problema é ficarmos

apenas neles.

Resumindo, as características de um ensino de escrita voltado a essas duas con-

cepções são as seguintes:

LINGUAGEM COMO EXPRESSÃO DO PENSAMENTO

LINGUAGEM COMO INSTRUMENTO DE COMUNICAÇÃO

•Saber se expressar e escrever equivale a saber produzir frases e orações corretas à luz da gramática tradicional;

•O foco de atenção é a frase;•Escrever é dominar a norma-padrão

da língua, ainda que a escrita seja um amontoado de frases desconexas;

•Há maior preocupação com a estrutura do que com a significação.

•Saber escrever é saber imitar uma estrutura de texto com base em outra pré-estabelecida, notadamente aquela escrita por escritores da esfera literária;

•O foco de atenção é a estrutura do texto;

•Escrever é saber imitar um modelo-padrão.

Essas duas concepções de linguagem, voltadas ao ensino da redação e das tipo-

logias textuais (descrição, narração e dissertação), na verdade, mostraram-se insufi-

cientes para promover o desenvolvimento da escrita no aluno, exatamente porque

não são práticas sociodiscursivas de nossa sociedade, isto é, não se realizam como

formas típicas de enunciados usados nas situações reais de uso da língua. Afinal, não

nos comunicamos por frases ou por imitações de textos de escritores famosos ou,

ainda, pelas tipologias textuais. Ao contrário, comunicamo-nos por meio de uma

conversa, um e-mail, um artigo de opinião, uma carta de reclamação, um boletim

de ocorrência, uma entrevista, uma fofoca, ou seja, comunicamo-nos por meio de

gêneros discursivos.

O início do trabalho com os gêneros discursivos deu-se a partir da década de 80,

na qual a chamada “crise na escola” revelava a incapacidade de os alunos escreverem

textos com proficiência. Isso ocasionou uma ressignificação no ensino de Língua

Portuguesa, provocou o surgimento de novos campos de pesquisa, especialmente

a produção de textos na educação básica

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voltados para as chamadas práticas linguísticas: leitura, escrita e análise linguística.

Emerge, assim, uma nova concepção de linguagem, a de “linguagem como forma

de interação entre os sujeitos”, baseada, sobretudo, em uma corrente linguística

denominada de Interacionismo Social, cujo maior representante é Mikhail Bakhtin.

Ao assumirmos essa concepção de linguagem no ensino, pensando no ato da escrita,

assumimos que o aluno tem um papel ativo no momento de sua produção, utilizan-

do a linguagem para interagir concretamente com outra pessoa. E o que podemos

entender como uma atividade interativa? Antunes (2003, p. 45) explica que uma

atividade é interativa quando

[...] é realizada, conjuntamente, por duas ou mais pessoas cujas ações se interdependam na busca dos mesmos fins. Assim, numa inter-ação (‘ação entre’), o que cada um faz depende daquilo que o outro faz também: a ini-ciativa de um é regulada pelas condições do outro, e toda decisão leva em conta essas condições. Nesse sentido, a escrita é tão interativa, tão dialógica, dinâmica e negociável quanto a fala.

zzzzzzzzzAs diferenças entre tipologia e gêneros discursivos podem ser melhor

observadas no quadro abaixo:

Quadro1 - Diferenças entre tipologias e gêneros textuais (adaptado de (MAR-

CHUSCHI, 2005, p. 23)

TIPOLOGIAS TEXTUAIS GÊNEROS DO DISCURSO

1. Constructos teóricos definidos por propriedades linguísticas intrínsecas;

1. Realizações linguísticas concretas definidas por propriedades sócio-co-municativas;

TIPOLOGIAS TEXTUAIS GÊNEROS DO DISCURSO

2. Constituem-se sequências linguísti-cas ou sequências de enunciados no interior dos gêneros e não são textos empíricos;

2. Constituem textos empiricamente realizados cumprindo funções em si-tuações comunicativas;

3. Sua nomeação abrange um conjun-to limitado de categorias teóricas de-terminadas por aspectos lexicais, sin-táticos, relações lógicas, tempo verbal;

3. Sua nomeação abrange um conjun-to aberto e praticamente ilimitado de designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composi-ção e função;

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4. Designações teóricas dos tipos: narração, argumentação, descrição, injunção e exposição;

3. Sua nomeação abrange um conjun-to aberto e praticamente ilimitado de designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composi-ção e função;

5. Não há preocupação com as condi-ções de produção do texto;

5. Respeito ao contexto de produção: ter o que dizer; para quem dizer; por que dizer; ter estratégias para se dizer; utilizar-se de um portador real para se escrever;

6. Não se trabalham as fases da es-crita;

6. Faz parte de um processo que en-volve: planejamento, escrita, revisão e reescrita;

7. A leitura é uma aparente atividade prévia;

7. Inicia-se com atividades de leitura orientadas e planejadas;

8. O texto é produto para uma higie-nização.

8. A produção do aluno é um suporte para o ensino e aprendizagem.

considerações sobre as condições de produção e de circulação dos gê-

neros discursivos

Os estudos sobre a linguagem, na área da Linguística Aplicada, têm sido grandes

motivadores de propostas oficiais (PCN, PCN+, DCNEM), visando, de uma forma ou

de outra, possibilitar que a escola auxilie seus alunos a participar plena e criticamente

de práticas sociais que envolvem o uso da escrita e da oralidade.

Podemos considerar as práticas sociais como formas de organização de uma

sociedade, das atividades e das ações realizadas pelos indivíduos em grupos

organizados. Por meio dessas práticas, definem-se as atividades humanas, bem como

os papéis e os lugares sociais para aqueles que nela estão envolvidos.

A prática social “ir à escola”, por exemplo, exige diversas atividades tanto por parte

do professor quanto por parte do aluno, tais como: planejar a aula, ouvir o professor,

elaborar/realizar exercícios, discutir tópicos, prestar atenção à aula, organizar atividades

etc. Exige, também, que assumamos, nessa esfera social, o papel quer de professor,

quer de aluno (e não, por exemplo, de namorados, de patrão, de empregado). Nessas

e em outras inúmeras atividades, o homem elabora os chamados gêneros discursivos,

tais como: agenda, prova, discussão oral, resumo, debate regrado, plano de aula

etc. Dessa forma, as práticas sociais mobilizam diversas atividades de linguagem, as

quais envolvem diferentes maneiras de expressão, por meio dos gêneros do discurso,

materializados em diferentes tipos de textos, os quais implicam diferentes capacidades

de compreensão e de produção.

a produção de textos na educação básica

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Mas, por que trabalhar com gêneros do discurso em sala de aula, e não mais com

as tipologias textuais? Porque esses gêneros (a) abrem possibilidades de integração

entre as práticas de leitura, de escrita e de análise linguística, comumente estanques

nos currículos da escola básica; (b) permitem a concretização de um ideal de formação

com vistas ao exercício pleno da cidadania, já que se trata de textos de efetiva circulação

social e de diferentes esferas e práticas sociais; (c) possibilitam a concretização de uma

perspectiva enunciativa para as aulas de Língua Portuguesa, o que quer dizer uma

perspectiva que leve em conta o conhecimento situado, a linguagem efetivamente em

uso, o trabalho com textos e práticas didáticas plurais e multimodais1; (d) abrangem

tanto noções discursivas quanto noções eminentemente estruturais ou linguísticas/

enunciativas, todas elas necessárias para o letramento2 do sujeito e para a correta

compreensão do próprio gênero; (e) fornecem subsídios para (re)pensarmos novas

formas de organização curricular etc.

O professor em formação, especialmente aquele que trabalha com a linguagem,

como é o caso dos cursos de Letras e de Pedagogia, precisa ter bem claras as bases

epistemológicas que orientam o trabalho com os gêneros discursivos e com a escrita.

Caso contrário, incorrerá em práticas empíricas que não contribuem nem para o

letramento do aluno, nem para o desenvolvimento de funções psíquicas de nível

superior.

Esse objeto/instrumento pode ser compreendido à luz de diferentes aportes teóricos,

tais como: o Interacionismo Social (especialmente com Bakthin), o Interacionismo

Sociodiscursivo (ISD) e sua vertente mais didática (Bronckart, Schneuwly, Dolz, dentre

outros); a chamada Escola de Sidney (Hasan, Kress, Martin etc.) e, também, a partir

da Nova Retórica (com os trabalhos mais recentes de Charles Bazerman, Caroline

Miller etc.), dentre outros. No campo mais aplicado, as contribuições de Bakhtin e da

vertente mais didática do ISD têm sido mais utilizadas.

Para Bakhtin, os gêneros do discurso são definidos como “tipos relativamente

estáveis de enunciados” (1992, p. 279), encontrados nas mais diferentes esferas da

comunicação: do cotidiano, da mídia, da religião, do comércio, da escola etc. Afirmar

que os gêneros são relativamente estáveis significa dizer que são infinitos, pois se

vinculam à história, à cultura e, portanto, sofrem modificações: alguns gêneros são

1 Entendemos o termo “multimodalidade” como a utilização de, pelo menos, duas modalidades de linguagem ou de representação, tais como: palavras e gestos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras e animações etc. Nesse sentido, todos os gêneros orais e escritos são multi-modais.

2 O letramento pode ser entendido como o conjunto de práticas sociais que utilizam a escrita em contextos específicos de interação e com finalidades específicas (KLEIMAN, 1995).

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renovados, outros, criados pelas circunstâncias históricas, como o gênero página

pessoal na Internet. Veja um exemplo de um gênero renovado: o gênero diário

íntimo. Apesar de ainda termos (poucos) adolescentes que dele se utilizam, a

revolução produzida pela Internet fez que surgisse o blog, espécie de diário virtual

bastante utilizado nos dias atuais. O gênero, então, adaptou-se a uma nova tecnologia

e instaurou novas condições de produção e de circulação.

Os gêneros como construções sociais e históricas são maleáveis, plásticos e (re)

constituem-se ininterruptamente. Por isso, a transformação/adaptação de um gênero

como o diário pode gerar um novo gênero, como o blog. Cada novo gênero possuirá

sua identidade própria, instaurando novas relações interpessoais, estabelecendo

novas conexões entre oralidade e escrita e possibilitando novos olhares para o ensino-

aprendizagem de línguas. Por isso, Bakhtin insiste que “a riqueza e a variedade dos

gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é

inesgotável” (1992, p. 279).

Três elementos compõem os gêneros do discurso na visão bakhtiniana, os quais

devem ser levados em conta em atividades prévias de leitura e de escrita antes que

o aluno produza o seu texto: (1) o conteúdo temático ou tema; (2) a estrutura

composicional e (3) o estilo.

Os temas podem ser entendidos como os conteúdos ideologicamente dizíveis de

um gênero discursivo. Por exemplo: quando pensamos no gênero “discurso político”,

quais são, normalmente, os conteúdos recorrentes? Ou, ainda, o gênero “torpedo” para

o(a) namorado(a)? E quando pensamos no gênero “notícia de jornal sensacionalista”?

Os temas, portanto, além de refletirem as esferas em que estão inseridos, apresentam

valores ideológicos desses lugares, isto é, ideias, regras e valores compartilhados pela

comunidade pertencente àquela determinada esfera, os quais evocam significados

para os gêneros pertencentes a essas esferas.

Passemos agora para segundo elemento constitutivo do gênero: a estrutura

composicional, a qual diz respeito à forma de composição compartilhada pelos

textos pertencentes a um determinado gênero, tanto em relação às estruturas textuais

quanto às discursivas e semióticas. O artigo científico, por exemplo, apresenta

estruturas textuais mais marcadas (título, resumo, abstract, introdução, referencial

teórico, metodologia, análise e discussão dos resultados) que outros gêneros, como a

crônica da esfera da literatura. O anúncio publicitário, além de seus elementos textuais

(slogan, provas, peroração), também traz elementos não verbais (fotos, desenhos,

ilustrações), que fazem parte de sua estrutura composicional, sendo imprescindíveis

para a produção de sentidos do gênero. Não podem, portanto, ser isolados do

processo de compreensão e de interpretação na sala de aula. Assim também ocorre

a produção de textos na educação básica

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com outros gêneros, tais como a reportagem, as histórias em quadrinhos, a charge etc,

que apresentam estruturas composicionais próprias.

A terceira dimensão constitutiva do gênero – o estilo – refere-se às unidades linguístico-

discursivas que são mais comuns ou mais prototípicas do gênero em estudo (como as

estruturas frasais, o vocabulário, as preferências gramaticais, tais como: a utilização de

um determinado tempo verbal, uma determinada classe gramatical, além das vozes e das

modalizações).

Esses elementos constituem a base para as atividades prévias de leitura e de escrita

por parte do aluno, ou seja, para que o aluno se aproprie de determinado gênero, é

preciso que o professor desenvolva uma série de atividades anteriores (no interior de

projetos de leitura e de escrita, ou não). Desse modo, o aluno apropriar-se-á

a) do contexto de produção desse gênero que, de acordo com Lopes-Rossi (2006),

envolve o trabalho com alguns tipos de questões: Onde encontramos esse gênero?

Quem normalmente escreve? Para quem se escreve? Com qual(is) propósito(s)?

Quando e como o redator obtém as informações? Quem lê esse gênero e por que

o desenvolve?

b) da estrutura composicional do gênero (como o gênero se organiza, quais suas

sequências prototípicas);

c) das marcas do estilo: identificação de marcas formais importantes para a leitura e a

escrita do gênero, tais como: palavras, aspas, sinais de pontuação, tempos verbais,

modalizadores, vozes (mecanismos linguístico-enunciativos próprios do gênero).

Portanto, uma atividade de autoria, entendida como aquela atividade de produção

na qual o aluno deve pensar sobre o tema, sobre a estrutura composicional e sobre o

estilo do gênero, normalmente está inserida no interior de projetos que possibilitem o

trabalho com os elementos acima descritos e que preparem o aluno para a apropriação

de determinado gênero.

Para tanto, será necessário, primeiramente, explorar as condições de produção desse

gênero, as quais reúnem, no quadro do ISD, conforme Nascimento e Saito (2005),

alguns elementos:a) a esfera da comunicação: o cenário ou formação social na qual o texto se inse-

re (Mídia, Literatura, Família, Igreja, Escola etc.); b) a identidade social dos interlocutores: o lugar social de onde falam os parcei-

ros da interação, isto é, o texto. Este, além de ter um emissor (a pessoa que pro-duz) e um receptor (a que recebe), também apresenta posições sociais por eles desempenhadas. Por exemplo, em uma carta ao leitor, temos uma pessoa física que a escreve, mas essa pessoa, ao escrever, pode assumir diferentes posições

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sociais, como a de um escritor, a de uma mãe, a de um cientista, a de um cida-dão etc;

c) a finalidade: objetivo ou o intuito do discurso da interação; d) a concepção do referente: o conteúdo temático, o referente de que se fala;e) o suporte material: as circunstâncias físicas em que o ato da interação se

desenrola (livro didático, out-door, jornal-online, oral ou escrito); f ) a relação interdiscursiva: o modo como se dá o diálogo entre as vozes que

circulam no texto (que vozes são essas? da dona de casa? do vendedor? do polí-tico? da criança?), que ocorrem em certas passagens do discurso (das diferentes esferas), as vozes que emergem e se confrontam no texto.

Apesar de o trabalho com o contexto de produção não dar conta de fazer o aluno

escrever com proficiência um gênero textual, pois, para isso, as capacidades discursiva

e linguístico-discursiva precisam ser também alvos de trabalho, o seu conhecimento

é o primeiro passo para que os alunos reconheçam os gêneros textuais. E, pensando

na longa tradição, no âmbito da escrita, de um ensino voltado às tipologias textuais,

o trabalho com o contexto de produção oportuniza que tanto o aluno quanto o

professor entendam que não existe significado fora da noção de contexto.

a sequência didática como forma de trabalho com a escrita

O trabalho com a escrita na educação básica obtém muito mais resultados quando

integrado aos chamados projetos de escrita, que podem ser temáticos e envolver um

único gênero ou até mais de um. Como não podemos abarcar todos eles, escolhemos

a sequência didática (doravante SD) como uma das modalidades de projetos com a

escrita que você pode desenvolver. Esse tipo de projeto, além de trabalhar com todas

as práticas linguísticas, também envolve todas as fases da escrita: planejamento, revi-

são e reescrita, por isso, a nosso ver, é um dos mais completos.

A SD originariamente foi introduzida pelos pesquisadores do grupo de Genebra3

e foi definida como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira

3 O Grupo de Genebra é formado por pesquisadores da “Escola de Genebra”, dentre os quais se destacam: Jean-Paul Bronckart, Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz, A. Pasquier, Sylvie Haller, pertencentes ao Departamento de Didáticas de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra (UNIGE). Os seus integrantes têm se dedicado a pesquisas tanto sobre a constituição do Interacionismo Sócio-Discursivo (ISD) quanto sobre sua aplicação no ensino de francês como língua materna e, mais, recentemente, também, com questões relativas ao trabalho. Os resultados dessas pesquisas, em especial aqueles envolvidos com questões mais didáticas, levou à elaboração e aplicação de sequências didáticas, as quais visavam, principalmente, contribuir para minimizar os graves problemas de produção escrita dos alunos francófonos.

a produção de textos na educação básica

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sistemática, em torno de um gênero textual” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY,

2004, p. 97). O objetivo de uma SD é levar os alunos a se apropriarem (e também

a reconstruírem) uma prática de linguagem sócio-historicamente construída. Essa

reconstrução de uma prática social se dá por meio de uma prática de linguagem

materializada nos gêneros textuais.

Para a elaboração de uma SD, Dolz , Pasquier e Bronckart (1993) aconselham

a levar em conta que (a) o objeto de trabalho escolar é a atividade de linguagem

situada, relacionada a um determinado gênero, em uma situação de comunicação

específica, por isso a escolha do gênero a ser alvo da escrita deve respeitar a sala,

o interesse dos alunos, as suas reais capacidades de conseguir proficiência naquele

gênero; (b) o trabalho de desenvolvimento na sala de aula de uma SD deve ocorrer

no interior de um projeto de sala, o que não significa, portanto, o ensino do gênero

pelo gênero, mas o gênero como um instrumento no interior de um projeto situado

na escola/sala, por exemplo, produzir uma carta de reclamação ao diretor da escola,

reivindicando melhorias na escola, no bairro ou, ainda, produzir um artigo de opinião

para ser publicado no jornal local/escola, envolvendo tema de interesse dos alunos e

da população local; (c) o ponto de partida da SD deve ser um diagnóstico realizado

com a turma, no intuito de observar quais capacidades dominam ou não em relação

àquela prática social; (d) as diferentes oficinas e exercícios devem levar em conta as

capacidades de linguagem relacionadas ao estudo do gênero por meio de atividades

diversificadas e abordando-se o gênero em diferentes aspectos (contexto de produção,

leitura, elementos da arquitetura interna, mecanismos de textualização, plano global,

unidades linguísticas significativas etc.).

