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ROSELI A. C. FONTANA __________ I Bacharel e licenciada em Pedagogia pela UNICAMP Ç\ ftó^ Mestre em Psicologia Educacional pela UNICAMP Qt^v\k^ Docente de Prática de Ensino na Escola de 1? grau na A^ ^ Faculdade de Educação da UNICAMP r^ ^ MARIA NAZARÉ DA CRUZ Bacharel e licenciada em Psicologia pela FFCL-USP Ribeirão Preto SP Mestre em Psicologia Educacional pela UNICAMP Docente de Psicologia Educacional na Universidade Federal de Uberlândia MG PSICOLOGIA í PEDAGÓGICO ATUAL EDITORA W

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ROSELI A. C. FONTANA

__________ I Bacharel e licenciada em Pedagogia pela UNICAMP

Ç\ ftó^ Mestre em Psicologia Educacional pela UNICAMP

Qt^v\k^ Docente de Prática de Ensino na Escola de 1? grau na

A^ ^ Faculdade de Educação da UNICAMP

r^ ^ MARIA NAZARÉ DA CRUZ

Bacharel e licenciada em Psicologia pela FFCL-USP

Ribeirão Preto — SP

Mestre em Psicologia Educacional pela UNICAMP

Docente de Psicologia Educacional na Universidade

Federal de Uberlândia — MG

PSICOLOGIA

í

PEDAGÓGICO

ATUAL

EDITORA

W

EDITORA AFILIADA

© Roseli A. C. Fontana Maria

Nazaré da Cruz

Copyright desta edição: SARAIVA S.A. LIVREIROS EDITORES, São Paulo, 1999

Todos os direitos reservados.

Catalogação na fonte do

Departamento Nacional do Livro

F679p Fontana, Roseli

Psicologia e trabalho pedagógico / Roseli Fontana, Maria Nazaré da Cruz. —

São Paulo : Atual, 1997. 240p. cm. — (Formação do educador).

ISBN 85-7056-902-5 Suplementado por manual do professor. Inclui bibliografia.

1. Psicologia educacional. 2. Psicologia da aprendizagem. I. Cruz, Maria

Nazaré da. II. Título. III. Série. CDD-370.15

Psicologia e Trabalho Pedagógico

Desenvolvimento de produto

Gerente: Wilson Roberto Gambeta Editora: Vitória

Rodrigues e Silva Assessora editorial: Oscarina Camillo Editor de texto: Noé G. Ribeiro

Preparação de texto: Célia Tavares Editora de arte: Thaís de Bruyn Ferraz Pesquisa iconográfico: Cristina

Akisino Projeto gráfico: Irineu Sanches Projeto de capa: Glair Alonso

Arruda Imagem de capa: Criança brincando, 1876, Thomas Eakins

Produção editorial

Gerente: Cláudio Espósito Godoy Coordenador: Milton M. Ishino Assistente:

Márcia Regina Novaes Revisão: Maria Luiza Xavier Souto (coord.) Vera Lúcia

R Delia Rosa Editor de arte: Celson Scotton Chefe de arte: Irineu Sanches

Diagramação: Renata Susana Rechberger Editoração eletrônica: Silvia Regina

E. Almeida (coord.)/Grace Alves Digitação: Rosângela de Oliveira

Vargas/Wagner I. Pin

Produção gráfica Gerente: Antônio Cabello Q. Filho

Coordenador: José Rogério L. de Simone Filmes

(D.T.P.): Binhos SARAIVA S.A. LIVREIROS

EDITORES CENTRAL DE DISTRIBUIÇÃO

Av. Marquês de SãoVieente. 1697 — Barra Funda — 01139-904 São Paulo — SP — Caixa Postal 2362 — Telex: 11 26789

Fone: PABX (0**11) 861-3344 — FAX (()** 11) 861-3308 — FAX - Vendas (0**11) 861-3268

ISBN 85-7056-902-5

NOS PEDIDOS TELEGRAFICOS BASTA CITAR O CÓDIGO ADSS 866IA

apresentação

Todos os momentos do dia de todos os dias da vida eram para aprender e en-sinar e de novo ensinar e aprender, vivendo e brincando, trabalhando e sendo...

(Carlos Rodrigues Brandão, Lutar com a palavra.)

V 1

»^^ ntendemos assim a educação: algo sempre presente cm nossas vidas. m mesmo quando não a percebemos no amontoado de fazeres e saberes _JLBMBH

corriqueiros do cotidiano. Ela está na voz da mãe que acalanta e na mão do avô que ajuda a criança a

segurar a colher e levá-la à boca. Está na birra e na palmada, no traço marcado na areia ou no papel, no cabo de vassoura que se transforma em cavalinho.

Não é coisa só da escola... Ela se faz também na escola. Está na amarelinha riscada no pátio, na letra escrita na lousa, na dobradura, no

problema de matemática, no livro de histórias, nas conversas do recreio. E assim é porque a prática do fazer-se homem dá-se pelo gesto, pelo jogo, pela

palavra, pela mediação de outros homens, entre risos e choros, silêncios, cumplicida-des, desigualdades. A educação é expressão do humano.

Como vida que vem sendo tecida e transformada de geração em geração, a edu-cação é o lugar da psicologia — prática humana de teorização sobre o que somos. Somos nós a matéria sobre a qual a educação e a psicologia se debruçam. A primeira no esforço do fazer, do "lavrar e plantar no campo do nosso próprio corpo", como diz Carlos Rodrigues Brandão. A segunda, na busca do entender e do explicar esse fazer-se humano.

Orientadas por essas concepções, encaramos o desafio de escrever este livro. Um livro carregado do desejo de manter vivos e próximos os sons e o movimento das atividades e das relações entre as pessoas, para que, assim sendo, pudesse nos ajudar, como professores em atuação e em formação, a estudar a criança, descobrindo a beleza dos seus modos de dizer e de compreender o mundo.

Um livro em que as teorias não ficassem desgarradas dos fazeres e saberes coti-dianos e em que os psicólogos e seu trabalho não se convertessem num amontoado maçante de nomes e idéias que a gente não sabe bem por que teve de aprender.

Para isso, procuramos partir sempre das práticas educativas, tal qual se desen-volvem na escola, e de sua problematização: Como se processam? Que concepções acerca do homem e de seu desenvolvimento as sustentam?

Delineadas as questões, voltamo-nos para as explicações e análises desenvolvi-das pelos estudos em psicologia, buscando aí elementos para discutir e refletir sobre elas.

Procuramos também entretecer as análises e discussões com episódios escolares e não escolares, envolvendo as relações entre adultos e crianças e entre crianças, trazendo, através deles, seus dizeres e sua produção gráfica.

Assim, cada uma das unidades deste livro começa na escola, dialoga em seguida com os psicólogos, olha para as práticas educativas não escolares constitutivas do desenvolvimento da criança e volta à escola numa tentativa de releitura do trabalho pedagógico em seus limites e possibilidades.

Na primeira unidade, a relação entre as práticas pedagógicas e as teorias da psicologia é tematizada a partir das quatro vertentes teórico-metodológicas que mar-cam as discussões sobre a especificidade do humano no nosso século: o inatismo-maturacionismo, o comportamentalismo, o construtivismo piagetiano e a abordagem histórico-cultural.

Nas três unidades seguintes, privilegiamos como foco de discussão e de análise o desenvolvimento da atividade da criança, tal qual acontece na escola e fora dela. Nessas unidades, nossos interlocutores no campo da psicologia são Piaget e Vygotsky, em cujas explicações nos baseamos para examinar as relações da criança com a palavra, com o jogo, com o desenho e com a escrita.

Ao final de cada capítulo, você encontrará sugestões de atividades e de leituras variadas, que poderão auxiliá-lo a retomar o estudo do texto e a realizar pequenos trabalhos de iniciação à pesquisa, constituídos por observações, levantamento de dados e análise das práticas educativas e da produção cultural relativa ao desenvolvi-mento infantil.

Se conseguimos estar próximos de vencer o desafio a que nos propusemos, você, leitor, é quem nos dirá...

Roseli e Nazaré.

Sumário

Unidade 1 — Desenvolvimento e aprendizagem: as abordagens da psicologia

Introdução ................................................................................................................ 2

Capítulo 1 — A psicologia na escola ...................................................................... 3

Escola é lugar de aprender. E de ensinar ................................................................... 3 A psicologia e a educação escolar ............................................................................. 4 O que é ensinar? Como a criança aprende? ............................................................... 5 O estudo científico da criança: um pouco de história ................................................. 6 Sugestão de atividades ............................................................................................... 9 Sugestão de leituras .............................. • .................................................................. 10

Capítulo 2—A abordagem inatista-maturacionista ............................................. 11

A questão das diferenças individuais e a hereditariedade da inteligência: "filho de peixe, peixinho é?" ................................................................. 12 Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de cada idade? .................................... 14 Pesquisando a criança: a construção dos testes de inteligência .................................. 16 Pesquisando a criança: a elaboração das escalas de desenvolvimento ...................... 17 A questão dos comportamentos típicos ..................................................................... 18 As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e as influências do inatismo-maturacionismo na escola .......................................................................... 20 Sugestão de atividades ............................................................................................... 22 Sugestão de leituras ................................................................................................... 23

Capítulo 3—A abordagem comportamentalista ................................................... 24

Mas o que é comportamento? ................................................................................... 25 Comportamento e aprendizagem .............................................................................. 26 Pesquisando a criança: condicionamento e modelagem do comportamento ............ 28

A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma pesquisa de Watson ...... 28 Modelagem do comportamento: as pesquisas de Skinner .................................. 29

Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência do comportamentalismo na escola ................................................................................ 31 Sugestão de atividades .............................................................................................. 32 Sugestão de leituras .................................................................................................. 42

Capítulo 4—A abordagem piagetiana .................................................................. 43

Conhecimento e adaptação: os processos de assimilação e acomodação .................. 45 A noção de esquema .................................................................................................. 46 A noção de equilibração ............................................................................................ 47 A concepção sobre estágios de desenvolvimento ...................................................... 48 Os estágios do desenvolvimento cognitivo ................................................................ 48

O período sensório-motor .................................................................................... 48 O período pré-operatório ..................................................................................... 50 O período das operações concretas ...................................................................... 51 O período das operações formais ......................................................................... 52

Pesquisando a criança: o método clínico .................................................................. 53 Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem piagetiana na escola ............................................................................... * ................ 54 Sugestão de atividades .............................................................................................. 55 Sugestão de leituras .................................................................................................. 56

Filme recomendado ............................................................................................. 56

Capítulo 5 —A abordagem histórico-cultural ...................................................... 57

A transformação do biológico em histórico-cultural ................................................ 58 O uso de instrumentos ......................................................................................... 58 O uso de signos ........................................................................... '. ...................... 59 O papel do outro e a internalização ...................................................................... 60

Pesquisando a criança: o papel do signo no desenvolvimento .................................. 61 Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem histórico-cultural na escola .................................................................... 63 O papel da escolarização ......................................................................................... 65 Sugestão de atividades .............................................................................................. 67 Sugestão de leituras .................................................................................................. 68

Filmes recomendados ......................................................................................... 68

Capítulo 6 — As abordagens sobre desenvolvimento e aprendizagem e a prática pedagógica .................................................................... 69

Os diferentes modos de olhar ................................................................................... 70 Cada uma das abordagens explica um pouco? .......................................................... 71 A atividade da criança como foco de análise ............................................................ 72 Sugestão de atividades .............................................................................................. 73 Sugestão de leitura .................................................................................................... 74

Filme recomendado ............................................................................................. 74

Unidade 2 — A elaboração conceituai

Introdução ......... ". .................................................................................................... 76

Capítulo 7 —A relação entre pensamento e linguagem....................................... 77

O que a psicologia nos diz ........................................................................................ 80 A linguagem como comportamento .................................................................... 80 A linguagem como função da inteligência .......................................................... 81 A linguagem como atividade simbólica constitutiva .......................................... 83

Sugestão de atividades ......................................................................... .; .................. 87 Sugestão de leituras .................................................................................................. 88

Capítulo 8 — A criança e a palavra ...................................................................... 89

Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do pensamento lógico: do símbolo individual aos conceitos .............................................................. 89

O desenvolvimento da função simbólica ............................................................ 90 Os primeiros esquemas verbais ........................................................................... 90 O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras ............................... 94

Vygotsky e a elaboração conceituai — o desenvolvimento do significado da palavra na criança ..................................................................................................... 95

As primeiras palavras .......................................................................................... 96 A elaboração das funções analítica e generalizadora da palavra ......................... 97 O pensamento por complexos e os conceitos potenciais ..................................... 99 O papel do outro no desenvolvimento da elaboração conceituai ........................ 101

Sugestão de atividades .............................................................................................. 104 Sugestão de leituras .................................................................................................. 106

Capítulo 9 — O papel da escola ............................................................................ 1°7

Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de aprender pensando .......................... 109 Escola é lugar de compartilhar conhecimentos ......................................................... 110 Sugestão de atividades .............................................................................................. 116

Unidade 3 — A brincadeira e o desenho da criança

Introdução................................................................................................................ 118

Capítulo 10 — O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança ............. 119 Porque as crianças brincam? ..................................................................................... 120

A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget ............................................ 120 As relações sociais com o mundo adulto: a concepção de Vygotsky ................... 121

Brincando de estação de trem ................................................................................... 123 Aprendendo a olhar a brincadeira .............................................................................. 124 Brincadeira é coisa séria ........................................................................................... 125 Objetos e significados na brincadeira ....................................................................... 126 O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança ............................................. 127

A brincadeira e a função simbólica ..................................................................... 127 A criação de zonas de desenvolvimento proximal ............................................... 128

Sugestão de atividades .............................................................................................. 130 Sugestão de leituras ................................................................................................... 13]

Capítulo 11 —A brincadeira na vida e na escola ................................................. 132

A-perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da brincadeira ............................. 132 A perspectiva de Vygotsky sobre o desenvolvimento da brincadeira ........................ 134 Brincando, aprendendo e sendo ................................................................................ 136

Brincando na escola ............................................................................................ 137 O lugar da brincadeira na escola ......................................................................... 139 Aprender e ensinar a brincar ................................................................................ 141

Sugestão de atividades ............................................................................................... 143 Sugestão de leitura .................................................................................................... 143

Capítulo 12 — O desenho infantil ......................................................................... 144

Quando o traço no papel recebe um nome ................................................................. 145 A criança desenha o que sabe e não o que vê ............................................................ 147 O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet ........................................... 148 A criança é realista na intenção: a perspectiva de Piaget ........................................... 150 O realismo visual é aprendido: a perspectiva de Vygotsky ........................................ 151 Sugestão de atividades .............................................................................................. 153 Sugestão de leituras ................................................................................................... 154

Capítulo 13 — Desenhando na escola .................................................................... 155

Analisando o processo de elaboração do desenho ..................................................... 157 E a criatividade, onde fica? ....................................................................................... 158 Desenhando e aprendendo ......................................................................................... 159

A escola e o desenho ................................................................... \ ...................... 161 "O lápis é o melhor dos olhos..." ......................................................................... 162

Sugestão de atividades ..............................................................................................

165 Sugestão de leituras ..................................................................................................

166

Unidade 4 — O desenvolvimento da escrita na criança

Introdução ................................................................................................................

168

Capítulo 14 —A escrita e a alfabetização .............................................................. 169

Escrita e poder ........................................................................................................... 170 Alfabetização e desenvolvimento da escrita .............................................................. 171 Sugestão de atividades ............................................................................................... 174 Sugestão de leituras ................................................................................................... 175

Filme recomendado ............................................................................................. 175

Capítulo 15 —As relações da criança com a escrita ............................................. 176

A criança constrói a escrita........................................................................................ 177 A criança integra-se às práticas sociais de escrita ...................................................... 180 Sugestão de atividades .............................................................................................. 185 Sugestão de leituras ................................................................................................... 187

Filme recomendado ............................................................................................. 187

Capítulo 16 — O estudo experimental da construção da escrita pela criança.. 188

A metodologia da pesquisa ....................................................................................... 189 As fases do processo de construção da escrita pela criança ....................................... 190

A construção das primeiras formas de diferenciação: o período pré-silábico ...... 190 A fonetização da escrita: do período silábico ao período alfabético ..................... 193

Sugestão de atividades ............................................................................................. 195 Sugestão de leituras ................................................................................................... 195

Capítulo 17 — Da atividade simbólica à simbolização na escrita ....................... 196

O estudo experimental do simbolismo na escrita ..................................................... 197 O procedimento metodológico ............................................................................ 197 A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos mecânicos às marcas topográficas ......................................................................................... 198 A elaboração da função instrumental da escrita: o processo de diferenciação das marcas utilizadas .................................................................... 199 O processo de alfabetização — a relação entre a escrita primitiva da criança e a escrita convencional ...................................................................... 205

Sugestão de atividades .............................................................................................. 206 Sugestão de leituras ................................................................................................... 207

Capítulo 18 — Escrevendo e lendo na escola ........................................................ 208

Por que o fracasso da escola em ensinar a escrita e a leitura? .................................. 208 Como o convencional tem sido ensinado? ................................................................. 210 E as crianças? ............................................................................................................ 211 Pra quem, o que e por que escrevo? .......................................................................... 212 O que é o erro? Os erros são todos iguais? ................................................................ 215 Mas como corrigir?.................................................................................................... 219 Sugestão de atividades ............................................................................................... 221 Sugestão de leituras ................................................................................................... 225

Bibliografia............................................................................................................... 226

Unidade 1

■|M

Introdução

f I 1

anta coisa acontece na escola. Professores e crianças

aprendem e ensinam, participando de uma rede de re- ■JBL» lações: históricas, sociais, econômicas,

pedagógicas, afetivas, intelectuais... São múltiplos os olhares possíveis na tentativa

de apreender a complexidade dessa instituição. A psicologia é apenas um deles. Tematizando os processos de de-

senvolvimento e de aprendizagem, analisando a atividade da criança, ela vem produzindo conhecimentos que nos possibilitam ler e interpre-tar certos aspectos do ensinar e aprender.

Mas a psicologia não é única. É múltipla. No decorrer deste século, importantes vertentes teóricas foram construídas e deixaram suas mar-cas na educação. São elas que abordaremos, nesta primeira unidade, tematizando, ainda, a relação entre as teorias e a prática pedagógica.

No capítulo 1, apresentaremos um modo de conceber as relações entre psicologia e educação, trazendo também um pouco da história social da criança e do estudo científico existente sobre ela.

No capítulo 2, trataremos da abordagem inatista-maturacionista. No capítulo 3, da abordagem comportamentalista. No capítulo 4, da abordagem piagetiana. No capítulo 5, da abordagem histórico-cultural. Nesses quatro capítulos, enfocaremos os conceitos fundamentais

relacionados a cada uma dessas abordagens, apresentando seus princi-pais teóricos e uma amostra das pesquisas que as fundamentam, e apon-taremos as influências que exerceram e ainda exercem na escola e no trabalho pedagógico.

No capítulo 6, discutiremos as relações entre teoria e prática.

Capítulo 1

A psicologia na escola

Escola é lugar de aprender. E de ensinar

É também lugar de tomar merenda, de jogar futebol, de fazer fila, de ficar triste ou se alegrar. As crianças escrevem, somam ou subtraem, copiam, perguntam. Elas brigam, choram, se machucam. Fazem gran-des amigos. O professor explica a lição, lê histórias, pega na mão da criança que começa a escrever. Ele também grita, fica bravo, perde a calma. Tem que fazer chamada, corrigir prova, preparar aula, preencher papelada. As crianças às vezes têm fome, às vezes estão doentes, às vezes estão sadias

e felizes. De onde ..*.< .JSS^JSBÊÊbi^íe^Zf' elas vêm? Do bairro ao lado, da favela ali em cima, do outro lado da avenida, do sítio a alguns quilômetros. Falta lápis e, por vezes, até o sapato. Trinta (ou quarenta?) em cada sala. Lousa nova, lousa gasta. Carteiras meio quebradas. O diretor se preocupa com a reforma do prédio, orienta e fiscaliza

os professores, tem um monte de papel para assinar, é homenageado na formatura. Na escola tem mais gente: merendeira, servente, secretário, inspetor... O salário está baixo. A vida está dura. Mas escola é lugar de ensinar e de aprender.

Escola: espaço

de aprender e de

brincar.

Quando pensamos na complexidade de tudo o que ocorre na esco-la, percebemos a multiplicidade de relações em que está envolvido o "ensinar e aprender". Relações econômicas e materiais, relações sociais e institucionais, relações entre conteúdos e métodos de ensino, crenças, concepções, teorias. O cotidiano da escola é sempre permeado por tudo isso e, dessa forma, não é tarefa simples procurar apreendê-lo, analisá-lo, compreendê-lo.

Fonte: Nova Escola, maio/91.

A escola tem uma longa história. Em cada período histórico ela assume novas características quanto a funções, funcionamento, idéias e concepções que embasam suas práticas. As transformações dessas ca-racterísticas sempre se relacionaram a mudanças da sociedade: mudan-ças econômicas, políticas, sociais e ideológicas.

O que acontece na escola é, assim, determinado por uma diversida-de de fatores, o que faz com que a educação escolar seja objeto do inte-resse e de pesquisas de várias ciências: a psicologia, a economia, a so-ciologia, a história, entre outras.

Cada uma delas, de acordo com suas especificidades, produz análi-ses de aspectos determinados da educação escolar, sem que nenhuma consiga (ou mesmo pretenda) isoladamente dar conta da complexidade da prática pedagógica.

A psicologia e a educação escolar

A psicologia é apenas uma entre as ciências que concorrem para a reflexão sobre a educação escolar. Sendo uma das ciências que estudam o homem, a psicologia tem se ocupado de uma grande variedade de temas: a afetividade, o desenvolvimento da criança, a velhice, a apren-dizagem, as relações sociais e institucionais, a deficiência mental, as relações de trabalho, a saúde mental, entre outros.

Muitas das pesquisas e teorias psicológicas que têm servido à prá-tica pedagógica não foram elaboradas com esse objetivo. Assim, as questões e interesses dos psicólogos são às vezes mais abrangentes e às vezes mais restritos do que aqueles colocados pelos agentes do proces-so educacional. Esses dois âmbitos, o psicológico e o pedagógico, rara-mente coincidem; portanto, não podem ser confundidos.

Considerando que o papel social da escola é essencialmente definido processo de transmissão/assimilação do conhecimento, enten-A

P s

que as contribuições fundamentais da psicologia à prática peda- - o5n aauelas que podem lançar luz sobre alguns aspectos do

"en-g0gica sdu *ii sinar e aprender .

O que é ensinar? Como a criança aprende?

Essas são questões importantes quando se objetiva construir uma prática pedagógica que possa garantir a todas as crianças um processo de' aprendizagem significativo.

Todos nós já temos, em alguma medida, res-postas a essas questões. Se nos perguntarmos, por exemplo, como se aprende a fazer bolo, uma infinidade de respostas pode aparecer: a gente aprende fazendo, seguindo uma receita, vendo outra pessoa fazer, seguindo as orientações de alguém. Quando 0 primeiro bolo não dá certo, podemos ainda dizer que "errando é que se aprende".

E ensinar, o que é? Como se ensina? Novamente uma série de respostas acaba emergindo: ensinar é transmitir conhecimentos, técnicas, valores, é deixar o outro fazer, orientando, explicando, "dando a receita", fazendo junto...

Quando se trata de criança, as idéias que temos sobre aprendiza-gem quase sempre se relacionam ao seu desenvolvimento, já que habi-tualmente admitimos que aprendizagem e desenvolvimento são proces-sos, de alguma forma, inter-relacionados.

Quando dizemos, por exemplo, que, para ensinar à criança uma coisa determinada, é preciso esperar que ela amadureça ou atinja uma certa idade, estamos subordinando a aprendizagem ao desenvolvimen-to. Ou seja, admitimos que para aprender é necessário determinado ní-vel de desenvolvimento. Por outro lado, sempre ouvimos dizer que o ensino deve promover o desenvolvimento da criança.

Embora a gente conheça, em decorrência de nossa própria expe-riência, muita coisa sobre o ensinar, sobre o aprender e suas relações com o desenvolvimento, quando se trata de desenvolver uma ação educativa intencional, de escolher os métodos, um grande número de questões acaba aparecendo.

A escola é um

espaço essencial-

mente de

relações sociais

de trocas.

Será que, se o professor explicar direitinho, a criança aprende? Como explicar as coisas para uma criança? E se a deixarmos agir, mon-tar quebra-cabeça, brincar com pedrinhas, estará aprendendo? O que ela estará aprendendo? E, se a criança não aprende, será sinal de algum distúrbio? Com quantos anos uma criança pode ser ensinada a ler? Quais são os pré-requisitos para aprender a adição?

É sobre esse tipo de questões que a psicologia pode ajudar a refletir, uma vez que, no decorrer de sua história, ela tem enfocado como obje-tos de estudo o desenvolvimento humano, os processos de aprendiza-gem e a própria criança, além de ter produzido conhecimentos que cer-tamente contribuem para a compreensão do processo de apropriação/ elaboração do conhecimento.

1

Representações de crianças na

Roma antiga (século II).

O estudo científico da criança: um pouco de história

A preocupação com o estudo da criança é bastante recente na história da

humanidade. Aliás, a própria idéia de criança, tal como a concebemos hoje

(como um ser que tem necessidades, interesses, motivos e modos de pensar

específicos), não existia antes do século XVII. Até então, as crianças eram consideradas adultos em mi

niatura. Esse modo de conceber a criança pode ser percebido

nas suas representações em pinturas. Nas ilustrações desta pá

gina, por exemplo, vê-se a representação de um jogo de bolas

entre meninos e de um menino aprendendo a andar em um

andador, feitas em uma tumba subterrânea, em Roma, no sécu

lo II. Repare como os meninos são representados: as propor

ções e formas do corpo se assemelham às de uma pessoa adul-

, ^ ...*„ =, ta, de tal modo

que """"««fT

não encontramos ne- i í nhum traço que indique

qualquer especificidade

da criança em relação ao

adulto. A convivência com um índice de mortalidade

infantil extremamente alto fa- zia com que a morte das

crianças fosse considerada natural e que a duração da

infância fosse limitada a um período muito curto na

vida dos indivíduos. Ela correspondia ao período

em que, para sobreviver, a criança necessitava de

cuidados físicos. Quando sobrevivia, com 6 ou 7

anos, após o desmame tardio, a criança "tornava-se a

companheira natural do adulto" (Aries, 1981), com

quem passava a conviver o

y-Sr ^ **■

tempo todo. Participava das atividades do adulto, compartilhando com e]e o trabalho nos campos ou nos mercados, os jogos e as festas.

O avanço das descobertas científicas tornou possível o prolongamento da

vida e a diminuição da mortalidade infantil. A partir do século XVII, gradativamente passou-se a admitir a idéia de que a criança era diferente do adulto não apenas fisicamente. Começou-se então a considerá-la como não preparada para a vida, cabendo aos pais, além da garantia de sua sobrevivência, a responsabilidade por sua formação, entendida principalmente como espiritual e moral. Nessa época foi que se iniciou o costume de enviar

crianças às escolas, as quais se ocupavam basicamente com o ensino da religião e da moral e de algumas habilidades, como a leitura e a aritmética.

' Se antes a socialização da criança acontecia em meio à convivência direta

com os adultos — ajudando os mais velhos ela aprendia valores, costumes e

habilidades —, a partir do século XVII, ela foi afastada do convívio constante

com eles e sua formação passou a ser responsabilidade da família e da escola.

Repare, na ilustração a seguir, um quadro do século XVII, como a

representação da criança se transformou: seu corpo, suas proporções, seus

movimentos ganharam contornos que permitem diferenciá-la claramente dos

adultos (compare com a representação do século II, a do menino aprendendo a

andar). Repare também como ela é

colocada como centro do interesse,

da* atenção e dos cuidados dos

adultos: seus primeiros passos são

acompanhados a-tentamente pela

mãe, pela ama e pela avó.

O historiador Phillippe Aries

cita um texto de 1602, que fala da

preocupação dos pais com a

educação das crianças:

Os pais que se preocupam

com a educação de suas

crianças merecem mais respeito

do que aqueles que se

contentam em pô-las no mundo.

Eles lhes dão não apenas a

vida, mas uma vida boa e santa. Por esse motivo, esses pais têm razão em

enviar seus filhos, desde a mais tenra idade, ao mercado da verdadeira

sabedoria [o colégio], onde eles se tornarão os artífices de sua própria

fortuna...

O primeiro passo

da infância,

quadro de

Marguerite

Gérard.

(Aries, 1981:277.)

Mas a atuação da escola era ainda bastante limitada, tanto no que se refere aos objetivos que ela assumia quanto em relação aos métodos que utilizava e ao pequeno número de crianças que atendia.

A retirada da criança do mundo adulto teve repercussões no modo de pensar sobre elas. No século XVIII, os filósofos começaram a apontar a

existência de um mundo próprio e autônomo da criança. Rousseau, Pestalozzi e outros consideraram que a mente infantil opera«diferentemente da dos adultos. Isso possibilitou o estudo científico da criança e seu desen-volvimento em suas formas próprias de organização (Charlot, 1979).

Mas foi apenas no começo do século XX que se iniciou efetiva-mente o estudo científico da criança e do comportamento infantil. Des-de então vem sendo desenvolvida uma série de pesquisas sobre diferen-tes aspectos da vida psíquica da criança. Importantes sistemas teóricos foram construídos e têm servido de base às reflexões sobre seu desen-volvimento, sua afetividade e sua educação.

Além disso, diversas abordagens sobre os processos de aprendizagem e desenvolvimento foram elaboradas, a partir de questões e interesses espe-cíficos e com base em diferentes métodos de investigação. Enfocando te-mas como a inteligênciae as diferenças individuais, a maturação, a aprendi-zagem, a construção do conhecimento e o desenvolvimento da criança, al-gumas dessas abordagens têm exercido considerável influência nos meios educacionais e levado a reflexões sobre as metodologias e conteúdos do ensino escolar. Entre elas destacam-se a inatista-maturacionista, o comportamentalismo, a piagetiana e a histórico-cultural.

É sobre essas abordagens que trataremos nos próximos capítulos, destacando os autores mais representativos, os conceitos fundamentais ligados a cada uma e as relações entre elas. Apresentaremos também algumas das pesquisas que as embasaram, suas concepções quanto à relação desenvolvimento-aprendizagem e sua influência na escola.

O início da psicologia da criança no Brasil

No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre a criança datam do início do século. Foram educadores, geralmente vincula-dos às Escolas Normais, que implantaram a psicologia do desenvol-vimento infantil, realizando pesquisas e experimentos com crianças em idade escolar.

Alguns fatos que marcaram o início da psicologia da criança no Brasil foram:

1) O estabelecimento, em 1914, de um laboratório de pedagogia experimental junto à Escola Normal de São Paulo, onde crianças eram submetidas a exames destinados a medir suas reações psicofísicas (como, por exemplo, discriminações visuais, auditivas, etc).

2) A criação, em 1916, de um laboratório de psicologia pedagó-gica, por uma academia de pedagogos do Rio de Janeiro. Esse labo-ratório foi planejado por Alfred Binet (ver boxe no próximo tópico) e, através dele, introduziram-se os testes psicológicos no Brasil, es-pecialmente aqueles destinados a medir e avaliar as capacidades e habilidades infantis.

3) Os estudos sobre a maturidade para a leitura em escolares, realizados por Lourenço Filho na Escola Normal de Piracicaba/SP.

Sugestão de atividades

Trabalho de campo

Escolha uma classe da V. à 4? série para observar durante um pe-ríodo de aula. Anote, em folhas de papel, a série observada, a data, o horário do início e do término da observação, o número de alunos pre-sentes à aula, como está organizada a sala, que móveis e outros objetos há nela (por exemplo, se as carteiras estão dispostas em círculos, grupos ou fileiras; a posição da mesa do professor; se há armários, prateleiras, murais, etc).

Em seguida, vá anotando bem rapidamente tudo o que se passa na sala de aula, prestando atenção aos seguintes aspectos:

• os conteúdos trabalhados;

• os recursos utilizados pela professora;

• as atividades realizadas pelas crianças;

• a movimentação das crianças e da professora;

• acontecimentos "não previstos":

a) interrupções da aula;

b) situações de briga, choro, doença, falta de material;

c) situações em que a professora perdeu a paciência;

d) assuntos sobre os quais a professora e os alunos falaram que vo-

cê considera não pertinentes aos conteúdos trabalhados;

• reação das crianças à sua presença.

Depois, organize o seu registro, agrupando as situações semelhan-tes, de acordo com os aspectos sugeridos acima. Lembre-se de redigir seus registros de maneira clara, para que possam ser compreendidos facilmente por outras pessoas.

Comente, por escrito, as situações observadas, considerando a questão da complexidade do ensinar e do aprender.

Problematizando a observação

Destaque um comportamento ou um episódio observado ao desen-volver a atividade acima que, a seu ver, a psicologia poderia ajudar a analisar. Justifique sua escolha. Enumere as perguntas que você faria, pensando em encontrar respostas na psicologia.

Aprofundando as informações do texto

Conforme vimos, os sentimentos que temos atualmente em relação à criança e as formas de nos comportarmos em relação a ela não são os mesmos que se viam antes do século XVII. Para conhecer um pouco das práticas sociais de educação da criança até então, leia um dos dois tex-tos sugeridos a seguir, anotando seus pontos principais:

• P. Aries, A história social da família e da criança ('Conclusão', p.

275-279).

• J. Gélis, A individualização da criança (História da vida privada,

v.3).

Sugestão de leituras

ARIES, P. História social da família e da criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

GÉLIS, J. A individualização da criança. In: ARIES, R, CHARTIER, R. Histó-ria da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v. 3.

KORCZAK, J. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Summus. MIRANDA, M. G. O processo de socialização da criança: a evolução da

condição social da criança. In: LANE, S. T. M., CODO, W. Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Capítulo 2

A abordagem

inatista-maturacionista

Todos nós já ouvimos ou dissemos coisas como: "Ele ainda não tem maturidade para aprender a ler"; "Meu filho tem uma aptidão incrí-vel para a matemática"; "A Marina é tão inteligente! Puxou ao pai!".

Maturidade, aptidão, inteligência são temas tradicionalmente abor-dados pela psicologia numa perspectiva que atribui um papel central a fatores biológicos no desenvolvimento da criança. Essa perspectiva, que estamos denominando inatista-maturacionista, parte do princípio de que fatores hereditários ou de maturação são mais importantes para o desenvolvimento da criança e para a determinação de suas capacidades do que os fatores relacionados à aprendizagem e à experiência.

Mas o que são esses fatores hereditários ou de maturação?

A hereditariedade pode ser entendida_como um conjunto de quali-dades ou características que estão fixadas na criança, já ao nascimento. Ou seja, quando falamos em hereditariedade estamos nos referindo, à herança genétjca individual que_a criança recebg_de seus pais. Todos sabemos que traços como, por exemplo, a cor dos olhos e do cabelo, o tipo sangüíneo, o formato da orelha e da boca já estão determinados geneticamente quando nascemos.

-Aldeia de maturação_refere-se a um padrão djMnudar^asjgmmr^a U^s_os_rnernbros de determinada espécie, que se verifica durante a vida de cada indivíduo. O crescimento do feto dentro do útero da mãe, por exemplo, segue um padrão de mudanças biologicamente determi-nado. As transformações do corpo, o crescimento dos órgãos, etc. acon-tecem de acordo com uma seqüência predeterminada, que, a princípio, não dependeria de fatores externos.

Você pode estar se perguntando o que essa história de cor dos olhos ou do desenvolvimento do feto tem a ver com uma abordagem psicoló-gica da maturidade, das aptidões e da inteligência.

E que, na psicologia, teóricos da perspectiva inatista-maturacio-nista supõem que, do mesmo modo que a cor dos olhos, aptidões indivi-

duais e inteligência são características herdadas dos pais e, portanto, já estão determinadas biologicamente quando a criança nasce. Ou então queyà maneira do crescimento das partes do corpo, o desenvolvimento do comportamento e das habilidades da criança é governado por um processo de maturação biológica, independentemente da aprendizagem e da experiência.

São essas concepções que estudaremos no decorrer deste capítulo.

A questão das diferenças individuais e a hereditariedade

da inteligência: "filho de peixe, peixinho é?"

Gêmeos: centro

de interesse nos estudos sobre

hereditariedade.

Por que as pessoas são diferentes umas das outras? Por que algumas crianças parecem mais inclinadas para atividades artísticas, enquanto outras se saem melhor com os números? Foram perguntas desse tipo

que orientaram, no começo do século, as pri-meiras investigações psicológicas sobre o problema da natureza hereditária das aptidões e da inteligência.

Interessados em saber por que uma pessoa é diferente da outra — quanto a traços de personalidade, de habilidades, de desempenho intelectual, etc. —, pesquisadores procuraram obter dados que permitissem estabelecer comparações entre pessoas.

Eles constataram, então, que pessoas com uma aptidão especial (um artista, por exemplo) normalmente tinham familiares que apresentavam o mesmo tipo de aptidão. Ou, ainda, que gêmeos idênticos apresentavam aptidões e nível intelectual com um grau de semelhança maior do que o encontrado entre irmãos não gêmeos. Por outro lado, identificaram diferenças de aptidões e de traços mentais entre homens e mulheres ou entre raças diferentes. Essas constatações foram interpretadas como indicadoras de que

os fatores inatos são mais poderosos na determinação das aptidões individuais e do grau em que estas podem se desenvolver do que a experiência, o meio social e a educação. O papel do meio social, segundo essa perspectiva inatista, se restringe a impedir ou a permitir que essas aptidões se manifestem.

Assim, uma criança — filha, neta ou sobrinha de músicos — apre-senta inclinação e facilidade para aprender música porque herdou de seus familiares a aptidão, o "dom" para a música, e não porque foi educada num ambiente em que, provavelmente, a música é valorizada e

ensinada. Do mesmo modo, crianças brancas e negras apresentam dife-renças no desempenho de determinadas tarefas em razão da herança ge-nética de suas raças, e não de diferenças culturais ou de oportunidades. Foi nessa linha da preocupação com as diferenças individuais que se desenvolveram os primeiros estudos psicológicos com o objetivo de avaliar a inteligência. Um dos pioneiros desses estudos, o pesquisador francês Alfred Binet, interessou-se especialmente pela mensuração da inteligência através de testes.

Quem foi Binet?

Alfred Binet nasceu em 1857 e viveu até 1911. Formou-se em Medicina, mas desde cedo interessou-se pela psicologia da crian-ça e do deficiente, área em que se tornou conhecido.

Em 1904, quando era diretor do Labora-tório de Psicologia Fisiológica da Universidade de Sorbonne, participou de uma comissão de médicos, educadores e cientistas, nomeados pelo ministro da Instrução Pública da França, que tinha como objetivo estabelecer métodos e formular recomendações para o ensino de crianças deficientes mentais. Binet foi incumbido da tarefa de desenvolver um instrumento que permitisse identificar as crianças" mentalmente deficientes.

Como resultado de seu trabalho nessa comissão e de suas pesquisas anteriores, ele publicou em 1905, com a colaboração de Théodore Simon, a primeira escala para a medida da inteligência geral. Essa escala, que se tornou conhecida como escala Binet-Simon, passou por duas revisões: a primeira, em 1908, e a segunda, em 1911, pouco antes da morte de Binet.

Pode-se dizer que o desenvolvimento dessa escala marcou o início da medida da inteligência, tal como a conhecemos hoje. Os testes de Binet e Simon foram traduzidos e utilizados também em muitos outros países e deram origem a inúmeras revisões, realizadas por outros pesquisadores, bem como inspiraram a elaboração de outros testes de inteligência.

No Brasil, seus estudos e testes foram introduzidos em 1916 Por educadores ligados ao Laboratório de Psicologia Pedagógi-ca do Rio de Janeiro.

Binet concebia a inteligência como uma aptidão geral que não de-pende das informações ou das experiências adquiridas no decorrer da 13

vida do indivíduo. Segundo ele, as principais características da inteli-gência seriam as capacidades de atenção, de julgamentos de adaptação do comportamento a objetivos:

Parece-nos que na inteligência há uma faculdade fundamen-tal... Esta faculdade é o julgamento, também chamado bom senso prático, iniciativa, a faculdade de adaptar-se às circunstâncias. Jul-gar, compreender e raciocinar bem; estas são as atividades essen-ciais da inteligência.

(Binet e Simon. O desenvolvimento da inteligência nas crianças.

Apud Bee, H.)

É importante compreender que, nessa perspectiva, a idéia de inteli-gência não se confunde com os conhecimentos adquiridos pelo indiví-duo durante sua vida. Habitualmente, consideramos como muito inteli-gente uma pessoa que demonstra ter um vasto conhecimento; ou seja, dizemos que os mais inteligentes (entre nossos colegas, por exemplo) são os que sabem mais.

No entanto, o que define a inteligência de um indivíduo não é a quan-tidade de conhecimentos que ele possui, mas sua capacidade de julgar, compreender e raciocinar. Essas capacidades, segundo Binet, não podem ser aprendidas, mas, ao contrário, são biologicamente determinadas. As-sim, a inteligência é vista como um atributo do indivíduo fixado pela he-reditariedade e, como tal, variável de uma pessoa para outra.

Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de cada

idade?

Mas, se as pessoas são diferentes umas das outras nas suas apti-dões, traços de personalidade ou de inteligência, existem também mui-tas semelhanças entre elas. A maioria dos bebês, por exemplo, torna-se capaz de se sentar antes que possa se arrastar, engatinhar e depois andar. Do mesmo modo, quando começa a falar, a criança primeiro diz apenas palavras isoladas, e só depois junta duas ou mais palavras, formando frases. Ou, então, antes de desenhar casas, animais ou carros, a criança rabisca traços e círculos.

Essas seqüências parecem se repetir sempre em relação à maioria das crianças, o que sugere a existência de certo padrão de desenvolvi-mento humano. Esse fato tem chamado a atenção de muitos pesquisa-dores desde as primeiras décadas deste século. Um dos primeiros psicó-logos a se interessarem por essa questão foi Arnold Gesell, nos Estados Unidos. Ele se preocupou com a evolução da criança, do nascimento aos 16 anos, e estudou as formas que seu comportamento vai tomando no decorrer dessa evolução.

Quem foi Gesell?

Pesquisador norte-americano que viveu entre 1880 e 1961, Gesell foi o principal expoente das teorias do desenvolvimento que dão maior ênfase ao papel da maturação. Desde muito cedo, logo que formado na Escola Normal (Magistério), dedicou-se à carreira de professor. Foi diretor de colégio e escreveu sua

primeira tese sobre um assunto ligado à pedagogia. Depois de doutorar-se em psicologia, Gesell retomou o seu trabalho como professor em uma escola primária. Alguns anos depois, decidiu-se por fazer o curso de Medicina e assim que o concluiu foi nomeado professor de Higiene da Criança na Escola de Medicina de Yale, cargo que ocupou até a sua

aposentadoria. Em 1915, Gesell passou a empregar a psicologia com

vistas a proporcionar ajuda pedagógica às crianças desadaptadas. Ele é, por isso, considerado o primeiro psicólogo escolar norte-americano.

Preocupado com a criação de uma ciência do

desenvolvimento humano que integrasse todos os recursos da psicologia experimental, da biologia evolutiva e da neurofisiologia, de 1920 a 1961 Gesell dedicou-se à pesquisa científica e à publicação de livros e artigos.

Pode-se dizer que Gesell foi o primeiro teórico da maturação, uma vez

que defendia a prioridade dos fatores de maturação sobre os fatores de

aprendizagem, ou de experiência, na evolução do comportamento da criança.

Para ele, o que explica a existência de um padrão de desenvolvimento comum

à maioria das crianças é o processo de maturação biológica inerente às

transformações por que passa o comportamento da criança. Assim, a evolução psicológica da criança seria determinada

biolo-gicamente, do mesmo modo que o crescimento do feto no útero mater-

no. Seus comportamentos e formas de pensar tornam-se mais complexos à

medida que ela cresce, que seu sistema nervoso, sua estrutura muscular, etc.

se desenvolvem. O ambiente social e as influências externas, de modo geral,

limitam-se a facilitar ou dificultar o processo de maturação. Por exemplo, uma

criança que raramente é tirada do berço e deixada à vontade no chão,

certamente vai demorar mais para engatinhar ou andar. Em condições

adequadas, seu desenvolvimento se processaria no ritmo e na seqüência

determinados pela maturação. Tanto Binet quanto Gesell, acreditando que a inteligência e o desenvolvi-

mento psíquico da criança são biologicamente determinados, preocuparam-se

em descrever comportamentos e habilidades típicos de cada faixa etária. Binet estava interessado, como já dissemos, em medir e comparar a

inteligência das pessoas. Mas, se podemos medir a altura ou o tamanho !o dedo de uma criança simplesmente usando uma fita métrica, medir a ntehgência é bem mais complicado. Enquanto aptidão geral do indiví-

duo, a inteligência não pode ser medida diretamente, mas apenas atra- 15

vés de algumas de suas realizações. Por isso, para construir um teste de inteligência, Binet precisava conhecer o que crianças s|o capazes de fazer em cada idade.

Essa também foi uma necessidade experimentada por Gesell. Preo-cupado em compreender a evolução da criança, ele procurou estabele-cer escalas de desenvolvimento que permitissem comparar os compor-tamentos de uma criança com aqueles que eram esperados, ou conside-rados "normais", para sua faixa etária.

Mas como foram criados os testes de inteligência e estabelecidas as escalas de desenvolvimento?

Essa é uma pergunta importante, porque sua resposta nos mostra um pouco como o conhecimento é produzido na área da psicologia. Partindo do princípio de que a hereditariedade e a maturação são os fatores mais decisivos na determinação da inteligência e na evolução do comporta-mento da criança, tanto Binet quanto Gesell dedicaram-se a pesquisas.

Pesquisando a criança: a construção dos testes de

inteligência

Binet partiu da experimentação e da observação do que as crianças eram capazes de fazer em idades variadas. Ele procurou selecionar proble-mas ou questões cuja solução envolvesse os efeitos combinados da aten-ção, do juízo e do raciocínio e não dependesse de aprendizagens anteriores.

Essas questões eram organizadas em grupos por idade, de acordo com o seguinte critério: se um teste era resolvido satisfatoriamente por 60% a 90% das crianças de determinada idade estudadas, ele era consi-derado adequado para aquela idade.

Um exemplo: se todas ou quase todas as crianças de 6 anos fossem capazes de comparar dois pesos, essa tarefa era considerada muito fácil para essa idade; se 60% a 90% das crianças de 5 anos estudadas resol-vessem o problema de maneira correta, ele era aceito como adequado para essa faixa etária. Do mesmo modo, se quase nenhuma das crianças de 4 anos estudadas conseguisse copiar um quadrado, essa tarefa era considerada difícil demais para essa idade.

Seguindo esse procedimento, Binet selecionava um número deter-minado de tarefas, em ordem crescente de dificuldade, para cada idade. Assim, o seu teste de inteligência geral, destinado a avaliar pessoas dos 3 anos até a idade adulta, era composto por vários conjuntos de proble-mas: um para as crianças de 3 anos, outro para as de 4 anos, outro para as de 5 anos, e assim sucessivamente.

Por meio desses testes, a inteligência é avaliada pelo desempenho nas tarefas. O número de testes que a criança consegue resolver determi-na a sua idade mental ou o seu quociente de inteligência (QI). Se ela con-seguir resolver todos os testes propostos para a sua idade, sua inteligên-cia será considerada normal. Se ela também resolver corretamente al-guns dos testes propostos para crianças mais velhas, seu QI estará acima da média. E se, ao contrário, ela acertar apenas questões propostas para crianças mais novas, sua inteligência será considerada abaixo da média.

Você sabe o que é o QI?

Embora confundido por muita gente com a própria inteligência, o

QI (quociente intelectual) é basicamente uma comparação entre a idade

mental e a idade real da criança (idade cronológica). A idade mental é determinada pelo número de tarefas de um teste

que a criança consegue resolver corretamente. Por exemplo, se ela

acerta todas as tarefas atribuídas ao grupo de 10 anos, diz-se que ela

tem idade mental de 10 anos, seja qual for sua idade cronológica.

O Ql é obtido quando se divide a idade mental de uma criança pela

sua idade cronológica. Suponhamos que uma criança de 8 anos consiga

resolver todos os problemas propostos para a idade de 10 anos, mas

nada além desse nível. Diremos que sua idade mental é de 10 anos e,

para calcular o seu QI, dividiremos 10 por 8, o que dá um resultado de

1,25. Por convenção, esse resultado é multiplicado por 100, para que o

Ql possa ser expresso em números inteiros. Isso significa que, em nosso

exemplo, a criança tem um QI de 125, que é considerado acima da

média.

QT _ idade mental x 100

idade cronológica

Assim, quando a idade mental e a idade cronológica forem as

mesmas, o QI será sempre 100. Se a idade mental for inferior à idq.de

cronológica, os resultados serão sempre inferiores a 100, o que

indicará um QI abaixo da média. Se, ao contrário, a idade mental for

superior à idade cronológica, o QI será sempre superior a 100, ou

acima da média.

Pesquisando a criança: a elaboração das escalas de desenvolvimento

A semelhança de Binet, Gesell também se utilizou da observação e da

experimentação com crianças para elaborar suas escalas de desenvolvimento.

No entanto, ele introduziu uma importante inovação técnica na observação e

no registro do comportamento da criança: as câme-ras cinematográficas.

Na Clínica do Desenvolvimento da Criança, criada por ele em 1930 na

Universidade de Yale, Gesell montou um observatório fotográfico, que era um

hemisfério de 4 metros de diâmetro e 2,5 metros de altura, equipado no alto e

nas paredes laterais com câmeras cinematográficas. Enquanto Gesell submetia

as crianças a vários testes — sem-Pre voltados a descobrir o que são capazes

de fazer em cada idade — as cameras rodavam, registrando todas as reações

que elas apresentavam.

Os filmes obtidos eram posteriormente analisados. Gesell procura-va, então, destacar diversos aspectos da evolução do comportamento da criança. A postura, a locomoção, a ação de agarrar, os jogos, as con-dutas sociais, etc. eram minuciosamente analisados e descritos com o

objetivo de captar as formas que esses com-portamentos tomam no decorrer do desenvol-vimento da criança.

A partir dessas análises, tornava-se possível estabelecer que comportamentos eram típicos de cada faixa etária, como, por exemplo, começar a engatinhar, colocar-se de pé e andar com apoio, subir em cadeiras ou sofás e caminhar sozinha.

Essas pesquisas, baseadas na análise dos filmes, foram denomina-das por Gesell pesquisas normativas, já que visavam à apreensão do ritmo e da seqüência "normais" do desenvolvimento. Assim, ao enume-rar os comportamentos considerados típicos de cada faixa etária, é esse ritmo e essa seqüência que as escalas de desenvolvimento expressam.

A questão dos comportamentos típicos

18

Tanto Binet quanto Gesell ocuparam-se em definir os comportamen-tos típicos de cada faixa etária, embora a partir de perspectivas diferentes.

Como já apontamos, Gesell não apenas destacava quais são os comportamentos infantis comuns a determinada idade, mas também procurava retratar a maneira como esses comportamentos evoluem, transformam-se. É o caso, por exemplo, da capacidade da criança de manter-se sentada sem apoio.

É possível observar, nas figuras a seguir, que a evolução desse comportamento deve-se ao progresso do alinhamento das costas e do

Engatinhar e andar sozinho: estágios

diferentes do desenvolvimento infantil.

aumento do controle da cabeça: gradativamente as costas do bebê (que,

no recém-nascido, são arredondadas) ficam mais alinhadas, e a criança torna-se capaz de manter a cabeça levantada, podendo, então, permane-cer sentada sem apoio.

Primeiras 4

semanas de vida: o

dorso do bebê é

uniformemente

arredondado,

havendo falta de

controle da cabeça.

Entre 4 e 6

semanas o bebê

tem o dorso

arredondado e a

cabeça é erguida

por alguns

momentos.

Binet, por sua vez, preocupava-se com aqueles comportamentos que, numa determinada idade, pudessem ser tomados como indicadores do nível de inteligência da criança. A evolução ou o desenvolvimento dos comportamentos considerados típicos não o interessaram de modo especial, mas sim a capacidade da criança de realizá-dos na idade tida como adequada.

Mas, apesar das diferenças, podemos dizer que Binet e Gesell estabeleceram pa-drões de comportamento com a finalidade de avaliar a inteligência ou o desenvolvimento da criança. O pressuposto de que os fatores biológicos (hereditariedade e maturação) são os mais decisivos na determinação da inteligência e do desenvolvimento leva a supor que tais padrões de comportamento são independentes de fatores externos ou do contexto social em que as crianças vivem. Desse modo, não importa o lugar e a época em que a criança viva ou as condições materiais e as possibilidades educacionais a que tenha acesso: a criança "normal" deve apresentar tais comportamentos.

No entanto, é importante lembrar que eles chegaram à definição dos padrões de comportamento de cada faixa etária a partir de pesqui-sas realizadas nas primeiras décadas do século, com determinados gru-Pos de crianças (francesas e norte-americanas). Logo, os comporta-

Entre 8e 12

semanas o dorso

ainda é arredondado e a

cabeça já se levanta

mais, porém o bebê

ainda tende a

pender o corpo

para a frente.

Entre 16 e 20

semanas o bebê tem

o dorso mais

alinhado e a cabeça

é mantida ereta sem

vacilação.

1 I

mentos considerados típicos foram aqueles apresentados pela maioria das crianças que eles estudaram, e foi a partir daí que se definiu o que é normal ou não.

Esse procedimento é bastante coerente com os princípios teóricos pelos quais Binet e Gesell se orientaram. Se o ritmo e a seqüência do desenvolvimento são biologicamente determinados, espera-se que cer-tos comportamentos apareçam sempre na mesma seqüência e na mesma idade, quer se trate de crianças européias de classe média, quer de crian-ças do interior do Nordeste brasileiro.

As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e as

influências do inatismo-maturacionismo na escola

Se o ritmo e a seqüência do desenvolvimento são biologicamente determinados, qual a sua relação com os processos de aprendizagem? Antes de responder a essa pergunta, é importante lembrar que os pes-quisadores da abordagem inatista-maturacionista não tinham como ob-jetivo o estudo da aprendizagem. No entanto, ao destacar o papel de fatores internos na determinação da inteligência e do desenvolvimento, essa abordagem considera que aquilo que a criança aprende no decorrer da vida não interfere no processo de desenvolvimento.

De acordo com a perspectiva inatista-maturacionista, a aprendiza-gem é que depende do desenvolvimento. Ou seja, o que a criança é capaz ou não de aprender é determinado pelo nível de maturação de suas habilidades e do seu pensamento ou, ainda, pelo seu nível de inteligência.

Essa concepção tem tido bastante influência na escola, desde sua elaboração. Pode-se dizer que o inatismo-maturacionismo marca o co-meço da relação entre a psicologia científica e a educação. Como vi-mos, a construção dos primeiros testes de inteligência de Binet e Simon foi resultado de uma necessidade emergente nos meios educacionais franceses da época: a de identificar as crianças mentalmente deficientes e estabelecer métodos que tornassem o ensino acessível a elas. O trabalho de Gesell também foi orientado por fins ligados à educação, especialmente a de crianças consideradas desadaptadas.

No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre crianças da-tam do início do século. Educadores, geralmente vinculados às Escolas Normais (antigo nome dos cursos de Magistério), implantaram na déca-da de 20, em suas escolas, laboratórios de Psicologia Experimental e de Psicologia Pedagógica. Nesses laboratórios, as crianças eram submeti-das a exames destinados a medir suas reações psicofísicas (discrimina-ções visuais, auditivas, etc), e foi através deles que se introduziram no país os primeiros testes psicológicos. O primeiro teste para avaliar a prontidão de crianças para a alfabetização foi desenvolvido por um edu-cador, Lourenço Filho.

A idéia de que a criança é portadora dos atributos universais (bioló-

/ aicos) do gênero humano produz ou justifica a crença de que caberia à

I e(jucação fazer aflorar esses atributos naturais, desenvolvendo as

Qj£n£iahxladeido_e^çiiiid^le_mod() harmonioso. Tal concepçãg_tg_y_e

) 0 mérito de chamar a atenção para as especificidades da criança, para as

^fictêrísticas, habilidades e capacidades dos educandos, colocando

em destaque noções como prontidão, maturidade, aptidão. Mas. ao mesmo tempo que atribuem à escola o papel de "cultivar" o

indivíduo, de possibilitar o seu desenvolvimento harmonioso, as propostas

pedagógicas orientadas por essa perspectiva consideram que para aprender os

conteúdos escolares a criança precisaria já ter desenvolvido determinadas

capacidades. Isso acaba gerando a idéia de que existe uma idade bem precisa

para aprender certos conteúdos. Ou, ainda, que o proveito que a criança tira

das situações de aprendizagem depende de seu nível de prontidão ou

maturidade.

Essas noções, além de circularem entre os agentes do processo

educacional, influenciando, muitas vezes, o cotidiano da escola, também dão

sustentação à prática de utilização de testes psicológicos para avaliar as

possibilidades educacionais da criança. É fato bem conhecido que testes de prontidão (para a leitura, por

exemplo) e testes de inteligência têm sido amplamente utilizados para a

avaliação de crianças em idade escolar, penalizando muitas delas. Os

resultados de tais testes têm, historicamente, impedido que inúmeras crianças

tenham acesso ao conhecimento e à própria escolarização, ao fornecerem

indicadores de sua "imaturidade" ou de seus "déficits" de inteligência. Há

crianças, por exemplo, que são retidas na pré-escola ou permanecem nos

exercícios preparatórios, às vezes um ano inteiro, porque "não estão prontas"

para aprender a ler e escrever; outras são enviadas às classes especiais porque

"não têm condições" intelectuais de seguir o curso normal da escolaridade.

.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1. Organize um quadro explicando, resumidamente, o que é:

• hereditariedade;

• maturação.

2. Monte um quadro que apresente um resumo de como se explica, na abordagem inatista-maturacionista:

• inteligência;

• desenvolvimento.

3. Explique a relação existente entre desenvolvimento e aprendizagem, de acordo com essa abordagem.

Refletindo sobre o texto

1. Dividam-se em dois grupos, para discutir a seguinte frase: "Algumas pessoas são mais inteligentes que outras em razão de sua herança genética".

2. O grupo 1 deve se reunir e pensar em argumentos a favor dessa frase (durante dez minutos).

3. O grupo 2 pensará em argumentos contra essa frase (durante dez mi-nutos).

4. Organizem o debate entre os grupos. Mas lembrem-se: quem é do grupo 1 só pode falar "a favor" da frase e quem é do grupo 2 deve falar "contra".

