rosemary arrojo - oficina de tradução - a teoria na prática

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  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    1/47

    série4 incípios 7

    Rosemary Arrojo

    Oficina

    de

    tradução

    A teoria na prática

    00

    dirora á tica

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

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    que

    você

    tentarmos refletir

    mecanismos

    da

    também com questões

    a na

    própria lingua-

    pois a tradução[ . .

    necessariamente

    dos limites

    do poder dessa capaci

    'humana ' que é a

    tradução seria teórica

    praticamente

    impossi-

    se esperássemos dela

    que

    ível - o que inevita

    .. -

    como sugere o filósofo

    transformação: uma

    de uma

    outra, de um

    tradução

    de

    qual-

    texto,

    poético

    ou

    , será fiel não ao texto

    mas

    àquilo que

    s r o texto

    àquilo

    que con

    interpreta-

    do texto de partida,

    será[ .. ] sempre pro

    somos,

    e pensamos.

    série4 incípios

    Rosemary rrojo

    Pós-doutora pe la Yale Univcrsity e doutora pela

    Johns Hopkins

    University,

    EUA

    ficina de

    tradução

    teoria na

    prática

    m

    difor r

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

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    Rosemary Arrojo

    assistente

    de revisão

    e projeto gráfico

    eletrônica

    IÇÃO ANTERIOR

    de texto

    Fernando Pai xão

    Carlos S. Mendes Rosa

    Tatiana Corrêa Pimenta

    Ivany Pica

    ss

    o IJntistu

    Rodrigo Antonio

    Antonio Paulos

    Claudemir Camargo

    Homem de Melo Troln l lcslfln

    Moaeir K. Mal susnki

    Benjamin Abda ln .lun l111

    ,.

    S11 11

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    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO Ni\ H> N

    11

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORl

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    Rosemary

    Oficina de tradução: a teoria na prática /

    Ro

    sc

     

    y 111

     

    l

    SI

    o

    85p. - (Série Princípios ; 74)

    Inclui bibliografia comentada

    ISBN 978-85-08-11281-4

    1. Tradução e interpretação.

    T

    Título. 11. S \ 1k

    978 85 08 11281-4 (a luno)

    978 85 08 11282-1 (professor)

    edição

    impressão

    ACABAMENTO

    Gráfica e Editora Ltda

    C

    DD 4 18.02

    CDU 8 1 25

    MPOMl NTI /\1110

    111pr

    a r

    um

    livro, você remunera e

    nhrtr 111 ,

    ll

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    0

    tor

    e o de muitos outros profissionais

    envol\lhlm 11 1 o editorial e na comercialização das

    ob11•   1 11111111 ·   11•v

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    rtS,

    dlagramadores,ilustradores, gráficos,

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    lbuldores, livreiros, entre

    outros.

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    Ela gera desemprego,

    prejudica

    a dlf

    11 11 1

    1111111111111,1 > encarece os livros que você compra.

    os direitos reservados pela Editora

    A11

    c 11 ,

    1

    1111

    1

    Otaviano Alves de Lima, 4400 - CEI' IJ H)()I)

    1

    1110

    St o Paulo - SP

    (11) 3990-1775 - Vendas: ( 11) \

    111111

    1777 Fax: ( 11) 3990-1776

    .atica.com.br - www.aticaeducacion11l .l lltt1 .h1 lll l'[email protected]

    Sumário

    I.

    Abre-se uma nova oficina 7

    Oficina de tradução ou

    translation workshop?

    8

    2.

    A questão do texto original

    11

    O significado/carga e o tradutor/transportador 11

    "Pierre Menard, autor dei

    Quijote ,

    uma lição de Borges

    sobre linguagem e tradução

    13

    A obra "visível" de Menard e o sonho de uma linguagem

    não-arbitrária 14

    A obra "invisível" e a missão impossível de Menard 19

    O texto original redefinido

    3. A questão do texto literário

    5

    O preconceito da inferioridade ou da impossibilidade

    5

    Uma teoria literária menardiana

    28

    Repensando o literário 30

    Quando ameixas não são simplesmente ameixas

    31

    A tradução de textos literários redefmida

    36

    4.

    A questão

    da

    fidelidade

    37

    O conceito de fidelidade e o texto/palimpsesto 37

    Uma Cleópatra melindrosa 8

    O autor, o texto e o leitor/tradutor 40

    A fidelidade redefinida 42

    5. A teoria na prática

    46

    "Áporo", de Carlos Drummond de Andrade 46

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    4/47

     Um inseto cava'',

    48;

    Que fazer, exausto, em país bloqueado? ,

    48  

    E is

    que o labirinto[ . . ] presto se desat a , 5 Uma orquídea forma-se ,

    51

    O poema: máquina de significação

    5

    lnsect , versão de John Nist

    54

    Uma nova versão de Áporo 55

    6 Exercícios de tradução

    58

    Poema de sete faces

    v rsus

    Seven-sided poem

    59

    [ .. ]um anjo torto ,

    61

      As casas espiam

    os

    homens ,

    63

      pernas brancas

    pretas amarelas'',

    64  

    O homem atrás do bigode ,

    64  

    Mundo mundo vasto

    mundo'',

    65   [ ..

    ]comovido como o diabo ,

    66

    The rival v rsus Rival 67

    lf the moon smiled, she would resemble you ,

    68;

    And your first gift

    is

    making stone out of everything  ,

    7

    The moon, too, abases her subjects ,

    72   No day

    is

    safe from news ofyou  ,

    73

      The rival : o título, 74

    7 Recado ao

    tradutor/aprendiz

    76

    8. Vocabulário crítico

    79

    9 Bibliografia

    comentada 81

    Dicionários 81

    Obras sobre tradução

    82

    Obras sobre teorias textuais

    83

    Outros 84

    A Maria José Arrojo

    Este livro é parte de um projeto de pesquisa patrocinado pela

    Pontifícia Universidade Catól ica de São Paulo

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    1 Abre se uma nova oficina

    Provavelmente o leitor nunca tenha ouvido falar

    numa

    oficin

    de tradução. Se consultar dicionários, ou

    se perguntar a outros falantes de português, perceberá que

    oficina de tradução não existe como expressão

    cons

    truída e consagrada pelo uso.

    Teremos que entendê-la, portanto, metaforicamente

    e para

    construir esse sentido figurado, partimos do subs

    tantivo concreto

    oficina.

    Segundo dicionários da língua,

    oficin

    pode ter as seguintes acepções: lugar onde se

    trabalha ou onde se exerce algum ofício ; labora tório ;

    casa

    ou

    local onde funciona o maquinismo de uma fá

    brica ; lugar onde se fazem consertos em veículos auto

    móveis ;

    e

    em sentido figurado, lugar onde se opera

    transformação notável .

    que temos, por assim dizer, permissão de liberar

    nossa imaginação quando tentamos entender uma metá

    fora, vamos relacionar os possíveis significados de oficina

    à nossa metafórica

    oficin e

    tradução delineando, ao

    mesmo tempo, seus objetivos.

    m

    primeiro lugar, pretende-se que esta oficina crie

    um espaço ao ofício

    e

    à

    prática da tradução, onde a teoria

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    1

    do que

    Translation workshop

    porque seu sentido figurado

    é

    inesperado e ainda não consagrado pelo uso. Em inglês

    americano, workshop no sentido de curso ou seminar já

    não impressiona mais como metáfora; é por assim dizer,

    uma metáfora gasta, que perdeu sua força figurativa.

    Seria, então, minha tradução mais original do que o

    próprio original ? Seria a minha uma boa tradução? Se-

    ria oficina de tradução fiel ao original translation work

    shop?

    Que relações se estabelecem entre o original e o

    traduzido ?

    Em síntese, essas são também as questões básicas que

    envolvem a realização e a avaliação

    de

    qualquer tradução,

    e é sobre elas que convidarei o leitor a refletir nas páginas

    que se seguem. Além disso, ao tentarmo s refletir sobre os

    mecanismos da tradução, estaremos lidando também com

    questões fundamentais sobre a natureza da própria lingua-

    gem, pois a tradução, uma das mais complexas de todas

    as

    atividades realizadas pelo homem, implica necessaria-

    mente uma definição dos limites e do poder dessa capa-

    cidade tão huma na que é a produção de significados.

    Afinal, não

    é por

    acaso que até hoje,

    em

    nosso mundo cada

    vez mais computadorizado, não há nem a mais remota

    possibilidade de que uma máquina venha substituir satis-

    fatoriamente o homem na realização de uma tradução.

    2 A questão do texto original

    Todo

    texto é único e é ao

    mesmo

    tempo a tradução de outro texto_.

    enhum texto é completamente on -

    ginal porque a própria líng_ua em

    essência á é uma traduçao: em pri

    meiro lugar do

    mundo

    não-verbal e

    em segundo porque todo signo e toda

    frase é a tradução de outro signo e

    de outra frase. Entretan to esse argu

    mento pode ser modificado sem per

    der sua validade: todos os textos são

    originais porque toda tradução

    é

    di

    ferente.

    Toda

    tradução é até certo

    ponto

    uma

    criação e como tal cons

    titui um texto único.

    O significado carga e o

    tradutor transportador

    (Octavio Paz

    Uma das imagens mais freqüentemente utilizadas pe-

    los teóricos para descrever o processo de tradução é a da

    transferência ou da substituição. De acordo com

    J

    C.

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      2

    Catford, um dos teóricos mais conhecidos e divulgados

    no Brasil, a tradução é a substituição do material textual

    de uma língua pelo material textual equivalente em outra

    língua

    Eugene Nida, outro teórico importante, expande

    essa imagem através da comparação das palavras de uma

    sentença a uma fileira de vagões de carga

    2

    Segundo sua

    descrição, a carga pode ser distribuída entre os diferentes

    vagões de forma irregular. Assim, um vagão poderá conter

    muita carga, enquanto outro poderá carregar muito pouca;

    em outras ocasiões, uma carga muito grande tem que ser

    dividida entre vários vagões. De maneira semelhante, su

    gere Nida, algumas palavras carregam vários conceitos

    e outras têm que se juntar para conter apenas um. Da

    mesma maneira que o que importa no transporte da carga

    não é quais vagões carregam quais cargas, nem a seqüên

    cia em que os vagões estão dispostos, mas, sim que todos

    os volumes alcancem seu destino , o fundamental no pro

    cesso de tradução é que todos os componentes significati

    vos do original alcancem a língua-alvo, de tal forma que

    possam ser usados pelos receptores.

