tradução, desconstrução e psicanálise, arrojo

Upload: fernandoabrao

Post on 18-Jan-2016

116 views

Category:

Documents


38 download

DESCRIPTION

Crítica Literária. Crítica Cultura. Teoria Literária contemporânea. Psicanálise. Desconstrução. Freud. Lacan.

TRANSCRIPT

  • 1'

    Traduo, Desconstruo e Psicanlise

  • Rosemary Arrojo, 1993

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Arrojo, Rosemary A813t Traduo, desconstruo e psicanlise/Rosemary

    Arrojo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993 212p. (Biblioteca Pierre Menard)

    Bibliografia. ISBN 85-312-0293-0

    1. Traduo e interpretao. I. Ttulo. II. Srie.

    C D D - 4 1 8 . 0 2 93-0418 C D U - 8 2 . 0 3

    Todos os direitos de reproduo, divulgao e traduo so reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida por fotocpia, microfilme ou outro processo fotomecnico.

    1993

    IMAGO EDITORA LTDA. Rua Santos Rodrigues, 201-A Estcio CEP 20250-430 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: 293-1092

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

  • SUMRIO

    Apresentao 9

    \ 1. A Que So Fiis Tradutores e Crticos de Traduo? Paulo Vizioli e Nelson Ascher Discutem John Donne 15

    2. As Relaes Perigosas entre Teorias e Polticas de Traduo 27

    3. Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise: As Principais Cenas de um Romance Familiar 35

    4. A Traduo como Paradigma dos Intercmbios Intralingsticos 51

    5. A Traduo Passada a Limpo e a Visibilidade do Tradutor 71

    6. Sobre Interpretao e Asceticismo: Reflexes em torno e a partir da Transferncia 91

    7. A Literatura como Fetichismo: Algumas Conseqncias para uma Teoria de Traduo 115

    8. Desconstruo, Psicanlise e o Ensino de Traduo 133

    9. A Traduo e o Flagrante da Transferncia: Algumas Aventuras Textuais com Dom Quixote e Pierre Menard 151

    10. Maria Mutema, o Poder Autoral e a Resistncia Interpretao 177

  • APRESENTAO

    Transladem is an act. It is also an enactment [... and] what comes to be enacted is the practice as well as the possibi-lity of philosophy. Consequcntly any discussion of transla-tion is itself a discussion of the nature of the philosophi-cal enterprise.

    Andrew Benjamin Translation and the Nature of Philosophy1

    Os ensaios aqui reunidos tm como meta comum a valoriza-o da traduo enquanto reflexo terica e enquanto atividade profissional. Tradicionalmente margem das instituies que de-terminam e organizam os estudos da linguagem e margem da profissionalizao, o ofcio do tradutor comea a ocupar um lu-gar de destaque nos domnios da reflexo sobre a linguagem e as relaes que permite estabelecer entre seus usurios, e passa a ser, nada mais, nada menos, do que a questo central da filoso-fia, principalmente a partir do ps-estruturalismo. A possibilida-de dessa reviravolta sem precedentes na mirrada histria dos estudos sobre traduo toma corpo a partir da confluncia de al-gumas tendncias importantes do pensamento contemporneo que tm em comum a aceitao pacfica da impossibilidade de se recuperar qualquer origem, como uma essncia, ou qualquer ou-tra imagem de estabilidade perene. Num livro fundamental, em que estuda exatamente as relaes entre a filosofia contempor-nea e a traduo, Andrew Benjamin chega a sugerir que a aceita-o dessa impossibilidade e, conseqentemente, o fim do confinamento milenar imposto traduo pela tradio logocn-trica tambm a emergncia do que se tem chamado de "ps-moderno". Enquanto o ps-moderno se associa renncia do desejo impossvel da restaurao de uma suposta origem perdi-

  • 10 Apresentao

    da, a melancolia dolorosamente cultivada pelo que "se perdeu" e no se consegue recuperar traz a marca indelvel da modernida-de. Nesse sentido, tanto a psicanlise quanto a desconstruo ao praticarem uma reflexo que parte da inevitabilidade de uma teoria da interpretao que no se tece em torno de um enredo de perdas e ganhos se encont ram dentro dos limites generosos da ps-modernidade. Nesse sentido, tanto a psicanlise quanto a desconstruo se encontram naquele espao to cuidadosamente sonhado por Nietzsche, cm que se permite ao ser humano no apenas desistir do sonho de ser divino e aceitar sua condio, como tambm e, talvez principalmente, assumir o enorme poder que ignora deter em suas prprias mos.

    precisamente a partir da desconstruo desenvolvida e pra-ticada por Jacques Derrida, um dos herdeiros mais aplicados de Nietzsche, e de algumas noes bsicas da psicanlise de Freud, como as concepes de inconsciente e de transferncia levadas s ltimas conseqncias e "aplicadas" s relaes que unem e se-param autor e tradutor, leitor e texto, traduo e original que tenho tentado repensar os grandes clichs que sempre empobre-ceram e limitaram a discusso terica sobre traduo. Nos en-saios aqui reunidos, rep i to e procuro aprofundar as "mesmas" teses que j defendi em outros trabalhos, principal-mente em Oficina de Traduo - A Teoria na Prtica c nos ensaios reunidos em O Signo Desconstrudo - Implicaes para a Traduo, a Leitura e o Ensino.

    Essas teses tm como alvo a redefinio da "originalidade", do papel do tradutor, das relaes possveis entre traduo e lei-tura, traduo e interpretao, traduo e autoria. Envolvem, so-bretudo, o desmascaramento daquilo que se esconde por trs da concepo racionalista de autoria e das alegaes da busca do "original" e das "intenes" de fidelidade e de invisibilidade, que tanto amesquinham e tornam hipcrita o trabalho do tradutor. No so, contudo, "teses" destinadas a ocupar apenas o espao reduzido e pretensioso da reflexo terica pretensamente afasta-da das lides do dia-a-dia do tradutor. Os ensaios aqui coletados tm como objetivo explcito tambm discutir e problcmatizar as questes prticas da traduo, de sua profissionalizao e de seu ensino, mesmo porque somente dentro dos limites do logocen-trismo que se pode convenientemente separar a teoria da prtica

  • v

    Apresentao 11

    uma separao que, alm de impossvel e enganosa, sempre Irouxe desvantagens srias ao tradutor, dentre as quais a aliena-o e a autonegao.

    Dos ensaios aqui reunidos, quatro j foram publicados em verses preliminares: "A Que So Fiis Tradutores e Crticos de Traduo?" (1986), "As Relaes Perigosas entre Teorias e Polti-cas de Traduo" (1991), "A Traduo Passada a Limpo e a Visi-bilidade do Tradutor" (1992) e "A Traduo como Paradigma dos Intercmbios Lingsticos" (1992). Uma verso preliminar de um deles, "Sobre Interpretao e Asceticismo: Reflexes em tor-no e a partir da Transferncia", se encontra no prelo da revista Trabalhos em Lingstica Aplicada. Dois deles, "Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise: As Principais Cenas de um Romance Fami-liar" e "A Literatura como Fetichismo: Algumas Conseqncias para uma Teoria de Traduo", so aqui publicados pela primei-ra vez em verses em portugus. Os demais, "Desconstruo, Psi-canlise e Ensino de Traduo", "A Traduo e o Flagrante da Transferncia: Algumas Aventuras Textuais com Dom Quixote e Pierre Menard" e "Maria Mutema, o Poder Autoral e a Resistn-cia Interpretao", so aqui publicados pela primeira vez.

    A feliz coincidncia de que estes ensaios sejam coletados na Biblioteca Piem Menard no poderia ser mais apropriada e auspi-ciosa. Pierre Menard e seu destino exemplar de tradutor e leitor , afinal, a grande musa inspiradora no apenas dos trabalhos aqui apresentados mas, tambm, da reflexo que venho desen-volvendo h aproximadamente uma dcada. No incio dos anos 80, nos Estados Unidos, quando procurava um tema e um libi aceitveis para uma dissertao de doutorado, o reencontro com Pierre Menard, sua curiosa biblioteca e sua bvia modernidade, luz e sob a seduo das estratgias desconstrutivistas de Derrida, foi uma revelao que no cessa de ser renovada. Alm de uma tese, o Pierre Menard de Borges me propiciou ainda o ingresso "oficial" na reflexo sobre traduo praticada no Pas. Meu pri-meiro trabalho escrito e publicado na rea foi exatamente sobre a "potica da traduo" de Borges, to magistralmente sintetiza-da em seu conto mais "fantstico". Muitos textos e muitas revela-es depois , Pierre Menard continua o "mesmo" em sua capacidade de me encantar e de sintetizar tudo aquilo que j se escreveu de importante sobre as vicissitudes da leitura, da autoria

  • /.' Apresentao

    e da traduo e, sobretudo, neste momento, sobre essa paixo, essa "transferncia", essa dedicao obsessiva que une um leitor a um texto e a um autor, um tradutor a um original.

    nessa posio menardiana de leitora/autora apaixonada (ao mesmo tempo, humilde e pretensiosa, fiel e infiel, regenera-dora e parricida); nessa posio exemplar tambm do tradutor e de seu ofcio, ao mesmo tempo possvel e impossvel, que en-trego estes textos ao escrutnio e, quem sabe, ao amor ou ao dio do leitor ou da leitora, esperando que, como Borges e eu, acei-tem a inevitabilidade de se estar sempre escrevendo e lendo o "mesmo" texto, ainda que com libis "diferentes". Contudo, como Menard e Borges no ousaram admitir, e quase como Ma-ria Mutema, cujo desejo de persuaso literalmente invade e imo-biliza seu interlocutor, ouso esperar que o leitor e a leitora possam se apaixonar pelo menos por algum destes textos para que no se interrompa essa cadeia esse elo e essa priso que nos obriga a ler e a escrever, a ser, ao mesmo tempo, leitores e autores, a seduzir e a ser seduzidos.

    Agradeo ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient-fico c Tecnolgico (CNPq) a concesso de duas bolsas de pesqui-sa, que me permitiram a dedicao ao desenvolvimento destes trabalhos. Agradeo tambm ao Centerfor Research m Tmnsl-ation, da State University ofNew York at Bingfiamton (especialmente sua diretora, Marilyn Gaddis Rose); ao National Endotmnent. for the Hu-manilies (Estados Unidos); Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) e Universidade Estadual de Campinas por tornarem possvel um estgio de pesquisa biblio-grfica que enriqueceu e solidificou grande parte das reflexes aqui organizadas. Aos editores das revistas que j publicaram, ou aceitaram para publicao, verses preliminares dos ensaios aqui listados, agradeo a gentileza e a permisso de reproduzir esse material. (As informaes sobre essas revistas se encontram em notas referentes a cada um dos ensaios mencionados.) A Arthur Nestrovski, diretor desta srie, agradeo o incentivo e a pacincia e, sobretudo, a oportunidade de montar essa coincidncia bor-

  • / Apresentao 13

    giana e n t r e a Biblioteca Pierre Menard e m inhas obsesses prefer i -das. F ina lmen te , d e d i c o este livro m e m r i a prec iosa de A n n a Visco nti.

    Rosemary Ar ro jo Maro de 1993

    NOTAS

    1. Ver Andrew Benjamin, Translalion and the Nature of Philosophy - A New Ttieory ofWords. Londres e Nova York: Routledge, p. 1.

    2. Oficina de Traduo - A Teoria na Prtica (So Paulo: tica, 1986 e 1992) e O Signo Desconstrudo Implicaes para a Traduo, a Leitura e o Ensino (Campinas: Pontes, 1992).

  • 1. A QUE SO FIIS TRADUTORES E CRTICOS DE TRADUO?