5. Registre em seu caderno suas opiniões sobre os aspectos favoráveis e desfavoráveis da abordagem analisada.

Trabalho de campo

1. Para realizar esta pesquisa, cada aluno deverá entrevistar uma pessoa que tenha filhos (mãe ou pai) e uma professora (de pré-escola ou de 1? a 4? série). Explique à pessoa que você está realizando um trabalho escolar e precisa da ajuda dela.

• Pergunte à mãe (ou ao pai) sobre o que se lembra a respeito do

desenvolvimento dos filhos. O que mais lhe chamou a atenção

nesse processo? O que foi motivo de encantamento e o que foi

motivo de preocupação? Por quê? Registre ou grave as respostas

obtidas. Caso a pessoa queira lhe mostrar fotos da criança ou anotações

sobre ela, observe-as atentamente e sintetize as informações

proporcionadas por esses materiais.

. Pergunte à professora quais são as situações a que ela presta atenção para

analisar o desenvolvimento de seus alunos. Procure saber o que a

encanta e o que a preocupa em seus alunos. Peça a ela que descreva

algumas situações ou experiências que foram marcantes em seu trabalho

com as crianças. Registre as respostas obtidas.

2 Em grupo, organizem os dados obtidos, reunindo as respostas semelhantes.

Destaquem nas respostas dadas pelos pais e professoras os aspectos que as

associam à visão inatista-maturacionista do desenvolvimento.

Concluído o trabalho, convém guardar os registros das entrevistas e o

resultado da organização dos dados estabelecida pelo grupo, pois eles serão

utilizados em atividades referentes aos próximos capítulos.

Exercitando a análise

Leia o livro A Terra dos Meninos Pelados, de Graciliano Ramos (Editora

Record). Nesse livro, o autor conta a estória de Raimundo, um menino

considerado "diferente" ...

Após a leitura, responda:

• De que tipos são as diferenças de Raimundo?

• Quais as conseqüências dessas diferenças na vida do menino?

Em grupo, discutam essas questões, relacionando-as com as idéias

apresentadas no capítulo a respeito do desenvolvimento humano.

Sugestão de leituras

A curva do sino. Folha de S. Paulo, 30 de outubro de 1994, p. 6-4 a 6-6. BEE, H. A criança em desenvolvimento. São Paulo: Harper e Row do Brasil, 1977.

Capítulo 3

A abordagem

comportamentalista

Ao contrário do inatismo-maturacionismo, a abordagem compor-tamentalista destaca a importância da influência de fatores externos, do ambiente e da experiência sobre o comportamento da criança.

Enquanto aquela abordagem enfatiza o papel de fatores biológicos internos, como a hereditariedade e a maturação, o comportamentalismo parte do princípio de que as ações e as habilidades dos indivíduos são determinadas por suas relações com o meio em que se encontram.

John B. Watson foi o fundador do movimento comportamentalista (ou behaviorista, do inglês behavior, que significa "comportamento") na psicologia. Ele definiu a psicologia como a ciência do comportamen-to, como um ramo objetivo e experimental das ciências naturais.

Quem foi Watson?

John Broadus Watson nasceu em 1878, nos EUA, e viveu até 1958. Formou-se em Filosofia, pela Universidade de Furmam, aos 22 anos, mas logo interessou-se pela psicologia animal, área em que desenvolveu sua tese de doutoramento.

Em 1908, assumiu o cargo de professor de Psi-cologia na Universidade Johns Hopkins, onde conti-nuou suas pesquisas com animais.

Após algumas tentativas de formulação de prin-cípios que considerava mais objetivos para o estudo da psicologia — desestimuladas pelas críticas —, Watson publicou, em 1913, um artigo intitulado "A psicologia como um behaviorista a vê", considerado o lançamento oficial da escola behaviorista.

O fato de incluir a psicologia entre as ciências naturais deve-se a rença na existência de uma continuidade entre o animal e o homem. Ou seja, para os comportamentalistas, embora o comportamento do ho-em difira do dos animais em razão de um maior refinamento e com-"lexidade, ambos podem ser explicados pelos mesmos princípios. Des-P modo, o comportamento humano não é privilegiado como objeto de

S<esquisa: no comportamentalismo, estudam-se tanto o

comportamento humano quanto o comportamento animal.

Mas o que é comportamento?

Na perspectiva de Watson, podemos dizer que o comportamento é sempre uma resposta do organismo (humano ou animal) a algum estí-mulo presente no meio ambiente.

Por estímulo, Watson entende toda modificação do ambiente que pode ser captada pelo organismo por meio dos sentidos. Assim, as res-postas são modificações que ocorrem no organismo em decorrência desses estímulos, como, por exemplo, alterações na expressão facial, mudanças na posição do corpo, ações ou movimentos de qualquer tipo.

Imaginemos um pequeno animal silvestre bebendo água na beira de um riacho. Ao captar um ruído de passos de animal no mato, ele sai correndo. Na linguagem comportamentalista, diremos que o ruído (estí-mulo) provocou, no animal, uma resposta: o ato de correr.

O que interessa à psicologia, entendida como uma ciência natural e objetiva, é a relação entre estímulos e respostas — fatos exteriores que pedem ser empiricamente observados. O que ocorre no interior do organismo entre um dado estímulo e uma dada resposta não pode ser observado e, portanto, não interessa aos psicólogos comporta-mentalistas. No exemplo do animal silvestre bebendo água, o compor-tamento do animal é explicado pela relação entre o estímulo (o ruído) e a resposta desencadeada por ele (correr), e não a partir de determinado estado interno do organismo.

Veja bem: isso não significa que Watson descarte a existência de pro-cessos internos no organismo. Ele apenas considera que tais processos devem ser estudados pela fisiologia. À psicologia, segundo sua concep-ção, cabe o estudo das respostas do organismo aos estímulos do meio.

Assim, os problemas de que se ocupa o comportamentalismo são: prever a resposta, quando se conhece o estímulo, e identificar o estímu-lo, quando se conhece a resposta. Ou seja, o estudo do comportamento ieve possibilitar o conhecimento das relações estímulo-resposta, das quais ele é o resultado. Assim, cabe ao comportamentalista descobrir quais são os estímulos que provocam determinado comportamento.

De acordo com essa concepção, o comportamento animal ou huma- e sempre uma adaptação, uma reação aos estímulos, às alterações que e Processam no ambiente. Essa postura ambientalista opõe-se a qual-

uer tipo de inatismo. Para Watson, não existem aptidões, disposições

ntelectuais ou temperamentos inatos ou hereditários. O que existe é certa

""opensão para responder a certos estímulos de uma forma determinada.

Comportamento e aprendizagem

Para o comportamentalismo, a aprendizagem é um tema central. Ao enfatizar a influência dos fatores externos e ambientais, essa concepção teórica afirma que o mais importante na determinação do comportamento do indivíduo são as suas experiências, aquilo que ele aprende durante a vida. Aliás, podemos dizer que o comportamentalismo confunde-se com uma teoria da aprendizagem, uma vez que sua preocupação básica é explicar como os comportamentos são aprendidos.

Skinner, outro importante comportamentalista, cujo trabalho deu continuidade a algumas das formulações de Watson, distingue dois ti-pos de aprendizagem: por condicionamento clássico e por condiciona-mento operante.

Quem foi Skinner?

Burrhus Frederic Skinner, psicólogo norte-americano, nascido em 1904, foi o criador do que ele denominou "análise experimental do

comportamento ", método que permite prever e controlar cientificamente o comportamento humano.

Doutorou-se em Harvard, em 1931, e depois de alguns anos lecionou na Universidade de Minnesota e na Universidade de Indiana, da qual foi presidente. Regressou a Harvard como professor e pesquisador em 1947.

Skinner interessou-se pela análise da aprendizagem verbal, pelo adestramento de pombos, pelas máquinas de ensinar e pelo controle do comportamento mediante reforço positivo.

Até a sua morte, em 1980, desenvolveu trabalhos de aplicação tecnológica dos princípios da análise ex-perimental do comportamento no campo do ensino e no trabalho psicoterapêutico. Além disso, dedicou-se à

elaboração de uma filosofia, o behaviorismo, que se vincula ao mo-vimento de análise experimental do comportamento.

A aprendizagem por condicionamento clássico envolve um tipo de comportamento determinado, que é sempre provocado por um estímulo também determinado. Ela envolve uma reação do organismo ao meio e não uma ação do organismo sobre o meio.

Digamos que alguém dê um sopro em seus olhos. Você automatica-mente irá piscar. Piscar é uma reação, uma resposta a um estímulo. Não se pode dizer que tenha sido uma resposta aprendida. No entanto, se toda vez que alguém sopra em seus olhos soa uma campainha, pode chegar um momento em que você piscará ao ouvir tal campainha, mes-mo na ausência do sopro. Dizemos, então, que você aprendeu a piscar quando ouve determinado som.

Em relação à primeira parte do nosso exemplo, podemos dizer que sopro é

o estímulo que provoca a reação de piscar. Essa reação, como •Á dissemos, é

um tipo de resposta não aprendida, é um reflexo do orga-J :srno. À medida que

o sopro é associado a um som determinado, esse orn passará a servir como um

estímulo que também provoca a resposta de piscar. Nesse caso, o som é

chamado pelos comportamentalistas de estímulo condicionado, porque, por si

mesmo, ele não provoca a reação He piscar, mas apenas quando é associado a

outro tipo de estímulo (o sopro) que automaticamente desencadeia tal reação.

Esse é um exemplo de aprendizagem por condicionamento clássico em

que estão envolvidos um estímulo condicionado e uma resposta que é

simplesmente uma reação do organismo. Esse tipo de aprendizagem não

implica nenhuma iniciativa por parte de quem aprende. Ou seja, a pessoa

aprende a piscar quando ouve um som determinado porque sua reação original

acabou se associando a um novo estímulo.

Já a aprendizagem por condiciona-

mento operante se dá de forma bastante

diferente, apoiando-se não em reações

provocadas por estímulos, mas em

comportamentos emitidos pelo próprio

organismo que são seguidos por algum tipo

de conseqüência.

Se o comportamento é seguido por uma

conseqüência agradável, ele tende a se

repetir. Ao contrário, se a conseqüência for

desagradável, o comportamento tem menos

probabilidade de se repetir. Essas

conseqüências, chamadas pelos

comportamentalistas de reforçadores,

"modelam" o comportamento dos

indivíduos, sendo responsáveis pela criação

dos hábitos.

Segundo a concepção de Skinner, a grande

maioria dos comportamentos das pessoas é

aprendida por condicionamento operante. A

birra de uma criança, por exemplo, é um

comportamento aprendido. Se a

criança chora e esperneia e a mãe (ou

outro adulto) lhe dá algo que ela deseja

(como um doce, Urr

> brinquedo, um

refrigerante), o comportamento da criança

é reforçado e tende a se repetir em outras ,casiões. Da mesma forma, uma criança pequena que sozinha leva o copo de

água à boca, tende a repetir esse comportamento se for elogia-e beijada pela

mãe. Mas, se a mãe a repreender todas as vezes (temerosa de que a água seja

derramada), ela provavelmente deixará de er

esse comportamento.

Para Skinner, a

birra é um

comportamento

que se aprende.

Pesquisando a criança: condicionamento e modelagem do comportamento

A idéia de que os comportamentos e as habilidades do indivíduo são sempre aprendidos a partir da influência do ambiente serviu de base para pesquisas psicológicas que tinham como objetivo estabelecer um método que permitisse prever e controlar cientificamente o comporta-mento humano ou animal.

Para que você saiba um pouco sobre as pesquisas que auxiliaram a produção de conhecimentos relativos a como os comportamentos são aprendidos, destacaremos aqui as pesquisas mais conhecidas de Watson e Skinner.

A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma pesquisa de Watson

Interessado em saber como as crianças aprendiam comportamentos emocionais, Watson realizou uma pesquisa com crianças de 4 meses a 1 ano de idade que haviam sido criadas em hospitais e nunca tinham visto nenhum dos animais ou objetos utilizados no experimento.

Vários animais foram apresentados às crianças no laboratório e em um jardim zoológico. Suas reações eram todas anotadas pelo pesquisa-dor. O resultado dessas situações foi sempre o mesmo: não se verificou nenhuma manifestação de medo nas crianças.

As crianças,

a princípio,

não têm medo

dos

, •» Wm £m ■?

;i^'

'***//*/

Watson já havia verificado que situações como exposição a um ruído forte, perda do equilíbrio ou sensação de dor provocavam rea- >o ções de medo nas crianças. Para ele, essas seriam as situações originais ' __ que suscitariam medo.

Como explicar o medo de tanta coisa que muitas crianças mais velhas e até mesmo adultos sentem? Watson afirma que medo de cachor-de

escuridão, de insetos, e outros tipos de medo, é um sentimento r°"rendido através de condicionamento. Ele resolveu verificar se era

ossível produzir, em laboratório, uma reação de medo. O sujeito da experiência foi uma criança de 11 meses que originai-te

nj|0 demonstrava medo a animais peludos, como o coelho e o - to branco. Quando, no laboratório, era apresentado à criança um rato

branco e ela o tocava, um ruído forte — de uma barra de aço golpeada com um martelo — era produzido. A criança manifestava então reações

de medo: estremecia e começava a chorar. Após várias repetições desse procedimento, a criança passou a apresentar reações de medo diante do rato branco quando este lhe era apresentado sozinho (sem o ruído). Watson verificou, ainda, que tal rea-ção estendia-se a outros animais ou objetos que lembravam o rato bran-co: um coelho, um cão, um casaco de peles ou um chumaço de algodão. Você pode reconhecer nessa experiência uma situação experimental de aprendizagem por condicionamento clássico. Um estímulo que originalmente não provocava a resposta de medo (o rato branco) foi associado a outro que naturalmente a provocava (um ruído forte), tor-nando-se, assim, um estímulo condicionado. A reação de medo a ani-mais peludos foi, portanto, aprendida pela criança.

Com esse experimento, Watson procurava comprovar a sua tese de que a maioria das reações emocionais das pessoas é aprendida a partir da influência do ambiente. Procurava também explicar "como as pessoas aprendem", explicitando os princípios do condicionamento clássico.

Modelagem do comportamento: as pesquisas de Skinner

Skinner, por sua vez, interessou-se fundamentalmente pela apren-dizagem por condicionamento operante, realizando pesquisas inicial-mente com ratos, depois com pombos e, por último, com pessoas.

Para estudar o problema da programação do reforço no condiciona-mento operante, Skinner utilizava em suas pesquisas com ratos uma caixa em cujo interior havia um dispositivo (uma pequena barra de metal) que, quando acionado, liberava água ou comida. Essas caixas, com isolamento contra ruídos e controle rigoroso de temperatura e iluminação (para evitar que sons, a luz ou o calor interferissem em seus experimentos), ficaram conhecidas como "caixas de Skinner".

Os experimentos consistiam em programar de modos diferentes a liberação de reforçadores e estudar como cada programação afetava o comportamento do animal (qual era mais eficiente para levar à aprendi-zagem de um comportamento novo; qual era mais adequado para man-ter esse comportamento por mais tempo; qual representava a melhor forma de extinguir um dado comportamento, etc).

Uma das formas utilizadas, para obter a aprendizagem de um novo comportamento (no caso, pressionar a barra de metal), era colocar o rato na caixa de Skinner após ter sido privado de água por certo tempo. Supunha-se que a privação faria da água um excelente reforçador, já que obtê-la resultaria para o rato na satisfação de uma necessidade.

Adotava-se, então, o seguinte procedimento: inicialmente, toda vez que o rato se aproximava da barra de metal, o pesquisador liberava-lhe, por meio de um dispositivo, um pouco de água. Após determinado tempo, estando o rato próximo à barra, a água só era liberada se ele a tocasse com o focinho ou a pata. Em seguida, reforçava-se (pela libera-ção da água) apenas o comportamento de tocar a barra com a pata e, depois, o de pressioná-la para baixo. Após várias sessões, verificava-se que o rato tinha aprendido a pressionar a barra de metal para obter água.

Esse procedimento é conhecido como modelagem do comporta-mento. A modelagem é obtida proporcionando-se reforçadores após respostas que gradativamente se aproximam da resposta que se deseja obter do animal (no caso, a pressão na barra).

Tal método envolve os princípios do condicionamento operante (o comportamento emitido pelo animal, se reforçado, tende a se repetir) e tem sido utilizado pelos comportamentalistas em uma série de situa-ções, tanto na prática terapêutica clínica quanto no campo do ensino.

O que há em comum nos experimentos de Watson e Skinner é a tentativa de controlar o comportamento pela manipulação de elementos do ambiente que precedem (os estímulos) ou sucedem (os reforçadores) ao comportamento. Além disso, os experimentos de um e de outro vi-sam conhecer os princípios pelos quais o comportamento humano é aprendido durante a vida.

Assim, os princípios descobertos ou sistematizados mediante si-tuações experimentalmente controladas são os mesmos que explicam os comportamentos aprendidos em situações cotidianas. Conforme a perspectiva comportamentalista, pode-se dizer que pais e educadores, por exemplo, modelam o comportamento da criança por meio de proce-dimentos que correspondem ao condicionamento operante.

Fonte: Nossas crianças. Abril Cultural, 1970. v. 5

Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a

influência do comportamentalismo na escola

A ênfase dada pelos comportamentalistas à questão da aprendiza-gem é resultado do pressuposto de que o ambiente e a experiência são determinantes do comportamento. Os processos e fatores internos ao indivíduo não são levados em conta, e o próprio desenvolvimento é explicado como decorrente da aprendizagem.

Melhor dizendo, para os comportamentalistas, desenvolvimento e aprendizagem são processos coincidentes. Aquilo que chamamos de desenvolvimento nada mais é do que o resultado das aprendizagens acumuladas no decorrer da vida do indivíduo. Por isso, os dois proces-sos não se distinguem.

A idéia de que os comportamentos humanos são aprendidos em decorrência de contingências ambientais e a noção de modelagem do comportamento têm influenciado as práticas educativas. De acordo com Skinner, ensinar é planejar/organizar essas contingências de modo a tornar mais eficiente a aprendizagem de determinados conteúdos e habilidades. A utilização de reforçadores e a organização da aprendiza-gem por pequenos passos são princípios decorrentes dessa abordagem.

Uma das marcas deixadas pelo comportamentalismo na educação escolar foi a valorização do planejamento do ensino, tendo chamado a atenção para a necessidade de se definirem com clareza e operacional-mente os objetivos que se pretende atingir, para a organização das se-qüências de atividades e para a definição dos reforçadores a serem utili-zados telogios, notas, pontos positivos, prêmios, etc).

O próprio Skinner interessou-se pelo processo de ensino-aprendi-zagem (reveja o boxe 'Quem foi Skinner?'). Nas suas "máquinas de ensinar", o aluno é colocado diante de um painel onde aparece uma questão relativa a algo que ele já conhece e, ao mesmo tempo, uma nova informação concernente ao mesmo tema. O aluno deve responder à questão apresentada e, se acertar, a máquina passará automaticamente para a questão seguinte, que será referente à informação dada imediatamente antes. Se não acertar, não poderá prosseguir, devendo retornar a algum passo anterior.

Por meio desse procedimento, organiza-se a aprendizagem da criança "passo a passo", em ordem crescente de dificuldade, seguindo os princípios da modelagem do comportamento, e cada resposta certa da criança constitui um reforço para a aprendizagem.

A chamada "instrução programada" derivou das máquinas de Skinner. As questões apresentadas às crianças são impressas e as res-istas corretas aparecem em outra página, em um gabarito. As questões 3 intercaladas por pequenos textos informativos sobre os quais a nança deverá responder no passo seguinte. De acordo com o compor-tamentalismo, esse procedimento permite que o ensino tenha uma pro-gressão gradual, que respeita o ritmo de cada aluno e torna o processo de ensino-aprendizagem mais eficiente.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1. Segundo o texto, defina:

• estímulo;

• resposta;

• condicionamento clássico;

• condicionamento operante.

2. Elabore um texto sucinto sobre as diferenças e semelhanças existen tes entre as abordagens inatista-maturacionista e comportamentalis- ta. Depois, troque seu texto com um colega e, juntos, discutam sobre essas abordagens.

Exercitando a análise

1. A classe, orientada pela professora, deverá fazer um levantamento de materiais de ensino organizados segundo os princípios da instrução programada. Há vários projetos desenvolvidos nessa linha, tanto para a instrução das crianças nas séries iniciais quanto para a instru-ção de professores em formação. Sugerimos alguns títulos.

JOULLIÉ, V, MAFRA, W. Didática de Ciências através de módulos instrucionais. 2". ed. Petrópolis: Vozes, 1980.

POPHAM, W. J., BAKER, E. L. Como estabelecer metas de ensino. Porto Alegre: Globo.

_______ . Sistematização do ensino. Porto Alegre: Globo, 1976. . Como ampliar as dimensões dos objetivos de ensino. Por

to Alegre: Globo, 1976. . Como planejar a seqüência de ensino. Porto Alegre: Glo

bo, 1976. _______ . Táticas de ensino em sala de aula. Porto Alegre: Globo. _______ . Como avaliar o ensino. Porto Alegre: Globo.

O material conseguido deve ser distribuído à classe para um trabalho de análise, feito em grupos. Cada grupo deve realizar as propostas de auto-instrução apresentadas. Observem atentamente as instruções, os objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e os exercícios propostos.

Fm seguida, analisem o material, procurando identificar os pressu-nostos e princípios do comportamentalismo nele presentes. Após omparação e discussão das análises feitas pela classe, cada aluno

deverá escrever um pequeno texto sobre a instrução programada

0mo alternativa metodológica, destacando, de maneira fundamenta-da, seus aspectos positivos e negativos.

1 A seguir você tem reproduzido o 'Módulo instrucional 1' de um pro-jeto de ensino de Didática de Ciências para o curso de formação de professores desenvolvido na década de 70 pelas professoras Wanda Mafra e Vera Joullié, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro.

Leia o módulo e resolva os exercícios. Observe atentamente as ins-truções, os objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e exer-cícios propostos. Em seguida, analise-o, procurando identificar os pressupostos e prin-cípios do comportamentalismo nele presentes. Compare e discuta a sua análise com a análise feita pelos colegas e escreva um pequeno texto sobre a instrução programada como alternativa metodológica, destacando, de maneira fundamentada, aspectos positivos e negativos desse procedimento.

Módulo Instrucional 1

A criança, a ciência, a tecnologia

Introdução

Este é o módulo instrucional 1, de Didática de Ciências, isto é, um esquema de trabalho que lhe proporcionará o domínio de vários conhe-cimentos com relação ao assunto aqui tratado.

Este módulo apresenta o conteúdo "A Criança, a Ciência e a Tecnologia", em sua parte fundamental. Ele lhe oferecerá oportunida-des de aprendizagem dos seguintes aspectos:

a) curiosidade científica natural da criança;

o) base de experiências que precede o conhecimento científico;

c) ciência e tecnologia.

Os referidos aspectos são importantes em sua formação profissio-nal porque se constituem em embasamento para a compreensão das rea-ções e interesses infantis em relação ao estudo de Ciências nas séries ""ciais do 1? Grau.

. .^em

conhecê-los, você não poderá planejar conscientemente suas ' Cidades didáticas. Este é o objetivo final deste módulo e, ao concluí-

f , yocê terá que demonstrar sua competência. Para que o objetivo ^"al seja alcançado você terá que atingir os objetivos intermediários.

d°s eles são importantes para que você trabalhe gradativamente e

com segurança.

A "Visão geral", que vem a seguir, lhe dará uma idéia objetiva do trabalho a ser realizado.

Visão geral do módulo instrucional 1

Objetivos intermediários

Atividades Avaliação

1. Conceituar Ciência e Tecnologia, estabe-

lecendo sua interli-gação.

1. Procure o significado de Ciência e Tecno logia em BUARQUE DE HOLLANDA FER REIRA, Aurélio, No vo Dicionário Auré lio, Editora Nova Fronteira, RJ, 1975. 2. Estude o texto n? 1; "Ciência e Tecnolo gia" ou discuta com um colega sobre Ciên cia e Tecnologia: con ceitos, diferenças, in terligação.

Resolva o exercício n° 1, do Módulo 1.

2. Distinguir a curiosi-dade científica das

crianças de sua cu-riosidade geral.

1. Estude o texto n? 2: "Curiosidade infantil" ou analise a ficha de consulta n? 1.

Resolva o exercício rf. 2, do Módulo 1.

3. Constatar a existência de uma base de experiências científicas e tecnológicas que precede o estudo de Ciências.

1. Estude o texto n? 3: "Base de experiên-cias científicas e tec-nológicas" ou entreviste seu professor: fenômenos científicos e aspectos tecnológicos que cercam a criança: a influência da Tecnologia na vida atual.

Resolva o exercício

n? 3, do Módulo 1.

Objetivo 1, Módulo 1

Atenção: Se você tiver acertado a questão I da pré-avaliação, está

dispensado deste objetivo. Siga para o objetivo 2, na página 37. Caso

contrário, siga o fluxograma abaixo.

Fluxograma das atividades

Leia o objetivo intermediário n? 1,

ao final da página.

Procure o significado de Ciência e Tecnologia em

BUARQUE DE HOLLANDA FERREIRA, Aurélio.

Novo Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira, Rio

de Janeiro, 1975.

JZ

Estude o texto n. 1:

Ciência e Tecnologia Ou

i.

Discuta com uma colega

sobre Ciência e Tecnologia:

conceitos, diferenças,

interligações.

Resolva o exercício

do Módulo 1.

Consulte seu professor.

NÃO

Objetivo intermediário n?l: "Conceituar Ciência e

Tecnologia, estabelecendo sua interligação".

35 WÊÊÊ

SIM

Texto n? 1, Módulo 1

36

Ciência e Tecnologia

Já não se pode viver sem Ciência. Dia a dia, ela progride e se expande, ampliando produções, criando medicamentos, processando dados, palmilhando o espaço, aperfeiçoando a comunicação, estudando o cére-bro humano, extraindo e beneficiando os recursos naturais, planejan-do... prevendo... pesquisando...

Cada vez mais a sociedade necessita de cientistas, e o homem, de! conhecimentos científicos para progredir e manter-se vivo.

A ciência estuda os mais diferentes fenômenos, sejam de natureza física, sejam de natureza química, sejam de natureza biológica. Ela busca o conhecimento puro, através de pesquisas, experiências, observações.

Por outro lado, a Tecnologia aplica os fenômenos científicos, colo-ca-os em prática, para uso humano. Ela é essencialmente utilitária, como o provam o ferro a carvão evoluindo para o ferro elétrico, a ilumi-nação de velas evoluindo para a iluminação elétrica, a comunicação à base de sinais evoluindo para os satélites retransmissores, a cura pelo uso de ervas evoluindo para os mais sofisticados produtos farmacêuti-cos, o transporte animal evoluindo para as naves espaciais. Assim sen-do, a Tecnologia progride paralelamente às novas descobertas da Ciên-cia, oferecendo mesmo, aos estudiosos, recursos para aperfeiçoar e am-pliar as verdades científicas.

Estamos em plena era tecnológica. Atualmente toda a vida social depende de uma tecnologia que nasce da Ciência.

As oportunidades do futuro estão reservadas às pessoas que desen-volverem uma atitude científica. Prepare-se.

Texto elaborado por Edith Costa

Marília Lessa

Vera Joullié

Wanda Mafra

Exercício n? 1, Módulo 1

Isto é urna avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.

Boa sorte!

Marque o que melhor completa cada afirmação:

1. Ciência cuida

(a) da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.

(b) do estudo dos fenômenos físicos, biológicos e químicos. (c) da evolução do homem através dos tempos. (d) dos principais fenômenos físicos.

2. Tecnologia cuida

(a) da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.

(b) dos estudos dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.

(c) da evolução do homem através dos tempos.

(d) dos principais fenômenos físicos.

a A Tecnologia é essencialmente utilitária porque

(a) depende do resultado das pesquisas científicas.

(b) estimula a pesquisa dos fenômenos científicos.

(c) completa o estudo dos fenômenos científicos.

(d) aplica os resultados das pesquisas científicas.

Objetivo 2, Módulo 1

Atenção: Se você tiver acertado a questão II da pré-avaliação, está dispensado

deste objetivo. Siga para o objetivo 3, na página 40. Caso contrário, siga o

fluxograma abaixo.

Fluxograma das atividades

Leia o objetivo intermediário n? 2, ao final da página.

JZ

Estude o texto n? 2:

Curiosidade infantil.

T

3Z

OU

IL

Analise a ficha

de consulta n? 1. ~1

Resolva o exercício n? 2, do Módulo 2.

4. M/

Consulte seu professor.

NACk

Objetivo intermediário n?2: "Distinguir a curiosidade

_ científica das crianças de sua curiosidade geral".

SIM

«, 1.. 4., ivioaulo 1

Curiosidade infantil

A criança, desde cedo, manifesta intensa curiosidade por tudo que vê ouve, sente e pensa. E a fase geralmente conhecida como "idade do POR QUÊ?". As inúmeras perguntas que as crianças fazem incessante-mente refletem uma grande necessidade de explorar, conhecer, entender a si própria e ao mundo que a cerca. É o caso de perguntas como:

— Por que a gente tem que dizer "obrigado" quando ganha alguma coisa?

— Por que eu não posso ir à escola sem uniforme? — Por que o papai vai trabalhar todos os dias? Grande parte das perguntas das crianças, no entanto, é de natureza

científica. Através delas, nota-se que os interesses são muitos e diversi-ficados. Elas demonstram isto quando perguntam:

— O que é que segura a lua para ela não cair do céu? — Por que é que eu tenho que tomar vacina? — Por que é que a mamãe rega as plantas todo dia? — De onde vem a água da chuva?

Podemos assim constatar que Ciências constitui uma disciplina automotivada. O próprio conteúdo do estudo responde às indagações infantis.

E imprescindível que o professor aproveite esta vontade de saber. As perguntas, porém, devem ser selecionadas: umas respondidas de imediato — aquelas que apresentam sentido limitado; outras — aquelas que oportunizam um estudo mais profundo, seja por se incluírem na programação do professor, seja por se ligarem à realidade de vida dos alunos — deverão ser respondidas através do desenvolvimento de ativi-dades variadas.

Ficha de consulta n? 1, Módulo 1

Curiosidade infantil

CARACTERÍSTICAS DA CRIANÇA DE 6 A 12 ANOS

CONSEQÜÊNCIA

• Necessidade de conhecer a si mesma. • Necessidade de explorar, conhecer e entender o mundo que a cerca.

• Curiosidade intensa e extensa. • Grande incidência de perguntas. • Fase do "por quê".

CURIOSIDADE GERAL CURIOSIDADE CIENTÍFICA

, • Por que tenho que agradecer quan do ganho um presente? • Por que o papai trabalha todo dia? • Por que eu tenho que tomar vacina? • Por que não posso ir à escola sem uniforme?

• O que é que segura a lua no céu pra ela não cair?

• Por que a mamãe rega as plantas i todo dia?

PERGUNTAS RESPOSTAS EXEMPLOS

sentido limitado Imediata • Quando foi que o ho mem chegou à lua?

• Por que o homem não voa?

sentido amplo Através do desenvolvi-

mento de uma série de

atividades.

• Como é que o peixe não se afoga?

• Por que existem fo lhas vermelhas?

Exercício n? 2, Módulo 1

Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.

Boa sorte! ____________________________________

1. Marque apenas as afirmações corretas: (a) A curiosidade da criança se manifesta a partir de seu ingresso na

escola. (b) As perguntas infantis demonstram interesse da criança por si pró-

pria e pelo mundo que a cerca. (c) Dentre as inúmeras perguntas infantis, grande parte reflete curio-

sidade eminentemente científica. (d) A curiosidade científica infantil se limita aos fenômenos da natureza.

2. Marque'o que melhor completa a afirmação: Ciências é uma disciplina automotivada porque: (a) desperta a curiosidade infantil. (b) aumenta a curiosidade infantil. (c) opõe-se à curiosidade infantil. (d) responde à curiosidade infantil.

3. Coloque C ou G conforme as perguntas reflitam curiosidade científi ca ou geral da criança. ( ) Por que você está de vestido novo?

( ) Por que a água do mar é salgada? ' ( ) Afinal, de onde vêm os bebês?

( ) Para que as pessoas pintam o cabelo?

( ) Por que eu tenho que lavar as mãos tantas vezes?

( ) Quando é que começam as férias?

**• Faça a correspondência: (a) perguntas de resposta imediata (b) perguntas que favorecem estudos mais profundos ( ) quantas patas tem a mosca? ( ) o que é esturjão? ( ) por que as folhas são verdes? ( ) e verdade que a baleia é mamífero?

Objetivo n? 3, Módulo 1

Atenção: Se você tiver acertado as questões III e IV da pré-avalia-ção, está dispensado deste objetivo. Consulte seu professor. Caso contrário, siga o fJuxograma abaixo.

Fluxograma das atividades

Entrada

Leia o objetivo intermediário n? 3, ao final da página.

2. JL

Estude o texto n? 3: Base de experiências

científicas e tecnológicas.

3L

OU

IL

Entreviste seu professor: fenômenos científicos e aspectos

tecnológicos que cercam a criança; a influência

da tecnologia na vida atual.

\k

Resolva o exercício 3, do Módulo 1.

4. ^Y Consulte seu professor.

SIM

NAO

Objetivo intermediário n ?3: "Constatar a existência de

uma base de experiências científicas e tecnológicas que

precede o estudo de Ciências".

40

Texto n? 3, Módulo 1

Base de experiências científicas e tecnológicas

E importante reconhecer que, pelas coisas que dizem, as crianças

demonstram muito do que percebem, antes mesmo de estudar Ciências. Basta

lembrar que elas "vivem" Ciências vinte e quatro horas por dia, não apenas

nos hábitos higiênicos, na preservação da saúde, na ali-

entação, mas também através de todas as aplicações tecnológicas que envolvem a vida atual: luz elétrica, elevador, transportes, materiais uti-lizados em casa e na escola, brinquedos os mais diversos, medicamen-tos, geladeira, liqüidificador...

Disto resulta uma soma de madurezas que se constitui em rica base . experiências precedendo o conhecimento científico que as explica e que somente o estudo trará.

Isto se caracteriza quando a criança diz:

_ Trago o meu suco na garrafa térmica porque ele fica bem geladinho. _ Mamãe, só vou naquele dentista que tem motor a jato, porque não dói. _ Bota uma lâmpada de 100 velas no meu quarto pra ele ficar mais

claro.

— Meu carrinho não anda mais porque a pilha gastou.

Tecnologia e Ciência, nas séries iniciais do 1? Grau, se forjam no ambiente em que a criança vive, em suas condições de percepção, em seu interesse próximo e imediato.

A escola deve aproveitar esta curiosidade, bem como aquela soma anterior de vivências, a prontidão para o estudo e a compreensão da Ciência e da Tecnologia em seus estágios iniciais.

Exercício n? 3, Módulo 1

Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.

Boa sorte!

1. Marque o que melhor completa a afirmação:

A criança, ao entrar na escola, já apresenta uma base de experiên-cias científicas e tecnológicas. Isto acontece porque:

(a) as crianças possuem curiosidade científica. (b) os interesses infantis são muitos e diversificados. (c) desde que nasce, a criança está em contato com Ciências e Tecno-

logia. (d) toda a vida social depende, atualmente, da Ciência e da Tecnologia.

2. Marque as afirmações que refletem a base de experiências científicas e tecnológicas que precede o estudo de Ciências:

(a) Bota a roupa no sol que ela seca depressa.

(b) Estou cansado de tanto correr! (c) Mamãe, bate as claras na batedeira que é mais rápido e você não

se cansa. (d) Vou abrir a gaiola pro passarinho ficar livre. (e) Papai, me compra uma bicicleta de corrida? (f) Não preciso dar corda no meu relógio porque ele é automático.

Gabarito dos exercícios, Módulo 1

Exercício n? 1

1 —b 2 —a 3 —d

Exercício n?2

\ 1 —b, c \2 — d

13 — (G), (C), (C), (G), (C), (G) |4 — (b), (a), (b), (b)

Exercício n?3

1 —C

2 — a, c, f.

(Joullié, V. & Mafra, W. Didática de Ciências através de módulos

instrucionais. 2! ed. Petrópolis: Vozes, 1980.)

Trabalho de campo

1. Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas após o estudo do capítulo anterior. Destaque, agora, nas respostas fornecidas por pais e professores, os aspectos que as associam a uma visão comportamentalista do processo de desenvolvimento e apren-dizagem da criança.

Sugestão de leituras

NERI, A. L. O modelo comportamental aplicado ao ensino. In: PENTEA-DO, N. M. A. (org.). Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros, 1980.

SKINNER, B. F. Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1982.

Capítulo 4

A abordagem piagetiana

"Papai, por favor, corte este pinheiro — ele faz o vento. Depois que você

cortar ele, o tempo vai ficar bom e a mamãe me leva para um passeio."

"Mamãe, quem nasceu primeiro, você ou eu?"

(Helen Bee, A criança em desenvolvimento.)

Ouvir crianças pequenas dizerem coisas como essas do trecho trans-crito acima normalmente nos desconcerta, ao mesmo tempo que nos en-canta e diverte. Nossa atenção se volta então para o modo peculiar que a criança tem de pensar sobre as coisas e de estabelecer relações entre elas.

Às peculiaridades do pensamento e da lógica das crianças desper-taram o interesse de Jean Piaget, que se preocupou principalmente com a questão de como o ser humano elabora seus conhecimentos sobre a realidade, chegando a construir, no decorrer de sua história, sistemas científicos complexos e com alto nível de abstração. Ele acreditava que muito da resposta a essa indagação poderia ser encontrado no estudo do desenvolvimento do pensamento da criança.

Quem foi Piaget?

Jean Piaget nasceu em 1896, em Neuchâtel, na Suíça, e fale-ceu em 1980, aos 84 anos de idade.

Desde menino Piaget interessou-se por questões científicas, estudando moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica. Aos 10 anos, publicou as observações que fez sobre um pardal parcialmente albino e, aos 11 anos, começou a trabalhar como assistente do diretor do Museu de História Natural de sua cidade.

Concluiu seus estudos em Ciências Naturais em 1915 e, em 1918, doutorou-se nessa mesma área.

Interessado também por filosofia, encontrou na leitura da obra de Bergson, A evolução criadora, elementos que o ajudaram o formular a questão à qual se dedicaria por toda a vida: explicar

a rorma pela qual o homem atinge o conhecimento Iógico-abstrato que o distingue das outras espécies animais.

Embora se tratasse de uma questão tipicamente filosófica, a Piaget interessava abordá-la cientificamente. Ao longo de seu traba-lho, assumiu, então, o desafio de construir uma teoria do conheci-mento baseada na biologia e em que as especulações filosóficas esti-vessem ancoradas na pesquisa empírica. O elo que Piaget encontrou entre a filosofia e a biologia foi a psicologia do desenvolvimento.

A elaboração da teoria explicativa da gênese do conhecimento no homem levou Piaget a formular propostas teóricas e metodológicas inovadoras quanto à natureza dos processos de desenvolvimento da criança e que contrariavam as teses do inatismo-maturacionismo e do com-portamentalismo.

O fundamento básico de sua concepção do funcionamento intelectual e do desenvolvimento cognitivo éode que as relações entre o organismo e o meio são relações de troca, pelas quais o orga-nismo adapta-se ao meio e, ao mesmo tempo, o assimila, de acordo com suas estruturas, num pro-cesso de equilibrações sucessivas. Determinar as contribuições das atividades do indivíduo e das restrições do ambiente na aquisição do conheci-

mento foi o foco do seu trabalho experimental. No período de 1921 a 1925, Piaget concentrou-se na coleta de dados que permitissem esboçar os princípios e os fundamentos de sua teoria do conhecimento. Abordou temas gerais, como a relação entre pensamento e linguagem (1923), o desenvolvimento, na criança, do julgamento e do raciocínio (1924), da representação do mundo (1926), da causalidade física (1927) e do julgamento moral (1927). Esses estudos foram retomados, revistos e aprofundados ao longo das décadas seguintes.

No período de 1925 a 1931, com o nascimento de seus três filhos, Piaget dedicou-se à observação meticulosa do desenvolvi-mento dos bebês, elaborando análises sobre a construção do real e o desenvolvimento da inteligência. Na década de 30, ajudado por seus colaboradores, concentrou a pesquisa na gênese das noções de quantidade, número, tempo, espaço, velocidade, movimento, mensuração, lógica e probabili-dade. Na década de 40, abordou o desenvolvimento da percepção. A partir dos anos 50, Piaget voltou-se para a sistematização teórica da epistemologia genética, deixando a seus colaboradores os estudos em psicologia. Em 1955 fundou o Centro Internacional de Epistemologia Genética, onde reuniu cientistas de diferentes áreas (matemáticos, biólogos, psicólogos, lógicos) interessados em pesquisar problemas epistemológicos.

Na década de 70, já trabalhando exclusivamente nas pesquisas do Centro de Epistemologia, Piaget dedicou-se à investigação dos mecanismos de transição que impulsionam e explicam a evolução do desenvolvimento cognitivo.

Sua vasta produção é um marco de enorme importância para a psicologia e para os estudos do homem no século XX.

Procurando compreender como o homem elabora o conhecimento, Piaget

desenvolveu o que chamou de psicologia genética. A palavra genética, que

ele próprio aplicou à sua psicologia, refere-se à busca das origens e dos

processos de formação do pensamento e do conhecimento. A infância é considerada como um período particular do processo de

formação do pensamento, que só se completa na idade adulta. É importante,

então, não confundir as contribuições dadas por Piaget à compreensão do

desenvolvimento cognitivo da criança com uma "psicologia da criança". Ele

não se dedicou a estudar o pensamento infantil motivado por um interesse pela

infância em si e também não elaborou» sua psicologia genética movido pelo

interesse por questões propriamente psicológicas. O centro de seu trabalho e de

todos os seus estudos é o desenvolvimento do conhecimento. A formação de Piaget em Ciências Naturais levou-o a buscar compreender

o conhecimento com base na biologia. Fm sua concepção conhecer é organizar,

estruturar e explicar a realidade a partir daquilo que se vivência nas experiências

com os objetos do conhecimento. > No entanto, experiência não é a meuma rniga qnp conhecimento. Este

Diessupõe a organização da experiência num sistema de relações. Por

exemplo, "a humanidade atravessou alguns milênios sem perceber a

rela-çãoentre~vida e calor do sol; conhecer algo a respeito do calor solar seria

inserir o calor sentido na pele num sistema de relações que permite

compreendê-lo como condição de existência da vida" (Chiarottino, 1988).

Conhecimento e adaptação: os processos de

assimilação e acomodação

Mas como se dá a inserção de um objeto desconhecimento num sistema

de relações? Segundo Piaget, isso ocorre fundamentalmente Por meio da ação

do indivíduo sobre o objeto. Ao agir sobre o meio, o indivíduo incoxparaasi

elementos que pertencem ao meio. Através des-^Ê-Efpcesso de incorporação,

chamado por Piaget de assimilação, as coisas e os fatos do meio são inseridos

em um sistema de relações e adquirem significação para o indivíduo. Ao ler estas páginas, por exemplo, você está assimilando o que está

escrito (objeto de conhecimento), conforme vai estabelecendo relações c°m as idéias e os conhecimentos que já possui. As idéias e os conceitos

do texto são organizados e estruturados a partir do que você já conhece.

. Só assim o texto tem algum sentido para você.

Segundo Piaget, os reflexos, como

o de preensão, possibilitam ao bebê lidar com

elementos do ambiente,

assimilando-os.

Mas, ao mesmo tempo que as idéias e os conceitos do texto são incorporados ao sistema de idéias e conceitos que você possui, essas idéias e conceitos já existentes são modificados por aquilo que você leu (assimilou). Esse processo de modificação que se opera nas estruturas de pensamento do indivíduo é chamado por Piaget de acomodação.

Tal modo de conceber o funcionamento cognitivo é decorrente do modelo biológico em que Piaget se baseou. Segundo esse modelo, a inteligência é um caso particular de adaptação biológica. Um organis-mo adaptado ao meio é aquele que mantém um equilíbrio em suas tro-cas com o meio. Ou seja, é aquele que interage com o ambiente manten-do um equilíbrio entre suas necessidades de sobrevivência e as dificul-dades e restrições impostas pelo meio. Essa adaptação torna-se possível graças aos processos de assimilação e de acomodação (que, juntos, constituem o mecanismo adaptativo), comum a todos os seres vivos.

Assim, a inteligência é assimilação por permitir ao indivíduo incor-porar os dados da experiência. É também acomodação, pois os novos dados incorporados acabam por produzir modificações no funciona-mento cognitivo da pessoa. Logo, "a adaptação intelectual, como qual-quer adaptação, é exatamente o equilíbrio progressivo entre o mecanis-mo assimilador e a acomodação complementar" (Azenha, 1994: 26JT

Ao mesmo tempo que, por meio do processo de assimilação/acomoda-ção, o indivíduo adapta-se ao meio (elaborando seu conhecimento sobre ele), o seu próprio funcionamento cognitivo vai se estruturando, se organi-zando. Uma das primeiras formas de organização cognitiva é o esquema.

A noção de esquema

46

A criança, ao nascer, é dotada de reflexos que são reações automáticas desencadeadas por certos estímu

1-los.

Esses reflexos (como o de sucção e o de preensão) possibilitam ao bebê lidar com o ambiente. É através deles que elementos do meio ambiente (como a chupeta, o seio materno, a mamadeira, o patinho de borracha, etc.) vão sendo assimilados pela criança. A assimilação, como vimos, provoca uma transformação dos reflexos, que gradativamente vão se diferenciando e se tornando mais complexos e flexíveis, deixando de ser simples respostas estereotipadas a estímulos determinados. Esse processo dá origem a esquemas de ação, tais como pegar, puxar, sugar, empurrar, etc.

Para entender o que é um esquema de ação, pensemos no esquema de preensão. Um bebê pode pegar;— por

exemplo, um pequeno cubo de madeira, uma boi a mamadeira ou o dedo de alguém. Relativamente a cada um desses objetos, a ação de pegar apresenta pe quenas diferenças quanto aos movimentos que a criança realiza. No entanto, em todas essas situações a ação da criança apresenta determina-

das características que permitem chamá-la de pegar e que a diferenciam He

outras ações, como puxar, balançar ou empurrar. O esquema de ação t

justamente, o que é generalizável em uma ação, o que permite reconhecê-la e

diferenciá-la de outras ações, independentemente do objeto a que se aplica.

É por meio dos es- È j

quemas de ação que a criança

começa a conhecer a

realidade, assi-milando-a e

atribuindo-lhe

significações. Quando pega

a mamadeira, ela a

relaciona a seu esquema

"pegar" e atribui-lhe o

sentido de um objeto "que

se pega". Mas a criança

também aplica à mamadeira

o esquema "sugar". Essas

assimilações provocam

transformações nos

esquemas

"pegar" e "sugar", à medida que eles são acomodados ao objeto mamadeira.

Os esquemas "pegar" e "sugar" acabam então por se coordenar.

Vê-se que, mediante sucessivas assimilações e acomodações, o bebê vai

conhecendo os objetos de seu mundo imediato. Eles são organizados em

objetos "para olhar", "para pegar", "para sugar", "para empurrar", "para

morder", "para olhar e pegar", "para pegar e sugar", "para pegar e morder", e

assim por diante.

A organização do real por meio da ação marca o início do desenvolvi-

mento cognitivo da criança. De acordo com Piaget, os esquemas de ação

ampliam-se, coordenam-se entre si, diferenciam-se e acabam por se

interiorizar, transformando-se em esquemas mentais e dando origem ao

pensamento. Esse desenvolvimento contínuo dos esquemas se dá no sentido

de uma adaptação cada vez mais complexa e diferenciada à realidade.

A organização do

real, por meio da

ação, marca o

início do

desenvolvimento

cognitivo da

criança.

A noção de equilibração

O processo de desenvolvimento depende, na perspectiva piage-üana, de

fatores internos ligados à maturação, da experiência adquirida Pela criança em

seu contato com o ambiente e, principalmente, de um Processo de

auto-regulação que ele denomina equilibração.

Para Piaget, a equilibração é uma propriedade intrínseca e constj-

*tMtiva da vida mental. Por meio dela é que se mantém um estado de

■RUüíbrio ou de adaptação em relação ao meio, Toda vez que, em nossa re

lação com o meio, surgem conflitos, contradições ou outros tipos de

dificuldade, nossa capacidade de auto-regulação ou equilibração entra

em ação, no sentido de superá-los. Quando, por exemplo, um bebê tenta pegar um objeto pendurado sobre o berço, o objeto pode oferecer algu-ma resistência a seu esquema de pegar, que, em desequilíbrio, obriga-o a modificá-lo ou a coordená-lo com outro esquema, como o de puxar. Essa atividade da criança — a acomodação ou coordenação de seus esquemas de ação — é desencadeada graças à sua capacidade de auto-regulação, com o objetivo de compensar a resistência oferecida pelo objeto e alcançar um novo estado de equilíbrio.

Quando falamos em alcançar um novo estado de equilíbrio, quere-mos destacar que o processo de equilibração não consiste numa volta ao estado anterior, mas leva a um estado superior em relação ao inicial. No caso de nosso exemplo, o fato de a criança não conseguir pegar o objeto já indica que seus esquemas precisam ser aperfeiçoados. A reequilibra-ção, por meio da acomodação ou da coordenação de seus esquemas, implica uma ultrapassagem da situação anterior, uma abertura para novas possibilidades de ação.

A concepção sobre estágios de desenvolvimento

Poderíamos dizer, então, que o desenvolvimento, na concepçãg piagetiana, é fundamentalmente um processo de equilibrações sucessl^ vas que conduzem a maneiras de agir e de pensar cada vez mais comple- —. xas e elaboradas. Esse processo apresenta períodos ou estágios definidos-,"V caracterizados pelo surgimento de novas formas de organização mental.

Os estágios se sucedem numa ordem fixa de desenvolvimento, sendo um estágio sempre integrado ao seguinte. Além disso, cada estágio se caracteriza por uma maneira típica de agir e de pensar e constitui uma forma particular de equilíbrio em relação ao meio. A passagem de um estágio a outro se dá através de uma equilibração cada vez mais completa. Ou seja, a criança passa de um estágio a outro de seu desenvolvimento cognitivo s*^ quando seus modos de agir e pensar mostram-se insuficientes ou inade-i*»J quados para enfrentar os novos problemas que surgem em sua relaçãa^^ com o meio. Essa insuficiência é compensada pela atividade da criança, que acaba por engendrar modos mais elaborados de ação e pensamento.

O modelo de desenvolvimento cognitivo de Piaget destaca quatro períodos principais: o sensório-motor (do nascimento até aproximadamente os 2 anos de idade), o pré-operatório (dos 2 aos 7 anos), o operatório concreto (dos 7 aos 11 anos) e o operatório formal (dos 11 aos 15 anos).

Os estágios do desenvolvimento cognitivo

O período sensório-motor

O desenvolvimento cognitivo se inicia a partir dos reflexos que gra-

_ dualmente se transformam em esquemas de ação. Do nascimento até

os 2

48

„n0s de idade, aproximadamente, a criança passa do nível neonatal, marcado

pel° funcionamento dos reflexos inatos, para outro em que ela já é capaz de

uma organização perceptiva e motora dos fenômenos do meio.

De início, reflexos inatos respondem aos estímulos do meio. Luz, sons,

contrações faciais. A cabeça volta-se para a direção de onde vêm oS sons.

Calor, frio, fome, cheiros, choros... O corpo reflete o mundo e ainda não se

diferencia dele. A criança age sobre o mundo. Ela repetidamente chupa o dedo, suga a

pontinha da manga da roupa: movimentos não intencionais, centralizados no

seu próprio corpo, se repetem sempre. O reflexo inato de sugar assimila,

incorpora novos elementos do meio (o dedo, a roupa) e a0 mesmo tempo vai

sendo transformado por eles (acomodação), pois sugar o seio é diferente de

chupar o dedo, que também é diferente de sugar a própria roupa.

"Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por

conseguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná-los,

separá-los e juntá-los", afirma Piaget (1983: 14). A consciência da criança

sobre o meio externo se expande lentamente, | conforme suas ações se

deslo- | cam de seu próprio corpo para | os objetos. A mão agarra, ache-

| ga o objeto ao corpo, à boca que

experimenta, empurra-o para longe de

si. As pernas agitam-se em es^emeios.

Puxar, empurrar, contrair, distender,

apanhar, largar, juntar, espalhar, apertar,

f]g| afrouxar, são ações que também se

repetem. Os olhos acompanham os

movimentos.

O centro não é mais o corpo da criança,

já que por intermédio dessas ações a criança

manipula os elementos do meio. As

ações"agora são repetidas devido aos efeitos

interessantes que produzem, analisa Piaget.

Aos poucos, meios e fins vão sendo diferenciados e as ações começam a

ganhar intencionalidade. A descoberta casual de que a argola agarrada Produz

movimentos e sons num brinquedo suspenso acima do berço leva a criança a

repetir o movimento. Ela age para atingir um propósito. Os movimentos

ficam mais complexos, mais amplos, como engatinhar, Pôr-se de pé, andar.

Nesse percurso o eu e o mundo tornam-se progressivamente distintos. O

indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no plano das ações

exteriores, e a permanência dos objetos vai sendo c°nstruída. O brinquedo,

que ao ser retirado da criança deixava de e*istir para ela, passa a ser

procurado. A criança começa a perceber ^e os objetos, as pessoas, continuam

existindo mesmo quando estão ÍOr

a do seu campo de visão.

A criança repete

seus atos, devido

a seus efeitos

interessantes,

que ganham

intencionalidade.

49

Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do meio imediato. São elas que possibilitam o desenvolvimento da função simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação (jogo, imitação, imagens interiores, simbolização). Com o desenvolvi-mento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o mundo reorganizam-se num novo plano: o plano representativo.

A criança reproduz, ou imita, utilizando gestos ou onomatopéias, o comportamento e os sons de um modelo ausente, representando-o de alguma forma simbólica no jogo do faz-de-conta. Por meio de uma ima-gem mental, um símbolo, começa a imaginar fatos, objetos, pessoas, acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões, procurando re-lembrá-los. O espaço e o tempo se ampliam, à medida que o desenvol-vimento da função simbólica a libera de agir somente em situações do meio imediato. Ela torna-se capaz de imaginar ações ou fatos sem praticá-los efetivamente.

O período pré-operatório

Representando mentalmente o mundo externo e suas próprias ações, a criança os interioriza. E nesse período que ela se torna capaz de tratar os objetos como símbolos de outras coisas. O desenvolvimento da representação cria as condições para a aquisição da linguagem, pois a capacidade de construir símbolos possibilita a aquisição dos significa-dos sociais (das palavras) existentes no contexto em que ela vive.

Nesse momento, a criança deverá reconstruir no plano da repre-sentação aquilo que já havia conquistado no plano da ação prática. Assim, a diferenciação entre o eu e o mundo, que já tinha se completa-do no plano da ação, deverá ser elaborada no plano da representação. Centrada no seu próprio ponto de vista, a criança ainda não é capaz de se colocar no lugar do outro nem de avaliar seu próprio pensamento. Ela não considera mais de um aspecto de um problema ao mesmo tem-po, fixando-se sempre em apenas um deles.

Ao repartir o refrigerante com o irmão, a criança só considera a partilha justa se o líquido ficar em altura igual nos dois copos, mesmo que um deles seja visivelmente mais estreito. Ela considera apenas uma dimensão do problema (a altura do líquido no copo), a mais evidente em termos perceptivos. Não é ainda capaz de raciocinar levando em conta as relações entre as várias dimensões envolvidas (a largura e o formato do copo), e o tipo de percepção que tem dos objetos determina o tipo de raciocínio que faz sobre eles.

Nas explicações que dá, o seu ponto de vista prevalece sobre as relações lógicas. Ela diz coisas como "Ficou de noite porque o sol foi dormir", "Quem fez aquele rio foram os homens que moravam ali". Ações humanas explicam os fenômenos naturais, elementos da nature-za praticam ações humanas, são dotados de intencionalidade e quali-dades humanas.

Como a noção de permanência dos objetos, que leva muito tempo ra Ser elaborada no nível sensório-motor, os processos de raciocínio lógico e os conceitos demoram também um longo tempo para se desenvolver, a

partir desses primeiros raciocínios (pré-lógicos) de que a criança se torna capaz com a representação.

O período das operações concretas

É apenas ao final do período pré-operatório, após equilibrações sucessivas, que o pensamento da criança assume a forma de operações intelectuais. As operações são ações mentais voltadas para a cons tatação e a explicação. A classificação e a seriação, por exemplo, são ações mentais. Essas ações são sempre reversíveis, ou

T

seja, têm a propriedade de voltar ao ponto de partida. * -

A criança torna-se capaz de compreender o ponto de vista de outra pessoa e de conceitualizar algumas rela ções. Portanto, é nessa fase que são estabelecidas as bases para o pensamento lógico, > próprio do período final do de senvolvimento cognitivo. J

HOJE A PROFESSORA ENSINOU QUE DOIS MAS DOIS SÃO QUATROÍ ,

Ao final do

período

pré-operatório, o

pensamento da

criança começa a

assumir a forma

de operações

intelectuais.

F

onte: Nossas crianças. Abril Cultural, 1970. v. 4.

A reversibilidade do pensamento possibilita à criança construir noções de conservação de massa, volume, etc. O pensamento reversível pode ser definido como a capacidade de levar em consideração uma série de operações que, revertidas, conduzem ao estado inicial. E o que ocorre, por exemplo, com a noção de conservação de líquidos: uma criança, num nível operatório, é capaz de compreender que a quantidade

de refrigerante contida em um copo permanece a mesma quando despejada em outro mais alto e mais estreito, embora o nível do líquido se torne mais elevado. Essa capacidade está relacionada à possibilidade

51

V kAANDOU VÁRIOS ALUNOS AO QUADRO-NEGRO PARA SO^^ARE^V DOIS MAIS <■ DOIS IGUAL A QUATRO. )

de ela representar mentalmente a operação inversa — o líquido retornando ao copo original — e, desse modo, compreender que a quan-tidade se mantém invariável, a despeito das alterações perceptíveis. As-sim, se for repartir o refrigerante com o irmão, despejando-o em dois copos de formatos diferentes, essa criança terá condições (diferente-mente de uma criança menor) de considerar as múltiplas dimensões en-volvidas no problema, estabelecendo relações entre altura e largura do copo e quantidade de líquido.