    Se pensamos o processo de tradução como transporte

    de significados entre língua A e língua B acreditamos ser

    o texto original um objeto estável, transportável , de con

    tornos absolutamente claros, cujo conteúdo podemos clas

    sificar completa e objetivamente. Afinal, se

    as

    palavras de

    uma sentença são como carga contida em vagões, é per

    feitamente possível determinarmos e controlarmos todo o

    seu conteúdo e até garantirmos que seja transposto na

    íntegra

    para

    outro conjunto de vagões. Ao mesmo tempo,

    se

    compararmos o tradutor ao encarregado do transporte

    dessa carga, assumiremos que sua função, meramente me

    cânica, se restringe a garantir que a carga chegue intacta

    Uma teoria lingüística da tradução,

    p

    22. V Bibliografia comen

    tada.

    2 Language structure and translation, p. 190. V. Bibliografia co

    mentada.

    3

    ao seu destino. Assim, o tradutor traduz, isto é, trans

    porta a carga de significados, mas não deve interferir nela,

    não deve interpretá- la .

    Essa visão tradicional, que obviamente pressupõe uma

    determinada teoria de linguagem,

    se

    reflete também nas

    diretrizes em geral estabelecidas para o trabalho do tra

    dutor. Nesse sentido, os três princípios básicos que defi

    nem a boa tradução, sugeridos por um de seus teóricos

    pioneiros, Alexander Fraser Tytler, ainda são exemplares:

    1} a tradução deve reproduzir

    em

    sua totalidade a idéia do

    texto original;

    2 o estilo d tradução deve ser o mesmo do original; e

    3 a tradução deve

    t r

    toda a fluência e a naturalidade do

    t xto

    original

    3

    Pierre Menard, autor dei Quijote , um

    lição de Borges sobre linguagem e tradução

    Para que possamos discutir os problemas e as limi

    tações dessa imagem consagrada que vincula a tradução à

    transferência de significados de uma língua para outra,

    vamos examinar

    um

    conto do escritor argentino Jorge

    Luis Borges que tem um título instigante: Pierre Menard,

    autor dei Quijote

    4 •

    Embora seja um conto bastante com

    plexo que, à primeira vista, pode desiludir os leitores me

    nos acostumados a visitar os textos labirínticos de Borges,

    vale a pena tentar penetrar sua trama aparentemente sim

    ples, mas que oferece,

    em

    suas poucas páginas, um dos

    comentários mais brilhantes e mais completos que já se

    escreveu sobre os mecanismos da linguagem e suas impli-

    3 The principies

    o

    translation, publicado em 1791. A I u ~ BASS NETT-

    -McGUIRE, Susan. Translation studies, p. 63. V. Blbhograf1a co

    mentada.

    4

    ln: -

    Ficciones,

    p. 47-59. V. Bibliografia comentada. Todas as

    citações serão traduzidas do original pela Autora.

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      4

    cações

    para

    uma teoria da tradução e para uma teoria da

    literatura

    5

    O conto é apresentado como uma resenha póstuma

    das obras de Pierre ·Menard (personagem fictício criado

    por Borges), um homem de letras francês que viveu na

    primeira metade do século XX. O narrador é um crítico

    literário que tenta apresentar o verdadeiro catálogo das

    obras de Menard, de quem se diz amigo, com o objetivo

    de retificar um catálogo recém-publicado, que considera

    falso e incompleto. Segundo o narrador, é fácil enumerar

    o que chama a obra visível de Menard; e ele nos apre

    senta dezenove obras (monografias, traduções, análises e

    alguns poemas) publicadas e não-publicadas, que sugerem,

    como escreveu Borges no prólogo de Ficciones, o dia

    grama

    da

    história mental de Menard: sua ideologia, suas

    concepções teóricas, seus desejos e até suas contradições.

    A obra visível de Menard e o

    son o

    de uma linguagem não-arbitrária

    Vamos examinar algumas das obras visíveis de Me

    nard

    para

    que possamos entender um pouco sua concep

    ção de linguagem. e analisarmos mais detidamente seus

    trabalhos teóricos, veremos que têm muito em comum

    com

    as

    teorias tradicionais da tradução. Menard concebe

    o texto como um objeto de contornos perfeitamente deter

    mináveis, acreditando, portanto, que seja possível, como

    sugerem os três princípios básicos de Tytler, reproduzir

    totalmente, em outra língua, as idéias, o estilo e a natura

    lidade de um texto original. Comecemos nossa leitura

    5

    Para

    uma

    versão mais aprofundada da leitura

    de

    Pierre Menard,

    autor dei Quijote proposta aqui, ver ARROJO Rosemary. Pierre

    Menard, autor dei

    Quijote :

    esboço de uma poética da tradução

    via Borges. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tra-

    dutores, n.

    0

    5. V.

    Bibliografia

    comentada.

    5

    pelos seguintes trabalhos encontrados no arquivo parti

    cular de Menard:

    [ ...

    c) uma monografia sobre certas conexões ou afinidades

    do pensamento de Descartes, Leibniz e de John Wilkins;

    d) uma monografia sobre a

    Ars

    magna genera/is, de Ramón

    Lull;

    [ ... ]

    h) os rascunhos de uma monografia sobre a lógica simbó

    lica de George Boole p . 46 .

    O que teriam em comum esses pensadores? No en

    saio

    El

    idioma analítico de John Wilkins , da coletânea

    Otras inquisiciones

    6

    , o próprio Borges sugere algumas co

    nexões entre o pensamento de René Descartes ( 1596-

    -1650),

    importante filósofo francês, e do religioso inglês

    John Wilkins (1614-1650). Ambos sonhavam com a pos

    sibilidade de uma linguagem universal, que não fosse arbi

    trária e que, portanto, não dependesse dos caprichos

    da

    interpretação; cada palavra teria um significado fixo e

    único, independentemente de qualquer contexto. Segundo

    Borges, no idioma universal idealizado por Wilkins,

    cada

    palavra define a si mesma (p.

    222),

    constituindo um

    signo evidente e definitivo, imediatamente decifrável por

    qualque r pessoa. Tal idioma, imaginava Wilkins, deveria

    ser capaz de organizar e abarcar todos os pensamentos

    humanos (p.

    222).

    Borges descreve esse projeto ambi

    cioso:

    [Wilkins]

    dividiu o universo em quare·nta categorias ou gê

    neros, subdivisíveis, por sua vez, em espécies. Atribuiu a

    cada gênero um monossílabo de duas letras; a cada dife

    rença, uma consoante; a cada espéc ie, uma vogal. Por

    exemplo, de quer

    dizer

    elemento; deb, o

    primeiro

    dos ele-

    6 P. 221-5. V.

    Bibliografia

    comentada. Todas as citações serão tra

    duzidas do original pela Autora.

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    10/47

      6

    mentas, o fogo;

    deba

    uma porção do elemento do fogo,

    uma chama p. 222) .

    E examina mais detidamente a oitava categoria, a das

    pedras:

    Wilkins s divide em comuns rocha viva, cascalho, ardó-

    sia), razoáveis mármore, âmbar, coral); preciosas pérola,

    opala); transparentes ametista, safira) e insolúveis carvão,

    argila e arsênico). Quase tão alarmante quanto a oitava é

    a nona categ oria. Esta nos revela que os metais podem ser

    Imperfeitos cinabre, mercúrio); art if iciais bronze, latão).

    recrementícios limalha, ferrugem) e naturais ouro, esta-

    nho, cobre) p. 223).

    De acordo com Borges, ainda no mesmo ensaio, Des

    cartes, antes de Wilkins, já havia sonhado usar o sistema

    decimal de numeração para criar uma linguagem univer

    sal, absolutamente racional, livre de ambigüidades. Supu

    nha Descartes que, através da utilização de algarismos,

    poderíamos aprender num só dia a nomear todas as quan

    tidades· até o infinito e a escrevê-las num idioma novo

    p.

    222).

    O filósofo alemão Got tfri ed Wilhelm Leibniz ( 1646-

    -1716),

    precursor do projeto da lógica simbólica, cujo

    objetivo último é a criação de uma linguagem não-arbi

    trária, também tentou construir uma linguagem universal,

    que intitulou rs combinatoria, com base no modelo de

    John Wilkins e na rs magna do filósofo e missionário

    espanhol Ramón Lull (123 6-1315 )7.

    De todos esses projetos, a obra de Lull é talvez a

    mais extravagante. Tratava-se de uma armação de discos

    com os quais propunha relacionar exaustivamente todas

    as possíveis relações de um tópico. A armação era cons-

    7 Cf. LEWIS,

    E.

    1

    A survey of symbolic logic.

    Berkeley, University

    of Califor nia Press, 1918. p. 4.

    7

    tituída de três círculos concêntricos divididos em compar

    timentos. Um círculo era dividido em nove predicados re

    levantes; o terceiro círculo era dividido em nove pergun

    tas:

    O

    quê? Por quê? De que tamanho? De que espé

    cie? Quando? Onde? Como? De que lugar? Qual? . Um

    dos círculos era fixo; os outros giravam, fornecendo uina

    série completa de perguntas, e de afirmações relacionadas

    a elas

    8

    .

    Finalmente, o matemático e lógico inglês George

    Boole ( 1815-1864) é considerado o segundo fundador da

    lógica simbólica, intuída por Lull e Wilkins, e formaliza

    da, pela primeira vez, por Leibniz

    9

    Por trás de todos esses projetos ambiciosos, podemos

    identificar um desejo de se chegar a uma verdade única e

    absoluta, expressa através de uma linguagem que pudes

    se neutralizar completamente as ambigüidades, os duplos

    sentidos,

    as

    variações de interpretação,

    as

    mudanças de

    sentido trazidas pelo tempo ou pelo contexto. Esse desejo,

    compartilhado

    por

    Descartes, Leibniz, Lull e Boole, e que

    nos fornece um esboço

    da

    teoria

    da

    linguagem e da teoria

    da tradução professadas

    por

    Menard,

    se

    revela também

    na

    teoria literária implícita em seus trabalhos críticos.

