rumo à militarização da marginalização ur

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203 O projet o penal do neoliberali smo en- cerra um paradoxo: pret ende increment ar mai s Est ado nas áreas policial, de tribu- nai s criminai s e de pri sões para solucionar o aumen t o gener alizado da insegur ança objet iva e subjet iva que é, ela mesma , cau- sada por menos Est ado no front econô- mico e social nos paí ses avançados do Pri- mei ro Mundo. Ist o reaf i rma a onipot ência do Leviat ã no domínio restri t o da manu- t enção da ordem pública, simbolizado pela bat alha em curso contra a delinqüência de rua e a migração clandest ina que surgiu em t odos os lados, preci sament e quando o Est ado declara e demonstra ser incapaz de impedi r a decomposição do trabalho assa- lariado e de cont er a hipermobilidade do capi t al que converge par a desest abilizar t odo o si st ema social ao esmagá-lo em um brut al e t ent acular moviment o de at aque. E, como já mostrei em outros lugares, i sso não é uma mera coincidência: é preci sa- ment e devido ao f at o de que as eli t es est a- t ai s , convert idas à nova ideologia domi- nant e do mercado t odo-poderoso i rradiada dos Est ados Unidos, reduzem ou abando- nam as prerrogat ivas do Est ado nos assun- t os socioeconômicos que elas devem, de t odas as f ormas, aument ar e ref orçar sua mi ssão nos assunt os de “segurança – após t erem-na reduzido abrupt ament e à sua úni- ca dimensão criminal – e, além di sso, f a- zer a assepsia do crime da classe baixa nas ruas em vez de enquadrar as infrações da classe al t a nas grandes corporações. Isso porque expandi r o Est ado penal lhes per- mi t e, em primei ro lugar , abaf ar e cont er as desordens urbanas ger adas nas camadas inf eriores da estrut ura social pela simul t â- nea desregulament ação do mercado de tra- balho e decomposição da rede de seguran- ça social. Também permi t e que os elei t os par a cargos major i t ár ios con t enham seu f ici t de legi t imidade polí t ica com a con- f i rmação da aut oridade est at al nessa limi- t ada área de ação, em um moment o no qual t êm pouco mai s a of erecer a seus elei- t ores 1 . Mais signi f icat ivament e ainda, o pro- Rumo à mili t a r ização da ma rginalização u r bana L OÏC WACQUANT* C RIMINO L OGIA

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O projeto penal do neoliberalismo en-cerra um paradoxo: pretende incrementar“mais Estado” nas áreas policial, de tribu-nais criminais e de prisões para solucionaro aumento generalizado da insegurançaobjetiva e subjetiva que é, ela mesma, cau-sada por “menos Estado” no front econô-mico e social nos países avançados do Pri-meiro Mundo. Isto reafirma a onipotênciado Leviatã no domínio restrito da manu-tenção da ordem pública, simbolizado pelabatalha em curso contra a delinqüência derua e a migração clandestina que surgiuem todos os lados, precisamente quando oEstado declara e demonstra ser incapaz deimpedir a decomposição do trabalho assa-lariado e de conter a hipermobilidade docapital que converge para desestabilizartodo o sistema social ao esmagá-lo em umbrutal e tentacular movimento de ataque.E, como já mostrei em outros lugares, issonão é uma mera coincidência: é precisa-mente devido ao fato de que as elites esta-tais, convertidas à nova ideologia domi-

nante do mercado todo-poderoso irradiadados Estados Unidos, reduzem ou abando-nam as prerrogativas do Estado nos assun-tos socioeconômicos que elas devem, detodas as formas, aumentar e reforçar suamissão nos assuntos de “segurança” – apósterem-na reduzido abruptamente à sua úni-ca dimensão criminal – e, além disso, fa-zer a assepsia do crime da classe baixa nasruas em vez de enquadrar as infrações daclasse alta nas grandes corporações. Issoporque expandir o Estado penal lhes per-mite, em primeiro lugar, abafar e conter asdesordens urbanas geradas nas camadasinferiores da estrutura social pela simultâ-nea desregulamentação do mercado de tra-balho e decomposição da rede de seguran-ça social. Também permite que os eleitospara cargos majoritários contenham seudéficit de legitimidade política com a con-firmação da autoridade estatal nessa limi-tada área de ação, em um momento noqual têm pouco mais a oferecer a seus elei-tores1. Mais significativamente ainda, o pro-

Rumo à militarização damarginalização urbana

LOÏC WAC Q U A NT*

CRIMIN OLO GIA

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jeto penal do neoliberalismo é muito maissedutor e muito mais nefasto quando seinfiltra nos países atravessados por profun-das desigualdades de condições sociais ede oportunidades de vida, privados das tra-dições democráticas e desprovidos das ins-tituições públicas capazes de amortecer oschoques provocados pelas concomitantestransformações do trabalho, dos laços so-ciais e dos sujeitos no limiar do novo sé-culo.

Isto significa dizer que a alternativa entreo tratamento social da pobreza , suas cau-sas e correlações, apoiado em uma visãoduradoura guiada pelos valores da justiçacivil e solidariedade, e o tratamento pe-nal, dirigido às frações mais disruptivas do(sub)proletariado e focado no curto prazodos ciclos eleitorais e nos pânicos moraisorquestrados por uma máquina de mídiacomercial ansiosa por t irar proveito dadramaturgia moral do crime, diante da quala Europa se encontra na trilha dos EstadosUnidos, se coloca em termos particular-mente dramáticos na América do Sul, empaíses recém-industrializados e que sofre-ram décadas de regimes autoritários, comoo Brasil e seus principais vizinhos, Argen-tina, Colômbia e Venezuela, os quais sesituam entre os principais importadores doestilo estadunidense de discurso e de polí-t icas penais. D e Brasí l ia a Caracas ouBuenos Aires, os agentes públicos têm seapressado em adotar medidas que imitamaquelas apresentadas pelo (ou amplamen-te atribuídas ao) então prefeito RudolphGiuliani na cidade de Nova Iorque; e ospolíticos têm feito de tudo para serem fo-tografados ao lado da encarnação viva dorigor penal, William Bratton, profeta con-temporâneo da poderosa religião da “tole-rância zero” e “consultor em policiamentourbano” pago a peso de ouro por suas con-ferências ao redor do mundo, após ter sidodemitido da chefia do Departamento dePolícia da cidade de N ova Iorque, em1994. Não que essas políticas sejam parti-

cularmente eficientes – de fato, sabemosagora que elas mostraram ser notavelmen-te ineficientes, até mesmo contraproducen-tes em alguns aspectos, no próprio ambi-ente no qual se originaram2; mas elas sãoidealmente adequadas para encenar publi-camente seu compromisso, recentementedescoberto, de exterminar o monstro docrime urbano e por rapidamente se alia-rem aos estereótipos negativos dos pobres,alimentados pela sobreposição dos precon-ceitos de classe e etnicidade. Mas, alémde seus benefícios simbólicos, o desdobra-mento da retórica penal “made in USA” ea implementação das políticas pró-ativasde apenamento da marginalidade urbanaderivada dessa retórica, prometem ter conse-qüências mais amplas sobre o tecido social,assim como nas relações Estado-sociedadee no formato do Estado pós-keynesiano queemergiu da revolução neoliberal. Isto é par-ticularmente verdadeiro no Brasil, que figu-ra entre os mais entusiastas defensores dasplataformas anti-crime copiadas da NovaIorque de Giuliani e que provê, nesse senti-do, um laboratório vivo para antecipar oimpacto desastroso da “tolerância zero” nospaíses do Segundo Mundo.

Desigualdade vertiginosae a cor da violência

Em primeiro lugar, por motivos relaci-onados à sua longa história colonial e àsua posição subordinada na estrutura dasrelações econômicas internacionais (umaestrutura de dominação encoberta pela ca-tegoria hipocritamente ecumênica da “glo-balização”), e apesar do enriquecimentocoletivo trazido pelas décadas de industri-alização, a sociedade brasileira permanececaracterizada por uma desigualdade socialvertiginosa e pela pobreza disseminada.

Após a “década perdida” dos oitenta,marcada pela estagnação econômica e poruma constante deterioração dos principaisindicadores sociais, o Brasil implementou

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uma série de reformas econômicas e soci-ais que reduziram drasticamente o papeldo Estado e abriram a economia ao capitale comércio além-mar3 . Juntos, a desigual-dade social abissal, os serviços públicosdef icientes ou inexistentes e o extremodesemprego e subemprego no contexto deuma economia urbana polarizante e de umsistema de justiça corrupto alimentaram oinexorável crescimento da violência crimi-nal que tem sido a calamidade das grandescidades do Brasil e da maioria dos paísesda América Latina. Assim, estima-se quecerca de 140.000 pessoas morram por cau-sas violentas todos os anos nos centros ur-banos do continente, onde um em cadatrês habitantes é vítima direta ou indiretade agressão interpessoal4 .