Assim, por meio das operações — inicialmente só aplicáveis a ob-jetos concretos e presentes no ambiente — os conhecimentos cons-truídos anteriormente pela criança vão se transformando em conceitos.

O período das operações formais

Apenas na adolescência é que o indivíduo se torna capaz de pensar abstratamente, refletindo sobre situações hipotéticas de maneira lógica. As operações mentais que aplicava só a objetos podem ser aplicadas, agora, também a hipóteses formuladas em palavras.

O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos futuros, sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais articulado. O adoles-cente não tem mais necessidade de estar diante dos objetos concretos ou de operar sobre eles para relacioná-los. Ele transforma os dados da experiên-cia em formulações organizadas e desenvolve conexões lógicas entre elas.

O adolescente torna-se, enfim, capaz de pensar sobre o seu próprio pensamento, ficando cada vez mais consciente das operações mentais que realiza ou que pode ou deve realizar diante dos mais variados pro-blemas. Essa consciência a propósito do próprio pensamento "pode ser presumida pelo seguinte tipo, muito citado, de perguntas de adolescen- > tes: 'Eu me surpreendi pensando acerca do meu futuro e então comecei a pensar por que estava pensando no futuro, e aí comecei a pensar por que eu estava pensando sobre por que eu estava pensando no meu futu-ro'" (Evans, 1980: 116).

pesquisando a criança: o método clínico

Em 1919, trabalhando com Simon na padronização dos testes de inteligência, Piaget voltou sua atenção para as respostas tidas como er-radas dadas pelas crianças que participavam dos testes. Começou a se preocupar com quais seriam as razões das falhas das crianças em com-preender determinadas coisas, com qual seria o tipo de raciocínio implí-cito em suas respostas.

Indagando-se sobre os processos de pensamento que estariam por trás das respostas erradas, Piaget desenvolveu um "método de obser-vação que consiste em deixar a criança falar, anotando-se a maneira pela qual ela desenvolve o seu pensamento. A novidade consiste em deixar a criança falar, seguindo suas respostas: guiada por elas, a crian-ça é encorajada a falar cada vez mais livremente. Dessa forma, é pos-sível obter em cada domínio da inteligência um procedimento clínico de exame que é análogo ao que os psiquiatras adotaram como meio para a elaboração do diagnóstico. E a resposta da criança que deter-mina parcialmente o próximo passo do experimentador" (Azenha, 1994: 105).

Piaget chamou esse tipo de procedimento de método clínico. Em algumas investigações, a criança era incentivada a agir sobre objetos e depois a falar sobre o que havia feito.

Uma das situações mais famosas utilizadas por Piaget começava com duas bolas iguais feitas com massa de modelar. Pedia-se à criança que as segurasse e perguntava-se se havia ou não a mesma quantidade de massa nas duas bolas.

Quando a criança respondia afirmativamente, mudava-se a forma de uma das bolas, passando-a para a forma de um^ salsicha, por exemplo, e novamente se perguntava à criança se havia na salsicha a mesma quantidade de massa que na bola. Algumas crianças diziam que sim, explicando que havia a mesma quantidade porque se se fizesse de novo uma bola, esta seria igual à primeira. Outras, mais novas, davam explicações como "esta tem mais porque é mais comprida", referindo-se à salsicha.

Por meio de situações desse tipo, Piaget procurava compreender a maneira de pensar da criança em diferentes idades. Para ele, não inte-ressava se a criança acertava ou errava ao responder, mas sim a maneira como pensava no problema proposto. Seu objetivo era apreender o tipo de operação mental que a criança realizava (no caso desse exemplo, ele investigava as noções de conservação e a reversibilidade do pensamen-to da criança).

Assim, com base nas pesquisas realizadas através do método clíni-

Co e também na observação direta de seus próprios filhos,

especialmen-te nos dezoito primeiros meses de vida, Piaget, auxiliado

por inúmeros colaboradores, foi gradativamente elaborando sua teoria sobre o desenvolvimento cognitivo da criança.

Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem piagetiana na escola

Vimos que, na concepção piagetiana, o desenvolvimento da crian-ça é um processo que depende essencialmente da equilibração, que é a capacidade natural de auto-regulação do indivíduo. As estruturas cog-nitivas da criança são elaboradas e reelaboradas continuamente a partir da sua ação (física ou mental) sobre o meio.

De acordo com esse quadro teórico, a aprendizagem praticamente não interfere no curso do desenvolvimento. A ênfase nos processos internos e na atividade construtiva da própria criança resulta em uma concepção que considera a aprendizagem como dependente do pro-cesso de desenvolvimento. Ou seja, aquilo que a criança pode ou não aprender é determinado pelo nível de desenvolvimento de suas estru-turas cognitivas.

Segundo Piaget, tudo o que é transmitido à criança sem que seja compatível com seu estágio de desenvolvimento cognitivo não é de fato incorporado por ela. A criança pode imitar mecânica e externa-mente o adulto, mas não compreende (e, portanto, não conhece) o que está fazendo.

As formulações de Piaget têm tido grande influência sobre a práti-ca pedagógica, inclusive no Brasil. Ao destacarem o papel ativo da criança no processo de elaboração do conhecimento, têm sido responsá-veis por idéias como: o papel fundamental da escola é dar à criança oportunidades de agir sobre os objetos de conhecimento; o professor não deve ser aquele que transmite conhecimentos à criança, mas sim um agente facilitador e desafiador, de seus processos de elaboração; a criança é quem constrói o seu próprio conhecimento.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

i Abaixo estão relacionados os principais conceitos da teoria pia-getiana. Dê o significado de cada um deles.

• adaptação;

• assimilação;

• acomodação;

• equilibração;

• esquema;

• estágio de desenvolvimento.

2. Sintetize as principais idéias de Piaget acerca do processo de desen-volvimento.

3. Faça uma comparação, apontando as semelhanças e diferenças, entre as maneiras como o desenvolvimento é visto pelas abordagens pia-getiana, inatista-maturacionista e comportamentalista. Compare sua resposta com as de seus colegas, num debate que envolva a classe toda.

Refletindo sobre as informações do texto

Comente uma das afirmações abaixo:

• "Pelo próprio fato de todo conhecimento ser, ao mesmo tempo, acomodação ao objeto e assimilação do sujeito, o progresso da inteligência (desenvolvimento psicológico) opera no duplo senti do da exteriorização e da interiorização, e seus dois pólos serão o domínio da experiência física e a conscientização do próprio fun cionamento intelectual" (Piaget, A construção do real na criança).

' "Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por con-seguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná-los, separá-los e juntá-los. Nesse sentido, o conhecimento não é nem uma cópia interior dos objetos ou acontecimentos do real, nem o mero reflexo desses objetos e acontecimentos que se imporiam ao sujeito. Ele é uma compreensão do real, construída a partir de modos de ação do sujeito sobre o meio, dependendo dos dois — sujeito e objeto — ao mesmo tempo" (Piaget, A epistemologia genética).

"Cinqüenta anos de experiência ensinaram-nos que não existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observações, sem uma estruturação devida às atividades do indivíduo. Mas, tampouco, existem estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o

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funcionamento da inteligência é hereditário, e só gera estruturo mediante uma organização de ações sucessivas, exercidas sobre os objetos" (Piaget. Apud: Piatelli-Palmarini, Teorias da linguagem teorias da aprendizagem).

Pesquisa de campo

Você já deve ter ouvido falar em construtivismo. Essa palavra, que

vem ganhando destaque entre os educadores brasileiros desde a década de 70, origina-se na teoria piagetiana:

"Uma concepção construtivista da inteligência, como acentua Piaget, incluiria a descrição e a explicação de como se constróem as operações intelectuais e as estruturas da inteligência, que, mesmo não determinadas por ocasião do nascimento, são gradativamente elaboradas pela própria necessidade lógica" (Azenha, M. G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro).

Converse com alguns professores da Ia. à 4* série e da pré-escola.

Pergunte-lhes como definem o construtivismo e o que pensam de sua relação com a educação. Anote suas respostas.

Confronte as respostas dos professores com a definição acima. Ela-bore, a partir desse confronto, três conclusões a respeito da relação en-tre as teorias psicológicas e a prática dos professores.

Exercitando a análise

Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas ao final do estudo do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas dadas por pais e professores aspectos que as associam a uma visão pia-getiana de desenvolvimento.

Sugestão de leituras

AZENHA, M. G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo: Ática, 1994.

CASTRO, A. D. Piaget e a pré-escola. São Paulo: Pioneira, 1986. EVANS, R. I. Jean Piaget: o homem e suas idéias. Rio de Janeiro:

Fo-rense-Universitária, 1980. PIAGET, J., INHELDER, B. Psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 1989. RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. A teoria de Jean Piaget e a educação. In: PEN-

TEADO, W. A. P. Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros, 1986.

Filme recomendado

Os transformadores, documentário apresentado pela TV Cultura (epi-sódio Piaget).

Capítulo 5

A abordagem

histórico-cultural

O interesse em explicar como se formaram, ao longo da história do homem, as características tipicamente humanas de seu comportamento e como elas se desenvolvem em cada indivíduo constitui a base da abor-dagem histórico-cultural em psicologia, desenvolvida por um grupo de psicólogos soviéticos liderado por L. S. Vygotsky.

O princípio orientador da abordagem de Vygotsky é a dimensão sócio-histórica do psiquismo. Segundo esse princípio, tudo o que é especificamente huma- A no e distingue o homem de outras espécies origi-na-se de sua vida em sociedade. Seus modos de perceber, de representar, de explicar e de atuar sobre o meio, seus sentimentos em relação ao mundo, ao outro e a si mesmo, enfim, seu fun- , cionamento psicológico, vão se constituindo | nas suas relações sociais.

A criança, analisam Vygotsky e seus cola-boradores, não nasce em um mundo "natural". Ela nasce em um mundo humano. Começa sua vida em meio a objetos e fenômenos criados pelas gerações que a precederam e vai se apropriando deles conforme se relaciona socialmente e parti cipa das atividades e práticas culturais.

Desde o nascimento, a criança está em constante interação com os adultos, que compartilham com ela seus modos de viver, de fazer as coisas, de dizer e de pensar, integrando-a aos significados que foram sendo produzidos e acumulados historicamente. As atividades que ela realiza, interpretadas pelos adultos, adquirem significado no sistema de comportamento social do grupo a ^e pertence.

Nesse processo interativo, as reações naturais — herdadas biologi-

camente — de resposta aos estímulos do meio (tais como a

percepção, a Memória, as ações reflexas, as reações automáticas e as associações

L. S. Vygotsky.

simples) entrelaçam-se aos processos cultu-ralmente organizados e vão se transforman-do em modos de ação, de relação e de repre-sentação caracteristicamente humanos.

"Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser homem", escreveu Leontiev um dos psicólogos que integravam o grupo de Vygotsky.

Assim, de acordo com a perspectiva his-tórico-cultural, a relação entre o homem e o meio físico e social não é natural, total e diretamente determinada pela estimulação ambiental. E também não é uma relação de adaptação do organismo ao meio.

Questionando as teorias psicológicas de seu tempo, entre as quais aquelas que se apoiavam em modelos biológicos para expli-car o desenvolvimento humano (como as que já estudamos até aqui), Vygotsky desta-cava que, diferentemente das outras espé-cies, o homem, pelo trabalho, transforma o meio produzindo cultura.

criança nasce em A transformação do biológico em histórico-cultural um mundo

humano, Q uso jg instrumentos

Quando sente fome, um animal procura comida na natureza, e seu comportamento, nesse caso, é orientado exclusivamente pelas suas pos-sibilidades e características biológicas (um predador age diferentemen-te de um herbívoro) e pelas resistências ou facilidades que o ambiente lhe impõe (abundância ou escassez de alimento, por exemplo).

Já o homem cria instrumentos. Pode-se considerar instrumento tudo aquilo que se interpõe entre o homem e o ambiente, ampliando e modificando suas formas de ação. São instrumentos, por exemplo, a enxada, a serra, o arado, as máquinas, usados no trabalho. Criados pelo homem para lhe facilitarem a ação sobre a natureza (o arado, para arar a terra; a serra, para cortar as árvores e transformá-las em madeira, etc), os instrumentos acabam transformando o próprio comportamento hu-mano, que deixa de ser uma ação direta sobre o meio, controlada apenas pela relação entre as necessidades de sobrevivência e o ambiente. 0 instrumento amplia os modos de ação naturais do homem e seu alcance. Assim, da mesma forma que atua sobre a natureza, transformando-a, o homem atua sobre si próprio, transformando suas formas de agir.

Segundo a abordagem histórico-cultural, a relação entre homem e meio é sempre mediada por produtos culturais humanos, como o instru-*^ mento e o signo, e pelo "outro".

Quem foi Vygotsky?

Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1896 em Orsha, Bielo-Rússia, e faleceu prematuramente, aos 38 anos, em 1934, vítima de tuberculose. Concluiu seus estudos em Direito e Filologia na Universidade de Moscou, em 1917. Posteriormente estudou Medicina. Lecionou literatura e psicologia em Gomei, de 1917 a 1924, quando se mudou novamente para Moscou, trabalhando, de início, no Instituto de

Psicologia e, mais tarde, no Instituto de Defectologia, por ele fundado. Dirigiu, ainda, um Departamento de Educação para deficientes físicos e retardados mentais. De 1925 a 1934, Vygotsky lecionou psicologia e pedagogia em Moscou e Leningrado. Nessa ocasião, iniciou estudo sobre a crise da psicologia, buscando uma alternativa dentro do mate-rialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista e

mecanicista. Tal estudo levou Vygotsky e seu grupo — entre eles A. R. Luria e A. N. Leontiev — a propostas teóricas inovadoras sobre temas como: relação entre pensamento e linguagem, natureza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da instrução no desenvolvimento.

Vygotsky foi ignorado no Ocidente e teve a publicação de suas obras suspensa na União Soviética de 1936 a 1956. Hoje, no entanto, a

partir da divulgação feita, seu trabalho vem sendo profundamente estudado e valorizado.

A morte prematura de Vygotsky interrompeu uma carreira brilhante, da qual podemos resgatar hoje importantes contribuições. A atualidade dos temas tratados por ele é o sinal mais evidente de que

estamos diante de uma obra da maior significação. O fundamento básico de suas hipóteses de que os processos

psicológicos superiores humanos são mediados pela linguagem e estruturados não em localizações anatômicas fixas no cérebro, mas em sistemas funcionais, dinâmica e historicamente mutáveis, levou-o, juntamente com Luria, por volta de 1930, a se interessar pelo fenômeno

da instalação, perda e recuperação de funções ao nível do sistema nervoso central. Estes estudos foram continuados por Luria, após sua morte.

(Extraído de Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvol-

vimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Edusp, 1988.)

O uso de signos

0 signo é comparado por Vygotsky ao instrumento e denominado por ele

"instrumento psicológico". Tudo o que é utilizado pelo homem Para

representar, evocar ou tornar presente o que está ausente constitui Urn

signo: a

palavra, o desenho, os símbolos (como a bandeira ou o er

nblema de um time

de futebol), etc. Enquanto o instrumento está orientado externamente, ou seja, para

a

Codificação do ambiente, o signo é internamente orientado, modifi-Car|

do o

funcionamento psicológico do homem.

E através dos signos que realizamos

muitas de nossas ações.

Utilizamos os signos para desempe_ nhar diversas atividades. Anotar um compromisso na agenda, fazer uma lista de convidados, colocar rótulos em objetos, usar palitos para fazer contas, contar uma história, seguir uma partitura musical, fazer a planta de uma construção são formas de utilização de signos que' ampliam nossas possibilidades de me-mória, raciocínio, planejamento, imagi-nação, etc.

De acordo com a concepção históri-co-cultural, é importante considerar que a utilização dos instrumentos e dos signos não se limita à experiência pessoal de um indivíduo.

Quando utilizamos um martelo, por exemplo, estamos incorporando a nossas ações as experiências das gerações pre-cedentes, uma vez que o próprio martelo, o modo de manipulá-lo e a finalidade de seu uso nos são transmitidos nas nossas relações com o outro. O acesso à escrita,

às notações musicais, às convenções gráficas e à palavra, por sua vez, também se faz na interação com outras pessoas, sendo uma incorporação de experiências anteriores de determinado grupo cultural. No caso da linguagem, que é o sistema de signos mais importante para o homem, os significados das palavras são produto das relações históricas entre os homens.

O papel do outro e a internalização

60

A apropriação dos instrumentos e dos signos pelo indivíduo ocorre sempre na interação com o outro.

"O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa atra-vés de uma outra pessoa", escreveu Vygotsky. "Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profunda-mente enraizado nas ligações entre história individual e história social" (1984: 37).

Desde o nascimento, a criança tem com o mundo uma relação mediada pelo outro e pela linguagem. O adulto ensina a criança a utili-zar os objetos — ele agita o chocalho diante dela, ajuda-a a pegá-lo, ensina-a a chutar a bola, a comer com talheres, a tomar banho, a vestir-se, a falar ao telefone. O adulto aponta, nomeia, destaca, indica os objetos do mundo para a criança, ao mesmo tempo que atribui significações aos seus comportamentos. Quem já viu um adulto lidando com um bebê, sabe que o adulto fala o tempo todo, dando nomes para os objetos, dirigindo a atenção da criança e interpretando tudo o que ela faz.

Aos poucos a criança aprende a falar e passa a utilizar a própria Im-agem para regular suas ações, conferir sentido às coisas. Ela pode, ao

gUexer no botão da televisão, por exemplo, dizer "Não pode!". Ou, quan-I

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tropeça, falar "Caiu!". Ou, quando vê um prato de sopa, falar "Papá!". É na sua relação com o outro que a criança vai se apropriando das

unificações socialmente construídas. Desse modo, é o grupo social J|e por meio da linguagem e das significações, possibilita o acesso a f irmãs culturais de perceber e estruturar a realidade.

A partir de suas relações com o outro, a criança recons-trói internamente as formas culturais de ação e pensamento, assim como as significações e os usos da palavra que foram com ela compartilhados. A esse processo interno de reconstrução de uma operação externa, Vygotsky dá o nome de inter-nalização.

Na internalização, a ativi-dade interpessoal transforma-se para constituir o funcionamento interno (intrapessoal) (Góes, 1991).

Desse modo, a abordagem histórico-cultural considera que toda funçãr/psicológica se desenvolve em dois planos: primeiro, no da rela-ção entre indivíduos e, depois, no próprio indivíduo. O processo de de-senvolvimento vai do social para o individual, ou seja, as nossas manei-ras de pensar e agir são resultado da apropriação de formas culturais de ação e de pensamento.

Logo, para Vygotsky as origens e as explicações do funcionamento psicológico do homem devem ser buscadas nas interações sociais. É aí que o indivíduo tem acesso aos instrumentos e aos sistemas de signos que possibilitam o desenvolvimento de formas culturais de atividade e permitem estruturar a realidade e o próprio pensamento.

A criança

conhece o mundo

por meio de suas

relações com os

outros.

Pesquisando a criança: o papel do signo no desenvolvimento

Ao estudar o desenvolvimento da criança, as patologias e a defi-ciência mental, Vygotsky baseou-se em observações e experimentação em situações variadas. Ele defendia a idéia de que o trabalho experi-

mental não devia limitar-se a modelos de laboratório divorciados das atuações naturais da vida, podendo ser realizado em situações de brin-cadeira, de aprendizado, nas conversações informais, na escola, na fa-mília ou em um ambiente clínico.

Nas situações experimentais por ele criadas, seu objetivo fundamental

era o de estudar o processo de constituição da atividade mediada. Ou seja,

para Vygotsky interessava investigar os modos como a criança utilizava os

signos para executar tarefas envolvendo, por exemplo, a atenção a memória, a

percepção; os modos de participação do outro na resolução dessas tarefas; e os

modos como a própria situação estimuladora ia sendo ativamente modificada

no processo de resposta a ela.

Nessas condições, os dados fundamentais do experimento não eram as

respostas dadas pelas crianças, e sim os modos pelos quais elas chegavam às

respostas e as condições em que elas as elaboravam. Assim, as questões

centrais a que o experimentador voltava sua atenção eram: O que a criança

está fazendo? Como ela tenta satisfazer às exigências da tarefa que lhe foi

proposta? De que recursos lança mão? Que tipo de ajuda solicita, e a quem? O

que é um obstáculo, uma dificuldade para ela na situação? Como ela utiliza as

pistas e as ajudas que lhe são oferecidas durante a realização da atividade

experimental? Nos estudos desenvolvidos por Vygotsky e seu grupo, o observador

desempenhava um papel diferente do exercido nos outros estudos que vimos

até aqui. Como mediador da elaboração da criança, o experimentador era mais

que um mero observador. Sua participação constituía um dos dados da

pesquisa. Ele interagia com a criança, falando com ela, acolhendo suas

dúvidas e comentários, propondo a ela caminhos alternativos para a solução

da situação-problema, oferecendo-lhe, inclusive, materiais que pudessem ser

utilizados de modos diversos para o cumprimento da tarefa. Ele também

conversava com a criança sobre as soluções encontradas, procurando ouvir

dela própria a explicação de como tinha chegado à solução das tarefas. Um experimento desenvolvido por Leontiev para estudar o papel

desempenhado pelos signos mediadores no desenvolvimento da atenção

voluntária pode ilustrar a forma como trabalhava o grupo de pesquisa de

Vygotsky. A atenção, assim como a percepção e a memória, é uma atividade

psicológica com a qual nascemos. Como o de outras espécies, nosso

organismo é dotado de mecanismos neurológicos inatos que permitem

selecionar estímulos do ambiente apropriados à sobrevivência. Nascemos com

mecanismos de atenção involuntária, que nos permitem perceber e responder

automaticamente a ruídos fortes, objetos em movimento e mudanças bruscas

do ambiente. No entanto, ao longo de nosso desenvolvimento, tornamo-nos cat pazes

de dirigir a atenção não só para os estímulos ligados a nossa sobrevivência,

mas também para situações ou elementos que nos interessam. Por exemplo, ao

lermos determinado livro, dizemos que ele "prende nossa atenção", quando

somos capazes de ignorar, durante a leitura, os ruídos do ambiente ou o

movimento das pessoas em torno de nós. E, na escola, uma criança pode

permanecer alheia a tudo o que a professora está explicando ou escrevendo na

lousa, a despeito da sua movimentação pela classe, do som da sua voz ou do

fato de ser diretamente solicitada a prestar atenção.

Ao dirigirmos deliberadamente nossa atenção para estímulos do meio que consideramos relevantes, transformamos aquele mecanismo biológico de atenção involuntária em um mecanismo de atenção volun-tária, em uma atividade psicológica controlada por nós mesmos. Essa transformação, segundo Vygotsky, está relacionada ao significado dos estímulos, o qual vai sendo produzido em nossas relações sociais e nas nráticas culturais dos grupos a que pertencemos.

Assim, para estudar como um elemento auxiliar externo pode con-trolar e direcionar a atenção da criança, Leontiev utilizou um jogo in-fantil tradicional na Europa, o das palavras proibidas, equivalente ao nosso jogo do "sim, não e porquê".

O pesquisador participava do jogo fazendo perguntas às crianças, que deveriam responder sem utilizar determinadas palavras, como, por exemplo, azul e vermelho.

Num primeiro momento, o pesquisador formulava perguntas como "Qual a cor de sua blusa?", "Qual a cor do céu?", "Qual a cor da maçã?", e as crianças respondiam a elas. Num segundo momento, ele fazia as mesmas perguntas mas entregava às crianças cartões coloridos que elas poderiam utilizar, se quisessem e como quisessem.

Com a introdução dos cartões (como recurso auxiliar para a execu-ção da tarefa), procurava-se verificar se as crianças os utilizavam ou não como suportes para sua atenção e memória e de que modos o fa-ziam. Algumas crianças não utilizavam os cartões, outras separavam os que apresentavam as cores proibidas e os consultavam antes de respon-der à pergunta, cometendo assim um número menor de erros.

Ej>se resultado foi interpretado como um indicador de que elemen-tos mediadores externos, os cartões, incorporados à atividade da crian-ça, ampliavam sua capacidade de atenção e memória, possibilitando a ela ter maior controle voluntário de sua própria atividade.

Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência

da abordagem histórico-cultural na escola

Como vimos, o desenvolvimento é entendido por Vygotsky como um processo de internalização de modos culturais de pensar e agir. Esse processo de internalização inicia-se nas relações sociais, nas quais os adultos ou as crianças mais velhas, por meio da linguagem, do jogo, do

razer junto" ou do "fazer para", compartilham com a criança seus sis-temas de pensamento e ação.

Embora aponte diferenças entre aprendizado e desenvolvimento, Vv

gotsky considera que esses dois processos caminham juntos desde o Primeiro dia da vida da criança e que o primeiro — o aprendizado — suscita e impulsiona o segundo — o desenvolvimento. Ou seja, tudo ^auilo qUe a criança aprende com o adulto ou com outra criança mais

'e'ha vai sendo elaborado por ela, vai se incorporando a ela, transfor-

mando seus modos de agir e pensar.

Assim, segundo Vygotsky, o conhecimento do mundo passa pelo outro, sendo a educação "o traço distintivo fundamental da história do pequeno ser humano. A educação pode ser definida como sendo o de senvolvimento artificial da criança. Ela é o controle artificial dos pro-cessos de desenvolvimento natural. A educação faz mais do que exercer influência sobre um certo número de processos evolutivos: ela rees-trutura de modo fundamental todas as funções do comportamento" (1985: 45).

Os processos de aprendizado transformam-se em processos de de-senvolvimento, modificando os mecanismos biológicos da espécie. Sendo um processo constituído culturalmente, o desenvolvimento psi-cológico depende das condições sociais em que é produzido, dos modos como as relações sociais cotidianas são organizadas e vividas e do aces-so às práticas culturais.

Em razão de privilegiar o aprendizado e as suas condições sociais de produção no processo de desenvolvimento, Vygotsky colocou em discussão os indicadores de desenvolvimento utilizados pela psicologia da época.

Para avaliar o desenvolvimento de uma criança, os psicólogos con-sideravam apenas as tarefas e as atividades que ela era capaz de realizar sozinha, sem a ajuda de outras pessoas. Procedendo assim, os psicólo-gos, segundo Vygotsky, apreendiam apenas seu nível de desenvolvi-mento real, isto é, "o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de deserP volvimento já completados"- (Vygotsky, 1984).

Ao considerarem apenas o desenvolvimento real, problematizava Vygotsky, os psicólogos voltavam-se para o passado da criança. Ou seja, apreendiam processos de desenvolvimento já concluídos.

No entanto, destacava ele, nas situações de vida diária e mesmo na escola, era possível perceber que as atividades que a criança realizava sozinha, por exemplo, comer com a colher, amarrar os sapatos, montar uma torre com peças de tamanhos diversos, escrever, foram antes com-partilhadas com outras pessoas.

Sua proposta, então, era a de que se trabalhasse também com os indicadores de desenvolvimento proximal, que revelariam os modos de agir e de pensar ainda em elaboração e que requerem a ajuda do outro para serem realizados. Os indicadores do desenvolvimento proximal seriam as soluções que a criança consegue atingir com a orientação e a colaboração de um adulto ou de outra criança.

Segundo sua análise, o aprendizado (a atividade interpessoal) pre-cede e impulsiona o desenvolvimento, criando zonas de desenvolvi-mento proximal, ou seja, processos de elaboração compartilhada.

Observar a atividade compartilhada da criança possibilita olhar para o seu futuro, pois "o que é o desenvolvimento proximal hoje será o nível de desenvolvimento real amanhã — ou seja, aquilo que a criança é capaz de fazer com assistência hoje ela será capaz de fazer sozinha ama-nhã" (Vygotsky, 1985).

Além disso, o desenvolvimento proximal como desenvolvimento elaboração possibilita a participação do adulto no processo de

6

rendizagem da criança. Para consolidar e dominar autonomamente as Yvidades e operações culturais, a criança necessita da mediação do

3 tr0

O mero contato da criança com os objetos de conhecimento ou ° esmo sua imersão em ambientes informadores e estimuladores não "arante a aprendizagem nem promove necessariamente o desenvolvimento, uma

vez que ela não tem, como indivíduo, instrumental para reanizar ou recriar sozinha o processo cultural (Oliveira, 1995). Portanto, é no

campo do desenvolvimento em elaboração que a oarticipação do adulto, como pai, professor, parceiro social, se faz necessária.

Conforme alertava Vygotsky, "o bom aprendizado é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento" (1984: 101).

O papel da escolarização

O modo como Vygotsky concebia e analisava o desenvolvimento humano levou-o a discutir explicitamente o papel da escolarização. Di-ferentemente de outros psicólogos, Vygotsky considerou as espe-cificidades das relações de conhecimento produzidas na escola, distin-guindo-as das relações de conhecimento cotidianas.

Em nossas sociedades, a escola é uma instituição encarregada de possibilitar o contato sistemático e intenso das crianças com o sistema de leitura e de escrita, com os sistemas de contagem e de mensuração, com os conhecimentos acumulados e organizados pelas diversas disci-plinas científicas, com os modos como esse tipo de conhecimento é elaborado e com alguns dos variados instrumentos de que essas ciências se utilizam (mapas, dicionários, réguas, transferidores, máquinas de calcular, etc).

As relações de

conhecimento

travadas na

escola têm uma

natureza distinta

das demais.

65

Embora chegue à escola já dominando inúmeros conhecimentos e modos de funcionamento intelectual necessários à elaboração dos co-nhecimentos científicos sistematizados, durante o processo de educa-ção escolar a criança realiza a reelaboração desses conhecimentos me-diante o estabelecimento de uma nova relação cognitiva com o mundo e com o seu próprio pensamento.

O estudo da aritmética, por exemplo, não começa do zero. Ao che-gar à escola a criança já passou por experiências anteriores relativas a quantidades, determinação de tamanho, operações de divisão, adição etc. O mesmo acontece quanto à escrita e às operações mentais utilizadas em situações do cotidiano. Nas brincadeiras, nas tarefas da casa, nas compras que faz para a mãe, a criança, imitando os mais velhos, "escreve", classifica, compara, seria, estabelece relações entre os elementos de uma situação, etc. Nessas situações, sem que ela própria e seus parceiros sociais percebam, os conhecimentos vão sendo elaborados ao ritmo da própria vida, entrelaçados às emoções, às necessidades e interesses imediatos da atividade em que está envolvida. _„ Na escola, as condições se modificam. Ali as relações de conhecimento são intencionais e planejadas. A criança sabe que está ali para apropriar-se de determinado tipo de conhecimentos e de modos de pensar e de explicar o mundo, organizados segundo uma lógica que ela deverá apreender.

—Ç> A professora acompanha a criança: orienta sua atenção, destacan-do elementos das situações em estudo considerados relevantes à com-preensão dos conhecimentos nelas implicados; analisa as situações para e com a criança e leva-a a comparar, classificar, estabelecer relações lógicas; demonstra como usar determinados procedimentos da matemática e da escrita; ensina a utilizar o mapa, os equipamentos de laboratório, etc.

A criança, por sua vez, raciocina com a professora. Segue suas ex-plicações e instruções, reproduz as operações lógicas realizadas por ela, mesmo sem entendê-las completamente. Nessas situações compartilha-das com a professora, a criança aprende significados, modos de agir e de pensar, e começa a elaborá-los. Ela também re-significa e reestrutura significados, modos de agir e de pensar, e começa a se dar conta das atividades mentais que realiza e do conhecimento que está elaborando.

Nesse sentido, destaca Vygotsky, a educação escolarizada e o pro-fessor têm um papel singular no desenvolvimento dos indivíduos.

Fazendo junto, demonstrando, fornecendo pistas, instruindo, dando assistência, o professor interfere no desenvolvimento proximal de seus alunos, contribuindo para a emergência de processos de elaboração e de desenvolvimento que não ocorreriam espontaneamente.

A escola, possibilitando o contato sistemático e intenso dos indi-víduos com os sistemas organizados de conhecimento e fornecendo a eles instrumentos para elaborá-los, mediatiza seu processo de desen-volvimento.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1 Faça um resumo do que você compreendeu sobre o papel do signo e ' das interações sociais na formação do funcionamento psicológico humano.

2. Conceitue mediação e internalização.

3. Compare a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento hu-mano com as abordagens apresentadas pelo inatismo-matura-cionismo, pelo comportamentalismo e pela teoria piagetiana. Enumere as semelhanças e diferenças entre essas abordagens e confronte-as com as relacionadas por seus colegas, numa discussão envolvendo a classe.

Pesquisa de campo

Converse com alguns professores da V. à 4? série e da pré-escola. Pergunte-lhes como vêem o papel da escola e seu papel de professores no desenvolvimento da criança. Anote suas respostas.

Confronte o que pensam os professores com as reflexões de Vygotsky acerca da relação entre escolarização e desenvolvimento.

A seguir, apresente três conclusões a respeito da influência das teo-rias psicológicas do desenvolvimento na prática dos professores.

Exercitando a análise

1> Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas ao final do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas dadas pelos dois grupos aspectos que as associam a uma visão histórico-cultural de desenvolvimento.

2. Leia o texto 'O renascimento de Josela', de Silvia Adoue, publicado na revista Ande,x\°. 7, 1984. Em pequenos grupos, discutam o papel da professora no processo vivido por Josela. Num debate da classe, apresentem a análise elaborada pelo grupo.

Sugestão de leituras

GÓES, Maria C. R. de. A natureza social do desenvolvimento psicológi-co. Cadernos Cedes, n? 24. Campinas: Papirus, 1991.

LEITE, Luci B. As dimensões interacionista e construtivista em Vygotsky e Piaget. Cadernos Cedes, n? 24. Campinas: Papirus, 1991.

OLIVEIRA, M. K. Vygotsky — Aprendizado e desenvolvimento: um pro-cesso sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1993.

_______ . O pensamento de Vygotsky como fonte de reflexão sobre a educação. Cadernos Cedes, n? 35. Campinas: Papirus, 1995.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fon-tes, 1984.

Filmes recomendados

O enigma de Raspar Hauser, dirigido por Werner Herzog. 'As borboletas de Zagorsky', episódio do documentário Os transformadores, apresentado pela TV Cultura de São Paulo.

Capítulo 6

As abordagens sobre

desenvolvimento e aprendiza-

gem e a prática pedagógica*

Quando estudamos as principais abordagens teóricas acerca do de-senvolvimento e da aprendizagem, logo emerge a questão da relação entre a psicologia e a prática pedagógica. Afinal, para que servem as teorias psicológicas, nos perguntamos.

É muito comum ouvir dizer que certo professor é construtivista, outro é vygotskyano, outro behaviorista. Mas o que isso significa? O que é adotar determinada perspectiva teórica?

■Essas questões fazem pensar na necessidade de compreender e explicitar a relação entre a teoria e a prática. O que é uma teoria? Para que ela serve?

Nos capítulos anteriores, mostramos que a abordagem inatista, por exemplo, foi construída a partir do interesse pelo problema das diferen-ças individuais. E que Piaget elaborou sua psicologia genética a partir de suas preocupações com a gênese e o desenvolvimento do conhecimento.

Considerando esses dois exemplos, podemos dizer que as teorias foram elaboradas para descrever, explicar, interpretar, compreender certos aspectos da realidade (nesses casos, as diferenças individuais e o conhecimento). E, ainda, que as teorias constituem um corpo de conhe-cimentos sistematizados sobre a realidade, uma espécie de lentes atra-vés das quais se olha o mundo.

E a prática, o que é? É a aplicação de uma teoria? Caso fosse, pode-ríamos dizer, por exemplo, que um pai, quando elogia o filho para incentivá-lo a se comportar da forma que ele considera adequada, está aPÜcando a teoria comportamentalista. No entanto, a maioria dos pais

que têm esse tipo de conduta nunca ouviram falar em compor-tamentalismo. Como poderiam, então, estar aplicando essa teoria?

Mesmo no meio escolar, onde provavelmente as teorias são mais conhecidas, não nos parece correto afirmar que a prática seja aplicação da teoria. Começamos este livro falando da complexidade dás relações

que ocorrem na escola, da diversidade de fatores presentes no seu coti-diano. Crianças que brigam, choram, inventam, aprendem, perdem o lápis, faltam à aula; professores que perdem a paciência, riem, expli-cam, passam tarefas, contam história, recebem ou não recebem salários Todas essas ações são formas de atividade humana, são práticas cultu-rais cotidianas, e não aplicações de alguma teoria. São parte da realida-de e, assim, tão complexas e multifacetadas quanto a própria realidade

Vivemos as práticas cotidianas em geral irrefletidamente, só paran-do para pensar sobre elas quando algum problema ou algum descom-passo se manifesta. Os problemas e descompassos suscitam questões que requerem explicações.

Quando nos debruçamos sobre a realidade tentando compreendê-la e explicá-la, estabelecemos um novo modo de relação com nossas prá-ticas cotidianas. Olhamos para o que fazemos e somos, analisamos e refletimos sobre o vivido, procurando organizá-lo.

Nesse processo de busca de compreensão, vivemos outra prática cultural, a "prática da teorização", e produzimos um conhecimento de natureza distinta do conhecimento baseado na vivência cotidiana. No esforço para explicar as questões e problemas surgidos no cotidiano, nos obrigamos a "parar para pensar", a olhar de longe as situações vivi-das, tentando apreender seus aspectos essenciais, suas contradições, o modo como seus elementos se articulam, as transformações por que passam. Procuramos organizar as nossas vivências e nosso próprio pro-cesso de reflexão sobre elas em um sistema explicativo coerente.

Por tudo isso, não dá para considerar a prática como aplicação da teoria, nem a teoria como algo que se aplica à prática. A prática é a base da teoria (que também é uma prática humana de produção de conhecimen-to). E a teoria elaborada é uma reflexão organizada e sistematizada sobre aspectos da prática que nos ajudam a analisá-la, problematizá-la e redefini-la. Nesse sentido, teoria e prática articulam-se dinamicamente.

Considerando desse modo a relação entre teoria e prática, podemos dizer que as teorias psicológicas são lentes através das quais olhamos a prática pedagógica e que nos ajudam a compreendê-la.

Certamente o modo como o professor lida com a complexidade da prática é determinado pela compreensão que ele tem sobre ela, podendo essa compreensão ser instrumentalizada e mediada pela teoria. Nesse sen-tido, dizemos que o professor não aplica teorias, mas articula teoria e prá-tica, à medida que seus conhecimentos teóricos o ajudam a compreender o que ocorre em sala de aula, marcando suas decisões e seus modos de agir.

Os diferentes modos de olhar

Das quatro principais abordagens existentes na psicologia sobre o desenvolvimento e a aprendizagem, três delas, como vimos, se apoiam de alguma forma em modelos biológicos: a inatista-maturacionista, a comportamentalista e a piagetiana. A outra, a abordagem histórico-cul-tural, questiona os modelos biológicos, considerando-os inadequados

para explicar o pensamento humano, que teria sua origem nas relações sociais mediadas pela linguagem.

As abordagens maturacionista e piagetiana priorizam o processo de desenvolvimento como objeto de estudo e enfatizam o papel de fatores nternos, como a maturação ou a equilibração, na determinação desse pro-cesso. Já os comportamentalistas, considerando que comportamentos, habilidades e pensamentos são aprendidos, destacam a preponderância de fatores externos, como os estímulos e os reforçadores, no processo de aprendizagem. Para Vygotsky, tanto o desenvolvimento quanto a aprendi-zagem decorrem das condições sociais em que o indivíduo está imerso.

Cada uma dessas perspectivas prioriza, em suas investigações e reflexões, aspectos distintos da vida psíquica e apresenta explicações bastante diferentes sobre os processos de desenvolvimento e de apren-dizagem.

Qual delas seria, então, a "certa" ou a "melhor"? Você talvez até já tenha simpatizado mais com uma delas, em razão de seu próprio modo de pensar sobre o homem e a criança. Ou, o que é muito provável, estará supondo que cada uma explica certo aspecto do desenvolvimento e da aprendizagem.

Com base em sua experiência, você pode achar que algumas crian-ças são mesmo mais inteligentes que outras ("Pode ser hereditário!"); que, de fato, as crianças da mesma idade são muito parecidas ("É a maturação"); ou, ainda, que às vezes "esse negócio de reforço funcio-na"; e, também, que as interações sociais são fundamentais.

Cada uma das abordagens explica um pouco?

De fato, podemos dizer que cada abordagem apresenta contribui-ções diferentes e importantes em relação aos aspectos da vida mental. No entanto, adotar o ponto de vista de que cada uma explica um pouco do processo de aprendizagem e desenvolvimento não é algo tão simples como pode parecer.

Pensemos, por exemplo, no problema do erro na escola. Todos nós sabemos que as crianças cometem erros em relação à escrita, aos con-ceitos, etc. Como interpretá-los?

Na perspectiva comportamentalista, o erro é tomado como um comportamento inadequado, portanto a ser eliminado. Logo, o profes-sor deve se empenhar para não reforçá-lo positivamente, evitando, as-sim, que o erro, ou o comportamento inadequado, se fixe.

Já na perspectiva piagetiana, o erro é considerado como parte do Processo de construção do conhecimento. O erro que a criança comete (como no caso da conservação, de que falamos no capítulo 4) pode ser resultado de sua própria atividade assimilativa, da aplicação dos seus es

quemas mentais (ou de ação) a determinado objeto ou conteúdo. Quando a atividade assimilativa resulta em erro, e principalmente se de torrna repetida, ocorre uma desequilibração das estruturas cognitivas da criança. Isso faz com que ela, por meio de sua atividade cognitiva, mo-

difique (acomode) seus esquemas, o que resulta em uma reequilibração e, portanto, no aperfeiçoamento de sua maneira de agir e de pensar e em um nível mais complexo de conhecimento sobre o objeto. Logo, o erro deve ser respeitado como um momento do processo de elaboração do conhecimento. -%» As "dificuldades de aprendizagem" apontadas pelos professores também têm diferentes interpretações. Na abordagem maturacionista "as dificuldades de aprendizagem" são consideradas a partir da relação de dependência do aprendizado ao desenvolvimento. Assim, se uma criança encontra dificuldade em aprender o que é ensinado na escola, isso talvez se deva à falta de "maturidade" da criança ou a algum atraso em seu desenvolvimento. ÍJ, A abordagem histórico-cultural, por sua vez, considerando que a aprendizagem produz desenvolvimento, vê as "dificuldades de aprendi-zagem" como relativas às condições em que a relação de ensino é pro-duzida. Uma vez que tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem são processos que ocorrem no plano das interações sociais, as "dificul-dades de aprendizagem" são enfocadas não como algo inerente à crian-ça, mas às suas condições de produção no contexto interativo em que ela se insere.

A atividade da criança como foco de análise

Os exemplos considerados acima indicam que as abordagens teóri-cas da psicologia são, muitas vezes, opostas ou contraditórias. Proble-mas como o erro e as dificuldades de aprendizagem são interpretados de modos bastante diferentes, dependendo da perspectiva teórica que se adote. Isso porque cada uma delas apresenta princípios explicativos.de natureza distinta, como a maturação e a hereditariedade, o condiciona-mento, a equilibração e a mediação por signos, decorrentes, por sjia vez, de diferentes concepções a propósito do ser humano e da criança.-

Desse modo, a análise da atividade da criança a partir de diferentes abordagens teóricas nos parece ser o caminho mais adequado para apu-rar nossa compreensão sobre suas especificidades.

Por isso, na segunda parte deste livro, você será convidado a olhar para a atividade da criança — seus processos de elaboração conceituai, suas brincadeiras, desenhos e escrita — na situação de produção na es-cola e em outros contextos, a partir das contribuições de Piaget e de Vygotsky. Guiados pelas indicações de ambos, vamos nos aproximar do desenvolvimento da atividade da criança, prestando atenção ao que ela faz e diz e às relações que estabelece com outras crianças e com os adultos.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

Reproduza o quadro a seguir em seu caderno e preencha-o:

Papel dos fatores internos e externos no desenvolvimento

Relação entre desenvolvimento e aprendizagem

Principais representantes

Contribuições para a prática pedagógica

Refletindo sobre o texto

Neste capítulo, fizemos algumas considerações sobre como as teo-rias psicológicas se relacionam com a prática pedagógica. Agora, em pequenos grupos, sintetizem o que foi visto até o momento, orientando-se pelos itens do quadro acima.

Exercitando a análise

1. Reveja as situações que você observou na escola (atividade do capí-tulo 1) e destaque uma que, do seu ponto de vista, pode ser explicada sob a perspectiva de uma das abordagens teóricas estudadas até ago-ra. Esboce a interpretação da situação com base na perspectiva teóri-ca escolhida e justifique-a.

2. Reveja as perguntas que você enumerou (também como atividade do capítulo 1) e tente responder a elas com base nas quatro abordagens estudadas.

Seminários e debates

Apresentamos a seguir uma relação de textos que abordam, sob entes perspectivas, questões relativas ao desenvolvimento e à

^Prendizagem, tais como a inteligência da criança, as dificuldades e

aPrendizagem e os atrasos no desenvolvimento.

73

Abordagem

inatista-maturacionista Abordagem

comportamentalista

difen

CARRAHER, T. N. et alii. Cultura, escola, ideologia e cognição — Continuando

um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 57, maio/86. São Paulo: Fundação

Carlos Chagas.

FREITAG, B. Piagetianos brasileiros em desacordo? Contribuições para um

debate. Cadernos de Pesquisa, n? 53, maio/85. São Paulo: Fundação

Carlos Chagas.

MORO, M. L. A construção da inteligência e a aprendizagem escolar de

crianças de baixa renda — Uma contribuição para o debate. Cadernos de

Pesquisa, n? 56, fev./86. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.

PATTO, M. H. S. Criança da escola pública: deficiente, diferente ou mal

trabalhada?. Revendo a proposta de alfabetização. Projeto Ipê. São Paulo:

SE/CENP, 1985.

. A criança marginalizada para os piagetianos brasileiros; de

ficiente ou não?. Cadernos de Pesquisa, n? 51, nov./84. São Paulo:

Fundação Carlos Chagas.

SMOLKA, A. L. B. O trabalho pedagógico na diversidade (adversidade) da sala

de aula. Cadernos Cedes, n? 23. São Paulo: Cortez, 1989.

_______ et alii. A questão dos indicadores de desenvolvimento: apontamentos para discussão. Caderno de Desenvolvimento Infantil, n? 1,

1994. Curitiba: Centro Regional de Desenvolvimento Infantil da Pastoral

da Criança/CNBB.

Com a classe organizada em grupos, cada um deles deve ficar res-

ponsável pela leitura, estudo e apresentação de um dos textos.

Procure destacar os pontos mais importantes do texto e identificar, com

base nesta primeira parte do livro, a abordagem teórica adotada ou criticada

pelos diversos autores.

Depois da apresentação de cada grupo (que pode ser feita em mais de

uma aula), faça com os colegas um debate sobre as questões tratadas nos

textos e sobre os diferentes modos de ver a criança e o trabalho pedagógico

presentes na psicologia.

Sugestão de leitura

SMOLKA, A. L. B., LAPLANE, A. F. O trabalho em sala de aula: teorias para

quê? Cadernos ESE, n? 1, nov./93. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação

da Universidade Federal Fluminense.

Filme recomendado

Crescer e aprender — Um guia para pais, documentário realizado pelo

Unicef e apresentado pela TV Cultura de São Paulo.

^HK JIE8 d^lBHÉ

elaboração

conceituai

Unidade 2

Introdução

palavra integra nossas relações com a criança já a partir de seu nascimento. Falamos com a criança muito antes que ela comece a falar ou, mesmo, a nos entender. Como

pais, tios, avós, irmãos, sabemos que em certo momento ela vai começar a falar e encaramos esse fato como algo natural e próprio do ser humano.

Em nossas relações cotidianas, vamos compartilhando com a criança em crescimento as palavras que conhecemos e por meio das quais nomeamos, organizamos e participamos do mundo em que vive-mos. Esse compartilhamento também nos parece corriqueiro e natural, e muitas vezes divertido, pois acabamos nos surpreendendo com algu-mas das coisas que as crianças nos dizem.

Quando a criança chega à escola, nós, educadores, continuamos ensinando-lhe novas palavras, como adição, subtração, fração, substan-tivo, verbo, sílaba, ponto final, pátria, cultura, monarquia, república, escravidão, sistema circulatório, célula, oxigênio, atmosfera, energia, clima, relevo, etc. Essas palavras expressam relações complexas que os homens, ao longo de sua história, foram estabelecendo entre os elemen-tos do mundo, no seu esforço para conhecê-los e explicá-los. Por tudo isso, consideramos necessário que a criança as conheça e saiba utilizá-las adequadamente. Esforçamo-nos, então, para que ela as aprenda. E esse aprendizado também nos parece natural.

"Assim, como adultos, ou membros mais velhos dos grupos sociais de que a criança faz parte, não temos o hábito de nos interrogar acerca dos modos pelos quais ela, criança, se relaciona com as palavras. O que é a palavra para a criança? Como é que ela se apropria das palavras e como elabora seus significados? Que papel, afinal, nós, adultos, desem-penhamos nesse processo?

Entretanto essas questões têm, há muito tempo, preocupado filóso-fos, lingüistas, psicólogos, educadores, que têm se voltado, cada um em seu campo de estudo, para a busca de explicações e respostas a elas.

Nesta segunda unidade, vamos tematizá-ías a partir das perspecti-vas de Piaget e de Vygotsky.

No capítulo 7, vamos problematizar as funções da palavra e nos aproximar dos modos como esses dois autores analisam e explicam suas relações com o pensamento.

No capítulo 8, focalizaremos como cada um deles descreve e expli-ca o processo de elaboração da palavra pela/na criança.

No capítulo 9, vamos discutir o papel da escola na elaboração da pala-vra pela criança, tendo em vista essas duas importantes contribuições.

A

Capítulo 7

A relação entre pensamento e

linguagem

Campinas, agosto de 1987. Numa sala de aula da 3

a. série de uma escola pública da periferia, a

diretora entra e comunica à professora e aos alunos que, na semana se-guinte, a escola toda deverá comemorar a Semana da Pátria.

— "Todas as manhãs vamos hastear a bandeira, cantar o Hino e um dos professores falará sobre a data. "

Voltando-se para a professora: — "Prepare as crianças."

, A saída da diretora, têm início os comentários. Juliana (para Fabiana) — "A tia vai dar desenho pra gente

pintar, né?!"

Eli (para o colega ao lado) — "Que negócio que ela falou da bandeira ? "

Eli (para a professora) — "A gente vai enfeitar a classe com bandeirinha verde e amarela? Foi isso que ela falou?"

Cláudio (comentando com Sérgio) — "A gente vai ter que cantar o hino..."

Sérgio — "Mas é lá fora. Dá pra ficar de olho nas meninas da 4fsérie, meu!"

Elaine (para a professora) — "É sete de setembro, né, tia?!"

João (para Sérgio) — "É feriado..."

A professora, diante dos comentários suscitados pelo comuni-cado, e procurando identificar de que modo atender à solicitada "preparação das crianças" para o evento, escreve na lousa — SEMANA DA PÁTRIA — e pergunta para a classe:

— "O que significa Semana da Pátria?"

Sérgio — "Semana é semana. Segunda, terça, quarta... " Proff— "É isso mesmo. E Pátria? O que é Pátria?" As respostas disparam rapidamente, com firmeza. Fabiana — "Pátria é coisa de soldado."

Ronaldo — "É isso que eu ia falar. É coisa de polícia, de bom-beiro. Eles desfilam lá na cidade. Passa na TV também. "

Juliana — "A gente sempre pinta o desenho do soldadinho com a bandeirinha e escreve em cima — Semana da Pátria. "

Proff — "Então Pátria é coisa de soldado ? Quem aqui tem Pátria ? "

Sérgio — "Povão não tem Pátria, dona." Proff— "Por quê?"

Sérgio — "A gente não tem casa, não tem dinheiro, o pai vira e mexe tá desempregado... A gente não tem nada. Não tem Pátria também."

(Episódio extraído do Projeto de Pesquisa sobre os Processos de

Elaboração Conceituai na Escola, elaborado e desenvolvido por

Roseli A. C. Fontana de 1987 a 1991.)

Para as crianças, o 7 de Setembro

tem diversos significados.

Situações como essa acontecem nas salas de aula. E, ao acontece-rem, surpreendem, porque levantam questões acerca de nossas relações com a palavra...

O que dizemos, o que queremos dizer ao enunciar a palavrapátrial O que o outro quer dizer quando enuncia pátrial

Na situação que inicia o capítulo, podemos perceber que a palavra pátria não tem um sentido só. Na fala da diretora, na fala da professora, na fala das crianças, ela assume nuances distintas, que são marcadas pela situação em que foi enunciada.

Sobre o que fala a dire-tora? Para quê? A quem se dirige?

Ela comunica um evento às crianças, determina a presença delas e da professora nesse evento, revela ex-pectativas com relação a ta-refas a serem assumidas pela professora (preparação) e pelas crianças (afinal, são elas as pessoas que devem ser preparadas para o evento). E nesse contexto e na situação de autoridade escolar que ela diz a palavra pátria. Sobre o que

falam as crianças? A quem se dirigem? Para que dizem o que dizem? Elas compartilham entre si e com a professora os modos como se

relacionam com as palavras da diretora. Algumas procuram obter mais esclarecimentos, levantando suposições e pedindo confirmações acerca do que pode vir a acontecer na escola: "A tia vai dar desenho pra gente pintar, né!?"; "A gente vai enfeitar a classe com bandeirinha verde e amarela?". Outras procuram confirmar com a professora as informa-

cões que relacionam com aquilo que foi dito pela diretora: "É sete de

setembro, né, tia?!". Outras, ainda, procuram esclarecer aspectos do

comunicado que não conseguiram entender: "Que negócio que ela falou da

bandeira?". Os dizeres das crianças se cruzam e trazem para a interlocução outros

elementos e outras possibilidades de significação do comunicado da diretora.

Por exemplo, João, ouvindo de Elaine a referência ao 7 de Setembro, fala do

feriado, desencadeando para seus colegas outras possibilidades de leitura da

fala da diretora. Cláudio, ao ouvir a referência ao Hino, enfatiza "o cantar lá

fora", que é "lido" por Sérgio como a possibilidade de paquerar. No processo de elaboração das palavras pelas crianças, o evento

comunicado pela diretora vai se revestindo de nuances e sentidos diversos

daqueles destacados por ela. Desenhos, bandeirinhas, feriado, paquera... tudo

isso é Semana da Pátria também. Ao perguntar "o que é pátria?", a professora apresenta às crianças outro

modo de relação com a palavra. Ela desloca as crianças da relação de uso da

palavra para uma relação de reflexão sobre a palavra. Para responderem à professora, as crianças precisam refletir sobre o que

pensam que a palavra pátria significa. Precisam explicitar o seu modo de

pensar. O dizer da professora imprime uma direção à atividade intelectiva das

crianças. Pela palavra ela age sobre suas elaborações. Ela destaca a palavra

pátria, transformando-a no foco da atividade das crianças. Ela pergunta sobre

seu significado, questiona o significado apresentado pelas crianças pedindo

que justifiquem as relações que estabelecem entre a palavra pátria e outras

palavras, como soldado e povão. É em resposta a ela que as crianças selecionam e articulam os fragmentos

de suas experiências, orientadas pela palavra pátria. Na resposta a ela,

organizam a compreensão da palavra a partir do lugar social que ocupam:

alunos na escola, espectadores nos desfiles, marginalizados no processo de

produção e circulação dos bens culturais na sociedade em que vivem.

Ao prestarmos atenção à linguagem em funcionamento nas interlocuções,

vamos nos dando conta da complexidade da palavra. Ela é múltipla e diversa, conforme diz o poeta:

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra e te

pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou

terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?

(Carlos Drummond de Andrade)

Pela palavra nomeamos o mundo e somos nomeados. Objetos, co-res

e

formas, modos de ser, de dizer e de fazer, o que existe e o que poderá existir,

tudo tem nome, tudo pode ser nomeado. Pátria também é

nome. Nome de quê? "Pátria é coisa de soldado", dizem as crianças ("... mil faces secretas...").

Nomeados nos tornamos Ana, João, Marina, Mariana, Beto ou Rafael pai, filho, irmão, a professora, a "tia", a criança impossível, o herói.

Mas a mesma palavra que serve para nomear, instituir, também ser-ve para negar: "Você não é mais a minha mãe!", resmunga ou grita a criança contrariada. "Povão não tem pátria", diz Sérgio.

As palavras nos permitem compartilhar experiências, pensamen-tos, sentimentos, e também ocultá-los, pois é pela palavra que menti-mos, que "desconversamos" ("Trouxeste a chave?").

Por elas e com elas agimos com o outro e sobre o outro: apontamos dirigimos a atenção, pedimos, prometemos, damos ordens, negocia-mos, discutimos, polemizamos, trapaceamos.

"... mil faces secretas sob a face neutra..."

Por elas e com elas nos aproximamos do outro. Acolhemos sua palavra, ouvimos e reconhecemos nos seus modos de dizer os fragmen-tos da realidade a que dirige sua atenção, os modos como apreende a realidade e como a organiza. Aprendemos.

Por elas e com elas nos opomos ao outro. Recusamos sua palavra. Lutamos com elas e contra elas. E também aprendemos.

Por entre elas nos perdemos do outro e o buscamos por entre os caminhos nos quais procura ocultar-se.

Por entre elas e com elas vamos nos apropriando da história ou sendo colocados à sua margem; vamos nos apossando das crenças, dos gostos, dos valores, enfim, dos modos de viver, de pensar e de conhecer do nosso tempo.

No jogo das palavras, construímos a nossa própria identidade, di-zemos o mundo e nos dizemos no mundo. "Povão não tem pátria, dona!" Mas também é pela palavra que interrogamos essa mesma iden-tidade e suspeitamos dela: "Eu, quem eu era? De que lado eu era?" (João Guimarães Rosa).

Afirmação e negação, encontro e desencontro, verdade e trapaça, centro e margem. Como as palavras chegam a ser palavras? Como seus significados e sentidos se produzem e circulam nas interlocuções? Como elas se tornam parte de nós?

Essas questões são intrigantes e tão grandes quanto o homem. Des-de os gregos elas vêm sendo formuladas e discutidas, e rediscutidas, e novamente formuladas.

Na psicologia, como em outras áreas do conhecimento, essas ques-tões têm sido respondidas de modos diversos.

O que a psicologia nos diz

A linguagem como comportamento

Watson e Skinner consideram a linguagem como comportamento: o comportamento verbal.

