roda, paulo eduardo. 2007

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SEMINÁRIO DIOCESANO DE SÃO CARLOS Paulo Eduardo Roda A LIBERDADE NO INTERIOR DA ESCRAVIDÃO: A LIBERDADE DA CONSCIÊNCIA, A PARTIR DA DIALÉTICA HEGELIANA DO SENHOR E DO ESCRAVO, NA OBRA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO SÃO CARLOS 2007

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SEMINÁRIO DIOCESANO DE SÃO CARLOS

Paulo Eduardo Roda

A LIBERDADE NO INTERIOR DA ESCRAVIDÃO:

A LIBERDADE DA CONSCIÊNCIA, A PARTIR DA

DIALÉTICA HEGELIANA DO SENHOR E DO ESCRAVO,

NA OBRA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

SÃO CARLOS

2007

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PAULO EDUARDO RODA

A LIBERDADE NO INTERIOR DA ESCRAVIDÃO:

A LIBERDADE DA CONSCIÊNCIA, A PARTIR DA

DIALÉTICA HEGELIANA DO SENHOR E DO ESCRAVO,

NA OBRA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

Trabalho de Conclusão do Curso de Filosofia do Seminário Diocesano de São Carlos, como parte dos requisitos para aprovação final.Orientador: Profº. Diác. Wagner Luís Lopes Pedroso.

SÃO CARLOS

2007

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PAULO EDUARDO RODA

A LIBERDADE NO INTERIOR DA ESCRAVIDÃO:

A LIBERDADE DA CONSCIÊNCIA, A PARTIR DA

DIALÉTICA HEGELIANA DO SENHOR E DO ESCRAVO,

NA OBRA FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

Trabalho de Conclusão do Curso de Filosofia do Seminário Diocesano de São Carlos, como parte dos requisitos para aprovação final.

21 de novembro de 2007

Profº. Diác. Wagner Luís Lopes Pedroso

Seminário Diocesano de São Carlos

Profº. Ms. Pe. Márcio Coelho

Seminário Diocesano de São Carlos

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A todos que vivem o ardor de sua história.

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AGRADECIMENTO

Ao Absoluto.

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“...o espírito é livre na sua necessidade, encontrando apenas nela a sua liberdade, do mesmo modo que a sua necessidade repousa apenas na sua liberdade.”

G.W.F. Hegel

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RESUMO

Palavras-chave: devir, dialética, consciência, espírito, absoluto, servidão, trabalho e liberdade.

A dialética do Senhor e do Escravo de Hegel representa, segundo uma metáfora, uma

racionalidade dialética que faz o Universo funcionar como um grande pensamento movendo-se pela

tríade: tese, antítese e síntese. Tudo na filosofia, inclusive no sistema hegeliano, bem como na

história, move-se a partir dessa tríade. A dialética é a história do espírito, é a contradição do

pensamento que parte de uma afirmação à negação, sem que o negado seja excluído, pois o mesmo

permanece dentro da totalidade. Assim, a dialética é o motor da racionalidade, é o devir da razão. O

grande questionamento deste presente trabalho se encontra a partir da reflexão dessa dialética que,

representada pela parábola do Senhor e do Escravo, procurará demonstrar o engodo ocorrido no

processo formativo da consciência e conseqüentemente, a liberdade. A metáfora mostrará que, a

partir da tríade já mencionada, para que haja a verdadeira reflexão, são necessários os momentos do

medo e do trabalho, ou do serviço em geral, que exigem a disciplina e a obediência.

Todo o sistema hegeliano, ao se mover dialeticamente, descreve o movimento do Absoluto

que atinge seu ápice a partir da superação da dicotomia entre o subjetivo e o objetivo. Porém, para

que isso aconteça, é necessário o devir. No primeiro momento, o Absoluto ainda é Idéia (tese) e se

divide em ser, essência e conceito; e, por ser em-si, tem a realidade, mas ainda não tem a existência.

No segundo momento, ocorre a manifestação do Absoluto, ou seja, a sua exteriorização. Agora a

Idéia está fora-de-si, é Natureza (antítese) que se divide em mecânica, física e orgânica. Esta é a idéia

manifestada para ter existência. E, por fim, no terceiro momento, ocorre o retorno do Absoluto que

passa, agora, a ser-para-si. Esse é o momento do Espírito (síntese), dividido em objetivo, subjetivo e

absoluto. Agora, tem-se a Natureza junto com a Realidade, ou seja, a Idéia. Conclui-se, assim, o

sistema hegeliano, cujo Absoluto passa a ser conhecido, goza de si mesmo e adquire a verdadeira

liberdade.

Contudo, quando se fala dialeticamente de consciência, fala-se de espírito, de absoluto, de

indivíduo, de nação. Na dialética do Senhor e do Escravo estão incluídos três significados: o primeiro

é filosófico, cuja consciência experimenta-se a si mesma através das sucessivas formas de saber que

serão assumidas e julgadas pela Ciência e para Filosofia; o segundo é cultural, em que o homem

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ocidental moderno fará de sua vida uma tarefa de decifração do enigma de uma história que se

desenvolve na luta por um sentido, por uma liberdade; e por fim, o terceiro, que é histórico, ou seja,

a junção da filosofia com a cultura, em que o indivíduo possui a necessidade de percorrer a história

da formação do seu mundo de cultura como caminho que permitirá o seu formar-se para a Ciência.

Todos esses significados se entrecruzarão na dialética do Senhor e do Escravo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................01

1 CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO..........................................................

.............................................................................................................................................04

1.1 Contexto histórico....................................................................................................04

1.1.1 Os germânicos: a origem da Alemanha...................................................................04

1.1.2 Reforma Protestante................................................................................................06

1.1.3 A formação da Prússia.............................................................................................08

1.1.3.1 A guerra dos déspotas..............................................................................................09

1.1.4 A Revolução Francesa.............................................................................................10

1.1.5 O Império napoleônico............................................................................................12

1.1.5.1 A derrocada napoleônica.........................................................................................13

1.2 Contexto filosófico..................................................................................................13

1.2.1 O Iluminismo...........................................................................................................14

1.2.2 Immanuel Kant........................................................................................................16

1.2.3 Formação e peculiaridade do movimento romântico...............................................17

1.2.3.1 O Romantismo.........................................................................................................19

1.2.4 O Idealismo..............................................................................................................21

1.2.4.1 Fichte: o Idealismo ético..........................................................................................21

1.2.4.2 Schelling: o Idealismo objetivo...............................................................................23

1.2.4.3 Crítica a Fichte e a Schelling: a entronização do Idealismo lógico.........................24

1.2.5 Idealismo lógico......................................................................................................25

2 VIDA E PRINCIPAIS OBRAS...............................................................................26

2.1 Vida e desenvolvimento..........................................................................................26

2.2 Os escritos de Jena...................................................................................................28

2.3 Escritos da maturidade.............................................................................................31

2.4 A Fenomenologia do espírito..................................................................................33

2.5 A Ciência da lógica..................................................................................................34

2.6 A Enciclopédia das ciências....................................................................................35

2.7 Princípios da filosofia do direito.............................................................................35

2.8 O hegelianismo........................................................................................................37

3 A FILOSOFIA DE HEGEL....................................................................................38

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3.1 A história e a filosofia em Hegel.............................................................................38

3.2 O processo triádico do espírito ...............................................................................40

3.2.1 Os três grandes momentos do devir ........................................................................41

3.3 A Lógica: filosofia do ser........................................................................................42

3.4 A Filosofia da natureza............................................................................................44

3.5 O Espírito.................................................................................................................46

3.5.1 O espírito subjetivo..................................................................................................46

3.5.2 O espírito objetivo...................................................................................................47

3.5.3 O espírito absoluto...................................................................................................49

4 A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO.................................................................51

4.1 Os termos fenômeno e consciência em Hegel.........................................................51

4.2 A Fenomenologia no processo histórico: o espírito é história.................................53

4.3 A Fenomenologia do espírito: significado e finalidade...........................................55

4.4 As etapas do itinerário fenomenológico..................................................................58

4.4.1 A 1ª Etapa: a Consciência........................................................................................59

4.4.2 A 2ª Etapa: a Autoconsciência.................................................................................60

4.4.3 A 3ª Etapa: a Razão.................................................................................................62

4.4.4 A 4ª Etapa: o Espírito..............................................................................................64

4.4.5 A 5ª Etapa: a Religião..............................................................................................66

4.4.6 A 6ª Etapa: o Saber Absoluto: a consciência a caminho do Absoluto.....................68

5 A DIALÉTICA HEGELIANA................................................................................70

5.1 Analíticos e dialéticos..............................................................................................70

5.2 Origens da dialética: a diferença entre a dialética hegeliana e a grega...................72

5.3 A razão na história...................................................................................................75

5.4 A idéia absoluta.......................................................................................................78

5.5 O negativo como momento dialético que leva ao positivo......................................79

5.6 A estrutura triádica do processo dialético: tese, antítese e síntese..........................80

5.6.1 Tese: o 1º movimento..............................................................................................80

5.6.2 Antítese: o 2º movimento........................................................................................81

5.6.3 Síntese: o 3º movimento..........................................................................................81

6 O SENHOR E O ESCRAVO..................................................................................83

6.1 A parábola do Senhor e do Escravo na história.......................................................83

6.2 O episódio dialético do Senhor e do Escravo em Hegel..........................................85

6.3 O momento da formação da autoconsciência: a consciência da vida......................86

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6.3.1 O desejo...................................................................................................................87

6.3.2 A vida......................................................................................................................88

6.3.3 O outro eu................................................................................................................89

6.3.4 O reconhecimento....................................................................................................90

6.4 A dialética do Senhor e do Escravo: relação com o outro na constituição da iden-

tidade...................................................................................................................................91

6.4.1 A luta de vida ou morte...........................................................................................92

6.4.2 A dominação............................................................................................................93

6.4.2.1 O silogismo da dominação .....................................................................................94

6.4.3 A escravidão: o medo e a formação.........................................................................95

6.4.4 O trabalho ...............................................................................................................

.............................................................................................................................................96

CONCLUSÃO.....................................................................................................................98

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................100

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INTRODUÇÃO

Diante dos inúmeros assuntos filosóficos, dos inúmeros sistemas apresentados pelos

filósofos que, ainda hoje, nos causam questionamentos, escolhi, creio eu, o mais interessante, o mais

sistemático e enigmático deles para ser abordado. Foi justamente a filosofia de Hegel, por apresentar

a dialética do Senhor e do Escravo, que me despertou a curiosidade e o desejo de, nela, obter um

maior aprofundamento e descobrir qual a sua utilidade, bem como o seu motor e ponto

fundamental.

Inúmeros especialistas em Hegel apresentam-no como o grande último sistematizador na

história da filosofia, por sua audácia e por conciliar filosofia e história num único sistema. E mais,

afirmam que pensar dialeticamente é compreender a simultaneidade contida no devir e favorecer

sempre o pensamento pensante. Tamanha foi sua importância na história da filosofia que, através de

seu sistema, Hegel abarcou o maior número de assuntos ou conteúdo possíveis; assuntos esses que

se desenvolvem nos moldes de uma dialética. Por ser a dialética o centro motor de seu sistema,

interessei-me em desenvolver um estudo sobre essa dialética. Ela fora ilustrada ou metaforizada pelo

próprio filósofo com as figuras do Senhor e do Escravo. Neste trabalho essas figuras aparecerão com

iniciais maiúsculas, destacando-se.

O objetivo deste trabalho é, a partir dessa dialética, compreender como Hegel apresentou o

conceito de liberdade da consciência que, percorrendo o itinerário fenomenológico, alcançará o

absoluto. Esse objetivo levará o indivíduo a uma compreensão total do sistema hegeliano, que esta

pesquisa reunirá numa importante síntese. A todo o momento, o pensamento hegeliano, feito uma

dialética, retomará as figuras já existentes e as transformará em conceitos. Por certo, o conceito de

liberdade perpassará toda a filosofia de Hegel e, será necessário, para a continuidade do percurso da

consciência, do espírito, do absoluto e do indivíduo.

O presente trabalho pretende demonstrar se a hipótese dessa verdadeira liberdade da

consciência é fruto de um processo que se dará a partir do medo, da submissão e do trabalho

realizado por uma delas ou não. A partir disso, ele terá grande proveito a um indivíduo que, por sua

história e através dela, tiver a capacidade de adquirir a verdadeira liberdade e, conseqüentemente,

contemplar o absoluto. Esse absoluto só poderá ser contemplado à medida que se atingir a arte, a

religião e a filosofia. Esses são os três momento da auto-consciência, ou seja, da verdadeira

liberdade.

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Inicialmente, apresentarei o contexto histórico e filosófico em que Hegel se situa e dialoga.

Esse capítulo é estritamente importante, tendo em vista a aproximação da filosofia com a história,

promovida por Hegel na intenção de aplicar seu raciocínio para conceber uma história em etapas.

Etapas essas que se caracterizarão pela superação do momento anterior. É a história e a filosofia

que, ao caminharem juntas, se entrelaçam.

Em seguida, como segundo capítulo, apresentarei a vida e as principais obras de Hegel. Obras

essas que, desde sua juventude, principalmente a partir da Reforma Protestante, recolhem

fundamentos para o desenvolvimento de seus escritos, suas obras e a idealização de seu sistema.

Com isso, Hegel ganhou o universo da história e, por sua audácia no pensamento, marcou o início do

pensamento moderno.

A partir da apresentação desses dois importantes momentos, no terceiro capítulo,

discorrerei sobre sua filosofia: complexa, porém atraente; enigmática, porém aplicável. Embora se

trate de uma filosofia ímpar, Hegel busca questionar as filosofias de Kant e Fichte e, fundamentar

melhor a de Schelling. Notar-se-á que toda sua filosofia, todo o seu sistema, desenvolvido para a

compreensão do absoluto, bem como a tríade principal do espírito e suas subdivisões, inclusive a

Fenomenologia do espírito, são triadicamente divididas e aplicadas ao movimento dialético. O

interessante é a retomada dos conceitos, que antes eram figuras, para a compreensão de novos.