As capacidades de linguagem referem-se às diferentes formas de se usar a

linguagem, divididas em três grupos específicos: (1) capacidades de ação, relativas

ao reconhecimento do contexto de produção do gênero; (2) capacidades discursivas,

relativas à mobilização de certos modelos discursivos, como o reconhecimento da

arquitetura textual do gênero; e (3) capacidades linguístico-discursivas, relacionadas

à operação de mecanismos de textualização, ao reconhecimento e ao valor das vozes e

das modalizações para o efeito de sentidos do gênero.

O primeiro passo para a elaboração de uma SD é a feitura do modelo didático do

gênero (cf. DOLZ; SCHNEUWLY, 1998 ). Esse modelo é, na verdade, uma espécie de

estudo e de pesquisa sobre o gênero, o qual apontará os elementos ensináveis que po-

derão ser objetos de ensino-aprendizagem em uma situação de comunicação específica.

O professor, então, precisa (a) buscar um conjunto de textos prototípicos do gênero

(para identificar suas características linguísticas, textuais e discursivas, bem como quais

delas são ensináveis para a sua turma em específico); (b) conhecer o estado de arte

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sobre estudos já desenvolvidos sobre aquele determinado gênero (por isso, aconselha-

se que o professor iniciante escolha, dentro de um projeto de sala, um gênero que já te-

nha sido objeto de investigação, a fim de se prover de material adequado de pesquisa);

(c) levantar as características prototípicas do gênero em questão (em relação aos seus

temas, a sua estrutura composicional e ao estilo); (d) pensar quais dessas características

podem ser “ensináveis” à série em questão e de que forma.

A realização desse modelo mobiliza, obviamente, estudo e dedicação do professor

formador e do professor em formação. Do formador porque também precisa conhecer

o gênero que será objeto de transposição para poder orientar seus alunos, e dos alu-

nos em formação que, nesse momento, colocam-se como pesquisadores para, poste-

riormente, elaborarem seu material didático. Afinal, só podemos ensinar aquilo de que

efetivamente nos apropriamos. Por exemplo, preciso ensinar meu aluno a redigir um

artigo de opinião e tenho pouco conhecimento a esse respeito. Esse será justamente

o modelo a me auxiliar nesse processo. Por isso reiteramos que esse procedimento

pode promover o desenvolvimento psíquico e cognitivo de ambos, visto que, obriga-

toriamente, o modelo didático invoca a apropriação de conhecimentos científicos, mas

requer também o envolvimento e a motivação de todos os envolvidos (formadores e

alunos) para o êxito do procedimento.

A elaboração desse modelo deve seguir os três níveis de análise textual, os quais

correspondem às capacidades linguísticas, conforme exemplifica o Quadro 2, adaptado

de Lousada (2006):

Quadro 2 - Níveis de análise de um texto e capacidades de linguagem.

NÍVEIS DE ANÁLISE ASPECTOS A SEREM ANALISADOS (inicialmente pelo professor e em seguida transformados em exercícios para os alunos)

O contexto de produção/capacidade de ação

- Trata-se de que gênero textual?

- Onde podemos encontrá-lo?

- Quem o escreveu/falou? O emissor e seu papel social.

- A quem? O interlocutor e seu papel social.

- Quando? O momento psíquico e subjetivo.

- Onde? Lugar psíquico institucional.

- Para quê? Objetivo de interação.

a produção de textos na educação básica

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A organização textual/capacidade discursiva:

Tipos de sequência dominantes

- Plano global do texto – escolhas e ordem do conteúdo.

- Sequência narrativa, descritiva, dialogada, descritiva de ações, explicativa, argumentativa.

Os aspectos-linguístico-discursivos/capacidade linguístico-discursiva

- Coesão textual

- Conexão textual

- Modalização

- Voz

Resumidamente, com base em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), Nascimento

(2007) e Hila (2009), a elaboração do modelo didático pode ser guiada por alguns

passos, como explica o Quadro 3:

Quadro 03 - Passos para elaboração de um modelo didático.

a. Buscar um conjunto de textos prototípicos/autênticos e variados do gênero.

b. Conhecer o estado de arte sobre o gêneros por meio de pesquisas em obras de referência.

c. Levantar as características do contexto de produção do gênero, incluindo sua definição.

d. Identificar o plano textual do texto.

e. Analisar os mecanismos de textualização (conexão, coesão nominal e coesão verbal).

f. Analisar os mecanismos linguístico-enunciativos e a modalização.

Findado o modelo, é hora de elaborarmos a sequência didática. O esquema a seguir,

apresentado por Nascimento (2007), com base em Dolz; Noverraz; Schneuwly (2004,

p. 98), ilustra quatro procedimentos nucleares para a elaboração de uma sequência

didática:

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Quadro 4 - Etapas de uma SD (NASCIMENTO, 2007).

ESQUEMA DE UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

1) Apresentação da situação

1) O aluno deve ser exposto ao projeto coletivo de produção de um gênero (qual é o gênero, a quem se dirige a produção, qual o suporte material da produção, quem são os participantes etc.).2) O aluno tem de conhecer o conteúdo com que vai trabalhar e saber da sua importância.3) Reconhecimento do gênero textual e da sensibilização em re-lação a ele.

2) A primeira pro-dução

1) A produção inicial pode ser simplificada, somente dirigida à tur-ma ou a um destinatário fictício, com o objetivo de realizar um diag-nóstico com a sala a respeito das capacidades que já dominam em relação ao gênero.2) Avaliação formativa: define os pontos em que o professor pre-cisa intervir melhor; permite ao professor adaptar os módulos de maneira mais precisa às capacidades reais dos alunos; determina o percurso que o aluno tem ainda a percorrer.

3.ª) As oficinas

Trata-se de: 1) trabalhar problemas de níveis diferentes:a) representação da situação de comunicação (contexto de

produção);b) pesquisas para aprofundamento do tema;c) atividades sobre a construção composicional do gênero;d) atividades sobre o estilo do gênero;e) atividades sobre os títulos.

2) Variar as atividades e os exercícios:atividades de observação e de análise de textos;

a) tarefas simplificadas de produção de textos;b) análise linguística (ortografia, pontuação, organização sin-

tática, vocabulário...); c) atividades de leitura; d) atividades orais.

3) Capitalizar as aquisições: lista de constatações.

4.ª) A produção final

1) Possibilita ao aluno pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados separadamente nos módulos.2) Permite ao professor realizar uma avaliação somativa (da pri-meira produção e da produção final).3) Completa a interação, enviando os textos aos destinatários. 4) Precisa ser divulgada para se aproximar de sua real circulação.

a produção de textos na educação básica

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A apresentação da situação inicial tem a finalidade de expor aos alunos um problema

de comunicação real da escola/bairro/turma, o qual deverá ser resolvido por meio da

produção de um texto oral ou escrito. Esse é o momento em que a turma constrói uma

representação da situação de comunicação do gênero e da atividade de linguagem

a ser executada. Essa primeira fase deve fornecer aos alunos todas as informações

necessárias para que eles conheçam o projeto comunicativo e se sintam motivados

para a aprendizagem do gênero a ele relacionada. Em outras palavras, é o momento de

apresentar o projeto à sala de uma forma que seja atraente e interessante para a turma.

A produção inicial ou o levantamento dos conhecimentos dos alunos sobre

determinado gênero tem como objetivo identificar quais as capacidades de linguagem

eles dominam em relação aos gêneros, para, posteriormente, serem objetos dos

exercícios da sequência didática.

As oficinas ou módulos têm justamente a função de “trabalhar com os problemas

que apareceram na primeira produção e dar aos alunos instrumentos necessários para

superá-los” (DOLZ, NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 103). O número de oficinas de

uma sequência é então variável, ou seja, dependerá tanto dos problemas encontrados

quanto dos objetivos propostos na SD. No caso do estágio supervisionado, há de

considerarmos, ainda, as coerções de tempo (número de aulas) para sua realização,

por isso adaptações serão sempre necessárias.

As atividades ou tarefas que compõem cada oficina devem ser variadas, tanto

no sentido de sua apresentação (tarefas explícitas, implícitas, abertas, fechadas,

lacunadas) quanto da execução pelo aluno, a fim de se variar os processos mentais

por ele utilizados (HILA, 2009). Essas tarefas estão intimamente ligadas aos eixos da

leitura, da escrita e da análise linguística ou do uso da língua.

A produção final é o momento no qual o professor observa se houve realmente o

desenvolvimento nas capacidades dos alunos (contextuais, discursivas e linguística-

discursivas) a partir das atividades desenvolvidas nas oficinas. Essa produção pode

ser individual ou mesmo coletiva (de grupos). Essa etapa finaliza a interlocução que

é feita no início da produção do gênero (quando um problema de comunicação real

havia sido proposto para seus alunos) e permite ao professor realizar uma avaliação

formativa:

A avaliação formativa pode ser entendida como uma apreciação qualitativa so-bre dados relevantes coletados nas produções iniciais de estudantes [...], dados esses que devem auxiliar o docente na tomada de decisões. A verificação dos resultados de aprendizagem, depois da SD, será analisada por meio de uma lista de constatações, que tem o intuito de mapear as dificuldades dos estudantes para solucioná-las. Assim sendo, a avaliação terá o compromisso de aprendi-zagem [...] servirá como diálogo/interação entre professor/estudante (NASCI-MENTO, 2007, p. 38).

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A proposta para a produção final deve vir em forma de um comando que traga as

condições de produção daquele gênero:

ORGANIZAÇÃO DO COMANDO DE ESCRITA PARA ATIVIDADES DE AUTORIA

O TEMA: O que dizer?

A FINALIDADE: Para que dizer?

O INTERLOCUTOR: Para quem dizer?

O GÊNERO: Como dizer?

O MEIO DE CIRCULAÇÃO: Por onde dizer?

Veja um exemplo proposto por uma estagiária de Letras para uma 5.ª série:

Nesse bimestre trabalhamos em nosso projeto as cartas, em especial as cartas de solicitação. Após as discussões e as leituras que realizamos, sua tarefa ago-ra é redigir uma carta de solicitação (GÊNERO) sobre a questão da maioridade penal (TEMA), defendendo sua posição (FINALIDADE) para ser enviada (FINA-LIDADE E MEIO DE CIRCULAÇÃO) ao deputado Régis de Azevedo (INTERLO-CUTOR) autor do projeto de lei.

Ao elaborar a primeira versão do texto, é aconselhável que os alunos tenham em

sala uma lista contendo os principais conteúdos apreendidos durante as oficinas,

referentes ao contexto de produção do gênero, a sua estrutura composicional e as

suas marcas de estilo. Essa lista funciona como uma espécie de resumo dos princi-

pais aspectos estudados sobre o gênero, que pode estar, inclusive, escrita em papel

manilha, em letras grandes e legíveis, na própria sala.

Feita a primeira versão, chega-se às fases da revisão e da reescrita do texto. Essas

fases devem ser adotadas como procedimentos corriqueiros em sala de aula, sem os

quais dificilmente um aluno avança e se desenvolve em termos de escrita. Os PCNs

de Língua Portuguesa do 1.º e 2.º ciclos esclarecem que

o objetivo é que os alunos tenham uma atitude crítica em relação à sua pró-pria produção de textos, o conteúdo a ser ensinado deverá ter procedimentos de revisão [...]. A seleção deste tipo de conteúdo já traz, em si, um compo-nente didático, pois ensinar a revisar é completamente diferente de ensinar a passar a limpo um texto corrigido pelo professor. No entanto, mesmo as-sim, ensinar a revisar é algo que depende de se saber articular o necessário (em função do que se pretende) e o possível (em função do que os alunos realmente conseguem aprender num dado momento). Considerar o conhe-cimento prévio do aluno é um princípio didático para todo professor que pretende ensinar procedimentos de revisão quando o objetivo é muito mais do que a qualidade da produção – a atitude crítica diante do próprio texto (BRASIL, 1998. p. 46).

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Fica claro, portanto, que revisar é uma atitude muito diferente daquela de “higie-

nizar”, que, por muito tempo, acompanhou as atividades de avaliação do professor:

A reescrita transformava-se numa espécie de ‘operação de limpeza’, em que o objetivo principal consistia em eliminar as ‘impurezas’ previstas pela pro-filaxia linguística, ou seja, os textos são analisados apenas no nível da trans-gressão ao estabelecido pelas regras de ortografia, concordância e pontuação, sem se dar a devida importância às relações de sentido emergentes na inter-locução. Como resultado, temos um texto, quando muito, ‘linguisticamente correto’, mas prejudicado na sua potencialidade de realização ( JESUS, 1997, p. 102).

Percebemos, assim, que há, normalmente, uma predileção para a higienização

de elementos apenas na superfície do texto, em especial em relação aos erros de

ortografia, pontuação e concordância, como se esses elementos tivessem suprema-

cia sobre os elementos de base semântica, em seus aspectos de coesão e coerência.

Não restam dúvidas de que a reescrita é um “espaço privilegiado de articulação

das práticas de leitura, produção e reflexão sobre a língua” (BRASIL, 1998, p. 80),

possibilitando ao aluno uma relação mais interativa com seu próprio texto, provo-

cando um diálogo entre o aluno-autor com o seu produto. Além disso, a reescrita

auxilia o aluno a enxergar, por meio da mediação do professor, o que antes ele não

conseguia ver sozinho.

Sercundes (1997) também aponta uma outra razão da importância das ativida-

des de reescrita. Para a autora, se o aluno parte de seu próprio texto e emite sobre

ele um olhar mais analítico e avaliativo, ele terá condições de realmente perceber

que escrever é trabalho, mas não um trabalho associado à visão negativa do termo,

como algo enfadonho. Ele será capaz de compreender que se trata de uma atividade

pautada na perspectiva freinetiana, que consiste em observar o trabalho como uma

atividade natural do homem, que o ajudará a se tornar um usuário mais efetivo de

sua própria língua.

Interessante, também, é a posição de Jolibert (1994), ao reforçar que as ativida-

des de reescrita, quando mal-entendidas ou mal-planejadas, feitas de forma repeti-

tiva e entediante, tendem a afastar o aluno de sua própria língua. Da mesma forma

que Freinet (1974), o autor observa que o trabalho com a reescrita deve ser visto

como uma etapa significativa, que permite ao aluno avançar, gradativamente, em sua

própria aprendizagem. Reforça, ainda, que reescrita não é cópia do texto.

Assim, o professor, ao término de uma atividade de produção, poderá trabalhar

a reescrita de diversas formas, utilizando o texto todo, partes do texto, parágrafos

e até unidades menores, como a frase. O importante é que, em cada momento,

priorizem-se aspectos para além dos problemas formais (que devem ser objetos da

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reescrita, mas que não devem ser apenas eles). O ideal é selecionar, para aquelas

produções, quais aspectos chamaram mais a atenção e trabalhá-los, alternando for-

ma e conteúdo. No caso da forma, por exemplo, que é bastante significativa nessa

fase, ou o professor se debruça sobre ela, ou sobre a pontuação, ou sobre os as-

pectos de coesão. Quanto ao conteúdo, aspectos como a progressão das ideias e a

adequação do conteúdo ao gênero proposto também podem e devem ser objetos

de uma reflexão.

Para as crianças muito pequenas, a atitude da revisão é uma tarefa que os autores

consideram difícil, exatamente porque exige o distanciamento do próprio texto; daí,

procedimentos como utilizar textos alheios para serem analisados coletivamente são

interessantes. Nesse caso, é preponderante o papel do professor, que deverá colocar

questões a serem avaliadas para o problema que deseja focar. É o professor, nesse

caso, o primeiro modelo de revisor.

Há, também, algumas formas de auxiliar o aluno a elaborar a revisão a partir de

si próprio, por meio de fichas de autoavaliação, nas quais o professor estabelece

aspectos que pressupõe que as crianças já internalizaram e pede que observem no

texto aspectos da forma e do conteúdo. Os próprios colegas também podem cum-

prir esse papel, com o texto do outro.

As fichas são interessantes, quando inseridas, sobretudo, em projetos. Ao elabo-

rar uma ficha, o professor deve incluir como itens aqueles que efetivamente foram

trabalhados durante a SD, envolvendo os aspectos temáticos, composicionais e de

estilo. A título de exemplo, veja a ficha abaixo, elaborada por uma professora da 5.ª

série, por ocasião do desenvolvimento de um projeto envolvendo a carta do leitor:

FICHA DE AUTOAVALIAÇÃO

Pontos para você observar ok Preciso(a) mudar

A linguagem utilizada na minha carta está de acordo com os leitores da Revista Atre-vida?

Deixei claro para os leitores o objetivo da minha carta? (tópico trabalhado no capítu-lo 3)

Usei apenas opiniões ou desenvolvi argu-mentos? (tópico trabalhado no capítulo 4)

Consegui argumentar em relação à minha opinião sobre a matéria lida, isto é, por meio de fatos, exemplos, comparações?

a produção de textos na educação básica

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Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

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Usei uma pontuação adequada no pará-grafo, respeitando as pausas e evitando muitas vírgulas?

Marquei minha opinião por meio de ex-pressões indicativas do meu ponto de vis-ta? (tópico trabalhado no capítulo 5)

Usei expressões específicas para finaliza-ção dos meus argumentos?

Caso você não queira utilizar essa ficha no processo de avaliação do aluno, você

pode elaborar uma ficha de constatação (GONÇALVES, 2009) a respeito dos ele-

mentos alcançados ou não por cada aluno, por exemplo: em relação ao contexto de

produção, o aluno X ainda não conseguiu perceber o que diferencia um artigo de

opinião de um ensaio; o aluno Y, por sua vez, conseguiu reconhecer... e assim por

diante com cada aspecto que foi objeto de ensino. Depois estabelece as anotações

para o aluno poder elaborar sua reescrita.