    Paulo Vizioli e Nelson Ascher Discutem John Donne1

    If the translator neither restitutes nor copies an original, it is because the original lives on and transforms itself. The translation will truly be a moment in the growth of the original, which will complete itself in enlarging itself. [...] And if the original calls for a complement, it is becau-se at the origin it was not there without fault, full, com-plete, total, identical to itself. From the origin of the the original to be translated there is fali and exile.

    Jacques Derrida "Des Tours de Babel"

    /. PRELIMINARES

    Em 29 de abril de 1985, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma resenha assinada por Nelson Ascher sobre John Donne: O Poeta do Amor', e da Morte, antologia bilnge organizada e traduzi-da por Paulo Vizioli. Em 5 de maio do mesmo ano, a Folha publi-cou a rplica de Vizioli e, no domingo seguinte, a trplica do crtico Ascher.

    As questes centrais que nutriram essa polmica so tam-bm fundamentais para aqueles que se dedicam ao estudo e prtica da traduo. A tarefa do tradutor, como a tarefa do crti-co de traduo, norteada por preocupaes relativas a uma pre-tensa "f idel idade" devida ao c h a m a d o texto "or iginal" . Entretanto, o que em geral se omite na tentativa de se atingir ou avaliar essa "fidelidade" exatamente o status do original. Quan-

  • If> A Que So Fiis ... ?

    IID avalia uma traduo, estar o crtico considerando o mesmo "original" que o tradutor? Ou, em outras palavras, concorda-ria iii crtico c tradutor a respeito dos significados do texto de partida?

    E em torno dessa pergunta que se desenvolve a reflexo que d CDrpo a este trabalho. Atravs da anlise da polmica Vizioli x Aschcr, convido o leitor a repensar as questes da fidelidade em traduo e da avaliao de textos traduzidos, a partir de uma re-formulao do conceito de texto "original".

    //. PERSPECTIVAS TERICAS

    H alguns anos, venho tentando desenvolver uma reflexo acerca dos problemas tericos da traduo que se coloca em franca oposio ao conceito tradicional de texto "original" e, conseqentemente, ao conceito tradicional de fidelidade e vi-so do ato de traduzir que esses conceitos propem.

    Em linhas muito gerais, as teorias da linguagem que emer-gem da tradio intelectual do Ocidente, aliceradas no logocen-trismo e na crena no que Jacques Derrida chama de "significado transcendental",2 tm considerado o texto de partida como um objeto definido, congelado, receptculo de significados estveis, geralmente identificados com as intenes de seu autor. Obvia-mente, esse conceito de texto traz consigo uma concepo de lei-tura que atribui ao leitor a tarefa de "descobrir" os significados "originais" do texto (ou de seu autor). Ler seria, era ltima anli-se, uma atividade que prope a "proteo" dos significados origi-nalmente depositados no texto por seu autor. Embutida nessa concepo de leitura, delineia-se a concepo de traduo que tem orientado sua teoria e prtica: traduzir transportar, trans-ferir, de forma "protetora", os significados que se imaginam est-veis, de um texto para outro e de uma lngua para outra. Assim, quanto mais "protetor" puder ser o trabalho do tradutor, quanto mais prximo do "original" conseguir chegar, melhor ser seu re-sultado.

    A essa tradio opem-se, implcita ou explicitamente, algu-mas correntes do pensamento contemporneo: a "arqueologia" de Michel Foucault, a "semioclastia" de Roland Barthcs e, sobre-

  • A Que So Fiis...? 17

    tudo, a "desconstruo" de Jacques Derrida, que trazem, em maior ou menor grau, a influncia do pensamento brilhante e demolidor de Friedrich Nietzsche e dessa revoluo intelectual que Freud instalou no centro da reflexo do homem sobre si mesmo.

    Num ensaio magistral e quase cruel, originalmente intitula-do "Uber Wahrheit und Lge im aussermoralischen Sinne",* datado de 1873, Nietzsche desmascara a grande iluso sobre a qual se aliceram nossas "verdades", nossa filosofia, nossas cincias, o pensamento que chamamos de "racional". Segundo Nietzsche, toda "verdade" estabelecida como tal foi, no incio, apenas um "estmulo nervoso". Todo sentido que chamamos de "literal" foi, no incio, metfora e somente pode ser uma criao humana, um reflexo de suas circunstncias e, no, a descoberta de algo que lhe seja exterior:

    primeira metfora: um estmulo nervoso transformado em percepo. Essa percepo, ento, acoplada a uni som. Quando falamos de rvores, cores, neve e flores, acredita-mos saber algo a respeito das coisas em si, mas somente pos-sumos metforas dessas coisas, e essas metforas no correspondem de maneira alguma essncia do original. Da mesma forma que o som se manifesta como mscara efme-ra, o enigmtico x da coisa-em-si tem sua origem num est-mulo nervoso, depois se manifesta como percepo e, finalmente, como som. (p. 178)

    A reflexo de Nietzsche sobre o carter "fictcio" de todas as nossas "verdades" e de todos os nossos significados chega exata-mente onde teria chegado a reflexo do prprio pai da lingsti-ca estrutural, Ferdinand de Saussure, se este pudesse ter levado s ltimas conseqncias suas concluses acerca do signo arbitr-rio e convencional. Ao admitir, em sua tcorizao sobre o signo, que o signifcante "imotivado, arbitrrio em relao ao signifi-cado, com o qual no tem nenhum lao natural na realidade" (p. 83), Saussure teria que admitir tambm que esse significado , tambm, sempre "atribudo" e nunca imanente, o que implica di-zer que esse significado sempre "produzido" por convenes e nunca "descoberto", e que mudar medida que mudarem as so-ciedades e as convenes que as regem.

  • IN A Que So Fiis...?

    Assim, de acordo com a perspectiva aberta por Nietzsche, o homem no um descobridor de "verdades" originais ou exter-nas ao seu desejo, mas um criador de significados que se plas-m a m a t r avs das c o n v e n e s q u e nos o r g a n i z a m e m comunidades. E o impulso que leva o homem a buscar a "verda-de", a fazer cincia e a formular teorias, segundo Nietzsche, no passa de uma dissimulao de seu desejo de poder, conseqncia de seu instinto de sobrevivncia e de sua insegurana enquanto habitante de um mundo que mal conhece e que precisa dominar. O homem inventa "verdades" que tenta impor como tal a seus se-melhantes para se proteger de outros homens e de outras "verda-des", e para sentir que controla um mundo do qual pode apenas saber muito pouco.

    Em complementaridade ao pensamento "desconstrutor" de Nietzsche acerca das possveis relaes entre sujeito e objeto, po-demos incluir a psicanlise de Frcud, cujo conceito de "incons-ciente" vira do avesso a prpria noo de sujeito: o homem cartesiano que se definia pelo seu racionalismo passa a definir-se pelo desejo que carrega consigo, que molda seu destino e sua vi-so de mundo, e do qual no pode estar plenamente consciente. Quer consideremos o desejo de poder, ou o inconsciente, como propulsor da criao do conhecimento, das cincias e de todos os "significados" e "verdades" humanas, estaremos descartando a possibilidade de um relacionamento puramente objetivo, ou pu-ramente subjetivo, entre homem e realidade, entre sujeito e obje-to, entre leitor e texto.

    Essa linha de reflexo no traz consigo, como poderiam ar-gumentar alguns, a implicao absurda de que o mundo real no existe sem um sujeito que o perceba. Traz, sim, a implicao de que o sujeito no poder escapar dos desejos que o constituem e das circunstncias seu tempo, sua ideologia, sua formao, sua psicologia que, literalmente, "fazem sua cabea", para usar essa feliz expresso da gria contempornea.

    Atravs da tica apenas esboada acima, seria ingnuo e sim-plista estabelecermos normas de leitura que contassem com a possibilidade do resgate total dos significados "originais" de um texto, ou das intenes de seu autor. O leitor de um texto no pode proteger os significados originais de um autor porque, a ri-gor, nem o prprio autor poderia estar plenamente consciente

  • A Que So Fiis...? 19

    de todas as intenes e de todas as variveis que permitiram a produo e a divulgao de seu texto. Da mesma forma, no mo-mento da leitura, o leitor no poder deixar de lado aquilo que o constitui como sujeito e como leitor suas circunstncias, seu momento histrico, sua viso de mundo, seu prprio inconscien-te. Em outras palavras, o leitor somente poder estabelecer uma relao com o texto (como todos ns, a todo o momento e em todas as nossas relaes), que ser sempre mediada por um pro-cesso de interpretao, um processo muito mais "criativo" do que "conservador", muito mais "produtor" do que "protetor". Assim, o significado no se encontra para sempre depositado no texto, espera de que um leitor adequado o decifre de maneira correta. O significado de um texto somente se delineia, e se cria, a partir de um ato de interpretao, sempre provisria e tempo-rariamente, com base na ideologia, nos padres estticos, ticos e morais, nas circunstncias histricas e na psicologia que consti-tuem a comunidade sociocultural a "comunidade interpretati-va", no sentido de Stanley Fish em que lido. O que vemos num texto exatamente o que nossa "comunidade interpretati-va" nos permite ler naquilo que lemos, mesmo que tenhamos como nico objetivo o resgate dos seus significados supostamen1

    te "originais", mesmo que tenhamos domo nico objetivo no nos misturarmos ao que lemos. Do mesmo modo que no pode-mos deixar de lado o que somos e o que pensamos quando nos relacionamos com o mundo real, tambm no podemos ler um texto sem que projetemos nessa leitura as circunstncias e os pa-dres que nos constituem enquanto leitores e membros de uma determinada comunidade.

    u Aplicadas traduo, essas concluses necessariamente re-formulam os conceitos tradicionais de texto "original" e de fideli-dade. Assim, nenhuma traduo pode ser exatamente fiel ao "original" porque o "original" no existe como um objeto estvel, guardio implacvel das intenes originais de seu autor. Se ape-nas podemos contar com interpretaes de um determinado tex-to, leituras produzidas pela ideologia, pela localizao temporal, geogrfica e poltica de um leitor, por sua psicologia, por suas circunstncias, toda traduo somente poder ser fiel a essa pro-duo. De maneira semelhante, ao avaliarmos uma traduo, ao compararmos o texto traduzido ao "original", estaremos apenas

  • 20 A Que So Fiis...?

    e to-somente comparando a traduo nossa interpretao do "original" que, por sua vez, jamais poder ser exatamente a "mes-ma" do tradutor.

    77/. O CONFRONTO TRADUTOR X CRTICO

    Em sua resenha, depois de uma breve introduo poesia de John Donne, Nelson Ascher inicia os comentrios sobre as tradues de Paulo Vizioli, tomando como paralelo as tradues do poeta e ensasta Augusto de Campos. Em primeiro lugar, o crtico no concorda com o ttulo da antologia de Vizioli: "cha-m-lo [a John Donne...] de 'o poeta do amor e da morte' , como faz Vizioli no ttulo do livro, perder de vista a essncia de sua poesia". A "falha" de Vizioli, Ascher contrape o "acerto" de Au-gusto de Campos, que deu sua antologia de poemas do poeta ingls o ttulo "o dom e a danao", "sublinhando", segundo As-cher, "um dos recursos favoritos do poeta, o jogo de palavras".