Desde 1989, o crime letal tem sido aprincipal causa de mortalidade no Brasil,com o homicídio recebendo o título de“grande vilão da saúde pública” nos anosoitenta, durante os quais o índice nacionalduplicou para chegar a 20 em cada 100.000habitantes – duas vezes mais que o picodos Estados Unidos no início dos 1990 ecerca de quinze vezes o nível das socieda-des da Europa O cidental5 . A incidência dehomicídios no Rio de Janeiro, São Paulo eRecife atualmente excede os 60 em cada100.000 habitantes, um índice próximo aodas metrópoles mais violentas das Améri-cas nos últimos anos (Nova Orleans, Detroite Washington ao norte, e Caracas, Lima eMedellín, no sul, ostentam índices acimade 80 no início dos anos noventa), e muitomais alto do que qualquer área urbana bra-sileira tenha experimentado anteriormente.

O temor e a insegurança físicos se dis-seminaram por todas as metrópoles enquan-to as batalhas entre gangues e o fogo cru-zado entre a polícia e os bandidos forte-mente armados se espalharam para os dis-tritos adjacentes, devido à proximidadeespacial entre ricos e pobres nas cidadesbrasileiras (como nas áreas altas da Zona

Sul e Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro),enquanto os roubos à mão armada em ôni-bus, assaltos em zonas comerciais e seqües-tros de residentes abastados se tornarammais comuns. As ruas de classe média e asresidências de classe alta se tornaram ver-dadeiras fortalezas protegidas por portõesde ferro, interfones, cães de ataque, guar-das armados dentro de guaritas ou por ba-tidas policiais depois do anoitecer, enquan-to as “comunidades cercadas” , isoladas dacidade por muros altos e tecnologias avan-çadas de vigilância, se espalharam e trans-formaram-se em um ingrediente desejado dostatus de elite6 . Uma enorme indústria desegurança privada cresceu para prover prote-ção personalizada a edifícios residenciais,empresas e clubes sociais, assim como paraindivíduos ricos e suas famílias.

Como resultado da onipresença da vio-lência nas ruas e escolas, nas festas popu-lares de final de semana e nos jogos defutebol, assim como na televisão, dois ter-ços dos adolescentes justificam o seu com-portamento agressivo como meio de auto-defesa, e quatro em cada dez apelariam àviolência para proteger um amigo ou res-ponder a uma afronta à sua dignidade. Aomesmo tempo, praticamente todos concor-dam em que a violência deve ser combati-da. No entanto, na ausência de uma redesocial de segurança que seja viável, a ju-ventude dos bairros populares, esmagadospelo peso do desemprego e subempregocrônicos, certamente continuará a procu-rar o “capitalismo de rapina” das ruas (comoMax Weber diria) como meio de sobrevi-vência, para obter bens de consumo dese-jados e para alcançar os valores do etosmasculino da honra, se não para escaparda privação cotidiana.

O aumento espetacular da repressãopolicial nos últimos anos, simbolizada pelaocupação militar nas favelas do Rio comoforma de prevenir incidentes durante aConferência das N ações Unidas para o

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Meio Ambiente e o Desenvolvimento7 , emmaio de 1992, ou novamente em marçode 2003, quando o Exército foi chamadopara patrulhar as principais avenidas dacidade com tanques para proteger as festasdo carnaval contra ataques de gangues dotráfico, tem sido ineficaz porque a repres-são não tem influência sobre as causas dessacriminalidade que visa, através da predação,criar uma economia à margem da econo-mia oficial, assim como prevenir a agres-são pelo desenvolvimento de uma dissuasãoviolenta8 . E, também, porque a polícia nãoé nem um remédio, nem uma agência ex-terior ao vórtice maligno do conflito vio-lento, das drogas e da vingança privada quecorrói o tecido das regiões da classe maisbaixa e alimenta sua punição no discur-so público, mas um elemento essencialdaquilo que seus habitantes melancoli-camente chamam “condomínio do dia-bo ” 9 . Eles mesmos estão profundamen-te envolvidos no tráf ico de drogas, ven-da de armas, seqüestros, extorsões, e or-denam at ividades i legais das quais ex-traem subornos em troca de tolerânciaou proteção. A polícia é tão temida edesprezada pelos habi tantes das zonaspobres como os bandidos que ela deve-ria combater. Uma pesquisa de 1996 re-vela que quatro em cada dez brasi leirosnão têm “conf iança alguma na polícia” ,e outros três apenas “alguma conf iança” .O s moradores do Rio vêem a delegaciapolicial como um lugar perigoso no qualseus direitos, honra e integridade f ísicaserão mais provavelmen te violados doque defendidos. Conseqüentemente, ape-nas uma em cada cinco vít imas cariocasde roubo ousa registrar queixa10 .

De fato, a insegurança criminal no Bra-sil urbano é diferente no sentido de que nãoé atenuada mas sim agravada pela interven-ção das forças defensoras da lei. O uso roti-neiro da violência letal pela Polícia Militar,sob a alegação de manutenção da ordem, eo recurso habitual da Polícia Civil, respon-

sável por investigações judiciais, à torturaatravés da pimentinha (choques elétricos) edo pau-de-arara11 para fazer os suspeitos“confessarem”, ao seqüestro e à extorsão desuborno dos acusados, suas testemunhas eparentes, assim como execução sumária e“desaparecimentos” inexplicáveis, mantémum clima de terror entre as classes baixas,que são seu alvo principal, e banaliza a bru-talidade no coração do Estado. Uma estatís-tica: em 1992, a Polícia Militar de São Pau-lo matou 1.470 civis – contra 24 mortospela polícia da cidade de Nova Iorque e 25pela de Los Angeles –, representando umquarto das vítimas de morte violenta nametrópole aquele ano. Esse é, de longe, orecorde absoluto nas Américas12 . Essa vio-lência policial partilha uma tradição nacio-nal secular de controle dos despossuídos atra-vés da força, produzida pela escravidão co-lonial e pelos conflitos agrários e reforçadapelo regime autoritário de Getúlio Vargas(1937-1945) e por duas décadas de ditaduramilitar (1964-1985) apoiada pelos EstadosUnidos, durante a qual a luta contra a “sub-versão interna” se disfarçou como repressãoda delinqüência. Essa violência também érespaldada por uma concepção hierárquicae paternalista de cidadania baseada na opo-sição cultural entre “feras e doutores”, os“selvagens” e os “cultivados”, a qual tendea assimilar marginais (“de vida social bai-xa”), trabalhadores e criminosos, de tal for-ma que a aplicação da ordem de classe e aaplicação da ordem pública estão efetiva-mente misturadas13 .

Outro fator que complica ainda mais oassunto: a estreita conexão entre hierarquiade classe e estratificação racial e a discrimi-nação de cor endêmica à polícia e às buro-cracias judiciais brasileiras. Apesar de oBrasil ter desenvolvido um sistema flexí-vel de relações etno-raciais baseado nofenótipo, admitindo uma multiplicidadede categorias ambíguas e permitindo umamobilidade intra e intergeracional ao lon-go de um continuum de tons de pele –

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muito diferente do rígido padrão dicotô-mico dos Estados U nidos, baseado naancestralidade –, que se traduziram na au-sência de segregação rígida e de guetização,existe uma associação de longa data entrenegritude e periculosidade que remete àslutas contra a escravidão e ao medo disse-minado dos libertos logo depois da liber-tação14 . Pessoas com aparência africana têmsido historicamente percebidas como físi-ca e culturalmente inclinadas à ilegalida-de, depravação e imoralidade, e os negrostêm sido amplamente considerados comoprincipais responsáveis pela desordem nascidades, tornando-os os alvos prioritáriosda repressão penal. Tanto que “o incipientepapel da polícia como agente disciplinadordirecionado contra os escravos deixou umlegado persistente nas técnicas policiais enas atitudes mutuamente hostis entre polí-cia e aqueles setores da sociedade que senti-ram o peso de suas ações” durante décadasapós a abolição15 . No início do século XX,Raimundo N ina Rodrigues, professor demedicina legal na Universidade da Bahia,elaborou uma influente tipologia racial quediferenciava brancos, mulatos e negros e im-putava aos últimos tal tendência natural paraa ofensa criminal que justificaria o estabele-cimento de diferentes padrões de responsa-bilidade penal e, dessa forma, códigos le-gais separados para cada grupo16 . Depois,nos anos entre-guerras, os criminólogos bra-sileiros se uniram no compenetrado debatenacional sobre a mistura de raças, discutin-do se a miscigenação era responsável peloalto índice de “delinqüência social” entreas massas, com a famosa declaração de la-mento do professor do Recife Laurindo Leão:“Uma nação mestiça é uma nação invadidapor criminosos”17 .

Atualmente, a percepção negativa emrelação às pessoas de pele escura contami-na e incide no funcionamento da totalida-de das instituições encarregadas de lidarcom o crime, desde a vigilância e apreen-são policial até a condução de investiga-

ções e o arquivamento de acusações, à con-denação, sentença e administração da pu-nição. Isso é prontamente reconhecido pe-los habitantes das grandes cidades, trêsquartos dos quais concordam com a opi-nião de que os negros e mulatos são “maisvisados que os brancos” pela polícia.