O capítulo seguinte, o quarto, trata da obra fundamental de Hegel e da obra base deste

trabalho. Nela Hegel apresenta as etapas do itinerário fenomenológico. Será a partir dessas etapas

que a compreensão de seu sistema se tornará mais clara, pois todo o trajeto percorrido e aplainado

pela consciência será percorrido posteriormente pelo espírito e, conseqüentemente, pelo indivíduo

enquanto caminheiro de sua história. É nessa trajetória que uma pedra no caminho aparecerá:

acontecerá a luta pelo reconhecimento entre as consciências e, a partir daí, a aquisição da verdadeira

liberdade.

Posteriormente, no quinto capítulo, antes de adentrar o tema principal e questionador deste

trabalho, abordaremos a dialética de Hegel e sua estrutura. Fundamentando o sistema hegeliano, a

dialética representa os momentos de um devir. Esse movimento também relembra a história na

dinâmica de suas sociedades que reconhece a partir de cada momento – seja tese, seja antítese –

pronta a tornar-se parte de todo um complexo.

Finalmente, como sexto e último capítulo, haverá a abordagem do conceito de liberdade da

consciência, que não terá seu momento específico, pois, segundo Hegel, ela se encontra na base de

toda a reflexão filosófica. Nesse capítulo veremos que a consciência-de-si, que é desejo, só chegará a

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sua verdade ao encontrar outra consciência-de-si. Essa dialética conduzirá, da luta pelo

reconhecimento à oposição entre Senhor e Escravo, e daí à liberdade. Essa é a dialética do

reconhecimento, que visa a liberdade, atribui-se o suspender, em seus três significados, ou seja, a

negação de uma determinada realidade, a conservação de algo essencial dessa realidade e a

elevação a um nível superior. Assim, pelas figuras do Senhor e do Escravo, a dialética de Hegel é

explicada, o seu sistema é compreendido, a verdadeira liberdade é alcançada, e a filosofia, aplicada.

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1 CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO

A história é indispensável a Hegel para a compreensão da filosofia e do absoluto, pois a

história e a filosofia se entrecruzam, caminham juntas, fazem-se necessárias uma à outra. Dessa

forma é explicada uma de suas máximas ao afirmar que o real é racional e que o racional é real. O

presente capítulo abordará, em uma visão panorâmica, mas minuciosa e detalhada, os motivos que

fizeram de Hegel o maior e, consideravelmente, o último sistematizador da filosofia.

1.1 CONTEXTO HISTÓRICO

Seria impossível compreender a filosofia de Hegel sem antes se aprofundar na história do

povo germânico, conseqüentemente, na origem da Alemanha. Depois de muitas conquistas, o povo

germânico, como império, desencadeou duas grandes revoluções na história, apresentadas por

Hegel, naquela época, como moldes a serem seguidos e extremamente essenciais para a obtenção

da verdadeira racionalidade. As revoluções foram: a Reforma Protestante, considerada como o

princípio para a transformação do mundo, capaz de livrar o homem de uma consciência ingênua; e a

Revolução Francesa, que criou condições para o desenvolvimento do Estado de Direito. Nessa, Hegel

considerou Napoleão Bonaparte o grande expoente da Revolução julgando ser a manifestação da

verdadeira razão. Como a história também faz parte do processo dialético, apresentado pelo filósofo,

Hegel viu a derrocado do Império napoleônico. Contudo, define a manifestação da razão, ou do

Absoluto, em três momentos na história: no Império oriental, no Império romano e, principalmente,

no Estado germânico. Foi através dessa tríade dialética histórico-filosófica com tese, antítese e

síntese que Hegel elaborou o seu sistema.

1.1.1 OS GERMÂNICOS: A ORIGEM DA ALEMANHA

Germânia significa homem de guerra ou homem de lança. Nos primórdios os germanos eram

povos bárbaros, organizados em tribos, com diferentes culturas. Essas tribos eram, entre outras, os

anglos, os saxões, os visigodos, os ostrogodos, os vândalos, os francos, os suevos, os burgúndios, os

lombardos, os alamanos e os hérulos. Eles viviam em florestas, fora do Império romano, e não

conheciam o sistema organizacional de uma cidade. Tudo o que se conhece sobre esses povos foi

escrito pelos próprios romanos. A organização social dos povos germânicos baseava-se na família,

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tendo no pai a figura central, com poder sobre os outros membros. A cada cem famílias, que viviam

em uma denominada região, formava-se uma aldeia. As decisões, nessa aldeia, eram tomadas em

assembléias de homens livres. Além de um rei, que mantinha o poder militar e político, existiam os

nobres, os homens livres, os ex-escravos (que haviam conquistado sua liberdade) e escravos. As leis

eram baseadas nos costumes; a religião, politeísta, e as divindades, associadas a fenômenos da

natureza. Séculos antes de invadirem o Império Romano suas economias já eram sedentárias,

baseando-se nas trocas comerciais entre aldeias.1

Os germanos penetraram no Império romano via migrações e via invasões. As migrações

ocorreram nos séculos II e III; as populações germânicas se deslocaram em grande massa, de forma

pacífica, para o território romano. A entrada no território romano foi possível graças a acordos com o

governo, o qual lhes garantiria terras para que se estabelecessem. Muitos guerreiros germânicos

ingressaram no exército romano e aos poucos foram se integrando na sociedade romana por meio

do casamento. Já as invasões, ocorridas entre os séculos IV e VI, correspondem à penetração no

Império romano de forma violenta. Os hunos (povo de origem tártaro-mongol) aniquilaram os

ostrogodos e invadiram os visigodos – povos germânicos. O chefe dos visigodos, depois de ter pedido

permissão ao imperador romano, Valente, para entrar com seu povo em terras romanas, atacaram e

saquearam cidades, dando início a uma série de invasões.2

Por ocasião das invasões, Odoacro, chefe dos germanos, depôs o imperador romano em 476.

O Império romano foi desintegrado. Essa deposição ficou conhecida como a queda do Império

romano do Ocidente. Esse foi considerado o marco divisório entre a Antiguidade e a Idade Média.

Com isso, inúmeros povos germânicos dominaram diferentes regiões da Europa. A religião cristã dos

romanos foi adotada pela maioria dos germanos. O latim, que foi preservado, e as línguas

germânicas deram origem às línguas inglesa, neolatinas e alemã. Na organização política houve

muitas mudanças, pois os germanos se organizavam tradicionalmente em forma de tribos e não

como um império centralizado e hierarquizado como Roma. Somente os francos (um dos povos

germânicos) conseguiram se estruturar de forma diferente e expandir seus domínios.3

Gerações e gerações se passaram e os povos germânicos não se constituíram uma nação. O

motivo era devido à precariedade da unificação política. A origem da nação alemã e também da

francesa se deu pela constituição do grande Estado franco merovíngio com as dinastias Merovíngio e

Carolíngia e, posteriormente, sua conversão ao cristianismo. Após a morte de Carlos Magno, em 814

d.C., o império, antes unído, começou a se desintegrar gerando o império ocidental e o império

1 Cf. COTRIM, Gilberto. História global, Brasil e geral. p. 116.2 Ibidem, p. 116-117.3 Ibidem, p. 117-118.

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oriental. A partir do momento em que a palavra Deutschland (Alemanha) passou de uma simples

classificação de língua à uma qualificação de um povo, a Alemanha, então como nação, adquiriu uma

história própria. O domínio franco, que foi marcado por constantes disputas políticas entre a realeza

e a nobreza proprietária de terras, encerrou-se em 911.

O reino gernâmico foi fundado pelos duques da Francônia, da Saxônia, da Suábia e da

Baviera, com a extinção da dinastia Carolíngia. Henrique I, da Saxônia, foi eleito rei por outros três

duques e sucedido por seu filho Oton I, em 936. Como o pai, Oton I protegia a Igreja e, em troca,

contava com o apoio político do papa. Essa aliança se consolidou em 962, quando Oton I foi sagrado

Imperador em Augsburgo, pelo papa João XII. Através desse ato, que acentuaria a dominação da

Igreja pelo Estado, nasceu o Sacro Império romano-germânico que perdurou até 1806. Oton I tinha

os bispos e abades como verdadeiros suportes de seu Império, por serem responsáveis pela maior

parte do exército, bem como pela contribuição dos impostos. Ao controlar os bispos e também o

papado, intervindo politicamente na Igreja, o imperador Oton I e seus sucessores neutralizavam o

poder dos duques germânicos. A Igreja, ao caminhar junto com a política, gerou a corrupção do alto

clero – bispos e abades – que influenciaram negativamente o baixo clero – monges e padres – que

vieram a viver de modo mundano a ponto de abandonar a regra religiosa.

O Império alemão, iniciado pelo duque Conrado, em 911, resistiu até 1806. Suas dinastias

sofreram apogeus e declínios, passando por diversas fases. Os dois maiores destaques desse Império

foram: a Reforma, ocorrida no século XVI, ocasionada por Martinho Lutero (monge agostiniano

nascido na Alemanha), seguida de conflitos sociais e guerras religiosas, e, no século XVII, o apogeu da

Prússia, Estado do território alemão que se destacou entre todos por tornar-se uma potência militar.4

1.1.2 A REFORMA PROTESTANTE

O mundo germânico não é apenas o mundo alemão; engloba muito mais. Além de todo o

período que vai do Império romano até a época moderna, Hegel denomina como mundo germânico

a Holanda, a Escandinávia e a Grã-Bretanha e o estendeu também com o desenvolvimento da Itália,

devido a Reforma Protestante, por considerá-la o acontecimento mais importante desde a época

romana e com o desenvolvimento da França, através da Revolução Francesa.5

Em 1517, Martinho Lutero (baixo clero, professor de teologia em Wittenberg), revoltado com

a venda de indulgências, pela Igreja Católica, reformula a doutrina cristã, principalmente acerca do

4 Cf. ARRUDA, José Jobson de Almeida; PILETTI, Nelson. Toda a História: história geral e história do Brasil. p. 101-105.

5 Cf. SINGER, Peter. Hegel. p. 33.

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mistério da salvação. Segundo ele, o indivíduo alcança a salvação unicamente pela fé e não por suas

boas ações. Fixa, na porta da catedral de Wittenberg, uma relação com 95 teses. Nelas, denunciava

os abusos cometidos pelo clero. Foi excomungado em 1520 e condenado também pelos partidários

do imperador Carlos V. Contudo, as idéias de Lutero foram aceitas pelos príncipes germânicos, que

tinham um profundo interesse em se libertarem da interferência do papa e do imperador:

almejavam uma liberdade política.

A Reforma Protestante causou uma grande crise na cristandade, representando a grande

transformação religiosa da época moderna. Com ela a estrutura clerical e a doutrina da salvação

foram alteradas. O descontentamento, que deu origem à Reforma, está ligado ao desenvolvimento

comercial. Esse desenvolvimento era barrado pela Igreja, pois os juros, os lucros, não eram aceitos

pela instituição. Da mesma forma, em grande evidência, distinguiam-se os senhores e os escravos

(camponeses). Os senhores feudais, cada vez mais ricos, e os camponeses, impossibilitados, também

pela Igreja, de uma ascensão social. De certa forma, a Igreja estava envolvida ideologicamente pelo

feudalismo. A crise no feudalismo e o interesse de reduzir o poder da Igreja deram forças ao

movimento da Reforma.6

Devido à corrupção do clero e sua inserção na política, Hegel classifica a Igreja,

principalmente na Idade Média, como um tempo noturno e agitado; um tempo cuja razão individual

era sufocada por uma certa alienação, à instituição governamental e, principalmente, religiosa. Nessa

época o verdadeiro espírito religioso estava desvirtuado, e a verdadeira e livre contemplação do

absoluto não acontecia. O homem vivia numa obediência cega ou abstrata, não concreta (conforme

irá mostrar Hegel em seu sistema filosófico, que será abordado no terceiro capítulo deste trabalho,

uma espécie de tese ou consciência ingênua). E foi justamente com a Reforma, denominada luz do

novo dia, que o homem se libertou. A Reforma só aconteceu graças à honestidade e à simplicidade

de coração do povo germânico. Embora a Reforma Protestante tenha ocorrido por causa da

corrupção do clero e suas exigências a uma obediência cega a ritos, cerimônias, incorporação da

divindade ao mundo material, ela foi considerada como necessária à obtenção da verdadeira

liberdade do espírito religioso.7

Antes da Reforma, a atenção do ser humano fixava-se nos bens materiais relacionados ao

dinheiro, principalmente com à venda de indulgências. Com o êxito da Reforma, conquistada pelo

povo germânico, rompendo com a pompa e cerimoniais da Igreja Católica Romana, afirmou-se a

liberdade de cada ser humano. Cada indivíduo possuía uma liberdade espiritual. A relação com