Como todo comportamento, as palavras são respostas aprendidas por associação e reforçamento. A palavra e seu significado se unem a partir de relações externas. O elo entre a palavra e seu significado se forma pela reiterada percepção simultânea de determinado som e de determinado objeto. Assim, a palavra tem significado conforme remete ao objeto a que foi associada.

A conexão entre palavra e significado pode fortalecer-se, enfraque-cer, ser extinta ou ampliada em razão das contingências reforçadoras que acompanham as respostas dadas pelo indivíduo. Por exemplo, a uma criança que já relaciona a palavra fruta ao elemento laranja, pode-mos ensinar o emprego generalizado dessa palavra, associando-a a ou-tros elementos, como maçã, pêra, mamão, banana, por meio da modela-gem de suas respostas. Do mesmo modo, também podemos extinguir conexões entre palavra e significado consideradas inadequadas pelo processo de controle das respostas por contingências externas.

Nesse quadro de referências, as palavras sofrem mudanças pura-mente externas e quantitativas. Elas são associadas a outros elementos e eventos do meio ou têm parte de suas conexões extinta.

Como as conexões entre palavra e significado são externas (são objetivas, no dizer dos comportamentalistas), podemos aferir o grau de correção, de adequação com que a criança utiliza a palavra.

A linguagem como função da inteligência

Segundo Piaget, "a linguagem só é acessível à criança em função dos progressos de seu pensamento" (1975: 345).

Até os 2 anos de idade, aproximadamente, a linguagem tem um papel insignificante no desenvolvimento da criança, porque suas for-mas de agir sobre o mundo e de compreendê-lo são individuais e construídas no plano da ação imediata. A criança se relaciona com o mundo e o elabora por meio dos seus sentidos e de seus movimentos (período sensório-motor).

Da inteligência sensório-motora deriva a função simbólica, que permite à criança desprender-se do seu contexto imediato. A função simbólica, vista como possibilidade de representação, é analisada por Piaget como um processo individual que cria condições para a aquisi-ção e o desenvolvimento da linguagem.

"A função simbólica", afirma Piaget, "é um mecanismo individual cu

ja existência prévia é necessária para tornar possível [...] a constitui-ção ou aquisição das significações coletivas" (1975: 14).

Nessa afirmação de Piaget, fica evidenciada sua concepção de lin-guagem. A linguagem integra-se à função simbólica. Ela não é sua cau-sa e sim seu resultado. Ela também é apenas um caso particular das formas de simbolização.

"A linguagem é certamente um caso particular, especialmente im-portante, não o nego, mas um caso limitado no conjunto das manifesta-ções da função simbólica" (Piatelli-Palmarini, 1979: 248). Ela diz res-Peito aos sistemas de signos coletivos que transmitem ao indivíduo uma

série de conceitos, um sistema pronto de classificações e de relações, que vão

sendo apreendidos e elaborados por ele de acordo com seus esquemas de ação

e de pensamento. Assim, no processo de aquisição da linguagem, os significados das

palavras não são diretamente incorporados pela criança. As palavras não se

imprimem nela como se se tratasse de uma placa fotográfica. Ela elabora

ativamente as palavras com base em seus esquemas de assimilação,

construindo significados que nem sempre correspondem aos significados

utilizados por nós, adultos. Se atentarmos, por exemplo, nas definições que as crianças deram de

pátria, na situação descrita no início deste capítulo, vamos perceber que elas

diferem da definição que um adulto em geral lhe dá (pátria = país onde

nascemos), ou da que aparece num dicionário, em que é enfatizado o sentido

genérico de terra natal, país onde nascemos, lugar de origem, nação, além do

sentido afetivo de comunidade moral e histórica. Na fala das crianças, o

sentido da palavra pátria está relacionado a suas experiências anteriores, na

escola e fora dela (desenhos para colorir, classe enfeitada, os desfiles, os

soldados), a suas condições imediatas de vida (falta de moradia, falta de

dinheiro, desemprego) e até mesmo a interesses pessoais projetados na

comemoração escolar (a pa-quera, o feriado). Essas diferentes formas de entendimento entre crianças e professora,

segundo Piaget, resultam das diferenças qualitativas entre o pensamento

infantil e o pensamento adulto. Somente o desenvolvimento do pensamento operatório (tratado no

capítulo 4) é que vai possibilitar ao sujeito apreender as relações lógicas, de

abstração (atividade mental por meio da qual identificamos e separamos os

elementos que compõem um todo) e de generalização (processo mental

inverso e complementar da abstração que nos possibilita agrupar vários

objetos singulares de acordo com os caracteres comuns que neles

reconhecemos), contidas nas palavras. Como no pensamento operatório o conhecimento não se constrói mais a

partir de operações sobre o objeto imediato, e, sim, sobre proposições e

hipóteses enunciadas verbalmente, a palavra torna-se uma condição

necessária, embora não suficiente, do conhecimento lógico-abstrato. Para termos uma idéia mais clara das relações entre o conhecimento

lógico-abstrato e as palavras, tal como vistas por Piaget, vamos pensar no

processo de elaboração de conhecimento que, ao longo da leitura deste texto,

você está vivendo. Todas as explicações e suposições elaboradas por Piaget estão sendo

apresentadas a você através de conceitos (assimilação, acomodação,

pensamento operatório, etc). Mesmo quando procuramos exemplificar com

algumas situações o que estamos expondo, é por meio das palavras que o

fazemos. Durante a leitura você não está observando crianças, nem está em

interação direta com elas. Você está elaborando as informações que damos

num plano inteiramente abstrato. Como destaca o próprio Piaget, é difícil

imaginar como se desenvolveriam relações de conhecimento dessa natureza

sem o emprego da palavra. No entanto, a

formalização dessas idéias não se limita à palavra. Para apreender e laborar de maneira lógica os conceitos que estamos utilizando, seu iquismo está trabalhando intensamente. Você está realizando várias operações de pensamento. São essas operações que lhe possibilitam apreender a lógica do que estamos informando. Ou seja, a lógica depen-de do modo de pensar construído e não da palavra em si, embora esta seja uma condição necessária à elaboração desse tipo de conhecimento.

"O progresso da linguagem não traz em si um correspondente progresso em operações, ao passo que o inverso é uma realidade", afirma Piaget.

No processo de desenvolvimento psicológico dos indivíduos a pa-lavra passa, então, da condição de um mero apêndice das estruturas de pensamento para a condição de parte integrante do pensamento abstrato (Freitag, 1986).

Uma vez que a linguagem segue o desenvolvimento do pensamento até tornar-se parte dele, as formas como as palavras são usadas e os significados atribuídos a elas refletem os níveis de desenvolvimento cognitivo, permitindo-nos considerá-la como um mapa do pensamento.

A linguagem como atividade simbólica constitutiva

Na abordagem histórico-cultural, a palavra não é analisada como uma das nossas funções simbólicas, mas como nosso sistema simbólico básico, produzido a partir da necessidade de intercâmbio entre os indiví-duos durante o trabalho, atividade especificamente humana. Para agir co-letivamente o homem teve que criar um sistema de signos que permitisse a troca de informações específicas e a ação conjunta sobre o mundo, com base em significados compartilhados pelos indivíduos (Kohl: 1993).

Vista dessa perspectiva, a linguagem é um produto histórico e significante da atividade mental dos homens, mobilizada a serviço da comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas.

Não se trata de algo que se acrescenta às representações, ações e desenvolvimento individuais, como considera Piaget. Ela é constitutiva (é a base) da atividade mental humana, sendo, ao mesmo tempo, um processo pessoal e social: tem origem e se realiza nas relações entre indivíduos organizados socialmente, é meio de comunicação entre eles, mas também constitui a reflexão, a compreensão e a elaboração das próprias experiências e da consciência de si mesmo.

Como produção cultural humana, a palavra não se desenvolve em nós naturalmente. É nas nossas relações com o outro, nas nossas

interações, que ela vai sendo incorporada a nossas funções biológicas, a nossos modos de perceber e de organizar (conhecer) o mundo.

Nascida num mundo humano repleto de símbolos e de signos, a criança, desde seus primeiros momentos de vida, está mergulhada em um sistema de significações sociais. Os adultos procuram ativamente

fazer com que a criança incorpore os significados, objetos e modos de agir criados pelas gerações precedentes.

Mesmo sabendo que a criança ainda não a entende, a mãe fala com ela "envolvendo-a em um colo de palavras ternas e quentes", observa poeticamente Giani Rodari, jornalista e educador italiano. A mãe fala à criança dando significado a seus movimentos choros e risos.

Pela palavra da mãe, o choro trans-forma-se em chamado, e o movimento

frustrado de agarrar, inscrito no ar pelas mãos de um bebê voltadas para um

objeto qualquer, transforma-se em gesto de apontar. A mãe, observando as

tentativas da criança para agarrar o objeto, A criança ainda entrega-o a ela, interpretando seu movimento: "Ela quer esta bola". não entende, mas Nesse

momento um significado é atribuído pela mãe ao movimento do " "T ela bebê, transformando-o em gesto. A transformação do movimento em apresentando-ihe

gesto produzida pelas pessoas que cercam a criança vai sendo incorpo-o mundo. rada por ela ao longo de experiências semelhantes. Nesse processo, a ^mmmmmmmmt

criança passa a utilizar o movimento de pegar não mais como uma tentativa de agarrar o objeto, mas como um gesto dirigido às pessoas que a cercam. O movimento de agarrar

suaviza-se e tem agora outro significado, "Quero aquela bola", e outro destinatário, o adulto.

É pela interpretação e nomeação feitas pelo outro que os movimentos do corpo convertem-se em gestos, apuram-se e tornam-se mais complexos. Os movimentos transformados em gestos são meios de comunicação, modos de manifestar e apreender de-sejos, intenções, emoções, informações, formas de direcionar e controlar (reciprocamente) os compor-tamentos dos sujeitos envolvidos na interação. Pela imitação, pela repetição, no ritual das relações sociais cotidianas, a criança aprende a dizer o que quer e a entender o outro pelo gesto.

O mesmo acontece com o balbucio, que se transforma em esboço de fala. E a mãe ou alguém mais velho do que a criança e em interação com ela que atribui inicialmente significados a eles.

O universo da linguagem chega à criança mediado pelos outros membros de seu grupo social. A mãe fala à criança nomeando o mundo. Ela nomeia, aponta, compartilha significados com a criança. Nessas relações, o mundo vai-se povoando de objetos, de

cores e de formas, de gente diversa, com nomes e modos de ser, de

dizer e de fazer também diversos. O mundo

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A criança aprende a dizer o que quer e a

entender o outro pelo gesto.

84 Ef povoa-se de palavras, pois tudo o que se percebe, tudo o que se sente,

tudo o que se faz, tudo o que se é e também o que não se é, tudo o que se deseja e imagina, tem nome, pode ter nome, é dito, pode ser dito...

Nesse sentido, a linguagem não é algo estranho à criança que ain-da não fala. Seu desenvolvimento não depende apenas de fatores in-trínsecos à criança ou de seus modos de ação sobre o objeto. Depende das possibilidades que essa criança tem (ou não), nas suas relações sociais, de se aproximar, de compartilhar e de elaborar os conteúdos e

as formas de organização do conhecimento histórica e culturalmente desenvolvidos e materializados nas palavras.

A elaboração do mundo tem como intermediário o outro. Por sua mediação, revestida de gestos, atos e palavras, vamos nos integrando à cultura, vamos aprendendo a ser humanos. Pela palavra do outro, por sua presença, pelo seu reconhecimento e encorajamento a cada pequeno evento que indica nossa progressiva humanização, nos reconhecemos. Somos nomeados e nomeamos...

A palavra, portanto, não é apenas adquirida por nós no curso do desenvolvimento. Ela nos constitui e nos transforma. Com suas fun-ções designativa e conceituai, a palavra é mediadora de todo nosso processo de elaboração do mundo e de nós mesmos. Ela objetiva esse processo, integra-o e direciona a atividade mental por nós desenvolvi-da. "O desenvolvimento intelectual da criança", diz Vygotsky, expres-sando um ponto de vista contrário ao defendido por Piaget, "depende do seu domínio dos meios sociais de pensamento, ou seja, da lingua-gem" (1979: 73).

Nesse processo, palavra e pensamento fundem-se. Uma palavra sem significado é um som vazio, afirma Vygotsky, da mesma forma que um pensamento que não se materializa em palavras se perde. A palavra não é apenas expressão ou comunicação do pensamento.- Ela é um ato de pensamento. E por meio das palavras que o pensamento passa a exis-tir. Nas palavras ele encontra sua realidade e sua forma. "Esqueci a pa-lavra que pretendia dizer, e meu pensamento, privado de sua substância, volta ao reino das sombras", reflete Vygotsky, citando o poeta russo Mandelshtam.

Não se trata, portanto, de vestir as palavras com o pensamento, considera Vygotsky, nem de vestir o pensamento com palavras. Pen-samento e palavra se articulam dinamicamente na prática social da linguagem.

Nesse sentido, as palavras não são formas isoladas e imutáveis. Elas são produzidas na dinâmica social, seus significados não são es-táticos. Uma palavra que nasce para designar um conceito vai sofrendo modificações, vai sendo reelaborada no jogo das práticas e das forças sociais.

Por exemplo, a palavra cultura (do latim colere, "cultivar") inicial-mente estava ligada às práticas agrícolas, significando o cuidado com Plantas e animais. Pensadores romanos ampliaram esse significado, passando a palavra a designar também o cultivo pessoal, o refinamento dos costumes, a educação elaborada de uma pessoa. Na Idade Moderna,

com novas experiências incorporadas ao seu significado, a palavra cul-tura passou a designar tanto uma classificação geral das artes, da reli-gião, dos valores de uma sociedade como a idéia de civilização ou, ain-da, a totalidade da vida social dos povos, englobando suas práticas ma-teriais e simbólicas.

De modo similar ao que acontece na história social, o significado das palavras e das relações e generalizações nelas contidas também se transforma no processo de desenvolvimento das crianças.

"Quando uma palavra nova é aprendida por uma criança, o seu de-senvolvimento mal começou...", destaca Vygotsky (1987: 71). Acom-panhar esse desenvolvimento foi uma tarefa fascinante a que Vygotsky, tal como Piaget, também se propôs.

Enquanto Piaget procurou mapear o desenvolvimento do pensa-mento por meio da linguagem, descrevendo minuciosamente o papel desempenhado pela palavra em cada um dos estágios da formação do pensamento lógico, Vygotsky procurou retratar o movimento de articu-lação entre palavra e pensamento nas situações e tarefas com que as crianças defrontam nas suas relações sociais.

A relação entre o pensamento e a palavra, analisa Vygotsky, "não é uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém do pensamento para a palavra, e vice-versa. Nesse processo, a relação en-tre o pensamento e a palavra passa por transformações..." (1987: 104).

No capítulo seguinte, vamos tratar das relações entre pensamento e linguagem ao longo do desenvolvimento da criança.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

Releia o texto considerando as relações entre pensamento e linguagem vistas por Piaget e por Vygotsky. Reflita sobre as seguintes questões:

• Como a linguagem é concebida por eles?

. Que funções da palavra são enfatizadas em seus trabalhos?

• De que modo cada um deles explica o desenvolvimento da palavra

nos indivíduos?

Refletindo sobre as informações do texto

Segundo Piaget, a linguagem reflete o pensamento. A partir da con-cepção de Vygotsky, essa relação é verdadeira ou não? Justifique sua resposta com base nos dados do texto.

Exercitando a análise

Você conhece o livro Palavras, palavrinhas e palavrões, de Ana Maria Machado (Editora Codecri)? Nele, essa escritora brasileira, autora de fascinantes obras de literatura infantil, conta, com muita sensibilidade e humor, a história de uma menina que gostava muito de palavras e estava sempre querendo aprender palavras novas...

Leia o livro e escreva um comentário sobre ele, tendo em vista as seguintes questões:

• Como as crianças se relacionam com as palavras?

• Como os adultos participam dessas relações?

Trabalho de campo

Após a leitura do livro de Ana Maria Machado, comece a escutar com atenção falas de crianças, observando seus modos de dizer. Nos seüs

estágios, nas suas relações familiares, em contato com a vizinhan-?

a> aproxime-se das crianças, ouça-as e converse com elas.

Registre ;sses momentos, anotando a situação em que a interlocução (a

relação er°al) aconteceu, quais as pessoas envolvidas e as falas de cada

uma j^as. Não se esqueça de registrar as idades das crianças e as datas das

observações.

Sugestão de leituras

Vamos apurar nossa sensibilidade e nossa relação com a palavra Só assim poderemos entrar em sintonia com a palavra da criança, com seu aparente nonsense. Para isso vamos ler, ler muito... Poesias (Drum-mond, Cecília Meireles, Mário Quintana, Fernando Pessoa, etc), con-tos, romances, novelas, crônicas (Clarice Lispector, Drummond, Mário de Andrade, Machado de Assis, Graciliano Ramos, etc), literatura in-fantil (Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes, Bar-tolomeu de Queiroz, etc).

O humor nos mostra especialmente a ambigüidade da palavra. Fi-que atento aos quadrinhos e charges dos jornais. Leia, entre outras, pro-duções como as de Quino (Toda Mafalda. Lisboa, Edições D. Quixote, 1978), Ziraldo (As anedotinhas do bichinho da maçã, Ed. Melhoramen-tos), Eva Furnari, a criadora da Bruxinha.

Para ajustar a sensibilidade aos modos de ser e de dizer da criança e à sua fantasia, leia A gramática da fantasia, de Giani Rodari (Editorial Summus), e a maravilhosa História sem fim, de Michael Ende (Editora Martins Fontes), que também foi filmada e existe disponível em vídeo (o filme tem o mesmo título do livro).

Capítulo 8

A criança e a palavra

Como a criança elabora a palavra ao longo de seu desenvolvi-mento?

Tanto Piaget quanto Vygotsky consideram que os modos de elabo-ração da palavra não permanecem imutáveis ao longo do desenvolvi-mento infantil.

Sendo a linguagem para Piaget uma função do pensamento, seu trabalho trata das formas que ela assume e do papel que ela desempenha em cada um dos estágios do desenvolvimento do pensamento lógico. A fala da criança é, assim, enfocada a partir do processo do pensamento.

Para^Vygotsky, a palavra e o pensamento articulam-se na atividade de compreensão e comunicação envolvida nas relações sociais. O foco da análise é, então, colocado no processo como um todo, interessando apreender as atividades intelectuais envolvidas, os modos como a pala-vra dirige essas atividades e as condições de interação em que elas vão sendo produzidas.

Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do

pensamento lógico: do símbolo individual aos conceitos

Até os 2 anos aproximadamente, a criança passa por uma série de transformações que a dotam dos pré-requisitos para a aquisição e elabo-ração da linguagem.

Nesse período, o desenvolvimento da criança passa do nível neonatal, marcado pelo funcionamento dos reflexos, para o de uma or-ganização perceptiva e motora dos fenômenos do meio. A consciência Que a criança tem do meio externo se expande lentamente, tornando-se

0

eu e o mundo progressivamente diferenciados.

E no curso dessas relações que a permanência dos objetos vai sen-do construída pela criança. O brinquedo, que ao ser retirado da criança de

ixava de existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a

perceber que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quan-do estão fora do seu campo de visão. Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do meio imediato, as quais possibilitam o desenvolvimento da função simbólica, mecanismo comum aos diferen-tes sistemas de representação (j°g°> imitação, imagens interiores, sim. bolização, linguagem verbal).

O desenvolvimento da função simbólica

Com o desenvolvimento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o mundo da criança reorganizam-se num novo pla-no: o plano representativo.

A criança reproduz, imita por meio de gestos ou de sons (onomatopéias) o comportamento de um modelo ausente. Ela represen-ta simbolicamente um objeto por outro no jogo do faz-de-conta.

Empregando uma imagem mental, um símbolo, a criança relembra fatos, objetos, pessoas, acontecimentos que ocorreram em outras oca-siões. O espaço e o tempo dilatam-se. O desenvolvimento da função sim-bólica exime-a de agir somente em situações do meio imediato. Ela passa a se relacionar com ações ou fatos sem praticá-los efetivamente. Pela re-presentação mental do mundo externo e de suas próprias ações, a criança os interioriza. Ela começa a distinguir significantes (imagens que repre-sentam fatos, pessoas ou objetos) e significados (fatos, objetos ou pes-soas ausentes à percepção imediata, aos quais as imagens se referem).

O desenvolvimento da representação cria as condições para a aqui-sição da linguagem. A capacidade de construir símbolos, desenvolvida na representação, possibilita a aquisição das significações coletivas (a linguagem social). As palavras da linguagem social, que vão sendo ad-quiridas pela criança, passam a acompanhar as imagens mentais e os símbolos que ela utiliza inicialmente.

As relações da criança com as palavras se processam gradual-mente, da mesma forma que a passagem da ação motora para a ação interiorizada.

A criança não consegue de imediato utilizar as palavras em toda a sua complexidade lógica. Ela utiliza a linguagem de forma imitativa, simbólica e pré-conceitual.

Vejamos como isso acontece.

Os primeiros esquemas verbais

As primeiras palavras usadas pela criança reúnem sob uma mesma denominação vários objetos e situações que a interessam ou que fazem parte de sua experiência. Ela pode, por exemplo, usar uma onomatopéia clássica, como bruuuuu, para designar o carro que passa pela rua, qual-quer meio de transporte que apareça em sua frente, pessoas ou animais que se movimentam na rua, brinquedos que se movimentam, assim como para manifestar o desejo de andar de carro, etc. O mesmo pode

acontecer com a palavra mama, utilizada para designar a própria mãe, roupas da mãe no armário, qualquer mulher acompanhada de uma •riança, ou mesmo para externar o desejo que sente de algo.

Essas primeiras palavras, que Piaget chama de primeiros esquemas

verbais, têm um forte caráter imitativo (elas são onomatopéias ou imita-ção de palavras usadas na linguagem adulta) e não têm um significado fixo (seu significado oscila, conforme as situações com que a criança defronta).

Tais características, segundo Piaget, são indicadores do tipo de pensamento dominante na criança nesse período, o pensamento sin-crético. Ela agrupa vários acontecimentos e objetos numa mesma designação, independentemente das relações lógicas existentes entre eles. Para formar esses agrupamentos, ela leva em consideração apenas seu próprio ponto de vista, suas experiências.

Assim, a criança pode reunir na expressão bó tanto a bola quanto um cubo com o qual ela brinca ou o tapete da sala onde ela brinca com a bola, sendo o elo entre os significantes apenas sua ex-periência pessoal em relação a eles.

A criança, nessa fase, também não considera simultaneamente as múltiplas dimensões de um objeto ou de um acontecimento. Aspectos particu-lares são tomados pelo todo, enquanto dimensões relevantes são esquecidas ou negligenciadas, do mesmo modo que cada aspecto ou dimensão específica dos objetos ou dos fatos é enfocada separadamente. Por exemplo, a criança pode utilizar a mesma designação para um cachorrinho de pelúcia com olhos de vidro verdes e para o botão redondo e verde de uma roupa.

De posse desses primeiros esquemas verbais, ela aprende rapidamente a falar palavras-frases, como Papá (Quero comer, Vou comer), frases de duas palavras, como Nenê dá (para pedir algo), e frases completas, que, inicialmente, são ordens ou expressões de dese-jo, enunciando uma ação possível, ligada ao ato imediato e presente.

Dessas frases, a criança passa para a construção de representações verbais, evocando e reconstituindo acontecimentos não mais ligados ao ato imediato. Por exemplo, ela enumera, para si mesma ou para uma outra pessoa, coisas que viu ou utilizou para brincar, os alimentos que consumiu numa das refeições, algum tempo depois de ter vivido tais situações. Ela conta fatos vividos ou presenciados por

ela, como um

gafanhoto pulando no jardim (Fanhoto, fanhoto sal-tar

-.) ou a saída da tia (Ti Madena no automove, parti no automove), como exemplifica Piaget.

A construção das primeiras representações verbais se dá por meio da

"arrativa. Na narrativa, a linguagem deixa de acompanhar simples-

Os primeiros

esquemas verbais

não têm um

significado fixo,

oscilando

conforme a

situação vivida.

91

A narrativa torna-se um

recurso de comunicação

para a criança.

mente o ato para reconstituir uma ação passada. A palavra deixa de ser parte do ato para tornar-se um signo, uma evocação do ato, passando a ter a função de representação (no sentido de nova apresentação) e também de comunicação

— a criança dirige essas narrativas a si mesma ou a outra pessoa.

Da narrativa, a criança passa para a descrição, que é nas palavras de

Piaget, "umà narrativa que se

prolonga até atualizar-se". Na

descrição, a palavra acompanha a

ação em curso, mas não faz parte

dela, como na linguagem inicial. A

palavra descreve, reapresenta o que

foi percebido na situação; não mais

enuncia ações possíveis, mas

denomina os elementos envolvidos

na situação. A criança nomeia, para

si mesma ou para outras pessoas,

objetos ou pessoas que a cercam

{boneco, pedra, gato, papai,

mamãe, vovó), partes desses objetos

ou dessas pessoas (nariz, boca, etc), ações, etc.

Piaget destaca como indicador relevante das transformações da relação

da criança com a palavra o aparecimento da pergunta O que é?, que se

relaciona ao mesmo tempo com o nome de objetos ou pessoas particulares e

com o conceito ou a classe do objeto designado (isto é, o conjunto composto

por todos os elementos referidos pela palavra).

A nomeação, nessa fase, oscila entre a generalidade (conceito) e a

individualidade. Piaget relata um episódio envolvendo sua filha mais velha,

Jacqueline, quando tinha 3 anos e 2 meses.

Ao cruzar com um homem na rua, a criança pergunta ao pai:

— "Este senhor é um papai?"

— "Que é que é um papai? "

Jacqueline responde:

— "É um senhor. Ele tem muitas Luciennes (nome de sua irmã mais

nova) e muitas Jacquelines. "

— "Que é que são Luciennes?"

— "São meninas pequenas e as Jacquelines são meninas

grandes."

(Episódio extraído do livro A formação do símbolo na criança. p.

289.)

Ao nomear o senhor como "um papai", a criança o inclui em uma

Q2 classe genérica — a classe dos pais, composta por homens que têm fi-

____ lhos. No entanto, ao explicitar o conceito de pai, define-o a partir da sua

«xperiênda particular: "um senhor que tem Luciennes e Jacquelines". \ classe, analisa Piaget, é uma espécie de indivíduo-tipo que se repete

em vários exemplares. Do mesmo modo, o indivíduo particular, convertido em indivíduo-

tipo, tem menos individualidade. Isso se evidencia na maneira como Jacqueline define "o que são Luciennes". Ela não enfatiza a singulari dade da própria irmã, nem a relação particular de parentesco que as liga. Ela refere-se à irmã como um exemplo típico de uma categoria genérica _ a das meninas pequenas.

O mesmo acontece no episódio a seguir.

Rafael, 3 anos, ao ganhar do pai a camiseta da Seleção Brasi-leira de Futebol, exclama: "Oba, pai! O Romário!".

E, ao encontrar na escola várias crianças com a camiseta da seleção, comenta com a mãe: "Viu quanto Romário?".

(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)

A criança pensa por imagens, e são as imagens que marcam a signi-ficação que ela atribui às palavras. O nome do indivíduo-tipo — um jo-gador específico — é utilizado por ela para denominar um grupo de jogadores e as camisetas utilizadas por eles.

Como a criança generaliza com base na percepção imediata de se-melhanças e não a partir de considerações lógicas ou relacionais, suas categorias oscilam entre a generalização e a individualização.

Os ensaios de generalização e individualização também aparecem em relaÇão às estruturas da língua.

Beto, aos 5 anos, utiliza a expressão "tavo" por estava, em frases como "Eu tavo com fome ", "Eu tavo com sono ", em que ele próprio é o sujeito. Corrigido pela mãe, ele resiste: "Não, mãe. Eu sou menino. Menina é que fala tava".

Regina, 7 anos, ao aprender na escola a classificação das pa-lavras segundo o gênero, pergunta à mãe ao fazer um exercício escolar: "Mamãe, eu sou feminina porque sou menina, e mamãe... éfemulher?"

(Episódios extraídos da experiência familiar de uma das autoras.)

A criança também considera expressões relacionais, como mais escuro ou maior, como atributos absolutos e não comparativos. Assim, Para ela mais escuro significa "muito escuro", do mesmo modo que maior significa "muito grande".

O caráter imitativo e sincrético das primeiras palavras da criança, a nao-generalização e a não-individualidade das primeiras representa-ções verbais estão mais próximos dos símbolos individuais do que dos c°nceitos utilizados na linguagem adulta. Daí Piaget considerar os mo-

0s

de elaboração da palavra pela criança como pré-conceitos.

O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras

Nós, adultos, utilizamos a linguagem conceitualmente. Os concei-tos supõem uma definição fixa, que depende de uma convenção social estável. Ou seja, nossas palavras não se restringem a designar determi-nado objeto ou acontecimento. Aplicando-se a um conjunto de elemen-tos da realidade, elas generalizam a informação sobre o objeto, incluin-do-o em uma categoria.

Como essa generalização se baseia numa correspondência lógica ela não muda ao sabor das situações. Os traços comuns definidores de uma categoria de objetos tornam-se estáveis. O caráter generalizante e estável da palavra nos possibilita transmitir o pensamento a outra pes-soa e sermos por ela compreendidos, bem como considerar o ponto de vista do outro e sua experiência.

Por exemplo, ao dizer a palavra relógio, não temos em mente ape- t nas determinado relógio, e sim um tipo, uma categoria de objetos a que essa palavra se aplica. Do mesmo modo, aqueles que nos escutam não têm em mente um relógio específico, e sim esse tipo de objeto, que é o que lhes permite compreender o sentido generalizante dessa palavra.

Entre os significados das palavras que utilizamos, há graus de generalização distintos, que nos permitem estabelecer relações lógicas entre os objetos e eventos do meio, incluindo uma categoria em outra. Podemos nos referir, por exemplo, ao cachorro que temos em casa como bassê, animal doméstico, ser vivo. Ao utilizarmos tais palavras, estamos incluindo o objeto dado — o cachorro — em um sistema de categorias, hierarquicamente organizadas, de contraposições abstratas: um cão bassê não é um buldogue, nem um cachorro vira-lata; um cachorro, como alguns outros animais, é um animal doméstico, em oposição a outros animais que são selvagens; como animal, o cachorro é um ser vivo e não um ser inanimado, etc. As expressões bassê, animal doméstico e ser vivo mantêm entre si relações lógico-verbais que independem das características particulares de cada objeto ou evento em si.

vivo ----------- inanimado

animal vegetal

animal animal

doméstico selvagem

cachorro

bassê ovelheiro

"Roy" "Chiquinho"

A ausência de critérios lógicos na elaboração conceituai na criança está exemplificada na situação de sala de aula que descrevemos e anali-samos no capítulo 7. Naquela situação, observamos como as crianças construíam o significado da palavra pátria: a partir das suas experiên-cias e das imagens delas resultantes, sem considerar elementos logica-mente pertinentes ao conceito estabelecido. Vimos também como esses elementos flutuavam ao sabor da experiência pessoal imediata a que eram relacionados. Por exemplo, o soldado é o elemento que define a palavra pátria em razão de sua presença nos desfiles de 7 de Setembro ou dos desenhos feitos na escola.

O desenvolvimento da capacidade de apreender conceitualmente a linguagem social depende do desenvolvimento das operações de pensa-mento, considera Piaget. As operações são ações interiorizadas que vi-sam à explicação e à constatação. Nelas, as ações são coordenadas e reversíveis (conforme vimos no capítulo 4).

Inicialmente, as operações desenvolvem-se em relação a situações imediatas. A criança ainda necessita do suporte perceptivo para apreen-der as relações lógicas, para considerar as relações de inclusão entre parte e todo (classificação), para apreender outros pontos de vista além da própria experiência individual (descentração). Ela elabora generali-zações a partir de exemplos concretos.

As características dos modos de pensar da criança nesse período não derivam das categorias lógicas da linguagem. A linguagem facilita, segundo Piaget, a generalização do pensamento, mas não é sua fonte.

Piaget relata que diversos estudos possibilitaram perceber que as crianças resolvem vários problemas, embora tenham dificuldade para explicar verbalmente o raciocínio que lhes permite chegar à solução, ou seja, elas não conseguem transpor em palavras toda a atividade mental que já sabem colocar em atos.

Somente na adolescência, o indivíduo torna-se dotado do raciocí-nio dedutivo-hipotético, que lhe permite fazer considerações e racio-cinar apenas no plano representativo, atingindo plenamente o pensa-mento operatório. Nesse estágio, no qual as operações não se cons-tróem mais sobre os objetos, sobre as situações imediatas, mas sobre proposições, a linguagem torna-se uma condição necessária do pensa-mento, passando a fazer parte dele. É nessa fase que os indivíduos tor-nam-se capazes de apreender conceitualmente a linguagem social.

Vygotsky e a elaboração conceituai —

o desenvolvimento do significado da palavra na criança

Diferentemente de Piaget, Vygotsky considera que a elaboração conceituai pela palavra, desenvolvida culturalmente pelos indivíduos c°mo forma de refletirem cognitivamente suas experiências, não ocorre

naturalmente na criança. Ela começa nas fases mais precoces da infân-

Cla> por meio do emprego da função mais simples da palavra —

a no-

A palavra desenvolve-se

gradualmente na criança, desde os

seus primeiros meses de vida.

96

meação —, e seu desenvolvimento depende das possibilidades que cada indivíduo tem (ou não) de compartilhar e elaborar em suas interações os conteúdos e as formas de organização dos conceitos.

As primeiras palavras

Segundo pesquisas conduzidas por vários psi-cólogos e apresentadas por Luria no livro Pensa-mento e linguagem (1987: capítulo 3), a função denotativa (função de nomeação) da palavra de-senvolve-se gradualmente na criança desde seus primeiros meses de vida, entrelaçada com fatores não-verbais.

Pouco a pouco, a criança responde ao que os adultos dizem a ela voltando o olhar para os objetos nomeados ou tentando alcançá-los. Inicialmente o significado da palavra depende da situação em que a criança se encontra ao ouvi-la, da pessoa que a pronuncia, da entonação de voz utilizada, do em-prego (ou não) de gestos, etc. Gradualmente, cada um desses fatores situacionais enumerados vai dei-xando de ter influência decisiva na compreensão da palavra. Por volta dos 3 anos de idade, ela reage de modo seletivo ao objeto nomeado, independen-temente da situação. O mesmo processo acontece

quanto à utilização da palavra. Diferentemente dos primeiros sons que a criança emite, que são manifestações de seu estado emocional, suas primeiras palavras são tentativas de reprodução dos sons assimilados da fala do adulto. Essas primeiras palavras estão fortemente vinculadas à atividade em que a criança está envolvida. Seu significado é difuso, uma vez que seu referente (o objeto ou a pessoa que a palavra nomeia) muda conforme a situação em que elas são pronunciadas.

Rafael, aos 8 meses, utilizava a expressão bá, para nomear o irmão (Beto), a mãe e o pai sempre que estes se aproximavam dele, e também para chamá-los quando estavam distantes, mas dentro de seu campo visual. A expressão bá, acompanhada do gesto de apon-tar, era utilizada também com a finalidade de indicar, para qualquer pessoa, algum objeto que ele desejava que alcançassem para ele.

Gradativamente, Rafael passou a utilizar a expressão bá ape-nas para referir-se ao irmão. Bá se diferenciou de mã e pá, que ele começou a empregar para designar o pai e a mãe (e há que se des-tacar, nesse caso, a persistência do irmão em ensinar Rafael a dizer as palavras mamãe e papai). Depois, novas palavras passaram a indicar aquilo que ele desejava, até que, quando Rafael chegou aos 3 anos, o próprio irmão deixou de ser bá, passando a ser Beto.

(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)

A função designativa da palavra, por mais simples que pareça, é produto de um longo desenvolvimento. Inicialmente, a palavra está vin-culada à situação em que é ouvida e utilizada. Ela passa a ter uma referên-cia estável, embora conserve ainda sua ligação com a ação prática, so-mente quando a criança atinge mais ou menos os 3 anos (Luria: 1987).

A elaboração das funções analítica e generalizadora da

palavra

Quando a palavra adquire uma referência estável, o desenvolvi-mento de seu significado ainda não está concluído. Embora sua função designadora pareça ser constante e a mesma para um adulto e uma criança, permitindo que ambos se comuniquem, suas funções analítica e generalizadora sofrem profundas transformações à medida que o indi-víduo avança no domínio das operações intelectuais culturalmente de-senvolvidas.

Vejamos uma situação que nos ajuda a perceber essas diferenças de

elaboração.

Voltando da escola, a mãe conversava com Eduardo, seu filho

de 3 anos. Mãe: Quando a gente chegar em casa, vamos brincar?! Filho (emburrado): Não quero... Mãe: Ah..., vamos jogar bingo! Filho: Não quero! ' Mãe: Ih, bobinho. Bingo é uma delícia! Filho (olhando espantado para a mãe): É de comer?

(Episódio narrado pela mãe a uma das autoras.)

O adjetivo delícia, utilizado pela mãe, tem uma referência estável tanto para ela quanto para a criança: ambos revelam, na interlo-cução, que aplicam esse qualificativo a determinados tipos de situação da realidade. E possível perceber também, na dinâmica enunciativa, que °s dois elaboram a palavra delícia de forma generali-zante: para a mãe, delícia é

Urn qualificativo

que se aplica a coisas ou situações que produzem deleite; para a criança, delícia é

Urn qualificativo que se aplica a

alimentos gostosos. A diferença está no grau de generalização que a palavra tem para cada um dos mterlocutores: mais amplo para a mãe e mais restrito para a criança.

Em um diálogo,

mãe e filho

expressam

diferentes graus de

generalização de

uma mesma

palavra.

Como destaca Vygotsky, o conceito ligado a uma palavra sempre representa um ato de generalização, qualquer que seja a idade da pessoa. Mas essa generalização se amplia à medida que os contextos vão sendo

diversificados e as funções intelectuais complexas, como a abstração e a generalização, vão sendo elaboradas e consolidadas. Nesse sentido, diz-nos Vygotsky, "quando uma palavra nova é aprendida pela criança, o seu desenvolvimento mal começou" (1987: 71).

Gustavo, de 6 anos, era o garoto menor da turma de futebol da rua.

Apesar da diferença de idade, os garotos de 8 a 10 anos o aceitavam,

porque era bom de bola e se enquadrava às exigências da turma: não

reclamava e esperava sua vez de jogar.

Um dia, ele contou para a mãe a grande dificuldade por que

passara para descobrir o significado de uma palavra muito utilizada

pelos meninos durante o jogo. A palavra era frangueiro. Ela lhe causava

estranheza porque ele a associava apenas a frangos ("Eu pensava que

era o lugar de vender frango"), e não ao futebol. Ele não podia

perguntar aos meninos o que eles queriam dizer com aquela palavra,

pois seria alvo de gozações.

Assim, decidiu ficar atento às situações do jogo para tentar

entender em que momentos a palavra era usada. O que acontecia

durante as jogadas para que alguém a pronunciasse?

Depois de observar por vários dias, Gustavo chegou à conclusão de

que a palavra estava relacionada ao goleiro que deixava passar a bola e,

na primeira oportunidade que teve, berrou: "Frangueiro! ".

— Daí, mãe, eu vi que eu tinha aprendido. Sabe por quê? Porque

eles viraram pra mim e disseram "Aí, Gutão! ".

(Episódio lembrado e relatado por Esteia, mãe de Guto, a uma das

autoras.)

No processo de elaboração do significado, o indivíduo explora o material

sensorial e opera intelectualmente sobre ele, orientado pela palavra em

funcionamento nas interações. A palavra aprendida, frangueiro, suscita

imagens (frango) e associações (lugar de vender frango) das quais a criança

lança mão para apreender seu sentido. Como o contexto não comporta essas

primeiras tentativas de significação, a palavra passa a dirigir as observações da

criança, que centra ativamente sua atenção nas situações do jogo e nas

enunciações nele envolvidas.

As situações não revelam por si mesmas os possíveis significados da

palavra frangueiro. É preciso analisá-las, compará-las. O que diferencia as

situações em que a palavra é empregada daquelas em que não é? Qual a

semelhança entre todas as situações em que a palavra é utilizada? Nesse

processo de observação e análise, algumas peculiaridades se fazem notar:

frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro, e não a outros jogadores;

frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro em determinadas situações, e não

em outras. A criança analisa e generaliza,

começando a ter uma idéia vaga do significado da palavra. Sente neces-sidade de usá-la, e, ao fazê-lo, o grupo confirma a adequação do signifi-cado esboçado, fortalecendo-o. A palavra agora lhe pertence: "Daí, mãe, eu vi que eu tinha aprendido".

Funções intelectuais básicas — atenção, formação de imagens, as-sociação, comparação, inferências — participam da elaboração do sig-nificado da palavra, associadas a ela. A palavra funciona como meio para centrar ativamente a atenção, para abstrair e selecionar os traços relevantes na situação considerada (análise), para estabelecer relações entre esses traços e sintetizá-los (generalização).

Por pressupor a articulação entre funções intelectuais complexas, como a generalização e a análise, que não podem ser dominadas na aprendizagem inicial, o processo de elaboração conceituai desenvolve-se na infância por meio do pensamento por complexos e dos conceitos potenciais.

O pensamento por complexos e os conceitos potenciais

O pensamento por complexos cria as bases para a generalização. Nesse tipo de pensamento a criança busca estabelecer relações entre os elementos da realidade, unificar impressões dispersas. Por exemplo, ela pode definir a palavra supermercado como o lugar onde a mãe compra doces, bolachas, iogurte, sucos. Nesse caso, a palavra é elaborada com base no sentido afetivo que o supermercado tem para a criança. Ela tam-bém pode definir a palavra como um lugar grande e movimentado aon-de vai com os pais para fazer compras. Nessa situação, a palavra super-mercado é elaborada com base na imagem direta do supermercado con-creto e na situação real de compra.

No pensamento por complexos, a palavra evoca e agrupa uma série de elementos e situações da realidade não apenas em razão das impres-sões subjetivas da criança, mas também das relações que de fato exis-tem entre esses elementos nos seus contextos de uso (os supermercados são realmente lugares de compra, onde doces, bolachas, iogurte e sucos são encontrados).

Segundo Vygotsky, a diferença principal entre um pensamento por complexos e um conceito está no tipo de relação que une os elementos numa palavra. No pensamento por complexos as relações estabelecidas são concretas, factuais e tão diversas quanto os contatos e as relações que de fato existem entre os elementos da realidade. Diferentemente, o conceito ancora-se em relações lógicas, cujo grau de generalização ul-trapassa as relações imediatas.

Voltando ao exemplo do supermercado, ao procurarmos no dicio-nário essa palavra, encontramos uma definição como esta: "Loja de auto-serviço, onde em ampla área se expõe à venda grande variedade de

"mercadorias, particularmente gêneros alimentícios, bebidas, artigos de limpeza doméstica e perfumaria popular" (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio

de Janeiro, 1986). A definição conceituai da palavra supermercado comporta o complexo elaborado pela criança, mas o ultrapassa em mui-to. Ela remete a um tipo de sistema de compra (auto-serviço), que é parte de um sistema social de troca (o comércio), que é parte de um sistema econômico (modo socialmente organizado de produção e distri-buição). Na elaboração conceituai da palavra, as relações imediatas e parciais integram-se e subordinam-se a relações lógico-verbais, que abarcam muito mais elementos da palavra, generalizando-a.

Embora a busca de ligações seja o traço distintivo do pensamento por complexos, para chegar a elas a criança dá seus primeiros passos na análise: ela destaca alguns elementos na totalidade da experiência com base no grau máximo de semelhança entre eles. Ela isola essa seme-lhança, tomando-a como atributo para definir a palavra.

No caso da palavra supermercado, por exemplo, um traço distinti-vo que costuma aparecer nas elaborações das crianças é a função social de lugar de compra, ainda que por trás dessa idéia estejam relações afetivas e a imagem imediata do próprio supermercado.

Podemos encontrar outro exemplo desse processo de elaboração conceituai na situação de sala de aula descrita no início do capítulo 7. Ao definirem pátria como "coisa de soldado", as crianças elaboram um pensamento por complexos com base em elementos comumente pre-sentes em eventos e situações da vida real (os desfiles, os desenhos) por elas agrupados na palavra.

O trabalho mental de destacar um elemento da totalidade e tomá-lo como critério para conferir o significado à palavra é uma característica do pensamento analítico e também a marca distintiva dos conceitos po-tenciais. Eles resultam de "uma espécie de abstração isolante", segundo as palavras de Vygotsky (1987: 67), uma vez que as características dos elementos e situações da realidade não são consideradas em conjunto.

A palavra é elaborada com base em apenas uma semelhança perce-bida. Além disso, o elemento que foi privilegiado num dado momento para dar significado à palavra não é estável, podendo ser substituído por outro. Na elaboração da palavra pátria como um pensamento por com-plexos, por exemplo, o elemento destacado foi soldado, mas poderia ser a bandeira, que também é um elemento recorrente nas atividades come-morativas relativas à Semana da Pátria e aparece com freqüência nos enunciados das crianças.

A diferença entre um conceito e os conceitos potenciais está no modo como o atributo (o critério) que os define é estabelecido. Num conceito potencial, um atributo único é estabelecido com base na máxi-ma semelhança entre os elementos ou situações designados pela pala-vra. Num conceito, distintos elementos são agrupados de acordo com um conjunto de atributos comuns a todos os elementos que podem ser reunidos sob sua denominação.

No conceito, a abstração — que caracteriza os conceitos potenciais — e a generalização — que caracteriza o pensamento por complexos — combinam-se. "Um conceito só aparece quando os traços abstraídos são

sintetizados novamente, e a síntese abstrata daí resultante torna-se o principal instrumento de pensamento" (Vygotsky, 1987: 68). A palavra cassa a ser usada com referência a categorias abstratas. Sua nova função torna-se codificar a experiência, os objetos e situações do

mundo em

esquemas conceituais. Para exemplificar essas características dos conceitos, basta recor-

darmos as definições dicionarizadas de supermercado e de pátria já apresentadas neste capítulo. Elas envolvem as experiências que as crian-ças destacam em suas elaborações, mas as superam em generalidade.

O papel do outro no desenvolvimento da

elaboração conceituai

As mudanças nas formas de utilização e de compreensão das pala-vras ao longo do desenvolvimento da criança são produzidas nas suas interações verbais com os adultos, crianças mais velhas e produtos cul-turais (livros, revistas, jornais, TV, propagandas, etc). Nessas relações, a criança integra-se ao fluxo da comunicação verbal, adquirindo novas palavras e ampliando as possibilidades de significação daquelas que já conhece.

Beto, aos 7 anos, perguntou um dia à mãe: — Frágil éperigoso?

A mãe, sem entender a indagação da criança, quis saber o mo-tive da pergunta.

— Por que você está me perguntando isso? — Éporque aqui nesta caixa está escrito CUIDADO, FRÁGIL.

(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)

A criança lê ou ouve palavras desconhecidas em contextos com-preensíveis e vai formando uma idéia vaga do seu significado, vai ajus-tando os significados elaborados de modo a aproximá-los dos conceitos predominantes no grupo cultural e lingüístico de que faz parte.

Em suas relações, crianças e adultos compartilham palavras que em termos práticos significam a mesma coisa para ambos. Ou seja, há uma coincidência de conteúdo (aspecto da realidade ao qual a palavra se aplica) entre as palavras utilizadas pela criança e pelo adulto. No entanto, quanto à generalização e à abstração contidas na palavra, essa coincidência não se verifica.

Mariana, de 7 anos, vinha encontrando grandes dificuldades para resolver os problemas de Matemática na escola. A mãe, pro-fessora, dispôs-se a ajudá-la. Leram juntas o primeiro problema da tarefa: "Mamãe foi ao supermercado e comprou 1 quilo de car-ne por 4 reais, 10 pães por 1 real e 2 litros de leite por 2 reais. Quanto mamãe gastou?".

Após a leitura, a mãe perguntou à menina: — Então, Mari, qual a continha que nós temos que fazer? — De menos, mãe. A mãe, surpresa, contestou:

— De menos... Por que de menos? Olha bem, a pergunta cio problema é: quanto a mamãe gastou...

— Então, mãe!!! Quando a gente gasta a gente não fica com menos dinheiro?

(Episódio relatado pela mãe de Mariana num curso para profes-sores, ministrado pelas autoras.)

Se, por um lado, a coincidência de con-teúdo da palavra permite a comunicação entre adulto e criança, por outro, a diferença na ela-boração do significado possibilita que a criança desenvolva seus conceitos.

Ao interagir com a criança, os adultos ou as crianças mais velhas apresentam a ela, de forma deliberada ou não, significados estáveis ou sentidos possíveis de determinada palavra no seu grupo social. Embora não transmitam à criança seu próprio modo de pensar, nem possam "controlar" o modo de pensar dela, sua alocução verbal interfere na atividade da criança de diferentes formas.

A palavra do outro ajuda a criança a elaborar o significado de novas palavras (como nos

episódios envolvendo Beto e Guto). Ao se encontrar com aquelas que a criança já tem

elaboradas, explicita-as, confirma-as ou coloca-as em questão (como no caso de Mari e da criança do episódio do bingo). A criança pode assumir a

palavra do outro, imitando-a, utilizando-a com sua ajuda, ou pode recusá-la.

Rafael, aos 5 anos, conversando sobre o que gostaria de comer no almoço, contesta da seguinte forma a sugestão da mãe:

— Sopa, não! Eu quero comida! — Mas a sopa é uma comida, Rafa! — Tá bom, a sopa é uma comida, mas é uma sopa também!

(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)

Comida e sopa são palavras que nomeiam coisas distintas para a criança. Ela não estabelece entre as coisas nomeadas e as palavras utilizadas nenhuma relação de inclusão. Na situação descrita, na qual se decidia sobre o que comer no almoço, Rafael recusa a inclusão apresentada pela mãe: a sopa pode ser uma comida, mas é uma sopa também. A '-^"~ sopa não perde a sua peculiaridade, a sua condição de sopa.

Adultos e crianças podem

empregar a mesma palavra

mas com diferentes

significados.

As palavras não são apenas lógicas, do mesmo modo que a interlocução não é apenas troca de informações. Nas relações sociais há interesses em jogo. As palavras não são neutras, elas apenas têm uma face neutra, conforme nos ensina o poeta. Com elas negociamos senti-dos ("trouxeste a chave?").

É no movimento interativo, assumindo ou recusando a palavra do outro, que a criança (e não só ela, mas qualquer um de nós) organiza e transforma seus processos de elaboração do significado das palavras, desenvolvendo-se. Nesse processo, ela apreende e começa a elaborar as operações intelectuais complexas presentes na palavra, praticando o pensamento conceituai antes de ter uma consciência clara da natureza dessas operações.

O desenvolvimento da elaboração conceituai da palavra não é re-sultado de um processo individual e estritamente intelectual (cogni-tivo). Ele é resultado da prática social da criança nas diferentes institui-ções sociais.

Nesse sentido, aponta Vygotsky, o aprendizado precede o desen-volvimento.

Esse modo de conceber a relação entre desenvolvimento e aprendi-zado é oposto ao adotado por Piaget, que considera o desenvolvimento condição para o aprendizado. Segundo Piaget, tudo o que a criança re-cebe do exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em geral, constitui o aspecto psicossocial do desenvolvimento. Este só pode ser explicado pelo desenvolvimento espontâneo (ou psicológico) da crian-ça, que corresponde a tudo que ela aprende por si mesma, sem que lhe seja ensinado, ao que ela descobre sozinha.

Vygotsky e Piaget apresentam dois modos distintos de olhar o hu-mano em suas relações e transformações. Que facetas a prática pedagó-gica nos revela, quando a olhamos através de uma ou outra dessas duas concepções? É o que veremos no próximo capítulo.

103

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a con-cepção de Piaget, destacando as características da linguagem e o pa-pel desempenhado por ela ao longo do desenvolvimento da inteli-gência.

2. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a con-cepção de Vygotsky, caracterizando os seguintes pontos: o papel da palavra, o papel do outro e o papel do sujeito.

3. Enumere as semelhanças e as diferenças básicas entre o pensamento de Piaget e o de Vygotsky acerca do desenvolvimento do significado da palavra na criança. Faça um resumo comparativo do processo de elaboração de conceitos pelo qual, segundo esses dois autores, a criança passa.

Exercitando a análise

A seguir são descritos dois momentos de relação da criança com a palavra. Procure analisá-los prestando atenção aos modos como a criança elabora a palavra e aos modos de participação do outro na situação.

Situação n? 1

Livro de Matemática da 1? série, página de problemas. Mamãe está pendurando roupa no varal. Para cada peça ela

usa dois prendedores. Ela já pendurou seis peças de roupa. Quantos prendedores usou?

Resposta: 12 (resposta da criança). Por quê? "Pra roupa não voar" (resposta da criança).

Situação n° 2

A professora escreve na lousa "A mamãe afia a faca " e pede para uma criança ler. A criança lê corretamente. Um adulto pergunta à criança:

— Quem é a mamãe? — E a minha mãe, né? — E o que é "afia " ? A criança pensa, hesita e responde:

— Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: "vem cá, minha fia "'. A professora, desconcertada, intervém: — Não, afia é amola afaça!

(A criança na fase inicial da escrita. Ana L. B. Smolka. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed. da Unicamp, 1988.)

Em pequenos grupos, discutam as análises feitas. Depois, confron-tem as análises dos grupos, complementando e apurando a argumentação.

Trabalho de campo

Os episódios descritos na atividade anterior apontam um caminho interessante para um trabalho de observação e registro.

As práticas cotidianas dos adultos que trabalham com crianças são marcadas pelas concepções que eles têm tanto a respeito do processo de elaboração do conhecimento e da palavra como do seu próprio papel nesse processo. Essas concepções determinam as condições de elabora-ção que eles possibilitam à criança e os modos como participam de suas elaborações.

Com a classe dividida em três grandes grupos, observem como as crianças elaboram as palavras em suas relações com os adultos e com outras crianças, nas creches e nas escolas.

• O grupo 1 se encarregará de observar bebês e crianças de até 2 anos de idade. Deverá ser observado como os adultos interagem com es sas crianças e em que momentos; o que falam com elas e como falam a elas. E também os comportamentos da criança, suas reações não- verbais, as suas primeiras palavras. Será interessante, ainda, dar atenção às relações entre as crianças que já brincam juntas, as que disputam espaço e a atenção do adulto. Como se dão essas relações?

• O grupo 2 observará as crianças dos diferentes ciclos da pré-escola. Deverá estar atento às condições de interação verbal, aos modos de participação do adulto e da criança. O trabalho ficará mais interessan te se diferentes momentos da rotina escolar (as atividades de roda, os brinquedos, os jogos ou desenhos, o lanche, a hora do parque, contar e ouvir histórias, etc.) forem observados, assim como os momentos de interação entre as crianças. As questões que podem direcionar a atenção do grupo são as mesmas. O grupo 3 observará as quatro séries iniciais do 1? grau. O trabalho de observação deverá ser do mesmo tipo do desenvolvido pelos ou-tros grupos.

Observação: Para facilitar o trabalho de coleta de dados, cada grupo poderá organi-

zar, com base nas informações contidas no texto e com a orientação do pro-fessor, um roteiro com questões ou itens aos quais deverão estar atentos.

As formas de registro poderão ser várias: em diário de campo, gra-vação em vídeo e gravação em áudio. O material gravado, depois de ouvido e visto atentamente, deverá, pelo menos em parte, ser transcrito

Organizando e analisando os dados

A fase de observação e registro segue-se a de organização e análise dos dados obtidos pelo grupo.

Lembrem-se de que o trabalho de análise envolve a comparação dos dados, observando-se o que há de comum entre eles, sua classifi-cação, o estabelecimento de relações (inferências e generalizações). Isso sempre à luz dos princípios teóricos e dos objetivos que nortearam a observação (nesse caso, os modos de elaboração da palavra pela criança, as condições em que eles se processam e a participação que neles tem o outro).

Convém que todo esse trabalho seja documentado num relatório socializado com os outros grupos.

Havendo tempo, seria interessante organizar sessões de apresen-tação e debate do trabalho de cada grupo, sendo conveniente uma leitura anterior do relatório do grupo que vai fazer a apresentação, anotações de dúvidas, pontos a serem esclarecidos e questionamentos a serem feitos.

Sugestão de leituras

LURIA, A. Pensamento e linguagem — As últimas conferências. Porto

Alegre: Artes Médicas, 1987. OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky. São Paulo: Scipione, 1993. (Em especial

os capítulos 3, Pensamento e linguagem, e 4, Desenvolvimento e

aprendizado.) PIAGET, J. A construção do real na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. _______ . A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar,

1975. VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes,

1987. (Em especial os capítulos 5 e 6.)

Capítulo 9

O papel da escola

Certamente você já ouviu mais de uma vez a afirmação "Escola é lugar de aprender". Crianças, jovens e adultos aprenderam, na escola, a ler. a escrever, a contar e tiveram acesso a muitas informações e concei-tos sobre o homem, a natureza, a sociedade, a língua que falamos. Os conceitos que aprendemos na escola, nas diferentes disciplinas, são par-tes de teorias que buscam explicar e comprovar os fenômenos da natu-reza e os fatos sociais. Eles são organizados conforme uma lógica que procura garantir-lhes coerência interna, e sua elaboração requer a utili-zação de operações complexas (como a comparação, a classificação, a dedução, etc.) de transição de uma generalização para outras.

Ná pedagogia tradicional, que herdamos do século XIX, considera-va-se que os conceitos científicos não tinham nenhuma história interna, sendo transmitidos prontos à criança e memorizados tal qual por ela.

Grande parte dos métodos de ensino ainda utilizados em nossas escolas baseia-se nessa concepção. Ensinam-se às crianças os conceitos científicos, transmitindo-se a elas seu significado por meio de definições. Essas definições são, então, utilizadas em uma série de exercícios para treinamento e memorização. Pela repetição dos exercícios, a definição é fixada (memoriza-da) e utilizada (reproduzida) Pela criança, além de reco-nhecida na fala de seus interlocutores. Nas séries iniciais, a quantidade de informações e detalhes fornecida é menor. A cada etapa da esco-larização, o mesmo conjunto de informações vai sendo retomado e complementado. Conhecimento e desenvolvimento são processos cumulativos: acumulamos informações e significados.

Há diferentes

formas de se

apresentarem os

conceitos

científicos.