    Prosseguindo sua comparao entre as duas tradues, As-cher observa que o que as distingue, "de fato", a "concepo de traduo que as norteia". Enquanto a de Vizioli a "obra empe-nhada de um erudito", "um valioso subsdio para o estudo e a apreciao do autor, correta e esclarecedora", a de Augusto de Campos o "trabalho magistral de um poeta", "o prprio Donne em portugus". Entre o traballio "erudito" de Vizioli e o trabalho "magistral de poeta", Ascher prefere, obviamente, o segundo: Vi-zioli, "um erudito profissional e competente, mas poeta amador", no pode substituir o trabalho de "um poeta-tradutor c inventor de linguagens profissional". Enquanto a traduo de Vizioli "til e muito necessria", por sua "funo didtica c informati-va", somente a de Augusto de Campos "obra criativa". Assim, segundo Ascher, Augusto de Campos criou para Donne uma "linguagem prpria e uma dico potica condizente", ao passo que a de Vizioli "conservadora e com uma dico potica ultra-passada".

    Apropriadamente, Paulo Vizioli fundamenta sua resposta a Ascher num argumento cujas implicaes c conseqncias pre-tendo desenvolver no prximo segmento deste trabalho. Como sugere Vizioli, o que, na verdade, parece incomodar ao crtico

  • A Que So Fiis ...? 21

    que suas tradues so, de certa forma, "infiis" s verses de Augusto de Campos:

    Tive a ntida impresso de que, na verdade, o seu autor se revoltou menos com as pretendidas deficincias de meu tra-balho que com minha petulncia em incursionar por terre-no onde antes perambulara Augusto de Campos.

    Nessa linha de argumentao, Vizioli questiona, por exemplo, o critrio que leva Ascher a considerar "um lance realmente inven-tivo" de Augusto de Campos a incorporao de um verso de Lu-picnio Rodrigues ao poema "A Apario" ("Onde sers, falsa vestal, uma mulher /Qualquer nos braos de um outro qual-quer"). Conforme questiona Vizioli:

    E ser mesmo verdade, como sugere Ascher, que a inventivi-dade do trabalho potico e responsvel fica garantida quan-do ele enxerta no texto dos poetas ingleses versos de Lupicnio Rodrigues?

    De modo semelhante, ao comentrio de Ascher sobre a "dico potica ultrapassada" de suas tradues, Vizioli responde que sua dico potica "propositadamente ultrapassada" j que se trata de um autor nascido no sculo XVI. Finalmente, em seu comen-trio mais certeiro, Paulo Vizioli aborda a comparao estabeleci-da por Ascher entre sua traduo ("Mais cobertura tu desejas do que um homem?") e a de Augusto de Campos ("A coberta de um homem te bastante?") do verso final da elegia "Going to Bed" ("What neetVst lhou have more covering than a man?"):

    No traduzi o poema com base na verso de Augusto de Campos, mas diretamente do original ingls. L, o poeta fala em covering, no em cobertor. E covering c cobertura mesmo, com o duplo sentido de "cobrir o corpo com as ves-tes" e "cobrir sexualmente".

    IV. A CRTICA DA CRTICA

    Como j foi sugerido, a questo central em torno da qual Vi-zioli e Ascher se confrontam basicamente o significado e va-lor dos originais de Donne.

  • 22 A Que So Fiis ...?

    A crtica de Ascher, que atribui a Vizioli o "defeito" de "ter perdido de vista" a "essncia" da poesia de John Donne, se torna especialmente problemtica quando consideramos a carreira conturbada que essa poesia tem seguido desde sua criao, no s-culo XVII. A prpria designao de "metafsico", com que at hoje se rotula esse poeta ingls, j foi, como lembra T. S. Eliot, "desde um insulto at um indicador de gosto singular e agrad-vel" (p. 2560, minha traduo). Jeanjacques Denonain lista al-guns significados possveis da mesma designao, entre os quais incluem-se "filosfico", "pedante", "irreal ou fantstico" (citado em Campos, p. 124). Como escreve Vizioli na introduo anto-logia resenhada por Ascher, Ben Jonson, amigo e contempor-neo de Donne, afirmava que este "merecia ser enforcado por causa do que fizera com a mtrica". John Dryden, nascido em 1631, ano da morte de Donne, "admirava as suas stiras", mas "no aceitava os outros poemas". Finalmente, Samuel Johnson, outro leitor importante, "detestava suas junes foradas de idias sem correlaes" (p. 4).

    Teriam Ben Jonson, Dryden e Samuel Johnson (apenas para mencionar os crticos citados acima) tambm deixado de reco-nhecer a "essncia" da poesia de Donne? Se houvesse, na poesia de Donne, ou em qualquer outro texto, como quer Ascher, algo como uma "essncia", um significado intrnseco inianente, que pudesse ser eternamente preservado, no deveria essa "essncia" estar ao alcance de seus leitores mais categorizados? Por que te-ria Augusto de Campos o privilgio de possuir o acesso a esse sig-nificado to recndito do texto de Donne? Alm disso, en que bases pode Ascher se firmar ao sugerir que, para traduzir Donne (ou a "essncia" de sua poesia), de maneira efetiva, salutar, por exemplo, que se incorpore ao poema "A Apario" um verso de Lupicnio Rodrigues?

    Naturalmente, as respostas que proponho a essas perguntas emergem das concepes textuais que esbocei rapidamente no incio deste trabalho. O que Ascher v como a "essncia" da poe-sia de Donne, ou como o "prprio Donne em portugus", no passa, na realidade, do reflexo de sua leitura do poeta, leitura essa que parece ter sido forjada nas tradues e nas concepes tericas desenvolvidas por Augusto de Campos. O "John Donne" que Ascher admira o "John Donne" produzido pela tradio in-

  • A Que So Fiis...? 23

    telectual qual se filia Augusto de Campos. Ao criticar o ttulo do livro de Vizioli, ou sua opo por uma "linguagem conserva-dora" e por uma "dico poeticamente ultrapassada", o que As-cher contrape a Vizioli no , de modo algum, a "essncia" da poesia de Donne, mas sua prpria viso da viso crtica de Au-gusto de Campos sobre o mesmo poeta. De forma semelhante, o que Augusto de Campos v e admira cm Donne o que v e ad-mira em outros poetas do passado e do presente, aos quais atri-bui pontos em comum com o Concretismo, movimento esttico do qual figura proeminente:

    Donde a valorizao, no presente, e a revalorizao, no pas-sado, de toda poesia onde repontem os traos dessa lcida luta com a linguagem, em contraposio quela poesia satis-feita, na qual a linguagem no passa de mero recipiente pas-sivo de assentes sentimentos sentimentais. (Campos, p. 126)

    Enquanto a tradio na qual se inscreve Augusto de Campos valoriza "a luta com a linguagem, os jogos de palavras", a tradi-o qual se filia Vizioli parece privilegiar outras caractersticas. Em sua introduo antologia de Donne, Vizioli escreve sobre os metafsicos:

    Os escritores dos novos tempos, devendo projetar as suas in-certezas e os seus conflitos interiores, precisavam de um es-tilo mais dinmico, recorrendo, por isso, ao movimento e teatralidade. Tinham que causar impacto [...]. O poeta pode, no entanto, despertar o assombro de vrias maneiras. Uma delas consiste em servir-se da linguagem coloquial e direta, mas carregada de ironia e paradoxos e entremeada de ima-gens complexas e incomuns, surpreendendo os leitores pelo inesperado; outra reside no tom dignificado e nobre, conce-dido pela riqueza do vocabulrio e pelas complicaes de sintaxe, deslumbrando pela magnificncia, (p. 2)

    Se nos detivermos apenas nos subttulos das antologias assinadas por Vizioli e Augusto de Campos (respectivamente, "o poeta do amor e da morte" e "o dom e a danao"), podemos observar que, enquanto Augusto privilegia o wit o gosto pela ironia, pelo paradoxo e pelo jogo de palavras Vizioli privilegia o que ele mesmo chama de "o terrvel dualismo" da poca em que vi-

  • 14 A Que So Fiis... ?

    vcu Donne. E, como ter percebido o leitor familiarizado com o discurso do barroco literrio, tanto o wit, como o dualismo, ao invs de constiturem opostos irreconciliveis, so, na verdade, caractersticas paralelas em geral atribudas a esse movimento es-ttico.

    X Ao afirmar que o que distingue "de fato" as duas tradues "a concepo de traduo que as norteia", Ascher parece estar se referindo s duas concepes opostas de traduo tradicional-mente citadas: uma, atribuda a Vizioli, a traduo "literal", pr-xima s palavras do "original", "obra empenhada de um erudito", que "se contenta com uma linguagem consei-vadora e com uma dico poeticamente ultrapassada", "valioso subsdio para o estu-do e a apreciao do autor, correta e esclarecedora"; a outra, atri-buda a Augusto de Campos, a t raduo supostamente "criativa", com "lances inventivos"/ "trabalho magistral de um poeta", que consegue o impossvel: criar, "de certa forma, o pr-prio John Donne em portugus". Obviamente, essas duas con-cepes de traduo tambm se baseiam na hiptese de que h urna "essncia", um sentido original e estvel, na poesia de Don-ne, qual apenas alguns eleitos podem ter acesso. Assim, segun-do Ascher, embora Vizioli seja um tradutor "erudito", capaz de oferecer, com seu trabalho, "um valioso subsdio para o estudo e a apreciao" da poesia de John Donne, seus esforos no conse-guem "realmente" produzir um Donne em portugus, porque no atingem a "essncia" do texto ingls.

    Como j foi observado, a traduo de um poema e a avalia-o dessa traduo no podero realizar-se fora de um ponto de vista, ou de uma perspectiva, ou sem a mediao de uma "inter-pretao".4 Portanto, a traduo de um poema, ou de qualquer outro texto, inevitavelmente, ser fiel viso que o tradutor tem desse poema e, tambm, aos objetivos de sua traduo. Portanto, a questo no como afirma Nelson Ascher que Vizioli "se contenta" com uma linguagem conservadora e com uma dico potica ultrapassada, ou que ao seu trabalho "erudito" falte o g-nio de poeta. A linguagem e a dico potica escolhidas por Vi-zioli so resultado de suas concepes acerca da poesia de Donne e acerca da traduo de poesia, isto , so, como ele mesmo ob-serva em sua rplica ao crtico Ascher, "propositadamente ultra-passadas por se tratar de um autor que nasceu no sculo XVI".

  • A Que So Fiis... ? 25

    Ou seja, para Vizioli, a traduo da obra de John Donne deve ter como objetivo a manuteno do que considera a linguagem e a dico potica do poeta ingls. Para Vizioli, um poeta do sculo XVI deve ser apresentado aos leitores do sculo XX como um poeta do sculo XVI, sua traduo deve trazer a marca do "origi-nal", deve "soar" antiga. lAugusto de Campos, por sua vez, cr que a traduo de um poeta do passado somente ter valor se puder ser absorvida pelos poetas do presente. No prefcio a Ver-so Reverso Controverso, Augusto escreve:

    I A minha maneira de am-los [aos poetas que admira] tra-duzi-los. Ou degluti-los, segundo a Lei Antropofgica de Os-wald de Andrade; s me interessa o que no meu. Traduo para mim persona. Quase heternimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me pro-pus traduzir tudo. S aquilo que sinto. S aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua prpria persona. (p. 7)

    Nesse contexto, justifica-se, entre outras coisas, a incluso de um verso de Lupicnio Rodrigues traduo de um poema ingls do sculo XVI, que Ascher considera, como vimos, "um lance inven-tivo".

    Tanto Paulo Vizioli quanto Augusto de Campos so "fiis" s suas concepes tericas acerca de traduo e acerca da poesia de Donne e, nesse sentido, tanto as tradues de um, como de outro, so legtimas e competentes. Inevitavelmente, as tradues de cada um deles agradaro aos leitores que, consciente ou in-conscientemente, compartilharem de seus pressupostos, e desa-gradaro queles que, como Ascher, j foram seduzidos por pressupostos diferentes.