6 Cf. ARRUDA, José Jobson de Almeida; PILETTI, Nelson. Toda a história: história geral e história do Brasil. p. 163-164.

7 Cf. SINGER, Peter. Hegel. p. 33.

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Cristo, com Deus, era direta, as intermediações institucionais. Contudo, a Reforma é muito mais que

um desbancar ou desmascarar o rito religioso romano; ela tornou-se a afirmação da honestidade e

da simplicidade de coração frente a corrupção do clero. Segundo Hegel, fica bem claro que a

consciência individual, sendo livre por natureza, possua a potência ou o devir da verdade por meio

da razão para adquirir a salvação e a contemplação do absoluto. É com a Reforma que o princípio

para a transformação do mundo fica evidente. Cada ser humano deve usufruir de sua racionalidade

individual, pois tem a capacidade de julgar a verdade para se tornar livre. E não só o indivíduo, mas

também todo o governo em geral, bem como as instituições, devem-se adequar ao mundo de seres

espirituais livres, usando dos princípios gerais da razão. Dessa forma, o indivíduo só será livre

plenamente quando o próprio Estado adquirir a racionalidade para que, reconciliado com o

indivíduo, construa a sua verdadeira história.8

1.1.3 A FORMAÇÃO DA PRÚSSIA

Frederico Guilherme (1657-1713), mais conhecido como o grande-eleitor, foi o fundador do

despotismo ou governo absoluto na Prússia. Exerceu uma completa soberania de 1701 a 1713,

transformando seu exército em uma poderosa força militar. Centralizou o governo e aboliu as

assembléias que reuniam diversas representações. Suas idéias e metas continuaram a ser

desenvolvidas por seu neto, Frederico Guilherme I (1713-1740), como novo rei da Prússia. Sua

grande paixão pelo exército chegou a tal ponto que precisou vender a mobília do palácio para

investir em mais soldados, e soldados de qualidade; aqueles que não podia comprar, raptava-os. Esse

empenho resultou na duplicação de contingentes. Esses soldados ficaram conhecidos como Gigantes

de Potsdam.9

Frederico Guilherme II, filho do anterior, consolidou seu império durante 46 anos; foi o

célebre déspota, ou o déspota esclarecido. Governou a Prússia de 1740, após a morte de Frederico I,

até 1786. Conhecido como Frederico, o Grande, era adepto fervoroso das doutrinas reformadoras da

nova filosofia racionalista. Considerava-se o primeiro dos servos do Estado. Por ser um ótimo

administrador, tornou a Prússia o Estado mais bem governado da Europa. Aboliu as torturas aos

escravos, investiu na educação, na indústria e na agricultura, a qual atraiu mais de trezentos mil

imigrantes. Era a favor da liberdade religiosa. Porém, fez algumas alianças sangrentas em vista da

melhoria de seu Estado. Uma delas foi o acordo com Catarina da Rússia no desmembramento da

8 Ibidem, p. 34-35.9 Cf. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 534-535. v. 1.

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Polônia.10 Contudo, Frederico, ao proclamar os direitos do cidadão e a igualdade de todos, atingiu as

estruturas do Estado e, principalmente, de toda a sociedade.

Mesmo com a proclamação dos direitos do cidadão, a Prússia mantinha um olhar na

modernidade e outro ainda no pré-moderno de classificação social. O Direito Geral do Estado

Prussiano de 1794 trazia, por um lado, sobre a igualdade e o poder de todas as pessoas que,

mesmo sendo pequenas (inferiores), poderiam processar os grandes (superiores); e por outro,

a fixação das classes nobres, burgueses e camponeses. A Prússia só se reergueu após as

reformas realizadas, iniciadas em 1807, retomando os princípios essenciais de liberdade e

igualdade. Para entender esse conflito, usufruíram de um parágrafo das aulas sobre a história

da filosofia de Hegel, considerado o filósofo do Estado prussiano, que comentava que todos

os seres pensantes deveriam se alegrar e comemorar essa época, pois, segundo o filósofo, a

reconciliação do mundo com o espírito absoluto tinha sido alcançada.11

1.1.3.1 A GUERRA DOS DÉSPOTAS

Os primeiros conflitos gerados e já comentados foram religiosos e ocorreram na Europa. Os

conflitos ou as guerras assumem o caráter de luta pela supremacia a partir de 1600 com os

poderosos déspotas das grandes nações. Os que mais sofriam com a luta pelo engrandecimento

dinástico eram os povos. As duas dinastias, Habsburgos, situada na Áustria, e a dinastia Bourbons,

situada na França, entraram em conflito no século XVII, ressaltando o poder da luta armada. Desde o

tempo de Carlos V (1519-1556), uma parte dos Habsburgos governava a Espanha, o Reino das Duas

Sicílias e Milão. A ambição dos Habsburgos era tanta que, através dos triunfos gerados pela Reforma,

desejavam usufruir dos triunfos para a expansão do próprio poder pela Europa Central. A guerra teve

início porque a dinastia dos Bourbons era um sério obstáculo contra o domínio da Europa. Com isso,

iniciou-se a primeira fase dessa luta chamada Guerra dos Trinta Anos.

Essa fase despertou oposição dos nobres protestantes da Alemanha bem como dos

convertidos ao calvinismo na Boêmia (hoje República Tcheca). A revolta estava declarada. O castelo

da capital, em Praga, foi invadido por nobres protestantes por causa da intenção do imperador em

demolir duas igrejas luteranas, indo contra a liberdade religiosa. A partir dessa atitude, a Boêmia

proclama Frederico como rei e torna-se um Estado independente. Com forte poder nas mãos, os

Habsburgos acabam com a revolta boêmia e punem Frederico, tomando parte de suas terras. Em

1630 os franceses se aliaram aos protestantes, assumindo a luta, pois não se tratava apenas de uma

10 Cf. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 53. v. 1.11 Cf. KROCKOW, Christian Graf Von. Prússia: um balanço. p. 48-49.

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guerra religiosa, mas sim das dinastias Habsburgos e Bourbons, pelo domínio do continente europeu.

Graças ao Tratado de Vestfália, a França conseguiu surpreendentes ganhos.

Embora as guerras tenham ocasionado um enorme massacre na Europa central e na Boêmia,

com a perda de mais da metade da população, os resultados dessas disputas foram diversos:

territórios da Alemanha foram cedidos à Suécia; Holanda e Suíça tornaram-se independentes; o

Santo Império foi declarado como irreal, pois todos os príncipes alemães foram reconhecidos como

soberanos e tinham plenas condições de governar os Estados na paz. Porém, a paz não estava

totalmente garantida. Em 1661, Luís XIV, rei da França, faz uma revisão de suas fronteiras,

desencadeando uma nova fase de guerras. A primeira foi a da Liga de Augsburgo, e a mais

importante foi a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) também desencadeada pelos déspotas no século

XVIII.12

A Guerra dos Sete Anos, que assinalou uma época de conquistas pelos mares, tinha como

principal motivo as rivalidades comerciais entre a França e a Inglaterra, além de alguns assuntos

pendentes que não haviam sido resolvidos nas disputas anteriores. Tornara-se uma espécie de

conflito mundial que envolvia vários países, inclusive a conquista do continente norte-americano,

além de ser a causa da separação dos países da Europa; de um lado a França, a Espanha, a Áustria e a

Rússia; e do outro, a Inglaterra e a Prússia. Os resultados dessas guerras foram de extrema

importância na história da Europa. Frederico, o Grande, ao conseguir a vitória sobre Maria Teresa,

obteve a posse do território da Silésia, proporcionando o crescimento da Prússia em mais de um

terço e elevando-a à potência de primeira ordem.13

1.1.4 A REVOLUÇÃO FRANCESA

A Revolução Francesa representou a ruptura com o antigo regime feudal, que elevou a

burguesia ao poder e criou condições para o desenvolvimento do Estado de Direito e da possibilidade

do capitalismo. Mais que a luta da burguesia, a Revolução representou a vitória de todos os povos

contra qualquer forma de poder autoritário, a favor da liberdade. Durante dez anos, de 1789 a 1799,

ela representou a disputa pela idéia de igualdade social, pelo poder representativo e, principalmente,

pelos direitos individuais dos cidadãos. Foi responsável também por uma mudança radical. Derrubou

a aristocracia, que vivia dos privilégios feudais; derrubou a escravidão, que era responsável pelo

12 Cf. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 537-538. v. 1.13 Ibidem, p. 540.

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sustento do Estado Absoluto formado por Luís XVI; desfez o antigo regime e instaurou uma nova

assembléia nacional, dando origem à Primeira República Francesa.14

Burgueses, camponeses, associados na fome, na miséria, na servidão e exploração aos

impostos foram os responsáveis pelo desencadeamento e sustentação do movimento revolucionário

que abalou a aristocracia. Além desses fatores, grande parte desse movimento denominado social e

político foi resultado das teorias iluministas propagadas pelos filósofos René Descartes, Baruch

Spinoza, Thomas Hobbes, John Locke que defendiam a idéia de que havia chegado o momento da

humanidade se libertar.15

A Revolução também teve seus períodos. O primeiro, de 1789 a 1791, foi o período da

Assembléia Nacional Constituinte, responsável pela abolição do regime feudal e de montagem da

ordem monárquica constitucional. O segundo, de 1791 a 1792, foi o período da Monarquia

Constitucional caracterizada pela divisão do regime, cujos monarquistas eram a favor do governo

independente de um rei, e os cidadãos a favor do controle e fiscalização do governo. O terceiro

momento foi o período de Convenção, de 1792 a 1795. A

Convensão teve início com a dissolução da Assembléia Legisladora que decretou o fim da monarquia

e o início de um novo sistema governamental, a República, que obteve sua validação em 1793, com o

guilhotinar de Luís XVI. Esse período também ficou conhecido como despotismo da liberdade.

Após a morte de Luís XVI a revolução toma mais força, tendo a frente, Robespierre e os

jacobinos (esquerda da Conversão) que se levantaram contra os rebeldes contrários à Revolução.

Milhares de adversários ou opositores foram condenados à guilhotina. Robespierre, ao perder apoio

popular, é guilhotinado em 1794, juntamente com seus companheiros. Com sua morte a Convenção

é substituída pelo Diretório, que era formado por representantes da média e baixa burguesia tendo,

à frente cinco membros.

Há um quarto período: o Diretório. De 1795 a 1799 a França foi governada por proprietários

burgueses. A nova Constituição toma o lugar dos jacobinos e dá início à nova política de conquistas

territoriais ao redor da França e à construção da Grande Nação, que contaria com repúblicas irmãs.

As conquistas territoriais eram comandadas pelo general Napoleão Bonaparte que, devido às

sucessivas vitórias, tornou-se o chefe de todos os militares franceses. Em 1799 Napoleão liderou um

golpe de Estado. O Diretório tem o seu fim. É substituído por três cônsules provisórios, sendo um

deles o próprio Napoleão. Uma nova Constituição foi promulgada por Napoleão tendo todos os

poderes em suas mãos. Inicia-se uma nova era, a do Consulado com o lema: a revolução acabou.16

14 Cf. MOTA, Carlos Guilherme. Revolução francesa. p. 30.15 Ibidem, p. 31-32.16 Cf. MOTA, Carlos Guilherme. Revolução francesa. p. 35-38.

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1.1.5 O IMPÉRIO NAPOLEÔNICO

A França e suas províncias se desfaziam e se arruinavam em meio a tantas guerras. Surge a

audácia de um general capaz de propor uma nova política de reconciliação para garantir a paz, com o

fim das guerras, e a segurança do povo francês. Com mais de três milhões de votos uma nova

Constituição foi promulgada: o Consulado, cujas características eram de um regime republicano. Nela

Napoleão Bonaparte ascende a poderes ilimitados de um imperador. Mesmo com todo o sistema

governamental, como: conselho de Estado, tribunal, corpo legislativo e senado, as guerra

continuaram até Bonaparte pôr fim ao conflito europeu assinando o acordo Paz Amiens.

Após esse acordo, o sistema governamental aplicado por Napoleão foi melhor estruturado: a

administração foi reorganizada e centralizada; criou o Código Civil, inspirado no Direito Romano, nas

Ordenações Reais e no Diretório Revolucionário; a paz com a Igreja Católica foi restabelecida. Em

1804, pelas mãos do papa, em Paris, Napoleão foi sagrado Imperador. Uma nova corte foi formada e

a antiga nobreza foi reconstituída. A economia da França foi reconstruída; foi impulsionada pelos

camponeses proprietários que, apoiando o regime, passaram a produzir mais.

Contudo, Napoleão tornou-se mais despótico que todos os outros imperadores. Assembléias

foram extintas; a liberdade individual e política deixaram de ser respeitadas; os tribunais e o

legislativo perderam a força; a imprensa foi censurada; a educação, alterada, principalmente as

disciplinas de História e Filosofia; e procurou utilizar-se da religião para doutrinar o povo, que deveria

ter deveres para com Deus e para com o imperador. Os bispos que se recusaram foram perseguidos.

Os ideais da Revolução Francesa simplesmente desapareceram e, junto com eles, aquele Napoleão

que propusera a reconciliação, a paz e a segurança do povo francês.17

1.1.5.1 A DERROCADA NAPOLEÔNICA

A Prússia e a Áustria se aliaram, uniram-se à Rússia e venceram Napoleão em Leipzig,

destruindo seu poder na Europa, em 1813. Depois dessa derrota Napoleão foi aprisionado na ilha de

Elba, de onde fugiu um ano depois, para retornar ao poder, no período denominado Governo dos

cem dias. Logo depois foi aprisionado novamente e morreu em 1821. Com Napoleão fora do governo

da França, Luís XVIII foi reconduzido ao poder, restabelecendo o grande equilíbrio entre as potências

européias: Prússia, Inglaterra, Rússia e Áustria. Alemanha e Itália permaneceram divididas. Com isso,

17 Cf. ARRUDA, José Jobson de Almeida. História moderna e contemporânea. p. 142-144.

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criou-se a Santa Aliança, que firmou um acordo de paz pondo fim às guerras napoleônicas e às

guerras desencadeadas pela Revolução Francesa.18

Com a implantação da Santa Aliança, em 1815, toda a Europa foi reorganizada, exceto a

Alemanha, que ainda representava um problema. Criou-se em Viena a Confederação Germânica, um

acordo político entre os pequenos reinos com a influência da Áustria que, juntamente com a Prússia,

ocupava um lugar de destaque, procurando manter um equilíbrio governamental e econômico,

lutando pelo controle e unificação de todo o território alemão. A unificação, graças à Confederação

Germânica, que durou até a 1861, aconteceu com a coroação de Guilherme I e a nomeação do

chanceler da Prússia, o aristocrata Otto von Bismarck.19

1.2 CONTEXTO FILOSÓFICO

Não menos importante é o contexto filosófico no qual Hegel está incluído. Assim como o

contexto histórico, ele inclui as discussões filosóficas de sua época, segundo seu sistema em tese,

antítese e síntese. Nesse processo de afirmação e busca da razão, faz um diagnóstico de sua época,

encontrando no Iluminismo (grande revolução intelectual) seu maior expoente, Immanuel Kant, o

qual criticará durante a elaboração de seu sistema filosófico. O Romantismo, grande momento

oposto ao Iluminismo, caracteriza-se pela afirmação do desenvolvimento da alma como aquela que é

capaz de superar-se e de se entregar a um ideal desinteressado, além de atingir a contemplação do

absoluto. E, por fim, o Idealismo, tendo como expoentes, Fichte e Schelling, o qual apresenta uma

tendência filosófica a reduzir toda a existência ao pensamento, ou seja, reduzir o ser à consciência. A

partir dessa tríade, Hegel sistematiza e fundamenta o seu sistema e introduz o Idealismo lógico, do

qual resultará o princípio de toda realidade.