    Para Menard, o literário é uma categoria perfeita

    mente distinguível do não-literário. Tanto o poético como

    o não-poético são características textuais intrínsecas e es

    táveis, que podem ser objetivamente determinadas. O item

    b do catálogo de suas obras é, por exemplo,

    uma monografia sobre a possibilidade de

    construir

    um voca-

    bulário poético de conceitos que não fossem sinônimos ou

    perífrases dos que informam a linguagem comum, mas ob-

    jetos ideais criados por uma convenção e essencialmente

    destinados às necessidades poéticas

    .

    48 .

    B Cf. REESE, W. L.

    Dictionary of philosophy and religion;

    eastern

    and western thought. New Jersey, Humanity Press, 1980.

    9 Cf. LEWIS, E. 1. op. cit., p. 4.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    11/47

    18

    O item é

    um

    exame das leis métricas essenciais da

    prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon

    (p. 49). O item

    n

    é uma obstinada análise dos 'costumes

    sintáticos de Toulet' '', e o item s é

    uma

    lista manuscrita

    de versos que devem sua eficácia

    à

    pontuação (p. 50).

    Para Menard, a crítica é o catalogar de características for

    mais evidentes e não deve elogiar ou censura r . Como

    nos informa o narrador , Menard declarava que censurar

    e elogiar são operações sentimentais que nada têm a ver

    com a crítica (p. 47). Menard, discípulo de Descartes,

    Leibniz, Ramón Lull e John Wilkins, considera que a crí

    tica, como a tradução ou a leitura, não deve interp retar

    ou ir além do texto original e, sim, delimitar seus contor

    nos objetivos e imutáveis.

    Contudo, a própria bibliografia de Menard sugere a

    impossibilidade desse desejo. Como poeta e tradutor, ele

    constanteme nte produz versões diferentes do mesmo

    texto. O item que encabeça o catálogo de seus trabalhos

    é

    um

    soneto simbolista que apareceu duas vezes (com

    variações) na revista

    La onqu

    e (números de março e

    outubro de 1899) . O item é uma tradução , com pró

    logos e notas do Libro de l inv ención liberal

    y

    arte dei

    juego de ajedrex, de Ruy López de Segura . O item k é

    outra tradução, uma tradução manuscrita (e, portanto,

    não uma versão definiti va ) da Aguja de navegar cul

    tos'', de Quevedo, intitulada La boussole des précieux .

    O item o é uma transposição em alexandrinos do 'Cime

    tiere Marin', de Paul Valéry . Curiosamente, há também

    uma versão literal da versão literal que fez Quevedo da

    Introduction à l vie dévote de San Francisco de Sales

    (p. 48-50).

    Porém, entre todos os projetos menardianos, o · que

    mais clara e espetacularmente ilustra a impossibilidade de

    se chegar a uma linguagem não-arbitrária, que pudesse

    controlar os conteúdos e os limites de um texto, é a reali

    zação de sua obra invisível'', que examinamos a seguir.

    A obra invisível e a missão

    impossível de Menard

    19

    Segundo o narrador, a obra que realmente define o

    talento de Menard é seu trabalho invisível'', sua obra

    mais significativa -   a subterrânea, a interminavelmente

    heróica, a ímpar , ou seja, a reprodução dos capítulos

    IX

    e XXXVIII da Primeira parte do Dom Quixote, de Mi

    guel de Cervantes, e parte do capítulo XXII. Por que seria

    invisível essa obra de Menard? Em primeiro lugar,

    em

    oposição à sua obra visível , seu trabalho invisível pa

    rece nunca ter sido publicado.

    Em

    segundo lugar, talvez

    seja invisível porque, mais do que uma obra real ,

    trata-se de um desejo, de um sonho que não pôde ser rea

    lizado. Além disso, invisível pode sugerir também que o

    que Menard chama de a reescritura ou a reprodução

    do Quixote fosse, na verdade, uma leitur a , forma invi

    sível de se reescrever ou traduzir.

    Conforme nos explica o narrador, o inusitado obje

    tivo de Menard não era simplesmente reproduzir o

    Qui-

    xote, mas repetir na íntegra o texto escrito

    por

    Cervantes.

    Pierre Menard busca a totalidade: interpretação total, con

    trole total sobre o texto, total identificação com um autor

    determinado (p. 51). Tal atitude rejeita, obviamente,

    uma interpretação contemporânea do

    Quixote

    e

    ao negar

    -se a simplesmente inte rpreta r ou tradu zir o Quixote,

    Menard pretende recuperar não apenas a totalidade do

    texto de Cervantes, mas também o contexto em que fora

    escrito:

    Não

    queria outro

    Quixote -

    o que seria fácil

    - mas o Quixote (p.

    52).

    O projeto invisível de Menard reflete, portanto,

    uma teoria da tradução (e uma teoria da leitura) seme

    lhante

    à

    de Catford ou Nida, já que parte de uma teoria

    da linguagem que autoriza a possibilidade de determinar e

    delimitar o significado de uma palavra, ou mesmo de um

    texto, fora do contexto em que é lida ou ouvida.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    12/47

    2

    A primeira estratégia que Menard pensa em empre

    gar para alcançar seu objetivo é, literalmente, transfor

    mar-se em Cervantes, isto é:

    conhecer bem o espanhol. recuperar a

    católica, guer

    rear contra os mouros

    ou

    contra os turcos, esquecer a his

    tória da

    Europa entre os anos de

    1602

    e de

    1918 ser

    Mi

    guel de Cervantes

    p

    . 52-3 .

    Abandona, entretanto, tal método, por ser pouco es

    timulante. Afinal, como nos explica o narrad or, ser, de

    alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu

    -lhe menos árduo - por conseguinte, menos interessnnte

    - que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Qui

    xote através das experiências de Pierre Mena rd (p. 52 .

    Menard impõe-se, assim, o misterioso dever de recons

    truir literalmente a obra espontânea de Cervantes (p . 52 .

    Esse misterioso dever pode ser interpretado como

    uma alegoria do que tradicionalmente

    se

    pretende atingir

    em toda tradução: Menard

    se

    impõe a tarefa de repetir

    um texto estrangeiro, escrito em outra língua, por um outro

    autor e num outro momento, sem deixar de ser ele pró

    prio, isto é, sem poder anular seu contexto e suas circuns

    tâncias. Menar d parece, inclusive, uma caricatura exage

    rada do tradutor imaginado por Tytler, refletido nos três

    princípios básicos comentados no início deste capítulo:

    1)

    a tradução deve reproduzir em sua totalidade a idéia do

    texto original; 2 a tradução deve ter o mesmo estilo do

    original; e,

    3)

    a tradução deve ser fluente e natural como

    o original.

    Embo ra reconheça que seu projeto é ainda mais im

    possível do que tornar -se Cervantes, o próprio Menard,

    como um supertradutor, consegue (aparentemente) ven

    cer essa impossibilidade e produz alguns fragmentos ver

    balmente idênticos ao om

    Quixote

    de Miguel de Cer

    vantes. Entreta nto, ao tentar identificar-se totalmente com

    21

    Cervantes e proteger a intenção ou o significado origi

    nais do texto, Mena rd inadvertidamente ilustra a invia

    bilidade de seu projeto.

    O narrador nos apresenta um fragmento do

    Dom

    Quixote

    reescrito

    por

    Pierre Menard e o compara ao

    fragmento equivalente

    do

    om

    Quixote

    de Cervantes:

    f:

    uma revelação

    cotejar

    o

    Dom Quixote

    de Menard com o

    de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote,

    primeira parte, capítulo nono):

    [ . . . ] a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do

    tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exem

    plo e aviso do presente, advertência do

    porvir

    . Redigida

    no século dezessete, redigida pelo engenho

    leigo

    Cer

    vantes, essa enumeração é um mero elogio retórico

    da

    his

    tória. Menard, por outro lado, escreve:

    [ . .. ] a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do

    tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exem

    plo e aviso do presente, advertência do

    porvir .

    A história,

    mãe da verdade; a idéia é assombrosa. Menard, con

    temporâneo de William James, não define a história como

    uma indagação

    da

    realidade, mas como sua origem. A ver

    dade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que

    julgamos que tenha acontecido . As sentenças finais -

     exemplo e aviso do presente, advertência do

    porvir

    -

    são descaradamente pragmáticas . Também é vívido o con

    traste

    entre os estilos. O estilo arcaizante de Menard -

    ·no fundo estrangeiro - padece de alguma afetação. O

    mesmo não acontece com o do precursor, que maneja com

    naturalidade o espanhol corrente de sua época (p. 57).

    Menar d tenta recuper ar o significado original de

    Cervantes, mas somente consegue reproduzir suas pala- .

    vras. O que Menard lê e reproduz como sendo o verda

    deiro

    Quixote

    (e, portanto, de acordo com Menard, imu

    tável e evidente) é interpretado pelo narrador/crítico

    como algo diferente. Paradoxal mente, ao repetir a to

    talidade do texto de Cervantes, Menard ilustra a impossi-

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    13/47

    22

    bilidade· da repetição total, exatamente porque

    as

    pala

    vras do texto de Cervantes n ão conseguem delimitar ou

    petrificar seu significado original , independentemente de

    um contexto, ou de uma

    interpretação .

    Essas mesmas pa

    lavras assumem um determinado valor quando o narra

    dor/

    crítico

    as

    relaciona ao contexto de Cervantes, e um

    valor diferente quando relacionadas ao contexto de Pierre

    Menard. Assim, ainda que

    um

    tradutor conseguisse che

    gar a uma repetição total de

    um

    determinado texto, sua

    tradução não recuperaria nunca a totalidade do original ;

    revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretação

    desse texto que, por sua vez, será

    sempre, apenas

    lido

    e

    interpretado,

    e nunca totalmente decifrado ou controlado.