Por tudo isso, é preciso que o aluno tenha um trabalho continuado com o pro-

cesso da reescrita, que se acostume a ele como uma das fases da escrita, e não como

um castigo. Fiad e Marynk-Sabinson (1991, p. 55) ratificam essa afirmação, pois, ao

encararem a reescritura como uma atividade inerente à própria escritura do texto,

os alunos passam a se preocupar mais com a forma como os leitores verão os seus

textos. Passarão a considerar o texto escrito “como resultado de um trabalho cons-

ciente, deliberado, planejado e repensado.”

o artigo de opinião: uma proposta de didatização do gênero com vistas

à escrita

A seguir, apresentamos o planejamento de uma sequência didática baseada no

gênero textual artigo de opinião, que pode ser aplicada (de forma geral) para uma 8.ª

série ou adaptada para outras, dependendo do nível de desenvolvimento dos alunos.

Elaboramos uma SD mais longa para você perceber as possibilidades de trabalho, mas

que poderia ser realizada com menos oficinas. Não detalharemos os exercícios das

oficinas, mas apresentaremos um plano de aula relativo a uma delas. Ao analisar o

resultado de nosso trabalho, você perceberá o que significa trabalhar com gêneros

textuais de acordo com a proposta teórica do Interacionismo Sociodiscursivo, tendo

em vista contextos da educação fundamental.

Outro ponto importante a esclarecer é quanto ao número de aulas que de você

precisará para desenvolver uma SD. Elas apresentam duração variável, podendo levar

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duas semanas ou um bimestre, dependendo dos objetivos visados; o importante é

que você mantenha seus alunos articulados em torno do projeto de classe que a SD

delineia. No caso de estágios de docência, você escolherá os problemas mais significa-

tivos dos alunos para serem trabalhados nas oficinas, os quais são fundamentais para a

produção escrita. Você não terá tempo para trabalhar todos os problemas detectados

no diagnóstico, portanto, para elaborar sua SD, você terá de se adaptar à carga-horária

prevista. Vamos então ao nosso exemplo.

SeQuÊncia didática artigo de opinião

1.º E 2.º PASSOS: APRESENTAÇÃO DO PROJETO À SALA E PRODUÇÃO INICIAL

Objetivos:

articular os alunos em um projeto de comunicação coletivo;

envolver os alunos em torno de um objetivo comum: a elaboração da página

OPINIÃO do jornal escolar;

verificar a Zona de Desenvolvimento Proximal dos alunos a respeito de uma

produção inicial de texto que talvez ainda não tenha passado por um processo

de ensino deliberado.

Atividade: Produção inicial. Seus alunos deverão produzir um texto de opi-

nião que fará parte da rubrica Opinião do jornal de sua escola. Não é preciso dar

muitas explicações sobre o gênero; você apenas deseja saber o que eles já sabem sobre

esse gênero para ajudá-los a avançar. Para tanto, leve um assunto polêmico de interes-

se da turma. Você pode ir à escola, antes do estágio de docência, e fazer essa aplicação,

ou solicitar que o professor da sala faça por você.

3.º PASSO: AS OFICINAS

Oficina 1: Reconhecimento dos gêneros textuais de opinião

Objetivo: Discutir os elementos principais do contexto de produção

Oficina 2: O contexto de produção do artigo de opinião

Objetivos:

conhecer o plano textual de um artigo de opinião;

identificar a opinião do argumento que lhe dá sustentação.

Oficina 3: Reconhecendo as fases do artigo de opinião

a produção de textos na educação básica

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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Objetivos:

reconhecer as “fases” da sequência argumentativa que predominam nos textos

de opinião.

desenvolver capacidades de fazer inferências para compreender informações

implícitas no texto.

Oficina 4:Identificando questões polêmicas

Objetivo:

resgatar questões polêmicas que circulam na comunidade.

Oficina 5: Ampliando o conhecimento de mundo sobre o tema que deu ori-

gem à questão polêmica

Objetivo:

buscar informações e ampliar o conhecimento prévio a respeito de um dos

temas da oficina anterior.

Oficina 6: Análise linguística do artigo de opinião

Objetivos:

conhecer e usar palavras e expressões que conectam, articulam o artigo de

opinião

produzir levantamento de palavras e de expressões usadas nos textos de

opinião expostos no mural;

reconhecer os sinais de pontuação empregados nos textos de opinião.

reconhecer a variante linguística em uso nos textos de opinião.

Oficina 7: Os marcadores de conexão no artigo de opinião

Objetivo:

reconhecer e usar elementos de conexão nos textos de opinião.

4. º PASSO: A PRODUÇÃO FINAL

Oficina 08: A produção individual do artigo de opinião

Objetivos:

produzir um texto individual que passará por diferentes refacções até chegar

ao destinatário final;

elaborar um cartaz contendo as características do gênero que foram objeto de

ensino-aprendizagem nas diferentes oficinas da SD.

A fim de ilustrar como ficaria o plano de aula para uma das oficinas, escolhe-

mos a Oficina 3.

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PLANO DE AULA

ESCOLA: XXXXXX

PROFESSOR(A): C.M.P.

SÉRIE: 2.ª TURMA: B TURNO: Matutino

ENSINO: ( X ) Médio ( ) Fundamental

DATA: ___/___/___________ HORÁRIO: 8h-9h30min

DURAÇÃO DA AULA: 2 h/aConteúdo: Fases do artigo de opinião

Objetivo Geral: compreender os movimentos organizadores da estrutura composicional do artigo de opinião.

Objetivos específicos: (a) analisar os tipos de sequências predominantes do artigo de opinião: (b) identificar as sequências prototípicas do artigo de opinião

Procedimentos de ensino Recursos Procedimentos de ava-liação

(a) Motivar a sala para a discussão inicial do tema “Proposta do referendo”, usando a dinâmi-ca da batata-quente, na qual uma caixa circulará entre os alunos e, no momento em que a música parar, eles tirarão questões sobre o referendo, no intuito de sondar o conhecimento prévio sobre o assunto; (b) fazer uma leitura compartilhada do artigo de opinião de Stephen Kanitz, intitulado “A questão do referendo” (Veja, 18/01/2006); (c) responder em duplas às seguintes questões: 1. Qual o fato noticiado que gerou a escrita desse artigo? 2. Qual é a questão polêmica que está em discussão? 3. Qual é a posição do autor? 4. Quais são os argumentos que sustentam a tese do autor? 5. Quais são os contra-argumentos trazidos pelo autor? d) preencher com os alunos em um quadro feito de papel manilha (a ser fixa-do no quadro-negro) os movimentos argumenta-tivos presentes no texto, por meio da localização dos parágrafos, a saber: - a tomada de posição do articulista; - a sustentação da tese; - os con-tra-argumentos - a negociação de posições; 5. produzir no caderno, como atividade para casa, um pequeno diário de aprendizagem, com o se-guinte comando: Vamos fixar o que aprendemos hoje sobre o artigo de opinião? No seu caderno redija um pequeno texto contendo: - quais temas o artigo de opinião trata; - quais são as catego-rias presentes no artigo de opinião ou sua forma de construção; - qual a diferença entre o artigo de opinião e a dissertação de vestibular.

Xérox, quadro-de-giz, quadro de pa-pel manilha.

Leitura, discussão oral e escrita.

a produção de textos na educação básica

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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Bibliografia de apoio

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conSideraÇÕeS FinaiS

O ensino da produção textual com base nos gêneros discursivos por intermédio de

sequências didáticas é uma das possibilidades à disposição do professor para trabalhar

com a escrita de forma a desenvolver capacidades de linguagem tanto nos alunos

como em si próprio. Esse ensino não pode ser mais visto como um “apêndice” das

aulas de Língua Portuguesa; ao contrário, trata-se de uma atividade que demanda do

professor o estudo consciente e deliberado a respeito do gênero que ele quer ensinar

aos seus alunos.

No caso específico das sequência didática, seu uso permite que o conhecimento seja

permanentemente (co)construído no percurso, de forma dialógica e contextualizada

às necessidades de uma escola e de seus alunos, o que, sem dúvida, fez emergir, nesse

processo interativo, enunciados concretos que, conforme Voloshinov e Bakthin (1976,

p. 5), “sempre une os participantes da situação comum como co-participantes que

conhecem, entendem e avaliam a situação de maneira igual”.

Referências

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BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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NASCIMENTO, E. L. (Org.). Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de

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VOLOSHINOV,V.N.; BAKHTIN, M. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética

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Freudismo. New York: Academic Press, 1976. (Circulação para uso didático).

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77

Ensino de Língua Portuguesa: análise

linguística

Sandra Regina Cecilio

introduÇão

Neste capítulo teceremos comentários a respeito da análise linguística no ensino

de língua portuguesa. Nosso objetivo é contextualizar o ensino da língua materna,

trazendo para o debate os estudos sobre análise linguística, embasados em autores

que pesquisam sobre o tema. Também apresentaremos, após a fundamentação teórica,

uma proposta de trabalho pedagógico que aborde a análise linguística, de modo

contextualizado com as atividades de leitura. Não temos o intuito de indicar “receitas”,

mas a intenção de promover um diálogo com vocês, professores em formação, acerca

do ensino de língua materna nas escolas de educação básica no que tange ao estudo

da análise linguística.

O ensino de língua portuguesa tem sido, nas últimas décadas, centro de discussão

sobre a necessidade de se melhorar a qualidade do ensino. O eixo de tal discussão é

centrado no domínio da leitura e da escrita pelos alunos. Na abordagem tradicional,

priorizava-se o ensino da gramática, trabalhando-se em sala de aula com os estudos

da metalinguagem, e não com a linguagem. A questão crucial não é ensinar ou não

a gramática, mas para quê e como ensiná-la. Na prática pedagógica “tradicional”, o

ensino de língua é voltado para um conjunto de prescrições sintáticas consideradas

“corretas”, para a imposição de pronúncias artificiais que não correspondem às

variedades linguísticas reais e para a cobrança sobre o conhecimento da nomenclatura.

Em outras palavras, ensinar português significa, nesse contexto, ensinar norma

gramatical, com ênfase na linguagem escrita. Nesse sentido, a premissa hipotética é

a de que quem conhece pormenorizadamente a prescrição é capaz de fazer bom uso

dos recursos da língua e aqueles que desconhecem a norma não são usuários eficazes.

Assim, muitos, inclusive professores, acreditam que o ensino de língua portuguesa

deva ser pautado no trabalho com a gramática, considerando como válida somente

a norma padrão. No entanto, o método tradicional parece não ter sido eficaz, pois

5

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Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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se ensinam a mesma nomenclatura, conceitos e normas nos ensinos fundamental e

médio e, talvez, até no nível superior, e os alunos saem da escola alegando que não

sabem português, pelo fato de esta ser uma língua “difícil”.

Já parece consenso, ao menos na academia e nas propostas oficiais sobre ensino, que

os estudos gramaticais teórico-normativos descontextualizados são considerados trabalho

improdutivo. Isso porque, nessa perspectiva, consideram que o estudo de língua materna

se caracteriza como uma teoria fragmentada, repleta de regras e de exceções e, sob essa

visão, o ensino fica voltado para a metalinguagem, com definições, conceitos, categoriza-

ções e análises, quase sempre, descontextualizadas. É um ensino de reconhecimento de

normas, classificações e estruturas que não propicia a reflexão e nem garante o conheci-

mento e a ampliação do horizonte discursivo dos alunos acerca das práticas de linguagem.

Essa sistematização da língua é subjacente às concepções de linguagem como expres-

são do pensamento e instrumento de comunicação. Essas concepções se desenvolveram,

respectivamente, conforme Travaglia (1996), com os estudos tradicionais da língua desde

a Antiguidade greco-latina e com o Estruturalismo (Saussure) e o Gerativismo (Chomsky),

para os quais a língua era um sistema linguístico homogêneo, formal e abstrato. Em uma

perspectiva formalista, ambos limitaram seus estudos ao funcionamento interno da língua,

separando-a do homem no seu contexto social.

A respeito das discussões sobre o ensino da gramática normativa nos contextos esco-

lares, Mendonça (2001) salienta que, para muitos, gramática é sinônimo de língua portu-

guesa. Nesse enfoque, a visão prescritiva da língua e a ideia de poder delegado à variante

de prestígio é emanada pela sociedade e, consequentemente, pela escola. Tal associação é

decorrente da longa tradição de ensino calcada na norma culta, valorizada pela sociedade

do discurso (FOUCAULT, 1996). Em estudo sobre o assunto, Britto (1997) salienta a forte

influência dos formadores de opinião – em especial a mídia, o vestibular e o material didá-

tico – no ensino da gramática e da língua nas escolas brasileiras. Essas instâncias de poder

acabam sustentando e reproduzindo concepções equivocadas de língua e de gramática na

escola e na sociedade, ignorando os conhecimentos produzidos pela Linguística.

Mendonça (2001) concebe essa visão dos formadores de opinião como uma visão

estreita de língua e como políticas de fechamento por agirem contra a heterogenei-

dade do discurso. Nessa perspectiva, as políticas de fechamento surgem quando os

sujeitos não são levados a refletir sobre a linguagem e nem encontram espaços, princi-

palmente no âmbito escolar, para o surgimento de conflitos ideológicos, de modo que

profiram suas contrapalavras.

Como a sociedade do discurso privilegia o padrão culto da língua, a escola muitas

vezes também o faz na realização de um trabalho gramatical teórico-prescritivo, silen-

ciando sentidos nos processos de leitura, na estereotipação de gêneros discursivos e

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na construção da imagem de estabilidade da norma culta escrita, desprezando, assim,

as variedades linguísticas.

Entretanto, os estudos da linguagem têm mostrado que o valor social das

variedades linguísticas não é o mesmo e que o uso de diferentes variedades provoca

efeitos diversos sobre interlocutores, como cumplicidade, admiração ou exclusão. Isso

acontece porque nos modos de falar estão embutidas as marcas do lugar em que se

fala, do tempo, das características sociais do falante e das particularidades da situação

comunicativa.

Diante do exposto, o ensino gramatical desarticulado dos usos não se justifica e

não é viável a escola se concentrar em apenas um objeto de ensino parcial – a norma

padrão – cuja gramática dita regras, fazendo julgamentos de valor e indicando o “certo

e o errado”. Desse modo, o estudo da gramática não deve se restringir à variante

padrão, que corresponde à variedade linguística de prestígio. Entendemos que essa

é mais uma variedade, mesmo sabendo que cabe à escola ensiná-la, já que reflete

poder e autoridade; é vista como sinônimo de ascensão social e é norma vigente nos

documentos escritos oficiais. Porém, se o ensino for voltado somente para a gramática

normativa, poderá ficar arraigado ao conservadorismo e, certamente, não fará muito

sentido para aqueles que se encontram na condição de aprendizes.

A gramática, portanto, não deveria ser trabalhada pedagogicamente isolada

das práticas de linguagem, indo, da metalinguagem para a língua por meio de

exemplificação, exercícios de reconhecimento e memorização de terminologias. O que

se pretende é que o aluno cresça não só como usuário, mas também como monitor

da sua própria atividade linguística. Desse modo, se o objetivo é fazer que os alunos

usem os conhecimentos adquiridos por meio da prática de reflexão sobre a língua para

melhorar a capacidade de compreensão e de expressão, nas situações de comunicação

escrita e oral, é preciso que se organize o trabalho educativo nessa perspectiva.

Ressalta-se, assim, a importância de a escola não conferir exclusividade à variante

padrão, consolidando o uso de uma variedade de prestígio, esquecendo-se das outras,

pois ensinar apenas a norma padrão é negar à linguagem seus usos, suas funções,

sua historicidade, sua natureza ideológica e seu caráter interativo. Nesse sentido, é

importante considerar que o sujeito constrói seu discurso adequando-o ao contexto

de produção e, sendo assim, evidencia-se que no uso da linguagem há outros fatores

envolvidos além do código. Por esse motivo, não basta somente dominar regras

gramaticais para que haja interação linguística entre os falantes. Por conseguinte,

a escola não pode deixar de considerar as condições de produção – elementos tão

importantes – nas situações de interação social.

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

80

análise Linguística

A partir das críticas aos métodos da abordagem tradicional de ensino de língua,

repensou-se o modo de ensinar a língua portuguesa nas escolas, propondo-se o ensino

não mais centrado na teoria gramatical, mas nas práticas de leitura e de produção

textual com base nas perspectivas sociais. Essa transformação, no Brasil, teve início a

partir da década de 80, do século XX, época em que surgiram várias pesquisas voltadas

para a sala de aula, discutindo-se o estabelecimento da interação social e propondo-se

o discurso e o texto como unidades de ensino. Um dos precursores dessa mudança

de postura teórica no Brasil foi o professor João Wanderley Geraldi, que pontua, com

base na perspectiva bakhtiniana, que, por meio do discurso, o aluno pode expressar

seu ponto de vista sobre o mundo e, por meio do texto, aprender a língua materna.

A perspectiva bakhtiniana à qual nos referimos no parágrafo anterior é discutida

pelo filósofo russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975). Esse autor construiu

uma discussão acerca da filosofia da linguagem que concebe a linguagem como um

constante processo de interação mediado pelo diálogo. Sendo assim, a língua existe em

função do uso que os falantes (seja na oralidade, seja pela escrita) e seus interlocutores

(quem escuta ou quem lê) fazem dela em situações de comunicação. A linguagem,

nessa concepção, passa necessariamente pelo sujeito, que é o agente das relações

sociais e o responsável pela composição e pelo estilo dos discursos. Em outras palavras,

ao vivermos em sociedade temos uma relação com o outro (o interlocutor) - tudo é

pensado em relação a ele - e assim ele tem importância fundamental que leva a uma

relação dialógica. É a partir do outro que se instaura o diálogo e se determinam as

condições de produção.