1.2.1 O ILUMINISMO

O Iluminismo é uma filosofia otimista a favor do progresso alicerçado no uso crítico e

construtivo da razão. Sua origem se deu na Inglaterra no ano de 1680, onde, definindo-se, atingiu

boa parte da Europa. Entre todos os países afetados, o movimento histórico causou uma profunda

mudança, moldando o pensamento humano e orientando suas ações. A filosofia Iluminista ergue-se

sobre quatro pilares fundamentais: a razão, tendo-a como um rumo infalível para atingir a verdade

ou a sabedoria; o universo, que é uma máquina governada por leis fixas as quais o homem deve

respeitar; a estrutura simples e natural de sociedade, fazendo oposição à tirania do clero e dos

18 Cf. ARRUDA, José Jobson de Almeida. História moderna e contemporânea. p. 145-146.19 Cf. MAGNOLI, Demétrio; BARBOSA, Elaine Senise. Formação do estado nacional. p. 66-68.

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governantes; e por fim, a negação da existência do pecado original, afirmando que a culpa dos

homens pelas depravações e atos de crueldade não são deles mas dos padres e déspotas.20

O Iluminismo tem a origem no Renascimento e derivou-se, em parte, do Racionalismo,

baseado nos princípios da busca da certeza e da demonstração, sustentados por um conhecimento a

priori, ou seja, conhecimentos que não vêm da experiência e são elaborados somente pela razão.

Racionalismo esse principalmente representado por René Descartes (1596-1650)e Baruch Spinoza

(1632-1677). Porém, os verdadeiros fundadores do Iluminismo foram Sir Isaac Newton (1642-1727) e

John Locke (1632-1704), pensadores que viveram na mesma época, porém com afirmações e

influências diferentes.21 A definição correta para o Iluminismo foi apresentada em 1784 por

Immanuel Kant. A partir dessa data, passa a ser definido como Aufklärung (palavra alemã que

significa esclarecimento, ou seja, que distingue o uso privado e o público da razão), fundamentando-

se na liberdade do saber humano. Por uso público, entende-se quando o homem, enquanto

estudioso, faz uso de seu entendimento para o público em todo o tempo, permitindo que o

esclarecimento atue entre os homens. Já o uso privado contém limitações que impedem o progresso

do esclarecimento, tendo em vista o homem fazer parte de uma instituição, profissão ou função civil

e se vê obrigado a não questioná-la, encontrando limites para expressar novos pensamentos ou

mudanças.22

O Aufklärung é o ato de esclarecer, usando plenamente da razão. É definitivamente a

emancipação do homem caracterizada por uma confiança absoluta, iluminada na razão. Kant define

o Aufklärung como a saída do homem de seu estado de menoridade, ou seja, da incapacidade de

fazer uso correto de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. Mais que a falta de

inteligência, o inadmissível para Kant, é a falta da intenção e da coragem de confiar e utilizar da

capacidade de seu intelecto. A expressão que Kant usou para explicar o espírito do Aufklärung é

“Sapere aude”,23 ou seja, audácia de saber. Essa expressão ressalta a verdadeira intenção do desejo

dessa emancipação que pede ao homem a coragem de servir-se de sua própria inteligência saindo da

servidão espiritual.24

Não somente para Kant, mas também para todos os iluministas, a servidão espiritual do

homem só será liberta a partir do desenvolvimento ou amadurecimento de sua consciência. É

justamente essa liberdade espiritual que indica, em seu conjunto, a característica fundamental do

20 Cf. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 549-550. v. 1.21 Ibidem, p. 550.22 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 234. v. 4.23 KANT, Immanuel, Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklärung”). In: ______,

Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. p. 115.24 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 233. v. 4.

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Iluminismo. Esse conjunto é constituído pelas seguintes características: a libertação do homem em

relação aos dogmas metafísicos, os preconceitos morais, as superstições religiosas, as relações

humanas, e as tiranias políticas.

Rapidamente, por ser um movimento cultural, pedagógico e político da época, o Iluminismo

tomou conta de toda a Europa, da Inglaterra à França e da Alemanha à Itália tornando-se uma

filosofia hegemônica. Espalha-se por toda a Europa, cujas raízes e intenções estavam na confiança na

razão humana, na certeza do progresso da humanidade e no exercício da liberdade contra os abusos

das tradições que libertou o homem das explicações teológicas baseadas em explicações científicas.

Esse movimento pelo progresso, pelo uso correto da razão, é caracterizado pela ascensão da

burguesia. Segundo Kant, o uso correto da razão é de capacidade e domínio de todo o público.

Contudo, não só o Humanismo, mas também o Iluminismo, devido a sua grande influência,

foi capaz de questionar e interromper a cegueira humana diante da superstição e da coibição ilógica,

uma espécie de repressão, ainda existente no Ocidente. A razão iluminista mais que derrubar a

tirania política e, automaticamente, enfraquecer o poder dos tiranos e padres, possuía um ideal de

liberdade religiosa que foi capaz de separar a Igreja do Estado. Ela também foi a responsável pelo

estabelecimento de uma nova ordem social natural que enfrentou e derrubou os resquícios do

feudalismo.25

1.2.2 IMMANUEL KANT

Immaneul Kant nasceu na Prússia, em Königsberg, no ano de 1724. Sua mãe, Regina Reuter,

criou-o segundo uma corrente do protestantismo, além de matriculá-lo numa escola pietista.

Estudou a partir de 1740, na universidade de sua cidade natal, freqüentando os cursos de filosofia e

ciência, pois o que lhe interessava, era o saber e a pesquisa. Após duras penas nos estudos consegue

chegar ao doutorado, no ano de 1755, ingressando como livre-docente na Universidade de

Königsberg. Tornou-se professor efetivo em 1770. Com os interesses voltados unicamente ao saber,

25 Cf. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 557. v. 1.

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recusa a cátedra em Halles, oferecida pelo barão von Zdlitz. Apresenta, em 1781, sua primeira crítica,

a Crítica da razão pura. Posteriormente a Crítica da razão prática, em 1788, e a Critica do juízo, em

1790.

Nos últimos anos de sua vida o filósofo passa por dois grandes conflitos. O primeiro, em

1794, chamado a desistir de suas idéias sobre a religião inseridas na obra A religião nos limites da

pura razão; sobre esta ordem, obedeceu, mas não se retratou. O outro, mais historicamente

importante, deve-se ao criticismo transcendental, que estava sendo interpretado como um idealismo

espiritualista devido à obra de Fichte. Esse acontecimento era inevitável, pois o Iluminismo já havia

se esgotado, dando lugar ao nascimento de um novo movimento cultural. Após lutar contra o

inevitável, Kant silenciou até o final de sua vida, cuja memória e visão foram perdidas. Morreu em

estado vegetativo no ano de 1804.26

Todo o conhecimento que Kant continha era canalizado para um conhecimento sem

preconceitos, ressaltando os valores universais, tanto da moral, quanto do conhecimento dos

homens. Uma de suas frases, que o resume, está contida na célebre obra Crítica da razão prática:

“Duas coisas enchem o espírito de admiração e de reverência, sempre nova e crescente, quanto mais

freqüente e longamente o pensamento nelas se detém: o céu estrelado acima de mim e a lei moral

dentro de mim”.27

Com a Crítica da razão pura, Kant determina a capacidade de alcance do conhecimento

através da razão, tendo em vista que a mente humana já contém os universais ou, para ele, definido,

as doze categorias ou formas do juízo. Elas estruturam e ordenam os objetos da experiência, a partir

da tabela dos quatro juízos: qualidade, modalidade, relação e modo. Para ele a mente humana não é

somente receptora, mas organizadora de todas as experiências ou percepções. Nessa obra, sua

proposta foi desenvolvida com toda eficácia que propôs, ou seja, ofereceu plena satisfação à razão

humana como aquela que emancipa, aquela que a coloca em prática.

Na Critica da razão prática encontramos o conceito de liberdade, da vontade, ou seja, do

desejo do sujeito relacionado com sua ação. Este conceito, em Kant, se encontra na ética aplicada da

razão prática na qual chamará de livre-arbítrio. Além do mais, esse conceito é a priori, pois a

liberdade é a condição para a lei moral. A unidade dessas duas críticas acontecerá a partir da Crítica

do juízo, que busca a unidade da teoria, com a prática, do universal, com o particular, da

necessidade, com a liberdade.28

26 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 347-349. v. 4.27 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. p. 172.28 Cf. LEITE, Flamorion Tavares. 10 lições sobre Kant. p. 77-80.

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Na época de Kant, havia um grande interesse pela razão e pela idéia de liberdade, idéia ainda

não atingida, que só foi compreendida, pelo filósofo, a partir da Revolução Francesa cuja liberdade

tornar-se-ia possível a todos os seres racionais. Com isso, a razão se voltaria para si própria. Kant

encontra na história, um sentido de progresso, principalmente, a partir dos revolucionários, que

fizeram dela palco de inúmeros conflitos: todos esses conflitos possuíam, interesse da razão pela

liberdade, principalmente, a Revolução Francesa. A partir dessa busca desenfreada pela liberdade,

ela passa a ser um critério racional para a compreensão e para a investigação dos acontecimentos

históricos, ou seja, a razão pura é a idéia-chave para a filosofia kantiana.29

O que existe independente da capacidade do homem em alcançar, Kant determina como a

coisa-em-si (númeno), ou seja, o supra sensível, pois para agir moralmente a ação deve fundamentar-

se na boa vontade livre de determinações fenomênicas. Assim, o mundo inteligível constitui o mundo

da moral. Esse foi um dos pontos da filosofia kantiana que sofreu fortes críticas inclusive as de Hegel.

Hegel, irá além do pensamento kantiano e, determinará, ou melhor, mostrará o que é a coisa-em-si e

que a mesma pode ser pensada.30

1.2.3 FORMAÇÃO E PECULIARIDADES DO MOVIMENTO ROMÂNTICO

Mudanças radicais marcaram os últimos anos do século XVIII e os primeiros do XIX. No

âmbito social e político, deu-se a Revolução Francesa, com a introdução da República e a queda

monárquica, além do terror do novo sistema de execução: a guilhotina. Além desses fatores, o

surgimento do novo despotismo, que levou Napoleão ao auge, consolidou de vez toda a esperança

iluminista que ainda existia. Contudo, um movimento na Alemanha perdurava e em breve levaria à

superação total do Iluminismo.

Esse movimento, inicialmente, ficou conhecido como Sturm und Drang; pode ser traduzido

por Tempestade e ímpeto – título do drama escrito em 1776 por Friedrich Maximilian Klinger. Esse é

um movimento ou uma espécie de rebelião caracterizada pelo período em que os escritores alemães

atacaram as restrições do governo, tentando libertar a cultura da dominação estrangeira. Suas

principais idéias foram: a natureza, como fonte vital de vida; o gênio, entendido como regra, força

originária da natureza; o panteísmo, numa contraposição ao iluminismo; o sentimento pátrio,

expresso no ódio pelo soberano e na conquista pela liberdade; e, por fim, a exaltação e apreciação

dos fortes sentimentos ou paixões.31 O Sturm und Drang, mesmo sendo um movimento cultural,

29 Cf. KEINERT, Maurício. Conflitos da razão. In: Mente, cérebro e filosofia, p. 27-28. n. 3.30 Cf. SINGER, Peter. Hegel. p. 13.31 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 3-4. v. 4.

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também sofreu fortes influências: poetas ingleses, como Macphersom, Lessing, Gottlieb Klopstock

que supervalorizaram os sentimentos. Porém, foram Goethe e Schiller os protagonistas que mais

deram ênfase a esse movimento.32

O Sturm und Drang foi considerado como um prelúdio ao Romantismo. Segundo Reale e

Antisseri, o historiador G. de Ruggiero interpretou esse movimento como uma matéria bruta que

estava à espera de ser forjada, lapidada pela arte e, principalmente, pela filosofia alemã. E mais: esse

movimento, segundo o historiador, não era um acontecimento isolado, mas sim uma ação coletiva

ou expressão espiritual de um povo. Sturm und Drang também foi um prelúdio aos pensamentos

hegelianos, pois representava a juventude de Herder e Goethe tidos como símbolos da juventude de

um povo, pois, através da poesia e da arte, apresentavam uma vitória sobre a crise da alma

coletiva.33

O Classicismo (culto ao clássico repetitivo) surge como uma espécie de corretivo ao Sturm

und Drang. Ele é o novo sentido do clássico que contém uma enorme importância na formação do

espírito da época tornando se um pólo dialético do Romantismo. O classicismo tinha o desejo de

recuperar a expressão clássica da arte grega e da romana. Durante a Revolução houve alguns artistas

e também escritores que se empenharam para que a recapitulação desse espírito fosse possível. Isso

se dava de modo mais forte, grandioso e sentimental que o classicismo anterior, desenvolvido pelos

humanistas na época da Renascença.34

Esse novo sentido do clássico causou na história aquilo que Hegel chamará de tese, pois, por

ser repetitivo, está privado de alma e de vida. A marca desse clássico é a medida, o limite e o

equilíbrio. Sobre a repetição, segundo Reale e Antisseri, Johnn Winckelmann afirma em uma de suas

publicações que, ao imitarmos os antigos, estaríamos nos tornando grandes e ímpares; portadores

do olhar dos antigos. Tal imitação não levará o individuo à natureza das coisas, mas à idéia, ou seja, a

natureza superior que o tornará capaz de relacioná-las com o belo, com o perfeito, com o superior.