107

Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cullural, 1970. v 2

Nesse modo de considerar o ensino, está contida uma concepção de linguagem segundo a qual os significados das palavras estão fixados na língua e se impõem ao indivíduo. Daí a importância atribuída à exposi-ção das informações pelo professor (ou pelo livro didático), considera-da determinante para o aprender. A expressão da criança e suas elabora-ções próprias não são levadas em conta. A história dos conceitos, as transformações por que passam, os sentidos que evocam e provocam nos alunos, as experiências anteriores dos alunos com essas palavras, também não são tidos como questões relevantes, porque os atos de compreensão e de expressão (fala) que não seguem a norma vigente são considerados deformações da língua, erros.

Assim, o modo pelo qual a criança responde às questões escolares, como a relativa à definição de pátria, por exemplo, revela se ela apren-deu (reconhece) ou não, se "entendeu" ou não a exposição do professor.

Alguns professores, ao ouvirem as crianças definindo pátria como "coisa de soldado" e considerando que elas não entenderam o conceito, podem achar graça dos seus dizeres, que passam a compor o anedotário escolar. Outros vêem na resposta a revelação de que as crianças não aprenderam aquilo que se esperava que tivessem aprendido, pois, sendo alunos da 3? série, seguramente, nos anos anteriores, ouviram falar so-bre o tema, tiveram acesso àquele conceito e, no entanto, não respon-dem de modo adequado à expectativa escolar.

Os dizeres das crianças julgados como "falta de entendimento" le-vam a conseqüências: criança que não entende e não aprende precisa estudar mais, precisa prestar mais atenção, ou então "repete o ano".

No entanto, como procuramos destacar no capítulo 7, a palavra não é transparente, nem tem um único significado. "Ela tem mil faces secre-tas sob a face neutra...", como disse Drummond.

Sua multiplicidade se deixa entrever nos dizeres espontâneos das crianças (algo que acontece em todas as salas de aula, quer os professo-res queiram e reconheçam, quer não). Eles nos revelam como as crian-ças procuram ativamente apreender o sentido da fala do adulto relacio-nando com suas experiências o que foi dito, evocando sentidos nem sempre esperados ou reconhecidos por nós.

Piaget e Vygotsky, dando importância à atividade do indivíduo no processo de conhecimento, refutam os pressupostos da pedagogia

tradicional: os conceitos têm história interna, eles se desenvolvem na criança. Por isso, seu ensino direto é impossível e infrutífero Jfygotsky, 1987: 72).

Apesar dessa concordância, os dois focalizam e explicam de modo diverso o que acontece com os processos de elaboração conceituai quando a criança defronta com os conceitos científicos que lhe são apresentados na escola.

Piaget, considerando a construção do conhecimento um processo individual, prioriza o ponto de vista da criança. Ele diz, por exemplo, que, quando ensinamos alguma coisa à criança, a impedimos de realizar uma descoberta por si mesma. Vygotsky enfatiza a participação do ou-tro no processo de conhecimento, que define como "internalização das formas culturais de pensamento", e, de acordo com o conceito de zona de desenvolvimento proximal, que elaborou, afirma que a criança fará sozinha amanhã o que hoje faz em cooperação.

Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de

aprender pensando...

A expressão do subtítulo acima, muito provavelmente, você tam-bém já ouviu. Ela reflete o deslocamento do foco do ensino, que se transfere para a aprendizagem. Seu centro passa a ser a criança, em vez do professor, e o processo de elaboração ativa do conhecimento, no lugar da acumulação da informação pronta.

Embora Piaget não tenha formulado nenhuma proposta meto-dológica, nem tenha se proposto a estudar os aspectos psicossociais do desenvolvimento — aqueles conhecimentos que a criança recebe do exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em geral —, suas idéias acerca do desenvolvimento infantil têm influenciado as chamadas propostas ativas de ensino, servindo como fundamento para uma série de procedimentos metodológicos adotados pelos professores.

Partindo do pressuposto que os conceitos científicos são objetos de conhecimento que o sujeito constrói de acordo com o estágio de desen-volvimento em que se encontra, Piaget considera que os conceitos não se ensinam. Tudo o que se pode fazer é criar situações para que a criança possa formulá-los (Dienes-Golding, 1972). Essas situações deverão possibilitar-lhe atuar sobre os objetos de conhecimento, e, pela ativida-de cognitiva, levá-la a estabelecer as relações de análise e de generaliza-ção, por meio das quais irá elaborar a palavra.

Nesse sentido, o ensino depende do desenvolvimento espontâneo da criança, acompanhando-o. Apesar dos esforços que os professores

fazem para explicar os conceitos, a criança recebe as informações e ati- ___

vãmente as transforma. "O processo de aprendizagem não é conduzido i QÇ Pelo professor, mas pela criança" (Ferreiro, 1982: 131).

■■■■^B Segundo Emilia

Ferreiro, "o processo de

aprendizagem não é conduzido

pelo professor, mas pela criança ".

De acordo com esses princípios, o ensino calcado na verbalização é visto como uma atividade mecânica, que deve ser substituída pela elaboração espontânea dos conceitos, condição determinante da construção conceituai da palavra. Deixa-se de esperar da criança a postura de ouvinte, va-lorizando-se sua ação e sua expressão. Possibilitar

à criança situações em que ela possa agir e ouvi-la expressar suas elaborações passam a ser princípios básicos da atuação do professor.

Apoiado nesse referencial teórico, o professor não vê como desinformação ou falta de compreensão a diferença entre os significa-dos elaborados pela criança e o conceito sistematizado. A diferença re-vela um erro construtivo, que é indicativo do desenvolvimento da crian-ça, uma vez que suas palavras e ações mapeiam a especificidade do seu pensamento.

Ao definirem pátria como "coisa de soldado", por exemplo, as crianças revelam a especificidade de seu pensamento pouco generalizante, preso a imagens e experiências vividas. A fala de Sérgio enumerando algumas condições necessárias para se ter (ou não) pátria — casa, dinheiro, trabalho — revela uma causalidade por identificação, própria do pensamento pré-operatório.

Deixando de dar prioridade às funções informativa e instrucional, o ensino tem sua função social redefinida: contribuir para o desenvolvi-mento dos indivíduos, possibilitando-lhes vivenciar modos de construir conhecimento por si mesmos, modos de aprender pensando.

Escola é lugar de compartilhar conhecimentos

A relação entre os processos de elaboração conceituai em desen-volvimento na criança e o aprendizado de conceitos científicos na esco-la é tematizada explicitamente por Vygotsky.

Embora considere o processo de elaboração conceituai único e in-tegrado, Vygotsky destaca a necessidade de diferenciarmos as condi-ções em que a elaboração do conhecimento se dá nas relações coti-dianas e nas relações de ensino vividas no contexto escolar.

Nas interações cotidianas, o adulto participa espontaneamente do processo de utilização e de elaboração da linguagem pela criança. Ele e a criança compartilham palavras, utilizando-as nas situações imediatas

em que estão envolvidos, aplicando-as a elementos nelas presentes. A atenção de ambos está centrada na própria situação e não na atividade intelectual que estão desenvolvendo enquanto a vivenciam.

Assim, pai e filho, por exemplo, podem utilizar a palavraferramen-ta numa situação de trabalho, sem que se explicite, para ambos, os sentidos que atribuem a ela. Para a criança, a palavra ferramenta pode designar apenas o martelo, não incluindo a chave de fenda ou o serrote. No entanto, como nesse contexto vivencial a palavra e a situação se entrelaçam, e a maioria das palavras utilizadas pelo adulto e pela criança designa os mesmos objetos ou eventos, equivalendo-se funcionalmente, são raras as vezes em que ambos se dão conta das diferenças de generalização e de abstração entre seus modos de elaborar as palavras.

Essas diferenças aparecem ocasionalmente, quando a criança acaba revelando, por um motivo ou outro, o modo pelo qual "compreende" a palavra. Exemplos desse tipo de situação foram apresentados no capítulo 8.

Já nas interações escolarizadas, que têm uma orientação deliberada e explícita no sentido da aquisição de conhecimentos sistematizados pela criança, as condições de produção da elaboração conceituai modi-ficam-se sob vários aspectos.

Na escola, a criança e o adulto interagem numa relação social espe-cífica — a relação de ensino. Sua finalidade imediata, a de ensinar e aprender, é explícita para seus participantes, que nela ocupam lugares sociais diferentes: a criança, no papel de aluno, é colocada diante da tarefa de "compreender" as bases dos conceitos sistematizados ou cien-tíficos; o professor é encarregado de orientá-la.

Nes*sas condições, a participação do adulto é deliberada e explícita tanto para ele quanto para a criança. Cabe ao adulto, no papel de profes-sor, possibilitar à criança o acesso aos conceitos sistematizados, procu-rando induzir nela formas de raciocínio e significados. Cabe à criança, no papel de aluno, realizar as atividades propostas, seguindo as indica-ções e explicações dadas.

No entanto, destaca Vygotsky, o papel do professor não implica ensinar ou explicar diretamente o significado de uma palavra à criança. Isso é impossível, assegura ele, porque "quando se explica qualquer palavra, colocamos em seu lugar outra palavra igualmente incompreen-sível, ou toda uma série de palavras, sendo a conexão delas tão ininteligível quanto a própria palavra" (Tolstoi. Apud Vygotsky, 1987: 72). Esse encadeamento de palavras que se substituem umas às outras conduz apenas ao verbalismo vazio, "uma repetição de palavras pela criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo" (idem, ibidem).

O que a criança necessita, aponta Vygotsky, é de oportunidades Para adquirir novos conceitos e palavras na dinâmica das interações verbais, mediadas pelo professor.

O professor participa ativamente do processo de elaboração conceituai da criança. Nas relações que mantêm, ele utiliza novos con-

ceitos, define-os, apresenta-os em diferentes contextos de uso, propõe atividades em que devem ser empregados. Destaca, recorta informa-ções e significados em circulação na sala de aula, direcionando a aten-ção da criança para eles; induz à comparação entre informações e signi-ficados; possibilita a expressão das elaborações da palavra, organizan-do verbalmente seu pensamento; problematiza as elaborações iniciais da criança, levando-a a retomá-las, a refletir sobre possibilidades não consideradas, a refletir sobre seus próprios modos de pensar...

Na situação que vimos de conceituação da palavra pátria, é a pro-fessora quem conduz as crianças a explicitarem o significado que essa palavra tem para elas. Inicialmente ela destaca a expressão Semana da Pátria, tentando organizar os comentários espontâneos que se seguiram à saída da diretora. Como Sérgio separa as duas palavras da expressão, indicando o significado de semana, a professora destaca a palavra pá-tria, perguntando sobre seu significado.

Ao fazer a pergunta, ela interrompe os comentários entre as crian-ças e as conduz para uma elaboração refletida sobre a palavra.

Para a criança, pensar sobre seu próprio modo de utilizar a palavra é uma atividade intelectual complexa e nova. Como a maioria de nós, ela está acostumada a utilizar as palavras nas relações cotidianas, e não a pensar sobre elas. Assim, o que a professora faz é levar as crianças a desenvolverem um tipo de atividade intelectual que elas ainda não rea-lizam por si mesmas.

Visando responder às solicitações da professora é que as crianças começam a realizar esse trabalho intelectual, novo para elas. Mesmo sem compreender completamente o que estão fazendo, elas buscam na memória elementos das experiências vividas, sentidos da palavra já internalizados que lhes possibilitem atender à solicitação feita. A per-gunta da professora não é apenas o disparador da atividade intelectual da criança. É a partir dela que as crianças selecionam os fragmentos de suas experiências (soldados, desfiles, desenhos, bandeiras), articulam e ordenam esses fragmentos na resposta, organizando verbalmente o pen-samento, elaboram justificativas.

O contexto (a situação) em que a pergunta da professora foi feita (a propósito das solenidades na escola para a comemoração da Semana da Pátria) também orienta as respostas das crianças. Elas respondem le-vando em conta esse contexto quando privilegiam, inicialmente, ele-mentos ligados às comemorações da Semana da Pátria, como o soldado, os desfiles e os desenhos.

Nesse sentido, não se pode dizer que as respostas elaboradas pelas crianças sejam decorrentes apenas da especificidade do seu modo de pensar, como sugere Piaget, nem que sejam um mero reflexo de suas vivências, simplesmente uma associação entre estímulos. Elas são uma resposta ao outro numa relação social específica — a relação do ensino.

Ao possibilitar o acesso das crianças a atividades intelectuais ainda não incorporadas por elas, a professora contribui para o desenvolvi-mento de seus conceitos iniciais, que são deslocados do processo de

utilização da palavra nas situações imediatas (que as crianças já domi-nam) para o de reflexão sobre a própria linguagem (uma atividade inte-lectual a ser desenvolvida pela criança).

A intervenção da professora contribui para o desenvolvimento proximal das crianças, uma vez que atua sobre atividades psíquicas ne-las emergentes, fazendo-as avançar no raciocínio e começar a se dar conta dele para poder responder ao outro.

A professora ouve atentamente as crianças, mas não se limita a isso. Ela questiona as relações por elas estabelecidas entre pátria e sol-dado, indagando sobre a inclusão delas próprias no conceito: "Quem aqui tem pátria?", "Por que povão não tem pátria?". Em suas perguntas estão embutidas referências às relações entre grupos na sociedade: se pátria é coisa de soldado, em que conceito se encaixariam os indivíduos que não são soldados? Ela consegue formular essas questões porque já teve acesso, como adulta, a uma forma de elaboração mais generali-zante do conceito de pátria.

Através de suas perguntas, ela não nega nem exclui as definições iniciais das crianças. Ela as problematiza e as "empurra" para outro pa-tamar de generalização. Leva as crianças a considerarem relações que não foram incluídas nas suas primeiras definições, provocando reelabo-rações na argumentação desenvolvida por elas.

As respostas dadas por Sérgio evidenciam esses esforços de reela-boração. Buscando responder aos questionamentos da professora e orientado pelas palavras dos colegas ("Pátria é coisa de soldado"), Sérgio acaba destacando outro sentido possível da palavra.

Em sua primeira resposta, "Povão não tem pátria", Sérgio reafirma a exclusão dos não-soldados do conceito de pátria. Mas explicita, deli-mita o grupo a que está fazendo referência. Não são quaisquer não-soldados que não têm pátria. Quem não tem pátria é o "povão".

Para responder ao novo questionamento da professora (por quê?), Sérgio acaba definindo, com base nas experiências de seu grupo social, as condições necessárias para ter ou não pátria — dispor de casa, di-nheiro, trabalho — e, ao mesmo tempo, a expressão povão como a ne-gação dessas condições.

A elaboração da resposta, de Sérgio à professora revela outra nuance do conceito. Pátria diz respeito a participação social, cidadania, relações de poder. Quem não tem acesso aos processos de produção e consumo da sociedade em que vive fica ou está à margem dela.

Embora Sérgio recorra a elementos de suas experiências vivenciais para responder à pergunta da professora, ele os coloca num quadro de generalização mais amplo. Ao fazer referência ao "povão" (um grupo social específico) e suas condições de vida, ele utiliza na elaboração da palavra pátria as relações entre grupos da sociedade. Ele não faz uma análise completa e deliberada das relações sociais de poder (que são a base das relações entre os grupos) na sociedade em que vive. Ele as sugere, destacando um lugar social determinado: o dos despatriados.

A reelaboração resultante do encontro entre as perguntas da profes-sora e as primeiras definições expressas pelas crianças- mostra corno seus conceitos iniciais (e cotidianos) foram se aproximando das formu-lações científicas do conceito de pátria, elaboradas pela história, pe]a

sociologia, pela antropologia e pela política. Nas formulações dos cientistas sociais, as relações de poder são vi-

síveis quando se considera o sentido de nação e de identidade nacional que a palavra pátria tomou a partir do século XIX na Europa, com a con-solidação dos Estados nacionais. (Os professores da área de História poderão fornecer detalhes desse período, além de explicar como os con-ceitos de pátria e de nacionalismo se relacionam. Poderão explicar tam-bém como esses conceitos foram sendo produzidos, como foram ga-nhando destaque e novos sentidos e a que setores da sociedade interessa-vam esses novos sentidos.) O sentido político, embora minimizado no contexto escolar e nos livros didáticos, é que marca as solenidades da Semana da Pátria e em especial os desfiles mencionados pelas crianças.

A aproximação entre as definições iniciais das crianças e as formula-ções científicas do conceito revela que o sentido político, o da relação en-tre pátria e poder, está presente nas elaborações que elas fazem. Os modos como definem pátria dizem respeito ao lugar por elas ocupado na socieda-de, à experiência histórico-cultural do grupo social a que pertencem. As-sim, o que de início poderia parecer falta de compreensão ou espe-cificidade do pensamento infantil pré-lógico é, na verdade, uma forma de elaboração não só aceitável como também relativamente complexa.

Ao prestarmos atenção a essas possibilidades, vamos percebendo que as palavras não são apenas modos de representação do mundo e do pensamento ou instrumentos de comunicação. Elas são elemento de interação e de constituição de identidades.

Vamos percebendo, também, que é nas relações sociais que a "neu-tralidade" das palavras se desfaz. Pois é aí que "chegamos perto das palavras", apreendendo-as na linguagem viva, em funcionamento.

Ao considerarmos os conceitos em sua história, em sua relação com a sociedade, em sua relação com a vida das pessoas que os utili-zam, redefinimos a relação de ensino como relação de partilha e de articulação de saberes. Nela, crianças e professores ensinam-se recipro-camente.

As crianças nos mostram como, a partir dos lugares sociais que ocupam, compreendem as palavras, os conceitos que vamos trabalhar com elas. Elas nos falam de algumas das faces secretas que conseguem apreender nas palavras.

Nós, professores, como parceiros sociais da criança, tomamos contato com os sentidos e saberes que ela traz para a sala de aula e, levando-os em conta, participamos ativamente dos seus processos de conhecimento e de desenvolvimento. Para isso, destacamos outros sig-nificados e sentidos além dos que ela já conhece, outros modos de orga-nizar e articular os conhecimentos, tendo em vista chegar ao conheci-mento sistematizado.

Nesse processo de entrecruzamento dos modos de conhecer se fa-zem presentes e atuantes as maneiras de dizer e pensar da criança, as operações lógicas que ela realiza, as informações que o professor lhe possibilita e, fundamentalmente, a dinâmica das relações sociais em que o conhecimento é produzido, tanto na escola quanto fora dela.

A sistematização é uma tarefa que as crianças não podem realizar sozinhas, pois requer o domínio de informações e de operações intelec-tuais que ainda estão fora de seu alcance. Elas necessitam da mediação do professor para realizá-la.

Para isso, o professor, como adulto que já teve acesso a um conjunto muito mais amplo de informações e de práticas culturais de conheci-mento e de organização da atividade intelectiva, possibilita às crianças o contato com diferentes situações de uso do conceito, destacando, apontando as diferenças de que o conceito se reveste em cada situação. O professor ensina (ajudando, fazendo junto) as crianças a compararem suas definições iniciais com os sentidos históricos dos conceitos. Ele problematiza os sentidos dicionarizados das palavras ou os tradicional-mente enfatizados nos livros didáticos e nas solenidades escolares.

A tarefa da sistematização exige que o professor, ele próprio, ela-bore ativamente os conceitos: que conheça sua história, que apreenda as atividades intelectuais contidas ou envolvidas na sua elaboração, que conheça os sentidos que têm nas práticas cotidianas das crianças com as quais trabalha, que analise as possibilidades de articulação entre os seus diferentes sentidos.

Essa elaboração de conceitos por parte do professor, porém, não é uma tarefa que ele realize sozinho. Ela é mediada pela produção cientí-fica e pelos dizeres das crianças.

Nas relações de ensino compartilhadas, professor e crianças ensi-nam e aprendem. Eles aceitam o convite do poeta e contemplam juntos as palavras. Eles aceitam juntos o desafio das palavras, mergulhando na história, nas práticas sociais de conhecimento em que se constituem, em busca das chaves...

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1. Compare as concepções de Piaget e de Vygotsky acerca do papel da escola no desenvolvimento da elaboração conceituai, enumerando as semelhanças e as diferenças entre elas.

2. Confronte sua lista com a dos colegas, ajudando a organizar uma sín-tese do levantamento feito pela classe.

Refletindo sobre os dados do texto

A partir dos elementos apresentados no texto, elabore uma pequena reflexão considerando a seguinte questão: Professores para quê?

Exercitando a síntese

Retome os dados do relatório do trabalho de campo sugerido no ca-pítulo anterior e complemente-o, utilizando informações e questio-namentos possibilitados pelo presente capítulo. Reelabore sua primeira versão, retomando os pontos que, depois dessa reflexão, considerar ne-cessários.

Exercitando a análise

Vamos dividir a classe em dois grupos:

• Os alunos do grupo 1 deverão ler o texto "Ensinando Ciências e Es-tudos Sociais nas séries iniciais", de Terezinha Nunes Carraher e David W. Carraher, publicado em Isto se aprende com o Ciclo Básico (Projeto Ipê, curso II. São Paulo: SE/CENP, 1986).

• Os alunos do grupo 2 deverão ler "A elaboração conceituai: a dinâ-mica das interlocuções na sala de aula", de Roseli A. C. Fontana, no livro A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a constru-ção do conhecimento, de A. L. Smolka e M. C. Góes, editado pela Papirus.

Nesses textos, os autores abordam situações de elaboração de con-ceitos em sala de aula ou experimentalmente.

Cada aluno deve ler atentamente o texto que coube ao seu grupo e sintetizá-lo, destacando a concepção de elaboração de conhecimento adotada pelo autor e suas implicações pedagógicas.

Cada grupo deve fazer uma síntese da sua leitura e apresentá-la à classe.

Reunidos, os grupos devem debater sobre as posições defendidas nos textos,

tendo como referência a seguinte questão: Como ensinar às crianças? 116

Unidade 3

íA bnnOcKJGÍft) o

Introdução

rincar e desenhar são atividades fundamentais da criança. Ela brinca e desenha na rua, em casa, na escola. Pela brincadeira e pelo desenho, ela fala, pensa, elabora

sentidos para o mundo, para as coisas, para as relações. Pela brincadeira, objetos e movimentos são transformados. As rela-

ções sociais em que a criança está imersa são elaboradas, revividas, compreendidas. Brincando de casinha, de médico, de escolinha, de roda, de amarelinha, de bolinhas de gude ou de pião, a criança se rela-ciona com seus companheiros, e com eles, num movimento partilhado, dá sentido às coisas da vida.

Pelo desenho, a criança deixa suas primeiras marcas. Traços, rabis-cos, círculos, que, aos poucos, vão assumindo formas mais definidas. As marcas são nomeadas — pelos outros e por ela mesma — e come-çam a se tornar simbólicas. Pelo desenho é possível representar objetos, pessoas, espaços. A criança desenha sozinha, com outros, para outros. Pelo desenho ela fala de si e do mundo.

São essas as atividades da criança para as quais vamos, agora, diri-gir o nosso olhar, procurando compreendê-las a partir das perspectivas de Luquet (no desenho), Piaget e Vygotsky.

No capítulo 10, vamos apresentar as concepções de Vygotsky e de Piaget sobre a brincadeira, sobre por que as crianças brincam e qual a sua importância no processo de desenvolvimento.

No capítulo 11, acompanharemos as transformações por que passa a brincadeira da criança, desde os primeiros jogos até aqueles com re-gras, e discutiremos o lugar da brincadeira na escola.

No capítulo 12, focalizaremos o desenvolvimento do desenho in-fantil com base nos pontos de vista de Luquet, Vygotsky e Piaget.

No capítulo 13, vamos olhar o processo de elaboração do desenho pela criança, o papel que nele têm os outros e os modelos. E discutire-mos algumas concepções sobre criatividade e desenho e sobre o traba-lho com o desenho na escola.

Capítulo 10

O papel da brincadeira no

desenvolvimento da criança

Hora do recreio. No pátio, crianças correm, pulam, jogam bola, brincam de amarelinha, de roda e fazem outras tantas brincadeiras.

Na sala de aula, crianças reunidas em pequenos grupos estão con-centradas em jogos que a professora escolheu para ajudá-la a ensinar algum conteúdo. Em outra sala (ou em outro momento), crianças prepa-ram a encenação de um texto.

Na aula de Educação Física as crianças jogam, pulam corda, praticam esportes.

Na pré-escola, as crianças brincam na aíeia, imitam bichos, montam quebra-cabeças, inven-tam coisas com sucata, brincam de faz-de-conta; enfim, passam boa parte do tempo brincando.

A brincadeira se faz presente na escola nas mais variadas situações e sob as mais diversas formas. Muitas também são as concepções sobre o seu lugar e sua importância na prática pedagógica.

Uma concepção é aquela que pode ser traduzida na frase "Criança vai à escola para aprender, e não para se divertir". De acordo com esse ponto de vista, a brincadeira é pura diversão e, portanto, só deve ser permitida na hora do recreio.

Outra concepção é a de que o criança tem necessidade de brincar, mas que na escola é preciso separar brincadeiras e "tarefas sérias". As brincadeiras estão presentes tanto na pré-escola como nas séries iniciais do 1? grau, e o tempo ocupado por elas é determinado pela idade das crianças ou pelo andamento da programação pedagógica.

A brincadeira faz

parte das

práticas

escolares das

crianças.

119

Existe ainda a concepção segundo a qual "brincando a criança aprende", que pode ser traduzida em métodos educacionais que .valori-zam a brincadeira e procuram evitar uma distinção rígida entre jogo e "tarefas sérias". Nesse caso, os jogos podem ser introduzidos como re-cursos didáticos importantes, ou, então, especialmente na pré-escola, todo o trabalho pedagógico pode basear-se na brincadeira.

Diante desse quadro, somos levados a perguntar: "Mas, afinal, qual a importância da brincadeira na vida da criança e qual o lugar que ela pode ou deve ocupar na escola?". É isso o que vamos procurar examinar a seguir, com base na psicologia do desenvolvimento.

Por que as crianças brincam?

Todos nós já ouvimos, ou até já demos, algumas respostas à ques-tão formulada acima, como: "Criança brinca para descarregar energia"; "Criança não trabalha, não precisa se preocupar com a sobrevivência e, portanto, brinca para ocupar o seu tempo"; ou, ainda, "Criança brinca por puro prazer".

Hoje, prestar atenção à brincadeira infantil e buscar explicações (de senso comum ou científicas) para ela faz parte de nosso dia-a-dia. Parece-nos natural que as crianças brinquem e que tenha sido sempre assim.

No entanto, não foi sempre assim. Houve um tempo em que a idade não era um critério de diferenciação social, e a criança partilhava os trabalhos e as festas dos adultos. Conforme vimos no primeiro capítulo, foi apenas nos séculos XV e XVI que nas sociedades ocidentais as crianças foram afastadas das atividades adultas. E a idéia da infância como um período particular somente se consolidou no século XVII, acompanhada da elaboração de uma teoria filosófica sobre a especifici-dade infantil, que tornou possível o posterior aparecimento de uma psi-cologia da criança e de seu desenvolvimento.

A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget

A psicologia vem mostrando que a brincadeira tem um papel im portante no desenvolvimento da criança e que ela satisfaz algumas d suas necessidades. Mas que necessidades são essas? O que leva a crian-ça a brincar?

Para Piaget, a brincadeira infantil é uma assimilação quase pura do real ao eu, não tendo nenhuma finalidade adaptativa. A criança pequena sente constantemente necessidade de adaptar-se ao mundo social dos adultos, cujos interesses e regras ainda lhe são estranhos, e a uma infini-dade de objetos, acontecimentos e relações que ela ainda não com-preende. De acordo com Piaget, a criança não consegue satisfazer todas as suas necessidades afetivas e intelectuais nesse processo de adaptação ao mundo adulto.

Assim, a criança brinca porque é "indispensável ao seu equilíbrio afetivo e intelectual que possa dispor de um setor de atividade cuja motivação não seja a adaptação ao real senão, pelo contrário, a assimilação do real ao eu, sem coações nem sanções [ ]" (Piaget e Inhelder, 1989: 52).

A brincadeira é, então, uma atividade que transforma o real, por assimilação quase pura às necessidades da criança, em razão dos seus interesses afetivos e cognitivos.

Uma garotinha que havia feito diversas perguntas sobre o me-canismo dos sinos, observado num velho campanário de aldeia, mantém-se imóvel e em pé ao lado da mesa do pai, fazendo um barulho ensurdecedor. "Você está me atrapalhando um pouco, não vê que eu estou trabalhando ? ", açode o pai. E a pequena: "Não fale comigo, sou uma igreja". Da mesma forma, profundamente impressionada por um pato depenado sobre a mesa da cozinha, a criança é encontrada à noite, estendida em um canapé, a ponto de a cuidarem doente e de a crivarem de perguntas, a princípio sem respostas; depois, com voz fraca, ela acaba explicando: "Eu sou o pato morto!".

(Episódio relatado por Piaget e Inhelder, em A psicologia da

criança.)

Para Piaget, situações como essas indicam que na brincadeira do faz-de-conta (chamada por ele de jogo simbólico) as crianças criam símbolos lúdicos que podem funcionar como uma espécie de lingua-gem interior, que permite a elas reviver e repensar acontecimentos inte-ressantes ou impressionantes. As crianças, mais do que repensar, neces-sitam reviver os acontecimentos. Para isso recorrem ao simbolismo di-reto da brincadeira.

As relações sociais com o mundo adulto: a concepção de Vygotsky

Vygotsky também analisa a emergência e o desenvolvimento da brincadeira nas relações sociais da criança com o mundo adulto. Segundo ele, na idade pré-escolar algumas modificações ocorrem no desenvolvimento da criança. Como demonstra Leontiev, importante psicólogo soviético, o mundo objetivo que a criança conhece está continuamente se expandindo e, nesse período, já não inclui apenas os objetos que constituem o ambiente que a envolve (como seus brinquedos, sua cama ou os utensílios e objetos com os quais ela está sempre em contato e sobre os quais pode agir), mas também °s objetos com os quais os adultos operam e sobre os quais ela ainda não pode agir.

A situação

laginária da

•rincadeira é

decorrência

ação, afirma

Vygotsky.

Quem foi Leontiev?

Alexis N. Leontiev, nascido em 1903, foi um dos mais importantes psicólogos soviéticos que trabalharam com Vygotsky e Luria. Membro da Academia Soviética de Ciências Pedagógicas, recebeu em 1968 o título de doutor honoris causa pela Universidade de Paris.

Leontiev pesquisou principalmente a relação entre o desenvolvimento do psiquismo humano e a cultura, ou seja, entre a evolução das funções psíquicas e a assimilação individual da experiência histórica.

Assim como Vygotsky, Leontiev criticou as con-cepções mecanicistas do comportamento humano. Sua preocupação era encontrar um referencial materialista histórico e dialético para a psicologia.

A defesa que Leontiev fez da natureza sócio-histó-rica do psiquismo humano teve como base a teoria marxista do desenvolvimento social. Teórico e

experimentador, Alexis Leontiev não se limitou ao trabalho de laboratório. Preocupou-se com os problemas da vida humana em que o psiquismo intervém. Seu campo de estudos compreendeu principalmente a pedagogia, a cultura, o problema da perso-nalidade. Criou a Faculdade de Psicologia da Universidade de Moscou, da qual se tornou decano. Leontiev morreu em 1979.

(Adaptado de Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desen»

volvimento e aprendizagem. São Paulo: Icone/Edusp.)

Ou seja, a criança passa a se interessar por uma esfera mais ampla da realidade e sente necessidade de agir sobre ela. Agir sobre as coisas é

a principal forma de que a criança dispõe para conhecê-las, compreen-

dê-las. Nesse período, ela tenta atuar não apenas sobre as coisas às quais tem acesso, mas esforça-se para agir como um adulto: quer, por exemplo, dirigir um carro ou fazer comida.

Surge, então, uma contradição entre a necessidade de agir sobre um número cada vez maior de objetos e o desenvolvimento das capacidades fí-sicas. Em outras palavras, surgem na criança as necessidades não realizáveis imediatamente, no dizer de Vygotsky, e que se tornam motivo para as brincadeiras. Isso não significa, porém,

que as crianças compreendem as motivações que as levam a brincar.

12

A brincadeira é, então, a forma possível de satisfazer a essas necessi-dades, já que possibilita à criança agir como os adultos (dirigindo um carro, cuidando de um bebê, fazendo "comidinha") em uma situação imaginária.

Para Vygotsky, a situação imaginária da brincadeira decorre da ação da criança. Ou seja, a tentativa da criança de reproduzir as ações do adul-to em condições diferentes daquelas em que elas ocorrem na realidade é que dá origem a uma situação imaginária. Isso significa que a criança não imagina uma situação para depois agir, brincar. Ao contrário, para imaginar, ela precisa agir. É o que vamos compreender melhor analisan-do uma situação real de crianças brincando, descrita a seguir.

Brincando de estação de trem

Algumas crianças brincam de estação de trem em uma pré-escola na antiga União Soviética, observadas por um pesquisador.

Sete crianças estão brincando em uma sala grande. B é o che-fe da estação. Ele está usando um boné vermelho e carrega um disco de madeira em uma vara. Ele cercou uma área com cadeiras, explicando que é a estação onde o chefe mora.

T, Le N são passageiros. Eles dispuseram as cadeiras em fila, uma atrás da outra, e sentaram-se.

N: "Como podemos começar sem um condutor? Eu serei o ma-quinista ". Ele vai para a frente e começa a resfolegar: "Ssh-ssh-ssh ".

G é a garçonete do restaurante. Ela cercou um "restaurante" com cadeiras em torno de uma mesinha, pôs uma caixa de papelão sobre ela e encheu-a de pedaços de papel rasgados por ela e que seriam o "dinheiro". Perto da caixa, ela dispôs ordenadamente, em fileiras, pedacinhos de biscoito. "Veja como eu tenho um res-taurante bem-fornido ", diz ela.

Ba: "Eu venderei as passagens... ohl Como se chama quem faz isso?". "Caixa", diz o pesquisador. Ba: "Sim, sim, o caixa. Dê-me um pouco de papel". Tendo obtido o papel, ela o rasga em tiras e separa os pedaços maiores. "Aquelas são as passagens e estes (os pedaços pequenos) o dinheiro, para dar o troco ".

B dirige-se a N: "Quando eu lhe der este disco, você imediata-mente começa". N imita o som de descarga de uma máquina e os passageiros ocupam seus lugares. De repente, B diz: "Os passa-geiros estão embarcando sem bilhetes e está na hora do trem par-tir". Os passageiros correm para o guichê de venda de passagens, onde Ba está sentada, esperando. Eles estendem a ela pedaços de papel e ela lhes dá, em troca, as passagens. Os passageiros voltam a seus lugares. B aparece edáo disco aN.N imita o som de descar-ga, sopra, e eles "partem ".

G (com ar aborrecido): "Quando é que eles virão para com-prar?". B: "Eu posso vir agora, o trem partiu e por isso eu posso".

Ele vai até o restaurante e pede um bolo. G lhe dá um e pergunta: "E o

dinheiro ?". B corre até o pesquisador e, tendo recebido um pedaço de

papel, volta e "compra " um bolo. Ele come com ar satisfeito. Ba mexe-se

na cadeira, olha para o restaurante, mas não se levanta. Em seguida, ela

olha novamente para o restaurante e para o pesquisador, e pergunta:

"Quando é que vou comer? Não há ninguém aqui agora", diz ela, como

que para se justificar. N observa: "O que é que está impedindo? Vá em

frente". Ba olha ao redor, depois corre para o restaurante, compra

rapidamente e volta depressa. G arruma de novo os seus bolos, mas não

se serve. N assopra ruidosamente e grita: "Estação!". Ele e os passageiros

correm ao restaurante, compram bolos e voltam. B toma o disco de N e,

depois, devolve-o. N assopra e resfolega, e eles "partem" novamente. Ba examina o restaurante, compra um bolo e o come. G: "Eu

também gostaria de comer, mas o que é que eu faço, compro ou me

sirvo?". B ri: "Compre de você mesma e pague-se". G ri, mas

imediatamente pega duas "moedas" e compra de si mesma dois pedaços

de bolo, explicando como se fosse para o pesquisador que está presente:

"Eles já compraram uma vez "■ Não recebendo resposta, ela se põe a

comer.

(Situação relatada por Leontiev, 1988: 136-7.)

Aprendendo a olhar a brincadeira

Comecemos por examinar quais são as características dessa brincadeira.

A primeira coisa que nos chama a atenção é que cada criança envolvida na

situação assume um papel definido: algumas são os passageiros, uma é o

maquinista, outra o chefe da estação, e assim por diante. Toda a ação das

crianças se desenvolve e se estrutura a partir desses papéis, configurando-se,

assim, uma situação imaginária. Ou seja, a criança que assume o papel de

chefe de estação, age como tal: é ela quem deve autorizar a partida do trem. O

mesmo ocorre com as crianças que assumem os outros papéis: elas agem como

passageiros, como maquinista, como bilheteiro.

Um segundo aspecto que podemos notar na brincadeira é a utilização que

as crianças fazem dos objetos: cadeiras tanto demarcam os espaços como

compõem o trem; pedaços de papel transformam-se em dinheiro e em

passagens; pedaços de biscoito viram bolo.

Essa transformação dos objetos é interpretada por Piaget como resultado

da utilização de esquemas habituais, contando não com a presença dos objetos

a que comumente se aplicam, mas de novos objetos que "não lhe convém [à

criança] do ponto de vista de uma adaptação efetiva" (Piaget, 1978: 127). Um

pequeno travesseiro, por exemplo, pode ser embalado como uma boneca; uma

caixa, empurrada como um carrinho; ou, ainda, como na situação acima,

cadeiras

podem se transformar em um trem. Desse modo, a criança transforma o significado dos objetos de acordo com seus desejos, sem preocupação de adaptar-se à realidade.

Assim, na brincadeira qualquer coisa pode transformar-se em ou-tra, sem regras nem limitações. Essa possibilidade de livre transforma-ção de significado dos objetos explica-se pelo predomínio da atividade assimilativa da criança, ou seja, pela incorporação a seus esquemas de ação e pensamento de objetos diferentes sem a correspondente transfor-mação (acomodação) desses esquemas e com o único propósito de per-mitir à criança imitá-los ou evocá-los.

Vygotsky, no entanto, observou que na situação do faz-de-conta não é qualquer objeto que pode substituir outro e que a criança, ao brin-car, sempre submete seu comportamento a regras.

Se observarmos na brincadeira de estação de trem como se de-senrolam as ações das crianças, notaremos que, ao contrário do que habitualmente se diz sobre as brincadeiras das crianças — que nelas tudo pode acontecer —, toda a ação das crianças é regulada pela si-tuação imaginária, desenvolve-se de acordo com ela. Assim, o trem não pode partir antes que os passageiros tenham comprado seus bilhetes e que o chefe da estação tenha dado a devida autorização ao ma-quinista. Da mesma forma, não se pode comprar bolo sem dinheiro, e os passageiros que estão no trem só se dirigem ao restaurante quando o trem pára na estação.

Brincadeira é coisa séria

Podemos notar, então, que a situação imaginária, longe de ser algo criado livremente pelas crianças, sem nenhuma relação com a realida-de, traz as marcas da experiência social das crianças, de suas vivências e conhecimentos sobre a realidade.

Vygotsky dá um exemplo de duas irmãs, uma com 5 e outra com 7 anos, que resolveram "brincar de irmãs". Nessa brincadeira, elas fazem tudo aquilo que enfatiza sua relação social de irmãs, passando a agir de acordo com regras de comportamento próprias dessa relação, que não são percebidas na vida real.

Essa situação, como a da criança que assume o papel de maquinista de trem, mostra que aquilo que na vida real passa despercebido pelas crianças torna-se regra de comportamento na brincadeira.

De acordo com Vygotsky, essas regras decorrem da própria situa-ção imaginária. É o fato de assumir determinado papel que induz a criança a submeter seu comportamento a regras.

A submissão a regras implica a superação da ação impulsiva. Para esperar que o trem pare na estação para ir ao restaurante comprar bolo, as crianças precisam evitar a ação impulsiva de obter um biscoito e submetê-la às regras implícitas na situação imaginária. Segundo Vy-gotsky, essa submissão da criança a regras de comportamento é a razão do prazer que ela experimenta na brincadeira.

Na situação de brincadeira, a criança supera a ação impulsiva tam-bém relativamente aos objetos. Crianças muito pequenas ainda não têm essa capacidade: os objetos é que determinam o que devem fazer, por-que sua percepção é sempre um estímulo para a atividade. Ou seja, a criança pequena age de acordo com o que vê. Se vê um cabo de vassou-ra perto de uma lata, por exemplo, ela poderá usá-lo para bater na lata. Ou então, se vê um biscoito, ela provavelmente o comerá.

De acordo com Vygotsky, "é no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, de-pendendo das motivações e tendências internas, e não dos incentivos fornecidos pelos objetos externos".

Isso significa que na brincadeira os objetos perdem sua força deter-minadora e a criança passa a operar com o significado das coisas. Na brincadeira, um cabo de vassoura pode ser utilizado como um cavalo, e biscoitos podem se transformar em pedaços de bolo vendidos no restaurante de um trem.

Objetos e significados na brincadeira

Mas a criança não realiza a transformação de significados de uma hora para outra. Como vimos, quando muito pequena, ela ainda não é capaz de agir como se um cabo de vassoura fosse um cavalo. Isso por-que os significados ainda estão ligados aos objetos concretos que a criança conhece: cachorro significa seu próprio cachorro; relógio é o relógio de parede da sala de sua casa; irmã é sua própria irmã.

Vygotsky vê a brincadeira infantil como um recurso que possibilita

a transição da estreita vinculação entre significado e objeto concreto à

operação com significados separados dos objetos. Na brincadeira, a

^^^^ criança ainda utiliza um objeto concreto para promover a separação en- 1 26 tre

significado e objeto. Ela só é capaz de operar, por exemplo, com o

-------- significado de cavalo (sem se referir ao cavalo real) utilizando um obje-

to, como o cabo de vassoura, que lhe permita realizar a mesma ação possível com o cavalo real: montar ou cavalgar.

Assim, não é qualquer objeto que pode substituir outro. Uma bola, uma caneta ou uma mesa não poderiam representar um cavalo, porque a criança não poderia agir com esses objetos como se fossem um cavalo, não poderia montá-los ou cavalgá-los.

Já uma criança mais velha ou um adulto poderiam utilizar qualquer um desses objetos para representar um cavalo. Um adolescente, por exemplo, que estivesse relatando uma experiência a um amigo, poderia tranqüilamente dizer: "Faça de conta que aquela mesa é o cavalo. Eu estava aqui, mais ou menos a essa distância, quando ele disparou em minha direção".

Isso porque crianças mais velhas, adolescentes ou adultos já po-dem operar com o significado, independentemente do objeto concreto. Qualquer coisa pode simbolizar outra, e é possível até mesmo operar com significados que dizem respeito a coisas que nunca foram vistas ou experimentadas. E por isso que, se nos falam sobre violino, é possível compreendermos o que dizem sem nunca termos visto um violino ou ouvido o seu som. Para isso, basta conhecermos o significado da pala-vra violino.

É nesse sentido que a brincadeira infantil constitui uma transição: ao agir com um objeto como se fosse outro, a criança separa do objeto real, concreto, o significado. Mas, para realizar essa separação, ainda há necessidade de um objeto substituto que possibilite a mesma ação que o objeto real.

Da mesma forma que um objeto substitui outro, na brincadeira in-fantil uma ação também substitui outra. Quando a criança brinca de montar a cavalo, sua ação de correr com um cabo de vassoura entre as pernas, imitando um trotar, substitui a ação real de cavalgar.

Nesse caso, o significado também se separa da ação por intermédio de uma ação diferente (como no caso dos objetos), e a criança opera com o significado de sua ação: "montar" um cabo de vassoura adquire o significado de cavalgar.

Na brincadeira, a criança opera com significados desvinculados dos objetos e das ações; mas o fato de utilizar outros objetos reais (como o cabo de vassoura) e outras ações reais (como "montar" um cabo de vassoura) ajuda-a a realizar uma importante transição.

O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança A

brincadeira e a função simbólica

Piaget e Vygotsky têm pontos de vista diferentes também quanto à função da brincadeira no desenvolvimento infantil.

Para Piaget, o jogo simbólico é parte de uma função fundamental do processo cognitivo da criança, a função simbólica. Essa função apa-

rece na criança mais ou menos aos 2 anos e permite que ela possa repre-sentar uma coisa (um objeto, um acontecimento, etc.) por intermédio de outra coisa, como a linguagem, o desenho ou o gesto simbólico.

Como vimos, Piaget considera que a brincadeira não tem finalida-de adaptativa, não provoca um aprimoramento dos esquemas mentais, ou de ação, da criança. Sua importância para o desenvolvimento consis-te no fato de possibilitar — pela aplicação de esquemas conhecidos a objetos "inadequados" — a transformação do significado dos objetos e a criação de símbolos lúdicos individuais. Num símbolo lúdico, como pedacinhos de biscoito que representam bolo, um objeto é evocado por outro, ao qual são atribuídas as qualidades daquele.

Assim, o jogo simbólico relaciona-se ao aparecimento da capaci-dade de representar eventos e objetos. E, com a representação, a criança torna-se capaz de pensar em objetos que não estão presentes em seu campo perceptivo, de lembrar-se de acontecimentos, de prever mental-mente o resultado de suas ações.

A função simbólica é, então, indispensável para a ampliação das fronteiras da inteligência, embora, de acordo com Piaget, ela só progrida com o desenvolvimento da própria inteligência. Ou seja, é à medida que o pensamento da criança se desenvolve que sua linguagem, o dese-nho e o próprio jogo evoluem.

Portanto, embora o jogo simbólico seja importante para a constitui-ção de símbolos que servem para representar objetos ou acontecimen-tos, ampliando o campo de ação da inteligência, seu desenvolvimento está subordinado ao desenvolvimento da própria inteligência.

A criação de zonas de desenvolvimento proximal

Já para Vygotsky, a brincadeira tem um papel fundamental no de-senvolvimento do pensamento da criança. Ao substituir um objeto por outro, a criança opera com o significado das coisas e dá um passo im-portante em direção ao pensamento conceituai, que, como já vimos, baseia-se nos significados, e não nos objetos. Por exemplo, o conceito de escola para um adulto não se refere a uma ou várias escolas que ele conhece, mas corresponde a uma generalização, a uma idéia de escola que pode incluir múltiplos aspectos: seu caráter de instituição, sua fun-ção social, sua forma de organização em geral, etc.

Além disso, quando a criança assume um papel na brincadeira, ela

opera com o significado de sua ação e submete seu comportamento a

determinadas regras. Isso conduz ao desenvolvimento da vontade, da

capacidade de fazer escolhas conscientes, que estão intrinsecamente

relacionadas à capacidade de atuar de acordo com o significado de

ações ou de situações e de controlar o próprio comportamento por meio de regras.

^^^^ E importante notar também que no jogo a criança faz coisas que

1 28 ainda não consegue realizar no cotidiano. Nas atividades cotidianas, a

-------- criança em idade pré-escolar age de acordo com o meio, os objetos e as

situações concretas, tendo dificuldade em controlar voluntariamente seu comportamento e submetê-lo a regras. Quem conhece crianças des-sa idade sabe que é preciso estar constantemente lhe dizendo o que fa-zer. É preciso sempre chamá-la para tomar banho, lembrá-la de escovar os dentes, recomendar que guarde seus brinquedos, e assim por diante. Ela ainda não decide antecipadamente o que vai fazer e só submete seu comportamento a regras impostas obedecendo a uma autoridade exte-rior (os pais ou o professor).

Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 2

A criança dessa idade tem no dia-a-dia dificuldade para fazer dis-tinção entre o significado dos objetos e suas características. Uma crian-ça que tenha aprendido a utilizar a palavra animal para se referir a ma-míferos de quatro patas, provavelmente terá dificuldade em reconhecer um inseto ou uma ave como animais. O significado da palavra animal permanece ligado às características dos seres que concretamente ela conhece como animal: as quatro patas, por exemplo.

É por-isso que, segundo Vygotsky, a brincadeira cria uma zona de desenvolvimento proximal: "[...] no brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade" (Leontiev, 1988: 122).

Assim, a brincadeira é a atividade "em conexão com a qual ocor-rem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que prepa-ram o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento" (idem, ibidem).

Logo, a atividade de brincar é essencial para o desenvolvimento da criança em idade pré-escolar.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1. Reproduza o quadro abaixo e preencha-o com as informações do texto:

Piaget Vygotsky

Por que as crianças brincam

Como as crianças brincam

Papel da brincadeira no desenvolvimento

Trabalho de campo

1. Observe crianças brincando. Faça uma combinação entre as idades e as situações seguintes:

Situações Idades

Sozinhas De 1 a 3 anos

Com outras crianças De 4 a 6 anos Com adultos De 7 a 9 anos

De 8 a 11 anos

Combinando as diferentes faixas de idade e situações (por exemplo, crianças de 1 a 3 anos sozinhas, de 1 a 3 anos com outras crianças e de 1 a 3 anos com adultos), serão doze as condições para a observa-ção. A classe deverá ser dividida em grupos, e a cada grupo será atri-buída uma das condições. Durante as observações, prestem atenção aos seguintes aspectos:

• de que as crianças brincam;

• com quem brincam;

• que objetos ou brinquedos utilizam e como os utilizam;

• que atividades realizam e como as realizam;

• o que falam e a quem se dirigem;

• como se relacionam durante a brincadeira.

Procurem registrar tudo o que puderem e bem rapidamente (as falas das crianças merecem atenção especial e, na medida do possível, de-vem ser registradas literalmente). Cada grupo deve organizar o seu registro e depois apresentá-lo para a classe.

2. Com base nos resultados das observações de todos os grupos, organi-ze com os colegas um painel sobre a brincadeira infantil. Na apresen-tação do painel, façam um debate sobre a brincadeira infantil, con-frontando os modos como a vêem Piaget e Vygotsky.

Sugestão de leituras

KJSHIMOTO, T. M. O brinquedo na educação — Considerações históri-cas. O cotidiano da pré-escola. São Paulo: FDE, 1990. (Idéias, 7).

OLIVEIRA, Zilma M. R. de. L. S. Vygotsky: algumas idéias sobre desen-volvimento e jogo infantil. A pré-escola e a criança hoje. São Paulo: FDE, 1988. (Idéias, 7).

PIAGET, J. A função semiótica ou simbólica. In: ________ . A psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In:

_______ . A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

0

Capítulo 11

A brincadeira na vida e na

escola

Como vimos no capítulo anterior, Piaget e Vygotsky têm concep-ções diferentes sobre a importância da brincadeira para a criança. No entanto, os dois concordam que a brincadeira evolui e se modifica.

Para Piaget, essa evolução acompanha o desenvolvimento da inte-ligência e do pensamento, enquanto para Vygotsky ela se deve a mu-danças que ocorrem na interação da criança com o meio social, em ra-zão das diferentes posições que ocupa e das diferentes tarefas que lhe são colocadas.

Assim, cada um desses autores dirige sua atenção para aspectos distintos do processo de evolução da brincadeira, reconhecendo nele diferentes momentos.

A perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da brincadeira

Os primeiros jogos que a criança realiza são denominados por Piaget jogos de exercício. Estes não comportam ainda nenhum simbo-lismo e consistem na repetição, por puro prazer, de comportamento que ela já aprendeu.

Depois de ter aprendido, a partir dos 7 meses, a repelir um obstáculo para agarrar o objetivo, T. começa, entre 8 e 9 meses, a sentir prazer nesse gênero de exercícios. Quando eu interponho, várias vezes seguidas, a minha mão ou um cartão entre a sua e o brinquedo que ele cobiça, T. chega a esquecer momentaneamente esse brinquedo para limitar-se a repelir o obstáculo, rindo às gar-galhadas. O que era adaptação inteligente converteu-se, pois, em jogo por deslocamento do interesse para a própria ação indepen-dentemente de sua finalidade.

(Situação relatada por Piaget em A formação do símbolo na

criança.)

O jogo vai se tornando mais elaborado e mais complexo à medida que o bebê começa a combinar ludicamente ações diferentes, pas-sando de uma a outra ação sem em-preender nenhum esforço que vise adaptação ao meio ou aos objetos e sem ter nenhuma finalidade deter-minada. O bebê repete certas ações pelo prazer de exercitá-las.

Se num primeiro momento as ações do bebê são repetidas, apli cando-se aos mesmos objetos (co- _______ mo, por exemplo, repetir com o travesseiro todos os movimentos que habitualmente faz para dormir: deitar-se de lado, apoiando nele a cabe-ça, chupar-lhe as franjas, fechar os olhos, etc), chega um momento em que outros e novos objetos começam a ser empregados.

J. (1 ano e 3 meses) vê uma toalha cujas bordas franjadas lhe recordam vagamente as de seu travesseiro: apanha-a, retém uma ponta na sua mão direita, chupa o polegar da mesma mão e deita-se de lado, rindo muito. Conserva os olhos abertos mas pisca-os de tem-pos a tempos, como se quisesse fazer uma alusão aos olhos fechados para dormir. Enfim, rindo cada vez mais, grita nana (= dormir).

(Situação relatada por Piaget em A formação do símbolo na

criança.)

Éapenas por puro

prazer que os

bebês repetem

certas ações.

Esse tipo de jogo dá origem ao jogo simbólico (o faz-de-conta), que surge na criança quando seu pensamento torna-se capaz da representação simbólica (mais ou menos aos 2 anos). Diferentemente do jogo de exercício, que não supõe o pensamento nem a representação mental de objetos ou situações, o jogo simbólico, conforme já observamos, implica a representação de objetos e acontecimentos ausentes.

De acordo com Piaget, o jogo simbólico começa por comportamentos pelos quais a criança imita objetos, pessoas ou situações. Aos poucos, a brincadeira simbólica com outras crianças (casinha, escoli- nha, etc.) começa a ter lugar, e o simbolismo lúdico vai se tornando mais complexo. O símbolo lúdico pouco a pouco leva às representações adap-

133

Ojogo do faz-de-conta surge quando a criança torna-se capaz

de representar objetos e acontecimentos ausentes.

tadas, em que verdadeiras dramatizações com papéis definidos ocupam o lugar do faz-de-conta. Construções com madeira, pedras, modelagem, etc. passam a ser utilizadas, substituindo as transformações mais rudi-mentares dos objetos que ocorrem no jogo de faz-de-conta.

Assim, o jogo simbólico se desenvolve na direção de uma atividade mais construtiva, com finalidade de adaptação ao real. Os jogos de cons-trução (em que a criança constrói maquetes e réplicas de objeto a partir dos mais variados materiais), os jogos dramáticos (teatrinho, drama-tização) e também os jogos com regras (bolas de gude, cartas, amare-linha, etc), todos eles se devem ao desenvolvimento do jogo simbólico.

Os jogos com regras aparecem por volta dos 7 anos, possibilitados pela crescente socialização do pensamento da criança, que conduz à substituição do símbolo lúdico individual pelas regras. Ao contrário do simbolismo, a regra supõe relações interindividuais, pois é "uma regu-laridade imposta pelo grupo, e de tal sorte que a sua violação representa uma falta" (Piaget, 1978: 148).

Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 1.

Os jogos com regras são jogos de combinações sensório-motoras (como corridas, bolas de gude, etc.) ou intelectuais (cartas, xadrez, etc). Quase sempre há entre indivíduos competições que são reguladas por regras estabelecidas pelo grupo, por acordo momentâneo ou por regras transmitidas de uma geração a outra:

[...] os jogos de regras podem ter origem quer em costumes adultos que caíram em desuso (de origem mágico-religiosa, etc), quer em jogos de exercícios sensório-motores que se tornaram co-letivos, quer, enfim, em jogos simbólicos que passaram igualmente a coletivos mas esvaziando-se, então, de todo ou parte de seu con-teúdo imaginativo, isto é, de seu próprio simbolismo.

(Piaget, 1978: 185)

A perspectiva de Vygotsky sobre o desenvolvimento da

brincadeira

De acordo com Vygotsky, as primeiras brincadeiras surgem da ne-cessidade de dominar o mundo dos objetos humanos. Ao brincar, a crian-

ça tenta agir sobre os objetos, como os adultos. É por isso que a brin-cadeira de crianças mais novas caracteriza-se pela reprodução de ações humanas realizadas em torno de objetos. Elas brincam de montar um cavalo, de dirigir um trem, de alimentar, trocar ou banhar uma boneca.

Durante o desenvolvimento dessas brincadeiras, as relações huma-nas incluídas nessas ações começam a aparecer mais claramente. As cri-anças passam a brincar não apenas de dirigir um trem, mas reproduzem as relações humanas em que o maquinista está envolvido. Já não importa apenas a relação entre o maquinista e o trem (a ação de conduzir o trem), mas também as relações entre o maquinista e seu ajudante, os passagei-ros, o chefe da estação e o funcionário que dá o sinal de partida.

Ao embalar a boneca, trocar sua roupa, dar-lhe banho ou comidi-nha, a criança pequena assume o papel de mãe, preocupando-se em reproduzir as ações maternas. Já a criança mais velha inclui essas ações em um contexto de relações sociais mais amplo, em que não importam apenas as ações que a mãe realiza com o filho, mas as relações entre ambos. Ela ralha com a boneca, leva-a ao médico ou à escola, o pai e outros irmãos podem aparecer, trazendo para o primeiro plano as relações sociais em que mãe e criança estão inseridas.

Nas brincadeiras de grupo, as relações sociais são reproduzidas nas relações das crianças entre si. Reguladas por regras implícitas de com-portamento, essas relações são uma pré-condição importante para que, aos poucos, as crianças tornem-se conscientes da existência de regras na brincadeira. É sobre essa base que surgem os jogos com regras (co-mo amarelinha, esportes, cartas).

Vygotsky afirma que "da mesma forma que uma situação imaginá ria tem que conter regras de comportamento, todo jogo com regras contém uma situação imaginária". O jogo de xadrez (que é um jogo ■] 35

com regras), por exemplo, baseia-se em uma situação imaginária. ^—

'o jogo de regras estão presentes

imbém situações imaginárias.

O cavalo, o rei, a rainha e outras peças só podem ser movidos no tabuleiro de ma-neiras específicas, determi-nadas por uma situação ima-ginária. O mesmo ocorre nos jogos com cartas, na bata-lha-naval, no jogo de bolas de gude e outros.

Assim, no contexto das práticas histórico-culturais, a brincadeira se desenvolve, passando de uma situação claramente imaginária, com

regras implícitas, para uma situação implicitamente imaginária, com regras e objetivos claros.