Está documentado que, em São Paulo eem outras grandes cidades, os detentos depele escura se “beneficiam” da vigilânciaespecial por parte da polícia, que eles têmmais dificuldade em ter acesso à ajuda le-gal e que, pelos mesmos crimes, recebemsentenças mais pesadas que seus compa-triotas brancos18 . O resultado é que, deforma muito semelhante a seus homólogosdos Estados Unidos, os estabelecimentosbrasileiros de detenção são ocupados predo-minantemente por negros e mulatos: em me-ados dos anos oitenta, sete em cada dez in-ternos nas cadeias e prisões do Rio de Janei-ro eram negros ou pardos, aproximada-mente o dobro da proporção dessas duascategorias afro-brasi leiras na populaçãoda cidade. Similarmente, os afro-brasi-leiros formavam 52% dos encarceradosem São Paulo, mais de duas vezes seupeso na demograf ia da metrópole (22%)naquela época19 . E, uma vez postos atrásdas grades, os condenados de pele escu-ra estão sujeitos às condições mais du-ras da detenção e sofrem as mais sériasviolências carcerárias, apenas pelo fatode serem oriundos das frações mais des-t ituídas e vulneráveis da classe trabalha-dora. Apenar a pobreza contribui paratornar “ invisível” a questão da cor e re-força a dominação etno-racial ao assegu-rar-lhe a homologação do Estado20.

Além disso, junto com a desigualdadee marginalidade urbanas profundamentearraigadas, a violência urbana no Brasilencontra um segundo apoio importante nacultura política, que permanece marcadapela experiência de uma virulenta repres-são do Estado sobre as batalhas agrárias e

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as lutas da classe operária, assim comopelas cicatrizes do domínio militar21 . Sobtais condições, oferecer o Estado penal pararesponder às desordens geradas pela des-regulamentação da economia, pela des-socialização do trabalho assalariado e pelorelativo e absoluto empobrecimento deseções do proletariado urbano através doaumento dos meios, alcance e intensida-de da intervenção do aparelho policial ejudicial contribui para (re)estabelecer umaverdadeira ditadura sobre os pobres. Mas,considerando a legitimidade dessa admi-nistração autoritária da ordem social e essapolítica de “ limpeza da rua” através douso sistemático da força do Estado sobre abase da estrutura étnica e de classe, quempode definir o perímetro para tais ações? Ecomo podemos ignorar que, na ausênciadas garantias jurídicas mínimas que ape-nas uma burocracia racional (adequada,grosso modo , ao esquema weberiano)investida da administração da justiça podeoferecer, o recurso a técnicas punitivas delei-e-ordem e a políticas “made in USA” éfundamentalmente antiético para o esta-belecimento de uma sociedade pacífica edemocrática, cujas bases devem ser a igual-dade de todos diante da lei e de suas agên-cias de aplicação? O atual funcionamentoda polícia e dos tribunais brasileiros é tãoineficiente, deficiente e caótico, do pontode vista estritamente jurídico, que preci-sariam ser reorganizados de cima a baixopara poderem fazer emergir as mínimasnormas estipuladas pelas convenções in-ternacionais, ao menos para assegurar osníveis básicos de uniformidade e justiçaatravés das linhas de cor e de classe22.

Calamidade carceráriae o impasse punitivo

U ma últ ima consideração confrontafortemente a crescente confiança no apare-lho carcerário para controlar as seqüelasda marginalidade e da desordem urbanaexacerbadas no Brasil logo após a desregu-

lamentação neoliberal: o pavoroso Estadodos cárceres, prisões e cadeias do país, quemais parecem campos de concentraçãopara os despossuídos ou empreendimen-tos públicos para a reciclagem industrialdos restos sociais e estão bem longe daimagem de instituições judiciais voltadasa alguma proposta penal identificável – sejaa dissuasão, a neutralização ou a retribui-ção, deixando de lado a reabilitação. Osistema penitenciário do Brasil efetivamen-te ostenta os defeitos das piores cadeias doTerceiro Mundo, numa escala digna do Pri-meiro Mundo, devido a seu tamanho ab-soluto, a seu enraizamento urbano e à per-sistente indiferença dos políticos e do pú-blico, que entretanto demonstra reiteradasvezes ser favorável aos crescentes excessosno campo correcional.

Pelos padrões ocidentais contemporâ-neos, os estabelecimentos carcerários doBrasil padecem de doenças que lembramos calabouços feudais. Seus prédios são ti-picamente decrépitos e insalubres, comconcreto desmoronando por toda parte,pintura descascando, encanamento defici-ente e instalações elétricas defeituosas, comágua de esgoto correndo pelo chão ou ca-indo pelas paredes – o fedor dos dejetosera tão forte na cadeia “modelo” de Lemosde Brito (Rio de Janeiro) na primavera de2001 que um dos bens mais apreciadospelos presos era o desinfetante perfumadoque borrifavam em suas celas na tentativade combater a sufocante pestilência. A ex-trema ruína física e a grotesca superlotaçãocriam condições de vida abomináveis e umasituação catastrófica em termos de higie-ne, diante da total falta de espaço, ar, luz,água e muitas vezes comida. Em 1987, asautoridades penais do país estimaram queenfrentavam um déficit de aproximadamen-te 50.000 leitos; em 2003, a diferença en-tre a capacidade e o número de internost i nha aumen t ado para 104 . 000 , nãoobstante o fato de aproximadamente me-tade dos condenados estarem foragidos: o

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Ministério da Justiça estima que os casosde “mandados não cumpridos” , sentençasnão executadas porque o réu não é locali-zado ou fugiu, excede a população atrásdas grades! Apesar da permanente constru-ção de presídios, acelerada após uma ondade tumultos em 1997, não é raro que osestabelecimentos penais brasileiros funci-onem com uma lotação de quatro a seisvezes maior do que sua capacidade. Noscárceres da polícia urbana, os detentos, queem sua maioria não foram acusados nemjulgados, ficam amontoados durante me-ses e até anos a fio, numa situação de com-pleta ilegalidade, em número de até oitoem uma cela projetada para apenas um.Na Casa de Detenção, no complexo deCarandiru, em São Paulo, os internos com-primidos dos blocos disciplinares recebe-ram o apelido de “amarelos”23 . Na maiorparte dos casos, os presos brasileiros dor-mem amontoados uns contra os outros nochão , sobre um cobertor ou um f inocolchonete de espuma fornecido pela fa-mília ou comprado de outros presidiári-os, mas muitos são forçados a descansarpendurados nas grades das celas ou dei-tados em redes devido ao espaço insuf i-ciente no chão. A superlotação é exacer-bada pela incompe tência burocrá t ica ,que faz com que milhares de presos acada ano permaneçam sob custódia de-pois do término de sua sentença, sendoessa cruel humilhação o mot ivo princi-pal para os tumultos furiosos que perio-dicamen te agi tam o sistema carceráriobrasi leiro24.

A seguir, vem a negação maciça de aces-so à assistência legal e aos cuidados bási-cos de saúde, resultando na disseminaçãoacelerada de tuberculose, Aids e outrasdoenças contagiosas entre a classe traba-lhadora urbana. Estudos revelam que maisde um quinto da população carcerária doBrasil é HIV positiva, e um percentual nãorevelado sofre de infecções respiratóriassérias, doenças causadas por bactérias e

problemas de pele piorados pelas condi-ções insalubres da detenção25 . Apesar dasdeploráveis condições de saúde dos inter-nos, poucos estabelecimentos contam comos serviços de um médico em horário inte-gral ; em quase todos, as enfermarias fun-cionam com enfermeiros e presos volun-tários; os únicos medicamentos que ospresidiários recebem vêm de suas famí-lias (exceto no estado do Rio de Janeiro,que recen temen te melhorou seu apoiofarmacêut ico para os condenados), quetambém fornecem as roupas e acessóri-os de cama e de banho. O s presos grave-mente doentes raramente são transferi-dos para tratamento externo e freqüente-men te morrem den tro das instalaçõesprisionais, que não são equipadas para(nem têm intenção de) tratá-los. Comoexplica um detento que sofria de A ids enão estava recebendo medicação em umcárcere de São Paulo: “ Q uando nós pe-dimos à polícia para nos levar ao ProntoSocorro, eles dizem que os ladrões me-recem morrer”26. Essa é uma violação fla-grante da política correcional oficial , maso recurso a advogados está fora das pos-s ib i l idades da maior i a dos presos , osdefensores públicos estão distantes e sãopoucos, e os monitores dos direitos hu-manos estão sobrecarregados e sem con-dições de providenciar uma solução.