    Além disso, quando Menard se transforma em au

    tor do Quixote, seus leitores também interpretam seu texto

    sob diferentes pontos de vista e não conseguem recuperar

    suas intenções originais. Além da interpretação do narra

    dor/

    crítico, que já mencionamos acima, há,

    por

    exemplo,

    a de Madame Bachelier, que vê no

    Quixote

    de Menard

    uma admirável e típica subordinação do autor à psico

    logia do herói . Outros leitores, nada perspicazes , se-

    gundo o narrador, consideram a obra invisível de Me

    nard uma mera transcr ição do

    Quixote.

    Outros, ainda,

    como a Baronesa de Bacourt, reconhecem na mesma obra

    a influência de Nietzsche (p. 5

    6

    .

    texto original redefinido

    Até aqui, nossa rápida incursão pelo conto de Borges

    tentou questionar a visão tradicional de texto, sugerida

    pelas teorias da tradução esboçadas no início deste capí

    tulo. Como sugere nossa leitura de Pierre Menard, autçir

    dei

    Quijote ,

    traduzir não pode ser meramente o trans

    porte, ou a transferência, de significados estáveis de uma

    língua para outra, porque o próprio significado de uma

    23

    palavra, ou de um texto, na língua de partida, somente

    poderá ser determinado, provisoriamente, atravé·s de uma

    leitura. Assim, se voltarmos às nossas questões iniciais,

    referentes ao próprio título deste livro, parece ficar mais

    claro que, ao traduzirmos

    translation workshop

    por ofi

    cina de tradução , o que acontece não é uma transferência

    total de significado, porque o próprio significado do ori

    ginal não é fixo ou estável e depende do contexto em

    que ocorre. Assim, antes de traduzir

    translation workshop

    por oficina de tradução , estabeleceu-se o contexto em

    que havia originalmente ocorrido: título de um curso espe

    cial e avançado, oferecido por uma universidade ameri

    cana. Ao mesmo tempo, a tradução que sugeri, oficina

    de tradução , como o

    Quixote

    de Menard

    em

    relação ao

    Quixote

    de Cervantes, passa a existir num outro contexto

    e ganha vida própria, a partir do momento

    em

    que

    se

    transforma no título de um livro publicado no Brasil.

    O texto, como o signo, deixa de ser a representação

    fiel de um objeto estável que possa existir fora do labi

    rinto infinito da linguagem e passa a ser uma máquina de

    significados em potencial. A imagem exemplar do texto

    original deixa de ser, portanto, a de uma seqüência de

    vagões que contêm uma carga determinável e totalmente

    resgatável. Ao invés de considerarmos o texto, ou o signo,

    como um receptáculo em que algum conteúdo possa ser

    depositado e mantido sob controle, proponho que sua ima

    gem exemplar passe a ser a de um

    palimpsesto.

    Segundo

    os dicionários, o substantivo masculino

    palimpsesto,

    do

    grego

    palimpsestos

    ( raspado novamente ), refere-se ao

    antigo material de escrita, principalmente o pergaminho,

    usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou

    três vezes [ .. . ] mediante raspagem do texto anterior .

    Metaforicamente, em nossa oficina , o palimpsesto

    passa a ser o texto que se apaga, em cada comunidade cul

    tural e em cada época, para dar lugar a outra escritura

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    14/47

      4

    ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do mesmo

    texto. Assim, como nos ilustrou o conto de Borges, o

    texto de om Quixote não pode ser um conjunto de sig

    nificados estáveis e imóveis, para sempre depositad os

    nas palavras de Miguel de Cervantes. O que temos, o

    que é possível ter, são suas muitas leituras, suas muitas

    interpretações - seus muitos palimpsestos .

    A tradução, como a leitura, deixa de ser, portanto,

    uma atividade que protege os significados originais de

    um autor, e assume sua condição de produtora de signi

    ficados; mesmo porque protegê-los seria impossível, como

    tão bem

    e

    tão contrariadamente) nos demonstrou o bor

    giano Pierre Menard.

    3 A questão do texto literário

    Nenhum problema tão consubstancial

    com s letras e seu modesto mistério

    como o que propõe uma tradução.

    Um esquecimento estimulado pela vai-

    dade o temor de confessar processos

    mentais que adivinhamos perigosa-

    mente comuns a tentativa de manter

    intacta e central uma reserva incal-

    culável de sombra velam s tais escri-

    turas diretas. A tradução por outro

    lado parece destinada a ilustrar a

    discussão estética.

    (Jorge Luís Borges)

    preconceito

    d

    inferioridade

    ou

    da impossibilidade

    O ponto nevrálgico de toda teoria de tradução parece

    ser a tradução dos textos que chamamos de literário s ,

    questão geralmente adiada ou excluída tanto dos estudos

    sobre tradução quanto dos estudos literários.

    A grande maioria dos escritores e poetas que abor

    dam a questão da tradução de textos literários considera

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

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    26

    que traduzir é destruir, é descaracterizar, é trivializar.

    Para muitos, a tradução de poesia é teórica e praticamente

    impossível. Para outros, a eventual traduzibilidade do

    texto poético é vista como sinal de inferioridade. Para o

    poeta americano Robert Frost (1874-1963), por exemplo,

    a verdadeira poesia é intraduzível, definindo-se precisa

    mente como aquilo que se perde em qualquer tentativa

    de tradução

    1

    . Segundo o francês Paul Valéry (1871-

    -1945), contemporâneo e companheiro de Pierre Me

    nard, a qualidade do texto poético é inversamente pro

    porcional à sua traduzibilidade: quanto mais resistente for

    o texto aparentemente poético ao ataque de qualquer

    transformação formal, menor será o seu grau de poesia

    2

    George Steiner, em A ter

    Babel aspects o f langua-

    ge and translation (V. Bibliografia comentada), cita várias

    opiniões semelhantes, também de escritores e poetas céle

    bres, insatisfeitos com os estragos causados pela tra

    dução. Entre outros, Steiner cita o poeta alemão Heinrich

    Heine (1797-1856), para quem as versões francesas de seus

    poemas eram

    luar

    recheado de palha (p. 240). O russo

    -americano Vladimir Nabokov

    (1899-1977), u

    dos maio

    res escritores deste século e que, entre suas inúmeras obras,

    incluiu traduções, expressa sua visão no poema On trans

    lating 'Eugene Onegin' :

    What is translation? On a

    platter

    A poet's pale and glaring head,

    A

    parrot's

    speech, a monkey's chatter,

    And profanation

    of

    the dead (p. 240).

    ( Sobre

    a Tradução de Eugene Onegin'

    O

    que é tradução? Numa bandeja,

    t

    Citado pelo poeta

    e

    tradutor

    inglês

    Donald Davie numa

    confe

    rência apresentada para os alunos do Programa de Mestrado em

    Teoria e Prática

    da

    Tradução Literária, Universidade de Essex,

    Colchester, l'nglaterra, no ano letivo de 1967-1968; texto mimeo

    grafado.

    : Idem.

    A cabeça pálida e fulgurante de um poeta,

    A fala de um papagaio, a tagarelice de um macaco,

    E a profanação dos

    mortos.)

    27

    Marin Sorescu, poeta romeno contemporâneo, tam

    bém expressa sua crítica através de um poema, intitulado

    Tradução , que traduzo a partir da versão inglesa:

    Estava fazendo exame

    e uma língua morta.

    E tinha que me traduzir

    e homem para macaco.

    Fiquei

    na

    minha,

    Transformando uma floresta

    Em texto.

    Mas a tradução ficou mais difícil

    Quando fui chegando perto de mim.

    Porém, com um certo esforço,

    Encontrei equlvalentes satisfatórios

    Para as

    unhas e os pêlos dos pés.

    Perto dos joelhos

    Comecei a gaguejar.

    Perto do coração minha mão começou a tremer

    E inundou o papel de luz.

    Mesmo assim,

    tentei

    improvisar

    Com os pêlos do peito,

    Mas falhei completamente

    Na alma.

    Segundo esses poetas e escritores, a tradução é uma

    atividade essencialmente inferior, porque falha em captu

    rar a alma ou o espírito do texto literário ou poético.

    Essa visão reflete, portanto, a concepção de que, especial

    mente no texto literário

    ou

    poético, a delicada conjunção

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

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    28

    entre

    forma

    e

    conteúdo não pode

    ser tocada sem prejuízo

    vital, o que condenaria qu alquer possibilidade

    de

    tradução

    bem-sucedida.

    ma teoria literária menardiana

    Novamente, estamos diante de uma concepção me

    nardiana da literatura, reflexo da teoria lingüística e da

    teoria

    da

    tradução que comentamos no capítulo anterior.

    Como vimos, Pierre Menard somente consideraria legítima

    uma tradução que, literalmente , não alterasse em nada o

    texto original'', uma tradução que, em pleno século

    XX,

    pudesse resgatar o

    verdadeiro Quixote

    escrito

    por

    Miguel

    de Cervantes no início do século

    XVII

    .

    Para

    o poeta,

    tradut or e romanc ista invisível  Pierre Menard, como

    para

    os poetas e escritores citados acima , o literário e o

    poético são características textuais intrínsecas e estáveis ,

    que permitem, inclusive, uma distinção clara e objetiva

    entre textos literários e textos não-literários. Portanto,

    qualquer mudança

    tanto

    a nível formal , quanto a nível

    de conteúdo) que pudesse ocorrer num texto literário

    implicaria uma alteração de suas características e conse

    qüentemente, a eventual

    perda

    daquilo que o torna lite

    rário .

    Ao

    mesmo tempo, podemos observar que a teoria de

    tradução implícita nos comentários desses poetas e escri

    tores é essencialmente a mesma do teórico Eugene Nida,

    cuja comparação do processo de tradução a

    uma

    transfe

    rência de carga de um grupo de .vagões

    para

    outro exami

    namos no início do capítulo anterior. Nida redime a tra

    dução de textos não-literários exatamente porque, nesse

    caso, a conjunção conteúdo / forma não é considerada fun

    damental,

    não importando, como vimos, em quais vagões

    se encontram as diversas partes

    da

    carga transportada,

    9

    nem a sequencia em que os vagões se organizam, mas,

    sim, que todos os conteúdos alcancem o seu destino.