Da mesma forma que a brincadeira, o papel que ela exerce no de-senvolvimento infantil também se modifica. Na idade pré-escolar, a brincadeira de faz-de-conta é a principal atividade da criança. Já na ida-de escolar, os jogos com regras e os esportes tornam-se mais impor-tantes. Estes têm um papel específico no desenvolvimento, mas não são tão fundamentais como o faz-de-conta na idade pré-escolar. A instrução formal, culturalmente valorizada e estimulada, passa a ocupar então o papel central no desenvolvimento da criança.

36

_

Brincando, aprendendo e sendo

Após tratar do papel da brincadeira no desenvolvimento infantil em nossa sociedade, vamos retornar à questão do seu lugar na escola.

Brincar na escola não é a mesma coisa que brincar em casa ou na rua. O cotidiano escolar é marcado pelas características, pelas funções e pelo modo de funcionamento dessa instituição.

Na escola, como lugar essencialmente destinado à apropriação e elaboração pela criança de determinadas habilidades e determinados conteúdos do saber historicamente construído, a brincadeira é negada, secundarizada ou vinculada a seus objetivos didáticos. Nesse último caso, diz-se que brincar é uma forma de aprender, privilegiando-se as-sim a atividade cognitiva implícita na brincadeira, em detrimento de seu caráter lúdico.

E na escola existe o professor, que é o adulto que conduz intencio-nalmente as relações de ensino, de acordo com objetivos e concepções didático-pedagógicos. Concepções e objetivos que constituem, ao mes-mo tempo, o crivo de seleção das atividades apresentadas às crianças e a "lente" com a qual ele focaliza o que elas fazem e dizem. Diferente-mente do adulto que em casa vê a criança brincar, ou brinca com ela e para ela, "experimentando com o acaso" (Novalis), o professor relacio-

na-se com a brincadeira como um procedimento previsto em seu plano de ação com as crianças.

No entanto, nas condições concretas do cotidiano escolar, como o brincar se realiza?

Brincando na escola

Sala de jogos. Acompanhadas pela professora, as crianças do

jardim (5 anos) vão se acomodando nas mesinhas e escolhendo, nas

prateleiras, os jogos e materiais com que desejam ocupar-se.

O material disponível à exploração das crianças é constituído

basicamente por jogos pedagógicos — quebra-cabeças, jogos de encaixe

e montagem, placas de alinhavo, etc. Nesse espaço, a professora não precisa orientar verbalmente a

atividade dos alunos. A própria organização das condições físicas da

sala indica o que é esperado deles, o que é permitido a eles nesse lugar e

momento da rotina escolar.

Na situação há possibilidades de escolha. Não há lugares

marcados, nem uma tarefa única para todos — cada criança escolhe

com que e com quem brincar, onde sentar. A situação é um convite à exploração — os jogos estão à

disposição para serem manipulados, observados... Eles permitem/

incitam a atividade das crianças. Nos jogos há problemas implícitos a

serem solucionados: para que servem as peças? Como montá-las? A

criança obedece às sugestões dos brinquedos, aprendendo a usá-los

dentro das regras a que foram destinados. Mas essa não é a única forma de explorá-los. Além de sua

experiência ou conhecimento desses tipos de jogos, as crianças também

exploram as peças que os compõem, elaborando outras possibilidades e

modos de brincar com elas. É possível comparar as peças, juntá-las ao acaso, agrupá-las

segundo os mais diferentes critérios e até desenhar com elas,

percorrendo os múltiplos caminhos que o material oferece à sua

atividade. Sem levar em conta figura e forma, Guilherme junta as peças de

um quebra-cabeça em pares. Ana, percebendo o contorno do

quebra-cabeça, uma borda azul e reta existente em várias peças, utiliza-o

como ponto de encontro para enfileirá-las, sem se importar com os

encaixes. Fernando engata quatro peças montando, empolgado, um

trenzinho, enquanto Júlio transforma a haste e as argolas, que

formariam o corpo do palhaço, no eixo e nas rodas de um avião. Sentadas no chão, Carol, Elisa e Natália brincam de alinhavo.

Enquanto as mãos movimentam-se ritmadamente sobre as placas, elas

conversam. Carol: "Eu era a costureira. Eu tava tão cansada, mas preciso

terminar este vestido ".

Elisa: "Eu também". Natália: "Eu também. Épra festa de hoje à noite". Carol: "É duro ser costureira. Dá uma dor na costa. Tem

que trabalhar muito. Este vestido é tão grandão, não acaba nunca".

Natália: "A gente furava o dedo na agulha e não vai poder ir na festa".

Elisa: "É... a madrasta não vai deixar. Ela vai com as fi-lhas dela e a gente vai ficar sozinha trabalhando... ".

Carol: "Que nem Cinderela, né?".

(Episódio extraído do relatório de estágio de Fernanda Victor, alu-

na do curso de Magistério, 1993.)

Por meio de •gos, na escola,

as crianças

reproduzem diversas

loções sociais: das trocas

'erpessoais, da legociação, da

disputa.

8

As crianças brincam, transformando os brinquedos, reelaborando-os criativamente. Combinando os dados da experiência, elas constróem uma nova realidade.

O movimento de ali-nhavar, treino motor obje-tivado pedagogicamente, adquire um novo significado — o "gesto" de costurar —, enquanto as crianças se transformam em costureiras e, em seguida, são impedidas de irem à festa, em Cinderelas.

Pelo gesto, pela palavra, a placa de alinhavo é

convertida em símbolo para o jogo, e as crianças imitam e

vivenciam um mundo que querem conquistar. O

faz-de-conta impõe-se aos objetivos didático-pedagógicos, redi-mensionando-os. Na brincadeira, conhecimento e fabulação,

experiência e simbolização entrelaçam-se. Brincar na sala de jogos possibilita, também, o relacionamento en-

tre as crianças. Algumas ficam sozinhas. Outras se agrupam, mas têm dificuldade de se entrosar, não sabem exatamente o que fazer, ficam observando os colegas. Há as que falam com os amigos, trocam peças e idéias, num trabalho conjunto efetivo e equilibrado.

Otávio fica em dúvida sobre onde colocar a peça do quebra-cabeça que tem nas mãos. Danilo, ao seu lado, lhe diz: "Tá vendo o nome?" (apontando para aparte já montada do quebra-cabeça). "Então, coloca a sua peça embaixo. "

(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira.

aluna do curso de Magistério, 1993.)

Há grupos em que as relações são tensas, envolvendo disputa de interesses, e com algumas crianças querendo se impor ao restante do grupo. Como todas as crianças queriam o quebra-cabeça da árvore, es-tabelece-se entre elas a seguinte conversa:

Ricardo: "Ah, Carla! Dá o da árvore para mim. Eu quero fazê primeiro, tá?".

Fabiana: "Não, não pode dar pra ele. Tem que acabar de montar pra pegar o outro ".

Carla: "Eu vou ficar com o da árvore. Depois eu vejo pra quem eu vou dar".

Ricardo: "Isso não vale!". Carla: "Eu e minhas amigas vamos ficar de mal de você!".

(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira, aluna do curso de Magistério, 1993.)

No confronto das possibilidades, no exercício das trocas e negocia-ções, vai se delineando a disputa entre os modos de ver e dizer o mundo e o outro. Emergem, na dinâmica da brincadeira, as práticas sociais das crianças, suas histórias em construção no jogo "real" e conflitante das relações sociais.

O lugar da brincadeira na escola

Vista de perto, com enfoque na criança que brinca, a brincadeira na es-cola sejevela muito mais complexa, múltipla e contraditória do que leva em conta o princípio didático-pedagógico que associa o brincar a aprender.

Brincar é, sem dúvida, uma forma de aprender, mas é muito mais que isso. Brincar é experimentar-se, relacionar-se, imaginar-se, expres-sar-se, compreender-se, confrontar-se, negociar, transformar-se, ser. Na escola, a despeito dos objetivos do professor e de seu controle, a brinca-deira não envolve apenas a atividade cognitiva da criança. Envolve a criança toda. É prática social, atividade simbólica, forma de interação com o outro. Acontece no âmago das disputas sociais, implica a consti-tuição do sentido. É criação, desejo, emoção, ação voluntária.

Quando perde sua dimensão lúdica, sufocada por um uso didático que a restringe a seu papel técnico, a brincadeira esvazia-se: a criança explora rapidamente o material, esgotando-o. Isso se dá quando, em vez de aprender brincando, a criança é levada a usar o brinquedo para aprender.

Esse uso da brincadeira como estratégia de aprendizagem acentua-se nas séries iniciais do 1? grau. Incentivada e considerada atividade fundamental da criança na fase pré-escolar, a brincadeira costuma ser, então, deixada de lado, ou apenas tolerada. Nas sociedades urbanas contemporâneas, ler, escrever e estudar tornam-se as atividades fundamentais para as crianças em idade escolar, e os jogos e as brincadeiras só têm lugar na prática pedagógica quando auxiliam a elaboração e construção de conhecimentos sistematizados.

Nesse contexto, o jogo aparece (con)fundido com o "material con-creto" utilizado nas aulas de Matemática, como recurso para a fixação de regras ortográficas ou de conteúdos a serem memorizados, como meio para a elaboração conceituai. Usam-se bingos, jogos de memória, "coelhinho sai da toca" (para dar noções espaciais, como de domínios e fronteiras), etc.

Os professores propõem aos alunos: "Vamos fazer um jogo?". Mas o jogo sugerido pouco tem dos "jogos de verdade" com que as crianças se divertem fora da escola. Nele não há ganhador ou perdedor, pois o objetivo é aprender, e não jogar. Seu propósito não diz respeito à ativi-dade do próprio jogo, e sim a uma necessidade e a uma lógica alheias a ele: a necessidade de sistematização de determinado conhecimento e a lógica do próprio conhecimento.

A culminância das atividades envolvendo jogos está, do ponto de vista pedagógico, no que acontece depois do jogo. Está no registro e na análise do que se fez, dos resultados obtidos, do que se observou duran-te o jogo, etc, e não no jogar em si.

Desfigurado, o jogo oscila entre a "ausência de sentido" e a "busca de sentido". Ou as crianças não se envolvem, reclamam que os jogos propostos são chatos, resistem ao registro e à análise, ou então brincam, mas "sem prestar atenção ao que é importante". Professores e crianças passam a desconfiar (por motivos distintos, naturalmente) da presença do jogo na escola. Para que, então, o jogo na escola? Como lidar com ele?

Ao possibilitarmos o jogo e observarmos as crianças brincando, podemos nos ater a suas respostas (ao que elas fazem), identificando o que elas conhecem (ou não), se desempenham as tarefas e se solucio-nam os problemas. Podemos, também, intervir na sua atividade, no sen-tido de ajustar suas respostas ao que delas esperamos durante o jogo. Os dados observados, incluindo os "efeitos" de nossa intervenção, permi-tem a nós, professores, classificar as crianças segundo seu desempenho, formando o grupo daquelas que conseguem montar o quebra-cabeça e o daquelas que não conseguem, o das que agem prontamente e o das dispersivas.

As respostas das crianças também podem nos servir de indicadores do seu desenvolvimento: estas "já" montam o quebra-cabeça, aquelas "ainda" não, etc. Nesse caso, continuamos classificando as crianças, mas a classificação baseia-se no grau de proximidade ou distancia-mento entre o que a criança faz e o que é esperado dela, de acordo com as etapas do desenvolvimento apontadas pelas teorias da psicologia.

Nos dois modos acima descritos de utilizar o jogo, este serve como instrumento de avaliação e, implicitamente, de seleção: a diversidade que aparece entre as crianças é hierarquizada e analisada como desi-gualdade. Uma teoria psicológica adotada pelo professor pode, então, levá-lo a colocar e sustentar "etiquetas" nas crianças.

É possível, no entanto, fazer do jogo um momento de conhecimen-to e de convivência com as crianças, que nos permite conhecer seus

modos e percursos de apropriação e elaboração do mundo, pois pode-mos voltar nosso olhar não apenas para aquilo que elas fazem, mas para o como elas fazem. Quais são as elaborações das crianças? Em que me-dida respeitam ou transformam o projeto, a estrutura e a tática do jogo

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Que associações de idéias elas fazem no transcorrer da brincadeira9 O

que se mostra significativo para elas? Que elementos se tornam subita-mente personagens, passando a agir por conta própria? Durante a brin-cadeira, o que elas dizem, a quem, quando, como? Como se relacionam com o outro (real ou imaginado)?

Nesse processo o objeto de nossa atenção torna-se outro, bem como nossas perguntas acerca da criança e de nossa prática. Buscamos um novo sentido para o nosso trabalho pedagógico: conhecer a criança para trabalhar com ela, para brincar com ela, para aprender com ela.

Aprender e ensinar a brincar

No parque, crianças de 4 anos brincam na areia. Uma delas se aproxima da professora e oferece o "bolo de chocolate " que havia feito com areia:

— Professora, experimenta. Fui eu que fiz- — Hum! Que delícia! Ah, mas agora me deu sede. Você não

quer fazer um suco para mim? — Tá bom. A criança mistura água com um pouco de areia num copinho

de danone. — Professora, olha o suco. — Do que é? — É de laranja. — Que tipo de laranja? — Laranja-lima. A criança volta efaz outro bolo, só que agora com enfeites de

folha de árvore, e o oferece à professora. — Você só sabe fazer doce? — Não. — Então eu quero um salgado. — Eu vou preparar um salgadinho doce. A criança volta com várias bolinhas de areia nas mãos. — Obal Que salgadinho é esse? — Bolinha de queijo. A professora, fingindo comer o salgadinho, oferece-o a outra

criança: — Quer uma, Mateus? — Eu não!!! — responde Mateus. — Ah! Nós come de mentirinha — diz a primeira criança.

(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira,

aluna do curso de Magistério, 1993.)

A professora, ao aceitar o bolo de chocolate, aceita o convite que a criança lhe faz para brincarem juntas. Quem comanda a brincadeira é a criança, mas a professora, assumindo um papel na brincadeira, enco-raja-a a explorar outras possibilidades e nuances da situação imaginada: "Você não quer fazer um suco para mim?", "Você só sabe fazer doce?".

A atenção ou destaque que a professora vai dando a determinados aspectos da brincadeira constituem a via pela qual ela interfere na ativi-dade da criança, não para ajustá-la à sua própria maneira de considerar o jogo, mas para, explorando com ela outras possibilidades, enriquecê-lo em organicidade e duração.

Pelo fato de a brincadeira não ser uma simples recordação de im-pressões vividas, mas uma reelaboração criativa delas, e por consistir sempre e apenas de materiais colhidos na realidade, o adulto tem nela um importante papel. A vantagem de dispor de uma experiência mais vasta, de um repertório mais amplo de formas para imitar lhe permite ir mais longe com a imaginação. Ao compartilhar sua experiência inventi-va com a criança, a professora "ensina-a" a brincar.

Na dinâmica do jogo, ela pode estimular e organizar as respostas da criança, colocando ao seu alcance novos elementos e possibilidades sígnicas.

Além de ensinar, nessa relação a professora também aprende. Como destaca Rodari, no seu Gramática da fantasia:

[...] aprende-se com a criança a falar com as peças do jogo, a compreender seus nomes e papéis, a transformar um erro em uma invenção, um gesto em uma história [...]; mas também a confiar às peças mensagens secretas (porque são elas que dizem à criança que a queremos bem, que ela pode contar conosco, que nossa força é sua).

(1982:93.)

Nesse terceiro modo de utilizar o jogo que descrevemos, o profes-sor elabora um saber sobre as crianças (sobre as particularidades de cada uma e sobre as regularidades no processo de como elas aprendem e se desenvolvem) e um saber sobre sua prática (sobre as possibilida-des de sua participação nos processos de aprendizagem e desenvolvi-mento de cada uma e de todas as crianças com quem interage).

Nesse saber elaborado no cotidiano do trabalho pedagógico, as teo-rias constituem um referencial importante para ajudar a perceber e com-preender a complexidade, a multiplicidade e as contradições das rela-ções de ensino.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

Elabore um quadro-resumo acerca das diferenças e semelhanças entre as concepções de Vygotsky e Piaget sobre o desenvolvimento da brincadeira da criança.

Trabalho de campo

Observe crianças brincando na escola e anote tudo o que puder, seguindo as mesmas orientações dadas no capítulo anterior. Elabore um relatório de suas observações, discutindo, a partir dos subsídios do tex-to, questões relativas ao lugar do brinquedo na escola.

Exercitando a análise

O filme O Menino Maluquinho focaliza com sensibilidade a infân-cia: os desejos, a família, as angústias, a escola, os amigos, as brincadei-ras, as traquinagens.

Assista ao filme e, depois, organize um debate em classe. Troque com os colegas opiniões e impressões sobre o filme e destaque aspec-tos, cenas, situações que possibilitem refletir sobre a brincadeira infan-til, sua importância e seu desenvolvimento.

Sugestão de leitura

RODARI, G. Jogos no parque. In: _______ . Gramática da fantasia. São

Paulo: Summus, 1982.

Capítulo 12

O desenho infantil

Desenho: presença

constante na pré-escola.

A professora distribui folhas em branco, lápis e giz de cera. Uma agitação

toma conta das crianças. E hora de dese-nhar. Elas falam umas com as outras, contam sobre o que vão desenhar. Uma olha o desenho da outra. Alguém diz que não sabe fazer um gato. Gradativamente as marcas no papel vão aparecendo: ga-ratujas, bonecos, casinhas, animais. Desenhos grandes, que ocupam toda a fo-lha. Desenhos pequenos colocados em um cantinho do papel. Monocromáticos ou multicoloridos.

Atividade intensa e envolvente para as crianças, o desenho na pré-escola tem uma presença constante. É visto como possibilidade de expressão, como incen-tivo à criatividade. Ou ainda como indi-cador do nível de desenvolvimento cognitivo e afetivo das crianças. Tendo em vista a alfabetização, o desenho é também

considerado uma forma agradável de trabalhar a coordenação motora das crianças, sua capacidade de atenção e concentração, seus conhecimentos sobre cores, formas, etc.

Na escola do 1? grau, a escrita, a leitura e os cálculos gradualmente passam a ocupar o espaço do desenho e a determinar seu novo papel. As crianças desenham para ilustrar um texto, para enfeitar seus cadernos, para compor conjuntos numéricos. Desenham ainda nas aulas de Ciên-cias ou Estudos Sociais, copiando dos livros o ciclo da água ou mapas geográficos.

O desenho livre, a exploração das diversas possibilidades ofereci-das pela atividade gráfica, quando ainda se mantém, ganha um espaço

restrito e delimitado: as aulas de Educação Artística. Estas podem ser tanto um espaço para a atividade artística criativa, para o ensino de téc-nicas diferentes, quanto para a reprodução de modelos, por meio da confecção de "trabalhos manuais", em que o trabalho de uma criança seja semelhante aos das outras.

Elemento capaz de proporcionar a livre expressão e a criatividade, o desenho se faz presente na escola como exercício da coordenação motora ou treino de habilidades manuais, como ilustração ou apoio para a compreensão de determinados conteúdos ou, ainda, como recurso para a mera ocupação do tempo quando a programação do dia já foi cumprida.

Entretanto, que concepções sobre o desenho sustentam sua presença na escola? Qual o significado do desenho para a criança? Como ele se desenvolve? E qual o seu papel no desenvolvimento e na aprendizagem da criança? Esses são alguns aspectos que nos parecem fundamentais quando se busca a construção de uma prática pedagógica cientificamente fundamentada. Este capítulo pretende trazer elementos que ajudem a compreensão e a reflexão sobre esses pontos.

Quando o traço no papel recebe um nome

Quando observamos uma criança muito pequena rabiscando ou "desenhando", notamos facilmente que os traços não são nada mais que a fixação no papel de seus movimentos das mãos, dos braços e, às ve-zes, até do corpo todo.

Os primeiros desenhos ou rabiscos infantis podem ser vistos mais como gestos que imprimem marcas em uma superfície do que propria-mente como desenhos.

De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento posterior do desenho não é puramente mecânico nem tem explicação em si mesmo: é preciso que, num dado momento, a criança descubra que os traços feitos por ela podem significar algo.

Rafael, de 3 anos, está desenhando em sua casa. Sentado à mesa, produz com o lápis movimentos mais ou menos circulares, deixando marcas no papel. Num dado momento, olha para a sua produção e exclama, dirigindo-se à sua mãe: "Olha, mãe! Eu fiz um fusca! ".

(Episódio extraído das experiências familiares de uma das au-

toras.)

A criança, ao nomear o seu desenho depois que o fez, relaciona os traços que produziu (que podem ou não assemelhar-se a algo real) a um objeto concreto (no caso, um fusca). E, pelo ato de nomear, seu desenho torna-se significativo.

A fala tem, assim, um papel fundamental na descoberta que a crian-ça faz de que seus rabiscos podem significar algo, segundo Vygotsky. É importante lembrar que, antes que a criança nomeie seu desenho, ele é nomeado pelos adultos que a rodeiam (habitualmente perguntam à criança o que ela desenhou ou dizem coisas como "Olha, você fez um menininho!").

Embora a descoberta de que os traços do desenho podem repre-sentar objetos reais ocorra nos primeiros anos da infância, Vygotsky observa que essa descoberta ainda não eqüivale à da função simbólica do desenho.

A nomeação, feita inicialmente depois de pronto o desenho, passa gradativamente a acompanhar o ato de desenhar. E muito comum observarmos crianças que começam a fazer traços no papel e vão, durante o ato de desenhar, nomeando o que estão fazendo. A decisão quanto ao que desenhar não é tomada antecipadamente, mas no decorrer do próprio desenho elas falam e nomeiam o que estão fazendo.

Depois, a nomeação começa a se dar no início do processo de dese-nhar. A criança diz "Vou desenhar uma flor" ou "Vou fazer uma casa", antes de começar a desenhar.

Essa mudança relativa ao momento da nomeação no desenho de-monstra que os primeiros traçados da criança ainda não representam simbolicamente, em si mesmos, os objetos reais. É apenas pelo ato de nomeação, pela utilização da linguagem falada que os desenhos ga-nham algum significado. Tanto é assim que muitas vezes o significado passa a ser outro no decorrer do ato de desenhar. A criança pode expli-car que está fazendo um gato e, antes mesmo de completar o desenho, dizer "Isto é uma bruxa".

Por isso Vygotsky afirma que a "representação simbólica primária deve ser atribuída à fala" e considera que o próprio desenho torna-se simbólico pela utilização da linguagem oral. O desenho transforma-se efetivamente em representação simbólica quando a nomeação passa a se dar no início do ato de desenhar e a criança torna-se capaz de decidir antecipadamente o que vai desenhar.

Rabiscos, bonecos formados por um círculo do qual saem dois tra-ços, carro de perfil com quatro rodas, casinha com chaminé, árvores e sol com raios. Essas e outras formas tomadas pelo desenho da criança são vistas por Vygotsky em sua estreita relação com a linguagem. Para ele, "o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal" (1984: 127), conforme já observamos

Os primeiros desenhos infantis, reproduzindo somente aspectos es-senciais dos objetos, assemelham-se a conceitos verbais. Ao desenhar, a criança tem a fala como base: ela conta uma história ou o que ela sabe sobre os objetos. Vygotsky diz que a criança não se preocupa com a representação da realidade, com a reprodução daquilo que vê. Ao con-trário, ela tenta, por meio do desenho, identificar, designar, indicar as-pectos determinados dos objetos. Ou seja, a criança não começa dese-nhando o que vê, mas sim o que sabe sobre os objetos.

Fig. 1

Na figura 1, por exemplo, o desenho mostra traços que, antes de representar em detalhes o que a criança quis desenhar (um carro-guincho), indicam aspectos de um carro-guin-cho: duas formas contendo duas rodas cada uma, ligadas por um traço. Na figura 2, pes- Fig. 2 soas são representadas por formas que indicam a cabeça, os braços e as pernas.

Isso implica certo grau de abstração, de generalização, do mesmo modo que a palavra na linguagem verbal. Já vimos, em capítulos anteriores, que o significado de determinada palavra não é um objeto concreto com todas as suas características. O significado da palavracoelho, por exemplo, comporta uma abstração, uma generalização que poderia ser expressa da seguinte forma: "pequeno mamífero leporídeo, selvagem e doméstico" (Dicionário Melhoramentos da língua portuguesa). Esse conceito verbal não faz referência a todas as características de um coelho concreto, determi-nado, como cor, tipo de pêlo, tamanho, formato da cabeça, etc.

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A criança desenha o que sabe e não o q

3J

*ar*U Ha

O desenho da criança é uma espécie de conceito verbal: ele não reproduz

todas as características de um coelho determinado^mas os aspectos mais

relevantes para identificá-lo, como se pode observar nas figuras 3 e 4.

Se a criança desenha o

que sabe, um coelho sem as

quatro patas (figura 3)

significa que a criança não

sabe que um coelho tem

quatro patas? A afirmação de

Vygotsky de que as crianças

desenham o que sabem não

quer dizer que tenham tão

pouco conhecimento quanto

seus desenhos poderiam

fazer supor. Eles mostram,

isso sim, um elevado grau de

generalização, próprio do

conhecimento humano, que,

como vimos, é sempre

elaborado na forma de

conceitos, de significados.

A idéia de que a criança desenha o que sabe, e não o que vê, não é

exclusiva de Vygotsky, tendo sido defendida também por Luquet, um dos

mais conhecidos estudiosos do desenho infantil, que distinguiu quatro estágios

na evolução dessa atividade.

O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet

O primeiro estágio

identificado por Luquet,

o do realismo fortuito,

começa por volta dos 2

anos. A criança descobre

uma semelhança qual

quer entre seu traçado no

papel (feito sem intenção

de representação) e um

objeto. Então, depois que

^LM. .. fez o desenho, ela o no-

s * * meia.

Rafael, aos 3 anos e meio, chamou de "gira-gira" o desenho acima,

depois de marcar sobre o papel o movimento de girar daquele brinquedo

(figura 5).

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ÍS*. ?Ç.«^>"i*1. ... .-

O segundo estágio, do realismo fracassado, caracteriza-se pelas primeiras tentativas da crian-ça de reproduzir algumas formas. Os elementos de seu desenho são muitas vezes justapostos, em vez de coordenados: um chapéu pode ser dese-nhado muito acima da cabeça, por exemplo. É nessa fase que aparecem os primeiros desenhos de figuras humanas, como aqueles em que há apenas a cabeça e as pernas (figura 6).

O terceiro estágio, que começa mais ou me-nos aos 4 anos e pode estender-se até os 10 ou 12 anos, é o do realismo intelectual. Durante esse período, aparecem o plano deitado (figura 7) e a transparência (figura 8). Esses recursos demons-tram que, de fato, a criança desenha o que sabe sobre os objetos, e não o que vê.

Na figura 7, vêem-se inúmeros detalhes no desenho de uma rua, embora as formas do skatista, da moto, dos pedestres e dos prédios (representados deitados) não correspondam ao modo como são vis-tos na realidade. Na figura 8, as roupas do condutor de trem são transparentes, revelando traços do personagem que não poderiam ser vistos em

alguém vestido. Desenhos como o de um feto dentro da barriga da mãe ou o de uma árvore atrás de uma casa, da qual se vê o tronco (e não só a copa), também são exem-plos de transparência.

O quarto e último estágio, próprio da adolescência, é o do realismo visual. Caracteriza-o o aparecimento da perspectiva: a criança (ou o adolescente) passa a representar o que vê a partir de determinada perspectiva. Assim, uma árvore atrás de uma casa tem apenas sua copa desenhada; os

Fig. 8

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^vwnva.

objetos mais distantes são desenhados em tamanho menor. Um rosto de perfil é desenhado com apenas um olho, e um caminhão de lado com apenas duas (ou três) rodas (figura 9).

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€L ^TATÍCKE^

Fig. 9

ano*

A criança é realista na intenção: a perspectiva de

Piaget

Piaget também admite na evolução do desenho infantil os estágios identificados por Luquet. Ele considera que até os 8-9 anos o desenho da criança "é essencialmente realista na intenção, [...] o sujeito começa desenhando o que sabe de um personagem ou de um objeto, muito antes de exprimir graficamente o que nele vê".

Assim como Vygotsky, Piaget considera que o desenho constitui uma espécie de conceitualização, antes de se tornar cópia do real. (E importante não esquecer as diferenças entre as concepções de Piaget e as de Vygotsky sobre a formação de conceitos.) Como elemento da fun-ção simbólica, o desenho representa um esforço de imitação do real, estando submetido ao desenvolvimento do próprio pensamento da criança. Isso quer dizer que, embora realista na intenção, a semelhança entre o desenho da criança e a realidade é determinada pelo nível de conceitualização atingido, em cada estágio, pelo seu pensamento.

Piaget vê, portanto, a evolução do desenho como concomitante ao desenvolvimento do pensamento e, principalmente, à evolução do co-nhecimento sobre o espaço. Isso porque o desenho envolve sempre a representação de relações espaciais. Relações de vizinhança, de envol-vimento ou de limites, de perspectiva ou de profundidade, todas impli-cam uma forma de organizar o espaço gráfico.

Vejamos, por exemplo, a representação da perspectiva, que, con-forme os estágios propostos por Luquet, só aparece no desenho infantil por volta dos 10 ou 12 anos. Se no plano perceptivo ela tem noção de perspectiva muito antes dessa idade, por que demora tanto a representá-la?

De acordo com Piaget, é porque existe uma diferença fundamental entre ver em perspectiva e representar a perspectiva.

Para considerar um objeto de determinado ponto de vista não é necessário estar consciente dele. Em compensação, representar-se ou representar graficamente o mesmo objeto em perspectiva supõe que se tem consciência, simultaneamente, do ponto de vista sob o qual é percebido e das transformações devidas à intervenção desse ponto de vista.

(Meredieu, 1974: 57.)

Assim, embora a criança pequena tenha um conhecimento prático do espaço que a cerca, sabendo se localizar nos cômodos da casa, reali-zar sozinha pequenos trajetos na rua, prever a distância entre dois pon-tos para ir de um a outro, reconhecer a sua casa a partir de diferentes perspectivas e distâncias, ela ainda não é capaz de representar, mental-mente ou graficamente, essas relações espaciais.

No plano das ações práticas e das percepções, ela tem um conheci-mento do espaço que ainda não se traduz em uma compreensão concei-tualizada das relações espaciais. A evolução do desenho seria, então, concomitante ao processo de construção do conhecimento relativo ao espaço. Seus diferentes estágios estariam, de acordo com Piaget, vinculados aos diferentes níveis de estruturação do conhecimento espacial, de compreensão das relações espaciais. É importante lembrar que a estruturação do conhecimento espacial, por sua vez, é simultânea ao desenvolvimento do pensamento.

Tanto Piaget quanto Luquet supõem que, embora durante a maior parte da infância as crianças desenhem o que sabem, e não o que vêem, chega-se ao realismo visual, tido como a etapa final do desen-volvimento do desenho. Eles consideram que as crianças, ao desenhar, são realistas na intenção, ou seja, têm como objetivo a representação realista do real. O fato de, apesar dessa intenção, elas não desenharem aquilo que vêem deve-se ao seu nível de maturidade ou de-senvolvimento cognitivo. Portanto, chegar a desenhar o que se vê seria, para Piaget e Luquet, o resultado natural do processo de desen-volvimento do desenho.

O realismo visual é aprendido: a perspectiva de Vygotsky

Florence de Meredieu, pesquisadora francesa de artes, em seu trabalho sobre o desenho infantil, argumenta que a aprendizagem da perspectiva (necessária ao realismo visual) não pode ser encarada como natural. Ela considera que, "da Renascença até o Impres-sionismo, a pintura esteve reduzida à representação do espaço per-ceptivo, considerado como o único espaço verdadeiro" (1974: 40), chamando a atenção para a concepção de ensino do desenho baseado na observação e imitação do real.

A representação do real pelo desenho passa a ser considerada algo natural, não se reconhecendo seu caráter convencional. A representação do espaço perceptivo é apenas

[...] um dos aspectos de um modo de expressão convencional, baseado em certo estado das técnicas, da ciência, da ordem social do mundo em determinado momento. Cumpre então situar a pers-pectiva de maneira correta, tomando-a pelo que é: uma "simples montagem" estética e não uma categoria do espírito.

(Meredieu, 1974: 41.)

Vygotsky também observa que a capacidade de desenhar o que se vê não é algo que se desenvolve espontaneamente. Ele demonstra, em-pregando dados de outros pesquisadores, que a idade normalmente identificada pelas teorias como aquela em que se chega ao realismo visual coincide com o momento em que os desenhos começam a desa-parecer.

De fato, poucas crianças atingem esse "último estágio" do desen-volvimento do desenho sem terem recebido algum tipo de treino ou instrução especial. A maioria gradativamente abandona a atividade do desenho e, quando desenha, não chega a ultrapassar as formas próprias do estágio que Luquet denominou realismo intelectual. Quantos de nós mesmos dizemos que não sabemos desenhar? E, se nos vimos obriga-dos a fazê-lo, produzimos geralmente algo que se assemelha ao dese-nho de uma criança de 8 ou 9 anos.

Ao que tudo indica, o realismo visual eqüivale, de fato, a um pa-drão estético convencional socialmente valorizado, não tendo sua aprendizagem nada de natural. A partir de determinada idade, a criança já não se contenta com seu desenho, como aponta Vygotsky. Seja por não conseguir corresponder aos padrões socialmente valorizados, seja por já não ser suficiente para atender às necessidades expressivas da criança, o desenho acaba por ser abandonado.

A partir de certo momento, torna-se fundamental a aprendizagem de técnicas, pois é apenas quando a criança ou o adolescente passam a conhecer as diferentes técnicas e os diversos padrões estéticos consti-tuídos culturalmente que sua própria habilidade poderá continuar a se desenvolver, ajudando-a a expressar sua visão de mundo.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1. Organize um quadro-resumo com as etapas de desenvolvimento do desenho discriminadas por Luquet.

2. Reproduza o quadro abaixo e, a partir das informações do texto, complete-o.

Vygotsky Piaget

Semelhanças

Diferenças

"Trabalho de campo

Observe pelo menos duas crianças de idades diferentes (uma de 2 e outra de 5 anos, por exemplo) desenhando, em casa ou na escola. Caso não surja naturalmente uma oportunidade para isso, convide crianças conhecidas (parentes, vizinhos) para desenhar. Se for necessário, provi-dencie o material: folhas de sulfite, lápis ou giz de cera. Peça às crianças que lhe dêem ou emprestem um dos desenhos que elas fizerem para você mostrar a seus colegas na escola ou para guardar.

Durante a observação, preste atenção à fala da criança: o que ela diz, a quem, em que momento da produção de seu desenho. Se possível, faça suas anotações na própria situação de observação, ou logo em seguida.

Elabore um pequeno relatório, analisando, a partir dos subsídios do texto, o papel da fala na elaboração do desenho. Tente também classifi-car os desenhos que coletou, segundo os estágios propostos por Luquet. Justifique sua classificação e, caso tenha encontrado dificuldades, co-mente-as.

Exercitando a análise

1. Convide o professor de Educação Artística da escola para fazer uma breve apresentação (se possível, ilustrada com reproduções de obras famosas) da evolução histórica da pintura, com o objetivo de discutir a questão do realismo nas representações gráficas. Faça anotações durante a exposição do professor. Depois, com base nas anotações e na releitura do capítulo, elabore um texto analisando o realismo no desenho infantil.

2. Faça um desenho. Cada qual deve fazer pelo menos um e, depois, vocês devem organizar uma exposição de seus próprios desenhos. Analisem a exposição: Em que os desenhos que vocês produziram são diferentes dos

das crianças? Em que são parecidos? A partir dessa análise, discutam as abordagens apresentadas no texto sobre a evolução do desenho. Todos os adultos atingem a última etapa identificada por Luquet e Piaget? Por quê?

Sugestão de leituras

DERDYCK, E. Formas de pensar o desenho; o desenvolvimento do gra-

fismo infantil. São Paulo: Scipione. (Coleção Magistério).

MEREDIEU, F. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 1974.

Capítulo 13

Desenhando na escola

Numa sala de pré-escola, as crianças estão desenhando. Ivo pede a Toni

que lhe faça um desenho. Toni concorda, mas continua desenhando.

Ivo: Toni, você faiz um minininho desse pra mim, faiz? (Toni

concorda com a cabeça, e continua desenhando). Que que é isso, Toni?

Toni: Ué, maçã, aqui laranja e aqui é a banana (vai apontando).

Ivo: Nunca vi laranja assim, ó (mostra na folha de Toni).

Toni: ...Vai dando um giz, vai dando um cor de abacate (Ivo havia

pegado todos os lápis).

Ivo: Num tem cor de abacate.

Toni: O cor de abacate (tira o verde do monte que está com Ivo).

Toni desenha uma árvore com frutas. Ivo:

Toni, como que faiz árvore? Toni: Faz

árvore? Qué que eu faço? Ivo: Quero.

Toni: Cê qué amarrão ou azul? Ivo:

Quero... Toni: Cor de laranja ?

Ivo: Quero cor de aba... ó, é, é assim, assim, assim (mostra no

desenho de Toni).

Toni: Qué com fruta ?

Ivo: Quero com maçã, com... com...

Toni: Com laranja.

Ivo: E com...

Toni: Uva.

Ivo: Com uva!

Toni: Maçã. E com banana, não é?

Ivo: Cadê a banana?

Toni: A banana é aqui (aponta), e aqui é abacate. Abacate é mais gostosa com açúcar. Ivo: Eu quero abacate.

Ivo: Pode pinta colorido?

Toni: Pode! Ivo: Cor de abacate ? (Ivo pinta e Toni olha, debruçado sobre

a mesa). Toni: Cor de abacate também. Faz as fruta também. Num es-

quece, tá bom?

Ivo: Eu num sei fazê fruta. Toni: Fruta? Então deixa que eu faço.

(Episódio apresentado na dissertação de mestrado de Silvia Maria

Cintra da Silva, As condições sociais de produção do desenho,

Unicamp, 1993. Os comentários que faremos a seguir são de nossa

responsabilidade, embora inspirados nas belas análises feitas pela

autora no decorrer de sua dissertação.)

Toni aparece aqui como aquele que sabe, que serve de modelo, que ensina e que faz para o outro. Nem por isso Ivo deixa de fazer uma observação crítica sobre o seu desenho ("Que que é isso?", "Nunca vi laranja assim"). O fato de dizer "Nunca vi laranja assim" demonstra que Ivo espera que o desenho se pareça com aquilo que ele vê na realidade. E talvez seja por isso que ele pede a Toni que lhe desenhe um menini-nho. Toni "sabe desenhar", seus desenhos se parecem com o que se vê. Ivo provavelmente ainda não consegue fazer o mesmo.

Depois de observar o desenho de Toni, Ivo não quer mais que este lhe faça um menininho. Quer saber e aprender como se faz uma árvore. Toni se propõe fazer por ele e para ele. Ivo aceita e começam, então, a negociar as cores e os detalhes do desenho.

Ivo pinta sua árvore. Ainda aqui pede a ajuda de Toni: "Pode pinta colorido?", "Cor de abacate?". A expressão cor de abacate, que no iní-cio fora utilizada por Toni sem que Ivo identificasse a que cor se referia ("Num tem cor de abacate"), é agora também utilizada por este.

Toni assume realmente o papel daquele que sabe e que ensina. Diz a Ivo que faça as frutas e propõe-se desenhá-las quando este diz que não sabe.

Se tivéssemos em mãos o desenho de Ivo, o que veríamos? Uma árvore com frutas coloridas, pela qual poderíamos tentar avaliar sua capacidade de desenhar. Qual o tema de seu desenho? A forma aproxi-ma-se da realidade? As cores que utilizou estão "adequadas"?

A partir das respostas a essas perguntas, faríamos uma avaliação ou uma apreciação do trabalho de Ivo e de sua capacidade de desenhar. A avaliação provavelmente não corresponderia à realidade. Se comparás-semos o seu desenho com o de Toni, poderíamos concluir que Ivo fez uma cópia ou, então, que Toni é realmente o autor do desenho. Nesse caso, não haveria nada a dizer sobre a capacidade de desenhar de Ivo, sobre sua escolha de tema e a forma de seu desenho.

Analisando o processo de elaboração do desenho ■

Mas, quando observamos o processo de elaboração do desenho vi-vido por Ivo e Toni, o que apreendemos sobre eles, sobre como dese-nham e sobre como seu desenho vai sendo produzido?

Nesse processo, uma criança serve de modelo para a outra, tem seus desenhos valorizados, já que "sabe fazer". Essa criança auxilia, explica, ensina, ajuda a decidir e faz pela outra, a que pede ajuda e explicações, a que aparentemente "não sabe", mas que critica e opina. Durante a elaboração do desenho, há um partilhar de saberes, de infor-mações e de experiências ("Nunca vi laranja assim", "Ó cor de abacate", "Abacate é mais gostosa com açúcar"). Há também negocia-ção envolvendo formas, cores, o que e como desenhar.

O desenho é

sempre resultado

das interações

sociais somadas ao

auxílio que o

indivíduo recebe e

aos materiais e

técnicas a que ele

tem acesso.

Quando observamos o processo de elaboração do desenho pelas crianças, colocamos em questão a pretensa natureza individual dessa forma de atividade. A participação do outro nesse processo é clara: um adulto ou outra criança auxilia, fornece pistas ou instruções, opina, cri-tica, elogia, incentiva ou faz junto.

Também nos modelos à disposição da criança, está presente a parti-cipação do outro. O desenho da professora, de um colega ou do irmão, as gravuras dos livros, das revistas, das propagandas, etc, sugerem os temas, as formas, as cores, evidenciam o que é socialmente valorizado como belo, correto, bem-feito, indicam o que é saber e não saber desenhar.

Portanto, o processo de aprender a desenhar implica a interação da criança com outros membros de seu grupo cultural e com modelos so-cialmente disponíveis. O desenho evolui à medida que a criança se apropria das formas culturalmente constituídas de atividade gráfica.

O desenhar não é, assim, uma , atividade necessariamente solitária e individual. Não é apenas o grau de maturidade ou o nível de de-senvolvimento do pensamento que se manifestam nos desenhos da criança. O que e como ela desenha emerge das interações sociais em que ela está inserida. Depende do auxílio, das pistas e instruções que recebe; da partilha de informações, opiniões, preferências; da sua relação com os modelos, os materiais e as técnicas a que tem acesso.

E a criatividade, onde fica?

Será possível criar algo novo sem recorrer às nossas experiências anteriores? Vygotsky afirma que a possibilidade de criação do homem está apoiada em sua faculdade de combinar o antigo com o novo a partir de elementos da sua própria experiência. A atividade criadora encontra-se em relação direta não só com a riqueza e a variedade de nossas experiências individuais, mas também com as experiências socialmente produzidas pela humanidade. Cada grande invento, des-coberta ou obra de arte produzidos pelo homem tem como base para seu surgimento a enorme experiência acumulada social e cultural-mente.

Vygotsky nos dá o seguinte exemplo da relação entre criação e meio social:

15*

Suponhamos que nas ilhas Samoa nascesse uma criança dota-da das qualidades e do gênio de um Mozart. Que poderia fazer? No máximo, ampliar a gama de três ou quatro tons para sete e compor algumas melodias um pouco mais complicadas, mas seria tão incapaz de compor sinfonias como Arquimedes de construir um dínamo elétrico.

(Vygotsky. lmaginacion y ei arte en Ia infância.

México: Hispânicas, 1987.)

Toda obra criadora parte sempre de níveis alcançados anteriormen-te (seja na arte, seja na ciência), e nenhuma descoberta ou obra original

aparece antes que estejam socialmente criadas as condições materiais e psicológicas para seu surgimento.

Assim, antes de ser um potencial de certos indivíduos, a criativi-dade é algo que emerge de práticas sociais próprias de determinadas épocas históricas e de determinados grupos culturais.

Logo, o desenvolvimento da criatividade depende das experiên-cias, dos interesses e necessidades da criança, mas também de conheci-mentos técnicos, das tradições e dos modelos de criação a que ela tem acesso. O desenvolvimento do desenho criativo envolve a apropriação pela criança da experiência cultural. Quanto mais ricas essas experiên-cias, quanto mais variados os modelos a que tiver acesso, quanto mais incentivos, auxílios, técnicas e materiais lhe forem proporcionados, maior será a sua capacidade criativa.

Desenhando e aprendendo

Numa sala de pré-escola, a professora aproxima-se para ver os desenhos das crianças: Esse aqui é a menina, é? Esse que é a meni-na? Que que é, as pernas da menina?

Eva: É. P: Cê fez uma perna vermelha e outra verde? Que mais cê fez

aí? E a cabecinha dela ? Faz a cabeça pra ela. Lu: E a boca?

P; Não, pra mim isso é o corpo... Faz o chão pra ela não ficar voando.

Eva: Onde tá o chão ?

P: Onde é as pernas dela ? Mostra pra mim. Eva: Aqui (mostra no desenho). P: Então, então faz o chão pra ela não ficar voando. Eva desenha um traço, o chão, sob as pernas da menina. P: Isso, muito bem! Então aqui é aperninha dela? {indica com

o dedo). Eva: É. P: Aqui é os braços, a perna, agora faz a cabecinha dela. [...]

P: Isso, Eva. Agora o olhinho, pra ela não ficar sem olho... Eva risca em outro lugar da folha. P: Aí não é o olho não, né? O que que é aí?

Eva: Aí é a cabeça! P: Aí que é a cabeça? Então faz! Lu: A oreia, cadê a oreia ?

Gil: Cadê a oreia?

P: Faltou a boca, ó (Eva desenha a boca). E o nariz? (ele faz). Gil: E a oreia? isso que é oreia, faiz otra oreia aqui, ó (aponta

com o lápis no desenho de Eva).

Lu: É mesmo. Fica igual a um coelho! Cadê os cabelo? P: O cabelo, ela esqueceu? Cê esqueceu do cabelo, Eva? Eva: Aí, o nariz.

(Episódio apresentado na dissertação de mestrado de Silvia M. C. da

Silva, As condições sociais de produção do desenho, Unicamp, 1993.)

Desenhar na escola é desenhar com os outros e para os outros. Crianças e professora participam da construção do desenho de Eva. Su-gerem, apontam, indicam, comentam. O desenho de Eva vai se com-pondo, se transformando. E Eva vai "aprendendo" a desenhar, vai des-cobrindo o que é esperado de seu desenho, quais os padrões socialmente valorizados como corretos, necessários e bonitos.

Esses padrões, no episódio descrito acima, aparecem na interven-ção da professora, revelando suas concepções sobre o desenho infantil: "Cê fez uma perna vermelha e uma verde?", "Faz o chão pra ela não ficar voando", "E a cabecinha dela?".

A professora espera que o desenho da criança reproduza o mais fielmente possível a realidade e atua tendo em vista esse resultado. Uma menininha precisa ter pernas, braços, cabeça, olhos, cabelo, etc, suas pernas não podem ser uma vermelha e outra verde. O espaço do papel precisa ser delimitado, a criança precisa aprender a se orientar nele: fazer o chão é necessário.

Há uma partilha de experiências sobre a atividade do desenho que envolve o que a criança já sabe fazer e os conhecimentos e as concep-ções da professora e de outras crianças. É nesse jogo que o desenho vai emergindo, trazendo em si as marcas da participação do outro.

A criança não desenha sozinha. Seu desenho não é desvinculado do momento e do espaço em que é produzido. Ao contrário, constitui-se sempre a partir de modelos e da participação do outro.

Numa sala de pré-escola, a professora trabalha com as crian-ças em um estudo de artes durante vários dias. Ela apresenta às crianças produções gráficas típicas de diferentes países, como mo-tivos chineses, russos, indianos, egípcios. Apresenta, ainda, repro-duções de obras de artistas como Van Gogh, Goya e Picasso, além de outras representativas da pintura renascentista e abstrata. As crianças podem ver, conversar, perguntar... A professora informa, explica, direciona a atenção das crianças para determinadas ca-racterísticas dessas produções. Novos horizontes são abertos: am-plia-se o conhecimento que já se tem, possibilidades interessantes são descobertas. As crianças desenham e em seus desenhos explo-ram as novas descobertas. Reproduções de motivos egípcios, in-dianos, russos e chineses aparecem com grande riqueza de deta-lhes; obras famosas também são reproduzidas pelas tintas, pelos lápis, pelas mãos, pelas cores, como você pode verificar na página ao lado.

(Situação reconstituída a partir do relato de experiência da professora

Cristina Ruíino Jales, da EMEI Agostinho Pátaro, Barão Geraldo, Cam-

pinas, que gentilmente compartilhou conosco o material dela resultante.)

i

Que modelos estão sendo oferecidos às crianças na escola? Que padrões de de-senho estão sendo valorizados? Como se dá a participação do professor e das crian-ças nessa atividade? Que materiais "estão sendo utilizados pela criança?

A escola e o desenho

Para as questões formuladas acima, não há uma única resposta. Os inúmeros modos de lidar com o desenho infantil na escola re-fletem as diversas concepções que funda-mentam o trabalho pedagógico cotidiano.

Não' oferecer modelos, não intervir, deixar que a criança desenhe sozinha. Direcionar a produção da criança, valori-zando um único modelo e procurando ensiná-la a "desenhar corretamente". Dis-tribuir folhas mimeografadas para colorir ou cobrir o pontilhado, determinando as cores que devem ser utilizadas. Essas são algumas práticas relativas ao desenho pre-sentes no cotidiano escolar.

Quando a escola incentiva a criança a desenhar livremente, a construir sozinha seu próprio trabalho, com o objetivo de possibilitar o desenvolvimento livre do de-senho, da criatividade e da expressão, ain-da assim os modelos e o outro estão pre-sentes. Afinal, não há outros desenhos na sala de aula? Não há gravuras, livros de histórias, desenhos da professora e de ou-tras crianças pelo ambiente? As crianças não comentam, opinam, avaliam os dese-nhos umas das outras?

Para poder criar e se expressar, por meio do desenho, a criança se apropria das experiências do seu ambiente, servindo-se de modelos e do auxílio de outras pessoas. A experiência que ela tem é que lhe propor-ciona os meios para se expressar de modo criativo.

A preocupação com a correspondência do desenho à realidade re-vela não só a valorização de determinado padrão estético, mas também o empenho da escola em desenvolver na criança habilidades de obser-vação, concentração, discriminação visual, orientação espacial e coor-denação motora. Também as folhas mimeografadas são utilizadas com essa finalidade, considerada requisito para a aquisição da escrita.

Quando observamos uma criança desenhando, desde as suas pri-meiras gafatujas até as composições mais definidas, desde suas primei-ras experiências de marcar o papel com os próprios movimentos até produções com formas bem determinadas, descobrimos uma grande evolução de suas capacidades de concentração, orientação espacial, coordenação motora, etc.

Nesse mesmo processo, o caráter simbólico do desenho também vai se constituindo, com base na linguagem. O simbolismo é a dimen-são fundamental do desenho e se vincula mais estreitamente à elabora-ção da escrita e ao desenvolvimento da conceituação. A escrita, sendo também essencialmente uma atividade simbólica, apresenta uma es-treita ligação com outras formas de simbolização, como o desenho e a brincadeira.

A relação de continuidade que há na pré-escola entre o desenho e a escrita, na escola fundamental transforma-se em substituição do dese-nho pela escrita. O espaço para o desenho diminui e não há preocupação em trabalhá-lo. A criança desenha do jeito que sabe e aquilo que já sabe. As possibilidades de transformação, de evolução da atividade do dese-nho, via de regra, são mínimas. Deixadas a si próprias, gradativãmente as crianças vão parando de desenhar.

Como criar em sala de aula, no 1? grau, condições e situações que possibilitem a utilização e o desenvolvimento do desenho?

"O lápis é o melhor dos olhos..."

A afirmativa acima, que aparece em O segredo da observação, de Ramacharaca, nos levou a descobrir, professora e crianças, o desenho como um modo de guiar e instrumentalizar nossa observação.

Era o ano letivo de 1986, e estávamos em uma 3 f série do 1° grau, de uma escola municipal, na periferia de Campinas.

Ao lado das salas de aula da escola havia muitas árvores e arbustos que abrigavam um grande número de insetos. Freqüen-temente, marimbondos, abelhas e percevejos de plantas (conheci-dos pelas crianças como marias-fedidas) entravam na classe, pro-duzindo alvoroço: os dois primeiros por causa da picada e os últi-mos por causa do mau-cheiro que desprendiam quando tocados.

Resolvida a problematizar com as crianças esse tipo de reação,

propus a elas uma questão: Por que a maria-fedida fede? Essa questão

foi o disparador para nosso estudo sobre insetos, que durou um semestre

inteiro.

Onde buscar a resposta ?

Antes de consultar os livros, decidimos fazer um trabalho de campo,

coletando insetos para observação. Puçás improvisados, vidros de boca larga de vários tamanhos

(alguns com álcool), éter para anestesiar os insetos, pinças, lançamo-nos

ao trabalho, anotando o nome de todos os animais encontrados, além do

que faziam no momento da coleta, e tratando de conseguir pelo menos

um exemplar para identificação posterior.

Sacudimos as árvores e os arbustos, observamos folhas e flores,

reviramos pedras e galhos caídos, improvisamos uma armadilha com

uma lata perfurada contendo pedaços de frutas...

Em sala, começamos a estudar os exemplares coletados, atentando

para suas características gerais, número de patas, número de asas,

antenas, configuração do corpo, cor, formato, características como

dureza, transparência, existência de pêlos, etc. Procurando explicitar e tematizar a atividade intelectual que

desenvolvíamos, propus à classe a leitura e o estudo do texto O segredo

da observação. Nele, o personagem central, contando como descobrira o

segredo da observação, dizia, destacando a importância do desenho: "o

lápis é o melhor dos olhos... ". A partir daí, o lápis passou a guiar nossa

observação.

'Todos queriam desenhar. Cada criança escolheu um exemplar e

trabalhando individualmente procurava representá-lo na folha de sulfite.

Alguns ampliavam o inseto, explorando todo o espaço do papel, outros

faziam reproduções diminutas.

As dificuldades emergiam, e com elas as frustrações: como marcar

no papel a variedade de formas observadas, as simetrias, as proporções?

"Oh, meu! Olha o tamanho dessa antena!" "Ich! Tá torto! "

"Desse tamainho não dá nem pra saber que bicho é..."

Sentindo-se incapazes de representar pelo desenho algo que fosse o

mais parecido possível com o "real", algumas crianças queriam desistir.

A própria classe discutiu quanto a qual seria o papel do desenho:

"Esse desenho é pra gente saber mais sobre o inseto ".

Propusemos, então, o trabalho em conjunto, que favoreceu a

comparação entre os insetos e a atenção aos detalhes particulares de

cada tipo, a troca de técnicas, de modos de desenhar, entre os mais e os

menos habilidosos, a troca de informações ("presta atenção, aqui do

lado do corpo tem umfurinho "), enfim, a busca conjunta de um desenho

mais apurado e um grande conjunto de questões. "O que é esse fiozinho enrolado que tem na borboleta?"

"Por que alguns insetos têm um tubinho que parece um alfinete e

outros não?"

"Por que esse tem a antena lisa e a desse outro parece feita de um

monte de pedacinhos emendados?"

Detalhes que haviam escapado num primeiro momento foram sendo

identificados...

O sentimento de incapacidade de desenhar foi sendo substituído por

comentários como "Eu aprendi com o Marcelo a fazer o gafanhoto". A

admiração diante das habilidades reveladas pelos colegas foi sendo

explicitada: "Nossa, a senhora viu como o Douglas é bom de desenho?

Olha que bonito que ficou o desenho dele!". A descoberta das próprias

habilidades e interesses foi sendo percebida: "Eu por mim ficava o dia

inteiro olhando e desenhando esses bichos. Você viu como a perninha

desse aqui é formada por um monte de bolinha? Olha! Parece até um

colarzinho... Por que será que é assim?".

Depois, os desenhos feitos pelas crianças foram confrontados com

desenhos e esquemas apresentados nos livros, evidenciando o muito que

eles haviam apreendido em suas observações (e que alegria: "Viu só?

Bem que eu te mostrei...!") e o que haviam deixado escapar. E, então,

voltar a desenhar complementando os detalhes era um novo prazer. Ede

novo aprender, pois agora já sabiam o que estavam desenhando, o

porquê das configurações de cada parte do inseto observado e seu

funcionamento no todo daquele organismo.

(Relato de experiência de uma das

autoras.)

Como instrumento de

trabalho e de conhecimento

em sala de aula, o desenho

revelou às crianças uma

competência em geral anulada

pelo saber acadêmico,

incentivando-as a aprender

pela observação.

Fazendo-se útil ao processo de

conhecimento, o desenho na escola fundamental

possibilita a valorização da linguagem gráfica e das

habilidades a ela relacionadas, criando espaços

para o seu próprio desen-

volvimento e condições de

interação e de realização

pessoal.

■r' ■--...

:

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

1. Elabore um resumo das informações do texto, enfocando: a) o papel do outro e dos modelos no desenho da criança; b) a criatividade no desenho infantil.

Trabalho de campo

1. Observe crianças desenhando na escola, de preferência quando reu nidas em pequenos grupos. Lembre-se de contextualizar a sua obser vação, anotando em que condições ocorre a atividade de desenhar (se por solicitação da professora, verifique o que foi solicitado e como foi dada a orientação; se por iniciativa das crianças, repare na manei ra como surgiu a iniciativa), o modo como as crianças se organizam para realizá-la, os materiais de que dispõem, etc. Preste atenção a tudo o que as crianças fazem enquanto desenham, como procedem, como utilizam o material, o que elas e o professor falam e a quem se dirigem, as interferências do professor (nos dese-nhos ou no relacionamento entre elas). Anote rapidamente tudo o que puder. Em seguida, organize o seu registro para torná-lo compreensí-vel a otitras pessoas. Faça um relatório sucinto, analisando a situação observada a partir do que foi tratado neste capítulo: destaque aspectos da interação en-tre as crianças que parecem influenciar a elaboração do desenho; aponte indícios de utilização de modelos pela criança (lembre-se de que esses modelos podem não estar explicitamente presentes); analise o modo de proceder do professor, procurando identificar em que concepções sobre o desenho infantil ele ancora sua prática. Comente todos os aspectos da situação que achar relevante para a compreen-são do processo de elaboração do desenho pelas crianças.

2. Em pequenos grupos, entrevistem professores da Ia. à 4

a. série, inves

tigando como, em que situações e com que finalidade as crianças desenham em sala de aula. Com o auxílio de seu professor, elaborem um roteiro para as entrevistas. Lembrem-se de buscar informações sobre como as próprias crianças se relacionam com a atividade de desenhar (se a apreciam ou não, quais os tipos de desenhos que fa zem, etc). Organizem os dados coletados, agrupando as respostas semelhantes, mas citando também as menos freqüentes, e apresentem-nos para o restante da classe. Discutam, com base neste capítulo e nos dados das entrevistas, a situação do desenho no 1? grau.