Esse é o início do neoclassicismo romântico, que almejava transformações: a natureza em forma e a

vida em arte; num sistema não de repetição, mas de renovação daquilo que os gregos faziam. Hegel

usará das idéias clássicas de dialética para elaborar seu próprio sistema, só que com a novidade do

elemento especulativo, que será melhor abordado no quinto capítulo deste trabalho.35

32 Ibidem, p. 5.33 Ibidem, p. 6-7.34 Cf. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 563-564. v. 1.35 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 7-8. v. 4.

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1.2.3.1 O ROMANTISMO

O Romantismo, numa visão geral, significa voltar à tradição. Esse é o principal pensamento

considerado pelos românticos, que ressaltaram os interesses pelo transcendente e pelos

sentimentos. A partir da observação da natureza, com suas formas e cores, os românticos afirmam o

desenvolvimento da alma que é capaz de se superar, de se entregar a um ideal desinteressado e

atingir a contemplação do absoluto. Relembrar o passado ou voltar à tradição faz com que o

indivíduo, o país, a nação procure seus heróis, seus poetas ou a verdadeira manifestação do

espírito.36

O movimento romântico nasce a partir da organização das descompostas forças do Sturm

und Drang ou de um limite estabelecido por Herder, Schiller e Goethe a esse movimento. Friedrish

Schiller foi o responsável pelo desenvolvimento fantástico da literatura romântica. Segundo Reale e

Antisseri, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), ao escrever Fausto, em 1790, vindo a terminar

um ano antes de sua morte, exprimiu e ressaltou a importância do espírito dos tempos modernos.

Para Goethe, a liberdade do indivíduo é contínua e incessante em busca do domínio de todos os

conhecimentos; uma inquietação perpétua, que mais tarde servirá para as reflexões de Hegel na

construção de seu sistema.37 O termo romântico surge primeiro na Inglaterra, no século XVII,

indicando o que é fabuloso, extravagante, fantástico ou irreal. Posteriormente o termo romantismo

passou a designar o renascimento do instinto e da emoção. O movimento romântico caracterizou-se

por ter sua forma própria, sua essência e peculiaridade diferentes das gregas.

O romantismo, portanto, desenvolvido na Europa, mais precisamente em Jena e depois em

Berlin, no alvorecer do século XIX, designou o movimento espiritual envolvendo a poesia, a filosofia,

as artes e a música. As características espirituais desse movimento baseiam-se no comportamento

psicológico ou estado de espírito necessário para o desenrolar de um conflito interior, bem como no

desejo de novas aspirações. O homem romântico, enquanto ser espiritual é a pura expressão do

sensível, ou seja, de uma excessiva impressionabilidade, irritabilidade e reatividade, conforme afirma

o psicólogo L. Mittner. E mais, é a busca pelo desejo, o desejo de desejar aquilo que ainda não

conhece.38 Suas principais idéias são: a sede do infinito, o pânico de se pertencer ao uno-todo, a

expressão do verdadeiro ou função do gênio, o anseio pela liberdade, a reavaliação da religião e a

influência dos elementos clássicos.

A primeira idéia fundamental do movimento romântico, associada ao sentimento, é a sede

do infinito; essa é a ansiedade que todo romântico tem. Essa sede incessante do infinito se dá pelas

36 Cf. MASIP, Vicente. História da filosofia ocidental. p. 242.37 Cf. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. p. 571-572. v. 1.38 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 10-11. v. 4.

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obras de arte. A segunda idéia do romantismo apresenta o novo sentido da natureza cuja

importância fundamental está em criar eternamente, num jogo de forças, no qual, segundo Goethe,

morte é o elemento para se ter mais vida e, segundo Schelling, a natureza é a manifestação do

espírito, ou seja, o espírito que se faz visível. A terceira idéia ou característica, intimamente ligada à

segunda, é o sentimento de pânico pela pertença ao uno-todo. Conforme relata Hölderlin: “[...] o céu

para o homem é ser um com o todo, com tudo o que vive e em feliz esquecimento de si mesmo”.

Usa-se essa expressão para afirmar que o todo se reflete no homem e o homem se reflete no todo;

um movimento orgânico.

A função do gênio é a quarta expressão ou idéia apresentada pelo romantismo. Segundo

Novalis – poeta principal do grupo dos românticos – o gênio é necessário ao espírito para a

compreensão do absoluto. É através da arte que se compreende a natureza. Schelling também

ressalta a importância da arte e a usa como necessidade da filosofia transcendental. Na quinta idéia

tem-se o anseio pela liberdade (um dos fatores primordiais para Hegel na elaboração da tríade

principal do espírito). Essa é uma das principais características dos românticos. Novalis também

afirma que tudo leva à liberdade. É justamente essa liberdade que representa a essência e a potência

da consciência. Hegel fará da liberdade a essência do espírito.

A sexta idéia fundamental do romantismo é a reavaliação da religião. A religião é reavaliada

por causa do Iluminismo que a reduziu. Para o Romantismo, a religião se faz necessária na relação do

homem com o infinito. Hegel fará da religião cristã, de todos os momentos, exceto a filosofia, o mais

elevado da trajetória do espírito. E, por fim, a influência do elemento clássico a partir de um

sentimento nacional, no amor pelas origens e no interesse pela história, em especial, a da idade

média.39

Logo, o Romantismo, por expressar de modo incomparável interesses espirituais da época,

difunde-se não só na Alemanha, mas também em toda a Europa. Jena foi a cidade da Alemanha que

mais contribuiu para a propagação do círculo romântico. Esse círculo era composto pelos irmãos

Schlegel, August Wilhelm (1767-1845) e Friedrich (1722-1829), por expressarem o modelo espiritual

da nova época. Friedrich levou o movimento para Berlim, em 1798, tendo como propagadora a

revista Athenaeum, que perdurou apenas dois anos. Mesmo assim Novalis, Tieck, Wackenroder,

Fichte, Scheling e Schleiermacher aderiram ao movimento. Hegel, por sua concepção filosófica,

sendo também um romântico, foi influenciado diretamente por Fichte e Schelling. Dessa forma, o

pensamento do romantismo alemão será necessário à compreensão da história do pensamento

filosófico.40

39 Ibidem, 12-13.40 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 15. v. 4.

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1.2.4 O IDEALISMO

O Idealismo é caracterizado pela tendência filosófica que reduz toda a existência ao

pensamento. Nessa tendência o ser é reduzido à consciência. Kant, Fichte e Schelling marcam o

idealismo com seus pensamentos filosóficos. Porém, a filosofia que mais se sobressai é a kantiana: o

idealismo transcendental. Fiche e Schelling não irão se opor ao pensamento de Kant, mas o

interpretarão de forma subjetiva, pois suas filosofias ainda não possuem a noção de coisa-em-si.

Trata-se de um idealismo transcendental e não absoluto. O idealismo absoluto é a marca do

desenvolvimento e pensamento hegeliano. Hegel critica Kant, critica Fichte, e dá uma nova

interpretação à filosofia de Schelling. Antes o real era a consciência; após Hegel passará a ser a idéia

com todas as suas conseqüências.41

1.2.4.1 FICHTE: O IDEALISMO ÉTICO

Johann Gottlied Fichte nasceu em Rammenau no ano de 1762, contemporâneo de Schelling e

Hegel. Freqüentou o ginásio em Pforta e iniciou a faculdade de teologia em Jena, com a contribuição

de von Miltitz. Posteriormente, vivia de aulas particulares como preceptor. Até meados de 1790

Fichte era spinoziano, determinista e revelava interesses pelo pensamento de Montesquieu

(1689-1755), além de aprovar as idéias da Revolução Francesa. Conhecia Kant só de nome, mas,

como era professor viu-se obrigado a estudar o filósofo. As obras do Kant foram uma revelação a

Fichte, especialmente a Crítica da razão prática, a partir dos desígnios da liberdade – obra que

posteriormente viria a superar. Após êxito na compreensão das obras kantianas, escreve sua

primeira obra, denominada Ensaio de crítica de toda revelação e consegue publicá-la com a

intervenção do próprio Kant.42

Inúmeras obras foram escritas por Fichte, principalmente depois de se ter mudado para

Berlim, lecionando na Universidade de Erlangen e, posteriormente, na própria Universidade de

Berlim, onde chegou ao cargo de reitor. Seu maior sucesso, escrito em 1794, foi a obra Doutrina da

ciência, que unificava as três críticas kantianas, constituindo um novo sistema filosófico.43

Em Kant, o sujeito exerce o principal papel na construção do mundo ou da natureza, porém

limitado pelo númeno, ou seja, a coisa-em-si ou o ser-em-si. Em Fichte o númeno desaparece,

41 Cf. MASIP, Vicente. História da filosofia ocidental. p. 245.42 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 47-48. v. 4.43 Ibidem, p. 48-49.

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sobressaindo-se a criatividade ilimitada do eu, ou do sujeito. O pensamento fichteano descreve

unicamente a existência do eu e do não-eu – o sujeito pensante e o sujeito pensado – uma relação de

contraposição, cuja origem se dá a partir de uma ação principal, inconsciente e imediata de um eu

puro. O eu puro é a identidade do pensamento ainda em-si-mesmo.

De todos os sistemas filosóficos, Ficthe destaca unicamente dois: o dogmatismo e o

idealismo; os únicos possíveis para ele. Um, por afirmar a coisa-em-si – uma espécie de consciência

filosófica ingênua em que apenas se reproduz aquilo que se julga ser externo; e o outro, por negar –

assegurando a liberdade, independência e a espiritualidade do eu. Contudo, Fiche, ao afirmar que a

realidade é o pensamento, utiliza-se do eu puro, do eu e do não-eu (os três princípios fundamentais

da doutrina da ciência) para explicar a criação de toda a realidade.44

Os três princípios fundamentais compostos pela doutrina da ciência são: o eu, enquanto tese

(afirmação), que se põe absolutamente a si mesmo; o não-eu, enquanto antítese (negação), que é a

oposição do eu a si mesmo; e o eu absoluto, como síntese (limitação), ou seja, isso é possível quando

os dois primeiros princípios limitam-se reciprocamente: o eu é determinado pelo não-eu (atividade

cognoscitiva) e, o eu determina o não-eu (atividade prática). Quando o eu (sujeito) determinar o não-

eu (objeto) significará o alcance da liberdade da consciência; é a ação real alcançada pela vida

moral.45 O idealismo de Fichte, por ser ético, fundamenta-se na liberdade do homem, na liberdade de

consciência, e consciência individual, que é capaz de ver, no idealismo, pela filosofia, a verdadeira

liberdade espiritual.46

1.2.4.2 SCHELLING: O IDEALISMO OBJETIVO

Friederich Wilhelm Joseph Schelling nasceu no ano de 1775, em Leonberg, na Alemanha.

Faleceu em Ragaz, na Suíça, no ano de 1854. Quando jovem, estudou no seminário protestante em

Tübingen, estreitando amizades com Hölderlin e Hegel. Estudou filosofia em Jena, sob orientação de

Fichte, tornando-se seu sucessor em 1799. Teve vários contatos com o círculo dos românticos no ano

de 1800, conhecendo Goethe, Novalis, Tieck e os irmãos Schelegel. Publica, em 1801, o Sistema do

idealismo transcendental (obra que Hegel buscará para enquadrar seu sistema filosófico,

embasando-se em problemas ético-políticos). Em 1803 passou a ensinar na Universidade de

Würzburg, até 1806. Exerceu magistério na universidade de Munique e em Erlanger no ano de 1820.

Em 1841, dez anos após a morte de Hegel, mesmo com saúde fraca e pouco prestígio com os alunos,

foi chamado para ocupar a cadeira de Hegel em Berlim.47

44 Cf. MASIP, Vicente. História da filosofia ocidental. p. 246-247.45 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 60. v. 4.46 Ibidem, p. 59.47 Cf. MASIP, Vicente. História da filosofia ocidental. p. 248.

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Schelling vê na natureza o desdobramento da inteligência consciente. Ele não nega o

idealismo transcendental, mas o reorganiza, partindo do subjetivo para atingir o objetivo, ou seja, a

natureza, o real, a arte. Dessa forma proporciona uma unidade do espírito com a natureza,

denominando-a como espírito visível e momento do absoluto. Em Fichte a relação entre sujeito e

objeto era resolvida pelo idealismo e não pelo dogmatismo. Schelling, na superação de Fichte, afirma

que o dogmatismo não pode ser descartado; é necessário ter ambos os elementos numa concepção

filosófica para se entender a relação do eu e não-eu e espírito e natureza.

Para Schelling, a filosofia deve partir de uma diferença, e diferença absoluta, ou seja, um

ponto de equilíbrio entre o subjetivo e o objetivo (por isso é que ele não descarta nem o

dogmatismo, nem o idealismo). Esse equilíbrio trata-se do absoluto (síntese), fusão perfeita dos

opostos; dele precede todas as antíteses devendo sempre emergir uma liberdade. O eu absoluto é

representado por uma esfera absoluta de realidade absoluta e infinita, contendo inúmeras finitas.