    NOTAS

    1. Uma verso preliminar deste trabalho foi publicada em Traduo e Comunicao Revista Brasileira de Tradutores, n9 9, So Paulo, dezembro de 1986, pp. 133-142.

  • 26 A Que So Fiis ... ?

    2. Ver, a propsito, Gayatri C. Spivak no "Translalor's Preface" sua ver-so inglesa de De Ia grammatologie, dejacques Derrida, p. XVI.

    3. Minha leitura e as citaes desse texto partem da verso inglesa: "On Truth and Falsity in Their Ulli amoral Sense". Todas as tradues de refe-rncias a esse e a outros textos em ingls so minhas.

    4. A propsito, ver tambm "As Relaes Perigosas entre Teorias e Po-lticas de Traduo", neste volume.

    BIBLIOGRAFIA

    ARROJO, Rosemary. Oficina de Traduo A Teoria na Prtica. So Pau-lo: tica, 1986.

    ARROJO, Rosemary. "As Relaes Perigosas entre Teorias e Polticas de Traduo", neste volume.

    CAMPOS, Augusto de. Verso Reverso Controverso. So Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

    DERRIDA, Jacques. Of Grammatology (trad. de Gayatri O Spivak). Balti-more: The Johns Hopkins niversity Press, 1975.

    DERRIDA, Jacques. "Des Tours de Babel." In Joseph F. Graham (org.), Difference in Translation. Ithaca: Cornell niversity Press, 1985.

    ELIOT, T. S. "The Metaphysical Poets" (1921). In Abrams, Donaldson, Smith, Adams, Monk, Lipking, Ford e Daiches (orgs.), The Norton Anthology ofEnglish Literature. Nova York: W. W. Norton & Compa-ny Inc., 1975.

    FISH, Stanley, h There a Text in This Class? - The Authority of Inlerpretive Communities. Cambridge: Harvard niversity Press, 1980.

    NIETZSCHE, Friedrich. "On Truth and Falsity in Their Ultramoral Sense." In Early Greek Philosphy & Other Essays (traduzido por Maximiliam A. Mugge). Londres e Edimburgo: T. W. Foulis, 1911.

    SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingstica Geral (traduzido por An-tnio Chelini, Jos Paulo Paes e Izidoro Blikstein). So Paulo: Edito-ra Cultrix, 12a edio.

    VIZIOLI, Paulo. O Poeta do Amor e da Morte. So Paulo: J. C. Ismael, 1985.

  • 2. AS RELAES PERIGOSAS ENTRE TEORIAS E POLTICAS DE TRADUO1

    Translation continues to be an invisible practice, every-where around us, inescapably present, but rarely acknowl-edged, almost never figured into discussions of the trans-lations we ali inevitably read. This eclipse of the transla-tor's labor, of the very act of translation and its decisive mediation of foreign writing, is the site of multiple deter-minations and effects linguistic, cultural, institutional, political. But it must first be noted that translators them-selves are among the agents of their shadowy existence.

    Lawrence Venuti "Introduction" Rehinking Translation

    Num ensaio sobre "A Tarefa do Tradutor", a clssica refle-xo de Walter Benjamin acerca das aporias desse ofcio to complexo, Paul de Man sintetiza a concepo de traduo en-tranhada na cultura ocidental desde, pelo menos, Ccero e Ho-rrio:

    O tradutor nunca pode fazer o que o texto original fez. Qualquer traduo sempre inferior em relao ao original, e o tradutor est, como tal, perdido logo partida. por de-finio mal pago, por definio sobrecarregado com traba-lho, por definio aquele que a histria no fixar realmente como um igual a no ser que por acaso seja tam-bm poeta, mas nem sempre esse o caso. (p. 110)

    Essa condenao inferioridade e ao descaso perpetuada pelo senso comum de uma cultura centrada na valorizao do logos e na busca impossvel do significado exterior ao sujeito, imune

  • 28 As Relaes Perigosas

    perspectiva e passagem do tempo, tambm o preconceito ine-vitvel do qual parte toda reflexo logocntrica sobre traduo. E exatamente nesse ponto de partida que se estabelece a primei-ra relao perigosa entre teoria e prtica. Perigosa, sobretudo, porque sub-reptcia e enganadora. Ao se apresentar como subsi-diria de uma cincia ou de uma filosofia, pretensamente neutra e despojada de qualquer interesse poltico ou ideolgico, a refle-xo terica sobre traduo advinda da maioria das disciplinas ins-titucionalizadas que apenas espordica e marginalmente se dedicam a seu estudo tem, na verdade, apenas confirmado e le-gitimado com seu suposto lastro de "autoridade" e "cientificida-de" as formas desse preconceito.3

    Esse tipo de teoria, como o senso comum, espera da tradu-o uma eficincia sobre-humana, um ato de magia no muito bem definido que pudesse ser capaz de neutralizar diferenas lin-gsticas, culturais e histricas, ao mesmo tempo em que idealiza o chamado "original" pressupondo-o capaz de se manter o mes-mo apesar das diferenas inevitveis. Em outras palavras, apesar da evidncia cotidianamente repetida de que no se conhece ne-nhum texto que possa ser independente da leitura que se faz dele nem que permita uma leitura unanimemente aceita em qual-quer tempo e lugar, tanto o senso comum como as teorias da lin-guagem que o confirmam e o legitimam continuam pressupondo a possibilidade de um texto "original", presente e estvel, deposi-tr io dos significados p re tensamente conservados e inde-pendentes das interpretaes que proliferam a part i r de seu contato com qualquer leitura.

    "O tradutor nunca pode fazer o que o texto original fez", diz o senso comum, referendado por Paul de Man. Mas o que pode fazer o chamado "original" ou qualquer outro texto a no ser se entregar a leituras, sempre inevitavelmente datadas e mar-cadas por um contexto e por uma perspectiva? Ou, ainda, como se pode saber o que "faz" o "original" a no ser a partir e atravs de uma leitura? Como se pode entrar em contato com um texto, como fazer com que fale e se expresse a no ser por intermdio dessa relao muito especial que tambm chamamos de "leitu-ra"? Contudo, a um texto supostamente pleno de significados independentes de uma leitura que a traduo deve ser "fiel"; quele texto imaginrio e inexistente supostamente anterior

  • As Relaes Perigosas 29

    interveno de uma interpretao que o tradutor deve ser "fiel". E na frustrao associada a essa fidelidade, ao mesmo tem-po esperada e impossvel, podemos detectar uma das conseqn-cias da relao perigosa que o logocentrismo estabelece entre teoria e prtica: qualquer traduo ser sempre "infiel", em al-gum nvel e para algum leitor, sempre "menor", sempre "insatis-fatria", em comparao a um original idealizado e, por isso mesmo, inatingvel.

    no espao dessa relao alimentada de expectativa e frus-trao que crticos e tradutores tambm se encontram. Todo cr-tico de traduo que imagina a relao t radutor/ texto original no cenrio dessa fantasia logocntrica escamoteia de sua crtica o fato de que, inevitavelmente, compara a traduo que julga com a traduo que tem em mente. E essa sua verso, que toma, entretanto, como sendo a indiscutivelmente "correta" ou "ideal", como sendo a equivalncia desejvel daquilo que o au-tor originariamente tenha "querido" dizer, ou teria dito, se es-crevesse na lngua e no tempo da traduo. Num texto jornalstico de Paulo Francis, publicado recentemente, podemos encontrar uma amostra exemplar e anedtica desse jogo dissi-mulado da crtica. Em "A lngua nossa", Francis comenta o fi-nal da traduo brasileira do Ulysses realizada por Antnio Houaiss:

    o clebre monlogo de Molly Bloom. Em orgasmo, Molly diz yes vrias vezes. Como que Houaiss traduziu? Com seu ouvido de lata, claro que traduziu para "sim", literalmente correto, mas quem tem uma gota de sangue literrio nas veias sabe que yes a o "" do verbo ser. "Sim" formal. O "", coloquial, adequado onomatopaicamente.

    Como a grande maioria dos comentaristas de tradues, Francis no parece achar necessrio fundamentar as bases "objetivas" que lhe permitem classificar o "ouvido" do tradutor como sendo "de lata", ou diagnosticar sua falta de "sangue literrio". O texto de Francis deixa claro que, segundo o crtico, quem tem o privil-gio do "ouvido" de algum metal mais nobre do que a lata e do sangue "literrio" que permitiriam, entre outras coisas, desco-brir a forma "correta" de expressar o prazer de Molly Bloom em portugus ele prprio, assumindo, conseqentemente, a fun-

  • 30 As Relaes Perigosas

    o de parmetro para a avaliao da traduo que comenta. As-sim, em sua crtica, o que dele, o que parte de sua viso, pas-sa, implicitamente, a ser a norma, o desejvel, o adequado, aquilo que verdadeira e indiscutivelmente deveria estar no texto. A desconstruo da "certeza" de Francis quanto melhor forma de traduzir o "yes" vrias vezes repetido por Molly Bloom viria necessariamente com a interveno de qualquer outro leitor que discordasse dele e defendesse, por sua vez, sua prpria soluo, esta tambm a "nica" adequada e "fiel" ao texto de Joyce. Nesses embates entre crtica e traduo, entre leitor crtico e tradutor, este raramente tem a oportunidade e o lugar para se defender, para defender os caminhos que trilhou para chegar s solues que chegou.

    s voltas com uma tarefa que a tradio decidiu tornar de antemo fadada ao fracasso e incompetncia, o tradutor sem-pre est, como declara de Man, "perdido logo partida", incons-ciente do inevitvel papel autoral que desempenha e, o que pior, sempre pronto a aceitar as culpas e a ineficincia que lhe atribuem. E nessa cegueira e nessa inconscincia, traduzidas tambm por uma falta crnica de auto-estima,4 torna-se cmpli-ce de outra relao perigosa entre teoria e prtica. A marginali-zao a que as teorias condenam a atividade do tradutor reflete-se, tambm, por exemplo, no papel que a sociedade lhe atribui e na forma pela qual lida com sua profissionalizao. O tradutor , como lembra de Man, "por definio mal pago, por definio sobrecarregado com trabalho, por definio aquele que a histria no fixar realmente como um igual". Ao refletirem e corroborarem o preconceito generalizado que a cul-tura ocidental cultiva em relao traduo, as teorias de lin-guagem filiadas ao logocentrismo atribuem ao tradutor o papel de mero transportador de significados, que deve ignorar-se e a seu tempo e lugar ao realizar, sempre "inadequadamente", as operaes desse transporte de alto risco. E nesse papel de pre-tensa neutralidade, o tradutor se humilha duplamente. Em pri-meiro lugar, ao aceitar o papel de mero transportador de significados, de mero filtro incuo de significados preservados de uma lngua para outra, de uma cultura para outra e de um tempo para outro, no se reconhece como intrprete inevitvel do texto que traduz, e no assume, portanto, a responsabilidade

  • As Relaes Perigosas 31

    autoral que lhe cabe, cometendo, muitas vezes, tradues de tex-tos que no "compreende" e sobre temas que desconhece. Con-seqentemente, ao abdicar de suas responsabilidades "autorais", ao abdicar da interferncia que inescapavelmente produz, deve abdicar tambm de quaisquer direitos autorais em todos os seus sentidos e aceitar como legtimas as polticas trabalhistas que tm regulado e diminudo sua atividade, no apenas a remu-nerao "por definio" baixa e servil mas, sobretudo, a no-pro-fissionalizao de seu trabalho.