Exercitando a análise

Quando falamos em literatura infantil, habitualmente nos referi-mos a textos (à sua qualidade, à beleza da história, etc.)- Raramente prestamos atenção às ilustrações, às técnicas, aos traços, ao colorido que as compõem. Quase sempre as vemos como simples apoio visual do texto e quase nunca as apreciamos por si mesmas.

A seguir apresentamos uma relação de livros que, depois de lidos, deverão ter suas ilustrações observadas com atenção. Note quanta va-riedade na sua produção gráfica: cores fortes, preto-e-branco, riqueza de detalhes, simplicidade de traços, humor, etc.

Depois, reflita sobre os modelos de desenho habitualmente valori-zados na escola e as características que se espera encontrar no desenho infantil. Discuta com seus colegas.

• Bichos, bicho. Texto de Ciça e ilustrações de Ziraldo. São Paulo: FTD.

• A pipa. Texto de Cristina Porto e ilustrações de Tenê. São Paulo: FTD.

• O joelho Juvenal; Flicts; Meu amigo, o canguru. Textos e ilustra-ções de Ziraldo. São Paulo: Melhoramentos.

• Se as coisas fossem mães. Texto de Silvia Orthof e ilustrações de Ana Raquel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

• Comboio, saudades, caracóis. Texto de Fernando Pessoa e dese-nhos de Cláudia Scatamacchia. São Paulo: FTD.

• Era uma vez duas avós. Texto de Nauim Aizen e ilustrações de Patrícia Gwinner. Rio de Janeiro: EBAL.

• A bruxinha; Cabra-cega; Esconde-esconde. Textos e ilustrações de Eva Furnari. São Paulo: Ática.

• Ida e volta. Juarez Machado. Rio de Janeiro: Agir.

• Mundo criado, trabalho dobrado. Texto de Elias José e ilustração de Graça Lima. São Paulo: Atual.

• O dia em que um super-herói visitou minha casa. Texto de Sônia

Junqueira e ilustrações de Helena Alexandrino. São Paulo: Atual.

Sugestão de leituras

DWORECKI, S. Criança: evitando a perda da capacidade de figurar. O jogo e a construção do conhecimento na pré-escola. São Paulo: FDE, 1991. (Idéias, 10).

MOREIRA, A. A. A. O espaço do desenho: a educação do educador. São Paulo: Loyola, 1984.

SILVA, M. S. C. AS condições sociais de produção do desenho. Disserta-ção de Mestrado, Unicamp, Campinas, 1993.

Unidade 4

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Ia escrita na

anca

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Introdução

utdoors, prateleiras de supermercado, rótulos, bancas de revistas, jornais, letreiros, livros, placas de trânsito, cartas, cartões, convites, folhetos informativos, lista telefônica, receitas, preces... A escrita,

com diferentes caracteres e funções, espalha-se pela cidade, permeando nosso dia-a-dia. Dela lançamos mão, até sem perceber, para realizar satisfatoriamente grande parte das atividades do cotidiano.

Em meio a essa multiplicidade de formas, cores, tamanhos e fun-ções, as crianças, aos poucos e incidentalmente, vão prestando atenção à escrita. Imitam-na, procuram entendê-la. Brincam de escrever e de ler, escrevem e lêem de verdade.

Na escola, recebem informações sobre seu funcionamento, exerci-tam-na ao fazer traços na lousa, ao realizar tarefas (muitas vezes sem sentido para elas), ditados, "redações". Utilizam-na nos bilhetinhos para os colegas, nas marcas que deixam nas carteiras e paredes, nos cadernos de recordação, nas tabelas dos campeonatos...

Como a criança se transforma num indivíduo "letrado"? Essa é uma questão importante para o nosso trabalho como educa-

dores, e a psicologia pode nos ajudar a refletir sobre ela, lançando luz sobre aspectos dos processos de elaboração da criança que muitas vezes passam despercebidos.

No capítulo 14, problematizamos as relações entre a alfabetização e o desenvolvimento da escrita na criança.

No capítulo 15, focalizamos as relações da criança com a escrita. Nos capítulos 16 e 17, o desenvolvimento da escrita na criança é

focalizado a partir dos estudos de Emilia Ferreiro (fundamentados em Pi aget) e de Vygotsky e Luria.

No capítulo 17, voltamos às práticas de alfabetização, para analisá-las e discuti-las à luz das contribuições desses autores.

Capítulo 14

A escrita e a alfabetização

Vivemos num mundo orientado pela escrita. Anúncios, rótulos, propagandas, cartas, jornais, revistas, livros, documentos de identifi-cação, placas de informação e de indicação estão o tempo todo pre-sentes no nosso cotidiano. As crianças, desde muito cedo, convivem intensivamente com a linguagem escrita. Como percebem e que sentido fazem daquilo que os adultos chamam de escrita? O que é a escrita para elas?

Raramente essas questões são objeto de nossa atenção, porque estamos acostumados a ver e tratar as relações da criança com a escrita como alfabetização.

Apesar de admitirmos, relativamente à linguagem oral, que a criança se desenvolve em situações de comunicação e interação com os outros, no que diz respeito à escrita nos comportamos de modo muito diferente.

O ingresso na V. série do 1? grau é um rito de pas-sagem em nossa sociedade. Consideramos ler e escrever atividades que se aprendem na escola e tratamos as primeiras tentativas de escrita de nossas crianças como meras gara-tujas ou como cópias inadequadas de algo escrito. Vemos essas tentativas como relevantes apenas sob um aspecto: o de, por meio delas, as crianças aprenderem a manejar o lápis e a utilizar o espaço do papel, desenvolvendo habilidades motoras que lhes serão úteis para aprender a escrever.

O que é a escrita

para a criança ?

169

Por que isso acontece? Para entendermos o nosso próprio modo de nos relacionarmos com a

escrita em nossa tão letrada sociedade, precisamos, ainda que brevemente, refletir sobre o que é a escrita e sobre a história de sua escolarização.

Escrita e poder

A linguagem escrita, como a linguagem falada, é um sistema sim-bólico criado pelo homem. No fluxo da comunicação verbal, grupos humanos passaram a utilizar linhas, pontos e outros sinais para repre-sentar, registrar, recordar e transmitir informações, conceitos, rela-ções, produzindo assim a escrita.

Vários tipos de escrita (pictográfica, ideográfica, etc.) foram pro-duzidos ao longo da história. Hoje, a escrita dominante é a alfabética.

A escrita alfabética é uma forma de representar a palavra falada com base nos seus aspectos sonoros e nas possibilidades de uso das letras do alfabeto. Por exemplo, para escrever a palavra gato, na nossa língua, usamos quatro letras que correspondem às quatro unidades mí-nimas de som que compõem essa palavra no seu registro oral. As letras g, a, t, o são grafismos (marcas) que representam aspectos sonoros da palavra falada.

As letras grafadas no papel representam, mediante uma convenção socialmente estabelecida, os sons da palavra falada (seu significante, sua imagem sonora), e esta, por sua vez, designa os objetos, as ações e os fatos da realidade. Nesse sentido, podemos dizer que a linguagem escrita é mais complexa do que a linguagem falada, uma vez que a representa.

Para que a escrita seja dominada, essa complexidade requer a aprendizagem sistematizada e o treinamento específico de algumas ha-bilidades e convenções, tais como: o conhecimento do conjunto de le-tras disponíveis para o registro dos sons da linguagem falada, suas rela-ções com esses sons e as regras de combinação entre elas, o traçado que as constitui, sua direcionalidade, e outros tantos detalhes.

No processo de divisão social do trabalho, o acesso a essa aprendi-zagem foi sendo controlado por algumas classes sociais, transformando a escrita em privilégio, em índice de poder e recurso de dominação.

Embora desde a Renascença (século XV) a universalização da aprendizagem da escrita e da leitura fosse uma reivindicação das clas-ses excluídas do acesso à cultura letrada, somente com a criação dos sistemas nacionais de ensino dos Estados modernos (século XIX) foi que se concretizou a idéia de escola como a instituição encarregada de iniciar as crianças no mundo da escrita e, com ela, criou-se o modelo de alfabetização que conhecemos hoje.

Entre nós, brasileiros, o lema "Escolarizar para alfabetizar " é mais recente ainda. Tendo sido uma bandeira do pensamento republicano,

consolidou-se a partir da última década de 30, quando a alfabetização passou a ser claramente definida e defendida como um conhecimento a ser possibilitado pela escola.

Ao passar para a esfera de responsabilidade da escola pública mantida pelo Estado, o acesso ao domínio das convenções e comple-xidades dessa forma de linguagem foi ampliado, representando um grande avanço em direção à meta de universalização da alfabetização.

No entanto, a ação da escola fixou-se de tal forma no treinamento das habilidades específicas relativas à escrita e ao traçado de letras que acabou relegando sua utilização como linguagem a um segundo plano.

& hata héiVMia. )

Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 5.

Alfabetização e desenvolvimento da escrita Hl

Já na década de 20, Vygotsky criticava a não priorização da escrita como linguagem. Para ele, o ensino da habilidade da escrita por si mes-ma corresponde ao domínio da habilidade técnica de tocar piano, em que o aluno desenvolve a destreza dos dedos e a leitura simultânea da partitura, sem se envolver na essência da própria música.

Embora ele considerasse necessário o ensino da escrita, sua crítica dirigia-se ao modelo de ensino então adotado e que é, ainda hoje, domi-nante na prática escolar.

Nesse modelo, a escrita é considerada principalmente como um código que permite representar graficamente a linguagem falada. Para dominar esse código, as crianças necessitam treinar duas técnicas bási-cas: a codificação, que é a transformação dos sons da língua falada em sinais gráficos, e a decodificação, que é a possibilidade de reconstituir a palavra falada a partir dos sinais gráficos registrados.

Essas técnicas enfatizam os aspectos perceptivos (auditivos e vi-suais) e as habilidades motoras envolvidas no ato de ler e escrever, cuja aprendizagem é feita de modo progressivo, hierarquizado e cumulativo. As crianças precisam dominar passo a passo o traçado correto das le-tras, as correspondências entre os sons e as grafias, a discriminação de

(CL toda. e a hovJpo. ^~-n / _ ---------------------- —

sons e grafias semelhantes para chegar ao registro e à leitura de pala-vras, frases e textos.

Durante o processo de alfabetização, as crianças desenham letras, copiam ou formam palavras com elas, escrevem palavras ditadas pela professora, completam-nas, dominam a mecânica de decodificar o que está escrito, independentemente do significado que as palavras escritas ou lidas tenham para elas.

Esse modo de considerar o ensino da escrita leva a que todos os es-forços se concentrem no treinamento de habilidades que possibilitarão à criança sua utilização futura. Ou seja, só depois de terem dominado essas habilidades é que elas poderão utilizar a escrita para registrar suas expe-riências e pensamentos, para se comunicar com outras pessoas... Até então, elas escrevem para treinar a escrita e lêem para treinar a leitura. Suas tentativas de "dizer por escrito" o que querem e o que pensam são controladas. "E melhor que o aluno escreva uma linha certa do que uma folha cheia de erros", dizem alguns professores alfabetizadores.

A escrita, privada de sentido e do seu funcionamento social, é con-vertida em fim último da aprendizagem escolar. E esta, em vez de ser vista como parte imprescindível de um processo amplo, passou a ser considerada o único e possível caminho de apropriação e de elaboração da linguagem escrita.

A crítica a essa forma de ensino da escrita vem sendo feita desde o início do século por psicólogos, pedagogos, lingüistas. Entre esses traba-lhos críticos vamos destacar o de Vygotsky e Luria (1920) e o de Emilia Ferreiro e seus colaboradores (1980), baseados nos pressupostos da teo-ria piagetiana de desenvolvimento.

Quem foi Luria?

Alexander Romanovich Luria (1902-1977) foi colaborador de Vygotsky. Na década de 20, realizou experimentos relativos ao estudo do desenvolvimento da escrita e dos conceitos matemáticos na criança. Pondo em questão o modo como a psicologia da época abordava esses temas, conduziu extenso trabalho de campo sobre o funcionamento psicológico de moradores de vilarejos e áreas rurais de uma região remota da Ásia central. Seu objetivo era estudar como os processos psicológicos superiores são construídos em diferentes contextos culturais. Dedicou-se mais intensamente ao estudo das funções psicológicas relacionadas ao sistema nervoso central, tornando-se conhecido como um dos

mais importantes neuropsicólogos do mundo.

Esses estudos procuraram descrever como se origina e como se

desenvolve a escrita na criança. Por meio deles tornou-se possível conhecer:

• o que as crianças pensam sobre a escrita e como se relacionam com

ela, antes e durante a alfabetização;

• os processos envolvidos nas relações da criança com a escrita, que têm

inicio muito antes da alfabetização, acompanham-na e prolongam-se

para além dela, segundo a relevância da escrita no contexto social em

que vivem seus usuários;

• as especificidades da alfabetização, vista como um processo que, en-

volvendo sistematização de regras, mecanismos e funções da escrita,

acontece na relação de ensino do contexto escolar.

A seguir, vamos apresentar e comparar essas duas contribuições.

Primeiramente focalizaremos o modo como esses estudos explicam as

relações da criança com a escrita. A seguir abordaremos como eles

descrevem e analisam a escrita produzida pela criança. E finalmente

discutiremos as implicações dessas teorias para as práticas escolares de

alfabetização.

Quem é Emilia Ferreiro?

Emilia Ferreiro, psicóloga argentina, é doutora

pela Universidade de Genebra, onde foi orientando e

colaboradora de Jean Piaget. Suas pesquisas sobre

alfabetização foram realizadas principalmente na

Argentina e no México, onde é professora titular do

Centro de Investigação e Estudos Avançados do

Instituto Politécnico Nacional. Deslocando do "como se

ensina" para o "como se aprende" o foco da

investigação relativa à aprendizagem da escrita,

descreveu, no final da década de 70, a psicogênese da

língua escrita. Suas conclusões têm possibilitado aos

educadores o redimensionamento da compreensão

acerca das relações da criança com a escrita.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

No texto foram utilizados dois conceitos distintos para definir as relações da criança com a escrita: alfabetização e desenvolvimento da escrita na criança.

Com base nos dados do texto, compare os dois conceitos. Lembre-se de que comparar é apontar semelhanças e diferenças entre os elementos considerados.

Pesquisa bibliográfica

De tal maneira nos acostumamos às coisas que fazem parte do nos-so cotidiano, que as consideramos naturais. Parece que elas sempre existiram e sempre com as mesmas características. A escrita é um des-ses elementos.

Vivendo num mundo povoado por representações escritas, fica di-fícil imaginar como surgiram e como evoluíram ao longo da história humana as formas de registro que utilizamos hoje.

Vamos fazer um pequeno estudo sobre a história da escrita. Um roteiro básico pode ser o seguinte:

a) Identificar as condições históricas que possibilitaram o aparecimento da escrita e quais foram suas finalidades sociais.

b) Resumir as etapas da evolução histórica da escrita, caracterizando suas diversas configurações, até chegar à escrita alfabética.

c) Procurar informações sobre o funcionamento do sistema de escrita alfabético, tendo em vista caracterizar o princípio fundamental que o rege.

Para isso consulte outros livros didáticos ou livros especializados, como os que são indicados neste capítulo nas sugestões para leitura e pesquisa.

Você pode também recorrer a vídeos (neste capítulo sugerimos um) e a seus professores de História, História da Educação, Português e Metodologia da Alfabetização.

Exercitando a análise

Leia o livro O menino que aprendeu a ver, de Ruth Rocha (Editora Melhoramentos). Nele a autora focaliza as relações da personagem João com a escrita. 1 y^ Ao analisar o texto, observe se o livro fala da relação de alfabetiza-

ção, do desenvolvimento da escrita na criança ou dos dois temas.

Sugestão de leituras

BARBOSA, José Juvêncio. A história da escrita. In: ___________ Alfabetiza- ção e leitura. São Paulo: Cortez, 1990.

CAGLIARI, L. C. O mundo da escrita. In: __________ . Alfabetização & lin güística. São Paulo: Scipione, 1989.

GOMES JR., G. S. Escrita. Cadernos CEVEC, n? 4. São Paulo: Centro de Estudos Educacionais Vera Cruz, 1988.

Filme recomendado

• Escrita, direção de Fernando Passos, 1988. Distribuído pela Fundação

para o Desenvolvimento da Educação (FDE), São Paulo.

Capítulo 15

As relações da criança com

a escrita

Quando prestamos atenção aos comentários que as crianças fazem sobre a escrita ou às suas tentativas de utilizá-la, percebemos que elas não são indiferentes a essa forma de linguagem. Elas procuram imitá-la, interpretá-la, entendê-la.

Olívia, de 3 anos, conversando com a mãe, diz: — Na escola eu faço desenho, eu escrevo... — Ah, é?! Como é que você escreve? — É assim, ó. E enquanto traça rabiscos em ziguezague no papel, ela vai

nomeando: — Papai, mamãe, Olívia.

(Relato feito pela mãe da criança às autoras durante um curso para

professores.)

Escrever, para Olívia, é diferente de desenhar. Ao demonstrar para a mãe o que é escrever, ela nomeia cada um dos rabiscos feitos no papel.

O ato de escrever, em casos assim, é relacionado pela criança à tarefa de anotar palavras. Neste momento, trata-se apenas de um esboço de apreensão da função representativa. Esta só será apreendida, de fato, um pouco mais tarde.

Os ziguezagues traçados por Olívia, em linhas mais ou menos retas, constituem a forma de grafismo utilizada pela maioria das crianças de sua idade quando se pede a elas que escrevam. Esse dado foi observado e analisado nos estudos de Luria e Emilia Ferreiro, como um indicador da apreensão de algumas das características formais da escrita pela criança. Observando os adultos quando escrevem, a criança percebe que a escrita apresenta configurações (tais como o formato, a distribuição no papel, etc.) que a distingue de outras formas de representação gráfica. Ela imita, então, o formato externo da escrita do adulto.

As características gráficas da escrita também orientam as "tentati-vas de leitura" das crianças.

Rafael, de 3 anos, olhando para a tampa da lata de Nescau, onde estava escrita em relevo a palavra Nestlé, diz para o irmão de 9 anos:

— Olha, Beto! E, passando o dedinho sobre as letras, vai pronunciando

pau-sadamente: — Neeeeessscaaauuu!

(Episódio envolvendo os filhos de uma das autoras.)

Não são quaisquer traços que podem ser lidos. O formato dos tra-ços em relevo na tampa da lata e o lugar onde foram impressos não são arbitrários. Eles significam alguma coisa. Na interpretação de Rafael, eles nomeiam.

Rafael, imitando o modo de ler de uma criança mais velha, compar-tilha a possibilidade de leitura com o irmão, que muitas vezes lê para ele. Na imitação, ele reproduz a relação entre o texto escrito e a fala.

Nas duas situações observamos que a escrita, além de estar presente no cotidiano das crianças, é compartilhada com elas por adultos e crianças mais velhas: a mãe possibilita a Olívia explicitar o que pensa e sabe sobre a escrita; o irmão, que lê, serve de modelo para Rafael.

Esses episódios cotidianos mostram processos não escolares de elaboração da escrita em que a criança formula uma compreensão incidental^e inicial dessa forma de linguagem.

Como as crianças chegam a essas elaborações iniciais da escrita? A gênese da escrita na criança é vista de modos diferentes por

Emilia Ferreiro e Vygotsky.

A criança constrói a escrita

Emilia Ferreiro e seus colaboradores consideram que a escrita, como toda representação, baseia-se em uma construção mental que cria suas próprias regras.

"Escrever não é transformar o que se ouve em formas gráficas, as-sim como ler não eqüivale a produzir com a boca o que o olho reconhe-ce visualmente", destaca Emilia Ferreiro (1985: 55). O sistema de escri-ta tem uma estrutura lógica, e compreendê-la não é uma tarefa simples. Há várias relações e detalhes que a criança precisa apreender.

No caso do sistema alfabético, por exemplo, a criança deve com-preender, entre outras coisas, que existe uma relação entre a letra escrita (grafema) e o som pronunciado (fonema); que não há nenhuma relação entre a forma da palavra escrita e as características físicas do elemento da realidade nomeado por ela; que palavras com o mesmo significado não são escritas da mesma forma; que elementos essenciais da orali-dade, como a entonação, não são registrados na escrita, etc.

Esse conjunto de relações não é simplesmente aprendido pela criança, mas construído ("reinventado") por ela.

Nas relações que mantém com a escrita no ambiente em que vive, a criança elabora e testa hipóteses acerca da lógica de seu funcionamento. Ela assimila a escrita interpretando-a de acordo com os conhecimentos e modos de pensar que já desenvolveu e organizou no decorrer de sua experiência de vida, produzindo "escritas" e "leituras" não compatíveis com a escrita convencional.

Tal qual Olívia no episódio relatado anteriormente, ela começa di-ferenciando a escrita do desenho.

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A criança pode utilizar letras convencionais cujo traçado conhece, para representar a escrita, sem estabelecer nenhuma diferenciação entre as palavras, como na ilustração a seguir.

A

A

S £

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A S £

^ s £

s & A SE

Fonte: Reflexões sobre alfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 22.

Em seguida, preocupa-se com a disposição das letras conhecidas ou com o número de letras utilizadas, tentando marcar diferenças entre as palavras que deseja (ou é solicitada a) registrar.

Fonte: Reflexões sobre alfabeüzaçao — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 23.

Conforme desenvolve a capacidade de prestar atenção às caracte rísticas sonoras da palavra falada, a criança começa a estabelecer rela ções entre as partes da palavra escrita e a quantidade de partes que reco nhece na palavra falada. Ela passa, então, a representar cada sílaba com uma letra. *

i Kh

OA

k

h

S fclAimJ

Fonte: Reflexões sobre alfabeüzaçao — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 26.

As informações fornecidas por adul-tos leitores (inclusive a professora na es-cola) a respeito de especificidades da es-crita não são mecanicamente acrescenta-das às elaborações da criança.

Ela vai passando de uma forma de escrita para outra, à medida que vai se dando conta, por si mesma, das contra-dições entre sua interpretação da escrita e a escrita convencional. Nesse proces-so, ela reelabora gradativamente suas hipóteses, por meio de acomodações su-cessivas, até chegar à lógica da escrita alfabética.

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Fonte: Reflexões sobre alfabetização —

Emilia Ferreiro. Cortez, p. 29.

O conjunto dessas formas de escrita que nos parecem "erradas" do ponto de vista convencional são, segundo Emilia Ferreiro, "erros cons-trutivos": é passando por essas hipóteses que a criança vai construindo (reinventando) a lógica do sistema alfabético. Nesse sentido, os erros revelam o raciocínio da criança sobre o que é escrever e as etapas pelas quais ela vai passando no processo de construção da escrita.

Nos estudos realizados por Emilia Ferreiro e seus colaboradores com crianças de diversos meios sociais em diferentes países (Argentina, México, Espanha, Brasil), as formas de escrita mostradas nas ilustra-ções acima apareceram de modo sistemático, regular e na mesma pro-gressão. O que diferia de uma criança para outra era o tempo de duração de cada etapa e o tempo de passagem de uma etapa para outra. As regu-laridades observadas comprovavam, segundo ela, que o desenvolvimento da escrita envolve uma série de concepções e de relações cuja elaboração não pode ser atribuída à influência do meio, nem à aprendizagem, mas, sim, ao desenvolvimento cognitivo da criança.

Isso acontece, explica Emilia Ferreiro, porque a criança "é um su-jeito que pensa. Um sujeito que assimila para compreender, que deve criar a fim de assimilar, que transforma o que vai conhecendo, que constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do conhecimento dos outros" (1987: 103; o destaque é nosso).

A criança integra-se às práticas sociais de escrita

Já para Vygotsky e Luria, a escrita é mais do que um sistema de for-mas lingüísticas organizado segundo uma lógica com a qual o sujeito se confronta, esforçando-se por compreendê-lo. Ela é uma forma de lingua-gem, uma prática social própria de membros de uma sociedade letrada.

A escrita nos confere o título de cidadãos. É por meio do registro legal, nosso primeiro documento, que somos inscritos no rol de habitantes do país, temos nossa nacionalidade definida.

A escrita nos faz ser classificados como alfabetizados ou analfabetos, e arcar com as vantagens e desvantagens de pertencer a um ou a outro desses grupos.

Como sistema de signos (conjunto organizado de marcas externas que

nos permitem representar ou expressar objetos, eventos e situações da reali-

dade), a escrita age sobre nossos processos psicológicos, transformando-os. Sua utilização, por exemplo, transforma nossa memória. Ao fazermos

uma lista de compras por escrito, ao anotarmos um endereço ou os

ingredientes e o modo de preparo de uma receita, não só liberamos nossos

neurônios da necessidade de reter mecanicamente algumas informações, como

também aumentamos enormemente a quantidade de informações que podemos

armazenar. A escrita nos permite esquecer informações que, tendo sido

registradas, podem ser recuperadas. Ela também transforma nossa atenção, nossos modos de buscar in-

formações. Pense, por exemplo, nos usos de placas informativas. Por não ser nem natural (ela é produção cultural) nem arbitrária (escrever

não é marcar quaisquer traços sobre qualquer superfície), a elaboração da

escrita não começa dentro de cada um de nós. Apro-priamo-nos dos

conhecimentos das gerações que nos precederam para construirmos o nosso

conhecimento. Nesse sentido, a elaboração da escrita pela criança tem início

nas suas relações sociais (cotidianas e escolarizadas), contando sempre com a

participação do outro. Nas sociedades letradas, como a nossa, a escrita vai sendo

gra-dativaménte apontada e destacada para a criança pelos adultos leitores.

Aline, de 3 anos, pega um pedaço de papel e pede à avó:

— Vó, faz Aline...

A avó escreve no papel: ALINE. A criança não aceita e volta a pedir.

— Faz Aline, vovó.

A avó, na tentativa de entender e atender ao pedido da neta,

desenha uma menininha, e Aline mostra-se satisfeita.

Alguns dias depois, a criança faz de novo o mesmo pedido à avó. A

avó pega lápis e papel e desenha a menininha. A criança retruca:

— Assim não, vovó. A outra...

E, pegando o lápis, faz risquinhos no papel, enquanto diz:

— Assim, Aline, Aline pequenininha.

E, enquanto traça rabiscos maiores, vai dizendo:

— Aline grande...

(Episódio relatado por uma professora durante curso ministrado

pelas autoras.)

É na interação com a avó que Aline, ao tomar contato simultaneamente

com duas formas de simbolização — o desenho e a escrita —,

descobre a possibilidade de usar marcas para representar. A avó, ao es-crever o nome da menina no papel, não determina os significados do desenho e da escrita, mas desencadeia essa elaboração em Aline.

As crianças mais velhas também participam da progressiva inte-gração da criança à comunicação escrita. Elas compartilham com as mais novas suas relações com a escrita, lendo, desenhando e escreven-do para elas, ensinando-lhes os nomes das letras e a escreverem o pró-prio nome, brincando de escolinha, etc.

A elaboração ativa dos conteúdos e formas de organização da escrita depende, fundamentalmente, das possibilidades que as crianças têm (ou não) de utilizar e compartilhar a escrita em suas interações.

Num país como o nosso, a grande maioria das crianças tem contato incidental com a escrita, por meio de rótulos de produtos, de placas e propagandas na rua, quando vai aos supermercados, vendo TV... Elas convivem com a escrita.

Nas grandes cidades, com o aumento de freqüência à pré-escola, a utilização de papéis, lápis, tintas e o contato com a escrita têm se intensificado e sido submetidos a um modo de organização mais sistemático. Essas crianças, assim, além de conviver com a escrita, a utilizam e or-ganizam algumas de suas convenções no espaço das relações escolares. Apenas um número reduzido de crianças brasileiras tem, na vida em família, como Aline, oportunidade de conviver com leitores, papel,

lápis, livros de história, jornais, revistas. Em algumas dessas famílias, os pais lêem histórias para as crianças, escrevem palavras com elas e para elas. Nesse caso, essas crianças vão além da situação de convivência com a escrita, passando a utilizá-la. Assim, mesmo sem dominar autônoma e convencionalmente a escrita, elas começam a elaborar e a compreender, desde muito muito cedo, seus princípios de organização e sua natureza.

Nas relações que mantêm com a es-crita, as crianças apropriam-se de técnicas para sua utilização e de algumas de suas

convenções básicas — o nome de algumas letras, o modo de traçá-las, a direcionalidade, etc. E apreendem também suas funções sociais — para que, para quem, por que, e onde, e como se escreve.

lerta da leitura: momento de prazer.

Elas brincam de escrever, como Rafael, que aos 3 anos e meio i trega para a mãe um papel cheio de letras traçadas por ele, dizendo:

— Toma, mãe. Isso é uma carta pra você. — Ah! Que bom, Rafa! Lê a carta pra mim! — Não! Você é que lê! Eu escrevi a carta pra você!

(Episódio envolvendo uma das autoras e seu filho.)

Nesse episódio, a criança, que aprendeu a traçar algumas das letras do seu nome com o irmão e os primos, utiliza esse conhecimento para produzir alguma coisa "para ser lida", ou seja, algo que reúne determinadas características daquilo que seus parceiros sociais mais experientes tomam como objeto de leitura. Ela produz (essa é a inten-ção revelada por ela diante do produto pronto) uma carta, produto cultural típico de uma sociedade letrada. A elaboração da função social da escrita, mais do que de sua lógica interna, é o que se destaca nessa atitude da criança.

Pela mediação do outro é que a lógica da escrita começa também a ser elaborada. As crianças pedem a adultos (ou a crianças mais velhas) que escrevam ou leiam para elas. Tentam escrever e ler, imitando o que observam e fazendo suposições a respeito das características e das re-gras de funcionamento da escrita, e procuram verificar, entre aqueles que são leitores, a adequação de suas suposições.

As crianças do pré exploram as letras de plástico, tentando compor palavras. Uma das meninas, após justapor uma série de consoantes, chama a professora e pede a ela que leia o que es-creveu.

Ruth, a professora, vai emitindo sons correspondentes às le-tras justapostas.

A criança desmancha a combinação de letras e volta a fazer uma nova justaposição de consoantes. Novamente ela pede à pro-fessora que leia o que escreveu e a professora repete o tipo de lei-tura que fez antes.

A criança então pergunta: — Ruth, por que será que eu só consigo escrever em inglês?

(Depoimento da professora Ruth Jofily Dias, professora da EMEI

Meia Lua, do município de Paulínia, SP, a quem agradecemos a

autorização para a utilização desse episódio.)

Enquanto para Emilia Ferreiro o papel do adulto (inclusive o pro-fessor) deve ser o de possibilitar o desenvolvimento da escrita, criando condições estimuladoras e conflitos cognitivos (situações em que a crian-ça percebe contradições entre suas hipóteses e os princípios da escrita convencional) para que ela descubra por si mesma as chaves secretas do sistema alfabético (1985: 60), Vygotsky considera fundamental a participação do outro no processo em que a escrita vai se tornando parte da criança, destacando e diferenciando o papel do professor.

Vygotsky considera que o ingresso na escola representa para as crianças um novo tipo de relação com a escrita, que, além de ser inten-sificada, passa a ser sistematizada.

Nessa instituição, todas as crianças são colocadas diante da tarefa de interpretar convencionalmente a escrita. O papel do professor é dife-rente daquele desempenhado pelos adultos que com elas convivem dia-riamente. Na família, o adulto intervém ocasionalmente e, em geral, quando solicitado. Na escola, a ação do alfabetizador é intencional e explícita: ele proporciona à criança um contato sistemático com a escri-ta padronizada, que, entrecruzando-se com suas elaborações iniciais, acaba por substituí-las.

Também diferentemente de Emilia Ferreiro, Vygotsky não conside-ra que as relações da criança com a escrita sejam estritamente cog-nitivas. A escrita não é apenas objeto de conhecimento. Ela constitui o conhecimento, sendo uma forma cultural de ação no mundo.

A palavra materializada sobre o papel não é um fim em si mesma. Ela cria relações entre os indivíduos: "A criança aprende a ouvir, a en-tender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escri-ta. Mas esse aprender significa fazer, usar, praticar, conhecer. Enquanto escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre a escrita" (Smolka,1988: 63).

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

Reproduza e preencha o quadro abaixo, sintetizando as concepções de desenvolvimento e aprendizagem da escrita adotadas pela psi-cogênese (Emilia Ferreiro) e pela abordagem histórico-cultural (Vy-gotsky e Luria).

Psicogênese Abordagem histórico-cultural

Concepção de escrita

A relação da criança com a escrita

O papel do adulto e do meio

Refletindo sobre as informações do texto

No-íexto apresentamos as seguintes afirmações: "A criança constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do

conhecimento do outros" (E. Ferreiro). "Nós nos apropriamos dos conhecimentos das gerações que nos

precederam, para construirmos o nosso próprio conhecimento" (Vygotsky).

Explique e compare a duas afirmações, buscando no texto os argu-mentos que as sustentam.

Exercitando a análise

A partir das leituras e discussões sugeridas até aqui, analise a si-tuação seguinte:

No ônibus havia um anúncio de chapéu, com um chapéu mas-culino desenhado em destaque. Abaixo, a marca do chapéu, PRADA, escrita em maiúsculas e o endereço da firma. O avô, encontrando um amigo, diz-lhe entusiasmado que estava justa-mente ensinando seu neto a ler e que ele aprendia com grande facilidade. Apontando para o anúncio, objeto de treino desde o início da viagem, o avô pede ao garotinho que leia o mesmo. O garoto prontamente:

185

— PE - ERRE -A-DE-A. — Muito bem, diz o avô, e o que está escrito? — PE-ERRE-A-DE-A.

— Sim, muito bem. E isso é o quê? Leia lá.

— Chapéu.

(Episódio registrado por Nunes, T. no texto 'Leitura e escrita: pro-

cessos e desenvolvimento', In: Alencar, E. iorg.). Novas-contribui-

ções da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. São

Paulo: Cortez. 1992.)

TYabalho de campo

Vamos observar crianças de 2 a 7 anos, que ainda não estejam sen-do alfabetizadas, e descrever o modo como se relacionam cotidiana-mente com a escrita. Para isso, vamos nos dividir em dois grupos.

• Cada um dos alunos do primeiro grupo deverá observar uma crian-ça e descrever suas eventuais tentativas de uso do registro escrito, para que ela o utiliza, e como ela se relaciona com a escrita presen-te no seu espaço doméstico.

• Cada um dos alunos do segundo grupo deverá observar uma crian-ça não alfabetizada e descrever a relação que ela mantém com o material escrito existente na pré-escola e a utilização que ela faz de registros gráficos nesse contexto (para que e como).

Para um melhor aproveitamento desse trabalho de campo, sugeri-mos que cada criança seja observada mais de uma vez e que sejam ob-servadas crianças de idades diferentes, dentro da faixa de idade in-dicada.

O seguinte roteiro poderá ser útil à observação e ao registro:

• Registre a idade da criança, o dia, o local, a hora e quanto tempo durou a observação.

• Descreva a situação em que você observou a criança (onde ela estava, o que fazia, quem a acompanhava, etc).

• Que tipo de material escrito chama a atenção da criança ou está sendo explorado por ela? O que ela faz e o que diz em relação ao material escrito? Que finalidade atribui a ele?

• Com quem ela compartilha sua exploração ou comentários? Como o faz? Como o outro participa dessa situação? O que diz? O que faz?

• Se a criança estiver numa situação de produção de escrita, descre-va também o que ela está fazendo. Que material está utilizando para isso? Que tipo de marcas produz? Em que condições as pro-duz? Que significado ou função atribui a elas (está escrevendo o que, para que, para quem) Como e com quem compartilha a ativi-dade? Como o outro participa da atividade? O que faz, o que diz?

Peça à criança o material produzido. Se ela não quiser dá-lo, respei-te sua decisão.

Se você dispuser de câmara de vídeo ou de gravador, poderá utilizá-los na coleta dos dados. Mas não se esqueça de que o material gravado também deve ser transcrito.

Organizando os dados analisados

• Cada grupo deve apresentar e confrontar os dados observados, le-vantar os pontos em comum nos relatos e organizar uma síntese das observações feitas, para apresentar ao outro grupo. Convém registrar também curiosidades, perguntas e dúvidas suscitadas pe-la observação.

• Reunidos os dois grupos, vamos comentar e comparar os resulta-dos das observações e das análises de cada um, buscando identifi-car os pontos comuns e não comuns entre os dados coletados.

• As indagações que ficaram sem resposta devem ser afixadas na sala, e os registros escritos deverão ser arquivados para utilização nos próximos trabalhos.

Leitura e discussão

Vamos ler o texto de Maria Lúcia Castanheira, Da escrita no coti-diano à escrita escolar, publicado na revista Leitura: Teoria e Prática, n? 20, de dezembro de 1992 (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, p. 34-45).

Após a leitura individual, cada aluno deverá fazer um breve co-mentário escrito sobre o texto. Nesse comentário deverá destacar três pontos que considerou relevantes para sua reflexão sobre o modo como a criança se relaciona com a escrita, comentar cada um deles e justificar a escolha feita.

Sugestão de leituras

FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1993. SMOLKÀ, A. L. B. A linguagem como gesto, como jogo, como palavra. Leitura: Teoria e Prática, Porto Alegre, Mercado Aberto, n? 5.

Filme recomendado

• A glória de meu pai, direção de Yves Robert, 1990. •

Capítulo 16

O estudo experimental

da construção da escrita

pela criança

Como vimos no capítulo anterior, os estudos de Emilia Ferreiro e de Vygotsky analisam de maneira diferente a relação das crianças com a escrita.

Enquanto Emilia Ferreiro e seus colaboradores consideram a escrita um objeto de conhecimento (isto é, como um alvo da atividade inte-lectual), que vai sendo construído de modo evolutivo pela criança, Vygotsky a concebe como um produto cultural, uma prática social à qual a criança vai se integrando, nas suas relações sociais.

Em suas análises Emilia Ferreiro procura demonstrar o papel ativo do sujeito no processo de elaboração individual da escrita. A criança, em suas relações com a escrita, vai, ativa e espontaneamente, elaboran-do e testando hipóteses a respeito de como se escrevem as palavras. Sendo essas hipóteses de natureza cognitiva, elas dependem do desen-volvimento da inteligência da criança. As discrepâncias que a criança percebe entre suas hipóteses e a escrita convencional leva-a a reelaborar hipóteses e, pouco a pouco, apreender a natureza e a lógica desse siste-ma simbólico.

Para Vygotsky, o processo é inverso. A criança apropria-se gra-dativamente do sistema de escrita e de suas funções sociais por meio da observação da escrita em funcionamento, das tentativas de utilizá-la que faz, pela imitação do outro, e da busca de informações sobre seus elementos e sobre seu funcionamento. O processo, destaca ele, acontece entre sujeitos e em cada sujeito.

Essas diferenças aparecem nas maneiras como Emilia Ferreiro e Vygotsky conduziram seus estudos experimentais.

Emilia Ferreiro e seus colaboradores procuraram caracterizar e descrever tanto a seqüência das hipóteses elaboradas pelas crianças a respeito da natureza e dos princípios organizadores da escrita como

também os fatores envolvidos na passagem de uma hipótese para outra. Em seus estudos, privilegiaram produções espontâneas, isto é, aquelas em que a criança escreve tal como acredita que poderia oii deveria escrever certo

conjunto de palavras, sem a ajuda ou a orientação de outra pessoa.

Vygotsky e Luria, por sua vez, procuraram demonstrar a relação entre a

escrita e as atividades simbólicas no desenvolvimento da criança e recriar

experimentalmente o processo de simbolização na escrita, em situações

compartilhadas entre o experimentador e a criança.

Neste e no próximo capítulo, abordaremos de maneira mais detalhada os

procedimentos de pesquisa adotados por Emilia Ferreiro e Vygotsky.

A metodologia da pesquisa

Para estudar a construção da escrita pela criança, Emilia Ferreiro utilizou

o método clínico ou de exploração crítica desenvolvido por Piaget (do qual

tratamos nos capítulos iniciais deste livro). Foram submetidas à pesquisa

crianças de distintas classes sociais, de 4 a 6 anos, que ainda não conheciam os

princípios da escrita convencional.

Nesses experimentos, interessava:

• identificar os critérios em que as crianças se baseiam para aceitar ou

rejeitar algo que se considera adequado para ler;

• identificar os meios de que as crianças se utilizam para representar o

que querem e como diferenciam suas representações.

Foram propostas às crianças duas situações de leitura.

Numa delas, o experimentador oferecia às crianças um conjunto de

cartões contendo números isolados, conjuntos de números, conjunto de

números e de letras, letras isoladas, conjuntos de várias letras iguais, conjuntos

formados por letras diferentes, palavras escritas em letra cursiva, script ou

letra de imprensa. Ele pedia que separassem os cartões em dois grupos — o

dos que podiam e o dos que não podiam ser lidos — e explicassem, depois da

separação feita, os critérios de seleção utilizados.

Na outra situação de leitura, o experimentador apresentava pranchas com

figuras acompanhadas de texto e pedia às crianças que lessem o que estava

escrito e explicassem como tinham chegado àquela leitura.

Quanto às situações de escrita, o experimentador solicitava às crianças

que escrevessem palavras e frases ditadas por ele e, em seguida, lessem sua

produção, apontando a que marcas correspondia a leitura feita.

Alguns critérios foram adotados para a seleção das palavras e frases ditadas: elas deveriam fazer parte do repertório de palavras normalmente conhecidas pelas crianças, apresentar uma relação se-mântica entre si (isto é, fazer parte de um mesmo tema, como alimen-tos, animais, brinquedos, etc.) e não constar de manuais de alfabetiza-ção (para evitar a reprodução de palavras memorizadas).

Assim, eram ditadas às crianças seqüências como: gato, borboleta, cavalo, peixe, o gato bebe leite; lápis, lousa, giz, apontador, a professora pega seu lápis, etc.

Por meio desses experimentos, Emilia Ferreiro e seus colaborado-res identificaram três grandes etapas no processo de construção da es-crita pelas crianças, ordenadas nesta seqüência:

• distinção entre o desenho (modo de representação icônico) e a escrita (representação não icônica);

• diferenciação quantitativa e qualitativa dentro da escrita produzida (intrafigural) e entre as escritas produzidas (interfigurais);

• afonetização da escrita (caracterizada pela atenção às relações exis-tentes entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto gráfico do registro).

Vamos entender essas etapas.

As fases do processo de construção da escrita pela criança

A construção das primeiras formas de diferenciação: o

período pré-silábico

A distinção básica entre desenhar (modo de representação ligado às características físicas e às formas dos objetos) e escrever vai sendo construída pela criança, tanto nas situações de escrita quanto nas situa-ções de leitura.

Para escrever o que lhe é pedido, a criança utiliza marcas dife-rentes das que produz ao desenhar. Ela traça linhas onduladas ou em ziguezague, linhas interrompidas, bolinhas ou mesmo letras conven-cionais, horizontal ou verticalmente. Essas marcas não têm relação com o registro sonoro da palavra e não se diferenciam entre si. Somente a própria criança consegue interpretá-las e o faz de modo instável.

A situação a seguir, relatada por Emilia Ferreiro, é característica dessa fase.

ia)

< (O

^|M

f Ml w +

O que você desenhou?

Um boneco. Ponha o nome. (Rabisco.) (a) O

que você pôs? Ale (=

seu irmão). Desenhe

uma casinha.

(Desenha.) O que é

isso? Uma casinha.

Ponha o nome. (Rabisco.) (b) O que você pôs? Casinha. Você sabe colocar o seu nome? (Quatro rabiscos separados.) (c) O que é isso? Adriana. Onde diz Adriana? (Assinala globalmente.)

— Por que tem quatro pedacinhos?

— .... porque sim.

— O que diz aqui? (1?).

— Adriana.

— E aqui? (2o). — Alberto (= seu pai).

— E aqui? (3o).

— Ale (= seu irmão).

— E aqui? (4?).

— Tia Picha.

Fonte: Reflexões sobre alfabetizaçãt) — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 21.

Nas situações de leitura, as crianças interpretam um desenho que lhes é apresentado, mas afirmam que ele não pode ser lido. Para que se possa ler, elas dizem ser necessário haver outros tipos de marcas, que definem genericamente como letras ou números. Isso acontece porque, de imediato, elas não vêem as letras e os números como objetos substi-tutos, isto é, como objetos que representam outros objetos. As letras e os números são, para elas, objetos do mundo externo que se definem por oposição ao desenho e, como qualquer objeto, têm um nome: letras, números. Assim, ao apontarmos um texto, perguntando o que está escrito ou dito ali, é comum que muitas crianças respondam "letras", no-meando aquilo que para elas é um objeto em si.

Posteriormente, as letras passam a dizer algo diferente delas mes-mas. Elas passam a representar o nome das coisas.

Assim, colocando bolinhas e tracinhos junto ao desenho de um leão, uma criança de 4 anos diz ter escrito algo. Quando o pesquisador pergunta se aquela escrita pode ser lida, ela diz que sim e faz a seguinte leitura: "diz o nome desse leão" (Ferreiro, 1986: 113). O nome, analisa Emilia Ferreiro, é o escrito, e não a interpretação do escrito; portanto, o que está escrito pode ser diferente do que é lido. Isso se evidencia nas situações de leitura, nas quais a criança interpreta o texto escrito como se fosse o nome da figura desenhada.

Nessa fase a escrita constitui um sistema independente, mas rela-cionado ao desenho. Embora as crianças distingam texto de desenho, elas consideram que não se pode ler um texto sem imagens, porque, nesse caso, faltam elementos para poder interpretar as letras, e, ao es-crever, procuram associar escrita e desenho.

Como a escrita é o nome de algo ou de alguém, a criança procura registrar, nas marcas que traça sobre o papel, propriedades que os porta-dores desses nomes têm.

Uma criança de 4 anos registrou do seguinte modo as palavras ele-fante e passarinho.

passarinho: \j^} KjLi \j

ft nj

$nr fo u</Qs

Fonte: O construüvismo: de Piaget a Ferreiro

-Azenha. Ática, p. 64. - Maria da Graça

Ao escrever elefante, ela disse para a experimentadora: "tem que ser bem grande" (Azenha, 1994: 64-5).

Uma vez feita a distinção básica entre desenho e escrita, as crianças começam a interpretar as propriedades formais da escrita. Comparando as letras que compõem as palavras, elas estabelecem primeiramente cri-térios de diferenciação da escrita com base na quantidade mínima e na variedade interna de caracteres.

Não basta que haja "letras" para que algo possa ser lido ou escrito. É preciso uma quantidade mínima de caracteres (em geral por volta de três a quatro) e que não se repitam sempre os mesmos caracteres.

Nos experimentos, cartões com um ou dois caracteres, como A, AS, SO, eram classificados pelas crianças como não legíveis porque "são muito curtinhos", "tem uma palavra só, não dá para ler", "onde há pouquinhas não é para ler, aqui tem pouquinhas letras, tem duas". Também os cartões com MMMMM, AAAAA eram considerados ilegíveis porque "tem tudo a mesma coisa", "diz o tempo todo a" (Ferreiro, 1985: 41-4).

Na escrita, as crianças utilizavam também sempre mais de dois caracteres e combinados de modos diversos.

— • te a (D

h

(2)

(3)

(6)

Fonte: Reflexões sobre ulfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 23.

elefante:

A fonetização da escrita: do período silábico ao

período alfabético

A partir do momento em que as crianças começam a prestar aten-ção às propriedades sonoras da palavra, um novo tipo de hipótese co-meça a ser construído. Elas passam a estabelecer correspondência entre partes da palavra falada e partes da palavra escrita.

A hipótese silábica é a primeira das hipóteses que a criança cons-trói sobre como se dá a relação entre a escrita e os sons da linguagem falada. De acordo com ela, cada marca ou letra corresponde ao registro de uma sílaba oral.

A criança escreve fazendo corresponder a quantidade de sinais grá-ficos com a quantidade de sílabas da palavra falada. Os exemplos a seguir ilustram essa fase da construção da escrita.

V A D E por ma-ri-nhei-ro O F T por gi-gan-te U R por ga-to T Z por bur-ro

X N Z por ja-ca-ré

(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)

Quando as letras começam a adquirir valores sonoros estáveis, a criança passa a registrar com as mesmas letras as partes sonoras seme-lhantes das palavras, produzindo escritas como:

G O' por ga-lo ABKE por a-ba-ca-te

G O por ga-to ABKI por a-ba-ca-xi RAL por Ra-fa-el IOA por pi-po-ca

(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)

Nessas escritas há correspondências quantitativas e qualitativas: cada letra é usada de acordo com seu valor sonoro convencional e corresponde a uma sílaba da palavra falada.

No entanto, a hipótese silábica cria, segundo Emilia Ferreiro, suas próprias condições de contradição. As palavras monossflabas, por exemplo, que deveriam ser escritas com uma só letra, entram em con-tradição com a hipótese da quantidade mínima de caracteres, e as pala-vras escritas pelos adultos têm sempre mais letras do que aquelas pro-duzidas pelas crianças. Essas contradições vão desestabilizando a hipó-tese silábica. A criança precisa buscar um novo caminho. Ela começa a agregar mais letras à escrita silábica, tentando aproximá-la da escrita dos adultos. Produz, então, escritas como:

MAIONZ por maionese MAIZEA por maizena

BNCA por boneca

(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)

Nessa etapa da construção da escrita, a criança usa simultaneamen-te a hipótese silábica e o princípio alfabético, configurando a hipótese silábico-alfabética. Por exemplo, na escrita da frase

A Coca coa e oesa por A Coca-Cola é gostosa ou na seqüência de palavras seguinte, escrita pela mesma criança,

ELFT por elefante GAQE por jacaré

ESA por onça

MAKO por macaco

LEÃO por leão

RA por rã

OELFTED por O elefante é gordo

(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)

podemos observar como algumas palavras são escritas de acordo com a hipótese silábica e outras de acordo com a hipótese silábico-alfabética.

Nesse processo, no qual a criança vai apurando a relação entre o registro escrito e o registro sonoro das palavras, ela descobre que a síla-ba não pode ser considerada uma unidade, uma vez que se compõe de elementos menores. A partir daí, ela começa a construir o princípio alfa-bético, último passo para a compreensão do sistema de escrita social-mente estabelecido.

A criança começa a se dar conta de que a escrita deve fazer o regis-tro de fonemas da língua oral. Ela passa, então, a perceber a correspon-dência entre a letra escrita (grafema) e o som pronunciado (fonema). Essa é a hipótese alfabética. Suas escritas têm nessa fase configurações como as apresentadas a seguir:

DINOSAURU TATUSSINHO FAMÍLIA CÃU

SEREJA

(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)

Nessa etapa, a criança escreve com legibilidade, mas, ao confrontar o que escreve com a escrita convencional, ela começa a perceber que a identidade de sons não garante a identidade de letras e que a identidade de letras também não garante a identidade de sons. Ou seja, ela percebe que o bo de boneca (bô) não é o mesmo bo de bode (bó), que o a de arara (á) não é o mesmo a de banana (ã).Or de rato é diferente do r de arara e do r de torrada. O som de ch pode ser representado diferente-mente, como em chapéu ou baixo, da mesma forma que a letra x soa diferentemente em lixo, táxi e exame.

Nesse emaranhado de possibilidades, a criança se dá conta de que uma letra "vale" por vários sons ou que um mesmo som pode ser repre-sentado por várias letras, entrando, assim, no campo dos critérios orto-gráficos da escrita, que, segundo Emilia Ferreiro, não são mais aspectos construtivos do sistema alfabético. O conteúdo ortográfico da escrita, afirma ela, depende das informações do meio e do ensino sistemático.

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

Faça um quadro-resumo apresentando as fases da construção da escrita pela criança e as características de cada uma delas, segundo Emilia Ferreiro.

Refletindo sobre o texto

Retome as questões suscitadas pelo trabalho de campo desenvolvi-do no capítulo anterior. Quais dessas questões o estudo feito por Emilia Ferreiro ajuda a explicar?

Exercitando a análise

Retome as amostras de escrita obtidas no trabalho de campo. Como você analisa essas produções?

Em pequenos grupos, discutam as tentativas de análise, procuran-do comparar as amostras de escrita e destacando as regularidades que percebem entre elas.

Reúnam as produções que não foi possível analisar ou que não se enquadram na progressão estabelecida por Emilia Ferreiro.

Façam um resumo da discussão realizada pelo grupo que mencione as regularidades observadas nas amostras de escrita. Problematizem (transformem em questão) o que não foi possível enquadrar nas hipóte-ses de Emilia Ferreiro.

Sugestão de leituras

AZENHA, M. da G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo: Ática, 1994.

FERREIRO, E., TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Ale-gre: Artes Médicas, 1985.

WEISZ, T. Por trás das letras. São Paulo: FDE, 1992. (Um vídeo complementa o material escrito.)

. Como se aprende a ler e a escrever ou prontidão, um proble ma mal colocado. Revendo a proposta de alfabetização. São Paulo: SE/CENP, 1985. (Texto organizado e elaborado a partir da obra de Emilia Ferreiro.)

Capítulo 17

Da atividade simbólica à

simbolização na escrita

Enquanto Emilia Ferreiro documentou nos seus estudos experimen-tais a progressão de noções localizando os modos como a criança racio-cina sobre a escrita, apontando percepções e distinções que ela constrói individualmente, até chegar aos princípios (regras) de organização e fun-cionamento da escrita convencional, Vygotsky e Luria procuraram mos-trar "o que leva a criança a escrever" (Vygotsky, 1984: 121).

Para explicar a gênese da escrita na criança, Vygotsky focaliza a escrita como uma atividade simbólica.

Tal como as demais atividades simbólicas (gesto, desenho, jogo, etc), a escrita envolve a representação de uma coisa por outra, a utiliza-ção de signos auxiliares para representar significados. O domínio dessa habilidade complexa não nasce por si mesmo, nem é alcançado de ma-neira puramente mecânica e externa. Segundo Vygotsky, resulta de um longo e unificado processo de desenvolvimento da atividade simbólica, que começa com o uso do gesto como signo visual.

O gesto, movimento comunicativo das mãos, dos braços, das per-nas, da cabeça, do rosto, do corpo todo, ganha sentido nas interações com os outros. A criança aprende a dizer o que quer e a entender o outro pelo gesto. Os gestos, no dizer de Vygotsky, são escrita no ar.

Depois, o jogo simbólico. O imaginário, feito gesto, feito palavra, transforma as coisas. No jogo simbólico, uma coisa vale por outra: a cadeira vira leão, a folha de jornal enrolada vira a espada do menino, que vira herói...

A criança se movimenta, age, pensa, inventa criando e usando sím-bolos. Um significado tem vários significantes, várias significações: a pedra pode virar elefante ou avião. Os objetos adquirem a função de signo pelo gesto indicativo e pela nomeação. Gesto e palavra são interligados.

O brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como um sistema muito complexo de "fala " através de gestos que comu-nicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar.

(Vygotsky, 1984: 123.)

O gesto e o jogo são marcados na areia, na terra, no papel. Explorando o movimento, a criança produz traçados. São seus primeiros rabiscos Os gestos da mão segurando lápis, giz, varetas, pincéis materializam a possibilidade de registro do gesto comunicativo. Surge o desenho

Inicialmente "os traços constituem somente um suplemento à re-presentação gestual" (idem, p. 122). Aos poucos, nas interações a criança aperfeiçoa esse registro, e a representação pictórica e gráfica começa a designar o mundo percebido e conhecido. Aos rabiscos, já feitos no papel, ela dá um nome. Pouco a pouco, a nomeação passa a se dar no início da atividade, e a criança nomeia o que vai desenhar. Pelo desenho, como pela fala, ela conta uma história, comunica os aspectos essenciais dos objetos. O desenho como linguagem gráfica é elaborado com base na linguagem verbal.

Gesto, jogo e desenho, mediados pela fala, constituem momentos

diferentes de um processo unificado de desenvolvimento da linguagem escrita.

Os gestos, o jogo e o desenho representam, de acordo com Vygotsky, a

pré-história da escrita, pois contribuem para a elaboração do simbolismo na

própria escrita. Como a criança chega à compreensão de que a língua escrita é um

sistema de signos que não têm significado em si? Como apreendem e

elaboram a possibilidade de utilizar linhas, pontos, manchas feitas sobre o

papel como suporte para a memória e a transmissão de idéias? A elaboração do simbolismo na escrita foi objeto de um estudo

experimental desenvolvido por Luria, que procurou compreender:

• como as crianças se apropriam da escrita em suas relações sociais;

• como elaboram, dentro da própria técnica da escrita, os princípios de

seu funcionamento como sistema de representação, capacitando-se,

gradualmente, para utilizá-lo deforma autônoma.

O estudo experimental do simbolismo na escrita

O procedimento metodológico

Segundo Luria, a simbolização na escrita consiste na transformação de

rabiscos não diferenciados em signos diferenciados. Para reproduzir

experimentalmente esse processo, ele colocou crianças de diferentes idades

que ainda não sabiam ler e escrever em uma situação na qual tinham a tarefa

de elaborar algumas formas simples de notação gráfica. Partindo da função instrumental da escrita, isto é, do seu funcionamento

como suporte para a memória e a transmissão de idéias e conceitos, o

experimentador solicitava à criança que memorizasse uma série de frases

ditadas por ele, como:

1. Há cinco lápis sobre a mesa. 2. Há dois pratos. 3. Há muitas

árvores na floresta. 4. Há uma coluna no pátio. 6. A bonequinha.

(Luria, 1988.)

Propositadamente, entre as frases não havia relações semânticas, e seu número era muito maior do que a capacidade natural de memo-rização das crianças.

Depois de ficar evidente para as crianças sua dificuldade em me-morizar as sentenças, o experimentador sugeria que escrevessem ou re-gistrassem de alguma maneira as frases numa folha de papel, como for-ma de ajudar na sua memorização.

Assim, o experimentador oferecia às crianças uma estratégia (o uso de um signo auxiliar) e um modo de ação (a escrita) para a solução da situação-problema. Embora tivessem familiaridade com o aspecto ex-terno da escrita, as crianças desconheciam sua estrutura interna e suas técnicas de utilização.

A partir daí começava o experimento, interessando ao experi-mentador apreender que formas de registro eram utilizadas pelas crian-ças e em que momento elas deixavam de ser simples brincadeiras, pas-sando a funcionar como símbolos auxiliares da memória.

Analisando as produções das crianças, Luria e Vygotsky caracte-rizaram dois modos de elaboração da escrita: a pré-instrumental e a instrumental.