Conforme aponta Geraldi (1997), o outro é a medida, pois é para ele que se produz

o texto e o outro não se inscreve no texto no processo de produção de sentidos na

leitura, mas insere-se já na produção como condição necessária para que o texto exista. É

pensando no outro que fazemos as escolhas de linguagem, ou seja, escolhemos o modo

mais formal ou mais informal de usar a língua, escolhemos as palavras, escolhemos a

maneira de organizar o discurso, entre outros elementos

Inseridos nesse contexto, voltemos à discussão sobre o porquê de o ensino de lín-

gua portuguesa não poder se pautar apenas na gramática normativa. Mendonça (2006)

postula que vem se firmando um movimento de revisão crítica dessa prática, o que fez

emergir a proposta da prática de análise linguística, em vez das aulas de gramática. A au-

tora assinala que o termo surgiu para determinar uma nova postura de reflexão sobre o

sistema linguístico e os usos da língua, com vistas ao tratamento escolar dos fenômenos

gramaticais, textuais e discursivos. A análise linguística, assim, surge como uma alterna-

tiva complementar às práticas de leitura e de produção de texto.

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[...] a organização cumulativa ignora o objetivo de formar usuários da língua, para privilegiar a formação de analistas da língua. A escola não tem de formar gramáticos ou lingüistas descritivistas, e sim pessoas capazes de agir verbal-mente de modo autônomo, seguro e eficaz, tendo em vista os propósitos das múltiplas situações de interação em que estejam engajadas.Por isso, a AL surge como alternativa complementar às práticas de leitura e de produção de texto, dado que possibilitaria a reflexão consciente sobre fe-nômenos gramaticais e textual-discursivos que perpassam os usos lingüísticos, seja no momento de ler/escutar, de produzir textos ou de refletir sobre esses mesmos usos da língua. (MENDONÇA, 2006, p. 204, grifos da autora).

É importante destacar que a análise linguística não elimina a gramática, pois

é impossível usar a língua ou refletir sobre ela sem gramática. Também é relevante

destacar que a análise linguística não deve ser entendida como a gramática aplicada

ao texto, mas como um deslocamento da reflexão gramatical, porque seu objetivo

primeiro é a construção de conhecimento, e não o reconhecimento de estruturas. Pela

análise linguística, podemos “buscar ou perceber os recursos expressivos e processos

de argumentação que se constituem na dinâmica da atividade linguística” (BRITTO,

1997, p. 164), enquanto as gramáticas normativas, vistas como “resultado de uma certa

reflexão sobre a linguagem são insuficientes para dar conta das muitas reflexões que

podemos fazer” (GERALDI, 1997, p. 192).

Para Mendonça (2006, p. 208), o trabalho de análise linguística configura-se pela

“reflexão recorrente e organizada, voltada para a produção de sentidos e/ou a com-

preensão mais ampla dos usos e do sistema linguísticos, com o fim de contribuir para

a formação de leitores-escritores de gêneros diversos, aptos a participarem de eventos

de letramento com autonomia e eficiência”. Geraldi (1999, p. 74) explica, no artigo

Unidades básicas do ensino de Português, em nota de rodapé, que

O uso da expressão “prática de análise linguística” não se deve ao mero gosto por novas terminologias. A análise linguística inclui tanto o trabalho sobre ques-tões tradicionais da gramática quanto questões amplas a propósito do texto, entre as quais vale a pena citar: coesão e coerência internas do texto; adequação do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos expressivos utiliza-dos (metáforas, metonímias, paráfrases, citações, discursos direto e indireto, etc.); organização e inclusão de informações; etc. Essencialmente, a prática da análise linguística não poderá limitar-se à higienização do texto do aluno em seus aspectos gramaticais e ortográficos, limitando-se à “correções”. Trata-se de trabalhar com o aluno o seu texto para que ele atinja seus objetivos junto aos leitores a que se destina.

Na citação de Geraldi (1999), é dada maior relevância à prática de análise linguística

a partir do texto produzido pelo aluno. Entretanto, a dimensão dessa prática é mais

abrangente. Para o autor (1997), é no interior e a partir das atividades de leitura e de

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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produção textual que a análise linguística ocorre. Esta, praticada nas aulas, permite aos

sujeitos “retomar suas intuições sobre a linguagem, aumentá-las, torná-las conscientes

e mesmo produzir, a partir delas, conhecimentos sobre a linguagem que o aluno usa

e que outros usam” (GERALDI, 1997, p. 217). Assim, nas aulas de língua portuguesa,

o ensino levaria a pensar a língua em uso, ou seja, a maneira como é exercitada e

avaliada em sociedade.

Nesse sentido, assinalamos a relevância de uma prática pedagógica que integre

leitura, produção textual e análise linguística de modo contextualizado. Na prática de

análise linguística, evidenciamos dois momentos importantes: o processo de leitura e

o processo de produção do texto. No processo de leitura, verificamos como o produtor

do discurso mobiliza recursos linguístico-expressivos na construção dos sentidos

almejados; nesse processo, realizam-se atividades interativas de produção de sentidos,

por meio dos elementos linguísticos presentes na superfície textual e da mobilização

de um conjunto de saberes e sua reconstrução no interior do evento comunicativo.

Com a prática de análise linguística no processo de leitura, a escola pode propiciar ao

estudante a busca e a compreensão das particularidades dos gêneros/textos por meio

dos recursos agenciados pelo autor para construir efeitos de sentido desejados, de

acordo com as condições de produção.

Sobre esse encaminhamento, as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE) de Lín-

gua Portuguesa do Estado do Paraná (2008) enfatizam que a prática de análise linguís-

tica constitui um trabalho em que o aluno percebe o texto como resultado de opções

temáticas e estruturais realizadas pelo autor, tendo em vista o seu interlocutor. Nessa

perspectiva, “o texto deixa de ser pretexto para se ensinar a nomenclatura gramatical e

a sua construção passa a ser objeto de ensino” (PARANÁ, 2008, p. 61).

No processo de produção, o aluno, como sujeito de seu discurso, também agencia

recursos expressivos em função de seus conhecimentos, considerando a relação inter-

locutiva e a situação de uso para mobilizar efeitos de sentido pretendidos. Ele também

faz as escolhas lexicais, gramaticais e textuais no agenciamento dos recursos linguísti-

co-expressivos utilizados nas ações sobre a linguagem com o outro. Nesse contexto, o

ensino da gramática não se volta exclusivamente para a metalinguagem, mas torna-se

um ensino que integra leitura e produção de textos.

É importante apontar uma outra etapa do enfoque da análise linguística, que é o

processo de refacção dos textos produzidos pelos alunos. Quando o aluno escreve,

faz uso de recursos expressivos, de acordo com seu conhecimento, e o professor, pelo

texto do aluno, pode definir conteúdos de ensino.

Em suma, nas duas abordagens de ensino com o texto – processos de leitura e

de produção –, o trabalho de análise linguística é primordial, visto ser por meio das

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expressões selecionadas, do léxico, das escolhas sintáticas, enfim, dos recursos utiliza-

dos, que se constroem os efeitos de sentido pretendidos. Pelas escolhas linguísticas, é

possível também perceber a subjetividade, pois o autor reflete sua individualidade nos

enunciados (BAKHTIN, 1997), revelando-se e mostrando-se como sujeito.

Essa perspectiva de trabalho pedagógico é ancorada na concepção de linguagem

como interação entre os sujeitos. Conforme Bakhtin (1981), a realidade essencial

da linguagem é seu caráter dialógico, já que as enunciações são efetivadas entre os

falantes. Quando adotamos essa concepção de linguagem como norte para o ensino

de língua materna, a unidade básica de trabalho não está mais centrada na palavra ou

em frases isoladas, mas no texto em sua dimensão discursiva, considerando-o uma

atividade comunicativa efetiva, com suas múltiplas situações de interlocução.

as atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas

Como já mencionamos, a análise linguística ocorre no interior das práticas de leitura

e de produção de textos, uma vez que, conforme Geraldi (1997), por meio dessas

instâncias a elaboração do texto com a linguagem se faz por operações discursivas

que constroem os sentidos. Assim, a análise linguística, mediante esse pesquisador,

caracteriza-se como um debruçar-se sobre os modos de ser da linguagem, já que, por

meio dela, falamos sobre o mundo, sobre nossa relação com as coisas e também sobre

como falamos, recorrendo a atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas.

A linguagem pode ser pensada, assim como constitutiva dos sujeitos que a constroem

e a reconstroem seguidamente em cada ato enunciativo. Com base nesse pressuposto,

Geraldi (1997) postula que é no espaço da interlocução que os sujeitos e a linguagem

se constituem. Desse modo, tanto a linguagem quanto o sujeito são objetos histórico-

sociais, razão pela qual a linguagem não pode ser reduzida a um sistema formal. Pela

linguagem, os sujeitos interagem uns com os outros em sociedade, compreendem o

mundo em que vivem e nele agem.

Nesse contexto, a linguagem se caracteriza como um processo complexo e dinâmico

em uma sistematização aberta de recursos expressivos que ganham concretude na

singularidade dos acontecimentos interativos entre os sujeitos. Em outras palavras, a

linguagem se constitui pelo trabalho dos sujeitos e estes se constituem pelo trabalho

linguístico, ao participarem de processos interacionais.

Diante do estabelecimento da subjetividade como constitutiva da linguagem,

discutiremos os conceitos de atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas.

As atividades linguísticas dizem respeito à progressão do assunto em pauta nos

processos interacionais. As reflexões que se fazem nessa atividade, tanto nas escolhas

de recursos expressivos realizados pelo locutor quanto na sua compreensão pelo

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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interlocutor, não buscam interromper a progressão do assunto de que se está

tratando, mas “demandam na compreensão responsiva, um certo tipo de reflexão que

se poderia dizer ‘automática’, sem suspensão das determinações do sentido que se

pretendem construir na intercompreensão dos sujeitos” (GERALDI, 1997, p. 20). Em

outras palavras, as atividades linguísticas referem-se ao uso da língua nos processos

interlocutivos.

Nas atividades epilinguísticas, a reflexão é voltada para o uso da língua, no interior

da atividade linguística em que se realiza, tomando os próprios recursos expressivos

como seu objeto. Ou seja, a reflexão é vinculada ao próprio processo interativo, como

caminho para tomar consciência e aprimorar o controle sobre a produção linguística.

Para exemplificar, Geraldi (1997, p. 24-25) assinala que, nessas atividades, as

operações se manifestam em negociações de sentido, em hesitações, autocorreções,

reelaborações, rasuras, pausas longas, repetições, antecipações, lapsos, sempre

presentes nas atividades verbais e incidindo “ora sob aspectos estruturais da língua

(como nas reformulações e correções auto e heteroiniciadas), ora sobre aspectos mais

discursivos como o desenrolar dos processos interativos”. De acordo com Angelo e

Loregian-Penkal (2010, p. 142-143), com as atividades epilinguísticas

o aluno experimenta novos modos de construções linguisticas, avalia a eficácia ou adequação de certas expressões no uso oral ou escrito, procura descobrir a intencionalidade implícita em textos lidos ou ouvidos, reflete sobre os dife-rentes recursos que a língua oferece para a construção de diferentes efeitos de sentido. Isto pode ser evidenciado quando o aluno, diante de um texto de propaganda, por exemplo, procura questionar por que se empregam verbos no imperativo, adjetivos, pronomes de segunda pessoa; por que aparecem pre-ferencialmente períodos simples ao invés de períodos compostos; por que o autor do texto usou uma expressão humorística, metáforas ou comparações.

As atividades metalinguísticas estão relacionadas às análises voltadas para a des-

crição, por intermédio da categorização e sistematização dos elementos linguísticos,

sendo assim, atividades de conhecimento. De acordo com os Parâmetros Curricula-

res Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa (BRASIL, 1997), essas atividades não es-

tão vinculadas propriamente ao processo discursivo, mas consistem na utilização (ou

construção) de uma metalinguagem que possibilite falar sobre a língua. Para Geraldi

(1997), as atividades metalinguísticas dizem respeito a atividades de conhecimento

que analisam a linguagem com a construção de conceitos, classificações etc. Angelo e

Loregian-Penkal (2010, p. 143) apontam que temos atividades metalinguísticas quando

são explorados conceitos e classificações em exercícios, tais como: “classifique os subs-

tantivos em simples ou compostos; sublinhe os artigos definidos e circule os artigos

indefinidos; copie do texto três advérbios de tempo” etc.

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No trabalho com a língua em sala de aula, integram-se as três atividades (linguísticas,

epilinguísticas e metalinguísticas). Nessa integração, as atividades epilinguísticas

são primordiais, uma vez que, conforme Geraldi (1997), elas são condição para a

busca significativa de outras reflexões sobre a linguagem. Para o autor, as atividades

epilinguísticas devem anteceder as atividades metalinguísticas a fim de que estas

tenham significado para os estudantes.

[...] para que as atividades metalingüísticas tenham alguma significância neste processo de reflexão que toma a língua como objeto, é preciso que as atividades epilingüísticas as tenham antecedido. Se quisermos inverter a flecha do ensino, propugnando por um processo de produção do conhecimento e não de reco-nhecimento, é problemática a prática comum na escola de partir de uma noção já pronta, exemplificá-la e, através de exercícios, fixar uma reflexão. Na verdade, o que se fixa é a metalinguagem aprendida na escola para analisar esta língua. Esta percepção é fruto do trabalho escolar: o aluno, falando em português, diz não saber português (GERALDI, 1997, p. 191).

Como síntese das discussões e para que tenhamos uma melhor compreensão das

diferenças básicas entre o ensino da gramática e a análise linguística, reproduzimos,

neste espaço, a tabela ilustrativa elaborada por Mendonça (2006, p. 207) em livro que

aborda o ensino de língua portuguesa no ensino médio e a formação do professor.

ENSINO DE GRAMÁTICA ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA

• Concepção de língua como sistema, estrutura inflexível e invariável.

• Concepção de língua como ação in-terlocutiva situada, sujeita às interfe-rências dos falantes.

• Fragmentação entre os eixos de en-sino: as aulas de gramática não se relacionam necessariamente com as de leitura e de produção textual.

• Integração entre os eixos de ensino: a análise linguística é ferramenta para a leitura e a produção de textos.

• Metodologia transmissiva, baseada na exposição dedutiva (do geral para o particular, isto é, das regras para o exemplo) + treinamento.

• Metodologia reflexiva, baseada na indução (observação dos casos par-ticulares para a conclusão das regu-laridades/regras).

• Privilégio das habilidades metalin-guísticas.

• Trabalho paralelo com as habilidades metalinguísticas e epilinguísticas.

• Ênfase nos conteúdos gramaticais como objetos de ensino, abordados isoladamente e em sequência mais ou menos fixa.

• Ênfase nos usos como objeto de en-sino (habilidades de leitura e escrita), que remetem a vários outros objetos de ensino (estruturais, textuais, dis-cursivos, normativos), apresentados e retomados sempre que necessário.

• Centralidade da norma-padrão. • Centralidade dos efeitos de sentido.

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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ENSINO DE GRAMÁTICA ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA

• Ausência de relação com as especi-ficidades dos gêneros, uma vez que a análise é mais de cunho estrutural e, quando normativa, desconsidera o funcionamento desses gêneros nos contextos de interação verbal.

• Fusão com o trabalho com os gêne-ros, visto que contempla justamente a intersecção das condições de pro-dução dos textos e as escolhas lin-guísticas.

• Unidades privilegiadas: a palavra, a frase e o período.

• Unidade privilegiada: o texto.

• Preferência pelos exercícios estrutu-rais, de identificação e classificação de unidades/ funções morfossintáti-cas e correção.

• Preferência por questões abertas e atividades de pesquisa, que exigem comparação e reflexão sobre ade-quação e efeitos de sentido.

uma prática de análise linguística

Nesta seção, apresentaremos uma sugestão de abordagem didática para a prática

de análise linguística. A abordagem aqui proposta comporta um texto exemplar do

gênero carta de reclamação e apresenta-se com sugestão de trabalho a ser adaptado,

reformulado, ampliado, enfim, redimensionado, de acordo com a situação de uso.

Como já dissemos no início do capítulo, não temos a intenção de indicar “receitas”,

mas o de estabelecer um diálogo a respeito do trabalho pedagógico com a análise

linguística nas aulas de língua portuguesa.

É importante considerar que a abordagem de ensino aqui proposta está

ancorada na noção bakhtiniana de gêneros discursivos que considera o dialogismo

no processo comunicativo e nos quais os PCNs (BRASIL, 1997, 1998) e as DCEs de

Língua Portuguesa (PARANÁ, 2008) estão fundamentados. Os gêneros discursivos são

processos interativos que apresentam três dimensões essenciais e indissociáveis, como

aponta Bakhtin (1997): conteúdo temático, construção composicional e estilo verbal,

determinados pelos parâmetros da situação de produção dos enunciados e, sobretudo,

pela apreciação valorativa (BAKHTIN, 1981) do locutor a respeito do(s) tema(s) e do(s)

interlocutor(es) do discurso, único fim de um enunciado vivo, como aponta Rojo

(2005). Em vista disso, qualquer análise envolvendo os gêneros não pode preceder

da análise das condições de produção, pois a noção de gêneros incorpora elementos

sócio-históricos, considerando a situação de produção dos discursos – quem fala, para

quem, lugares sociais dos interlocutores, posicionamentos ideológicos, objetivos,

modalidade de linguagem, veículo, esfera social – e abrange o conteúdo temático, a

construção composicional e as marcas linguísticas.

Na tentativa de explicar melhor a análise linguística, esboçaremos nos parágrafos

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seguintes um princípio de análise que não se esgota nos elementos aqui abordados,

mas que pretende demonstrar, a título de exemplificação, como seria possível orientar-

se por essa prática no ensino da língua portuguesa. Desse modo, apresentaremos,

primeiramente, uma breve descrição do gênero carta de reclamação e, em seguida,

uma possibilidade de leitura de um exemplar do gênero, adaptada de Cecilio (2009).

A carta de reclamação é um gênero usado em situações em que o cidadão deseja

externar alguma injustiça, insatisfação, algo que julgue ser impróprio ou errado e,

ainda, solicitar uma resolução para seu problema. Pertence ao agrupamento de gêneros

da ordem do argumentar (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004), situando-se na esfera de

comunicação de assuntos/temas controversos; quanto ao aspecto tipológico, apresenta

como capacidade de linguagem dominante a sustentação, a refutação e a negociação

de tomadas de posição. Com efeito, os aspectos nos quais a carta de reclamação se

situa socialmente se relacionam a dois objetivos do ensino fundamental, de acordo

com os PCNs (BRASIL, 1997, 1998): a compreensão da cidadania como participação

social e política, no exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando,

no dia a dia, atitudes de solidariedade, de cooperação e de repúdio às injustiças; e o

posicionamento crítico, responsável e construtivo nas diferentes situações sociais.