    Essa transferência não pode, portanto, ser aceita

    pelos defensores da intraduzibilidade do literário e do poé

    tico porque consideram que é precisamente essa intocabi

    lidade da conjunção forma/ conteúdo que constitui a pe

    culiaridade do texto artístico . A literarieda de é assim,

    considerada como algo que alguns textos privilegiados

    contêm , como uma alma ou um espírito . Conforme

    escreveu o poeta italiano Giacomo Leopardi (

    1798-1837):

    As

    idéias estão contidas e praticamente engastadas nas

    palavras como pedras preciosas num anel. Elas

    se

    incor

    poram às palavras como a alma

    ao

    corpo de tal modo que

    constituem um todo.

    As

    idéias são  portanto inseparáveis

    das palavras· e se se separarem delas não serão mais as

    mesmas. Escapam

    ao

    nosso intelecto e

    ao

    nosso poder de

    compreensão; tornam-se irreconhecíveis  exatamente o que

    aconteceria à nossa alma se se separasse de nosso

    corpoª·

    Tanto

    a imagem de Leopardi, que sintetiza as con

    cepções de Nabokov, Frost, Valéry e Sorescu (além de

    Menard),

    quanto a de Nida, apresentam o texto (literá

    rio

    ou não)

    como um receptáculo de idéias e / ou carac

    terísticas distinguíveis e objetivamente determináveis. No

    capítulo anterior, através do conto de Borges, tentamos

    questionar essa concepção de texto e, à imagem

    do

    texto/

    / vagão de carga sobrepusemos a imagem

    do

    texto/ palimp

    sesto. Tenta remos, agora, examinar

    as

    implicações desse

    texto/ palimpsesto

    para

    uma definição da própria literatura,

    pois a discussão sobre a tradução ou a traduzibilidade dos

    textos que chamamos de literários ou poéticos depende de

    uma discussão anterior sobre o

    status

    do texto original ,

    isto é, sobre aquilo que nos leva a considerar um deter

    minado texto poético

    ou

    literário .

    3

    Apud

    STEINER, G. A ter Babel .. nota 1  p. 242.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    17/47

    30

    Repensando o literário

    Se tentássemos rastrear, através da história da cultura

    ocidental, as diversas respostas dadas à pergunta aparente

    mente simples: O que é literatura?'', provavelmente che

    garíamos a respostas tão diferentes quanto as épocas que

    as

    produziram. Basta lembrar, por exemplo, que enquanto

    Platão bania a poesia de sua República

    por

    ser perigosa ,

    Aristóteles a celebrava, principalmente sob a forma de tra

    gédia, por seu efeito benéfico de catarse. Mas, nem pre

    cisaríamos consultar nossos mestres gregos. Se fizéssemos

    a mesma pergunta a teóricos contemporâneos, também ob

    teríamos respostas divergentes. Na verdade, seria surpreen

    dente se obtivéssemos respostas muito semelhantes, uma

    vez que nossa tradição cultural tem chamado de poemas

    textos tão díspares quanto Os Lusíadas de Camões, e

    Quadrilha'', de Carlos Drummond de Andrade, ou

    Para-

    dise Lost de John Milton, e ln a Station of the Metro'',

    de Ezra Pound.

    De um lado, temos textos monumentais como os de

    Camões e Milton

    e

    de outro, textos que um leitor avesso

    às sutilezas do poético consideraria prosaicos, como o

    poema citado de Pound, constituído de apenas dois versos:

    he apparition of these faces in the crowd;

    Petals on a wet black bough.

    A aparição dessas faces na multidão;

    Pétalas num ramo negro, úmido.)

    O que teriam em comum esses textos tão diferentes? O

    que nos permite classificá-los com o mesmo rótulo de

    poema ? Certamente, o que nos permite chamar tanto

    Os Lusíadas

    quanto Quadrilha

    de

    poemas não são

    suas características textuais intrínsecas, nem sua temática,

    nem mesmo ·as eventuais interições de seus autores tão

    distintas entre si mas sim, nossa atitude perante os mes-

    31

    mos. O poético é na verdade, uma estratégia de leitura,

    uma maneira de ler e não, como queria Pierre Menard,

    um conjunto de propriedades estáveis que objetivamente

    encontr amos em certos textos. Assim, há textos que,

    devido a circunstâncias exteriores e não às suas caracte

    rísticas inerentes, nossa tradição cultural decide ler de

    forma literária ou poética.

    A literatura seria, portanto, uma categoria convencio

    nal criada por uma decisão comunitária. Como sugere o

    teórico americano Stanley Fish, o que será, em qualquer

    época, reconhecido como literatura é resultado de uma de

    cisão, consciente ou não, da comunidade cultural sobre o

    que será considerado literári o

    4

    Podemos imaginar, por

    exemplo, que o contexto histórico e cultural que produziu

    e celebrou um poema como Os Lusíadas certamente não

    produziria nem reconheceria como poema um texto como

    Quadrilha . Hoje, entretanto, nossa comunidade cultu

    ral, que

    Stanley Fish chama de comunid ade interpreta

    tiva'', permite incluir tanto Camões quanto Drummond

    entre os maiores poetas da língua portuguesa. De ma

    neira semelhante, podemos entender também

    por

    que al

    guns poetas são tão celebrados durante um certo período

    e completamente esquecidos em outro, ou, ainda, porque

    às vezes redescobrimos ou revisita mos um poeta in

    justiçado no passado.

    uando ameixas não sã simplesmente

    ameixas

    Tomemos um exemplo prático que possa nos ajudar

    a ilustrar essas conclusões sobre o literário ou o poético

    4

    Is there a text in this class?; the authority of interpretive commu

    nities, p. 1-17. V. Bibliografia comentada.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    18/47

    32

    e a examinar suas implicações para o processo de tra

    dução.

    Suponhamos que o seguinte fragmento seja o con

    teúdo de um bilhete deixado por um hóspede norte-ame

    ricano sobre a mesa da cozinha de seu anfitrião brasileiro,

    que não domina muito bem o inglês:

    This is just to say 1 have eaten the plums th t were in the

    icebox and which you were probably saving

    for

    breakfast.

    Forgive me, they were delicious: so sweet and so cold

    5

    .

    Como tradutores de um simples bilhete de caráter pessoal,

    cujo contexto e função acabam de ser estabelecidos, sabe

    mos que nosso objetivo é reproduzir a informação e o

    pedido de desculpas do original :

    Este bilhete é só para lhe dizer que comi s ameixas que

    estavam n geladeira e que provavelmente você estava

    guardando para o café

    d

    manhã. Desculpe-me, elas esta

    vam deliciosas, tão doces e geladas.

    Teríamos, entretanto, outras leituras, outras traduções

    e portanto, pelo menos um outro texto ao constatarmos

    que o fragmento acima é na verdade, um poema do ame

    ricano William Carlos Williams (1883-1963):

    his s just

    to say

    1 have eaten

    the plums

    th t were in

    the icebox

    5

    O exemplo e os argumentos apresentados aqui f ~ r m inicialment_e

    desenvolvidos em ARROJO, Rosemary.

    A

    traduçao como reescri

    tura: o texto/ palimpsesto e

    um

    novo conceito de fidelidade. Tra-

    balhos em Lingiiística Aplicada Campinas, Universidade Estadual

    de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, dez . 1985, n.

    0

    5

    e

    6, p. 1-8.

    and which

    you were probably

    saving

    for breakfast

    Forgive me

    they were delicious

    so

    sweet

    and so cold

    o

    33

    Ao sermos apresentados ao mesmo fragmento,

    agora rotulado de poema o que antes era prosaico passa

    a ser poético. Como leitores do poema, membros de uma

    comunidade cultural para a qual tal texto se enquadra

    dentro das convenções literárias estabelecidas, aceitamos o

    desafio implícito de interpretá-lo poeticamente e passamos

    a procurar um sentido coerente para ele. Passamos a pen

    sar, por exemplo, nas possíveis implicações da oposição

    entre o ato de comer as ameixas e as relações sociais que

    esse ato viola. Oposição essa que não se resolve pacifica

    mente: ao mesmo tempo em que o poema, pela sua própria

    razão de ser, reconhece a prioridade das regras, através do

    pedido de perdão, afirma também que a experiência sensual .

    imediata é importante (principalmente pelas suas últimas

    palavras so sweet and so cold ) e que

    as

    relações pes

    soais

    (a

    relação sugerida entre o e o

    you

    devem ante

    cipar um espaço para tal experiência

    7

    Enquanto que a tradução do texto/bilhete não nos

    trouxe maiores dificuldades, a tradução do texto/poema

    nos obrigaria a tomar várias decisões nada fáceis. Um

    leitor/tradutor que concordasse, em linhas gerais, com a

    interpretação esboçada acima, teria que resolver, por exem-

    6

    Em

    BRADLEY,

    S. et alii, ed. The American tradition in literature

    4. ed. New York, Grosset Dunlap, 1974, p. 1618-9.

    7 Essa leitura foi esboçada pelo crítico americano Jonathan Culler,

    em

    Structuralist poetics. New York, Comei University Press,

    1975. p. 175-6.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    19/47

    34

    pio, o problema da tradução de plums.

    Se

    aceitamos que,

    no poema original'',

    as

    frutas representam um estímulo à

    sensibilidade que transgride as regras sociais, é importante

    que as associações desenvolvidas a parti r de plums en

    contrem equivalentes no texto traduzido.

    que passam

    a representar o sensual, ou aquilo que excita os sentidos,

    é importante que essas frutas , cobiçadas e consumidas pelo

    eu do poema e especialmente reservadas pelo você para o

    café da manhã, sejam frutas vermelhas e redondas (talvez

    como a fruta proibida e desejada do Jardim do Éden),

    de pele lisa e macia, carnudas, suculentas e doces. Tam

    bém passa a ser significativo o fato de que essas associa

    ções encontrem eco num outro sentido possível de

    plum,

    que em inglês coloquial pode significar algo considerado

    bom e desejável, como por exemplo, um emprego bem re

    munerado , acepção derivada de outras mais antigas. O

    Oxford English dictionary (edição compacta) lista algu

    mas que podem nos interessar: uma coisa boa, um pitéu;

    uma das melhores partes de um artigo ou livro; uma das

    recompensas da vida; também o melhor de uma coleção

    de objetos ou animais .