N o entanto, a def iciente assistênciamédica e os inqualificáveis serviços legaisficam em segundo plano diante da violên-cia generalizada entre os presidiários, sejapor maus-tratos, extorsão, surras, estuprose homicídios incentivados pela absurdasuperlotação, pela falta de separação emdiferentes categorias de presos, pela ocio-sidade forçada (apesar de o Código Penalestipular que todos os prisioneiros devemparticipar de programas de educação ou detrabalho) e pelas falhas da supervisão doestabelecimento. A brutalidade letal é umacaracterística banal nas casas de detençãobrasileiras; ciclos de abuso, agressão e vin-

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gança marcam o tempo da vida cotidianaatrás das grades na maioria das instalações27.Em 1994, o censo nacional das prisões re-portou 131 mortes entre presidiários e 45suicídios, mas sabe-se que os incidentesletais são significativamente sub-relatados.Na Casa de Detenção de São Paulo, umamédia de dez presos por ano foi assassina-da a facadas no final dos anos noventa e amaioria dos esfaqueamentos ocorreu nassegundas-feiras, “dia de coleta” , quandoas dívidas contraídas devem ser pagas apósa visita das famílias nos domingos. O utrosforam enforcados, sufocados, surrados atéa morte, envenenados ou injetados comdoses maciças de drogas para disfarçar oshomicídios como suicídios28. O s assassi-natos e as ameaças de morte entre os presi-diários ocorrem dian te da indi ferença,quando não da aquiescência, das autorida-des prisionais – em alguns casos, os inter-nos são recompensados com favores pelosguardas, que os usam como um instrumentoa mais para a manutenção da ordem.

A violência assassina entre os prisionei-ros é estimulada por uma grande falta de pro-fissionais nas instalações e pelo treinamentoe pagamento insuficiente dos guardas, os quaispodem ser facilmente subornados para dei-xar entrar não apenas comida, celulares e vi-sitantes, mas também drogas e armas. Em2001, a Casa de Detenção de São Paulo con-tava com apenas uma dúzia de guardas paravigiar cerca de 1.700 internos – havia inclu-sive menos agentes no serviço nas segundas-feiras, quando o absenteísmo se aguçava –, ea situação é pior hoje em dia nos cárceresdas grandes cidades, onde é comum que umúnico guarda vigie cerca de duzentos detentos.Na maioria das instalações, os funcionáriospermanecem longe das galerias dos internos,por medo de serem agredidos. Isso cria umvácuo de poder, que os grupos criminosos eos líderes mais cruéis rapidamente preen-chem. As gangues e os prisioneiros violen-tos, chamados de “xerifes”, exercem, então,o controle de fato sobre o acesso a comida,

empregos, programas de educação, visitas,drogas e outros bens que entram nessa eco-nomia paralela. Em muitas prisões de SãoPaulo, a relativa segurança das celas fechadasdeve ser comprada ou alugada com o “xerife”local por algumas centenas de dólares, dei-xando os internos pobres e fracos dormindonos corredores, onde ficam expostos à vio-lência. Nos cárceres do Rio de Janeiro, asgangues ou facções que dominam a econo-mia criminal implantada nas favelas da cida-de também impuseram sua regra atrás dasgrades: durante uma visita a uma unidade desegurança média do vergonhoso complexopenitenciário de Bangu, em outubro de 2001,todas as minhas propostas e pedidos (falarcom os presos, tirar fotos, percorrer uma de-terminada ala do edifício ou entrar em umacela) tiveram de ser autorizados não apenaspelo guarda carcerário mas também pelo lí-der interno do Comando Vermelho, que nosacompanhou por todo lado.

Porém, o pior da vida sob encarceramen-to no Brasil ainda é a excessiva violência dasautoridades, desde a brutalidade cotidiana atéa tortura institucionalizada, execuções sumá-rias e mortes em massa durante e após asrebeliões que periodicamente irrompem comoreação às condições desumanas de detenção,cujo ponto máximo continua a ser o massa-cre no Carandiru, em 1992, durante o qual aPolícia Militar assassinou 111 prisioneiros emuma orgia de selvageria estatal. Em algumaspenitenciárias, os condenados, ao chegarem,recebem surras como ritual de “boas-vindas”,para ensinar os padrões locais de disciplina,e o saqueio das celas e roubo de pertencespessoais são parte da ronda comum da vidacarcerária. Tentativas de fuga e tomada de re-féns são reprimidas com especial crueldade,com os guardas infligindo danos corporaisindiscriminados que frequentemente chocamaté os mais experientes especialistas em au-tópsia29. Como ocorre com outras formas deviolência vindas de cima, o abuso da forçacarcerária costuma encontrar-se com a indi-ferença das autoridades, incluindo o juiz da

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Vara de Execução Penal, especialista encarre-gado de fiscalizar o cumprimento das sen-tenças; assim, esses excessos ocorrem comquase total impunidade, mesmo em casosque atraiam grande cobertura da mídia, pres-são constante de grupos dos direitos huma-nos e atenção internacional. “Apenas mortesde presidiários – cujos corpos são difíceis deignorar – parecem merecer investigação e pro-cesso e, mesmo assim, a condenação e o sub-seqüente encarceramento dos culpados sãoextremamente raros”, arrastando-se os casosdurante anos pelas cortes militares, sem qual-quer solução, isto quando chegam a receberalgum tipo de julgamento30 . A ferocidadecarcerária é publicamente tolerada, se nãoaprovada, devido à noção generalizada de queos condenados não merecem atenção ou pro-teção, pois, como marginais, seus direitosforam revogados há muito tempo em virtudede sua origem social, da cor de sua pele e doseu desprezível status cultural. Isto é pronta-mente admitido pelos próprios operadores dosistema penal, como deixa claro o chefe doterceiro distrito policial de São Paulo ao alertaros pesquisadores do Human Rights Watch so-bre o que os aguardava, com essas precisaspalavras: “Vocês vejam, é como um recipien-te de lixo: os prisioneiros aqui foram jogadosfora como lixo. As condições são subumanas.Vamos lá, escrevam isso: subumanas”31.

Dessa forma, em seu atual estado de cri-se e calamidade crônicas , o aparelhocarcerário brasileiro serve apenas para con-centrar violência e para alimentar a crimina-lidade com sua evidente desconsideraçãopela lei, violação maciça dos direitos fun-damentais e a intensa cultura de desconfi-ança com relação ao Estado. A adoção demedidas, ao estilo dos Estados Unidos, delimpeza das ruas e de encarceramento emmassa dos marginais, dos inúteis e dos queresistem às regras do mercado desregulamen-tado lançaria uma verdadeira “lei penal deterror32” sobre os destituídos de capital eco-nômico e cultural necessário para se prote-gerem a si mesmos da total ilegalidade do

Estado penal brasileiro. E isso certamenteirá agravar os males dos quais o Brasil jásofre em sua dura jornada rumo ao estabele-cimento de uma democracia que seja maisque uma mera fachada, a saber, “a deslegiti-mação de várias instituições da lei e justiça,a escalada tanto da criminalidade violentacomo do abuso policial, a criminalizaçãodos pobres, um crescimento significativo noapoio às medidas ilegais de controle, a alas-trada obstrução do princípio de legalidade ea distribuição desigual e irregular dos direi-tos dos cidadãos”33 .

Em uma época anterior de desarticula-ção social na história da América do Sul,durante a qual a penitenciária era apresen-tada como uma solução eficiente para oscrescentes crimes e desordens urbanas, “aelite, fascinada pelas inovações européias enorte-americanas, adotou esses projetos semconsiderar sua exequibilidade”, e a impor-tação dos discursos e das políticas penaisdos países mais avançados que simboliza-vam a “civilização” revelou mais sobre asobsessões e os delírios da classe dominanteda América Latina do que sobre o estado desua sociedade34. Isso continua sendo verda-deiro hoje. Ao colocar sob a luz teórica esob uma perspectiva internacional as cau-sas e funções da difusão do estilo penalneoliberal inventado nos Estados Unidospara assegurar o novo regime do empregodesregulamentado e para legitimar as divi-sões etno-raciais herdadas, esta análise pre-tende contribuir para amplificar os discur-sos sediciosos sobre crime, lei e sociedadeno Brasil urbano e em seus vizinhos35 quese empenham, à contra-corrente da frenéti-ca exploração da mídia e das fantasias polí-ticas de uma coação rígida da lei-e-ordem,agora compartilhada ao redor do mundopelos governos de direita e esquerda, parareconectar a questão penal e a questão soci-al, a insegurança física da qual a violênciade rua é o vetor e a insegurança social gera-da em todo lado pela dessocialização dotrabalho assalariado, pela redução da prote-

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ção social e pela grande transformação dasrelações humanas em mercadoria.

Rumo à militarizaçãodas clivagens urbanas

Uma série de semelhanças estruturais ede espirais políticas paralelas emerge nastramas da pobreza aguda, da violência co-tidiana e da detenção punitiva nas metró-poles dos Estados Unidos e do Brasil, ape-sar das gritantes diferenças econômicas,burocráticas e tecnológicas entre ambos.As semelhanças merecem ser destacadasporque sugerem que o modelo analíticoinicialmente elaborado para explicar ohiper-encarceramento de afro-americanos,e estendido para iluminar a presença des-proporcional de migrantes pós-coloniaisnas prisões da União Européia, pode sermais refinado para nos ajudar a apreenderas diversas formas assumidas pela crimi-nalização da marginalidade urbana e suasconseqüências no âmbito das sociedadesdo Segundo Mundo e das pós-soviéticas,colhidas pela revolução global neoliberalantes que pudessem usufruir dos benefíci-os da era fordista.