    A noo de traduo como transporte neutro de significados de uma lngua para outra e de um texto para outro implicitamen-te estabelece que o tradutor no necessita de uma formao es-pecfica, alm do conhecimento das lnguas envolvidas. Ou seja, dentro dessa tica, traduzir no uma habilidade que envolva um aprendizado ou um treinamento especfico; basta ter algum conhecimento das lnguas envolvidas. Alis, , geralmente, como uma das possveis aplicaes do ensino de lnguas estrangeiras que a traduo lembrada em cursos universitrios, tanto aqui como no exterior. Com exceo de poucas universidades, que j se preocupam em formar profissionais da rea, a grande maioria ainda no considera a traduo um objeto de estudo que deva ocupar seus departamentos.

    Colocada margem da profissionalizao e da institucionali-zao acadmica, a traduo se marginaliza tambm enquanto objeto de reflexo e pesquisa dentro dos estudos da linguagem. Por no ter seu lugar devidamente demarcado dentro dos cursos de letras ou de comunicao, tanto a nvel d graduao como de ps-graduao, a traduo depende do interesse espordico das disciplinas, que tm espao garantido na academia e , conse-qentemente, 'apenas estudada como aplicao ou ilustrao des-ta ou daquela disciplina ou rea do conhecimento. Assim, tambm a pesquisa na rea est fadada incipincia e precarie-dade. Como resultado, pouco se reflete e pouco se atua sobre os mecanismos e as polticas que pem em circulao tradutores, tradues, crticos e pesquisadores, eternizando-se, assim, o ciclo da indigncia. ,

    Enquanto os tradutores persistirem em no refletir sobre o trabalho delicado e complexo que realizam e enquanto no se decidirem a cuidar das condies e dos rumos de seu ofcio, te-

  • 32 As Relaes Perigosas

    ro que aceitar o destino de marginalizao que essas instituies lhes reservam. Somente a partir da conscientizao desses profis-sionais acerca do poder autoral que exercem e da responsabilida-de que esse poder implica, as relaes perigosas que tm organizado tradutores e tradues podero se tornar mais ho-nestas. Da mesma forma, depender dos pesquisadores e estu-diosos da rea o reconhecimento da legitimidade de seu objeto de estudo e a abertura de espaos prprios para ele em cursos universitrios de graduao e de ps-graduao e nos rgos fi-nanciadores de pesquisa. Tradutores e estudiosos da traduo te-ro, assim, a oportunidade de mudar os destinos e as definies de seu trabalho, colocando-o no espao que merece ter na socie-dade.

    NOTAS

    1. Uma verso preliminar deste trabalho, intitulada "Teorias e Polticas de Traduo" foi publicada no Suplemento "Cultura", O Estado de So Paulo, 22/06/91, p. 3.

    2. Esta e outras citaes e referncias ao texto de de Man so minhas tradues.

    3. Refiro-me, por exemplo, a tericos como George Steiner, George Mounin, Eugene A. Nida, J. C. Catford, Francis Aubert, entre outros, cujo trabalho tenho comentado em diversas ocasies. A propsito, ver, principalmente, Arrojo 1986 e 1992a.

    4. A propsito, ver tambm Arrojo 1992b.

  • As Relaes Perigosas 33

    BIBLIOGRAFIA

    ARROJO, Rosemary. OJicina de Traduo - A Teoria na Prtica. So Pau-lo: tica, 1986 e 1992 (2* edio).

    ARROJO, Rosemary. "Compreender & interpretar e a questo da tradu-o", "As questes tericas da traduo e a desconstruo do logo-centrismo: algumas reflexes", "A pesquisa em teoria da traduo ou o que pode haver de novo no front". In R. Arrojo (org.), O Signo Desconstrudo Implicaes para a traduo, a leitura e o ensino. Campi-nas: Editora Pontes, 1992a.

    ARROJO, Rosemary. "Traduo." In Jos Luis Jobim (org.), Palaxrras da Crtica. Rio de Janeiro: Imago, 1992b.

    DE MAN, Paul. A Resistncia Teoria (trad. de Tereza Louro Prez). Lis-boa: Edies 70, 1990.

    FRANCIS, Paulo. "A lngua nossa." In "Caderno 2", O Estado de So Paulo, 3 1 / 0 1 / 9 1 , p. 4.

    VENUTI, Lawrence (org.). Rethinking Translation Discomse, Subjectivity, Ideology. Londres e Nova York: Routledge, 1992.

  • 3. LAPLANCHE TRADUZ O PAI DA PSICANLISE:

    AS PRINCIPAIS CENAS DE UM ROMANCE FAMILIAR1

    It is as though, through our excursion into the exotic, we had suddenly come to remember what it was that appea-led to us in what we were being unfaithful to. This trans-ferential bigamy or double infidelity thus indicates that it is not bigamy but rather incest that is at stake in the en-terprise of translation.

    Barbara Johnson "Taking Fidelity Philosophically"

    A publicao do primeiro volume da traduo francesa das Obras Completas de Freud, em 1988, sob a direo de Jean Laplan-che, foi, como o prprio Laplanche observou, "uma bomba tran-qila" lanada nos domnios da psicanlise francesa (em Volich, p. B-6)." Considerando que isso ocorreu num pas em que, na poca, um contingente de apenas dois mil psicanalistas se dividia em cerca de vinte associaes profissionais diferentes e que teve que esperar quase um sculo para comear a ter acesso sua pr-pria verso das Obras Completas de Freud, no difcil imaginar o impacto e a repercusso da "bomba tranqila" projetada por La-planche. O primeiro objetivo deste ensaio, contudo, no o exa-me da controvrsia iniciada por tal traduo dentro dos limites da psicanlise francesa, mas, sim, uma reflexo acerca de alguns dos componentes do projeto que a deflagrou e de suas implica-es para uma teoria geral da traduo. Como pretendo argu-mentar, atravs de um exame detido de algumas conseqncias

  • 36 Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    dos objetivos e princpios tradutrios explicitados por Laplanche, adotando-se como pano de fundo a prpria teoria psicanaltica, possvel construir-se um enredo exemplar das motivaes subli-minares que orientam a atividade do tradutor e da relao com-plexa que parece estabelecer com o autor que traduz. No por acaso, entretanto, que o jogo transferenciai de amor e dio que se delineia entre os pressupostos de Laplanche como tradutor e o cnone freudiano como o que ocorre entre qualquer texto "original" e sua traduo revolve em torno da problemtica da fidelidade, a questo central de qualquer reflexo sobre o ato tra-dutrio. Dividido entre o tributo que precisa e quer prestar ao autor /pai e o desejo de se apropriar de seu direito de produzir significado, o tradutor parece encontrar em sua reivindicao de fidelidade um refgio da culpa que lhe permite no apenas ocu-par a posio privilegiada do autor, mas, tambm, declarar sua humildade e o reconhecimento de seu lugar de filho e sucessor.

    Em Traduire Freud, escrito com a dupla funo de suplemen-to e de guia para a traduo das Obras Completas, Laplanche expli-ca os princpios que deram corpo ao trabalho de sua equipe de tradutores. Considerados a partir de uma perspectiva logocntri-ca, os objetivos e as crenas de Laplanche em relao traduo no poderiam ser mais sensatos. Na verdade, a abordagem que recomenda para a traduo dos textos de Freud repete os precei-tos ticos impostos aos tradutores tanto pelo chamado "senso co-mum" como pela tradio terica que, pelo menos h vinte sculos, tem centrado a reflexo sobre a atividade tradutria em questes relativas fidelidade. Como George Steiner observa,

    pode-se argumentar que todas as teorias de traduo for-mais, pragmticas, cronolgicas so apenas variantes de uma nica e inescapvel questo. De que formas se pode, ou se deve, atingir a fidelidade? Qual a melhor correlao possvel entre o texto A da lngua-fonte e o texto B da ln-gua-alvo? Tal questo tem sido debatida h mais de dois mil anos. (pp. 261-262)

    A resposta de Laplanche a essa questo antiga sugere a pres-crio de uma relao aparentemente harmoniosa e devotada en-tre o "original" e sua derivao na lngua estrangeira. Em sua busca de uma "fidelidade rigorosa", "que impe a dupla tarefa de

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise 37

    totalidade e exatido", Laplanche tem como meta uma "supertra-duo", uma repetio perfeita que teria de transcender no ape-nas qualquer diferena lingstica mas, tambm, a prpria histria. Atravs de uma suposta "separao" do texto ("nada alem do texto") daquilo que no lhe pertence todos os "co-mentrios" e todas as leituras que de alguma forma "aderiram" ao original Laplanche declara sua devoo incondicional a Freud (pp. 14-15). Como argumenta, as opes dos tradutores que trabalham sob sua superviso so "guiadas pelo prprio Freud" para que no comprometam de forma alguma o cnone "original": "no tocamos em nada, nem mesmo nos parnteses. Respeitamos todos os artigos e todas as oraes subordinadas que caracterizam seu pensamento" (p. 36). Conseqentemente, o objetivo ltimo deste projeto seria "devolver Freud a Freud" e produzir uma traduo que pudesse se libertar de qualquer pers-pectiva ideolgica ou interpretao "no um Freud kleiniano, nem um Freud lacaniano, mas um Freud freudiano, escrito num francs freudiano que pudesse se relacionar com os leitores fran-ceses da mesma forma que os leitores alemes se relacionam com o original" (p. 16).

    Laplanche compartilha com as teorias de traduo tradicio-nais a mesma concepo logocntrica de significado como um objeto presente e porttil que pudesse permanecer depositado num texto sob a determinao das intenes (conscientes) de seu produtor. A partir dessa perspectiva, a traduo necessariamen-te vista como uma transferncia de significados que pode e deve ser realizada sem a interferncia do "toque" do tradutor e sem nenhum rastro de suas circunstncias e desejos. Ao pressuporem a possibilidade de uma oposio objetiva e indiscutvel entre su-jeito e objeto' (e, conseqentemente, entre leitor e texto, tradutor e autor), todas as teorias de linguagem de ascendncia logocn-trica necessariamente crem na possibilidade de uma traduo no-interpretativa e livre de qualquer vis e que poderia, portanto, separar o que pertence ao autor daquilo que pertence ao tradutor.