Em relação ao contexto de produção, o gênero em pauta pode ser escrito e divulgado

em espaços específicos de jornais ou revistas intitulados de maneiras diversas, tais

como: Fórum do Leitor, Cartas do Leitor, Cartas, Opinião Livre, Caixa Postal etc., ou

ainda pode ser enviado diretamente à instância responsável pela criação e consequente

resolução do problema causador da insatisfação do cidadão. Quando a carta é divulgada

na imprensa, o efeito de sentido que produz vai além de expressar uma reclamação.

Desse modo, o lugar social em que se realiza a interação e no qual vai circular o texto

tem importância fundamental nos efeitos de sentido. Ao escrevermos uma carta de

reclamação, temos como objetivo, além de expor que estamos insatisfeitos, buscar a

resolução para um problema. Assim, enviar a carta diretamente à instância responsável

é um caminho na busca de nosso objetivo. Contudo, quando a carta é divulgada na

imprensa – e dessa forma muitas pessoas terão acesso a ela –, sua função vai além de

mera reclamação e tentativa de resolução do problema. Publicar esse gênero discursivo

na imprensa produz o efeito de sentido de se fazer uma denúncia.

Ainda, em relação ao contexto de produção, as cartas de reclamação podem circular

por diferentes suportes e, em alguns jornais e revistas, há abertura para que os leitores

exponham opiniões diversas sobre assuntos atuais e/ou tratados em exemplares

anteriores. Nesse contexto, essas cartas pertencem ao gênero carta do leitor.

Cabe destacar que os gêneros não apresentam formas estáticas e imutáveis; podem

apresentar um formato híbrido, já que estão envolvidos na “relação com as práticas

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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sociais, os aspectos cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecnologias, as

atividades discursivas e no interior da cultura” (MARCUSCHI, 2005, p. 19), mudando,

fundindo-se e misturando-se para manter sua identidade funcional com inovação

organizacional. Assim, a carta de reclamação pode também circular em espaços

destinados à carta do leitor, confirmando o hibridismo dos gêneros.

As marcas de linguagem mais relevantes do gênero em tela, segundo Barbosa (2005),

são o uso: dos organizadores textuais temporais em relatos, como advérbios e locuções

adverbiais; dos operadores argumentativos na apresentação das argumentações; do dis-

curso em primeira ou terceira pessoa; de afirmações categóricas e não modalizadas que

conferem ao texto um tom agressivo e ameaçador.

No gênero carta de reclamação, o remetente emprega uma série de estratégias na

realização de seu projeto, em função de seus objetivos, de seu lugar social, de seu inter-

locutor, do lugar social, no qual se realiza a interação e no qual vai circular sua carta, e

da ferramenta que utiliza – o gênero – que indica as maneiras de como o indivíduo deve

interagir em determinada situação.

A partir da descrição do gênero discursivo, o professor pode definir o que abordar

na prática pedagógica, não sendo necessário trabalhar com todos os aspectos ofereci-

dos pelo gênero. Conforme Barbosa (2005), ele pode selecioná-los, considerando os

objetivos definidos para a série, as possibilidades dos alunos e a progressão do trabalho

nas diferentes séries, a esfera social em que o texto circula, as condições de produção

dos textos pertencentes ao gênero, o conteúdo temático, a construção composicional,

tudo associado às marcas linguísticas selecionadas ou mais relevantes para o estudo.

Desse modo, é importante que as atividades propostas no trabalho pedagógico

explorem os dois domínios a que os gêneros estão intimamente relacionados: o con-

texto geral de produção – esfera de atividade humana, contexto sócio-histórico e eco-

nômico mais amplo; e os elementos constitutivos – conteúdo temático, construção

composicional e estilo.

Vejamos agora um exemplar de carta de reclamação, retirado da seção Fórum

do Leitor de um jornal diário, portanto, uma carta que circulou na imprensa. Para

uma melhor ilustração de nossa análise, dividiremos, no quadro abaixo, a carta de

reclamação em três partes:

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Parte 1

Represento a Associação de Moradores e Amigos da Zona 01, área central de Maringá, na qualidade de secretário, procuro este jornal para demonstrar nossa revolta pelo descaso das autoridades e empresas instaladas principalmente no centro. Devido ao excesso de barulho, nossas autoridades não escutam as reclamações dos moradores. Tudo pode, tudo é permitido,

Parte 2

mais recentemente tivemos a inauguração de uma loja de calçados em que o desrespeito às pessoas que moram no centro foi total. No dia da inauguração mais ou menos 5 horas da manhã já estava um locutor falando ao microfone, fazendo propaganda da loja, mas isto ainda não era o pior, pois estava para vir mais ou menos 6h15 um foguetório sem precedentes que durou algo próximo de 10 minutos. Durante o dia procurei via telefone falar no meio ambiente, mas a pessoa responsável não se encontrava, liguei para a Polícia Florestal eles alegaram que não tem equipamentos e que deveria reclamar no Meio Ambiente. Iniciou-se o jogo de “empurra empurra", ninguém quer assumir. Agora também bem recente, foi autorizado um trenzinho a trabalhar na área central, e este trenzinho tem uma buzina e som infernal que perturba os moradores.

Parte 3

Não estamos sendo chatos, e nem queremos tirar a liberdade de ninguém de trabalhar. Gostaríamos que as autoridades fizessem alguma coisa.

C. T. B. – Maringá

Fonte: Jornal o diário do norte do paraná, 8 dez. 2005, edição on-line.

Como vimos, ao divulgar-se uma carta na imprensa, o efeito de sentido produzido

pode ser o de denunciar algo. Nessa carta específica, as denúncias que o remetente

faz aparecem nos seguintes trechos: as autoridades não escutam as reclamações

dos moradores; durante o dia procurei via telefone falar no meio ambiente, mas a

pessoa responsável não se encontrava; liguei para a polícia federal eles alegaram

que não tem equipamentos e que deveria reclamar ao Meio Ambiente. Iniciou-se o

jogodo“empurraempurra”,ninguémquerassumir.

O produtor do texto evidencia que pessoas e órgãos públicos não estão cumprindo

suas tarefas adequadamente. As escolhas linguísticas usadas pelo autor da carta

reforçam essa ideia. Chamamos a atenção para a locução adverbial de tempo - durante

o dia - que nos leva a pensar que o responsável por aquele setor não estava cumprindo

adequadamente a função a ele atribuída, pois não se encontrava em seu local de trabalho

naquele momento. Também denuncia que um órgão passa a responsabilidade para o

outro e assim ninguém assume e nem resolve o problema. Para deixar bem marcada

essa ideia, faz uso da expressão jogo do “empurra empurra” que, nesse contexto,

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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indica um julgamento de valor do produtor em relação aos órgãos públicos que, a seu

ver, são os responsáveis pelo controle da poluição sonora na cidade.

O remetente ao dizer que tudo pode, tudo é permitido, na parte 1 da carta, pode

não estar denunciando apenas o problema do barulho ocasionado pela inauguração

de um estabelecimento comercial no centro da cidade. Talvez sua intenção seja mostrar

e denunciar que autoridades locais permitem abusos, não só esse, mas também (e

possivelmente) outros. Nesse contexto, é o uso do pronome indefinido tudo que dá

margem a tais encaminhamentos de leitura e possíveis efeitos de sentido.

Em cartas de reclamação, parece ser comum o uso de apreciações valorativas do

remetente porque ele, ao assumir-se como sujeito, destaca seu ponto de vista em

relação à instância causadora do problema. Assim, entendemos que as valorações

apreciativas configuram marcas do arranjo textual desse tipo de carta. Em nosso

exemplar, percebemos que o remetente lança mão da ironia ao fazer suas apreciações

valorativas (Devido ao excesso de barulho, nossas autoridades não escutam as

reclamações dos moradores. Tudo pode, tudo é permitido. / iniciou-se o jogo do

“empurraempurra”,ninguémquerassumir/essetrenzinhotemumabuzinaesom

infernal que perturba os moradores).

O modo como o autor se identifica marca seu lugar social – representante da

Associação de Moradores e Amigos da Zona 1. Ele determina esse lugar para marcar

o discurso de autoridade, pois a esse sujeito é atribuída uma certa competência

(representante dos moradores do bairro) em relação a uma instância social (a

associação) e, nessa perspectiva, é um discurso institucionalmente aceito pela

sociedade. Desse modo, o remetente quer marcar seu discurso de autoridade que se

torna um forte mecanismo argumentativo na construção da carta.

Desse modo, a carta tem início com a apresentação do agente produtor, não como

um ser empírico que se assume como produtor do texto, mas como um enunciador

que destaca o seu estatuto sociosubjetivo (quem é ele no contexto de produção desse

texto) ao se identificar como o representante da Associação de Moradores e Amigos da

Zona 01. Ele marca seu lugar social para depois relatar o problema que o fez ir à mídia

registrar sua insatisfação e as consequentes denúncias.

Assim, o relato é inserido na carta, instituindo uma argumentação ilustrativa que

está destacada na parte 2. A organização do segmento é ancorada na origem espaço-

temporal, na qual o autor da carta situa o leitor acerca do local onde ocorreu o proble-

ma (região central da cidade) e esclarece que ele é morador do bairro e representante

da associação de moradores. Também situa o leitor no tempo do acontecimento.

Ao fazer o relato, lança mão de verbos que marcam tempo passado, com predo-

minância de dois tempos de verbos dominantes: o pretérito perfeito e o pretérito

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imperfeito do indicativo para indicar ações concluídas e ações em desenvolvimento no

passado. O par pretérito perfeito/pretérito imperfeito coloca os conteúdos apresen-

tados como estando distantes temporalmente em relação ao momento da produção.

Nessa parte da carta, predomina o pretérito perfeito para relatar o problema causador

da reclamação. É o momento em que o agente-produtor “volta no tempo” para revelar

a causa da reclamação. Os dois tempos verbais contribuem para a explicitação do tipo

de relação existente entre a progressão do relato e a progressão efetiva do conteúdo

temático. Conforme Bronckart (2003), essa progressão confere ao segmento do discur-

so um valor de isocronia, ou seja, a progressão do relato se desenvolve paralelamente

à progressão dos acontecimentos. No mesmo pressuposto, Weinrich (1974) assinala

que a função dos tempos verbais é a de cientificar o ouvinte/leitor quanto à situação

comunicativa em que a linguagem se atualiza. Ao estabelecer a distinção entre tempos

verbais do comentário e tempos verbais da narração, pontua que o pretérito perfeito e

o pretérito imperfeito do indicativo pertencem ao mundo narrado: o pretérito perfeito

indica que os processos a que se aplicam são colocados em primeiro plano – denota a

ação propriamente dita – e o imperfeito marca o segundo plano.

Em relação aos outros tempos verbais presentes na carta, o presente do indicativo,

no início do texto, é utilizado para expor o problema; já o futuro do indicativo e o pre-

térito imperfeito do subjuntivo, ao final da carta, indicam a solicitação de resolução do

problema e a tomada de posição do destinatário, elementos importantes nesse gênero

discursivo. Os verbos, nesses segmentos de discurso, marcam o momento da produção

da carta e as intenções do produtor.

É importante observar que o autor ora usa marcas de primeira pessoa do singular

(eu), ora marcas de primeira pessoa do plural (nós). Embora esteja falando em nome

da instituição, é ele quem toma a atitude concreta de escrever a carta e, assim, assume o

discurso, mas sinaliza que a queixa não é exclusiva dele, já que se apóia no grupo usan-

do um discurso de autoridade. Ao final da carta, faz uso apenas da primeira pessoa do

plural, com as expressões não estamos sendo chatos, nem queremos tirar a liberdade

de ninguém, gostaríamosqueasautoridadesfizessemalgumacoisa. Ao usar expres-

sões em primeira pessoa do plural, além de reforçar a ideia de que a reclamação não é

apenas sua, também indica uma forma de atenuação em relação ao seu ponto de vista,

já que em muitos momentos da carta ele foi categórico e irônico.

O agente produtor explicita também os locais e os momentos em que se deu o pro-

blema e faz uso, além dos verbos, de outras unidades linguísticas com valor temporal,

tais como: mais recentemente, no dia da inauguração, mais ou menos 5h da manhã,

mais ou menos 6h15, durante o dia, agora também bem recente. Tal explicitação é uma

regularidade nesse tipo de discurso, o qual requer um conhecimento dos parâmetros

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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da situação de ação de linguagem em curso e, especificamente, na carta de reclamação,

em que é fundamental essa relação espaço-temporal, já que a pessoa que escreve deve

situar o leitor, com o maior detalhamento possível, no intuito de atingir seu objetivo.

Então podemos afirmar que o detalhamento nesse gênero de texto é também um me-

canismo de argumentação.

Ao final da parte 2, o remetente destaca que agora bem recente foi autorizado

que um trenzinho circulasse pela área central da cidade, e ainda reclama de seu ba-

rulho. Temos de levar em conta a data de publicação (e escrita) da carta. O texto foi

divulgado na imprensa no início de dezembro, mês em que o comércio lança mão de

artifícios para atrair consumidores. O trenzinho mencionado pelo autor é um desses

artifícios. Cabe explicar que tal trenzinho, na época, circulava pela cidade com pes-

soas, especialmente crianças, ao som de músicas natalinas. Um possível efeito de sen-

tido de mais essa reclamação na carta pode estar relacionado à possibilidade de que o

barulho, que tanto incomodou os moradores da região central do município, poderia

continuar após o Natal, já que houve a autorização para a circulação do trenzinho.

Além da expressão agora também bem recente, o produtor já havia usado outra

expressão temporal que indica a atualidade do problema: mais recentemente. Essas

expressões adverbiais de tempo são marcas linguísticas na carta e, de acordo com

Barbosa (2005), são características nesse gênero de texto.

Assim, constatamos que todos os elementos do texto são importantes na busca

de seus sentidos e a caminhada interpretativa vai muito além daquilo que está verba-

lizado e expresso na materialidade linguística do texto. É importante que na leitura

levemos em conta todos os elementos contextuais e as marcas do arranjo textual do

gênero em estudo.

carta de reclamação: uma possibilidade de transposição didática

Os gêneros, por serem construções histórico-sociais, são perpassados pela lingua-

gem e elaborados de acordo com as condições de produção. Acreditamos que tomar

os gêneros como objeto de estudo implica a transposição didática e assinalamos que

nesse processo talvez não seja possível explorar todos os elementos encontrados em

uma análise aprofundada de um texto. A escolha dos elementos a serem abordados

dependerá dos objetivos do professor e do nível dos alunos.

Diante disso, apresentamos sugestões de encaminhamento didático a serem le-

vadas a efeito nas aulas do 8.º ano do ensino fundamental, relativas ao gênero carta

de reclamação, as quais abordem o conteúdo temático e as condições de produção

juntamente com o arranjo textual e com as marcas linguísticas. Tal prática de aná-

lise linguística deve ser entendida como resultado do estudo das características do

Page 93: Saberes docentes leitura análise lingu escrita Prat_Form_Professores_web

93

gênero discursivo carta de reclamação e da leitura da carta específica realizada acima.

Nessa proposta que apresentaremos, focalizamos a discussão da análise linguística no

processo de leitura, não abordando o processo de produção de texto. A proposta pe-

dagógica que segue está configurada em um plano de aula conforme exigência para o

desenvolvimento do Estágio Supervisionado do curso de Letras.

PLANO DE AULA

ESCOLA: XXXXXXXX

PROFESSOR(A): XXXXXXX

SÉRIE: 8.º ano TURMA: xx TURNO: xxxx

ENSINO: ( ) Médio ( X ) Fundamental

DATA: xx/xx/xxxx HORÁRIO: ___xxxx

DURAÇÃO DA AULA: 06h/a

Conteúdo:

- Estudo da análise linguística no gênero discursivo carta de reclamação.

Objetivo geral:

- Refletir sobre os efeitos de sentidos do texto, via estudo da análise linguística.

Objetivos específicos:

- reconhecer que o objetivo, veiculado ao contexto de produção, direciona a escrita das cartas;

- reconhecer e compreender a argumentação na carta;

- trabalhar as marcas linguísticas da carta e o arranjo textual e seus efeitos de sentido: local e data, formas de início e formas de finalização, identificação do remetente e do destinatário e seus respectivos papéis sociais; fatos situados no tempo; relato pormenorizado dos motivos que levaram ao envio da carta com menção a datas e locais em que ocorreram os acontecimentos, explicitação da tomada de posição que se espera do destinatário.

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Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

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Procedimentos de ensino Recursos Procedimentos de ava-liação

- Apresentação de cartas de diferentes gêneros para identificação do gênero car-ta de reclamação dentre as várias apresentadas;

- Verificar o que há de co-mum entre as cartas e o que há de específico.

- Abordar o gênero e as condições de produção das cartas em estudo – produtor da carta, interlocutor, papel social de ambos, objetivo da escrita, local de circulação.

- Abordagem aos aspectos da construção composicio-nal.

- Atividades de análise lin-guística: efeitos de sentido dos verbos e pessoas do discurso no texto; aprecia-ções valorativas, afirmações categóricas e atenuação do discurso; diferença entre escrever uma carta para o jornal e para a instância responsável pelo problema; marcas de discurso de auto-ridade no texto.

- Jornais;

- Revistas;

-Cópias xerocopia-das do exemplar da carta em estudo;

- Quadro de giz;

- TV, pendrive, data show ou retroproje-tor;

- Laboratório de in-formática.

- Participação oral nos momentos de discussão.

- Apresentação / socia-lização de análises de cartas realizadas em tra-balho extraclasse.

REFERÊNCIAS:

BARBOSA, J. P. Carta de solicitação e carta de reclamação. São Paulo: FTD, 2005. (Coleção Trabalhando com os gêneros do discurso).

CECILIO, S. R. O ensino de Língua Portuguesa e os gêneros discursivos: um estudo de análise linguística a partir dos gêneros carta de reclamação e tex-to de divulgação científica. 2009. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2009.

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95

A seguir, elencaremos possibilidades de ações pedagógicas com o gênero carta

de reclamação e, mais especificamente, com a carta que analisamos. É importante

destacar que o trabalho deve ser direcionado de modo a não apresentar atividades

descontextualizadas.