A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos

mecânicos às marcas topográficas

O primeiro tipo de elaboração eviden-ciado na situação experimental criada por Luria foi a imitação do formato da escrita do adulto por meio de rabiscos mecânicos desprovidos de qualquer relação com os conteúdos a serem representados. As cri-anças traçavam inúmeros rabiscos no pa-pel antes mesmo de ouvirem a frase a ser registrada e, diante da pergunta do ex-

perimentador acerca do significado dos rabiscos, explicavam: "E assim que você escreve", "Isso é escrever".

(Exemplo extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In: Vygotsky,

Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.)

Obviamente esse tipo de registro não ajudava a memorizar as frases, tanto que, ao tentar recordá-las, as crianças nem olhavam para o papel.

O ato de escrever, nessa situação, era apenas externamente asso-ciado à tarefa de anotar uma palavra específica, segundo Luria. A crian-ça imitava o gesto comunicativo dos adultos, sendo o escrever um ato suficiente em si mesmo, um brinquedo.

O outro tipo de elaboração observado foi o registro em forma de marcas topográficas. Distribuindo seus rabiscos pelo papel, as crianças conseguiam lembrar parte das frases ou as frases inteiras, que asso-ciavam à sua posição no papel.

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«a^^*6"».

V- (Exemplo extraído da dissertação de mestrado de Maria da Graça ^-" Azenha B. Santos O grafismo infantil — processos e perspectivas.

Faculdade de Educação, USP, 1991.)

Ao reproduzir as frases, segundo Luria, as crianças davam a im-pressão de estar lendo. Olhavam para os rabiscos e podiam indicar re-petidamente, sem errar, qual rabisco representava qual frase. Embora essas marcas ainda não fossem signos, já eram mais do que simples rabiscos imitativos. A relação da criança com elas era de outra natureza, pois as marcas funcionavam como pistas auxiliares para recuperar a informação. Em alguma medida, ajudavam na memorização e tinham certa relação com um significado, embora ainda não determinassem qual fosse esse significado.

Pelo fato de as marcas não serem diferenciadas, depois de algum tempo seu significado era esquecido e elas voltavam à condição de ra-biscos mecânicos.

Ainda assim, Luria considera as marcas topográficas como os pri-meiros rudimentos da escrita, pois reorganizam o comportamento da criança, ajudando na memorização e na percepção da relação entre si-nais e significados.

A elaboração da função instrumental da escrita: o processo de

diferenciação das marcas utilizadas

Das marcas topográficas, as crianças passavam a preocupar-se em produzir nos seus registros algo que refletisse as diferenças entre as

frases proferidas.

Inicialmente, tentavam fazer isso marcando o ritmo da frase. Em seus rabiscos, fixavam o efeito produzido pelo ritmo da fala, utilizando marcas pequenas para registrar palavras isoladas e frases curtas e traça-dos longos e complicados para indicar as frases longas.

Este relato de Luria ilustra bem o efeito do ritmo da fala sobre a criança.

Demos a L., quatro anos e oito meses de idade, um certo núme-ro de palavras: mamãe, gato, cachorro, boneca. Ela anotou todas com os mesmos rabiscos, que não diferiam uns dos outros. A situa-ção mudou consideravelmente, todavia, quando lhe demos também longas sentenças junto com palavras individuais: 1) menina; 2) gato; 3) Z. está patinando; 4) Dois cachorros estão caçando o gato; 5) Há muitos livros na sala e a lâmpada está queimada; 6) garrafa; 7) bola; 8) O gato está dormindo; 9) Nós brincamos o dia inteiro, depois jantamos e, em seguida, voltamos a brincar outra vez.

(Relato extraído de 'O

desenvolvimento da escrita

na criança'. In: Vygotsky,

Luria, Leontiev. Linguagem,

desenvolvimento e apren-

dizagem. 1988.)

Também nessa situação, conforme analisou Luria, as marcas re- gistradas com base no ritmo da fala não apresentavam diferenças signi-ficativas entre si, de forma que possibilitasse uma leitura estável. No en- tanto, revelavam uma mudança no processo de simbolização da escrita, pois, ainda que superficialmente, a criança estabelecia uma relação entre as frases apresentadas oralmente e as características do seu registro.

Outro critério de diferenciação das marcas utilizadas pelas crianças foi o conteúdo das frases. As crianças procuravam registrar quantidades, tamanho, forma, cor e outras características dos elementos referidos.

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Num de seus relatos de observação, Luria descreve o registro feito por V., de 5 anos.

Pedimos a ele que anotasse as sentenças para que mais tarde pudesse recordar. Começou imediatamente a produzir rabiscos dizendo: "Éassim que você escreve". Obviamente, para ele, o ato de escrever era puramente uma imitação externa da escrita de um adulto, sem qualquer conexão com o conteúdo da idéia particular, uma vez que os rabiscos não diferiam um do outro deforma essencial. Eis o registro:

1. O rato com um rabo comprido. O sujeito (escreve): É assim que você escreve. 2. Há uma coluna alta. O sujeito (escreve): Coluna... 3. Há chaminés no telhado.

O sujeito (escreve): Chaminés no telhado... É assim que você

escreve... 4. Uma fumaça muito preta está saindo da chaminé.

Sujeito: Preta. Assim! (Aponta para o lápis e, em seguida, co

meça a desenhar rabiscos muito pretos calcando o lápis com força.) 5. No inverno há neve muito branca. Sujeito: (Faz seus rabiscos costumeiros; em seguida, separa-os em

duas partes, aparentemente sem relação com a idéia de "neve branca".) 6. Carvão muito preto. 'Sujeito: (Novamente desenha linhas volumosas.)

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V

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r^ ,ru (Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na crian-

ça'. In: Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desen-

volvimento e aprendizagem, 1988.)

As marcas feitas pela criança adquiriam caráter expressivo apenas em dois casos, nos quais "a fumaça preta" e "o carvão preto" foram registrados por volumosas linhas pretas.

O efeito dessa forma distinta de registro evidenciou-se quando foi pedido à criança que identificasse as frases apresentadas para memo-rização. Luria conta que, inicialmente, a criança nada dizia, parecendo ter-se esquecido de tudo. No entanto, ao examinar seus rabiscos, dete-ve-se em um deles, dizendo espontaneamente: "Isso é carvão".

Essa foi a primeira vez que tal leitura espontânea ocorreu nes-sa criança, e o fato de ela não só ter produzido algo diferenciado, como ter sido capaz de recordar o que representava, confirma ple-namente que havia dado o primeiro passo no sentido de usar a escrita como um meio de recordar-se.

(Luria, 1988: 168.)

Outro exemplo citado por Luria mostra como um signo, pela dife-renciação numérica, tem uma função expressiva:

Quando pedimos a Brina que escrevesse "O homem tem duas pernas ", ela imediatamente declarou: "Então desenharei duas li-nhas", e uma vez tendo descoberto esta técnica, continuou a usá-la. E combinou esse expediente com uma grosseira representação esquemática do objeto. "A garça tem uma perna" foi representada com uma linha que encontrava outras em ângulo reto; "O cachorrão com quatro cachorrinhos " tornou-se uma linha grande com quatro menores [...]

No teste de recordação [ela] não mais agiu simplesmente a partir da memória, mas leu aquilo que havia escrito, cada vez apontando seu desenho.

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(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In:

Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e apren-

dizagem, 1988.)

A marcas produzidas eram ainda confusas, mas, pela primeira vez, a criança revelou-se capaz de "escrever" e de "ler" o que escreveu

Nesse momento, segundo Luria, tem-se uma escrita elementar, uma vez que o registro feito apresenta uma função instrumental.

Tendo apreendido a necessidade de utilizar marcas diferenciadas em seu registro para poder relacioná-las com o conteúdo do material a ser memorizado, a criança elabora, então, um sistema de marcas expressivas, por meio das quais forma todo seu processo de recordação.

Nas tentativas de registro de cor, forma, tamanho, quantidade, as crianças produziam representações próximas da pictografia primitiva (escrita através de desenhos). O desenho começa, então, a convergir para a escrita, não como desenho em si, mas como um elemento que representa conteúdos determinados das frases faladas pelo experimentador. O desenho constitui, assim, um elemento auxiliar na produção de uma escrita diferenciada.

(Extraído da dissertação de mestrado de Maria

da Graça Azenha B. Santos O grafismo infantil

— processos e perspectivas. Faculdade de Edu-

cação, USP, 1991.)

A criança quis escrever: 1. ônibus; 2. óculos; 3. menino; 4. árvore; 5. escola; 6. rua; 7. classe.

Da representação pictográfica, as crianças passam à escrita simbó-lica, inventando formas de representar informações difíceis de serem desenhadas.

Na situação do experimento de Luria, elas resolviam o problema do registro de maneiras diversas:

• "anotavam" outro objeto mais fácil de ser retratado e que se relacio-na de alguma forma com aquele que foi referido pelo expe-rimentador. Diante da frase "O lixo da chaminé é preto", a criança comenta: "Preto. Uma caixa pequena. Eu não sei desenhar uma cha-miné". Desenha uma caixa e pinta de preto.

• anotavam uma parte daquilo que era proposto.

S. N., de 7 anos e meio, foi instruída a escrever "Há mil estrelas no céu ".

Primeiramente desenhou uma linha horizontal ("o céu "); em seguida desenhou cuidadosamente duas estrelas e parou. O pesquisador questiona: "Quantas mais você tem de desenhar?" Ela: "Apenas duas. Eu me lembrarei que há mil".

faziam simplesmente uma marca arbitrária para representar o objeto.

Diante da frase "A menina quer comer", a criança desenha uma menina efaz uma marca ao lado da menina, dizendo: "Aí está — ela quer comer".

E, diante da frase "A noite é escura", a criança diz "Eu porei um círculo para a noite " e desenha um círculo completo.

Fig. 1

(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In: Vygotsky,

Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.)

Para superar os limites que encontravam no desenho, as crianças passavam do registro do conteúdo da fala para o registro de uma idéia. Nesse processo, o desenho deixa de ser o desenho de alguma coisa para ser o desenho de palavras. Esse procedimento aparentemente simples envolve um grau considerável de desenvolvimento intelectual e abstra-ção. A criança percebe que a fala também pode ser desenhada.

Ao longo das tentativas de utilização da escrita, as crianças, que inicialmente não compreendiam o significado da escrita e tentavam utilizá-la por imitação de uma atividade do adulto, foram elaborando e aprimorando técnicas primitivas de registro, diferenciando-as gradual-mente, até chegar ao significado funcional do símbolo.

Luria destaca que essas formas de elaboração da escrita não consti-tuem etapas linearmente organizadas e universais. Ou seja, as crianças não passam necessariamente por todas elas, nem elas acontecem na se-qüência descrita.

Isso porque a elaboração da escrita, como função psicológica cul-tural, não é um processo individual e independente do contexto em que se vive. Os percursos feitos pelas crianças variam conforme o acesso que têm, ou não, a experiências concretas de utilização da escrita.

Com a alfabetização, inicia-se um novo período da elaboração da escrita. A criança passa a se relacionar com a escrita de modo delibera-do e sistemático. Passa a utilizar, juntamente com suas técnicas primi-tivas de registro, uma nova técnica, a escrita, que lhe é apresentada.

"Como escreve uma criança que, embora ainda seja incapaz de es-crever, conhece alguns elementos do alfabeto? Como se relaciona com essas letras e como (psicologicamente) tenta usá-las em sua prática pri-mitiva?", pergunta Luria (1988: 180).

O processo de alfabetização: a relação entre a escrita primitiva

da criança e a escrita convencional

Luria observou que no processo de alfabetização as crianças diferen-ciavam também gradualmente os símbolos utilizados para produzir escrita

No início, tinham com a escrita convencional uma relação puramente externa: elas conheciam letras isoladas, sabiam que podiam usá-las para escrever, embora desconhecessem como.

Ao utilizar as letras para registrar algo, as crianças retornavam a fases de escrita não diferenciada, mas utilizando as grafias aprendidas.

O seguinte registro de Luria exemplifica esse processo:

O pequeno V, um aldeão de seis anos, não era ainda capaz de

escrever, mas conhecia as letras A e I. Quando lhe pedimos para

relembrar e anotar algumas sentenças ditadas, ele facilmente fez o que

lhe fora pedido. Em seus movimentos, ele revelou confiança integral em

sua capacidade de anotar e relembrar as sentenças ditadas. Os

resultados estão nos registros seguintes:

1. Uma vaca tem quatro Sujeito: Eu sei que ela tem quatro

pernas e um rabo. pernas e isto (escreve) é "I".

2. O lixo da chaminé é preto. (Escreve) E isto é "A".

3. Ontem à noite choveu. Eis a chuva. Eis (escreve) "I".

4./JHá muitas árvores no bosque. (Escreve) Eis "A".

5. O barco a vapor está O barco a vapor vai assim (Faz

navegando rio abaixo. uma marca). Eis "I".

O resultado foi uma coluna de "is" e "as" alternados que nada

tinham a ver com as sentenças ditadas. Obviamente o sujeito não

aprendera ainda a fazer esta conexão, de tal forma que, ao executar a

tarefa de ler o que havia escrito, leu as letras (IeA) sem relacioná-las

deforma alguma com o texto.

(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In:

Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e apren-

dizagem, 1988.)

No processo de alfabetização, a criança, interagindo com os usos e

formatos da língua escrita, pela mediação do adulto, de quem recebe

informações sobre o sistema convencional de escrita, tenta utilizar as

letras para ler e produzir textos. Ela imita o adulto nos atos de ler e

escrever e segue suas instruções. Ela confronta suas técnicas primitivas

de escrita com as regras da escrita convencional. Assim ela vai se apro

priando dos mecanismos da escrita simbólica culturalmente elaborada. ___________

O domínio do sistema de escrita convencional vai substituindo, então, 205

suas técnicas primitivas de escrita. ---------

Sugestão de atividades

Organizando as informações do texto

Num quadro-resumo, indique as características do processo de apropriação e de elaboração da escrita pela criança, segundo os estudos de Vygotsky e Luria.

Exercitando a análise

1. Retome individualmente as amostras de produção de escrita que você e seu grupo analisaram na atividade do capítulo anterior. Após saber como Luria e Vygotsky caracterizam o desenvolvimento da es-crita, que elementos você destacaria nessas produções? Registre sua análise.

2. Em pequenos grupos, comparem as amostras de produção de escrita e discutam as tentativas de análise feitas individualmente, destacan-do as regularídades observadas entre elas. Registrem os principais pontos da discussão e os elementos das produções que confirmam a abordagem de Vygotsky sobre o desenvolvimento da escrita.

3. Reúnam e problematizem as produções que não conseguiram ana-lisar.

4. Em pequenos grupos, socializem o trabalho de análise feito e as questões que foram por ele suscitadas.

Exercitando a comparação

1. Enumere as semelhanças e as diferenças entre os modos como Emilia Ferreiro e Vygotsky/Luria descrevem e explicam o desenvolvimento da escrita na criança. Para isso, baseie-se na leitura dos textos do livro, nos exercícios de análise das amostras de escrita produzidas pelas crianças e nas questões suscitadas por esses exercícios.

2. A partir da comparação feita, elabore um pequeno texto destacando as semelhanças e as diferenças principais entre as duas abordagens.

3. Dividida em dois grupos, a classe deverá ler dois textos. Os alunos do grupo 1 deverão ler 'Acesso ao mundo da escrita: os caminhos paralelos de Luria e Ferreiro', de Maria Thereza Fraga Rocco, em Cadernos de Pesquisa, n? 75, de novembro de 1990, pu-blicado pela Fundação Carlos Chagas, de São Paulo. Aos alunos do grupo 2 caberá 'Discutindo pontos de vista', de Ana Luiza Smolka, que é o terceiro capítulo do livro A criança na fase inicial da escrita, editado pela Cortez, de São Paulo. Nesses textos as autoras comparam as abordagens de Emilia Ferreiro e Luria. Após a leitura, cada aluno deve destacar as semelhanças e as

diferenças que as autoras vêem nos trabalhos d* I ■ seguir, compará-las numa discussão que envohJa ,

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Sugestão de leituras

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LURIA, LEONTIEV. Linsuagem H***™,»! cnanca- In. VYGOTSKY,

Paulo: Ícone/Edusp T98? deSmVolvment

° * aprendizagem. São

NOGUEIRA, Ana L. H. Eu leio, ele lê, nós lemos- processos de n • * na

construção da leitura. In: SMOLKA, A.'L^ GÓES MTTT (orgs). A

linguagem e o outro espaço escolar- vXfcíi" f«o <fo conhecimento.

Campinas-Papirus 7993^ ""^ SWARTZ, S., AMARO, L. (orgs ) Meu univpr™ r

são. São Paulo: Edart, 1976 ~ Comunicação e expres- VYGOTSKY, L. A pré-história da escrita In • At

mente. São Paulo: Martins Z^ ml ---------------- ■**"**«**«*

20

Capítulo 18

Escrevendo e lendo na escola

Enquanto a brincadeira e o desenho pratica-mente inexistem na escola de 1? grau, a leitura e a escrita têm ali presença constante. Leitura e escrita são objeto de conhecimento (as crianças vão à escola para aprender a ler e escrever) e instru-mento para a apropriação de outros conhecimentos (utilizando essas atividades, nós, professores, ensinamos), além de instrumento de trabalho dos professores, meio de comunicação na comunidade escolar (presente em bilhetes, avisos, boletins, murais, cartazes), registro, memória (nos planos, projetos, documentos, atas).

Ainda em torno da atividade escolar, a leitura e a escrita mediatizam as interações entre os alunos, que comparam suas tarefas, trocam infor-mações sobre elas, mandam bilhetes, copiam coi-sas de seu interesse nos cadernos, ficam em sala durante o recreio para escrever no quadro-negro, treinam a letra cursiva, lêem, mesmo quando não

solicitados pelos professores, desde o livro didático até materiais proibidos no recinto escolar, cuidadosamente escondidos sob as cúmplices carteiras.

Apesar dessa presença maciça e diversificada da leitura e da escrita nas atividades que se realizam na escola, vivemos às voltas com altos índices de analfabetismo funcional, evasão e repetência.

Por que o fracasso da escola em ensinar a escrita e a leitura?

2QO --- O ingresso da criança na V. série do 1? grau é cercado de expecta- -------- tivas, por parte da própria criança, de sua família e dos professores. Ela

tem um ano para dominar os segredos da escrita. Tudo o mais é inter-rompido em favor de seu ensino. A preocupação com os rudimentos da escrita e da linguagem matemática preenche o tempo das crianças na escola e fora dela. As brincadeiras, a hora do parque, os desenhos e a roda da conversa presentes na pré-escola, bem como o tempo livre e descompromissado em casa, cedem lugar às tarefas. A 1? série marca o início da postura de seriedade. Agora se trata da escola de verdade, com tarefa de casa, prova, exame e até, ou principalmente, repetência.'

Alguns pais cobram e acompanham de perto o desempenho dos filhos. Outros, marcados em sua história de vida pelo "insucesso" escolar ("Eu sou cabeça-dura"; "As letras não me entram"), torcem pelo êxito dos filhos, mas temem seu fracasso ("Será que ele saiu igual a mim?").

Muitos professores, angustiados com as condições de trabalho, perguntam-se como trabalhar a escrita em salas com trinta, ou até qua-renta alunos, nas precárias condições da escola pública brasileira, e levando em conta as também precárias condições de vida e de trabalho de muitas crianças.

Grande parte deles procura, ansiosamente, nos alunos, os "pré-re-quisitos" da alfabetização, mas ignora as experiências que essas crian-ças tiveram em relação à escrita. Espera-se, como bem apontou Emilia Ferreiro (1982), que as crianças cheguem à escola sabendo pegar no lápis, copiar da lousa, discriminar sons, "falar direito"... A ausência des-ses pré-requisitos as faz ser consideradas inaptas para aprender a ler e escrever e condena-as às atividades do período preparatório, às vezes por um ano inteiro (Smolka: 1988).

No início de março, enquanto nas demais classes as crianças repetiam o a-e-i-o-u, na lf série M as crianças rasgavam páginas de revistas, picavam as folhas com as mãos em pequenos pedaços, para enrolar, depois, em pequenas bolinhas que seriam coladas na copa de uma árvore que a professora desenharia numa folha de papel. As crianças não tinham idéia desse "projeto ", ou seja: ras-gar, picar e enrolar papel para quê? Para a professora o objetivo era claro: era necessário treinar os movimentos dos dedos, para as crianças poderem, posteriormente, segurar o lápis direito.

Aparentemente, então, nesta classe, as crianças estavam sen-do "preparadas para aprender a ler e escrever", mas, de fato, im-plicitamente, o que ocorria era a negação desse conhecimento a quem ainda não o possuía, devido a uma imagem que se tinha ou se formou das crianças que compunham o grupo...

(Smolka, 1988.)

No período preparatório, as crianças também repetem inúmeras vezes o a-e-i-o-u, "desenham" e cantam a "onda vai", enquanto movi-mentam o lápis no papel. Ao fazerem isso, o que estão aprendendo? Estão escrevendo? Estão desenhando?

Certamente nãq estão escrevendo. O que a seqüência de vogais sig-nifica? A repetição de um mesmo símbolo em seqüência é escrita? Nos estudos de Emilia Ferreiro, as crianças afirmaram que não. Uma condi-ção de legibilidade, que elas apreendem e constróem nas suas relações com a escrita, é a variedade de caracteres...

Certamente não estão desenhando, pois o a-e-i-o-u é constituído de letras, de um tipo de traçado específico. A "onda vai" também não é desenho, pois o desenho de uma onda pela criança tem as mais diferen-tes formas. (E muitas das crianças brasileiras, que moram no interior, não conhecem o mar e as ondas a que o treino motor reporta.)

A repetição das vogais e da letra c disfarçada de onda não contribui para o esclarecimento das crianças. Em vez de serem informadas de que estão aprendendo a traçar as letras, elas são sutilmente levadas a crer que estão treinando a escrita. Que conclusão lógica essas crianças po-dem tirar? A de que C = onda. No entanto, as crianças são recriminadas ou consideradas incompetentes quando "não aprendem" o convencional (Smolka e Góes, 1984).

Como o convencional tem ensinado?

Cumprindo, ao longo do ano dedicado à al-fabetização, seu papel de informar, instruir, insistir, controlar, os professores ensinam letras, sons, sílabas e a decifrar palavras escritas, insistem na memorização e fixação, controlam a produção e a disciplina. Fazem tudo isso na crença de estarem di-recionando a atenção e a vontade das crianças.

Obrigadas a "copiar" uma série de letras e palavras, como, por exemplo, o cabeçalho diariamente colocado na lousa, as crianças não

entendem o que fazem. O cabeçalho, algumas vezes, é apresentado com lacunas a serem

preenchidas:

C_

D.

H E A. E

_, D__18DEA ______ DE 1994.

SOL.

(Extraído do relatório de estágio de uma aluna de Pedagogia de 1994.)

Inúmeras vezes uma mesma lição da cartilha deve ser copiada classe e também como lição de casa:

Mateus, de 6 anos e meio, entrou na 1 f série em 1990, numa escola central de Campinas, São Paulo. Criança de classe média filha de profissionais liberais, conhecia muita coisa sobre a escrita e era interessada em ler.

Ao final do primeiro mês de aula, chorava copiosamente e não

queria mais ir à escola nem fazer a lição de casa. A mãe, desesperada,

não sabia o que fazer. Perguntando à criança o que estava acontecendo,

por que não estava gostando da escola, recebeu a seguinte resposta: "Eu

não agüento mais escrever a lição da lata, mamãe!". Havia um mês,

Mateus copiava em sala de aula e em casa, como tarefa, a primeira lição

da cartilha. A mãe procurou a professora, que explicou: "Eu só posso

mudar de lição quando todos tiverem aprendido direitinho, copiarem

sem erro, e acertarem o ditado. Com o tempo, as crianças vão ficando

mais rápidas".

(Depoimento da mãe da criança a uma das autoras, em 1992.)

Um procedimento comum entre alfabetizadores é se referirem às letras

relacionando-as com as lições da cartilha. O m vira "ma do macaco", o n vira

"na do navio", numa confusão absoluta entre letra, sílaba, palavra, nome de

letra, som de letra.

"Já fez as palavrinhas? Ma com o... na com o... Aqui (na lousa) eu fiz ma

com a. Olha o que você fez aí!" (Smolka, 1984). Numa situação como essa,

além de não se dar esclarecimento à criança, passam-se informações

inadequadas.

Diante dos resultados obtidos, as professoras angustiam-se com as

crianças que "não vão para a frente", que repetem uma ou mais vezes a V.

série, o que não é raro em nosso sistema escolar.

E as crianças?

As crianças chegam à escola desejosas de aprender, ansiosas por

escrever. Afinal, convivem com a escrita já há algum tempo, sabem que têm

algum conhecimento sobre ela, mas sabem também que desconhecem muita

coisa. "Eu não sei ler"; "Eu sei que tem coisa escrita, mas eu não sei muito

bem usar letra", dizem elas.

Elas têm expectativa de que os adultos lhes ensinem.

A criança, de 5 anos, pede à tia que escreva algumas palavras para

ela. A tia, professora e estudante de Pedagogia, sugere que ela mesma

escreva. A criança responde que não sabe. A tia insiste: "Escreva como

você acha que é!".

Depois de algum tempo, a criança volta com algumas letras

marcadas no papel e pede que a tia leia para ela.

zrita deve

abalhada

de forma

onal para

xter o seu

tido real.

Não... Va<cê lê pra mim o que escreveu... — a tia diz. Viu só como eu não sei escrever? — a criança retruca.

(Depoimento de uma aluna do curso de Pedagogia, numa aula em

que se discutiam os estágios de Prática de Ensino, em 1994.)

As crianças trazem consigo experiências diversas com a escrita, suposições acerca de seu funcionamento, mas se vêem impedidas de explicitá-las na escola. Querem aprender, mas nem sempre a escola se dispõe a ensinar a elas o que desejam.

Eu me lembro que esperava na maior ansiedade a hora de entrar na escola. Só que, quando entrei na 1 fsérie, chorava muito e não queria ir mais. Eu queria escrever, não queria ficar fazendo os rabisquinhos dos exercícios do período preparatório... Eu já sabia escrever o meu nome, que minha irmã tinha ensinado, sabia algumas letras...

(Depoimento de uma aluna de Pedagogia, numa aula em que se

discutiam os estágios de Prática de Ensino, em 1994.J

O resultado desse desencontro entre as crianças e a escola aparece no diálogo com crianças de escola pública reproduzido por Ana Luiza Smolka:

— Pra que você vem à escola? — Para aprender a ler e escrever. — Mas para que você vai aprender a ler e escrever? — Pra tirar boa nota. — Pra não ficar burro. — Pra passar de ano. — Pra não precisar pegar no serviço pesado quando crescer.

(A criança na fase inicial da escrita, 1988: 38.)

Não trabalhando a escrita de forma funcional, a escola faz com que se perca o sentido real de sua aprendizagem, que passa a ser apenas o de cumprir as exigências da própria escola (boa nota, passar de ano) ou de ajudar num futuro remoto.

Pra quem, o que e por que escrevo? IP*

Uma sala de aula de 1 ? série, com 26 crianças ingressantes, 1 2 entre quase 7 e 8 anos de idade. Zona de periferia, quase rural. A *^~r professora vem, desde o primeiro dia de aula, trabalhando o fun~

cionamento e a funcionalidade da escrita, no sentido de procurar

apontar para as crianças, tanto formal quanto informalmente, as

diversas possibilidades e funções dessa forma de linguagem. As crianças

participaram da confecção de vários tipos de versões do alfabeto — da

Xuxa, do Toquinho, de animais —, tendo esse material exposto como

referência e consulta na sala. Algumas palavras estão também pregadas

na parede, em ordem alfabética. O quadro de presença com os nomes

das crianças, o calendário, dois textos, são outros materiais dispostos na

sala. As crianças podem manusear livros de história e ouvem, quase que

diariamente, a leitura de um livro pela professora.

Mês de maio. A professora encoraja as crianças a escreverem uma

notícia para o jornal dos alunos. As crianças podem recorrer a qualquer

estratégia para montar a notícia — perguntar ao colega, copiar da

revista, consultar o material exposto na sala, pedir auxílio à professora,

etc.

Duas crianças conversam sobre a torneira do banheiro que está

quebrada, que foi consertada, mas que continua não funcionando.

Decidem escrever esta notícia para o jornal. Pat. e Ale. começam a falar

e a repetir lentamente "a torneira está quebrada".

Ale.: A gente quer escrever que a torneira está quebrada, tia. Como

que escreve?

Pat: A torne... é o "e", né, tia? , Proff:

Tem o "e".

Pat: Tá quebra... é o "a", né, tia?

Proff: Também tem o "a ".

Pat: escreve "EA". A professora pede para o Ale. ler.

Ale. Eeeee Aaaaaa.

Proff: Eu também leio "EA ". Vamos ver outro jeito. Torneira, como

será que escreve torneira (pronuncia bem devagar) ?

Pat: Tor... é o "o". (Faz a letra O.)

Ale.: Ne... é o "e". (Pat. faz a letra E.)

Pat: Ra... (faz a letra A).

Proff: Agora lê, Pat

Pat: Torneira.

Proff: Você acha que está escrito torneira aqui, Ale. ?

Ale.: Não sei, tia.

Proff: Então vamos ler juntos: OoooEeeeAaaa. Não está faltando

nada? Tttoorrr...

Ale.: É o "t", não é, tia?

Proff: Certo. Eu vou soletrar, vou dizer o nome das letras pra

escrever "torneira ".

As crianças conhecem quase todas as letras pelo nome e, quando

esquecem ou hesitam, é feita referência ao alfabeto exposto. A

professora vai atender outros grupos. Pat. e Ale. continuam

tentando escreyer. A professora retorna ao grupo deles, verifica o que e como as crianças escreveram, acaba soletrando o resto da frase para elas. As crianças agora seguem adequadamente, com o dedo (fazendo corresponder dimensão sonora com extensão gráfi-ca), o que foi escrito, lendo e mostrando para os colegas o resulta-do de sua produção.

(Episódio extraído de SMOLKA A. L., 'A atividade da leitura e o

desenvolvimento das crianças: considerações sobre a constituição

dos sujeitos leitores'. In: SILVA, E. T., ZILBERMAN, R. (orgs.). Porto

Alegre: Mercado Aberto,)

Ao tentar escrever sozinha, a criança analisa a escrita do ponto de vista do conhecimento que ela já tem de suas convenções. "A torne... é o 'e', né, tia?" — diz Pat. Ao indicar à professora o modo como elabora a escrita, a criança possibilita que ela trabalhe a forma convencional, ajudando-a a ir além do conhecimento até então elaborado.

A professora esclarece a criança, informa-a adequadamente ("Tem o e"). Pede à criança que leia sua própria produção, lê para a criança, pronuncia devagar o que as crianças querem escrever, soletra para elas.

O que a professora ensina nesse processo? Ela explicita a análise fonológica para as crianças, mas com a participação delas. Informa so-bre o lugar das letras nas palavras, esclarecendo o valor que têm de acordo com a posição que ocupam. Aponta e nomeia as letras, que são o instrumental necessário e convencional para dizer as coisas por escrito. Trabalha o funcionamento da escrita, usando-a para registrar o que a criança deseja e, escrevendo, interage com ela.

Nessa interação, a professora ensina, explícita e implicitamente, os aspectos mecânicos e estruturais da escrita, ao mesmo tempo que de-monstra para a criança que reconhece nela alguém capaz de aprender a ler e a escrever. Também aprende a ouvir a criança, a entender o que ela tem a dizer sobre a escrita, a "ler" o que ela registra sobre o papel. Nessa relação, o conhecimento sobre a escrita é compartilhado, reconhecido e elaborado.

No episódio apresentado, o domínio da escrita como código é ape-nas um dos objetivos apresentados às crianças. A atividade em que elas estão envolvidas não se esgota no aprendizado do código. Sua finalida-de é outra: escrever a notícia do jornal. Escreve-se para outros lerem. A escrita é, nesse caso, possibilidade de interlocução. Ela tem significado para as crianças porque responde a uma necessidade social; seu papel é relevante. Essa é uma condição para que a escrita não se desenvolva "como hábito de mão e dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem" (Vygotsky, 1984: 133).

O uso significativo da escrita desmistifica o acesso a ela. A criança não se limita a memorizar, gravar ou fixar modos de escrever palavras. Ela elabora e reelabora a linguagem escrita, escrevendo o que pensa e o que quer expressar ou registrar para si e para o outro.

Ao escrever o que pensa, sem copiar ou repe tir mecanicamente frases de cartilhas, a criança bus- . *"■■

ca classificar e sistematizar os sons da língua de acordo com a sua percepção. Os "erros" que comete, embora sejam profundamente reveladores dos seus processos de aprendi-zagem, causam preocupa-ção e ansiedade nos pro-fessores, que se interro-gam acerca do que fazer.

Corrigir ou não corrigir? Essa é a questão que ainda ocupa os pro-fessores, interferindo na sua prática, no dia-a-dia da sala de aula, levan-do-os a dois extremos: corrige-se tudo, anulando a produção da criança como um todo, ou não se corrige nada, confiando-se na "descoberta do certo" que ela fará.

O que é o erro? Os erros são todos iguais?

O caminho para as respostas às questões acima pressupõe a análise da prcrdução das crianças.

Após a leitura do livro "Nosso trabalho é assim ", elaborado por um grupo de crianças, a professora conversou com os alunos sobre o tema TRABALHO. A partir da conversa, as crianças come-çaram a confeccionar seus próprios livros individuais, com recor-tes de figuras de revistas. Após o manuseio, a escolha, o recorte e a colagem das figuras, as crianças ditavam para a professora ou escreviam textos de acordo com o tema.

Uma criança escolheu fotos do peixe-boi e ditou o seguinte texto para que a professora registrasse:

"Os peixes-bois estão em uma canoa especial porque os sal-va-vidas estão salvando eles pra eles não morrerem ".

Após a saída da professora para atender outras crianças, ela escreve sozinha:

VÀ, ^WvytKc ÂA& JXjU-^^/fÔÇbsr^ O-

4/^cc

JUl /n<wa. ÍJÜ^.

>*aK0-

TVMJ-

/VY^U. (Episódio extraído do relatório do Projeto de Incentivo à Leitura de

1984. O projeto, coordenada por Ana Luíza Smotka, foi desenvolvido

na Rede Municipal de Ensino de Campinas no período de 1983 a 1985.) 215

Escrevendo o que

pensa e o que quer,

a criança elabora a

linguagem.

\

s

r

Analisando a frase escrita pela criança, o que se evidencia?, per-gunta Smolka no relatório em que o episódio está registrado.,

Antes de destacar e analisar os erros, a autora sugere que se dê atenção a um aspecto dessa produção. A criança comunica seu pensa-mento por meio da'escrita, e o faz com clareza. Ela consegue escrever o "que queria ter escrito", e nós, leitores, conseguimos ler e entender o que ela quer dizer.

"Molhe" em vez de mulher, o primeiro erro que chama a atenção, se explica, destaca Smolka, por uma generalização comumente consta-tada nas séries iniciais. Fala-se "ovu" e escreve-se ovo, fala-se "carru" e escreve-se carro, fala-se "ratu" e escreve-se rato. Diante disso, a crian-ça conclui: o que se fala com u, escreve-se com o. Daí, "molhe", em vez de mulher, como também "boraco", em vez de buraco. A criança erra devido à preocupação em acertar (supercorreção). Esse erro revela as elaborações que ela faz acerca da relação entre a oralidade e a escrita.

Essa relação entre oralidade e escrita aparece também na omissão do r final. Fala-se "mulhé", omitindo-se o r final. Assim, a criança es-creve como fala.

O mesmo acontece com "alimentano". E comum, sobretudo nas classes populares, a omissão do d na pronúncia dos verbos no gerúndio. Essa omissão, além de evidenciar a relação entre a oralidade e a escrita, constitui outra marca: o modo de falar da criança, evidenciado na sua escrita, não corresponde ao que é estabelecido como língua padrão, é uma variedade dialetal.

Ao escrever "more" por morre, a criança revela as dificuldades, compreensíveis, que os múltiplos valores fonéticos das letras trazem, não só para ela, mas para todas as crianças no período inicial de apro-priação da escrita convencional.

A repetição da preposição para no fim da frase também não é ade-quada à norma padrão, mas sua ocorrência se verifica por razão diferen-te da que leva à omissão do d nos verbos no gerúndio. Ela não revela um modo de dizer da criança, e sim a diferença de tempo entre o pensamento e seu registro por escrito. A criança pensa o que quer escrever. No processo de fazer o registro, ela vai repetindo a frase lentamente, pára nas palavras, repete-as, volta sua atenção para o esforço de analisar e marcar as palavras. Com isso, perde a fluência da frase e retoma-a no ponto em que parou.

O processo de pensamento pode ter sido "A mulher está alimentan-do o peixe-boi para ele não morrer", elaborado de acordo com a norma padrão. Durante o registro, a criança parou no "ele", e provavelmente repetiu "A mulher está alimentando ele...", completando, então, "para não morrer".

A análise dessa produção mostra que existem diferentes tipos de "erros" — dialetais, ortográficos, por generalização, por supercorreção —, que, ocorrendo por diferentes razões, devem ser corrigidos e trabalhados de maneiras diferentes. Eles revelam, também, regularida-des no processo de elaboração da escrita. Juntos, os quatro primeiros

erros analisados indicam que a criança está apreendendo a relação en-tre a oralidade e a escrita. Mas, para consolidar essa apreensão ela precisa de tempo para elaborar, analisar, relacionar e não apenas me- morizar.

O processo de elaboração, porém, não compete só à criança Nós professores, também participamos dele ao analisar com ela sua produ-ção, quando a ajudamos a perceber o curso de seu próprio processo de elaboração.

Outros tipos de erros encontrados fartamente em relatos de expe-riência assemelham-se aos seguintes:

A casa é mal-assombrada.

(Projeto de Incentivo à Leitura, 1984.)

Mau e mal soam exatamente iguais e só o contexto esclarece quan-to à ortografia correta. A criança comunica o que quer, mas precisa de tempo para aprender a sutil diferença entre um termo e outro.

A professora pode mediar essa apreensão analisando com a criança a forma utilizada por ela e as razões de sua adequação, ou não, ao con-texto. Assinalar o erro ou escrever a forma adequada sem analisar com a criança os critérios de adequação ou inadequação em nada contribui para a elaboração e o domínio da língua escrita convencional.

O mesmo acontece na tentativa de escrita da palavra assombrada. A criança recorta a palavra em alguns pedaços (a, sul) e usa elementos e critérios que já conhece, que já viu escritos e que correspondem, em alguma medida, à sonorização da palavra. Também nesse caso, assina-lar o erro, corrigi-lo ou esperar que a criança descubra em que ele con-siste não conduzem a nenhuma superação.

Um homem embaixo da árvore.

(Projeto de Incentivo à Leitura, 1984.)

O h no início da palavra homem não tem nenhum valor fonético, assim como o m final, que, muitas vezes, não é pronunciado. O i em vez de em indica problemas de nasalização e não-correspondência entre vo-gai escrita e falada. O i de embaixo também é geralmente omitido na fala, e o x e o ch servem para representar o mesmo som. "Alvore" revela um problema dialetal e de supercorreção. Em algumas regiões, o / é pronun-

ciado como r. Fala-se "borsa", "revórvi", e escreve-se bolsa, revólver. Então, se a fala é árvore, imagina-se que a escrita correta seria "alvore".

Examinando com cuidado os erros cometidos pelas crianças, va-mos confirmando as regularidades e as sistematizações próprias do pro-cesso de elaboração da escrita. Os erros revelam os modos como as crianças procuram organizar as informações e os conhecimentos que têm. Há neles uma lógica muito mais consistente do que à primeira vista imaginamos. Constatá-los é importante. Mas para quê? O que fazer com eles?

Alguns professores hesitam entre preservar o direito da criança de errar e de se arriscar e problematizar suas produções, com receio de inibi-las. Eis um relato que mostra esse dilema:

O trabalho com as frases foi bom até certo ponto. O que me desconcertou foi o fato das crianças terem ficado nervosas, histéri-cas mesmo, porque já não se contentam com suas produções. O que eu estava interpretando como agressividade gratuita, confusão e bagunça, vejo agora que é outra coisa. Lêem, reconhecem sílabas, percebem o significado, mas escrevem silabicamente ou silábico-alfabeticamente e não ficam satisfeitas com o resultado. Fica um clima tenso, de insatisfação. Por outro lado, minha postu-ra radical de não corrigi-los nunca está sendo interpretada como indiferença, pouco caso. Eles sabem que não escreveram certo e ficam desconfiados, sentem-se enganados. Tenho que repensar mi-nha atitude. [...] Com medo de inibir, passei para o extremo oposto e não estou ajudando.

(Depoimento extraído do texto 'E na prática, a teoria é outra?', de

Telma Weisz, publicado no módulo ÍI do Projeto Ipê — Isso se

aprende com o ciclo básico. São Paulo: SE/CENP, 1986.)

Outro modo de olhar para os erros é não considerá-los como "nega-ção de conhecimento" ou "afirmação da inteligência da criança e da sua capacidade de pensar", porque eles são as duas coisas ao mesmo tempo. Eles nos mostram até onde as crianças chegaram na elaboração da escri-ta, que hipóteses estão formulando, o quanto já apreenderam e com-preenderam acerca de seus fundamentos, funções e princípios de orga-nização. E também quais os pontos em que ainda devemos intervir junto a elas, o que precisamos explicitar para elas e com elas, que informa-ções podemos lhes dar para que avancem em suas elaborações e no domínio da escrita.

Os erros indicam a um só tempo o que já não precisamos trabalhar com as crianças, porque já é do domínio delas, e o que ainda exige nossa intervenção, por estar em fase de elaboração.

As crianças esperam que nós, professores, exerçamos nosso papel participando com elas do processo de elaboração desse conhecimento. Afinal, somos reconhecidos pelos alunos como a pessoa que, na classe, mais sabe (ou deveria saber) sobre a escrita, como se percebe neste ou-tro depoimento:

As soluções que encontram para as palavras que constróem são inúmeras. Ex.: O RATO GOTA Dl QIJO (O rato gosta de quei-jo) ou O COMETA PASO NA SIDADI (O cometa passou na cida-de). E quando eles me mostram, eu não digo "está errado", mas "está certo" seria mentira. Então eu pergunto: O que você escre-veu? Eles lêem e emendam "está certo?" E eu: "Esse é o seu jei-to... " Não insistem, mas algumas crianças como a Rosa e a Ivanilda dizem que sabem que "falta alguma coisa" e ficam em-burradas porque eu não digo. [...] a Ivanilda, muito crítica, só quer escrever "certo". Não queria se arriscar a escrever "como achava" e eu, conversando com ela, perguntei por quê. Ela disse que sabia que estava errado o jeito que escrevia e que eu aceitava porque era a professora dela. E perguntava: "Você acha, professo-ra, que depois (o ano que vem) vão deixar eu escrever como eu acho que deve ser?"

(Idem, ibidem.)

As crianças, na escola, não elaboram apenas a escrita em si, mas também o papel da escrita na sociedade, a função da escola em relação à socialização da escrita convencional, a expectativa social quanto a sua aprendizagem, os papéis sociais de professor e aluno, em jogo nas rela-ções de ensino...

Se a escola erra, como vimos anteriormente, quando não possibilita à criança expressar o que já conhece sobre a escrita, erra igualmente quando ignora ou torna secundário seu desejo de dominar de modo "efi-caz" a escrita convencional.

Como facilitar, então, o aprendizado da língua padrão?

Trazendo a escrita para dentro da sala de aula, trabalhando-a em suas funções e em todas as suas possibilidades; encorajando e ajudando as crianças a falar, escrever, divulgar sua produção; lendo e escrevendo para as crianças e com elas; expondo de forma organizada os trabalhos realizados e utilizando a escrita como recurso de organização; esclare-cendo e informando às crianças sobre a escrita, respondendo a suas per-guntas e também corrigindo-as.

Já vimos que o antigo hábito de assinalar o erro não resolve. Ele apenas evidencia o erro para a criança e para o professor. O erro assina-lado não dá informações sobre a escrita, não diz nada ao professor sobre os processos de elaboração da criança.

Se os diferentes erros se devem a diferentes razões, sua correção e superação exigem procedimentos também diferentes. Mas só chegamos a perceber isso quando fazemos da correção um momento de estudo dos processos de elaboração do conhecimento vivido pelas crianças com quem estamos trabalhando, quando buscamos discernir o que já domi-

nam e o que ainda não, que hipóteses estão formulando, em que lógica têm

sustentado sua produção. A análise dos acertos e dos erros, das adequações e

inadequações em relação à norma padrão indica os caminhos a seguir. E planejar o caminho a ser apontado a cada criança envolve um

complexo trabalho de comparar palavras, analisar e dar atenção aos seus

detalhes e às regularidades observadas entre elas, pesquisar e sistematizar

essas regularidades. Esse trabalho deve ser feito junto com as crianças, porque

envolve habilidades intelectuais e informações que elas ainda não dominam.

Ao fazê-lo, compartilhamos com elas tanto os problemas e as dificuldades que

o domínio da escrita nos coloca quanto as buscas de soluções. Vivida como linguagem, a escrita é código, técnica, significado, objeto

de conhecimento, forma de interlocução. É, enfim, um modo de agir, um

modo de dizer as coisas.

No exercício do dizer pela escrita as crianças aprendem e inter-nalizam

mais do que as relações e convenções lógicas de um sistema de representação.

Elas aprendem e internalizam modos de interação na sua realidade

sociocultural.

Sugestão de atividades

Exercitando a análise

1. Nas práticas cotidianas de sala de aula estão impressas as concepções que o professor tem a respeito do processo de alfabetização e de ela-boração da escrita pela criança.

• O que é ler e escrever? O que é alfabetizar?

• Para que se lê e se escreve? Para que se alfabetiza?

• Como a criança aprende e apreende a escrita? Como ela se alfabetiza?

• Com que e com quem a criança aprende a escrever e ler? Com que

e com quem ela se alfabetiza?

A seguir você tem um conjunto de episódios de sala de aula. Anali-se-os atentamente, procurando abordar cada uma das questões suge-ridas acima. Para realizar a análise, releia todos os capítulos referentes ao desenvolvimento da escrita na criança e todos os textos complemen-tares que foram trabalhados pelo seu professor.

Situação n? 1

(22.02.86) Amanhã será a reunião dos pais. Escrevemos jun-tos'o bilhete. Primeiro resolvemos o que iríamos escrever. Conta-mos quantas palavras e perguntei sobre a primeira: REUNIÃO. Escrevi e pedi que lessem. Qual a palavra que temos que escrever agora? AMANHA. E liam tudo, até completar o bilhete, reler e co-piar. No final sabiam todo o bilhete e identificavam as palavras separadamente. Alguns disseram que tinham contado tudo errado. É que no começo contaram nove palavras (oralmente): REUNIÃO AMANHÃ 9 HORAS. TEM AULA ATÉ 9 HORAS.

Quando viram escrito, discordaram: tem só 7 porque "número não é palavra, só quando fala".

(Situação retirada de um diário de classe de uma professora de 1!

série e transcrita por Telma Weisz no texto 'E na prática, a teoria é

outra?', publicado em Projeto Ipê — Isso se aprende com o Ciclo

Básico. São Paulo: SE/CENP, 1986.)

Situação n? 2

Era o nosso primeiro contato com as crianças. Para conhecer e guardar os nomes das crianças, fomos escrevendo o nome de cada uma na lousa, em letra script, seguindo a posição das crian-ças nas fileiras. A sétima criança da primeira fila disse que o nome dela não era 'daquele jeito'. Foi, então, à lousa para mostrar como se escrevia. Escreveu em cursivo. Mostramos, então, o que aconte-ceu quando se "juntavam" as letras do nome em script. Logo todas

as crianças queriam ir à lousa para mostrar como se escrevia o nome.

De repente havia mais de quinze crianças escrevendo na lousa (escrever

na lousa, em geral, não é permitido às crianças). Diante da perturbação

gerada (e, de certo modo, esperada) propusemos às crianças que cada

uma escrevesse o seu nome numa folha de papel e que aproveitassem a

oportunidade para desenharem e escreverem o que quisessem. Neste mesmo contexto, uma criança "emburra " por causa da

disputa de algum material e se recusa afazer qualquer coisa. Um adulto

se aproxima da criança e pergunta: — Por que você está bravo?

Nenhuma resposta.

— Você não quer conversar comigo?

A criança olha para o adulto sem responder. O adulto pega o lápis e começa a escrever enquanto pergunta: — Você quer que eu escreva alguma coisa para você?

— Não.

— Você quer saber o que eu estou escrevendo?

— Quero.

— Eu estou escrevendo a nossa conversa.

— O quê?

— Eu estou escrevendo o que a gente está falando. Você quer que

eu leia?

— Quero.

O adulto faz, então, a leitura do diálogo. A criança, ainda surpresa,

pergunta:

— Como é que sai igualzinho, tia?

O adulto faz uma nova leitura, acompanhando com o dedo o que

está escrito, e vai mostrando os travessões (quando cada um deles fala) e

os pontos de interrogação (quando cada um deles pergunta). Outras

crianças se chegam. A criança pega a folha, entusiasmada, e vai "lendo

", mostrando e explicando para os colegas o que está escrito na folha.

(Situação extraída do livro de Ana Luiza Smolka, A criança na

fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo.

São Paulo: Cortez/Ed. da Unicamp, 1988.)

Situação n? 3

Era também a classe de primeira série mais fraca da escola.

Nenhuma das trinta crianças cursou a pré-escola. A professora,

encorajada pela coordenação da escola, busca alternativas de trabalho

com as crianças. A situação: as crianças estavam desenhando. Uma das crianças

desenha um revólver e quer escrever "o revólver atira ". Pede ajuda à

professora, que vai soletrando e apontando cada letra no alfabeto

exposto numa das paredes da sala de aula. A criança continua: — Quero escrever: "o revólver mata o moço ".

Novamente o processo de soletrar junto, o aluno percebendo que ele "já sabia" escrever "o revólver".

Chegam à palavra "moço ". A professora fala "cê cedilha ",

procura no alfabeto e não encontra. De repente se dá conta de que não

se coloca o "cê-cedilha " no alfabeto. A criança não conhece, não sabe

qual éa letra, eaprofessora, então, escreve para a criança. A professora se vira para atender outros alunos. A criança que

desenhou o revólver fala: —... mata o moço, não. O ladrão. E escreve, sozinha, na sua folha de papel: OLETAN.

(Situação extraída do livro de Ana Luiza Smolka, A criança na

fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo.

São Paulo: Cortez/Ed. da Unicamp, 1988.)

2. Você já leu o livro Uma professora muito maluquinha, de Ziraldo? Esse

livro, publicado pela Editora Melhoramentos, além de ser uma leitura

prazerosa, oferece um rico material de análise. Após tê-lo lido, procure

caracterizar as concepções de escrita e de alfabetização que orientavam o

trabalho pedagógico da "professora maluquinha".

IVabalho de campo

Vamos dividir a classe em quatro grupos. O grupo 1 deve realizar entrevistas com professores alfabetizado-res,

prçcurando saber deles:

• De que mais gostam no seu trabalho?

• Quais as dificuldades que encontram?

• Como alfabetizam as crianças e que materiais utilizam nesse trabalho?

• O que pensam da correção da escrita da criança e como a realizam?

O grupo 2 deve realizar entrevistas com pais de crianças que estão sendo

alfabetizadas, procurando saber deles:

• O que esperam da escola em relação aos filhos?

• O que aprovam e o que desaprovam no trabalho dos professores de seus

filhos?

• Como acompanham a aprendizagem dos filhos?

• O que pensam do desempenho deles?

O grupo 3 deve realizar entrevistas com crianças em fase de alfabe-

tização, procurando saber delas:

• O que acham da escola?

• Do que gostam e do que não gostam no trabalho escolar?

• O que pensam sobre aprender a ler e a escrever na escola?

• Já sabiam ler e escrever antes de entrar na escola? O que sabiam?

• O que já aprenderam na escola?

• O que gostariam de aprender na escola?

• Quais são as facilidades e as dificuldades que têm com a escrita?

O grupo 4 deve realizar observações em classes de alfabetização, procurando apreender as condições e formas de interação vivenciadas no trabalho de escrita e leitura com as crianças.

Nesse caso é importante observar:

• os tipos de materiais com que as crianças trabalham;

• como elas exploram, manipulam e organizam esses materiais;

• o acesso que as crianças têm (ou não) a material escrito ou informa-tivo sobre a escrita (por exemplo, o alfabeto) dentro da sala de aula;

• os tipos de atividades propostas às crianças e como elas partici-pam dessas atividades;

• com que finalidade se solicita à criança que escreva e como ela escreve (sozinha, em grupos, com o auxílio do professor, faz cópias, ditado, etc);

• o que acriança escreve e para quem escreve (para si, para os outros, etc);

• a que tipo de material de leitura a criança tem acesso (cartilha, livros escolares, livros de história, poesias, etc.)

• quem lê para ela, o que lê e em que condições;

• em que condições ela mesma lê (o que, como e para quem);

• em que intensidade o desenho e a brincadeira são explorados em sala de aula, e como a criança os explora;

• como a leitura e a escrita da criança são corrigidas e que reações essa correção desperta (indiferença, desânimo, temor, alegria, vontade de retomar o trabalho, questionamento, etc).

Organizando e analisando os dados

Cada grupo deve reunir os dados obtidos e fazer a leitura atenta dos registros. E, a seguir, analisar os dados, procurando identificar o que há em comum e de diferente entre eles. Depois, agrupar, definir os critérios desses agrupamentos e elaborar uma síntese deles para a apresentação aos outros grupos.

Discutindo os dados

Reunidos os quatro grupos, vamos procurar cruzar o conjunto de dados obtidos, tentando ver nas respostas das crianças, dos professores, dos pais e no trabalho de sala de aula os pontos em que há convergên-cias e aqueles em que há divergências.

Vamos registrar as convergências e divergências constatadas e buscar nas leituras e no estudo que fizemos sobre a relação da criança com a escrita elementos que nos ajudem a explicar e a problematizar esses dados.

Analisando sua própria experiência

Prepare uma aula de regência com a ajuda de suas professoras de Prática de Ensino e de Metodologia da Língua Portuguesa e desenvol-va-a numa classe da V. série.

Registre tudo o que você planejou e trabalhou com as crianças. Descreva o material que utilizou e como o empregou em sua aula. Re-gistre também as dificuldades que você sentiu como professora.

Anote os modos como as crianças participaram em sua aula: as reações, perguntas e comentários feitos por elas, as dificuldades que elas sentiram, as solicitações que dirigiram a você.

Peça à professora da classe em que você desenvolveu a regência que lhe permita ficar com a produção escrita das crianças realizada em sua aula.

Em seguida analise sua proposta de trabalho e a produção das crianças, seguindo os tópicos de observação destacados no exercício 2 indicado para o grupo 4.

Em relação à produção das crianças, procure prestar atenção não só ao modo como escrevem, mas também ao conteúdo de sua escrita. O que você corrigiria nesses trabalhos e como o faria? Como você os de-volveria às crianças? Que trabalho desenvolveria com elas a partir dos dados obtidos nessa correção?

Finalmente, tente olhar para sua experiência tendo como ponto de partida as perguntas relacionadas no exercício 1. Elabore um relato des-sa experiência respondendo a duas questões: O que você aprendeu com as crianças? O que as crianças aprenderam com você?

Depois de todo esse trabalho, que tal montar uma mostra da produ-ção das crianças e das futuras professoras? Que tal reunir os relatos num pequeno volume para que eles possam ser lidos pelos colegas e pelos professores de outras disciplinas?

Sugestão de leituras

CAGLIARI, L. C. A ortografia na escola e na vida. In: Projeto Ipê — Isto se aprende com o Ciclo Básico. São Paulo: SE/CENP, 1986.

FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

LEAL, A. Fala, Maria Favela. São Paulo: Ática, 1987. SMOLKA, A. L. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como

processo discursivo. São Paulo: Cortez, 1988.

Bibliografia

ANDRADE, C. D. de. Procura da poesia. In: _________ . A rosa do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945. ARIES, P. História social da família e da

criança. Rio de Janeiro: Zahar,

1978. AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo — de Piaget a Emilia Ferreiro.

São Paulo: Ática, 1994. BAKHTIN, M. Marxismo e füosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,

1986. BARBOSA, José J. Alfabetização e leitura. São Paulo: Cortez, 1991. BEE, H. A criança em desenvolvimento. São Paulo: Harper e Row do

Brasil, 1977. BRANDÃO, C. R. Lutar com a palavra. Rio de Janeiro: Edições Graal,

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Agradecimentos

A Ana Luiza e à Cecília, com quem aprendemos a olhar a

criança e a estudar o seu desenvolvimento. Pela leitura atenta,

pelas sugestões, pela oportunidade de escrever este livro.

A Adriana, que, refletindo sobre as relações entre teoria e

prática, inspirou várias passagens deste texto.

A Silvinha, pelos episódios e por tudo o que nos ensinou, com

seu trabalho, sobre o desenhar da criança.

Ao Jejferson, pela sugestão — inspirada — do título.

A todas as professoras que compartilharam conosco as

belezas, os sobressaltos e as surpresas de seu fazer cotidiano na

sala de aula.

A Cristina, pela preciosidade dos desenhos que nasceram de

seu trabalho apaixonado e comprometido com as crianças.

As alunas do curso de Magistério e de Pedagogia, com quem

trabalhamos — ensinando e aprendendo — e que souberam ver e

compartilhar alguns dos mais belos episódios que relatamos neste

texto.

As mães que, encantadas, nos contaram histórias sobre seus

filhos.

Ao Wilson e à Vitória, da Atual Editora, pela forma como

acolheram este trabalho, pela possibilidade de diálogo, pelas

sugestões.

A Beth e ao Bernardo, amigos queridos, pela força, pelo apoio,

pela torcida. Pelo modo sempre especial de se colocarem ao nosso

lado.

As nossas famílias, pela solidariedade e pela paciência durante

o trabalho de elaboração deste livro.

As crianças que, falando, brincando, desenhando, escrevendo e

sendo, nos brindaram com os fragmentos do cotidiano que dão vida

e movimento a este texto.

Créditos de abertura de unidades

Unidade 1 Unidade 2

Stock Photos

Leonardo Carneiro/Abril Imagens

Unidade 3 Unidade 4

Karine Dilthey/Keystone

Bill Binzen/ Fran Heye Asociates

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