Essas realidades ou esferas finitas – que nascem da síntese ou limitação do absoluto – nada mais são

que resultados do pensamento teórico. Por serem do pensamento, elas se separam e se isolam,

separando o que é indivisível. Schelling, por ver na natureza o desdobramento do pensamento, ou a

concretização do mesmo, afirma que ela não se contrapõe ao espírito, mas participa de uma

harmonia como o espírito caracterizando fases de um todo. O absoluto, ao adquirir a consciência de

si mesmo, tornar-se espírito no homem que permite a sua manifestação, a manifestação do

verdadeiro gênio: a obra de arte, o gênio criador, ou seja, a inteligência que opera como natureza,

revelando o absoluto.48

Schelling, tendo conhecimento da filosofia do espírito, já dito por Fichte e Kant, repensa a

Doutrina da ciência de Fichte, retoma a filosofia da consciência (de como a natureza chega à

consciência) para entender melhor o seu inverso: como a inteligência chega à natureza. Dessa

reflexão surge uma de suas obras, uma das mais importantes, O sistema do idealismo transcendental

na qual descreve o inicio da filosofia transcendental. Ao contrário da filosofia da natureza que tem

como pressuposto o objetivo para dele decorrer o subjetivo, a filosofia transcendental segue o

caminho oposto; coloca o subjetivo como primeiro fazendo derivar dele o objetivo.49

1.2.4.3 CRÍTICA A FICHTE E A SCHELLING: A ENTRONIZAÇÃO DO IDEALISMO LÓGICO

A partir da compreensão da filosofia de Kant, Fichte e de Schelling poderemos entender a

crítica que Hegel fará aos filósofos. Hegel vai além das afirmações de Fichte que se estagnam na

48 Cf. MASIP, Vicente. História da filosofia ocidental. p. 248-279.49 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 82. v. 4.

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afirmação de que a realidade não é substância, mas sujeito e espírito em constante movimento.

Critica Fichte quando o eu põe-se a si mesmo e, em seguida, opõe a si o não-eu, estabelece um

limite, procurando superá-lo dinamicamente. Esse limite não permite que o eu de Fichte seja

inteiramente superado; surge uma oposição não superada.50 Já Schelling usa da realidade como

identidade para poder superar o problema da oposição em Fichte; atitude louvável por Hegel, porém

vazia. Schelling é criticado nos próprios escritos da Fenomenologia do espírito por não deduzir nem

justificar seus conteúdos, bem como por usá-los somente como dados.

Hegel relembra que sua filosofia não é uma filosofia da consciência. Censurou de tal modo

Kant e Fichte que os chamou de filósofos da consciência por não a terem transformado em ciência

absoluta; assim Hegel o faz por meio da fenomenologia. Kant concebe o espírito como consciência e

em Fichte o não-eu é determinado somente como objeto do eu; e isso ocorre somente na

consciência. O importante para Hegel é o espírito, como ele é em-si e por-si, ponto em que a

filosofias kantiana e fichteana não atingem; essas definem o espírito somente como ele é em relação

à outra coisa. Hegel vai mais além que essas filosofias. Ele fundamenta o ponto inicial de toda a

filosofia. Todo o conteúdo que a filosofia possui é a consciência que lhe fornece. O papel da filosofia

se restringe à elaboração conceitual do conteúdo fornecido a ponto de adquirir absoluta verdade e

realidade: torna-se espírito, torna-se conceito.51 Hegel elabora a forma mais completa e complexa de

idealismo procurando explicar os fatos da história que estariam em função do real e do racional:

“Tudo o que é real é racional, tudo o que é racional é real”.52

1.2.5 O IDEALISMO LÓGICO

Em Fichte a unidade entre o finito e o infinito se manifesta no eu absoluto, a partir duma

atividade ética; em Schelling, na filosofia da identidade, a partir da fantasia criadora. Segundo Hegel,

esse desempenho não é o correto, pois os termos não se ajustam: o infinito apresenta o finito que

tende adequar-se, sem êxitos, ao infinito. O desempenho do finito ao infinito é tido como falso

infinito, ou negativo. Ao ressaltar a importância do infinito, Hegel afirma que ele é a substância de

toda a coisa; o infinito é; é o único afirmativo ao passo que o finito torna-se anulado ou superado.

Essa unidade representa o pensamento lógico, representa a ciência do absoluto.

50 Ibidem, p. 101.51 Cf. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. A significação da Fenomenologia do espírito. In: HEGEL, Georg

Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 9-10.52 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia do direito. Prefácio. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos

escolhidos. p. 18.

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Por sua sistematização lógica, Hegel tanto é considerado como filósofo da razão como o

apaixonado romântico. E isso confere, ao se identificar com a história, ou com o real. Além de não

descartar o sentimento, o particular, o subjetivo, o individual, a arte, a religião, utiliza deles como

momentos do seu processo dialético; que os ajusta-os e os supera e os eleva a conceitos. Dessa

forma, pretende reorganizar as posições românticas a fim de encontrar uma síntese que afirmará

que todos os momentos da atividade do espírito serão primeiramente superados e, posteriormente,

conservados em um terceiro momento: o superior. Essa é a síntese do positivo e do negativo ou a

dialética dos opostos. Essa dialética resulta o princípio de toda a realidade pelo qual o real e o

racional se coincidem.53

2 VIDA E PRINCIPAIS OBRAS

Hegel, filósofo alemão do final do século XVIII e início do século XIX, procurou,

desde sua juventude, formular uma filosofia da liberdade. Todos os seus trabalhos, seus

escritos, suas aulas e suas obras levam-nos a perceber, segundo os moldes dialéticos, a busca

pela expressão de uma filosofia à altura de sua época. Entre seus escritos, encontram-se os

principais como: Princípios da filosofia do direito, que tenta unir o direito (objetivo), ou seja,

a vontade, que parte do exterior, e a moral (subjetivo), ou seja, a vontade que parte do

interior; ambos separados a partir de Kant; Enciclopédia das ciências, uma obra menos densa,

mais subdividida para a apresentação de suas aulas; Ciência da lógica, que descreve a

importância do desenvolvimento dialético; e, por fim, sua grande obra, a Fenomenologia do

espírito, na qual Hegel reconhece e descreve o movimento da consciência dentro de um

processo dialético que parte da sua ingenuidade ao saber absoluto. Contudo, diante dessas

53 Cf. SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia III: do século XIX aos nossos dias. p. 34-35.

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obras filosóficas, Hegel apresentará a filosofia como a razão que se apreende na forma do

pensamento consciente.

2.1 VIDA E DESENVOLVIMENTO

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, pensador alemão, sofreu influências de três

movimentos intelectuais ocorridos na história, importantes e fundamentais para o

desenvolvimento de sua filosofia. São consideradas as influências da teologia

neotestamentária do cristianismo (importantes para os seus escritos iniciais), a literatura

romântica alemã e, principalmente, o idealismo lógico de Kant. Seu pensamento, por se referir

de modo expressivo à vida política do homem, o tornou pensador oficial do Estado Prussiano

em que todos buscavam respostas.54

Filho de Georg Ludwig, funcionário público, e de Maria Magdalena, Hegel nasce em

Stuttgart, na Alemanha, aos 27 de agosto de 1770. Cursou o ginásio em sua cidade e,

posteriormente, aos 18, em 1778, ingressou no seminário protestante. Foi nesse seminário, o

da Universidade Teológica de Tübingen, que se tornou amigo de Schelling – com o qual irá

dialogar filosoficamente – e Hölderlin, poeta do movimento romântico. Nessa época, envolta

pelos acontecimentos da Revolução Francesa, a discussão que tomava conta daquele âmbito

acadêmico era justamente a atual condição do reino que se contrapunha aos ideais, antes

apresentados pelo imperador Frederico Guilherme II. Schelling e, principalmente, Hegel

encontravam-se à frente da retomada desses ideais de liberdade e dignidade do homem.

Hegel, desde a sua juventude, já ansiava por renovações no mundo político aos moldes

da pólis grega. Intrinsecamente ligada a esse molde governamental está a liberdade, fator

fundamental para se chegar à razão. Sua intenção era proporcionar a aquisição da liberdade e,

conseqüentemente, do conhecimento, sem que a unidade e o ideal político fossem

desfigurados, mantendo uma relação entre o indivíduo e a pólis. Essa relação só seria possível

a partir da religião do povo, voltada para a razão e para a liberdade, na qual seria possível

conhecer o ser mais profundo do homem. Para que isso fosse possível, haveria a necessidade

da transformação da religião privada ou despótica em pública ou da liberdade.55

Com seus estudos, Hegel poderia credenciar-se como pastor protestante; porém, por

falta de vocação, renunciou, em 1793, iniciando seus trabalhos como preceptor, ou seja, um

cargo extraordinário de pouca duração, em Berna, que durou até o ano de 1796. Morou em

Frankfurt, desenvolvendo também a função de preceptor até o ano de 1800. Em 1801, ao

54 Cf. SCRUTON, Roger. Introdução à filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. p. 164.55 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel. In: Hegel. p. 593.

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mudar-se para Jena, onde permaneceu até 1807, tornou-se livre docente com a tese Sobre as

Órbitas dos Planetas e, pela interferência de Goethe, se tornar-se-ia professor extraordinário

de alta fama naquela Universidade.

Mesmo a amizade sendo forte entre Schelling, Hölderlin e Hegel, os ideais começaram

a se distanciar. Schelling passa a seguir o caminho da reação romântica, que preparou a

contra-revolução de 1848. Hölderlin, por ter adotado uma rigorosa moral, via-se

impossibilitado de compreender as novas idéias ou ideais da língua e da cultura. Já Hegel,

com outra vertente, reconheceu, nas guerras napoleônicas, o exemplo das etapas necessárias

para concretização de um novo estado, de uma nova ordem social.56 No ponto de vista de sua

filosofia, ressalta a importância do contexto ou da vida do filósofo que “[...] está ligado ao

pano de fundo histórico universal: ‘o filósofo é filho de seu tempo’, mesmo quando consegue

apreender intelectualmente o intemporal”.57

O período de maior produção do filósofo ocorreu em Jena. Ali conseguiu aglomerar e

sistematizar, pela primeira vez, o seu pensamento, dando origem ao seu sistema filosófico.

Escreve a Fenomenologia do espírito com a intenção de ser a introdução dele. Mesmo sendo

concluída em meio a turbulências ocorridas na época, a obra, devido a sua grande importância

e complexidade (como será melhor apresentado no capítulo terceiro deste trabalho), tornou-se

o mais importante escrito da filosofia ocidental moderna. Os escritos, já sistematizados, foram

entregues por um mensageiro ao editor, em Banberg, que os publicou alguns meses depois.58

Sua vida também foi marcada pela Revolução Francesa, qualificando-a como a queda

gloriosa em que todos os pensantes compartilhem com a importância dessa época. Essa

alegria da aquisição da liberdade da razão foi saudada ou representada pelo plantio de uma

árvore, um símbolo de esperança; ato que realizou juntamente com seus amigos. Naquela

época, a Alemanha era constituída por cerca de trezentos Estados ligados ao Sacro Império

Romano Germânico, sob o domínio do Imperador austríaco Francisco I, e estava prestes a ser

dominada pelos revolucionários. Com isso exclamou: “Eu vi o imperador – esta alma do

mundo – percorrendo as cidades para inspecionar suas tropas; é realmente uma emoção

maravilhosa ver tal homem, um homem que, concentrado numa questão particular aqui,

sentado sobre um cavalo, alcança o mundo e o domina.”59

Isso, para se referir a Napoleão quando, em 1806, pôs fim ao império austríaco que

durou mais de mil, anos proporcionando na Alemanha a libertação dos servos e uma reforma

56 Ibidem, p. 587-588.57 HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. p. 465.58 Cf. PLANT, Raymond. Hegel. p. 16-17.59 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história. p. 447. apud SINGER, Peter. Hegel. p.12.

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geral do exército e da administração. Além disso, esses dizeres revelam pressupostos usados

em sua grande obra Fenomenologia do espírito. Nela estão contidas as preocupações do

filósofo com problemas políticos e a busca incessante da soberania da razão no tempo.60 Logo

em seguida Napoleão causou o fechamento da Universidade em Jena, onde Hegel lecionava,

forçando-o a procurar novos rumos. Por algum tempo exerceu, no periódico católico Bamberg

Gazette, a função de editor. Volta a seu posto de ensino, agora como reitor em Nuremberg, de

1808 até 1816. Foi um período produtivo, cujo fruto foi a Propedêutica filosófica, que

abrangia a lógica, a filosofia da natureza, a filosofia da mente (espírito subjetivo), a filosofia

do espírito objetivo (ciência do direito, a moral e a religião), e a filosofia do espírito absoluto

na qual engloba a filosofia, a arte e a religião.61

2.2 OS ESCRITOS DE JENA

Os escritos gerados por Hegel na época em que viveu em Jena são divididos em dois

grupos e antecedem sua grande obra, a Fenomenologia do espírito. Os ético-políticos são

compostos por: A Constituição da Alemanha e o Sistema da eticidade; e os teóricos são

compostos por: Diferença entre o sistema de Fichte e Schelling e Fé e saber. Esses escritos

retratam principalmente o pensamento hegeliano intimamente preocupado com as ocorrências

políticas daquela época, bem como as filosóficas, especialmente os sistemas de Fichte e

Schelling.