1. reconHecimento do gÊnero

Apresentar aos alunos cartas de diferentes gêneros. Discutir a respeito da

dinamicidade dos gêneros discursivos, enfatizando que, em função das necessidades

socioculturais, o gênero carta originou outros gêneros – uma diversidade de cartas

– como a carta familiar, a carta íntima, a carta de amor, a carta circular, a carta

propaganda, a carta aberta, a carta do leitor, a carta ao leitor, a carta de solicitação, a

carta de reclamação, dentre outras. Em seguida, trabalhar com exemplares de cartas

de solicitação e de cartas de reclamação. O objetivo é fazer que os alunos reconheçam

que, apesar de as duas cartas apresentarem solicitação a respeito de algo, na carta de

reclamação a pessoa julga ter direito àquilo que está sendo pedido.

Pode-se instigar os alunos com questionamentos tais como:

a) embora com elementos em comum, as cartas apresentam diferenças entre si.

Qual a diferença em relação ao conteúdo? Explique.

b) em algumas cartas, o autor apenas solicita algo ao destinatário. Em outras, além

do pedido, há também uma reclamação. Isso as torna distintas. Em qual das

cartas em estudo o autor acredita ter direito ao que está pedindo?

2. contexto de produÇão

Abordar o objetivo do gênero e as condições de produção (produtor da carta,

interlocutor, papel social de ambos, objetivo, local de circulação) no intuito de assinalar

que o objetivo, veiculado ao contexto de produção, direciona a escrita da carta (quem

escreve, para quem escreve, em que situação). Para tanto, é interessante analisar

cartas publicadas na imprensa e cartas enviadas diretamente à instância causadora do

problema (essas cartas podem ser encontradas em sítios da Internet que tratam de

direitos dos consumidores ou em obras que trabalhem com esse gênero discursivo).

É também relevante discutir a respeito da diferença entre escrever uma carta de

reclamação para ser publicada na imprensa e escrever uma carta de reclamação para

enviar diretamente à instância responsável pelo problema.

Questionamentos possíveis:

a) Qual a finalidade das cartas? Quem são seus interlocutores?

b) O pedido feito pelo remetente atende a suas necessidades pessoais ou a sua

função social?

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

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c) Entre o produtor (remetente) da carta e seu interlocutor há algum grau de

intimidade e/ou relacionamento?

d) Analise a linguagem empregada na carta. Observe o emprego da pessoa, dos

pronomes, do tempo verbal... Enfim, a linguagem selecionada pelo produtor

do texto é coloquial (informal) ou formal?

e) Uma das características da carta de solicitação é a polidez, ou seja, há um

distanciamento, um certo respeito em relação ao interlocutor, já que o remetente

pede, solicita algo. Reflita: o fato de alguém solicitar algo que julgue ter direito

pode influenciar no modo de escrita da carta?

f ) Para você, há diferença entre escrever uma carta de reclamação para ser publi-

cada na imprensa e escrever para enviar diretamente à instância responsável?

Justifique sua resposta.

3. organizaÇão daS cartaS

Trabalhar o arranjo textual das cartas – local e data, formas de início e formas

de finalização, identificação do remetente e do destinatário e seus respectivos papéis

sociais; fatos situados no tempo; relato pormenorizado dos motivos que levaram ao

envio da carta, fazendo menção a datas e locais em que ocorreram os acontecimentos;

explicitação da tomada de posição que espera do destinatário da carta; despedida;

assinatura, destacando o papel social do remetente.

4. anáLiSe LinguíStica

Nesta etapa de nossa proposta pedagógica, abordaremos apenas a carta analisada

em nossa discussão. Em um projeto maior, pode-se fazer a análise de todas as cartas

levadas para a sala de aula.

4.1 marcas temporais

Discutir a relevância das marcas temporais nesse gênero discursivo, uma vez que

é característico em cartas de reclamação o relato do problema pelo enunciador que

toma o status de expositor dos acontecimentos. A organização do relato é ancorada na

origem espaço-temporal para que o autor situe o leitor acerca do local onde ocorreu o

problema e no tempo do acontecimento.

a) Usando cores diferentes, separe os verbos e as outras unidades linguísticas com

valor temporal na carta em estudo;

b) Reflita: Por que é importante registrar, marcar o tempo e o espaço na carta de

reclamação?

c) Na carta de reclamação, como já vimos, há predominância de verbos no presente

Page 97: Saberes docentes leitura análise lingu escrita Prat_Form_Professores_web

97

(a ação do autor/reclamante) e do pretérito perfeito do indicativo (relato dos

fatos que originaram a reclamação). Na carta em estudo, também aparecem os

verbos no futuro do indicativo e no pretérito imperfeito do subjuntivo. Explique

o uso desse tempo verbal na carta.

4.2 marcas de 1.ª pessoa do singular e 1.ª pessoa do plural

Identificar na carta todas as unidades de segmento de texto que se referem

diretamente ao agente-produtor, ou seja, identificar marcas de 1.ª pessoa a fim de

verificar se tais marcas ajudam a construir efeitos de sentido.

a) O autor da carta três não fala apenas em seu nome. Ele fala em nome da

associação dos moradores de seu bairro. No entanto, há momentos na carta em

que ele apresenta marcas de primeira pessoa do singular (eu) e momentos em

que apresenta marcas de primeira pessoa do plural (nós). Releia a carta e tente

explicar o uso do pronome “nós” ao final do texto.

4.3 apreciações valorativas e ironia

Analisar, juntamente com os alunos, as apreciações valorativas. Essa é uma marca

do arranjo textual das cartas, já que o remetente, ao se assumir como sujeito, destaca

seu ponto de vista em relação à instância causadora do problema. As apreciações

valorativas podem ocorrer por meio da ironia.

a) Quais são as denúncias que o autor da carta 3 faz?

b) Qual é o efeito de sentido da locução adverbial de tempo “durante o dia” no

trecho: “Durante o dia procurei via telefone falar no meio ambiente [...]”?

c) Explique o sentido da expressão “jogo do empurra empurra” no trecho:

“Iniciou-se o jogo do ‘empurra empurra’. Ninguém quer assumir”.

d) Transcreva da carta os momentos em que ocorrem ironias e tente explicá-las.

5. peSQuiSando

Após a discussão do gênero e a análise da carta de reclamação, pode-se propor aos

alunos que pesquisem (grupos de três ou quatro alunos), em jornais, revistas e/ou

sítios da internet, exemplares do gênero. Em momento posterior, os alunos podem

socializar sua pesquisa com os demais colegas da sala e com o professor.

a) Nos jornais e nas revistas, há um espaço específico para que o leitor manifeste

sua opinião acerca de assuntos diversos e, dentre esses assuntos, ele pode

manifestar reclamações diante de injustiças, discriminações e desrespeitos

de direitos de cidadão. Pesquise, na mídia impressa e na virtual, cartas de

ensino de Língua portuguesa: análise linguística

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anáLiSe LinguíStica e gramática

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reclamação e tente analisar a intenção do autor ao escrever uma carta para ser

publicada na imprensa e lida por um grande público leitor. Você pode pesquisar

em sítios da internet e comparar cartas divulgadas em outros suportes;

b) Identifique nas cartas: o lugar de produção; o momento de produção; o emissor;

o receptor;

c) Identifique se na carta os fatos são situados no tempo, se há identificação

espacial (onde ocorreu o fato), destaque o uso de verbos e outras unidades

linguísticas com valor temporal;

d) Observe se na carta há o relato detalhado dos motivos que levaram ao seu

envio, com menção a datas e locais em que ocorreram os acontecimentos

que geraram a reclamação e argumentos que expliquem ou fundamentem os

motivos da reclamação ou da reivindicação; uso de operadores argumentativos

nas argumentações feitas como: pois, já que, assim, então, no entanto etc.; se

há afirmações categóricas, se há apreciações valorativas etc;

e) Observe se há o esclarecimento das pretensões/tomadas de atitude desejadas

para que se resolva o problema;

f ) Analise a maneira como o remetente da carta se apresenta e verifique se sua

intenção é marcar um discurso de autoridade.

conSideraÇÕeS FinaiS

Nosso objetivo neste capítulo foi discutir teoricamente o ensino de língua portu-

guesa, enfocando a análise linguística, e apresentar, como contribuição pedagógica,

uma possibilidade de trabalho gramatical contextualizado, no intuito de articular a

teoria com a prática de sala de aula.

Acreditamos que o ensino de língua materna viabilizado na proposta dos gêneros

discursivos privilegia atividades de leitura, de análise linguística e de produção de textos

associadas às situações de enunciação e relacionadas às marcas linguístico-enunciativas

dos textos. O benefício da proposta reside no fato de desenvolver uma gama de ativida-

des que possibilitam o trabalho contextualizado com a linguagem e, especificamente, um

trabalho de gramática contextualizada e de leitura como produção.

de sentidos. Referências

ANGELO, C. M. P.; LOREGIAN-PENKAL, L. Perspectivas para o trabalho com a análise

linguística. In: MENEGASSI, R. J. (Org.). Leitura, escrita e gramática no ensino

fundamental: das teorias às práticas docentes. Maringá: Eduem, 2010.

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BARBOSA, J. P. Carta de solicitação e carta de reclamação. São Paulo: FTD, 2005.

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Portuguesa: primeiro e segundo ciclos. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997.

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BRITTO, L. P. L. A sombra do caos: ensino de língua e tradição gramatical.

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BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um

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CECILIO, S. R. O ensino de Língua Portuguesa e os gêneros discursivos: um

estudo de análise lingüística a partir dos gêneros carta de reclamação e texto

de divulgação científica. 2009. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) -

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Anotações

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101

Conteúdos gramaticais: proposta pedagógica

Tânia Braga Guimarães

introduÇão: enSino de gramática no contexto atuaL

A importância que a língua e a linguagem apresentam na sociedade, nos diversos

níveis de interação social e no seu uso como instrumento de avaliação, seleção e

ascensão social, permite afirmar que alterações no currículo, em decorrência da

redução da carga horária semanal destinada à Língua Portuguesa (doravante LP),

contribuem para o aumento dos desafios enfrentados pelo professor dessa disciplina.

Diante desse contexto, como fazer um trabalho adequado com limitações de tempo?

Se as aulas de LP ficarem reduzidas, o quanto isso implicaria a redução do trabalho com

conteúdos gramaticais? Apesar desses desafios, neste capítulo, discutiremos caminhos

possíveis para a elaboração de aulas de gramática.

O aluno de Letras, ao se tornar professor, invariavelmente lecionará literatura,

gramática e produção textual. É chegada a hora de pensar em termos bem práticos

como essas aulas podem ser planejadas, pois, quanto antes o profissional se apropriar

da terminologia gramatical, das sequências de conteúdos, e quanto antes sistematizar

o trabalho de professor, mais apto estará para enfrentar os desafios da profissão.

estrutura básica da gramática normativa

Os professores costumam ter várias gramáticas para que elas se complementem,

uma vez que uma gramática não consegue explicar todos os fatos da língua. Quando

elas não solucionam a dúvida, recorrem ainda a dicionários de referências. As gramá-

ticas mais escolares são as de autores como Pasquale e Sacconi; as mais tradicionais

e, portanto, as que chamamos de gramáticas de referência são de autores como Be-

chara, Rocha Lima etc. Cada gramático escolhe uma abordagem. Existem gramáticas

mais antigas (com exemplos tirados de excertos de obras clássicas de mais de 100

anos, Cegalla, por exemplo) e as mais modernas (com exemplos tirados da mídia, da

publicidade e com ilustrações e quadrinhos). É recomendável que o professor tenha

vários exemplares de gramáticas em sua estante, pois, devido à grandiosidade da LP

6

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SabereS docenteS e práticaS de enSino de

Língua portugueSa: Leitura, eScrita,

anáLiSe LinguíStica e gramática

102

e, apesar dos conteúdos em comum, algumas gramáticas resolvem uma determinada

dúvida, outras não.

Vamos reconhecer um sumário básico de uma gramática, escolhida aleatoriamente:

Capítulo 1 – Conceitos GeraisPARTE 1 - FONOLOGIA Capítulo 2 - Fonologia Capítulo 3 - OrtografiaCapítulo 4 – AcentuaçãoPARTE 2 – MORFOLOGIACapítulo 5 – Estrutura e formação das palavrasCapítulo 6 – Estudo dos verbos (I)Capítulo 7 - Estudo dos verbos (II)Capítulo 8 - Estudo dos verbos (III)Capítulo 9 - Estudo dos substantivosCapítulo 10 – Estudo dos artigosCapítulo 11 - Estudo dos adjetivosCapítulo 12 - Estudo dos advérbiosCapítulo 13 - Estudo dos pronomesCapítulo 14 - Estudo dos numeraisCapítulo 15 - Estudo das preposiçõesCapítulo 16 - Estudo das conjunções Capítulo 17 - Estudo das interjeiçõesParte 03 – SINTAXECapítulo 18 – Introdução à sintaxeCapítulo 19 – Termos essenciais da oraçãoCapítulo 20 – Termos integrantes da oraçãoCapítulo 21 – Termos acessórios da oração e vocativoCapítulo 22 – Orações subordinadas substantivasCapítulo 23 - Orações subordinadas adjetivasCapítulo 24 - Orações subordinadas adverbiaisCapítulo 25 – Orações coordenadasCapítulo 26 - Concordância verbal e nominalCapítulo 27 – Regência nominal e verbalParte 4 - APÊNDICECapítulo 28 – Problemas gerais da língua cultaCapítulo 29 – Significado das palavrasCapítulo 30 – Noções elementares de estilísticaAdaptado de Cipro Neto e Infante (2003, p. 4-6).

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103

Dessa forma, pode-se observar que a primeira parte da gramática trata das questões

de Fonologia, ciência que estuda os fonemas; a segunda parte estuda a Morfologia,

ciência que estuda os morfemas, ou seja, as partes que compõem uma palavra. Há

ainda outro grupo de conteúdos gramaticais, como a Sintaxe, que estuda as relações

estabelecidas entre as orações.

Para facilitar a sua vida de professor, tomemos alguns questionamentos para discus-

são: Como aprendemos gramática? Como a internalizamos? Quando somos capazes de

entender uma regra e aplicá-la corretamente1 em nosso exercício de questões pré-ves-

tibulares? Quando somos capazes de entender uma regra e de aplicá-la corretamente

em nossa redação? Seguindo a ordem dos conteúdos expostos no sumário, sabemos

que ortografia e acentuação são conteúdos de importância indiscutível. Todo exame

trará pelo menos uma questão que contemple ambos. Sabemos que a ortografia, além

das suas regras, está intimamente ligada ao nosso sistema visual. Diante de uma dú-

vida dessas, é comum que fechemos os olhos para enxergar a palavra, olhemos para

cima, ou passemos a rascunhar para ver qual das opções combina com a memória que

temos da palavra. Acentuação também tem suas regras. É comum que pessoas com

dificuldade de lembrá-las busquem-nas na memória para solucionar a presença ou não

de acento.

Como professores, podemos trabalhar bem esses itens, mas é fundamental que o

aluno seja um leitor, um analista e um crítico dos fenômenos linguísticos. Na parte da

morfologia, temos as dez classes gramaticais: verbos, substantivos, artigos, adjetivos,

advérbios, pronomes, numerais, preposições, conjunções, interjeições.

Quando estudamos morfologia, gosto de pensar que tudo que existe no universo,

ou é criado, necessariamente adquire um nome. Por exemplo, na área da informática,

quando o computador foi inventado, um sem-número de palavras foi inventado

também. A palavra computador trouxe consigo o mouse, o CPU, a impressora, e as

palavras que não foram inventadas foram emprestadas de outros contextos, pois nosso

computador pega vírus, usamos teclado (objetos anteriores ao computador possuem

teclados, como pianos e órgãos) e navegamos ou surfamos na web. Portanto, todas as

palavras que existem na nossa língua se enquadrarão em apenas dez classes gramaticais.

Existem os testes para verificar se uma palavra é verbo, se é substantivo, se é adjetivo.

Quanto mais conhecemos tais testes, mais fácil fica pensar a nossa língua. Entender

1 Embora a Linguística não considere inúmeros aspectos da língua como erro, uma vez que o uso que se faz dela é diferente da norma culta, neste capítulo usaremos os termos ‘erro/errado’, ‘correto/corretamente’, para nos referir à norma culta. Como sabemos, os alunos vão à escola para aprender algo além daquilo que eles já sabem pela experiência cotidiana.

conteúdos gramaticais: proposta pedagógica

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bem o sistema da língua nos desobriga de memorizar tudo. Por isso, podemos afirmar

que um substantivo se flexiona em número (singular/plural), ou seja, menino/s, e

em gênero (masculino/feminino). Há outras formas de plural, claro, mas o plural

em ‘s’ é o mais comum: menino/s, carro/s, balanço/s, barco/s. Portanto, você pode

explicar isso ao seu aluno, mas não à exaustão, porque ele já chega à escola usando

essa regra, ou, se ele fala ‘os menino’, é importante alertá-lo que, embora esse uso

seja comum na oralidade, nos seus textos escritos ele deverá prestar atenção para

respeitar a concordância que as regras da LP exigem. Então, o professor dedicará

mais tempo às flexões de gênero e de número que não estão circunscritas à regra

simples, por exemplo, boi/vaca; aldeão/aldeões/aldeãs.

o professor de gramática em diferentes contextos de ensino de Língua

portuguesa

Essa pergunta pode ser respondida de diversas maneiras, conforme a década em

que pensamos a educação no Brasil. De uma forma simplificada, podemos afirmar

que o professor de português, antigamente, era aquela pessoa que sabia muito da

LP e, de preferência, tinha as respostas na ponta da língua quando questionada, ou

seja, sabia as regras “de cor e salteado”. Zanini (1999, p. 80) afirma que “o ensino

de língua materna há muito tempo se confunde com o ensino de gramática da

língua materna” e que, portanto, na sala de aula surgem duas figuras com papéis

determinados. “Assim, coloca-se, de um lado, o professor – detentor do saber, com

a responsabilidade de transmitir conteúdos – e, de outro, está o aluno – recipiente

desses conteúdos” (ZANINI, 1999, p. 80).