Primeiro, os estigmatizados bairros deabandono em ambos os países se tornaramalvos principais da ação virulenta da políciae lugares centrais para inovações e exibiçõesda agressiva imposição da lei através da qualo Estado reafirma, ritualisticamente, sua ca-pacidade de ação. Como resultado, emambas as sociedades a solução penal ganhounesses bairros uma intensidade e destruti-vidade bélicas sem precedentes, algo hojeinimaginável em qualquer outro distrito ur-bano, especialmente depois que, em geral,o trabalho da polícia se tornou mais disci-plinado e decoroso. Nas cidades brasileiras,a Polícia Militar entra rotineiramente nasfavelas com blitz, durante as quais helicóp-teros de vôo rasante arrancam os precáriostelhados das casas e as tropas jogam abaixoportas e janelas, saqueiam moradias e inti-

midam seus ocupantes, disparam indiscrimi-nadamente, fecham lojas e escolas e reali-zam prisões em massa por “vadiagem” (apre-ensão dos favelados que não portam docu-mento de identidade consigo), gerando umatensão ilimitada com sua seqüência de tor-mentos, indistinguíveis, em suas táticas eefeitos, de uma incursão militar em um ter-ritório ocupado36. De forma análoga, nasdegradadas zonas centrais (inner cities)37

norte-americanas, as agências federais, esta-tais e municipais de imposição da lei con-duzem emboscadas, arrastões e ataquescentrados nos conjuntos de moradia públi-ca e nas esquinas das ruas que envolvemseus arredores segregados; essas ações roti-neiramente restringem a livre circulação econvívio, invadem a esfera privada e atrope-lam o espaço familiar sem escrúpulos; su-jeitam os transeuntes a investidas humilhan-tes de “procura e revista” e a prisões abusivas;e limitam as salvaguardas legais de tal for-ma que invalidam os direitos constitucio-nais básicos e efetivamente tratam os mora-dores como se fossem estranhos.

As táticas de saturação, a vigilância detodos os lados e a coerção exercida pelo Es-tado sobre os remanescentes do gueto e dasfavelas de forma a “restaurar a ordem” para– segundo as autoridades – o posterior be-nefício de seus moradores seriam considera-das intoleráveis, se não evidentemente dita-toriais, se aplicadas em bairros de classemédia ou alta. (Seria inimaginável, no UpperEast Side de Manhattan, ou no Tribeca, acena de uma pessoa desarmada, parada nosalão de um edifício luxuoso, assassinadapela polícia com 41 tiros; ocorreu a AmadouDiallo em seu prédio decrépito no SouthBronx em 1999, e o tribunal julgou lícito ohomicídio, totalmente de acordo com as re-gras da corporação). No entanto, apesar deseu caráter totalmente discriminatório e ar-bitrário, tais táticas encontraram defensoresexpressivos ao longo do espectro político,inclusive entre os políticos de esquerda, ereceberam o apoio enfático de especialistas

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de direito que se apresentam como “pro-gressistas”38.

Uma segunda semelhança reside no fatode que a mudança da indústria fordista paraos serviços empresariais como o principalmotor econômico das metrópoles estilha-çou as bases materiais tanto do gueto ne-gro americano como da favela brasileira e,no processo, esfacelou suas estruturas so-ciais e forçou uma drástica reorganizaçãodas estratégias de vida. A contração e des-regulamentação do mercado de trabalho secombinou com uma retração social e coma retirada de investimentos urbanos porparte do Estado, afundando esses bairrosem um vórtice de insegurança social e fa-zendo seus moradores mergulharem maisfundo na economia informal. Mas a cons-tituição e as características do comérciode rua também mudaram quando as ativi-dades e redes criminais se difundiram edominaram a comunidade excluída. Assimcomo o setor subterrâneo do hiper-guetoamericano tem sido dominado por ganguescorporativas competindo para monopoli-zar o comércio ilícito através da intimida-ção e de confrontos físicos, com a distri-buição de drogas em larga escala tomandoo lugar de “políticas públicas” e outros“negócios de proteção” como forma degeração de dinheiro e status, o tráfico decocaína e de armas pelos “comandos” ,unidades coordenadas que controlam astransações criminais nas favelas cariocas,substituiu a loteria popular do jogo do bi-cho como regulador da vida e do comérciona favela39.

Nos dois lugares, então, a violência daeconomia oficial do trabalho assalariadodessocializado alimenta a economia daviolência informal que justifica a elabora-ção da estratégia penal , mas com umamudança inesperada que simultaneamen-te estimula e restringe o ativismo das agên-cias de imposição da lei. A expansão e oracionamento da economia criminal con-

vidam à crescente intrusão e brutalidadedo Estado, e isso aterroriza os moradoreslocais; no entanto, ao mesmo tempo, for-nece-lhes um lastro indispensável para seusustento material. Muitas famílias pobresque vivem no coração do South Side deChicago ou em Vigário Geral, Rocinha,Jacarezinho ou Mangueira, no Rio de Ja-neiro, estariam ainda mais necessitadas edesalentadas se não fosse pelo trabalho re-gular e o fluxo de renda confiável do tráfi-co de drogas, da venda de bens roubados,do jogo e de atividades ilícitas semelhan-tes. D iante das carências decorrentes dasmudanças no mercado de trabalho e noassistencialismo, a participação no comér-cio e na indústria ilegais tornou-se um com-ponente essencial das estratégias de manu-tenção da estrutura doméstica e de susten-to do bairro. De forma que o Estado, em-bora periodicamente engajado em açõesespetaculares de controle da economia cri-minal e de contenção de seus excedentes,tem interesse em tolerar essas atividades,desde que se realizem dentro dos limitesdos bairros excluídos, seja no Brasil ou nasmetrópoles americanas 40.

Em terceiro lugar, as divisões etno-raci-ais originadas na era da escravidão nasAméricas desempenharam um papel deci-sivo mas diferente na nociva combinaçãodo Estado penal com o centro urbano emimplosão nos Estados Unidos, por um lado,e as favelas e periferias decadentes no Bra-sil, por outro. No primeiro, uma irrefutávele ca t egór i c a c l i v agem arra igada nahipodescendência e no “princípio de umagota”41 [one-drop rule] criou uma “ linhade cor” inflexível e impenetrável que tor-ceu a gama de políticas públicas em umadireção constritiva, intensificou e concen-trou a pobre z a urbana e d isparou aimplementação e o direcionamento doaparelho repressivo sobre um grupo parti-cularmente isolado, visível e manchado,os (sub)proletários urbanos e negros. Nasgrandes cidades do Brasi l , um confuso

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“continuum de cor”, graduado pelo fenótipo(considerando tom de cor, textura do cabe-lo e traços faciais) e qualificado por indi-cadores sociais secundários (posses, níveleducacional, residência), conjugou e acen-tuou o espectro de desigualdades para aju-dar a intensificar a violência do Estado so-bre quem se situava na base das camadassobrepostas de privação. Nas duas socie-dades, as divisões multisseculares de castaou cor assombraram a configuração do es-paço urbano e continuam a operar sobre ofuncionamento da série de instituições deimposição da lei , desde a polícia e os tri-bunais até as administrações correcionaise suas extensões. Nos dois países, a crimi-nalização da marginalidade urbana se ba-seia em – e alimentam – associações sim-bólicas entre negritude e periculosidade,vício e violência, forjadas ao longo da es-cravidão e depois dela. Mas a maneiracomo a “raça” interage com o mercado ecom o Estado penal nos dois países é, ape-sar de tudo, diferente. Nas metrópoles bra-sileiras, as distinções preconceituosas de corexacerbam a repressão estatal que, na ausên-cia de tais distinções, seria exercida sobre asáreas estigmatizadas das classes baixas e seusmembros; a pigmentação da pele acelera avelocidade dos golpes penais mas não os dis-para nem os dirige por si mesma. Nos Esta-dos Unidos, em contraste, nem o desman-telamento gradual do Estado previdenciárioherdado do New Deal nem a rápida constru-ção de um Estado carcerário hipetrofiado norastro dos movimentos pelos Direitos Civisteriam ocorrido como ocorreram se não fos-se pelas revoltas afro-americanas que procu-raram derrubar as instituições estabelecidasde contenção de casta nos anos sessenta,e pela indiferença coletiva quanto à sufo-cação penal do subproletariado negro quea rígida segmentação ento-racial do espa-ço social, físico e mental gerou entre oscidadãos.

Um último ponto de convergência en-tre o hiper-gueto negro americano e a fave-

la brasileira no final do século é que am-bos estão conectados ao sistema carceráriode seu país através das práticas de policia-mento agressivo e dos tribunais repressi-vos, pelo lado do Estado, e da “prisioniza-ção” acelerada de seu tecido social e desua ecologia organizacional, pelo lado dacidade. Essa conexão é estreita e continuase estreitando, a ponto de quase formaruma rede institucional no coração urbanoracializado dos Estados Unidos; permane-ce comparativamente mais solta e menosenvolvente nas cidades brasileiras, devidoao funcionamento caótico das burocraciaspenais locais e à maior fluidez social, di-ferenciação interna e capacidade coletivados favelados para sabotar ou embotar asações dessas burocracias, particularmenteatravés do dispositivo do clientelismo42 .Da mesma maneira, mas partindo de dire-ções opostas, nos dois países as ganguesde estilo corporativo assumiram o papelprincipal na solidificação das amarras so-ciais e culturais cada vez mais densas queagora unem os resíduos urbanos e ossuperlotados depósitos carcerários com ascategorias julgadas material e simbolica-mente inúteis pela reestruturação neoliberalda metrópole.