    Ironicamente, a crena na possibilidade de uma oposio ab-solutamente clara entre sujeito e objeto e de todas as outras oposies dela decorrentes que se encontra implcita nas "justi-ficativas" de Laplanche, pode ser desconstruda atravs de algu-mas noes bsicas emprestadas da prpr ia psicanlise. O

  • 38 Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    mecanismo de transferncia que determina nossas relaes e afe-tos provavelmente o insight mais importante que a psicanlise freudiana trouxe nossa reflexo sobre a condio humana nega a possibilidade de qualquer pretenso a uma objetividade completa. Transferncia, aqui, no sentido do que Susan R. Sulei-man chama de "emaranhamentos" (entanglements):

    Emaranhamentos entre pessoas, personagens, textos, discur-sos, comentrios e contracomentrios, tradues e notas de rodap e outras notas de rodap de histrias reais e imagi-nadas, cenas vistas e coatadas, reconstrudas, revistas, ne-gadas; emaranhamentos entre o desejo e a frustrao, o domnio e a perda, a loucura e a razo [...] Resumindo numa palavra, amor. Que alguns chamam de transferncia. Que alguns chamam de leitura. Que alguns chamam de es-critura. Que alguns chamam de criture. Que alguns chamam de deslocamento [displacement], deslizamento [slippage], fen-da [gap]- Que alguns chamam de inconsciente, (p. 88)

    Como envolve uma relao entre tradutor e texto ou tradu-tor e autor, alm de uma relao entre duas lnguas e culturas di-ferentes, no seria qualquer traduo tambm determinada por uma estrutura transferenciai? No seria sua base triangular um lugar exemplar para os "emaranhamentos" entre desejo e frustra-o, domnio e perda, comentrio e contracomentrio que, para Suleiman, "traduzem" a transferncia? O prprio Laplanche, em outro contexto, v uma "compulso" na origem de qualquer tra-duo, o que lhe permite falar de uma "pulso a traduzir", de "um prazer de traduzir" e de "um desejo de traduzir". Conse-qentemente, argumenta Laplanche,

    podemos encontrar trs vetores fundamentais do movimen-to tradutivo: a) aquilo que nos incita a traduzir; b) aquilo que, em ns, incita a se traduzir, e, finalmente, c) aquilo que na obra incita a ser traduzido. (Volich, B-4, grifos do autor)

    O tradutor, como qualquer outro intrprete, no poder descobrir nos textos que traduz os significados estveis e inde-pendentes que esses textos supostamente escondem e protegem. O que quer que um intrprete encontre nos textos que l ou tra-duz ser algo com o qual estar, de alguma forma, j "emaranha-

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise 39

    do". Ao invs de um resgate de significados, o mecanismo que orienta a leitura e a interpretao estaria mais prximo de um "reconhecimento" ou de uma "apropriao", em que o intrpre-le necessariamente cria, ou, melhor, recria, o texto com o qual estabelece uma relao. Barbara Johnson apropriadamente des-creve esse "reconhecimento" como "uma forma de cegueira, uma forma de violncia em relao outridade do objeto", que per-mite ao leitor "armar para o autor do texto que est lendo prti-cas cujo lugar se encontra simultaneamente atrs da letra do (exto e atrs da viso de seu leitor" (1980, p. 157).

    As estratgias engendradas por esse processo de apropriao do significado encontram na atividade do tradutor um paradig-ma exemplar. Uma ilustrao apropriada pode ser encontrada precisamente em Freud, flagrado, por assim dizer, nas malhas de uma traduo "malfeita" e numa relao transferenciai com um de seus objetos favoritos Leonardo da Vinci. Em seu texto "Leonardo da Vinci e uma Lembrana de Sua Infncia", publica-do em 1910, alguns comentaristas encontraram um erro de tra-duo aparentemente sem importncia. Um dos interesses de Freud nesse ensaio a fantasia de Leonardo de ter sido visitado em seu bero por uma ave de rapina que, segundo Freud, "abria sua boca com a cauda e lhe batia muitas vezes a cauda contra os lbios" (p. 82; citado em Bass, p. 117). Tal ave, de acordo com os manuscritos de Leonardo, um "nibio" "milhafre", em portu-gus que Freud, entretanto, traduz por "geier", "abutre". Em sua introduo ao ensaio de Freud, James Strachey atribui a ori-gem desse "erro" a algumas das tradues alems que utilizara (p. VIII; citado qm Bass, p. 105). Ernest Jones se refere a ele como "um lapso singular no conhecimento de Freud sobre hist-ria natural. Os milhafres eram to comuns na Itlia quanto os abutres no Egito" (p. 348; citado em Bass, p. 105). Alan Bass vai muito alm e mostra como os interesses e motivaes de Freud na poca podem ser associados ao seu "erro" de traduo. A base de sua argumentao explora a relao que se estabelece entre Freud geralmente um escritor e tradutor cuidadoso e o texto que analisa, alm das implicaes dessa relao para o desenvol-vimento da teoria psicanaltica.

    Segundo Bass, com base em diversas fontes eruditas "ade-quadas", Freud elabora uma intricada argumentao no apenas

  • 40 Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    para estabelecer uma conexo "real" entre o abutre e a figura materna e entre essa me/abutre e a biografia de Leonardo, mas, tambm, entre as teorias infantis sobre a procriao e as concepes da criao em geral encontradas na mitologia. As re-flexes anteriores de Freud sobre as teorias sexuais infantis ha-viam chegado concluso de que, de acordo com a primeira "teoria" sexual do menino, sua me teria tido um pnis. De for-ma semelhante, na mitologia, segundo Freud, "a adio de um falo ao corpo feminino tem a funo de denotar a fora criativa primordial da natureza" (p. 94; citado em Bass, p. 127). Como ex-plica Alan Bass, essa a razo pela qual, segundo Freud,

    o contedo manifesto da "lembrana" de Leonardo mas-cara o contedo latente com o "abutre". Quando adulto, Leonardo supostamente tinha conhecimentos acerca do simbolismo egpcio do abutre (me), que deve ter sido asso-ciado sua prpria "teoria" sexual infantil de que sua me alguma vez possura um pnis. (p. 127)

    Alm disso, essa interpretao da fantasia de Leonardo deflagrou "uma mudana importante na teoria psicanaltica" em relao concepo de Freud acerca do fetichismo. Ao se dedicar ao estu-do sobre Leonardo, Freud comeou a reelaborar sua teoria sobre o fetichismo relacionado ao p feminino, que at ento era expli-cado como o retorno do prazer reprimido e associado ao cheiro, verificado durante a fase anal.

    Ao tentarmos remontar o intrincado quebra-cabea que Alan Bass arma para explicar o "erro" de traduo de Freud, so-mos tentados a aceitar que ocorre muito mais no processo tradu-trio do que a mera transferncia de significados neutros e intocados. Como conclui Bass, o "erro" de Freud no simples-mente motivado, mas , ele prprio, tambm um "fetiche". Afi-nal, Freud tinha que ver um abutre onde havia apenas um milhafre porque o primeiro "ilustrava bem demais todos os seus pensamentos da poca em relao ao falo materno, ao fetichismo e ao uso da linguagem arcaica e pictogrfica nos sonhos e na for-mao de fantasias" (p. 136). A partir de uma perspectiva psicana-ltica, pode-se dizer que ao invs de uma transferncia impessoal de significados, qualquer traduo reproduz uma relao transfe-renciai entre tradutor e texto e entre tradutor e autor, na qual

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise 41

    est em jogo uma teia de sentimentos contraditrios. Nessa rela-o transferenciai, o autor/ texto necessariamente desempenha um papel ativo que lhe atribudo por seu leitor/tradutor; ele no permanece quieto nem imvel, nem tampouco esconde os significados que uma leitura "adequada" deveria descobrir. No , como sugere Barbara Johnson, "constativo", mas "performati-vo" e, como tal, joga e brinca com as fantasias e os desejos de seu lei tor/ tradutor (1980, p. 143).

    Mas voltemos traduo de Freud para o francs. Que tipo de relao se estabelece entre Laplanche, o tradutor e psicanalis-ta, e Freud, no apenas o autor/ texto a ser traduzido, mas, prin-cipalmente, o criador, o pai da psicanlise? Em primeiro lugar, essa tambm uma relao inevitavelmente marcada por certos sentimentos. O sentimento explcito mais forte expresso por La-planche em relao a seu projeto tradutrio parece ser o desejo "de devolver Freud ao prprio Freud", eliminando de seu texto todas as interferncias que leituras e tradues anteriores supos-tamente tenham perpetrado "contra" ele. Esse voto de fidelida-de, segundo o qual o original deve permanecer "intocado" e o tradutor deve permanecer invisvel e que explicitamente promete reverencia e humildade, na verdade mascara uma outra tessitura de sentimentos igualmente fortes. A realizao dessa traduo pretensamente fiel teria que obliterar a histria atravs do apaga-mento de todas as camadas de interpretaes "errneas" que capturaram o "original" de Freud nas armaes desta ou daquela escola psicanaltica. A violncia implcita por esse desejo de elimi-nao da histria foi certamente detectada por alguns dos crti-cos de Laplanche. Elizabeth Roudinesco, por exemplo, declarou que o projeto de Laplanche "uma formidvel empresa de desla-canizao" j que o desenvolvimento de algumas das teorias que Lacan "destilou" a partir do texto de Freud se "perde" nessa tra-duo. Como argumenta, ao ter optado por tradues diferentes para os "termos correlatos de Wunsch (souhait, dsir, dsirance etc.)" e por ter preferido "fantaisie" ao usual "fantasme" na tradu-o do termo freudiano "Phantasie", a verso de Laplanche retira do texto de Freud o desenvolvimento da teoria lacaniana do de-sejo e a distino entre "fantaisie" e "fantasme", tambm desenvol-vida por Lacan. Ao invs de reconhecer, na t raduo de Laplanche, uma verso francesa fiel ao original freudiano, Cathe-

  • 42 Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    rine David critica "o abuso na utilizao de neologismos e a re-formulao das antigas tradues, que conduzem a um texto 'ar-tificial'". Outros psicanalistas, como lembra Rubens Macedo Volich, "consideram ainda que as mudanas introduzidas pelas novas tradues vo alm do que seria necessrio" (pp. B-5-B-6).

    Nos bastidores dessa controvrsia podemos imaginar outros enredos e subenredos implcitos e subliminares. Em primeiro lu-gar, a pretensa fidelidade "absoluta" de Laplanche ao texto de Freud permanece um desejo fantstico. Na realidade, pelo me-nos para os crticos mencionados acima, tal fidelidade nunca foi atingida. Para Roudinesco, ao ser infiel a Lacan, Laplanche , certamente, tambm infiel a Freud. Para David, como vimos, a suposta fidelidade de Laplanche linguagem de Freud no passa de um abuso de neologismos. No centro desse debate, no dif-cil detectarmos sentimentos de rivalidade fraterna. Ao produzir uma traduo que tenta explicitamente apagar as marcas de uma leitura lacaniana ou kleiniana que a histria representada pelos discpulos de Lacan ou Klein inscreveu no texto de Freud, La-planche parece agir motivado por um desejo de superar seus ri-vais e de se tornar o nico e legtimo lierdeiro francs do pai da psicanlise. E a esse desejo expresso atravs da fantasia de ser o guardio privilegiado da "verdadeira" palavra de Freud que Laplanche parece ser fiel. Como Freud, que se identifica com Leonardo e se apodera do texto deste com o objetivo de cons-truir suas prprias teorias, Laplanche, numa relao transferen-ciai com Melanie Klein, Lacan, e, principalmente, com o prprio Freud, se apodera das Obras Completas para expressar sua viso daquilo que esse texto supostamente diz. E na concretizao des-sa fantasia, precisa "ignorar" algumas lies bsicas de psicanlise ao condenar qualquer associao entre traduo e interpretao, negando que sua verso pudesse constituir apenas uma outra "leitura" do texto de Freud, vinculada a uma determinada pers-pectiva. Alm disso, para concretizar sua fantasia de realizar uma traduo "total" do original de Freud, sem perdas e sem danos, Laplanche precisa se esquecer de suas prprias concluses sobre o mecanismo compulsivo que emaranha tradutores e autores, tradues e originais.