No campo ético-político situa-se o escrito: A Constituição da Alemanha. Esse escrito

foi desenvolvido entre os anos de 1801 e 1803, após uma das vitórias de Napoleão e,

conseqüentemente, a divisão da Alemanha em vários Estados. Ele não chegou a ser publicado

por Hegel. Seu conteúdo era bastante polêmico, pois revelava uma nova visão de Estado

(Gewalt) que ia contra ao modelo de Berna. Nesse escrito Hegel busca a resposta para a

compreensão de por que a Alemanha não é mais um Estado.62 Descreve:

Os pensamentos que este escrito contém não podem ter, com sua publicação, nenhum outro objetivo ou efeito senão o de compreender o que é, e com isso transmitir uma opinião mais serena, assim como uma moderada tolerância nos contatos reais [na maneira de comportar-se] e nas palavras. Pois o que nos torna impetuosos e nos faz sofrer não é o que é, mas o fato de não ser como deve ser; porém, se reconhecermos que isso é como é necessário que seja, ou seja, não por arbítrio ou por acaso, reconheceremos também que deve ser assim.63

60 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel. In: Hegel. p. 588-589.61 Cf. PLANT, Raymond. Hegel. p. 17.62 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 708.63 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 709.

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Essa parte do escrito sobre A Constituição da Alemanha descreve uma positividade

histórica e necessária. Leva o leitor a perceber e a quietar-se diante da situação negativa

vivida na história (no fundo Hegel já apresenta a importância do papel do negativo que será

melhor apresentado segundo seu sistema filosófico). Para ele, essa negatividade, ou esse

estado de guerra, ou a dissolução da Alemanha, mais de que uma permanência harmoniosa, é

um importante fator para o seu desenvolvimento, ou para o desenvolvimento de qualquer

Estado, bem como a valorização da liberdade do indivíduo. E mais, Hegel tinha a plena

certeza que, embora a Alemanha tenha sido dividida, no fundo ela continha o estímulo à

liberdade do indivíduo; liberdade cujos indivíduos ou Estados sacrificassem suas

peculiaridades para reencontrá-las enquanto universal. Com isso já está anunciando

pressupostos de seu sistema filosófico.64

Ainda no campo ético-político encontra-se o escrito Sistema da eticidade que só foi

publicado em 1893. É um considerável escrito de sua juventude. Sobre o campo ético-político

Hegel produziu outro escrito chamado As diversas maneiras de tratar o direito natural

1802-1803; porém, o primeiro tornou-se mais conhecido e importante. A respeito desse

escrito sabe-se que, além de ser extremamente difícil, o que é comum em Hegel, é tido como

introdutório à Fenomenologia do espírito, por já conter a narração de momentos históricos.

Além disso, é muito complexo e cheio de divisões e subdivisões. Um aspecto importante dele,

talvez o principal, é o surgimento da consciência na natureza como realidade indiferenciada

que, como a consciência (que será abordado na Fenomenologia do espírito), contém a

necessidade uma separação, de uma busca pela satisfação cujo encontro se dá pelo trabalho,

para a transformação e concretização de um objeto externo. O Sistema da eticidade traz a

importância da família como totalidade a ser desempenhada; porém, não como a mais

importante, pois a mais importante é a vida de um povo, ou seja, a vida de cada um, mas

desenvolvida a favor de todo o povo. Com isso, explica Hegel:

De maneira eterna existe, portanto, o indivíduo na eticidade; seu ser empírico e seu agir sem dúvida são universais: de fato, não é o individual que age, mas o espírito absoluto universal que está nele. A visão do mundo e da necessidade que é próprio da filosofia, segundo a qual todas as coisas estão em Deus, e não existe nenhuma singularidade, é completamente realizada (...) no fato de singularidade do agir, do pensar ou do se ter a sua essência e significado apenas no inteiro (...) Mas a intuição dessa idéia de eticidade é o povo (...) No momento em que o povo é a diferença viva, anula-se toda a diferença natural (...); e é justamente por isso que essa identidade de todos não é abstrata, não é igualdade do cidadão como bourgeois, mas uma identidade absoluta [...]65

64 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 709.65 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Escritos de filosofia do direito. p. 201-202. apud ROVIGHI, Sofia Vanni.

História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 711.

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Já é de nosso conhecimento que Schelling publicou, em 1801, o seu sistema com o

nome de Sistema do idealismo transcendental. Hegel, no mesmo ano, ainda em Jena, além

dos problemas ético-políticos, começa a se contrapor a sistemas filosóficos existentes.

Escreve o teórico sobre Diferença entre o sistema de Fichte e Schelling. Nele, contém

divisões enfocando sobre as formas do filosofar, a exposição do sistema fichteano, a

comparação entre os sistemas de Fichte e Schelling. Esse escrito afirma o espírito como

identidade de sujeito e objeto. É justamente no prefácio da Diferença que Hegel aponta a

diferença entre espírito absoluto e o espírito da filosofia kantiana. Começa o início de uma

grande discussão.

Para Hegel compor a Diferença, inúmeras discussões são geradas. Primeiramente pelo

fato de Kant limitar a identidade do sujeito-objeto a doze categorias e por não incluir nessa

identidade o conteúdo empírico. Hegel concorda com Kant quando afirma que a identidade do

sujeito é constituída pelo intelecto; o que ele não concorda é que essa unidade entre sujeito e

objeto seja limitada simplesmente ao fenômeno, não valendo para as coisas-em-si. Kant, com

isso, acaba de abandonar a razão ao intelecto. Outro motivo que causou discussões foi

justamente o problema de Fichte ao desenvolver seu sistema. A princípio – discordando de

Kant – afirma que tal identidade entre sujeito e objeto (para ele eu e não-eu) não é apenas

limitada ao fenômeno, mas vale para todo o real. Depois, desviando-se de tais princípios,

permite que a razão seja abandonada ao intelecto, impossibilitando a união dos opostos.66

Mais que discutir com Kant e com Fichte, encontra e elogia a filosofia de Schelling que

apresenta com júbilo uma necessidade de reconciliação entre os opostos, cuja identidade se

atualiza conservando-se em-si. Porém, interpreta de sua maneira e distingue a identidade

schellinguiana da sua na qual apresentará o desaparecimento de todas as diferenças entre os

opostos. Em suma, afirma:

A cisão (Entzweiung) é a origem da necessidade da filosofia. (...) Quando a força que unifica (Macht der Vereinigung) desaparece da vida do homem, quando os opostos perderam sua relação viva e sua ação recíproca e tornaram-se coisas estanques em si, então surge a necessidade da filosofia.67

Além de Diferença entre o sistema de Fichte e Schelling, produz em 1802, outro

escrito importante: Fé e saber. Uma espécie de reação ao Iluminismo que absolutiza a

realidade empírica e finita, chegando ao ponto de afirmar a impossibilidade do conhecimento

do absoluto por meio da razão. Com esse escrito dialoga, discute e discorda das filosofias de

Kant, de Fichte e de Jacobi. A de Kant por dar e apresentar a lei moral como a mais 66 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 712-713.67 ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 713.

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importante destacando, de modo único e exclusivo, a objetividade; a de Jacobi por destacar o

sentimento, ou seja, a subjetividade; e, por fim, a de Fichte, que reúne em si as duas primeiras

numa espécie de síntese, porém encontrando-se ainda no finito. Para Hegel é ainda

insuficiente e afirma: “[...] como Kant, ela exige a forma da objetividade e dos princípios, mas

contrapõe a essa pura objetividade a subjetividade como uma aspiração e uma identidade

subjetiva”.68

2.3 ESCRITOS DA MATURIDADE

Hegel faz de suas obras um grande sistema filosófico, e o último talvez, que unifica

toda a tradição filosófica bem como a ética, metafísica, filosofia da natureza, filosofia do

espírito, lógica e estética. Sua linguagem é altamente própria e técnica e, suas obras possuem

sentidos específicos, mesmo com a retomada de um mesmo assunto em diversas obras, que

integram e completam outras obras. A partir disso, conseguirá explicar e apresentar todo o seu

sistema. É como se ele não permitisse que fosse compreendida apenas parte de seu sistema,

mas sim o todo.69

Hegel, por ter sido pastor por três anos, escreveu, em 1795, a Vida de Jesus, sua

primeira obra e, entre 1798 e 1799, o Espírito do cristianismo e seu destino. A

Fenomenologia do espírito foi escrita em 1806 e, em 1807, deu-se a sua publicação, época em

que Napoleão vinculou Jena ao seu império. No ano de 1808 tornou-se professor no Liceu em

Nuremberg, no qual produziu a Ciência da Lógica, cuja primeira parte foi escrita em 1812, e

a segunda, em 1816.

Em 1816 Hegel já era professor titular de uma cadeira de filosofia na Universidade de

Heidelberg. Lá publicou a primeira parte da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, no ano de

1817. O filósofo atingiu seu ápice no ano de 1818, quando tomou posse da cadeira de

Filosofia da Universidade de Berlim.70 Quando catedrático, sucedendo Fichte na Universidade

de Berlim leciona uma série de cursos que foram publicados após sua morte como: as Lições

de história da filosofia, Lições de estética, Lições de filosofia da religião, Lições de filosofia

da história e os Princípios da filosofia do direito, esta publicada em vida no ano de 1821.71

Todas essas lições ou escritos são de fundamental importância para entender suas

principais obras. No primeiro a ser apresentado, Lições de história da filosofia, Hegel firma

seu pensamento (o da suprassunção, como veremos em seu sistema filosófico) no qual não

68 Ibidem, p. 714.69 Cf. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. p. 216.70 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel. In: Hegel. p. 589.71 Cf. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. p. 216.

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descarta nenhum dos sistemas filosóficos de sua época, mas leva-os a tomar parte na

compreensão do absoluto. Cada uma delas, afirma, possui um limite e delas se tira uma

justificação para a construção de seu sistema. Outro, com o nome de Lições de estética

designa a importância da arte, classificando-a em gêneros e estilos. Além disso, descreve e

analisa diversas artes, em especial a egípcia, a grega e a cristã, para afirmar a expressão do

absoluto enquanto conceito. Nas Lições de filosofia da religião, Hegel descreve a importância

da religião (manifestação) e da filosofia (total apreensão) como expressão do absoluto. A

religião absoluta para Hegel nada mais é que a junção de diversas religiões sob peculiaridade

da cristã luterana, a qual tenta elevá-la à religião da liberdade. Já em Lições de filosofia da

história destaca a importância do processo dialético para os acontecimentos históricos

fundamentais, para a consolidação de seu sistema. Dentro desses acontecimentos ocorre a

causalidade universal, produzida pelos indivíduos capazes de, na história, indicar o ardoroso

processo de racionalidade. E, por fim, Princípios da filosofia do direito que, como já foi dito,

foi a única lição publicada por Hegel. Nela descreve a objetivação do espírito, primeiramente

nas coisas humanas: a vida ética. Essa objetivação se divide em momentos: a família, a

sociedade civil e o Estado, como a representação mais alta, ou seja, a expressão do divino na

terra. Esses escritos contêm uma característica em comum e especial: juntos analisam

questões, retomando importantes pontos sobre os povos, os indivíduos, os Estados, religiões,

direitos, arte e, principalmente, a filosofia; formam, em Hegel, o grande quadro abrangente de

todo seu pensamento.72

2.4 A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

A Fenomenologia do espírito, segundo Denis Huisman em seu Dicionário dos

filósofos, “[...] é uma obra extraordinária, inclassificável, sedutora tanto por seus defeitos

manifestos quanto pela originalidade de sua concepção e de sua composição”.73 Nela Hegel

reconhece e descreve o movimento da consciência dentro de um processo dialético que parte

de sua ingenuidade, ou seja, certeza sensível até o ponto mais alto: o saber absoluto.

Importante para a compreensão do pensamento hegeliano é entender que é a consciência que

retoma o trajeto já percorrido pelo espírito humano num progresso em busca da verdadeira

liberdade. Os acontecimentos que marcaram a história humana, enquanto manifestação do

espírito absoluto, são essenciais para o percorrer da consciência individual que busca uma alto

compreensão de si mesma.

72 Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. p. 469-470.73 HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. p. 468.

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Phänomenologie des Geistes (Fenomenologia do espírito) foi publicada no ano de

1807. Essa obra fez frente a todas as outras obras filosóficas, por ser singular e por ser

pensada com um cunho histórico. Pode-se dizer que é um romance da consciência; uma

espécie de poema carregado de dramas inspirado em Dom Quixote (personagem título da obra

do dramaturgo Miguel de Cervantes Saavedra 1547-1616). Além do mais assemelha-se a uma

odisséia ou peregrinação na qual relata o constante perder-se e reencontrar-se da consciência.

Huisman também chega a afirmar que os leitores da obra são “[...] tentados a mencionar

naturalmente o calvário de Cristo (agonia, morte e ressurreição), visto que o modelo trinitário

é explicitamente assumido por Hegel.”74 Esses dramas são necessários para alcançar o nível

do conhecimento Absoluto. A respeito disso, afirma Hegel:

A meta, o Conhecimento absoluto, ou o espírito, que conhece a si mesmo como Espírito, tem por sua senda o reconhecimento dos Espíritos como eles são em si mesmos e como eles efetuaram a organização de seu reino. A preservação deles, vista do lado de sua existência livre (isto é, não inserida no interior de uma estrutura de explicação filosófica), aparecendo na forma de contingência, é História; mas considerada do lado de sua organização filosoficamente compreendida, é a Ciência do conhecimento na esfera da aparência: os dois juntos, História compreendida, formam como que a interiorização e o Calvário do Espírito Absoluto.75

Há que se pensar também que a sua própria vida, a juventude, o despertar filosófico e

toda a sua maturidade acadêmica, como momentos particulares, levaram-no a um despertar de

sua própria consciência. Ao entender sua história, seu contexto com todos os acontecimentos

denominados momentos singulares, entende-se o significado de uma vida individual que é

inserida no universal.76 Assim, essa obra indica o caminho que o leitor deverá percorrer para

chegar ao auto-reconhecimento por meio da consciência: num primeiro instante em se

reconhecer; depois, tomar consciência que é e, por fim, fundamentar-se na razão. A

Fenomenologia do espírito atrai e repele o leitor. Indica, ao leitor, que é dele próprio que se

trata, bem como a importância de sua história. Ao obedecer a um esquema didático, a

Fenomenologia do espírito apresenta-se como uma introdução ao sistema hegeliano,

inicialmente se dividindo em três grandes partes: a primeira com um denso conteúdo sobre a

lógica; a segunda, sobre a filosofia da natureza; e a terceira, sobre a filosofia do espírito que

será melhor estudada no capítulo seguinte. Contudo, Denis Huisman, na obra Dicionário de

Obras filosóficas, sintetiza o pensamento hegeliano decorrente da composição da

Fenomenologia do espírito. Com isso, afirma:

74 HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. p. 226.75 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 201. v. II.76 Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. p. 226.