Tanto no Brasil como nos Estados Uni-dos, o encolhimento ou a ausência do Es-tado social e o simultâneo desenvolvimentodo Estado penal nos execrados enclaves demarginalidade concentrada – onde ele ca-rece de legimitidade – acabam perpetuan-do e inclusive agravando os mesmos pro-blemas que esse desenvolvimento deveriaremediar. Policiamento beligerante, repres-são judicial incisiva e deportação em mas-sa para uma prisão suburbana ou rural emzonas remotas são as principais fontes dedeslocamento urbano forçado. Contribu-em para consolidar a marginalidade ao sa-botar as trajetórias de vida de seus alvos,dificultar a estabilidade doméstica, enfra-quecer a estrutura social local e sua capa-cidade para o controle social informal, e

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ao alimentar as condutas ilegais e a vio-lência interpessoal pelas e contra as forçasda ordem. Não diminuem o crime de rua,da mesma forma que falham em mitigarseu motor principal, a saber, o capitalismode pequena escala de venda e predação quepreenche o vácuo deixado pelo declínioda economia de trabalho assalariado. Econspiram para manter um clima sufocan-te de medo e desconfiança das autoridadesnos bairros marginais. Enfeixando-os numaapertada rede vigilância e ação diligentepor seu exército de imposição da lei, o Es-tado contribui assim, diretamente, paraaprofundar o abismo social e simbólico quesepara esses habitantes da sociedade urba-na ao seu redor.

De acordo com um padrão bastantedesgastado na história da prisão, a nature-za iatrogênica do tratamen to penal damarginalidade e do estigma nas metrópo-les brasileiras, assim como em seus cor-respondentes nos Estados Unidos e Euro-pa, demonstra não ser um obstáculo para acontínua administração desse método. Pelocontrário, a própria falha do apenamentogera as condições sociais, os incentivospolíticos e os alvos concretos e evidentesnecessários para sua aplicação contínua eexpandida43. Além disso, não se propõe acontenção punitiva apenas por seus efeitosinstrumentais sobre a rejeição social danova ordem me tropol i tana a través daincapacitação ou dissuasão, e menos ain-da pelos benefícios econômicos que elafornece ao Estado ou aos operadores co-merciais envolvidos nesse projeto, comoos cr í t i cos do “ comp l exo i ndus t r i a lprisional” gostariam de fazer crer. Essa pro-posta é implementada simultaneamentepor sua capacidade de, a curto prazo, con-finar as desordens ao perímetro expandidodos bairros marginais e seus apêndicescarcerários e por seu valor teatral maisamplo aos olhos das audiências das clas-ses média e alta. Para elas, o Estado ofere-ce, então, uma vívida performance públi-

ca de “política criminal como derramamen-to de sangue” dos desprezíveis e despoja-dos pobres44 , dos “indivíduos” sem rumo,inú teis e anônimos que represen tam oantônimo vivo da adequada encarnaçãobrasileira de “pessoa” respeitável e reco-nhecida – de forma semelhante à maneirapela qual a “subclasse” tem sido retratadanas políticas e debates acadêmicos dos Es-tados Unidos como a condensação coleti-va de todos os defeitos morais e perigosfísicos com os quais o subúrbio [inner city]ameaça a integridade dos Estados Unidoscomo uma nação essencialmente feita de“famílias trabalhadoras” suburbanas45 de-centes e obedientes à lei.

A relação recurs iva e mu tuamen tereforçadora entre as regras do mercado li-vre, a reconstrução do Estado e a crescenteinstabilidade e divisão sociais na base dah ierarquia de lugares nas me trópolesneoliberalizadas prende as autoridades emuma espiral penal que promove não ape-nas a barricada interna das zonas de classebaixa, o gradeamento externo dos bairrosde classe média e a secessão cívica das for-talezas de poder e privilégio da classe alta,mas resulta em uma total militarização dasclivagens urbanas46 . Por isso o caso brasi-leiro é especialmente valioso e instrutivo:a evolução da favela car ioca em suaconfl ituosa negociação com o aparelholocal de imposição da lei e da justiça cri-minal funciona como um revelador histó-rico das tendências subterrâneas e das con-seqüências de longo prazo da política deeliminação penal dos detritos humanos deuma sociedade na qual as relações huma-nas são transformadas em mercadoria, inun-dadas em insegurança social e física. Des-prov ida da pro t eção f ornec ida pe l aracionalidade burocrática e pelo humani-tarismo burguês, a articulação da extremadesigualdade, da violência das ruas e dapunição em massa nas cidades brasileirassob o duplo Consenso de Washington47 naeconomia de mercado e no controle do

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cr ime est imu la a e fe t i va reduc t i o adabsurdum do Estado a seu aparelho repres-sivo e à fusão de suas forças militares ecivis para a manutenção da ordem. Issotransforma a segurança pública em umempreendimento marcial, e o combate aocrime em um campo de prova para umaliderança política vigorosa voltada para os“resultados” imediatos e tangíveis. E fazcom que a imposição da lei nos e ao redordos infames bairros de classe baixa se trans-forme, literalmente, em uma guerra comseus moradores, com batalhas armadas emanobras, espionagem e execuções blin-dadas, controle de fronteiras e contagemde corpos, extensos “efeitos colaterais” e avil demonização do “inimigo” pela mídiae as autoridades, incluindo o visível “re-púdio de qualquer referência aos direitosdos criminosos”48.

O corre com a contenção punitiva damarginal idade e do est igma urbanos omesmo que com a mistura das populaçõese culturas ocidentais e não-ocidentais: longede ser um retardatário, o Brasil “pode pro-ver aos norte-americanos e aos europeusum vislumbre de seu futuro”49 nesse domí-nio sombrio, ao revelar o quanto a crimi-nalização desmesurada leva a assimilar oslimites inferiores sócio-espaciais dentro dacidade às fronteiras estrangeiras. Sob essaabordagem, as agências urbanas de impo-sição da lei operam como patrulhas de fron-teira e forças de ocupação nas áreas po-bres, tratadas como “zonas de guerra” do-mést icas que abr igam uma populaçãoalienígena despida das proteções e privilé-gios normais da lei. A comparação é perti-nente: a “escalada do policiamento” nassensíveis divisões internacionais, tais comoaquelas entre os Estados Unidos e Méxicoou entre o extremo sul da Europa e a Áfricado Norte, “tem sido menos sobre dissuasãodo que sobre a criação de uma imagem”para apoiar simbolicamente a reivindica-ção do Estado pelo comando e comissariadoterritorial de um corpo (pós)nacional uni-

ficado em um momento em que efetiva-mente abandonou ambos na frenética bus-ca pelo comércio expandido50 ; da mesmaforma, a militarização dos execráveis bair-ros de pobreza urbana serve para moldar eprojetar a nova aparência desse peculiar“transcendental histórico” que é o Estadoneoliberal ao exagerar sua capacidade decontrolar as populações e os locais proble-máticos da cidade grande e reestabilizar,através da imposição agressiva da lei, ashierarquias que suas classificações oficiaisidolatram51 . Isso nos traz de volta ao para-doxo central do projeto neoliberal com oqual iniciamos este artigo: a promoção domercado como a inovação ideal para orga-nizar todas as atividades humanas requer nãoapenas um “pequeno governo” minimalistano front social e econômico mas, também,e sem contradição, um Estado ampliado ediligente, armado para intervir com forçapara manter a ordem pública e prolongar osevidentes limites sociais e étnicos.

Longe de se esvaecerem no cenário social,como alguns discursos sobre “exclusão” di-riam, os bairros de abandono urbano – asfavelas decadentes no Brasil, o implosivohiper-gueto nos Estados Unidos, os degrada-dos banlieues na França e as desoladas innercities na Escócia ou Holanda – mostram sero principal espaço físico e social dentro doqual o Estado penal neoliberal está sendomontado, adotado e testado de forma con-creta. No final do século XIX, os pobres acu-mulados nos bairros desgraçados das metró-poles em expansão forneceram uma forçade trabalho voluntariosa para a expansão daindústria e uma agitada população ajustadaà estrutura do incipiente braço protetor doEstado de previdência, com a invenção dotrabalho social, a generalização da escolaprimária, a introdução dos esquemas de apo-sentadoria e os empreendimentos públicosnos serviços humanos, de saneamento, mo-radia e saúde. No final do século XX, foramreduzidos a matéria-prima para a criação deinstituições penais mutáveis e prolíferas que

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compõem a face cruel do Estado neoliberalque se impõe sobre os rejeitados da socie-dade de mercado.

* Tradução de Fernanda Bocco.

Notas1 Loïc Wacquant, Les Prisons de la misère (Paris: Raisons

d’agir, 1999; tr. As Prisões da miséria, Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, 2001).