    Depois de um breve exame da histria da psicanlise france-sa nas duas ou trs ltimas dcadas, podemos delinear pelo me-

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise 43

    nos um subenredo particularmente revelador por trs da elimi-nao de Lacan, armada por Laplanche na construo do texto que implicitamente pretende ser a verso francesa standard da obra de Frcud. Como explica Elizabelh Roudinesco, como um jo-vem estudante de filosofia, nos anos 50, Laplanche comeou sua anlise com Lacan "sem saber nada sobre o movimento" (p. 228). Essa introduo aos meandros da psicanlise se transformou num interesse muito mais profundo que o levou a tornar-se tam-bm um psicanalista. O analisando de Lacan se tornou, assim, um discpulo e, logo, o discpulo se transformou num dissidente. De acordo com Roudinesco, a principal divergncia de Laplan-che com seu mestre e ex-analista centrou-se na relao entre a linguagem e o inconsciente. Enquanto que para Lacan o incons-ciente um discurso estruturado como uma linguagem e "clara-mente separado do enunciado consciente", para Laplanche, " a condio possibilitadora da linguagem, j que certos significan-tes-chave fixam o impulso sem capturar qualquer signi ficado em suas malhas" (p. 313). Como prossegue Roudinesco,

    Laplanche reprovava Lacan por ter invertido a proposta freudiana e por ter identificado o processo primrio com uma linguagem que se ajustava s rgidas leis da lingstica,

    < enquanto Freud havia pensado a linguagem como algo estri-tamente verbal, ou seja, como secundria em relao ao in-consciente. Assim, Laplanche props inverter a frmula de Lacan e re-interpret-la em termos da perspectiva freudiana. (p.313)

    Nessa divergncia entre mestre e discpulo, encontramos algo fa-miliar. O apagamento dos rastros de Lacan deixados sobre o tex-to de Freud no simplesmente uma das metas do projeto tradutrio de Laplanche; mais do que isso, parece ser uma cena recorrente no romance familiar que rene Freud, Lacan, Laplan-che e a "verdade" da psicanlise. Nesse romance, a rivalidade fra-terna parece se emaranhar com angstias edipianas. Como sugere Roudinesco, a posio de Laplanche como discpulo/dis-sidente era particularmente adversa j que "era difcil ser antila-caniano no prprio territrio terico do lacanianismo" (p. 314). Na encruzilhada desse dilema, Laplanche inevitavelmente deseja o que Lacan deseja. A meta de "devolver Freud a Freud", que

  • 44 Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    tem estimulado as pesquisas de Laplanche assim como seu proje-to de traduo, foi tambm, como se sabe, a principal inspirao do trabalho de Lacan, dedicado a "articular o verdadeiro sentido da mensagem essencial de Freud" (ver Muller, p. 2).

    Certamente poderamos construir enredos e cenas seme-lhantes se examinssemos, ainda que superficialmente, a relao que a teoria e a prtica da psicanlise tem estabelecido entre La-planche e Klein, Lacan e Freud, ou entre Freud e qualquer um de seus muitos discpulos (aos quais o mestre/pai sintomatica-mente se referia como "a horda selvagem").4 O principal enredo dessa saga familiar, que tambm a histria da psicanlise, ines-capavelmente se repete na traduo empreendida por Laplan-che. Seu desejo explcito de ser o verdadeiro porta-voz de Freud em francs no implica somente a eliminao de seus rivais e mestres prximos; esconde tambm uma fantasia mais poderosa, a fantasia de se colocar no lugar privilegiado de Freud como aquele que tem o direito e a autoridade de produzir significado na rea que ele mesmo criou, deixando de ser apenas um dos muitos recipientes da teoria psicanaltica. Ao fantasiar a produ-o de uma traduo que pudesse reproduzir a totalidade do tex-to de Freud, e l iminando todas as "distores" e todas as "digresses" das tentativas anteriores, Laplanche implicitamente nomeia a si prprio o nico herdeiro legtimo da riqueza intelec-tual de Freud na Frana, ao mesmo tempo em que estabelece uma competio subjacente com o criador dessa riqueza. De pos-se do texto de seu autor, o tradutor pretende saber mais do que aquele que gerou esse texto. De acordo com o projeto fantstico de Laplanche, ele no apenas o nico herdeiro legtimo de Freud nos limites da lngua francesa, mas dotado de uma viso autoral que supera a de Freud. Seguindo os movimentos desse gesto edipiano, Laplanche transforma Freud num paciente em anlise e toma o lugar do mestre/analista como aquele que en-xerga mais claramente:

    O latente s aparece bem para aquele que est fora. Diga-mos, simplesmente, numa sesso de anlise o analista v coi-sas que o analisando no v. Da mesma forma, ns vemos em Freud coisas que ele mesmo no v. E me parece essen-cial revel-las. (Volich, p. B-10)

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise 45

    Esse r o m a n c e familiar, escri to de a m o r e d io , n o se encon-t ra a p e n a s i n t r i n secamen te e m a r a n h a d o c o m a his tr ia e o proje-t o d a p s i c a n l i s e ; t a m b m , s o b r e t u d o , s u a i n e v i t v e l conseqnc ia . A lio, u m a vez mais , se a p r e n d e c o m o pai . Ao r e c o n h e c e r o fracasso do p r i m e i r o e n c o n t r o do crculo de Viena, F r e u d escreveu:

    No consegui estabelecer entre seus membros as relaes amigveis que deveriam ocorrer entre homens que se dedi-cam mesma tarefa difcil; nem fui capaz de abafar as dispu-tas em relao prioridade para as quais havia tantas oportunidades sob essas condies de trabalho em comum [...] Qualquer um que tenha acompanhado o desenvolvi-mento de outros movimentos cientficos saber que as mes-mas convulses e dissidncias ocorrem neles tambm. Pode ser que em outros campos elas sejam mais cuidadosamente escondidas; mas a psicanlise, que repudia tantas idias con-vencionais, mais honesta tambm nessas questes. (Sobre a Histria do Movimento Psicanallico, p. 44; citado em Rous-tang, p. 14)

    Assim, q u a l q u e r p ro je to psicanaltico mais do q u e qua lque r ou-t ro deveria estar "consciente" de sua p rpr ia e ine ren te des-cons t ruo . S e g u n d o Franois Rous tang , qua lque r pro je to q u e p r e t e n d a o es tabe lec imento e a disseminao da "verdadeira" pa-lavra de F reud c o m o , p o r exemplo , a "Associao In ternac ional de Psicanlise", "cujo objetivo e ra p r o m o v e r auxlio m t u o e a dou t r i na da submisso ao l der" p o d e ser "apenas um engano" :

    [Freud] teria fundado uma igreja se a Associao tivesse tido a misso de disseminar um novo evangelho. Ao invs disso, como ele mesmo declarou quando esteve na Amrica, ele es-tava trazendo a peste, ou seja, entre outras coisas, a desco-berta dos compromissos que so o cimento de todas as sociedades [...] Apenas quando se v como um bando de as-sassinos, como um ajuntamento de loucos, ou, segundo Freud, como uma horda selvagem, uma sociedade psicanal-tica pode assumir a nica forma que lhe adequada, a nica imagem que pode preservar sem desfigurar a psicanlise. Se algum procurar os efeitos da psicanlise, poder v-los no fato de que qualquer grupo de psicanalistas carrega consigo o princpio de sua desintegrao. Contudo, se o grupo for

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    estvel e funcionar bem, prova do contrrio: sem dvida, abandonou a descoberta freudiana. Nesse sentido, a psica-nlise basicamente anti-social, e falar em sociedade psica-naltica uma contradio em termos, (p. 14)

    Para Philippe Sollers, precisamente devido sua vocao ine-rente para "dissolver qualquer possvel comunidade" que a psica-nlise "no pode convencer-se a ser uma unidade [e por isso] que resiste": "uma resistncia dissoluo da letra no inconscien-te. Uma resistncia ao fato da assinatura" (p. 329).

    A partir de tal perspectiva, como poderia uma traduo do texto de Freud fugir a essa desconstruo, a essa resistncia? Como poderia a traduo de Laplanche conseguir implementar seus princpios e suas intenes ingenuamente "louvveis"? Como poderia Laplanche conseguir projetar sua traduo acima e alm do mito da "horda selvagem", ao mesmo tempo em que revela to explicitamente a violncia de sua paixo pelo texto de Freud? Nesse contexto, seu projeto de traduo apropriada-mente descrito como uma "bomba tranqila".5 Paradoxalmente, como uma "bomba tranqila", que poderia ser, ao mesmo tem-po, explosiva e silenciosa, a tentativa explcita de Laplanche de reverenciar e proteger Freud tambm uma forma de bani-lo de seu prprio texto para tomar seu lugar autoral. De forma seme-lhante, conforme declara, pretende apagar do texto de Freud os traos da histria ao mesmo tempo em que revela ter tirado pro-veito de seu desenvolvimento, "da experincia fornecida pela tro-ca de idias, to rica na Frana depois de vrias dcadas" (Volich, p. B-10). E, finalmente, o projeto de Laplanche tambm para-doxal no sentido de que no consegue apagar as marcas de seu desejo e de sua perspectiva inscritas no texto que pretende "dei-xar intacto". No centro desse paradoxo, a concepo de fidelida-de perfeitamente adequada j que em seu nome que o tradutor impe ao texto que traduz os significados produzidos dentro de seu prprio e inevitvel quadro de referncias. Da mesma forma que Freud encontra em Leonardo e, por diferen-tes razes, tambm em seus discpulos/dissidentes, material apropriado para construir suas teorias, tambm Laplanche en-contra em sua traduo de Freud uma oportunidade para emitir declaraes tericas sobre a "verdadeira" essncia da psican-lise.

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise 47

    Nao h, contudo, nada idiossincrtico em relao ao que te-nho considerado aqui as motivaes e as fantasias subliminares de Laplanche. Qualquer tradutor, como qualquer leitor, inevita-velmente ensaia os mesmos gestos edipianos que tenho atribudo a Laplanche em sua relao com o texto de Freud. Qualquer tra-duo , portanto, ao mesmo tempo, parricida e protetora na medida em que necessariamente toma posse do lugar e do texto de outro com o objetivo de faz-lo viver numa lngua e num mo-mento diferentes. Alm disso, alguma verso do "romance fami-liar" que aproximou Freud e Leonardo da Vinci, Freud e Lacan, Laplanche e Lacan, Laplanche e Freud, se repete em cada rela-o que se pode estabelecer entre um sujeito e um objeto, um lei-tor e um texto, um tradutor e um autor. Qual tem sido, afinal, o enredo de minha prpria anlise dos objetivos e princpios da traduo empreendida por Laplanche? Como Alan Bass, que analisa as motivaes "escondidas" que determinaram o "erro" de traduo de Freud em seu ensaio sobre da Vinci; como Lacan, em sua busca da "Coisa Freudiana", ou como o prprio Laplan-che, que supostamente teve acesso ao "verdadeiro" original freu-diano, eu tambm tenho a pretenso de mostrar a Laplanche algo que ele no pde ver em seu trabalho. Alm disso, como Freud, que encontra no texto de Leonardo da Vinci uma "descul-pa" para desenvolver suas teorias sobre a sexualidade infantil, e como Lacan e Laplanche que, em nome de uma fidelidade abso-luta a Freud, reescrevem a psicanlise a partir de suas prprias perspectivas, eu descubro nos comentrios de Laplanche uma oportunidade para desenvolver minhas reflexes sobre teoria de traduo. A partir dessa viso, toda interpretao, enquanto pro-duto de uma relao transferenciai, , em algum nvel, sempre fe-tichista, j qe estabelece como seu principal objetivo apontar algo que no se encontra realmente no texto.6 De forma seme-lhante, o desenvolvimento de uma teoria ou de um conceito tam-bm se origina a partir de uma relao em que o sujeito se encontra desde sempre emaranhado ao objeto que supostamente deve descobrir ou criar. Nesse sentido, qualquer forma de escri-tura como qualquer ato criativo seja ela a escritura de uma teoria ou de uma traduo, , em algum nvel, tambm a escritu-ra de uma autobiografia. Como prope Roustang, mesmo o mito da "horda selvagem" desenvolvido por Freud em Totem e Tabu

  • 48 Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    que se tornou, alis, a cena primria que inspirou este trabalho pode ter sido inconscientemente sugerido pela prpria experin-cia de Freud com seus discpulos (p. 16).