Apesar de não haver necessidade de ser o professor que sabe tudo de cor, cabe

prestarmos atenção ao alerta dos pesquisadores:

Antes de mais nada é preciso dizer que, mesmo que o professor decida não ensinar teoria a seus alunos, é necessário que ele tenha um conhecimento teórico o mais amplo possível, pois sem esse conhecimento dificilmente o professor saberá estruturar e controlar atividades pertinentes de ensino e que realmente caminhem em direção a fins determinados de forma específi-ca e clara (TRAVAGLIA, 2004, p. 81).

Segundo Zanini (1999, p. 80), “sentimos que hoje, utilizar a língua ‘corretamente’,

além do domínio da forma de modo aceitável, é ‘usá-la’ adequadamente ao contexto

e ao usuário a que se destina a mensagem veiculada”. A autora, portanto, resume bem

o que está em questão quando se discute o ensino de língua materna atualmente.

Hoje, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), assim como as Diretrizes Curri-

culares do Paraná, preconizam que o professor deve trabalhar os conteúdos gramaticais

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percorrendo um caminho inverso ao que sempre foi percorrido antes. Aquele professor

que sabia tudo “de cor e salteado” sempre começava suas aulas partindo de uma defini-

ção do conteúdo a ser ensinado. Após a definição, trazia exemplos e, como etapa impor-

tante de assimilação, finalizava com os exercícios de repetição. O que está expresso no

quadro abaixo era o que acontecia em sala de aula, para todo conteúdo do currículo

escolar.

Substantivos Definição Exemplos Exercícios

Adjetivos Definição Exemplos Exercícios

Verbos Definição Exemplos Exercícios

Advérbios Definição Exemplos Exercícios

Estamos falando de uma prática em que havia muitos exercícios de repetição e

memorização. Então, toda aula de gramática pressupunha um roteiro pré-definido,

com o qual qualquer conteúdo poderia ser abordado. Esse método, chamado na

linguística de estruturalista, uma vez que apegado às partes constitutivas dessa língua,

foi imensamente discutido e chegou-se à conclusão de que o aluno memorizava o

conteúdo para as avaliações, mas não aprendia de fato.

Hoje, é praxe que o aluno tenha o ensino de língua portuguesa voltado para o texto.

E nesse texto se busca atender às questões de leitura, interpretação, análise linguística,

ou seja, um trabalho mais completo com o texto em questão, não o trazendo à sala

de aula apenas como pretexto para ensinar gramática. Um desafio dos bons para o

professor de hoje, que viu seu professor de ontem seguindo, sem que isso fosse um

problema, um modelo completamente tradicional.

Você, estudante, em breve um profissional da língua e linguagem, não será mais aque-

le professor que repete as estruturas à exaustão, apesar de, provavelmente, ter ainda en-

contrado resquícios desse modelo em seus professores. O que se espera de você é que,

como professor, você consiga ensinar os conteúdos de forma significativa. Mas, como

fazemos isso?

Como professora, eu gosto bastante de pensar em como eu processava as infor-

mações quando era criança ou adolescente. Como aluna, eu adorava os conteúdos da

disciplina de língua portuguesa, como uma criança/adolescente normal, eu detestava

gramática. Lembro-me bem de uma aula na oitava séria, de orações coordenadas e

subordinadas, em que tudo se tornou uma grande falação sem sentido. Bom, meu

consolo foi saber que muitas pessoas, escritores, não gostavam ou não entendiam gra-

mática. Com o tempo, passei a gostar dos conteúdos gramaticais. Hoje, vejo claramente

conteúdos gramaticais: proposta pedagógica

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que o conteúdo pode e deve ser divertido. E essa abordagem que procura entender a

língua como ela é não vai excluir obrigatoriamente a repetição. Há momentos em que

tomar notas, repetir as palavras, tentar agarrá-las, digeri-las, internalizá-las é uma parte

importante do processo de apropriação do conhecimento. Embora não possamos saber

tudo sobre uma língua, os principais conceitos e terminologias trazidos em uma gramá-

tica – geralmente totalizando de trezentas a quinhentas páginas – podem ser facilmente

memorizados e internalizados, apesar de, inicialmente, parecer uma tarefa assustadora.

Falando em internalizado, é importante saber que contamos com a gramática in-

ternalizada pelo simples fato de sermos falantes da língua portuguesa. Essa gramática

internalizada é a que você aprende quando aprende a falar. É por isso que ouvimos

uma piada que diz: “olha, aquele menino americano sabido! Aos três anos já sabe falar

inglês!” Por que para nós, adultos, tentando aprender a língua inglesa, para nós estran-

geira, pode parecer um processo muito difícil e para aquela criança, nascida e criada

em um ambiente no qual aquela língua lhe é materna, torna-se algo muito natural? Um

estrangeiro pode brincar assim também: “nossa, que menino sabido, aos três anos já

sabe português!”

Vamos tentar buscar caminhos para o ensino significativo que almejamos.

para que e como elaborar um plano de aula de gramática?

O plano de aula é considerado uma ferramenta muito útil no trabalho do professor.

É um planejamento, uma previsão que lhe permite traçar objetivos de ensino. Pode

ser que se queira ignorar essa etapa, mas isso pode implicar um mau aproveitamento

do tempo disponível para as atividades e, como sabemos, o professor tem sempre

conteúdos a vencer.

Logo abaixo, você encontra o plano de aula em uma das fichas usadas para o

estágio. O primeiro passo é estabelecer qual é o conteúdo da aula. Pode ser verbo,

substantivo, adjetivo, ou qualquer outro assunto previsto na grade curricular de uma

série específica. Após o estabelecimento do conteúdo, o passo seguinte é eleger qual

é o objetivo geral da aula, ou seja, qual a habilidade que você pretende desenvolver

em seus alunos. O passo seguinte será estabelecer o objetivo de sua aula. Esse objetivo

tem a ver com as habilidades e os conhecimentos que você quer que seu aluno

adquira após a aula. Além disso, qual a razão de desenvolver essa habilidade? Por que é

importante? Em que será útil tal conhecimento? Para ter seu objetivo bem estabelecido,

use o enunciado: “Ao término da aula, o aluno deverá ser capaz de…”.

Segundo Antunes (2003, p. 34),

a complexidade do processo pedagógico impõe, na verdade, o cuidado em se prever e se avaliar, reiteradamente, concepções (O que é a linguagem? O que

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é uma língua?), objetivos (Para que ensinamos? Com que finalidade?), procedi-mentos (Como ensinamos?) e resultados (O que temos conseguido?), de forma que todas as ações se orientem para um ponto comum e relevante: conseguir ampliar as competências comunicativo-interacionais dos alunos.

Após ter clara qual é a habilidade a ser desenvolvida, é possível estabelecer

objetivos específicos, que são outros detalhes do conteúdo e outras habilidades que

você queira que seu aluno obtenha. Segundo PITELLI (1997), são verbos úteis para

expressar os objetivos: analisar, argumentar, assimilar, caracterizar, classificar,

colaborar, comparar, compreender, construir, contrastar, criticar, descrever,

diferenciar, distinguir, dramatizar, enumerar, escolher, escrever, estabelecer,

exemplificar, explicitar, falar, identificar, interpretar, justificar, ler, listar, localizar,

organizar, redigir, reproduzir, resolver, resumir, selecionar, sintetizar, verbalizar,

verificar.

planejamento e seleção de material ou recursos

Você pode estar se perguntando: Como escolho os materiais para elaborar a minha

aula de gramática?

Para ensinar gramática, podemos fazer uso de textos, de músicas, de vídeos, enfim,

a possibilidade de materiais é infinita, uma vez que tudo que circula na sociedade

brasileira circula essencialmente no código da língua portuguesa e na linguagem. Além

dos materiais que você pode usar para discussão, existem muitas gramáticas boas à

venda, que você pode adotar. Você também pode seguir a sequência trazida no livro

didático e ocupar-se de trazer textos extras, textos complementares que dificilmente

o seu aluno, do ensino fundamental ou médio, terá maturidade para achar por conta

própria.

procedimento de ensino

Uma vez definidos os objetivos, você elaborará quais serão os procedimentos

de ensino, escrevendo cada etapa da aula. Depois da lista de conteúdos, vêm os

procedimentos ou operacionalização. Nesse espaço, devem ser detalhados todos

os passos listados no plano de aula. Escreve-se a respeito de ações, processos ou

comportamentos que serão propostos pelo professor durante a aula, sempre com base

nos objetivos previstos.

procedimentos de avaliação

Nessa discussão de como preparar planos de aula, chegamos à etapa de avaliação.

Após ensinar as regras gramaticais aos meus alunos, após cumprir todas as etapas

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previstas, após realizar inúmeros exercícios, como faço para avaliar o quanto meu

aluno aprendeu do conteúdo? Sabemos que o professor deve ser coerente entre aquilo

que ensina e fala em sala de aula e aquilo que cobra em suas provas. Portanto, bom

senso é a palavra-chave para nossa prática.

Vamos ler este texto do autor Rubem Braga para discutir um pouco como pode ser

o nosso trabalho de seleção de conteúdos para aula e avaliações:

NASCER NO CAIRO, SER FÊMEA DE CUPIM

Rubem Braga

Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?

O leitor que responder “não sei” a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Aliás, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma “página de bom vernáculo, exemplar”. Tive vontade de responder: “Mera coincidência” — mas não o fiz para não entristecer o homem.

Espero que uma velhice tranqüila — no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).

Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. “Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua”. Mas acho que isso é exagero.

Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para “pegar” as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da “Última Hora” ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de “O Globo?”.

No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!

Rio, novembro, 1951.

Texto extraído do livro BRAGA, Rubem. Ai de Ti, Copacabana. Rio de Janeiro:

Editora do Autor, 1960. p. 197.

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Nesse texto, adorável por sinal, Rubem Braga levanta curiosas questões sobre a lín-

gua. Qual é o significado de escardinchar? Qual é o feminino de cupim? Qual é o antô-

nimo de póstumo? Como se chama quem é natural do Cairo? Após isso, constata que

quem não souber respondê-las “não passará provavelmente em nenhuma prova de Por-

tuguês de nenhum concurso oficial”. O autor confessa que não sabe tais coisas e chama

de irmão os que não sabem. E aborda um mito complementar ao do professor de gra-

mática, que é entendido como quem sabe tudo de gramática. A variante desse mito seria

a de que o escritor também é um ser que esgota em sabedoria todas as regras da língua.

“a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que

eu não deveria confessar isso”. Esse trecho em que ele explica as suas habilidades com a

língua - “Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido”

- tem tudo a ver com a gramática internalizada a que fizemos referência.

Irônica e hilária é a parte em que diz que “Um deles chegou a me passar um tele-

grama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só

erro de Português; acrescentava que eu produzira uma ‘página de bom vernáculo,

exemplar’. Tive vontade de responder: “Mera coincidência” —, mas não o fiz para não

entristecer o homem”.

Perguntas pertinentes que ele faz e com as quais muitos pesquisadores concordariam:

“Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que

fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas

histórias que uma pessoa conta para “pegar” as outras?”. Engraçada é a funcionalidade

que Braga atribui para se conhecer quem é nascido no Cairo: “pode ser cairense,

cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa

será para decifrar um problema de palavras cruzadas”. Aqui, o autor mostra que esse

conhecimento não tem uma utilidade de fato nem prova o quanto a pessoa sabe da

língua portuguesa. Para pulcritude, o autor traz a resposta: “Sabem qual o superlativo

de pulcro? Isso eu sei por acaso: pulquérrimo!”. Dentre as possibilidades que Braga

elencou para ‘natural do Cairo’, a correta é cairota. Escardinchar seria “responder

em tom de provocação, ou então para acabar com a pessoa de modo a “não sair do

salto”, acabando moralmente ou psicologicamente com a pessoa por meio do uso da

ignorância dela contra ela mesma, usando as palavras vindas dela, em seu ataque” O

feminino de cupim é arará, mas, ao consultar diversos dicionários, você verá que não

é nada fácil achar e confirmar essa informação. O antônimo de póstumo deve render

bastante pesquisa. Já adianto que no dicionário Aurélio não consta.

Toda essa discussão do texto do Rubem Braga é para mostrar a você, acadêmico,

que, quando for escolher materiais, textos, conteúdos, dentre tantos disponíveis, é

preciso ter bom senso como professores, para que o aluno entenda a língua e não

tenha ojeriza a ela:

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Insisto em dizer que a avaliação centrada na ‘caça aos erros’, como prova do que não se conseguiu fazer, inibe a expressão do aluno e condiciona, de certa forma, o bloqueio com que, mais tarde, as pessoas encaram a prática social da escrita. Esta prática da ‘caça aos erros’, repito, fez com que o professor de português, ao longo do tempo, se especializasse apenas em procurar o ‘erra-do’ e, sem muita reflexão, discernir sobre os erros. Parece que não é capaz de perceber outra coisa e, de fato, acaba não sendo, pois, como adverte Millôr Fer-nandes, ‘tudo é erro na vida do revisor’ (p.165). O fato de o professor, diante dos trabalhos dos alunos, ter apenas que procurar erros tornou-se uma coisa tão natural que o termo consagrado para essa leitura do professor é ‘corrigir’. A pergunta que os alunos nos fazem é sempre: Professor (a), o (a) senhor (a) já corrigiu as provas? Por que não pergunta se já vimos, se já lemos seus trabalhos, seus textos?. (ANTUNES, 2003, p. 161).

Ser professor é um processo constante de amadurecimento. Hoje, com sua visão,

você fará determinadas escolhas e, a cada ano, tornar-se-á um professor cada vez mais

seguro de suas opções metodológicas.

reFerÊnciaS no pLano de auLa

As referências de seu plano de aula devem trazer os livros, artigos, enfim, todos

os materiais usados ao elaborar a sua aula. Trazer essa relação de materiais ao final

é um procedimento muito comum e importante, uma vez que tudo que fazemos no

meio acadêmico traz a teoria em que nos baseamos. Para organizá-las, deve-se colocar

o nome dos autores em ordem alfabética em padronização indicada pelas normas da

ABNT vigentes. Não se esqueça das referências, pois seu professor, com certeza, exigirá

isso de você. E, com as referências, você conclui o seu plano de aula. Esperamos que

o modelo aqui exposto, uma possibilidade dentre tantas outras, seja um parâmetro de

plano de aula, um roteiro que possa ser sempre revisitado.

plano de aula sobre pronomes pessoais e de tratamento

Imaginemos uma aula em que o conteúdo a ser ensinado sejam os pronomes e

na qual os objetivos sejam fazer que os alunos aprendam quais são, como usá-los

e como diferenciá-los. Podemos começar com uma explicação teórica do que são e

quais são os pronomes pessoais. Em seguida, solicitamos aos alunos que leiam a tabela

dos pronomes pessoais, disponibilizada no livro didático. Para preparar essa aula,

levaremos em consideração o que diz LOPES (2007, p. 115):

Os manuais didáticos raramente fazem alusão às novas formas pronominais quando descrevem o quadro de pronomes pessoais, embora, como os resulta-dos mostraram, a substituição de nós por a gente venha sendo implementada de forma acelerada nos últimos trinta anos no português do Brasil. Tal processo ocorreu não só na oralidade, mas também nos textos escritos, em que há a re-produção de situações dialógicas ou menor grau de formalidade (textos narra-tivos, cartas pessoais, publicidade e propaganda, e-mails etc.). Nos textos lidos em sala de aula, veiculados pela mídia eletrônica, extraídos dos jornais ou dos

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manuais didáticos, as formas pronominais inovadoras são recorrentes. Por que deixar, então de apresentar aos alunos tais estratégias alternativas que ocorrem em contextos lingüísticos e extralingüísticos específicos?

Portanto, essa aula é pensada para ensinar o conteúdo gramatical tradicional e

alguns aspectos por ela ignorados e ensinados sem maiores discussões.

PLANO DE AULA

ESCOLA: XXXXXX

PROFESSOR(A): XXXXXXXXX

SÉRIE: 8.ª TURMA: A TURNO: MATUTINO ENSINO: ( )Médio ( X) Fundamental

DATA: __/__/_____ HORÁRIO: ______ AULA 4: DURAÇÃO: 50 MINUTOS

Conteúdo: PRONOMES

Objetivo geral: Ensinar os pronomes

Objetivos específicos: levar o aluno a

a) entender, memorizar, reconhecer os pronomes;

b) entender os pronomes em uso no português;

c) ser capaz de entender por que certos pronomes parecem estar em desuso;

d) entender os contextos específicos de uso.

Procedimentos de ensino Recursos Procedimentos de avaliação

• Explicar o que e quais são os pronomes;

• Propor aos alunos a leitura do capítulo Na casa dos pronomes, de Emília no país da Gramática;

• Solicitar aos alunos que leiam a tabela dos prono-mes pessoais dos seus livros;

• Solicitar aos alunos que leiam o texto Tanta polêmi-ca, de Denise Fraga;

• Solicitar aos alunos que leiam as orações em que aparece o uso do vosso/vossa, Pai Nosso e Ave Maria;

• Exercícios com a música Anunciação, de Alceu Va-lença;

• Exercícios estruturais de pronome, do livro didático adotado.

• Textos;

• Livro didático;

• Música;

• Giz;

• Quadro.

• Avaliação contínua, obser-vando a participação oral nos momentos de discus-são;

• Avaliação específica por meio de prova bimestral.

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REFERÊNCIAS:CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Gramática: texto, reflexão e uso. São Paulo: Atual, 1998.

CIPRO NETO, Pasquale; INFANTE, Ulisses. Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Scipione, 1998.

FRAGA, Denise. Tanta polêmica. [S. l.]: Editora Globo, 2012. Disponível em: <http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI128749-15542,00.html>. Acesso em: 3 fev. 2011.

LOBATO, Monteiro. Emília no país da gramática. São Paulo: Brasiliense, 2005.

Após a leitura do plano de aula, daremos prosseguimento à aplicação dessa aula. O

primeiro passo seria explicar o que são pronomes, quais são e como os usamos. Sacconi

(1999, p. 158) traz a seguinte definição: “Toda palavra que substitui ou acompanha um

substantivo, indicando a pessoa gramatical, é um pronome”. Como exemplos ele traz:

Ela veio, mas não a vi.

Nossa casa é aquele barraco.