2 Um exame abrangente das pesquisas sobre o assunto

conclui que “há pouca evidência de que as mu-danças genéricas no policiamento sejam respon-sáveis pela redução dos crimes violentos” nos anosnoventa, e aponta as medidas da “tolerância zero”ao estilo Nova Iorque como o fator “menos plau-sível” de contribuição para o declínio recente nasagressões a pessoas nas metrópoles dos EstadosUnidos (John E. Eck e Edward R. Maguire, “HaveChanges in Policing Reduced Violent Crime?,” inThe Crime Drop in America, Alfred Blumstein eJoel Wallman (eds.), New York: Oxford UniversityPress, 2000, p. 245.

3 Para um exame e avaliação concisos, ler Renato

Bauman (ed.), Brazil in the 1990s: An Economyin Transition Basingstoke: Palgrave, 2002, esp.pp. 8-21.

4 Susana Rotker (ed.), Citizens of Fear: Urban Violence

in Latin America. New Brunswick, NJ: RutgersUniversity Press, 2002.

5 Ednilsa Souza, “Homicídios no Brasil: o grande vilão

da saúde pública na década de 80”, Cadernos deSaúde Pública, 10, 1, janeiro de 1994, pp. 45-60; sobre o enorme aumento da violência homici-da nas cidades do continente, ver Jerome L.N eapol i tan, “ Cross-N a t ional Var ia t ion inH omicides: The Case o f La t in America , ”International Criminal Justice Review, 4, 1994,pp. 4-22.

6 Teresa Pires do Rio Caldeira, “Fortified Enclaves: The

New Urban Segregation”, Public Culture, 8, 2,Inverno 1996, pp. 303-328.

7 Evento mais conhecido como Eco-Rio 92. [N. da T.]

8 Luis Antonio Machado da Silva, “Um problema na

interpretação da criminalidade urbana violenta”,Sociedade e Estado, 10, 2, julho de 1995, pp.493-511; Alba Zaluar e Alexandre Isidoro Ri-

beiro, “The Drug Trade, Crime and Policies ofRepression in Brazil”, Dialectical Anthropology,20, 1, maio de 1995, pp. 95-108; e Vera MalagutiBatista, Difíceis ganhos fáceis. Drogas e juventudepobre no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: FreitasBastos, 1998. Para uma abordagem desse tema naVenezuela, ver Patricia C. Márquez, The Street ismy Home: Youth and Violence in Caracas, Stanford,CA: Stanford University Press, 1999; para umacomparação com Europa e Estados Unidos, LoïcWacquant, “ O retorno do recalcado: violênciaurbana, ‘raça’ e dualização em três sociedadesavançadas”, Revista Brasileira de Ciências Sociais,24, fevereiro de 1994, pp. 16-30 (reimpresso emWacquant, Os condenados da cidade, Rio de Ja-neiro: Revan, 2001, capitulo 1).

9 Zaluar, Condomínio do diabo, Rio de Janeiro: Revan,

1994, esp. pp. 13-35.10

Paulo Sérgio Pinheiro, “Democratic Governance,Violence, and the (Un)Rule of Law”, Daedalus,129, Primavera de 2000, pp. 140-141 e 127. Oenvolvimento rotineiro da polícia na economiacriminal é amplamente reconhecido pelo ex-chefede polícia do estado do Rio de Janeiro CarlosMagno Nazareth Cerqueira, “A criminalidade dapolícia”, Revista Brasileira de Ciências Criminais,19, julho-setembro de 1997, pp. 243-252.

11 Instrumento de tortura consistindo em um pau roliço

que, depois de ser passado entre ambos os joelhose cotovelos flexionados, é suspenso em dois su-portes, ficando o torturado de cabeça para baixo ecomo que de cócoras. [N. da T.].

12 Chevigny, Edge of the Knife, p. 148. Esses dados

diminuíram a cada ano desde então, chegando acerca de 700 em 2000 devido aos esforços con-juntos entre o governo federal e as sucessivas ad-ministrações governamentais para controlar oshomicídios da polícia.

13 Roberto da Matta, Carnivals, Rogues and Heroes: An

Interpretation of the Brazilian Dilemma, NotreDame, IN: University of Notre Dame, 1991 (orig.1979). Original: Carnavais, malandros e heróis:uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janei-ro: Zahar, 1981; e Paulo Sérgio Pinheiro, Crime,violência e poder, São Paulo: Brasiliense, 1983.

14 George Reid Andrews, Blacks and Whites in São Paulo,

Brazil, 1888-1988, Madison, WI: University ofWisconsin Press, 1991, pp. 46-50; e Neder Gizlene,Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil, PortoAlegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995.

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15 Thomas H. Holloway, Policing Rio de Janeiro: Repression

and Resistance in a 19th-Century City, Stanford, CA:

Stanford University Press, 1993, p. 283. Original:Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistêncianuma cidade do século XIX. Fundação Getúlio Vargas,Rio de Janeiro: 1999; também Celia Maria Marinhode Azevedo, Onda negra, medo branco. O negro noimaginário das elites – século XIX, Rio de Janeiro: Paze Terra, 1987, capítulos 3 e 4.

16 Peter Fry, “Politics, Nationality, and the Meanings of

‘Race’ in Brazil”, Daedalus, 129, Primavera de2000, p. 87.

17 Citado por Lilia Moritz Schwarcz, The Spectacle of the

Races: Scientists, Institutions, and the RaceQuestion in Brazil, 1870-1930, New York: Hilland Wang, 1999, orig. 1993, p. 200.

18 Sérgio Adorno, “Discriminação racial e justiça crimi-

nal em São Paulo”, Novos Estudos, 43, novem-bro de 1995, pp. 45-63. Infelizmente, a propostado estudo de Adorno não lhe permite examinarregistros criminais e deslindar os efeitos de classe ecor, não podendo indicar quão “poderoso” é esteúltimo como um “instrumento de discriminaçãona provisão de justiça”

19 Moema Teixeira, “Raça e crime: orientação para uma

leitura crítica do Censo Penitenciário do Rio deJaneiro”, Cadernos do ICHF, 64, 1994, pp. 1-15.Não estão disponíveis dados confiáveis sobre essatendência da cor, mas tudo leva a pensar que acrescente repressão penal se traduziu em um“escurecimento” da população carcerária do país.

20 Pedro Rodolfo Bodé de Moraes e Marcilene Garcia de

Souza, “Invisibilidade, preconceito e violência raci-al em Curitiba,” in Revista de Sociologia e Política,13, novembro de 1999, pp. 7-16, e Jorge da Silva,“The Favelados in Rio de Janeiro, Brazil”, in Policingand Society, 10, 1, 2000, pp. 121-130.

21 Maria Cecilia Paoli et al., A violência brasileira, São

Paulo: Brasiliense, 1982, e Juan E. Méndez,Guillermo O’Donnell e Paulo Sérgio Pinheiro(eds.), The (un)Rule of Law and the Underpri-vileged in Latin America, Notre Dame, IN :University of Notre Dame Press, 1999.

22 Paulo Sérgio Pinheiro, “Violência, crime e sistemas

policiais em países de novas democracias”, TempoSocial, 9, 1, maio de 1997, pp. 43-52; CarlosMagno Nazareth Cerqueira, “Ensaio sobre umprojeto de avaliação do sistema de justiça crimi-nal”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 27,julho-setembro de 1999, pp. 265-287; e Sérgio

Adorno, “Insegurança versus direitos humanos:entre a lei e a ordem”, Tempo Social, 11, 2, outu-bro 1999, pp. 129-153.

23 Human Rights Watch, Behind Bars in Brazil ,

Washington, D .C . : H uman Rights Watch,1998, p. 17.

24 Jocenir, D iário de um de ten to , São Paulo:

Labortexto, 2001, esp. pp. 56-82.25

Francisco Inácio Bastos e Cel ia LandmannSzwarcwald, “Aids e pauperização: princi-pais conceitos e evidências empíricas” , in Ca-dernos de Sáude Pública , 16, suplemento 1,2000, pp. 65-76.

26 Human Rights Watch, Behind Bars in Brazil ,

op, cit. , p. 29.27

Edmundo Campos Coelho, A oficina do diabo.Crises e conflitos no sistema penitenciário doRio de Janeiro, Rio de Janeiro: Espaço e Tem-po/IUPERJ, 1987, e Eneleo Alcides da Silva,“Violência sexual na cadeia: honra e mascu-linidade” , in Revista de Ciências Humanas,21, abril de 1997, pp. 123-138.

28 Para descrições sobre o caos da vida na prisão

mais infame do Brasil (fechada em 2002), lera narra t i va de D rau z io Varel la , EstaçãoCarandiru , Rio de Janeiro: Companhia dasLetras, 2000. O complexo Carandiru foi omaior estabelecimento penal da América La-tina, com 6.500 presos em 1998.

29 Ler o meticuloso registro da terrível violência ofici-

al após as revoltas e tentativas de fuga em seteestados, compilado no Human Rights Watch,Behind Bars in Brazil, op. cit., capítulo 8.