    Ao traduzirmos

    plums

    por ameixas, entretanto, o -

    que de associações pode se modificar radicalmente. Em

    primeiro lugar, ameixas não são necessariamente

    plums.

    Quando falamos em ameixas, hoje,

    na

    comunidade cultu

    ral em que vivemos, pensamos

    em

    ameixas pretas prun

     

    ,

    em inglês), frutas secas e enrugadas, que dificilmente se

    riam associadas ao sensual e que, por uma irônica coinci

    dência, podem fazer parte de um nada poético café da

    manhã, como remédio para distúrbios intestinais. Pensa

    mos também em nêsperas, as ameixas amarelo-alaranjadas,

    de pele lisa e aveludada que, embora pudessem deflagrar

    algumas das associações que construímos a partir das

    ameixas vermelhas, não são as mesmas frutas de que nos

    fala o poeta norte-americano.

    35

    Nesse ponto, tocamos em uma questão importante,

    aliás uma das primeiras a ser abordada

    em

    qualquer

    discussão sobre tradução e, em especial, sobre a tradução

    de textos literários: a que deve ser fiel nossa tradução

    de plums nesse poema? Deve a tradução ser fiel ao con

    texto em que (supomos que) o poema tenha sido escrito,

    isto

    é

    deve a tradução levar em conta que o poema pro

    vavelmente tenha sido escrito na pacata Rutherford, New

    Jersey, em meados da década de 30? Podemos imaginar

    que, nos anos 30, numa cidadezinha do nordeste ameri

    cano, consumir ameixas vermelhas no café da manhã não

    era necessariamente um hábito consagrado da população

    em

    geral, o que nos levaria a concluir que

    as

    plums do

    poema de Williams realmente sugerem algo que foge ao

    habitual. Mas, quando pensamos

    em

    ameixas verme

    lhas em nosso contexto cultural, a sugestão não é sim

    plesmente de algo que foge ao habitual, mas, sim, de algo

    muito raro e inacessível. E isso, considerando que nosso

    contexto cultural é o de um grande centro urbano e de

    senvolvido da região Sul do Brasil.

    Essa sugestão de raridade e inacessibilidade, que mo

    dificaria sensivelmente o

    status

    da sensualidade no poema

    traduzido, se intensificaria, por exemplo, se esse poema

    atingisse um público leitor em outras regiões brasileiras,

    ou mesmo em outros países de língua portuguesa. Assim,

    mesmo se fosse possível, uma tradução litera l do poema

    estaria estimulando associações e relações diferentes da

    quelas que podemos desenvolver a partir do original .

    Por outro lado, uma tradução não-litera l do poema,

    isto é, uma tradução que pretendesse recriar e adaptar

    suas imagens mais importantes, para que o texto traduzido

    fosse fiel

    às

    associações que construímos a partir do ori

    ginal , uma tradução que escolhesse pêssegos ou sa

    potis \ ou quaisquer outras frutas, como equivalentes do

    original plums, não seria fiel ao poema, enquanto repre-

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    20/47

    36

    sentante e produto de um determinado autor e seu con

    texto histórico.

    A tradução de textos literários redefinida

    que poderia tornar extremamente difícil, e até

    mesmo impossível, a tradução do poema de William Carlos

    Williams não seriam, portanto, suas características ineren

    tes, mas sim, a interpretação que construímos a partir dele.

    A tradução do substantivo plums, que nos pareceu óbvia

    quando consideramos o texto/ bilhete, passa a ser proble

    mática quando lidamos com o texto/ poema, exatamente

    porque, quando aceitamos ler um determinado texto de

    forma poética (isto

    é

    ·quando aceitamos que determi

    nado texto possa ser rotulado de poema ), passamos a

    considerar significativas todas as relações e associações que

    pudermos combinar numa

    interpretação

    coerente. Assim,

    as questões acima, que provisoriamente deixamos sem res

    postas, sugerem que qualquer tradução de This is just to

    say seria necessariamente

    um

    reflexo da interpretação

    que,

    por

    alguma razão, decidíssemos privilegiar.

    Da mesma forma que a leitura do crítico/narrador

    em Pierr e Menard, autor del Quijote diferencia os

    dois fragmentos verbalmente idênticos do om Quixote

    (um deles, de Cervantes; o outro, de

    Menard),

    foi a nossa

    leitura que distinguiu o poema de William Carlos Williams

    do simples bilhete escrito

    por

    um hóspede norte-ameri

    cano a seu anfitrião brasileiro.

    Tais conclusões a respeito da literariedade desmisti

    ficam os preconceitos que, em geral, envolvem a tradução

    dos chamados textos literário s ou poéticos . Isso não

    significa, entretanto, que a tradução desses textos seja sim

    ples ou fácil. Quando equipara mos a tradução ou a lei

    tura de um poema à sua criação, fica claro que exigimos

    de seu leitor ou tradutor uma sensibilidade e um talento

    semelhantes aos que tradicionalmente se exigem dos poetas.

    A questão

    d

    fidelidade

    Qual dessas muitas traduções

    da

    Odisséia]

    é

    fiel?, quererá saber, tal

    vez, meu leitor. Repito que nenhuma

    ou que todas. Se a f ide/idade

    tem

    que

    ser às imaginações de Homero , aos

    irrecuperáveis homens e dias que ele

    imaginou, nenhuma pode sê-lo para

    nós; todas, para

    um

    grego do século

    dez.

    O conceito de fidelidade e o

    texto palimpsesto

    (Jorge Luis Borges)

    Antes de nos concentrarmos no poema de William

    Carlos Williams, lembremo-nos, uma vez mais, de Pierre

    Menard. Como vimos, Menard, o tradut or total, aspirava

    a uma fidelidade total: pretendia reescrever o Quixote

    exatamente como Miguel de Cervantes o escrevera, repe

    tindo seu contexto histórico e social, suas circunstâncias,

    suas intenções e motivações.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    21/47

    38

    A impossibilidade do sonho de Menard já nos per

    mitiu reformular o conceito de texto original e até

    mesmo, o próprio conceito de literatura. Resta-nos, agora,

    repensar a questão da fid elidade.

    Menard não pode

    se

    r completamente fiel ao texto de

    Cervantes porque esse texto , conforme tentamos ilustrar

    através

    da

    imagem do tex to/ palimpsesto, não é um recep

    táculo de conteúdos estáveis e mantidos sob controle, que

    podem ser repetidos na íntegra. O texto de Cervantes,

    como qualquer outro texto , literário ou não, somente

    poderá ser abordado através de uma leitura ou interpre-

    tação

    Como Pierre Menard , todo leitor ou tradutor não po

    derá evitar que seu contato com os textos

    e

    com a pró

    pria realidade) seja mediado por suas circunstâncias, suas

    concepções, seu contexto histórico e social. Apropria da

    mente, como sugere o fragmento do Quixote de Cervantes,

    reproduzido

    por

    Menard , a mãe da verdade é a histó

    ria , isto é aquilo que consideramos verdadeiro será irre

    mediavelmente determinado por todos os fatores que cons

    tituem nossa história pessoal, social e coletiva. Nesse sen

    tido, é a história que dá à luz a verdade, e não a verdade

    que serve de modelo para a história. Assim, o Quixote de

    Menard, embora verbalmente idêntico ao de Cervantes,

    revela, mais do que o mundo de Cervantes , a própria his

    tória de Menard, que,

    por

    sua vez, também é mediada

    pela visão do narrador/crítico.

    Uma leópatra melindrosa

    Para

    entendermos um pouco melhor essa relação entre

    história e realidade, vamos imaginar a seguinte situação:

    um concurso de fantasias realizado em São Paulo, em

    meados da década de 20, durante uma festa, à qual da-

    39

    remos o título de Cleópatra, Rainha

    do

    Nilo. Todos os

    convidados deverão comparecer vestidos a caráter, e o

    ponto máximo da festa será a escolha daquela que apre

    sentar a melhor caracterização de Cleópatra, isto é da

    quela que

    se

    apresentar como a versão mais fiel à Cleó

    patr a original , que viveu no Egito cerca de um século

    antes de Cristo. Haver á um grupo de jurados, composto

    de homens e mulheres, previamente escolhidos por seus

    conhecimentos de história egípcia e da biografia da rainha.

    Finalmente, haverá um fotógrafo especialmente contratado

    para documentar a escolha.

    Se hoje tivéssemos a oportunidade de examinar a

    foto da vencedora, o que veríatnos? Certamente, reco

    nheceríamos na foto várias características do que consi

    deramos

    os

    usos e costumes da década de 20. O pen

    teado, a maquiagem, o traje e até a expressão facial e

    corporal dessa Cleóp atra vencedora estariam inevitavel

    mente marcados pelo estilo e pela moda dos anos 20, re

    velando,

    na

    verdade, um parentesco muito maior com sua

    própri a época do que com a época da verdad eira Cleó

    patra. Embor a possamos imaginar que a confecção do

    traje

    t n h ~

    se baseado em descrições sobre os trajes egíp

    cios da época de Cleópatra, eventualmente encontradas em

    livros de história, o traje que essa Cleópatra dos anos 20

    conseguiu produzi r foi feito com os tecidos, com as téc

    nicas de corte e costura, e

    por

    alguém que viveu nos

    anos 20.

    Se tivéssemos a oportunidade de comparar atenta

    mente essa foto com outras que documentassem eventos

    semelhantes realizados na mesma época, mas em cidades

    diferentes, como Nova York, Paris, ou, quem sabe, até

    mesmo, Rio de Janeiro, poderíamos registrar diferenças

    locais e características específicas dos usos e costumes

    dessas cidades, expressas através das candidatas vence

    doras.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    22/47

    4

    E se o concurso fosse repetido hoje? E se também

    tirássemos uma foto de nossa Cleópatra? Mesmo que ten

    tássemos, através de uma pesquisa séria e cuidadosa, ser

    absolutamente fiéis àquilo que consideramos constituir

    a verdadeira Cleópatra, e evitar os erro s que even

    tualmente poderíamos detectar em nossas hipotéticas Cleó

    patras dos anos 20, não revelaria a nossa versão da rainha

    egípcia as idiossincrasias, o estilo e as concepções dos

    anos 80, vigentes numa grande cidade ocidental do He

    misfério Sul?