Após a introdução mais geral, a primeira atividade seria a leitura do texto Na casa

dos pronomes, de Monteiro Lobato. Como você pode perceber, ele aborda todos os

tipos de pronomes: pessoais, de tratamento, possessivos, demonstrativos, relativos,

interrogativos e indefinidos. Portanto, dependendo da turma, pode ser uma ótima

forma de apresentá-los ou revisá-los.

TEXTO 1

NA CASA DOS PRONOMES

— Chega de Adjetivos — gritou a menina. — Eu não sei por quê, tenho grande simpatia pelos PRONOMES, e queria visitá-los já.— Muito fácil — respondeu o rinoceronte. — Eles moram naquelas casinhas aqui de-fronte. A primeira, e menor, é a dos Pronomes PESSOAIS.— Ela é tão pequena... — admirou-se Emília.— Eles são só um punhadinho, e vivem lá como em república de estudantes.E todos se dirigiram para a casa dos Pronomes Pessoais enquanto Quindim ia ex-plicando que os Pronomes são palavras que também não possuem pernas e só se movimentam amarradas aos VERBOS.Emília bateu na porta — toque, toque, toque. Veio abrir o Pronome Eu.— Entrem, não façam cerimônia.Narizinho fez as apresentações.— Tenho muito gosto em conhecê-los — disse amavelmente o Pronome Eu. — Aqui na nossa cidade o assunto do dia é justamente a presença dos meninos e deste famoso gramático africano. Vão entrando. Nada de cerimônias.E em seguida:— Pois é isso, meus caros. Nesta república vivemos a nossa vidinha, que é bem impor-tante. Sem nós os homens não conseguiriam entender-se na terra.— Todas as outras palavras dizem o mesmo — lembrou Emília.— E nenhuma está exagerando — advertiu o Pronome Eu. — Todas somos por igual importantes, porque somos por igual indispensáveis à expressão do pensamento dos homens.

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— E os seus companheiros, os outros Pronomes Pessoais? — perguntou Emília.— Estão lá dentro, jantando.À mesa do refeitório achavam-se os Pronomes Tu, Ele, Nós, Vós, Eles, Ela e Elas. Es-ses figurões eram servidos pelos Pronomes OBLÍQUOS, que tinham o pescoço torto e lembravam corcundinhas. Os meninos viram lá o Me, o Mim, o Migo, o Nos, o Nosco, o Te, o Ti, o Tigo, o Vos, o Vosco, o O, o A, o Lhe, o Se, o Si e o Sigo — dezesseis Pronomes Oblíquos.— Sim senhor! Que luxo de criadagem! — admirou-se Emília. — Cada Pronome tem a seu serviço vários criadinhos oblíquos. . .— E ainda há outros serviçais, os Pronomes de TRATAMENTO — disse Eu. — Lá no quintal estão tomando sol os Pronomes Fu-lano, Sicrano, Você, Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Majestade e outros.— E para que servem os Senhores Pronomes Pessoais? — perguntou a menina.— Nós — respondeu Eu — servimos para substituir os Nomes das pessoas. Quando a Senhorita Narizinho diz Tu, referindo-se aqui a esta senhora boneca, está substituindo o Nome Emília pelo Pronome Tu.Os meninos notaram um fato muito interessante — a rivalidade entre o Tu e o Você. O Pronome Você havia entrado do quintal e sentara-se à mesa com toda a brutalidade, empurrando o pobre Pronome Tu do lugarzinho onde ele se achava. Via-se que era um Pronome muito mais moço que Tu, e bastante cheio de si. Tinha ares de dono da casa.— Que há entre aqueles dois? — perguntou Narizinho. — Parece que são inimigos...— Sim — explicou o Pronome Eu. — O meu velho irmão Tu anda muito aborrecido porque o tal Você apareceu e anda a atropelá-lo para lhe tomar o lugar.— Apareceu como? Donde veio?— Veio vindo... No começo havia o tratamento Vossa Mercê, dado aos reis unicamente. Depois passou a ser dado aos fidalgos e foi mudando de forma. Ficou uns tempos Vossemecê e depois passou a Vosmecê e finalmente como está hoje — Você, entrando a ser aplicado em vez do Tu, no tratamento familiar ou caseiro. No andar em que vai, creio que acabará expulsando o Tu para o bairro das palavras arcaicas, porque já no Brasil muito pouca gente emprega o Tu. Na língua inglesa aconteceu uma coisa assim. O Tu lá se chamava Thou e foi vencido pelo You, que é uma espécie de Você em-pregada para todo mundo, seja grande ou pequeno, pobre ou rico, rei ou vagabundo.— Estou vendo — disse a menina, que não tirava os olhos de Você. — Ele é moço e petulante, ao passo que o pobre Tu parece estar sofrendo de reumatismo. Veja que cara triste o coitado tem. . .— Pois o tal Tu — disse Emília — o que deve fazer é ir arrumando a trouxa e pondo-se ao fresco. Nós lá no sítio conversamos o dia inteiro e nunca temos ocasião de em-pregar um só Tu, salvo na palavra Tatu. Para nós o Tu já está velho coroca.E mudando de assunto:— Diga-me uma coisa, Senhor Eu. Está contente com a sua vidinha?— Muito — respondeu Eu. — Como os homens são criaturas sumamente egoístas, eu tenho vida regalada, porque represento todos os homens e todas as mulheres que existem, sendo pois tratado dum modo especial. Creio que não há palavra mais usada no mundo inteiro do que Eu. Quando uma criatura humana diz Eu, baba-se de gosto porque está falando de si própria.— E fora os Pronomes Pessoais não há outros?— Há sim — disse Eu —, moram aqui na casa ao lado. Uns pobres coitados...Os meninos despediram-se do Pronome Eu para irem visitar os “coitados” da outra casa, muito admirados da petulância e orgulho daquele pronominho tão curto.— Parece que tem o presidente da República na barriga — comentou a boneca.E parecia mesmo. . .Na outra casa os meninos encontraram os Pronomes POSSESSIVOS — Meu, Teu, Seu, Nosso, Vosso e Seus com as respectivas esposas e com os plurais. Emília, que achava as palavras Meu e Minha as mais gostosas de quantas existem, agarrou o casalzinho e deu um beijo no nariz de cada uma, dizendo:— Meus amores!Depois encontraram os Pronomes DEMONSTRATIVOS — Este, Esse, Aquele, Mes-mo, Próprio, Tal, etc, com as suas respectivas esposas e parentes. As esposas eram Esta, Essa, Aquela, Mesma, Própria, etc, e os parentes eram Essoutro, Estoutro, Aque-loutro, etc.— Muito bem — disse Narizinho. — Vamos adiante. Vejo alguns senhores muito con-hecidos.De fato, mais adiante os meninos encontraram os Pronomes INDEFINIDOS, muito fa-miliares a todos do bandinho. Eram eles: Algum, Nenhum, Outro, Todo, Tanto, Pouco, Muito, Menos, Qualquer, Certo, Vários, etc, com as suas respectivas formas femininas e os competentes plurais.— São umas palavrinhas muito boas, que a gente emprega a toda a hora — comentou Emília, sem entretanto beijar o nariz de nenhuma.Havia ainda os Pronomes RELATIVOS, quê servem para indicar uma coisa que está para trás. Eram eles: Que, Quem, O Qual, Cujo, Onde, etc, com as suas respectivas

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esposas e plurais. Quindim exemplificou:— O Visconde, cuja cartolinha sumiu, está danado. Nesta frase, o Pronome Cuja refere-se a uma coisa que ficou para trás.De fato, o Visconde havia perdido a sua cartolinha na aventura com as Palavras Ob-scenas. Deixara-a para trás.— Continue, Quindim — pediu Emília, e o rinoceronte continuou.— Temos, por fim, os Pronomes INTERROGATIVOS, que servem para fazer pergun-tas. Todos usam um Ponto de Interrogação no fim, para que a gente veja que são perguntativos.E os meninos viram lá os Interrogativos: Quê? Qual? Quanto? Quem?Emília gostou de conhecer aqueles Pronomes. Ela era a boneca que mais trabalho dava aos Senhores Pronomes Interrogativos.

LOBATO, Monteiro. Emília no país da gramática. São Paulo: Brasiliense, 2005.

Após a leitura desse texto, peça para seu aluno relê-lo, comparando à tabela de

pronomes que ele tem no livro didático ou gramática. Certamente, ele observará uma

tabela assim:

PRONOMES RETOS PRONOMES OBLÍQUOS

eu me, mim, comigo

Tu te, ti, contigo

Ele o, a, lhe, se, si consigo

Nós nos, conosco

Vós vos, convosco

Eles o, as, lhes, se, si, consigo

Essa tabela é apresentada na página 159, da gramática de Sacconi (1999). Não

apresentarei, por questões de espaço, todas as tabelas de pronomes. Mas você

continuará a pedir para que o aluno compare as outras tabelas que ele encontrar

na gramática com os pronomes trazidos no texto de Lobato. Peça para que anotem

alguma possível diferença.

No texto de Lobato, o você aparece como pronome de tratamento. Discuta com

seus alunos se você não assumiu outras funções no decorrer do tempo. Se eles não

constatarem por conta, mostre que formas como Essoutro, Estoutro, Aqueloutro

tornaram-se arcaicas. Enfim, essa atividade de comparação dos pronomes que aparecem

no texto e os pronomes listados nas gramáticas de hoje rende bastante discussão.

A essa altura da sua aula, você já teria discutido, também, como a tabela de pronomes

do caso reto ignora alguns outros, hoje, considerados pronomes amplamente em uso

na nossa língua. A tabela abaixo não deve ser levada para a sala de aula. Ela serve para

o embasamento de seu trabalho. Mas é claro que você pode explicar que o “a gente”,

antes palavra comum, tantas vezes foi usado até que entrou para o sistema pronominal

da língua.

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Situação atual:

PESSOA PRONOME SUJEITO

PRONOME COMPLEMENTO

DIRETO

POSSESSIVOS

P1 Eu me meu/minha

P2 tu/você te, lhe (se), você teu/tua/seu/sua/de você

P3 ele/ela o, a, (se)/lhe/ele(a) seu/sua/dele (a)

P4 nós/ a gente nos/a gente nosso (a)/ da gente

P5 vocês vocês/lhe/se seu(s)/sua(s)/de vocês

P6 eles/elas os, as, (se)/lhes/ eles(as)

seu(s)/sua(s)/deles(as)

Fonte: LOPES (2007, p. 116).

Por outro lado, vós/vos/vosso caíram em desuso, ou melhor, ficaram restritos a con-

textos específicos. Para vê-los em seu contexto mais comum, peça para que os alunos

leiam os textos 2 e 3.

TEXTO 2

Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós

o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.

O pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai-nos as nossas ofensas,

assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Não nos deixei

cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

TEXTO 3

Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre

as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.

Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora

da nossa morte.

Amém.

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Feita a leitura dos textos com as formas que ficaram restritas a determinados

contextos, peça aos alunos para lerem o texto Tanta polêmica. Primeiro uma leitura

silenciosa, depois uma leitura em voz alta com toda a sala.

TEXTO 4Tanta polêmica

Venha a nós o NOSSO reino, seja feita a NOSSA vontade, assim na terra como no céu...” Difícil explicar para nossos pequenos o que é VOSSO. Vira e mexe, conserto o pai-nosso por aqui, onde ainda se fala para que seja feita a vontade deles, pequenos, e não a do nosso pobre Pai lá de cima. No ano passado, estive debruçada nas conjugações verbais com o pequeno enorme Nino em sua árdua recuperação de português e vi que “quiserdes” é uma palavra realmente esquisitíssima para um menino de 12 anos. O uso do “vós” em nossa língua está totalmente em desuso. Talvez o encontrem na literatura, lendo um Machado de Assis ou um José de Alencar, e acho que será difícil ouvi-lo por aí em algum discurso empolado, que também caiu em desuso. Mas, por incrível que pareça, as escolas continuam a inclui-lo no “eu, tu, ele”. Não quero esticar a discussão. Acho mesmo que devemos estudar os rococós de nossa linda língua portuguesa, mas daí a ter várias questões na prova testando se o menino sabe usar o “vós” e valer pontos tirados à substituição de um “ouvíreis” por um “ouvires”, que tampouco é ouvido ou lido, já são outros quinhentos. É uma longa polêmica. Na verdade, o que me chamou a atenção mesmo foi ver os meninos insistindo no erro do pai-nosso, pedindo livremente, sem culpa nen-huma, que seja feita a NOSSA vontade. Nem me incluo nesse pacote “nossa vontade”, nossa, dos reles mortais, pois sei que, se pudessem mesmo, eles rezariam a oração que o senhor nos ensinou com des-carados “venha a MIM” e “seja feita a MINHA vontade, na terra, no céu e onde quer que seja”. Toda a humanidade, a princípio, luta pelo seu. Cabe a nós, mães, chatas criaturas com pequenas funções divinas, além de todos os tê-nis recolhidos pela sala, fazê-los entender a importância de não pen-sar primeiro em si próprios e sim no coletivo. E ainda fazemos isso de-safiando toda a psicanálise, que fez o favor de tirar um pouco da culpa das últimas gerações, mas, desculpe o desabafo, às vezes, produz criaturas analisadas extremamente egocêntricas e mal-educadas, quando não fica a cargo do papai e da mamãe um pequeno combate ao ego. Mas também esta é uma longa discussão. Ando mesmo com os homenzinhos de minha cabeça fazendo hora extra no plenário, de tanta polêmica. Ao contrário dos homens do nosso Congresso, eles insistem em ficar até mais tarde, discutindo os novos projetos daqui de casa, pois, se há coisa que os filhos nos dão em troca são questionamentos. A questão do momento é musical. Nino adora música sertaneja. Sei lá por que, sei lá onde começou ouvir, só sei que até eu já sei algumas letras de sofrível poesia de cor por conta do som alto que rola aqui

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em casa. Podia até imaginar que meus filhos iriam achar careta meu Caetano e meu Chico, mas nunca pensei que tentaria convencê-los a ouvir Skank ou Jota Quest. Nada contra os sertanejos, até gosto, mas algumas letras realmente me ferem o ouvido. Temos tido alguns dias de briga de volume entre os sertanejos do Nino, o Led Zeppelin do Pedro e nossas “músicas de velho”. Será, meu Pai, que vamos ter que nos render a andar pela casa com nossos fiozinhos de iPod nos ouvidos, cada um no seu mundo? Bom, seja feita a VOSSA vontade.

Fonte: <http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI128749-15542,00.html>.

Acesso: 3 fev. 2011.

Depois da leitura compartilhada, pode-se discutir essa percepção da mãe quanto ao

modo como a gramática vem sendo ensinada na escola. É uma percepção que entende

que o pronome vosso não é tão usado assim no nosso cotidiano, portanto adquire

importância menor no contexto de outros assuntos gramaticais mais relevantes. Ponto

para a mãe que teve essa percepção e ponto para a professora se conseguir evitar que

aconteça em sala de aula uma cobrança demasiada de um fato da língua que se tornou

praticamente arcaico.

Mas se o vós já não faz parte do sistema da língua, mas aparece em determinados

contextos, o que devo fazer como professor? A minha resposta é simples. Você deve

levar o conhecimento ao aluno. Mas deve, em uma avaliação, por exemplo, dar mais

importância (ou nota) àqueles conteúdos que farão maior diferença ao aluno. A mãe

no texto teve a exata noção da dimensão da questão: “Acho mesmo que temos que

estudar os rococós de nossa língua portuguesa, mas daí a ter várias questões na prova

testando se o menino sabe usar o “vós” e valer pontos tirados à substituição de um

“ouvíreis”, que tampouco é ouvido ou lido, já são outros quinhentos. É uma longa

polêmica”.

Para a parte de exercícios e fixação, você pode pedir para eles fazerem o que consta

ao final da lição da gramática ou escolher um texto em que o pronome seja empregado

em um contexto mais cotidiano, como em músicas, para as quais podem ser feitas as

seguintes questões.

1) Leia a letra da música Anunciação, de Alceu Valença.

Na bruma leve das paixões

Que vêm de dentro

Tu vens chegando

Prá brincar no meu quintal

No teu cavalo

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Peito nu, cabelo ao vento

E o sol quarando

Nossas roupas no varal...(2x)

Tu vens, tu vens

Eu já escuto os teus sinais

Tu vens, tu vens

Eu já escuto os teus sinais...

A voz do anjo

Sussurrou no meu ouvido

Eu não duvido

Já escuto os teus sinais

Que tu virias

Numa manhã de domingo

Eu te anuncio

Nos sinos das catedrais...

Tu vens, tu vens

Eu já escuto os teus sinais

Tu vens, tu vens

Eu já escuto os teus sinais...

Ah! ah! ah! ah! ah! ah!

Ah! ah! ah! ah! ah! ah!...

2)) Faça um levantamento de todos os pronomes que você encontrar.

3) Classifique os pronomes em pessoais, demonstrativos, interrogativos, de tratamento, relativos.

4) Em Tu vens, o uso está correto de acordo com a gramática?

5) Pesquise o significado de quarando.

6) Ouça as pessoas à sua volta e analise se, na sua região, usa-se mais o tu ou o você.

conSideraÇÕeS FinaiS

O plano de aula apresentado neste capítulo é apenas uma possibilidade de trabalho

diante de tantas outras abordagens possíveis e de tanto material que pode adquirir sig-

nificado em sala de aula. Para Lopes (2007, p. 116), no caso do ensino dos pronomes,

“deixar de apresentar aos alunos o atual sistema em toda sua complexidade é um equí-

voco, mas não mencionar a existência dos pronomes em desuso seria um equívoco

ainda maior”. Ainda segundo Lopes (2007, p. 116),

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trata-se de um conhecimento passivo que precisa estar disponível, para que seja possível ler um texto em sincronias passadas (o cancioneiro medieval ou poesia trovadoresca dos primeiros tempos de nossa história, a Carta de Caminha, a poesia, os romances de época).

Referências

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BRITTO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos: ensino de língua x tradição

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CIPRO NETO, Pasquale; INFANTE, Ulisses. Gramática da Língua Portuguesa. São

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PITELLI, Claudino. Didática geral. 21. ed. São Paulo: Ática, 1997.

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ZANINI, Marilurdes. Uma visão panorâmica da teoria e da prática do ensino de língua

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Anotações