    Num mundo em que os significados so convencionais e ar-bitrrios e, portanto, no intrnsecos s coisas, nosso destino hu-mano remontar os mesmos enredos e as mesmas cenas que apenas comecei a descrever aqui, sempre engajados numa luta si-lenciosa pela posse do significado que sempre provisrio e es-quivo. Como escreve Stanley Fish, os significados

    so produzidos por um sistema de articulao do qual ns, quer como falantes, quer como ouvintes, no podemos nos distanciar porque nos encontramos situados dentro dele [... e] j que esse sistema (chame-o de diffrance ou de incons-ciente) o terreno no-articulado dentro do qual ocorre a especificao, o mesmo no pode ser especificado e sempre excede, deixa sobras, escapa s especificaes que autoriza, (p. 17)

    Se aceitarmos que a relao entre significante e significado sempre contingente e inconstante implcita na noo do signo saussuriano levado a srio , no teremos que tentar encontrar uma resposta definitiva, algortmica quela "questo inevitvel" ("qual a melhor correlao entre o texto A na lngua-fonte e o texto B na lngua-alvo?") em que Steiner sintetiza as principais preocupaes de todas as teorias de traduo. Se aceitarmos que o chamado "original" composto de significados que so provi-srios, dependentes da leitura de um sujeito dotado de um in-consciente e sempre situado dentro de uma perspectiva tambm podemos aceitar a posio autoral de qualquer tradutor, ao mesmo tempo em que podemos desistir da fantasia da "super-traduo", para que enfrentemos os desafios dessa atividade em termos mais realistas.

    NOTAS

    1. Uma verso preliminar deste trabalho, em ingls, ser publicada em Ilha do Desterro, n 26 (Florianpolis, Universidade Federal de Santa Ca-tarina). Uma segunda verso, tambm em ingls, ser publicada numa

  • Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise 49

    coletnea organizada pela State University of New York at Binghamton, E.U.A. A primeira verso foi apresentada durante o painel "The Freudian Controversy" no congresso "Translation in the Humanities and lhe Social Saences", patrocinado pela SUNY-Binghamlon, em 27 de setembro de 1991.

    2. Esta e todas as outras tradues do francs e do ingls so minhas.

    3. A propsito, ver tambm Arrojo 1990, alm de "Maria Mutema, o Poder Autoral e a Resistncia Interpretao", "Sobre Interpretao e Asceticismo: Reflexes em torno e a partir da Transferncia", e "A Tra-duo e o Flagrante da Transferncia: Algumas Aventuras Textuais com Dom Quixote e Pierre Menard", neste volume.

    4. Numa carta de 1917 a Groddeck, citado em Roustang, p. 7.

    5. Novamente, Laplanche parece estar emulando Freud, que escreveu pelo menos dois longos ensaios como parte de sua estratgia de neutra-lizar a influncia de jung , um discpulo que se tornou dissidente. Apro-priadamente, um deles foi Totem e Tabu, em que teoriza sobre o mito da "horda selvagem", ou seja, sobre os filhos que se matam uns aos outros com o objetivo de tomar o lugar paterno. O outro livro foi Sobre a Histria do Movimento Psicanaltico que, de acordo com Freud, deveria produzir "o grande efeito" de uma "bomba" contra o inimigo (ver Roustang, p. 4).

    6. Para uma discusso mais ampla sobre fetichismo e interpretao, ver "A Literatura como Fetichismo: Algumas Conseqncias para uma Teo-ria de Traduo", neste volume.

    BIBLIOGRAFIA

    ARROJO, Rosqmary. "Literariness and the Desire for Untranslatability: Some Rcflctions on Grande Serto: Veredas". TextContext 5. Heidel-berg: Julius Groos Verlag, 1990, pp. 75-81.

    ARROJO, Rosemary. "Maria Mutema, o Poder Autoral e a Resistncia Interpretao", "Sobre Interpretao e Asceticismo: Reflexes em torno e a partir da Transferncia", "A Literatura como Fetichismo: Algumas Conseqncias para uma Teoria de Traduo" e "A Tra-duo e o Flagrante da Transferncia: Algumas Aventuras Textuais com Dom Quixote e Pierre Menard", neste volume.

    BASS, Alan. "On the History of a Mistranslation and the Psychoanalytic Movement". In Joseph F. Graham, Difference in Translation. Ithaca: Cornell University Press, 1985, pp. 102-141.

  • 50 Laplanche Traduz o Pai da Psicanlise

    FISH, Stanley. "Being Interdisciplinary Is So Very Hard to Do". Profes-sion 89. Nova York: MLA, 1989, pp. 15-22.

    FREUD, Sigmund. On lhe Histoiy of the Psychoanalytic Movement. In J. Strachey (org.), The Standard Edition of the Complete Works of Sig-mund Freud, v. XIV. Londres: Hogarth Press, 1953-74.

    FREUD, Sigmund. "On Infantile Sexual Theories." In J. Strachey (org.). The Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud, v. IX. Londres: Hogarth Press, 1953-74.

    FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci and a Memory ofHis Childhood". In The Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud, v. XI. Londres: Hogarth Press, 1953-74.

    JOHNSON, Barbara. The Frame of Reference: Poe, Lacan, Deriida. The Cri-ticai Difference. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1980.

    , . "TakingFidelity PhilosophicaUy." In Joseph F. Graham (org.), Dif-ference in Translation. Ithaca: Cornell University Press, 1985, pp. 142-148.

    JONES, Ernest. The Life and Work of Sigmund Freud. Nova York: Basic, 1955.

    LAPLANCHE, J.; BOURGUIGNON, A.; COTET, P.; ROBERT, F. Tra-duire Freud. Paris: Presses Universitaires de France, 1989.

    MULLER, John P.; RICHARDSON, W. / . Lacan and Language - A Rea-der's Guide to Ecrits. Nova York: International Universities Press, Inc., 1982.

    ROUDINESCO, Elizabeth./ac^Ms Lacan & Co. - A History of Psychoana-lysis in France, 1925-1985 (trad. de Jeffrey Mehlman). Chicago: The University of Chicago Press, 1990.

    ROUSTANG, Franois. Dire Masteiy - Discipleship from Freud to Lacan (trad. de Ned Lukacher). Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1982.

    SOLLERS, Philippe. "Freud's Hand." Yale French Studies 55/56, 1977, pp. 329-337.

    STEINER, George. After Babel - Aspects of Language and Translation. Londres, Oxford, Nova York: Oxford University Press, lf75.

    SULEIMAN, Susan R. Subversive lntent - Gender, Politics, and the Avant-Garde. Cambridge: Harvard University Press, 1990.

    VOLICH, R. M. "Os Dilemas da Traduo Freudiana" e "Os Postulados da Razo Tradutora". Folha de S. Paulo, "Folhetim", 30 de julho de 1989, pp. 2-6 e p p . 6-11.

  • 4. A TRADUO COMO PARADIGMA DOS INTERCMBIOS INTRAIINGSTICOS1

    Aprender a hablar es aprender a traducir; enando ei nino pregunta a su madre por ei significado de esta o aquella palabra, Io que realmente le pide es que traduzea a su lenguaje ei trmino desconocido. La traduecin dent ro de una lengua no es, cn este sentido, essencialmente dis-tinta a Ia traduecin entre dos lenguas y Ia historia de to-dos los pueblos repite Ia experincia infantil: incluso Ia tribu ms aislada tiene que enfrentarse, en uni momento o en otro, ai lenguaje de un pueblo extrano.

    Octavio Paz Traduecin: Literatura y Literalidad

    What is Lenin doing when he writes, across from a Hege-lian statement, "read!" (interpret? transform? translate? understand)?

    Jacques Derrida Positions

    Bragmatists would like to replace the desire for objectivi-ty the desire to be in touch with a reality which is more than some community with which we identify ourselves with the desire for solidarity with that community.

    Richard Rorty "Science as Solidarity"

    Ao e q u a c i o n a r a fala t r aduo , Octavio Paz estabelece um p a r e n t e s c o pe r igoso e n t r e duas at ividades q u e t m merec ido lu-gares h i e r a r q u i c a m e n t e dis t intos n o a p e n a s na reflexo que se

  • 52 A Traduo como Paradigma

    produz sobre a linguagem, mas, sobretudo, na sua matriz, na mi-tologia que compe o chamado senso comum e que determina onde se situam e como se comportam os significados. Ao sugerir que um processo tradutrio j se instala mesmo entre a criana, a me e a suposta proteo da chamada lngua materna, e ao comparar o conforto dessa relao e desse aprendizado domsti-co ao confronto entre a "tribo mais isolada" com um "povo es-trangeiro", o comentrio de Paz, se levado estritamente a srio, provoca uma rachadura importante nas concepes logocntri-cas de linguagem que reservam aos intercmbios lingsticos ocorridos nos limites do que convencionamos chamar de uma "mesma" lngua o privilgio de uma suposta transmisso direta de significados, e sem "perdas", de interlocutor para interlocu-tor. Se o que ocorre entre me e filho no espao da aquisio da lngua materna anlogo ao relacionamento que se deve estabe-lecer entre povos diversos, e entre lnguas estrangeiras, para que haja alguma forma de traduo ou de comunicao podemos concluir que a proximidade possibilitada por essa analogia faz da traduo um paradigma dos mecanismos da linguagem, revelan-do-se, como tambm conclui George Steiner, uma metfora da "condio perptua e inescapvel da significao" (pp. 260-261). A comparao da fala ou da leitura produzidas dentro da lngua materna traduo "propriamente dita", ao intercmbio entre significados de lnguas distintas (que o logocentrismo freqente-mente v como difcil e frustrante), permite uma reflexo desmis-tificadora no apenas sobre os processos de significao que constituem a fala, a leitura e a traduo, mas, tambm, sobre o que aproxima essas atividades e at mesmo uma lngua "estran-geira" da outra.

    Uma das relaes mais inocentes que se tem permitido tra-duo estabelecer com outros intercmbios lingsticos a que a aproxima da leitura atravs da estratgia cuidadosa que localiza num ato de leitura a concepo de qualquer traduo. Como sa-bem os tradutores bem-sucedidos, nenhuma leitura to atenta e to cuidadosa quanto aquela que compe a mais simples das tra-dues bem realizadas. Ao comentar sua traduo de um poema de Maiakvski, Haroldo de Campos escreve: "Foi, para ns, a me-lhor leitura, que poderamos jamais ter feito do poema, colando-o sua matriz teortica e revivendo a sua praxis, uma leitura verda-

  • A Traduo como Paradigma 53

    deiramente crtica" (p. 33, grifo do autor). Entre tantos outros, Gregory Rabassa tambm descreve a intensidade da leitura que propicia a traduo: "Sempre achei que a traduo , em essn-cia, a leitura mais prxima que se pode fazer de um texto. O tra-dutor no pode ignorar palavras 'menos importantes', mas deve considerar todo e qualquer detalhe" (citado em Biguenet e Schul-te, p. X).2 At mesmo a inverso simtrica da relao tradu-o/leitura a noo mais comprometedora para a leitura de que esta tambm uma forma de traduo pode ser considera-da no-problemtica desde que se mantenha dentro dos padres estabelecidos pelo logocentrismo. Ou seja, desde que aquilo que necessariamente implica uma traduo o desencontro com a origem, a diferena no tempo e no espao que separa o original de sua tentativa de repetio e a interferncia de pelo menos uma segunda voz autoral no processamento da significao possa ser neutralizado e encaixado no bom comportamento pre-visto pelo desejo racionalista de equivalncias perfeitas e estveis, imunes a qualquer perspectivismo.

    Erwin Theodor, por exemplo, chega a reconhecer que um processo de traduo pode ocorrer mesmo dentro de Utn mesmo sistema lingstico:

    A traduo no visa exclusivamente passagem de um siste-ma lingstico para outro, ma