    O autor o texto e o leitor/tradutor

    Do mesmo modo que é impossível para Menard tor

    nar-se Cervantes, e do memo modo que é impossível

    para as Cleópa tras dos anos 20 e dos anos 80 torna

    rem-se Cleópatra, é impossível resgatar integralmente as

    intenções e o universo de um autor, exatamente porque

    essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavel

    mente, nossa visão daquilo que possam ter sido. Além

    disso, como sugeriu o teórico francês Roland Barthes,

    qualquer texto, por pertencer à linguagem, pode ser lido

    sem a aprova ção de seu autor, que pode apenas visi

    tar seu texto, como

    um

    convidado , e não como um

    pai soberano e controlador dos destinos de sua criação

    1

     

    O autor passa a ser, portanto, mais um elemento que

    utilizamos para construir uma interpretação coerente do

    texto. Assim, quando revelei ao leitor que o texto/ bilhet e

    sobre as ameixas vermelhas era,

    na

    verdade,

    um

    poema

    do grande poeta norte-americano William Carlos Williams,

    1

    Ver

    BARTHES R From

    work to text.

    ln: HARARI

    J V. (ed.).

    Textual strategies

    perspectives in post-structuralist criticism. New

    York, Cornel l University Press, 1979. p. 77.

    41

    esse dado provavelmente motivou o leitor a aceitá-lo como

    texto poético e a levar a sério a interpretação proposta.

    O foco interpretativo é transferido do texto, como

    receptáculo da intenção original do autor, para o intér

    prete, o leitor, ou o tradutor. Isso não significa, absoluta

    mente, que devemos ignorar ou desconsiderar o que sa

    bemos a respeito de um au tor e de seu universo quando

    lemos ou traduzimos um texto. Significa que, mesmo que

    tivermos como único objetivo o resgate das intenções ori

    ginais de um determinado autor, o que somente podemos

    atingir em nossa leitura ou tradução é expressar

    nossa

    visão

    ~ s s e autor e de suas intenções. Assim, empregando

    novamente a imagem de Barthes, mesmo que considerás

    semos o autor o pai absoluto do texto que lemos ou

    traduzimos, ele será irremediavelmente nosso convida do

    nessa empresa; sua atuação, sua própria presenç a nesse

    projeto dependerá sempre do papel que, explícita ou im

    plicitamente, lhe outorgamos.

    Contudo, quando um leitor produ z um texto, sua

    interpretação não pode ser exclusivamente sua, da mesma

    forma que o escritor não pode ser o autor soberano do

    texto que escreve. No conto de Borges, a interpretaç ão

    que o narrador/crítico propõe do Quixote de Menard é

    um produto de sua época: suas leituras, seu convívio com

    Menard, suas concepções teóricas. O projeto quixotesco

    de Menard, como vimos, também é produto de sua teoria

    da linguagem, de suas convícções, de sua comunidad e in

    terpretativ a'', como diria Stanley Fish. O meu próprio

    projeto - a teoria de tradução que proponho neste livro

    - não pode ser inteiramente meu é, inevitavelmente,

    também um produto de minha história: dos livros que li,

    dos autores que aprendi a admirar,

    da

    visão de mundo

    que essas leituras e esses autores ajudaram a construir.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    23/47

    4

    fidelidade redefinida

    Ã primeira vista, pode parecer que, ao questionarmos

    a possibilidade de que um a tradução seja inteiramente fiel

    ao texto original, estamos questionando não só. a própria

    possibilidade teórica de qualquer tradução, mas também a

    possibilidade de qualquer critério objetivo para avaliarmos

    textos traduzidos.

    Conforme tentamos demonstrar anteriormente, a tra

    dução seria teórica e praticamente impossível se

    esperás

    semos dela uma transferência de significados estáveis; o

    que é possível - o que inevitavelmente acontece, a todo

    momento e em toda tradução -

    é

    como sugere o filó

    sofo francês Jacques Derrida, uma transformação: uma

    transformação de uma língua em outra, de um texto em

    outro

    2

    • Mas, se pensamos a tradução como um processo

    de recriação ou transformação, como poderemos falar em

    fidelidade? Como poderemos avaliar a qualidade de uma

    tradução?

    Retomemos o exemplo dos concursos de fantasias.

    Como vimos, cada versão apresentada da rainha Cleó

    patra traria irremediavelmente a m rc de sua localização

    no tempo e no espaço. Mesmo assim, essas versões foram

    avaliadas durante cada um dos concursos hipotéticos, em

    que os jurados, ao elegerem a melhor Cleópatra, elege

    ram, na verdade, aquela que consideraram a versão

    mais fiel à Cleópatra original . E o que seria,

    para cada grupo de jurados, a Cleópatra verdadeira ou

    original ? Como já sugerimos, a Cleópatra verdadeira

    ou original seria exatamente o conjunto de suposições e

    características que, para cada comunidade interpretativa,

    representada pelos jurados, constituiriam o personagem

    histórico conhecido como Cleópatra. Obviamente, da

    2 ln:

    DERRIDA

    J. apud SPJVAK G. e Prefácio do tradutor. ln:

    DERRIDA , J. Of

    Grammatology Baltimore,

    The

    Johns Hopkins

    University Pr ess, 1980. p. 87.

    43

    mesma maneira que

    as

    Cleópatras escolhidas seriam dife

    rentes entre si dependendo da época e da localização do

    concurso, também seriam diferentes as características que

    cada comunidade interpretativa atribuiria à verdadeira

    Cleópatra. Além disso, como vimos, se pudéssemos obser

    var a foto de uma de nossas hipotéticas Cleópatras da dé

    cada de 20, não seria possível evitar que nosso julgamento

    se realizasse a partir de nossas próprias suposições e con

    vicções. Assim, a versão considerada fiel à Cleópatra

    original por uma comunidade interpretativa de São

    Paulo, em meados da década de 20, não seria aceita por

    uma comunidade interpretativa da mesma cidade, sessenta

    anos depois.

    Vejamos como essas conclusões podem ser transferi

    das à questão da tradução de This is just to say , de

    William Carlos Williams, sobre a qual discutimos no capí

    tulo anterior. Como o texto foi apresentado em duas ver

    sões , uma versão/bilhete e uma versão/poema, teremos

    que considerar pelo menos duas situações diferentes. Uma

    tradução fiel ao texto/bil hete seria, na verdade, fiel ao

    contexto estabelecido para sua interpretação . As conven

    ções contextuais que deveriam reger essa tradução foram

    estabelecidas a partir do momento em que se especifica

    ram seu objetivo e circunstâncias, isto

    é

    a partir do mo

    mento em que estabelecemos que

    se

    tratava de um bilhete

    informal, escrito por um hóspede norte-americano a seu

    anfitrião brasileiro.

    Da mesma forma, a tradução do texto/poema seria

    fiel às convenções estabelecidas - implícita ou explicita

    mente - para sua leitura, levando-se em conta, é claro,

    que essas convenções são mais complexas e apresentam

    mais variáveis, dependendo da comunidade cultural e da

    época que

    as

    produziram. Assim, nossa tradução desse,

    ou de qualquer outro poema, seria fiel, em primeiro lugar,

    à nossa concepção de poesia, concepção essa que deter

    minaria, inclusive, a própria decisão de traduzi-lo.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    24/47

     

    Imaginemos,

    por

    exemplo, uma comunidade interpre

    tativa cujas idéias sobre poesia fossem semelhantes a al

    guns conceitos cultivados no século passado. Tal comu

    nidade, que certamente prezaria formas rígidas e estereo

    tipadas como característica fundamental do texto poético,

    nem consideraria a possibilidade de traduzir poetica

    mente This

    is

    just to say porque não o veria como um

    poema. Imaginemos uma outra comunidade interpretativa,

    cujos pressupostos sobre poesia permitissem aceitar o

    texto de Williams como poema. Suponhamos também que

    essa comunidade se tivesse interessado particularmente

    pela organização sonora e rítmica de This is just to say ,

    considerando, inclusive, ser essa a característica que faz

    desse texto um poema que merece ser traduzido. Para tal

    comunidade, uma tradução fiel ao poema de Williams teria

    que tentar reproduzir, ou recriar, sua estrutura sonora e

    rítmica, em detrimento de seu conteúd o .

    Em outras palavras, nossa tradução de qualquer texto,

    poético ou não, será fiel não ao texto original , mas

    àquilo que consideramos s r o texto original, àquilo que

    consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação

    do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre

    produto daquilo que somos, sentimos e pensamos.

    Além de ser fiel à leitura que fazemos do texto de

    partida, nossa tradução será fiel também à nossa própria

    concepção de tradução. Aind a tomando como exemplo

    This is just to say'', podemos imaginar uma comunidade

    interpretativa, para a qual a tradução desse texto se jus

    tificaria somente se o tradutor tentasse reproduzir o poema

    originalmente escrito por Williams numa cidadezinha

    do nordeste americano, em meados da década de 30. Tal

    comunidade, que certamente compartilharia das idéias de

    Pierre Menard sobre a linguagem e a tradução, tentaria

    produzir uma tradução literal do poema, sem conside

    rar que o mesmo seria lido num contexto e numa época

    5

    diferentes. Para tal comunidade, a única tradução possí

    vel de

    p ums

    seria, com bastant e probabilidad e, ameixas'',

    ou, no máximo, ameixas vermelhas . Podemos imaginar,

    ainda, uma outra comunidade interpretativa, para a qual

    todo texto traduzido devesse, de algum modo, se incor

    porar ou se adaptar ao contexto cultural da língua-alvo.

    Tal

    comunidade poderia,

    por

    exemplo, considerar pêsse

    gos ou caquis opções melhores ou mais fiéis do que

    ameixas .