30 Ibid. , pp. 61-65. A brutalidade penal pode ser

inclusive politicamente lucrativa: o coman-dante militar das tropas de choque responsá-veis pelo grande massacre no Carandiru, em1992, foi eleito para a Assembléia Legislativade São Paulo, o que lhe valeu imunidadeparlamentar para o processo.

31 Ibid. , pp. 54-55; ver também César Barros Leal,

“The Prison System in Braz i l : The APA CEx p e r i e n c e ” , i n C ar i b b e a n J o urn a l o fCriminology and Social Psychology , 4, 1-2,janeiro-julho de 1999, pp. 254-267.

32 René Ariel Dotti , “A crise do sistema penitenci-

ário” , in Revista dos Tribunais, 768, agostode 2003, p. 425.

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33 Teresa Caldeira e James Holston, “ Democracy

and V iolence in Braz i l” , in Compara t iveStudies in Society and H istory , 41, 4, outu-bro de 1999, p. 692.

34 Ricardo D . Salvatore e Carlos Aguirre (eds.),

The Birth of the Penitentiary in Latin America:Essays on Criminology, Prison Reform, andSocia l C on tro l , 1830-1940 , A ust in , TX :University of Texas Press, 1996, p. xii .

35 Invoco aqui a revista Discursos Sediciosos - cri-

me, direito e sociedade , publicada pelo Insti-tuto Carioca de Criminologia, no Rio de Ja-neiro, que tem trabalhado para quebrar osdogmas da lei-e-ordem que reduzem e en-quadram o debate público sobre o crime e apunição no Brasil .

36 Ler os “contos de guerra” cariocas de Juliana

Resende, O peração Rio. Relato de uma guer-ra brasileira, São Paulo: Página Aberta, 1995,evocativos dos ataques periodicamente reali-zados pelo exército israelense na Faixa deGaza ou nas cidades do West Bank ocupado.

37 Devido ao processo de degradação dos centros

urbanos e ao êxodo das classes médias àsperiferias residenciais, o termo virou sinôni-mo de zona central degradada e qualificativodo tipo de comunidades, formas de vida eatitudes que crescem nesse tipo de áreas ur-banas [N . da T.].

38 No Brasil , representantes do Partido dos Traba-

lhadores (como José Genoíno, candidato der-rotado ao governo do estado de São Paulo, eMarta Suplicy, prefeita da capital paulista)defenderam as táticas brutais de imposiçãoda lei como medidas necessárias para con-trolar a escalada da violência criminal. NosEstados Unidos, os especialistas de direitoconhecidos como a “ Nova Escola de Chica-go” das normas sociais têm fornecido cober-tura jurídica para a redução policial dos di-reitos dos moradores dos guetos com os prin-cípios do “community burden-sharing” e do“guided discretion” [determinando as ocasi-ões em que a justiça deve acolher o julga-mento comunitário e garantindo, ao mesmotempo, que essa confiança no exercício co-munitário do poder não degenere em abu-sos. N . da R.] (Tracey L. Meares e Dan M.Kahan, Urgent Times: Policing and Rights inIn n er- C i t y C o m m u n i t i es , Bos t on , M A :Beacon Press, 1999). A validade desses prin-

cípios é evidentemente limitada apenas a es-sas “comunidades” .

39 Leeds, “Cocaine and Parallel Polities on the

Brazilian Urban Periphery” , art. cit. ; Zaluare Ribeiro, “The Drug Trade, Crime and Poli-cies of Repression in Brazil” , art. cit. ; e ZuenirVentura, Cidade partida (Rio de Janeiro: Com-panhia das Letras, 1994), sobre a preponde-rância da violência criminal relacionada àsdrogas em Vigário Geral.

40 A mesma relação simbiótica entre a insegurança do

trabalho assalariado e a insegurança física extremaocorre nas cidades do Sul da África, nas quais oestado pós-apartheid deve ao mesmo tempo re-primir e acomodar a economia criminal em ex-pansão (John Western, O utcast Cape Town,Berkeley, CA: University of California Press, ed.expandida 1996, e Mark Shaw, Crime and Policingin Post-Apartheid South Africa: TransformingUnder Fire, Bloomington, IN: Indiana UniversityPress, 2002), e nas grandes cidades da Venezuelae seus vizinhos (Yves Pedrazzini e Magaly Sánchez,Malandros, bandas, y niños de la calle. Cultura deurgencia en la metrópolis latinoamericana, Cara-cas: Vadell Hermanos Editores, 1992). Essa cone-xão está presente, mas de forma muito atenuada,nos banlieues [subúrbios, N. da T.] da decadenteclasse trabalhadora da França, devido à forte pre-sença local do Estado social e de uma maior capa-cidade de organização coletiva de seus habitantes(Michel Kokoreff, La Force des quartiers. De ladélinquance à l’engagement politique, Paris:Payot, 2003).

41 O princípio de hipodescendência se refere ao fato

de descendentes de um casal “misto” (branco enegro) serem designados integrantes do mais“baixo” entre os grupos (as crianças são conde-nadas a ser negras). O one drop rule é umantigo princípio racista de acordo com o qualbastava uma simples gota de sangue negro (oude qualquer outra minoria racial) para ser con-siderado membro dessa raça. [N . da T.]

42 Marcos Alvito, “Um bicho-de-sete-cabeças”, in Um

século de favela, op. cit., pp. 181-208, e RobertGay, Popular Organization and Democracy inRio de Jane iro : A Ta le o f Tw o Fave las ,Philadelphia, PA: Temple University Press, 1994).

43 De acordo com um mecanismo bem demonstrado

por Michel Foucault, Discipline and Punish:The Birth of the Prison (New York: Pantheon,1977, orig. 1975), pp. 273-286F.

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44 Nilo Batista, “Política criminal com derramamen-

to de sangue”, in Discursos Sediciosos – crime,direito e sociedade, no

3, 5/6, 1998, p. 77.45

David J. Hess e Roberto da Matta (eds.), TheBrazilian Puzzle: Culture on the Borderlandsof the Western World, New York: ColumbiaUniversity Press, 1995, pp. 7-8 e 22-278, eKen Auletta, The U nderclass, N ew York:Random House, 1982, para o retrato jornalísticoque forneceu o tom injurioso para o debate nosEstados Unidos nos 1980 com sua enumeraçãodiversificada de tipos sociais perigosos (inclu-indo, principalmente, “os hostis criminosos derua”) com o objetivo de documentar que “asubclasse normalmente opera fora dos limitesgeralmente aceitos da sociedade”.

46 No caso do Brasil, é uma “remilitarização” que per-

petua os piores abusos da ditadura militar, comoapontado por Carlos Magno Nazareth Cerqueira,“Remilitarização da segurança pública: a Opera-ção Rio” in O futuro de uma ilusão. O sonho deuma nova polícia, Rio de Janeiro: Revan Editora,2001, pp. 45-67. Essa escalada marcial das auto-ridades é, por sua vez, auxiliada e acelerada pelamilitarização do tráfico de drogas nas favelas.

47 O Consenso de Washington é um conjunto de

políticas que, acreditava-se, seria a fórmula parapromover o crescimento econômico na Améri-ca Latina, embora não para todos os países. Foiapresen tado pela pr imeira vez por JohnWilliamson, do Instituto para Economia Inter-nacional, em 1989. [N . da T.]

48 Cerqueira, “Remilitarização da segurança públi-

ca”, art. cit., pp. 60-61.49

Hess e da Matta, The Brazilian Puzzle, op. cit. ,p. 2.

50 Peter Andreas, Border Games: Policing the U .S.-

Mexico D ivide , Ithaca, NY: Cornell UniversityPress, 2000, p. 143. Para um mais extremo ebrutal uso do controle de fronteira militarizadocomo f orma d e e l im i n ar a f i c ção d ahomogeneidade etno-racial do corpo nacio-nal, ver Alfred Bonstein, “Borders and theU t i l i ty o f V io lence : Sta te Ef fec ts on the‘Superexploitation’ of West Bank Palestinians”,in Critique of Anthropology, 22, 2, junho de2002, pp. 201-220.

51 P i erre Bourd i eu , Pasca l i an M ed i t a t i ons ,

Cambridge, Polity Press, 2000 [1997]), p. 209.

FLORILÉGIO

Fora da lei (séc. XIX)“ Não obsta a esta disposição (o artigo 60 do Código Criminal de1830, que cominava açoites para os condenados escravos) o art. 179,§ 19 da Constituição do Império (que proibia a pena de açoites), poristo que os escravos achão-se fóra della.”Cons. Vicente Alves de Paula Pessoa, Código Criminal do Império doBrasil, Rio, 1885, ed. A.A.C. Coutinho, p. 138.

Fora da lei (séc. XXI)A lei permite que o governo norte-americano detenha por tempoindeterminado prisioneiros estrangeiros considerados “combatentesinimigos” sem indiciamento nem julgamento e autoriza a CIA a usarviolência e táticas obscuras de interrogatório.Um dos pontos mais criticados da lei tira a autoridade dos tribunaisde ouvir os argumentos dos prisioneiros que afirmam estarem detidosilegalmente. Procuradores que aprovaram a decisão alegaram que osprisioneiros não são cobertos pela Constituição.Folha de S.Paulo, 21.fev.07, pág. A 6.