    Além de ser fiel à nossa concepção de poesia e à

    nossa concepção de tradução, a tradução de um poema

    deve ser fiel também aos objetivos que se propõe. Imagi

    nemos, por exemplo, uma palestra sobre a obra de William

    Carlos Williams, apresentada

    em

    português para uma pla

    téia que não domina o inglês. O palestrado r poderia apre

    sentar e analisar o poema This is just to say através de

    uma tradução informal, sem pretender recriar ou recuperar,

    através dessa tradução, o que considera as características

    poéticas do original . Outras seriam as preocupações e

    os objetivos de um tradutor - outra seria a fidelidade

    - se o mesmo poema tivesse que ser traduzido para inte

    grar uma coletânea de poetas modernos de todo o mundo.

    Contudo, se concluímos que toda tradução é fiel às

    concepções textuais e teóricas da comunidade interpreta

    tiva a que pertence o tradutor e também aos objetivos que

    se propõe, isso não significa que caem

    por

    terra quais

    quer critérios para a avaliação de traduções. Inevitavel

    mente, como os grupos de jurados dos concursos de fan

    tasia que usamos

    o m ~

    exemplo, aceitaremos e celebrare

    mos aquelas traduções que julgan:ios fiéis às nossas pró

    prias concepções textuais e teóricas, e rejeitaremos aquelas

    de cujos pressupostos não compartilhamos . Assim, seria

    impossível que uma tradução ou leitura) de um texto

    fosse definitiva e unanimemente aceita

    por

    todos,

    em

    qual

    quer época e em qualquer lugar. As traduções, como nós

    e tudo o que nos cerca, não podem deixar de ser mortais.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    25/47

    5 A teoria na prática

    Aporo , de Carlos rummond de Andrade

    Através da leitura e dos comentários sobre a tradução

    de um poema de Carlos Drummond de Andrade, vamos

    tentar ilustrar

    s

    conclusões teóricas desenvolvidas nos seg

    mentos anteriores.

    Aporo , publicado em 1945 na coletânea

    A rosa do

    povo

    é o texto escolhido pois, apesar de sua brevidade,

    pode nos dar um bom exemplo do que seria ler poetica

    mente um texto. Além disso, como essa leitura é regida

    por convenções que nos permitem uma interpretação quase

    sem limites de todos

    os

    elementos que constituem o texto,

    o exame de sua versão para o inglês (intitulada Insect ,

    de autoria de John Nist) poderá nos propiciar uma visão

    aguçada dos problemas e dos limites da tradução em geral.

    Comecemos pelo original de Drummond :

    poro

    Um

    inseto cava

    cava sem alarme

    3 perfurando a terra

    4

    sem achar escape.

    47

    5

    Que fazer, exausto,

    6

    em país bloqueado,

    7 enlace de noite

    8 raiz e minério?

    9

    is que o labirinto

    1

    oh razão,

    mistério

    11

    presto se desata:

    12

    em verde , sozinha,

    13

    antieuclidiana,

    14

    uma orquídea forma-se 1.

    Como sugerimos anteriormente, ler

    um

    poema implica

    aceitar

    um

    convite implícito à criação. Quan do aceita par

    ticipar desse projeto, quando aceita o desafio de ler poe

    ticamente uni texto, o leitor aceita também - como regra

    básica desse jogo - que todos os elementos que consti

    tuem o poema podem adquirir um significado poético

    e contribuir para a construção de uma interpretação.

    A leitura de

    Aporo

    que proponho a seguir

    se

    asse

    melha

    à

    construção de um quebra-cabeça, cuja chave se

    encontra no título. Derivado do grego

    áporos

    ( sem pas

    sagem ), segundo a maioria dos dicionários da língua, o

    substantivo masculino

    áporo

    significa:

    1

    inseto hime

    nóptero , e

    2)

    proble ma de difícil solução . A esses dois

    significados é possível acrescentar-se um terceiro, encon

    trado apenas no

    Dicionário contemporâneo da língua por-

    tuguesa

    de Caldas Aulete (V. Bibliografia comentada):

    áporo

    pode ser também um tipo de planta da família das

    orquídeas, solitária, geralmente esverdeada .

    Além de ser a chave que abre o poema e norteia

    minha leitura, o título ·

      Aporo

    também a sintetiza. Assim,

    os dois primeiros quartetos nos apresentam a conjunção

    1 Cf.

    Obra completa.

    Organização de Afrânio Coutinho. Rio de

    JaneÍro, Aguilar, 1967. p. 154.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    26/47

    48

    dos dois primeiros significados apresentados: um inseto

    que cava (o áporo , segundo Caldas Aulete, é um gê

    nero de inseto himenóptero da família dos cavadores) e

    que encontra nesse cavar um problema de difícil solução.

    Nos tercetos, a situação/ áporo se resolve com a formação

    da orquídea/ áporo , verde e sozinha •

    Um inseto cava

    Vamos tentar construir melhor esse enredo/ quebra

    -cabeça. O primeiro quarteto, que introduz o inseto e o

    seu cavar sem

    al

    arm e' ', apresenta uma estrutura harmo

    niosa. Todos os versos têm o mesmo número de sílabas

    e há simetria na distribuição de sílabas acentuadas: nos

    versos 1 e 3, o acento cai na terceira e quinta sílabas e

    nos versos 2 e 4 as sílabas acentuadas são as primeiras e

    as quintas. Há também um esquema regular de rimas

    (abab), várias assonâncias cava , alarme, a terra, achar,

    escape, inseto, sem, perfurando) e alguns sons consonan

    tais predominantes, que ecoam por toda a estrofe:

    um,

    inseto, sem, perfurando, alarme, terra, escape. Esses ecos

    de sílabas semelhantes, sons e até palavras repetidas, asso

    ciados

    à

    regularidade do met ro e da acentuação, podem su

    gerir a regularidade, a harmonia e a constância do trabalho

    paciente

    do

    inseto.

    Que fazer, exausto, em país bloqueado?

    Qual é a natureza .e quais são as circunstâncias desse

    trabalho? O segundo quarteto, na medida em que desen-

    2

    A leitura de Ãporo aqui proposta também é o tema de um

    artigo da Autora:

    Um

    áporo e suas aporias: reflexões sobre um

    poema

    de

    Carlos

    Drummond de

    Andrade. Tradução e Comuni-

    cação;

    Revista Brasileira de Tradutores,

    7

    dez.

    1985

    . V. Bibliografia

    comentada.

    49

    volve o segundo significado de áporo, tenta nos dar

    uma

    resposta, embora seja, paradoxalmente, também uma per

    gunta. O inseto, que cava sem alarme na harmonia da

    primeira estrofe, enfrenta agora uma situação de difícil

    solução e se encontra, portanto, numa estrofe menos har

    moniosa que, diferentemente da primeira, conta apenas

    com algumas repetições de sons: fazer, exausto, bloquea

    do, raiz, país,

    minério.

    O locus da atividade do inseto se define, ainda que

    de forma ambígua, no verso 6: em país bloque ado . A

    ausência de artigo, ou demonstrativo, antes do substantivo

    país empresta ao mesmo um papel duplo. Pensamos num

    país/Estado

    que, por se identificar com

    uma

    situação difí

    cil, sugere o Brasil conturbado e autoritário do início da

    década de 40, em que o poema foi escrito . Podemos pen

    sar também num país/ lugar não-determinado: a própria

    região

    da

    dificuldade e do limite. O adjetivo

    bloqueado

    também autoriza uma interpretação pelo menos dupla.

    Objetivamente, esse adjetivo refere-se a país , j á que, de

    vido

    à

    ausência de artigo

    ou

    demonstrativo, não faria sen

    tido uma leitura que considerasse bloqu eado como mo

    dificador de inseto :

    Que

    fazer, exausto, bloqueado em

    país . . . ? . Entretanto, quando lemos a estrofe, talvez de

    vido

    à

    posição de exausto , que ressoa em bloque ado ,

    o último parece contaminar também o inseto , sugerindo

    que o bloqueio é tanto do país quanto do inseto exausto .

    Além disso, descobrimos que essa situação/áporo é cons

    tituída do enlace de

    noite/raiz

    e minério , uma união

    perfeita que se expressa também ao nível da forma através

    do

    enjambement

    3

    e da ausência de vírgula entre noite

    e raiz .

    3

    Enjambement:

    [ ]

    processo poético de pôr no verso seguinte

    uma

    ou

    mais palavras que completam o sentido do verso anterior

    [ . . . ] .

    (Cf. FERREIRA,

    Aurélio Bua

    rque de

    Holanda.

    Dicionário

    Aurélio. V. Bibliografia comentada.

  • 8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática

    27/47

    5

    Antes de desenvolver as associações possíveis a partir

    de enlace de noite/ raiz e minério'', convém antecipar que

    identifico o cavar desse

    in

    seto drummondiano com o pro

    cesso de criação artística e com a própria criação do

    poema Ãporo . Além disso, há, pelo menos, uma se

    gunda leitura complementar que não pode deixar de con

    siderar o poema como produt o do sentimento do mundo

    do poeta Drummond, viv endo os anos difíceis da ditadura

    de Getúlio Vargas e da Segunda Guerra Mundial. Assim,

    o cavar do inseto também sugere a tentativa paciente, cons

    tante e exaustiva de se encontrar uma saída para esse

    país/ mundo bloqueado.

    Essas duas leituras se enriquecem a partir das asso

    ciações suscitadas pelo enlace de noite/ raiz e minério .

    Noite raiz e minério sugerem a própria matéria-pri ma

    que constitui o processo de criação descrito no poema: os

    elementos com que conta o

    in

    seto

    em

    sua busca. A noite

    sugere o escuro , o não-saber-o-que-fazer nessa situação/

    / áporo, e até as condições em que o inseto realiza seu

    trabalho. Raiz sugere a busca de um começo, de um

    início que pudesse crescer e brotar ; e o minério sugere

    a criação em seu estado bruto, o minério que precisa ad

    quirir uma forma, forma essa que parece o próprio objeto

    do inseto.

    Eis que o labirinto [ ] presto se desata

    No primeiro terceto, a situação/ áporo inesperada

    mente se resolve. O labirinto se desata , sem que pos

    samos saber, entretanto, como se processou esse desatar.

    A resolução da situação difícil é cercada (até no nível

    vi