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Fenomenologia do espírito é um afresco ao longo do qual as grandes correntes do pensamento ocidental são convocadas para ilustrar um momento preciso da vida do Espírito; é assim que Hegel vai invocando, sucessivamente a tragicidade dos gregos, a contradição em Roma entre a subjetividade pessoal e a objetividade universal, o ascetismo da Idade Média, o Renascimento, o Iluminismo, a Revolução Francesa, o Terror, o romantismo alemão: momentos históricos que compõem ao mesmo tempo o quadro do mundo em sua universalidade e a conquista do Espírito, da Razão através da história.77

2.5 A CIÊNCIA DA LÓGICA

A primeira edição da Ciência da lógica foi escrita, como já visto, entre os anos 1812 a

1816. A Ciência da lógica se divide em três momentos: o primeiro, publicado em 1812, é

sobre a Doutrina do ser; posteriormente, em 1813, publica a Doutrina da essência, e por fim,

em 1816, a Doutrina do conceito. Juntas formam uma obra totalmente independente.78 Porém,

ouve uma segunda edição: uma revisão. Foi publicada em 1830, um ano antes de sua morte. A

lógica de Hegel não é uma lógica formal (natural da matemática) sobre o conhecimento, mas

uma lógica concreta; ela vai além, julga-a como a lógica de todo o pensamento. Ela é

metafísica, um esquema de leis, etapas, caminhos da natureza e da história em busca do

absoluto, da ciência do absoluto. A diferença de sua lógica para a lógica formal está no

conteúdo, que não é dado, mas construído com o passar ou percorrer das etapas, momentos. A

Ciência da lógica firma-se num processo idealista.

Desde o início de seu pensamento, Hegel apresenta a importância do desenvolvimento

de uma dialética (dialética essa que será apresentada no quinto capítulo deste presente

trabalho). A dialética não é somente o método usado na obra, mas, segundo o filósofo,

encontra-se em tudo e em todos. Tamanha foi a eficácia de seu sistema, fundamentado na

lógica dialética, partindo das Lições de Berna que se tornou o maior e incomparável estudioso

de toda a história da filosofia. Hegel foi o grande sistematizador, e a Ciência da lógica provou

isso.79

2.6 A ENCICLOPÉDIA DAS CIÊNCIAS

A obra Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio foi escrita em 1817. A

definição a ela dada pelo filósofo foi simples. Precisava de algo menos denso e mais

subdividido para apresentar em suas aulas e assim ensinar seus alunos. Com ela pretendia

fornecer as bases introdutórias para a filosofia, especialmente para seu sistema (embora fosse

77 HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. p. 227.78 Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. p. 55.79 Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. p. 469.

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contra uma introdução na filosofia), exigidas pelos editores, ao ser publicado. Tal exigência se

encontra no Prefácio da Fenomenologia do espírito. Hegel, por sempre retomar as bases

fundamentais, ou seja, a tríade dialética, reformula ou reesquematiza aquilo que já havia nos

escritos de Jena. Seu novo escrito também parte de um momento lógico, passa por um

momento da filosofia da natureza e desemboca na filosofia do espírito. Eis o motivo de ela

também se dividir em: Ciência da lógica (1812-1816), Filosofia da natureza e Filosofia do

espírito. Essa obra representou, também, a grande indignação de Hegel frente à Enciclopédia

de Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783) por se tratar de uma

espécie de compêndio independente e sem ligação filosófica, ou sem unidade com o todo.80

2.7 PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO

A Filosofia do direito de Hegel contém três pontos fundamentais: o primeiro traz a sua

posição em relação à crítica do empirismo dogmático, ou seja, a teoria que abstrai da

realidade uma determinação particular e dela pretende explicar tudo; o segundo faz uma

crítica da filosofia prática do Idealismo kantiano e fichteano; e por fim, o terceiro, apresenta o

ideal da comunidade organizada. Nessa, Hegel afirma a questão da negatividade absoluta, em

que a guerra é essencial para a vida de um povo, para a vida do Estado. Essa obra aborda

principalmente a filosofia política de Hegel. Sua primeira filosofia do direito, publicada no

jornal, em colaboração com Schelling, foi a filosofia do direito natural. O motivo dessa

publicação era justamente exprimir um ideal filosófico em comum.81

Com essa obra Hegel tenta unir o direito (objetivo), vontade que parte do exterior, e a

moral (subjetivo), vontade que parte do interior, que se dividiram a partir da filosofia de Kant.

Pretende realizar tal unificação a partir de uma moralidade objetiva. Para que isso seja

possível, primeiramente define a filosofia como conhecimento daquilo que é e não o que deve

ser. Com isso, enquadra a sociedade e o Estado nos moldes de uma vida ética e jurídica cuja

preocupação não esteja mais no julgar, mas sim no compreender a totalidade.82 Como

veremos no capítulo seguinte, quando Hegel retoma a eticidade no desenvolvimento do

espírito objetivo como uma condição para alcançar a consciência (expressão da razão) e

liberdade. Contudo, Hegel, por tentar unificar o que Kant dividiu, não nega o sujeito moral de

Kant, mas o tem simplesmente como uma etapa a ser desenvolvida para alcançar o ponto mais

alto: o Estado.

80 Ibidem, p. 162-163.81 Cf. HYPPOLITE, Jean. Introdução à filosofia da história de Hegel. p. 56.82 Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. p. 443.

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Ao enfocar a vida ética, subdividida em família, sociedade e Estado, Princípios da

filosofia do direito apresenta uma recusa. Essa recusa, principalmente no campo político, diz

respeito ao Estado. Hegel não aceita que Estado seja uma instituição jurídica, mas sim o que

desejara: que o Estado fosse a expressão máxima de uma moralidade objetiva, ou seja, o

supremo na Terra, a razão, a liberdade. Por ser a expressão máxima, o Estado representa uma

ponte que servirá para o indivíduo chegar à grandeza universal. Esse atingir, esse chegar, só

será possível pela proposta hegeliana de uma moral objetivada.

Um exemplo de uma expressão máxima desencadeada na história foi o Estado da

Prússia enquanto governado por Frederico Guilherme. Hegel, embora pareça um filósofo

conservador e antiliberal, prefere a monarquia constitucional como sistema governamental.

Essa obra, em especial, expressa seu lado liberal.83 Porém, esse exemplo de expressão não se

fixa somente em Frederico Guilherme, mas em Napoleão, quando reflete sobre os

acontecimentos de sua juventude, em Jena, no ano de 1807, os quais tinha pessoalmente

presenciado. Foi por causa da audácia de Napoleão que Hegel pode revelar a suprema

importância do Estado como um produto da evolução histórica. Com isso, por não concordar

com o regime político vigente, que não obedecia à história do mundo para o desenvolvimento

do espírito ideal de sua época, afirma a guerra como movimento necessário na história:

É verdade que a guerra traz a insegurança às propriedades, mas esta insegurança real é apenas o movimento que é necessário. Nos púlpitos não se cessa falar de insegurança, na fragilidade e na instabilidade das coisas temporais, mas cada um pensa, por comovido que esteja, que apesar de tudo conservará aquilo que lhe pertence; quando porém essa insegurança aparece efetivamente sob a forma de hussardos com o sabre à vista, e tudo isso deixa de ser uma brincadeira, então essas mesmas pessoas edificadas e comovidas se põem a maldizer os conquistadores. No entanto, as guerras têm lugar quando são necessárias, pois as colheitas germinam ainda uma vez e as tagarelices cessam diante da seriedade da história.84

2.8 O HEGELIANISMO

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, no ano de 1829 até a data de sua morte, 1831, ocupou

com excelência a reitoria da Universidade de Berlim. Sua filosofia alça vôo a tal ponto de

dividir seus discípulos em hegelianos de direita e hegelianos de esquerda. Dos discípulos de

esquerda, ou como eram conhecido, jovens hegelianos, surgiu Karl Marx (1818-1993); e, dos

discípulos de direita, surgiu Carl Schmitt, que posteriormente se juntou ao regime nazista.85

Tamanha foi a importância de seus escritos, obras, aulas, que toda a sua filosofia resultou nos

alicerces das correntes formadoras do pensamento contemporâneo. 83 Ibidem, p. 444.84 HYPPOLITE, Jean. Introdução à filosofia da história de Hegel. p. 92.85 Cf. REPA, Luiz Sérgio. O enigma Hegel: história e metafísica. In: Mente, Cérebro & Filosofia. p. 75. n. 3.

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Durante toda a vida, toda a sua filosofia se manteve ligada entre si. A divisão que sua

filosofia sofreu após sua morte foi gerada pelo parlamento francês, que também sofreu uma

divisão, cuja causa principal foi diferença na interpretação da idéia absoluta; primeiramente os

esquerdistas, ao interpretarem a idéia absoluta como uma abstração cuja existência só seria

possível na natureza; afirmaram isso, ao dizer que a natureza se basta por si mesma. Segundo,

numa definição oposta à primeira, afirmam que a idéia absoluta necessita de um suporte para

sua existência; esse suporte, necessariamente, é um espírito real, transcendente e consciente.

Os expoentes de esquerda são: Strauss, Feuerbach, Marx e Engels. Os de direita são: Göschel,

Gabler, Gans, Erdmann e Schaller. Devido a numerosos seguidores, a filosofia hegeliana

espalhou-se com o hegelianismo em muitos países especialmente na Rússia, no Reino Unido,

na Itália, na França e, principalmente, na Alemanha.86

3 A FILOSOFIA DE HEGEL

A produção filosófica de Hegel é considerada extremamente importante por ser o ponto

culminante do racionalismo. Somente Hegel conseguiu elaborar um sistema filosófico único,

complexo – contendo sua própria linguagem – e abrangente. Com esse sistema Hegel pretende

abarcar o maior número de assuntos com a finalidade de harmonizar a filosofia com a realidade. O

sistema hegeliano foi a última grande tentativa para fazer do pensamento o abrigo da razão e da

liberdade alcançados pelos três momentos do devir: a Lógica – filosofia do Ser – a filosofia da

Natureza e a filosofia do Espírito. Neste capítulo os principais termos serão destacados inicialmente

com letra maiúscula, como por exemplo: Lógica, Natureza e Espírito representados pela grande Tese,

grande Antítese e grande Síntese, por constituírem a tríade principal do sistema hegeliano, além da

Idéia, que tem como princípio o Ser, e, como fim, a contemplação ao Absoluto. Esses são os termos

mais usados por Hegel na elaboração e desenvolvimento do toda a sua filosofia.

86 Cf. MASIP, Vicente. História da filosofia ocidental. p. 257.

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3.1 A HISTÓRIA E A FILOSOFIA EM HEGEL

Antes de nos adentrarmos pelo conceito de filosofia em Hegel e conhecermos a sua filosofia

e seu sistema, devemos lembrar que o termo conceito é definido por ele como a essência, como

verdade do ser, o seu em si, ou seja, o verdadeiro ser. O conceito é o único capaz de proporcionar a

realidade, que é devir, que é razão, e que possui uma atividade espiritual.87 Essa definição se tornará

a base para a compreensão do início de seu sistema, que se dividirá em filosofia do Ser (Lógica),

filosofia da Natureza e filosofia do Espírito. Esses são os três momentos da história.

A filosofia expõe a expressão e o caráter de um povo dentro de sua história, de sua época.

Essa filosofia possui, segundo Hegel, uma estrutura. Estrutura essa que é simultânea à de um povo

juntamente com o seu sistema organizacional de uma vida social e ética, com suas aptidões,

costumes, religião, bem como a decadência do Estado, nos quais esses princípios se fundamentam, e

o surgimento de outros princípios mais elevados que contêm um maior desenvolvimento. Sobre a

importância da filosofia, diz Hegel:

[...] é a flor mais elevada, é conceito da estrutura total daqueles múltiplos aspectos, a consciência e a essência espiritual de todo o Estado, é o espírito da época, enquanto espírito existente que se pensa. O todo multiconfigurado se reflete nela como no foco simples, como no conceito do todo que se conhece a si mesmo.88

A filosofia é um sistema, ou seja, uma totalidade, um desenvolvimento que vai do simples ao

concreto; uma evolução. É o próprio pensamento em sua atividade que se aproxima da consciência.

Consciência, que pensa sobre si mesma, que se converte em objeto, que retorna a si e que pensa de

modo livre, permanecendo em si.

Já a história da filosofia é o espírito em desenvolvimento; um desenvolvimento no tempo,

caracterizado pelos acontecimentos históricos de um país, de uma nação. Ela se assemelha ao

sistema da filosofia pela sistematização e ocupação do pensamento puro, que a faz tornar-se uma

ciência. A história da filosofia surge da própria filosofia. Hegel afirma que uma é reflexo, cópia da

outra caminhando e se desenvolvendo juntas. São inseparáveis. Ao estudar a história da filosofia

estuda-se a própria filosofia (filosofia do Ser) estuda-se a Lógica, ou seja, o princípio inteligível, a

Idéia em si. Essa Lógica faz parte de um dos três grandes momentos no devir dialético; é a Tese do

sistema hegeliano que apresenta o movimento do Absoluto.89

87 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 165-166.88 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à história da filosofia. p. 220-221.89 Ibidem, p. 50-53.

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Hegel atribui a expressão história da filosofia a um resumo da história dos principais povos,

bem como sua evolução; uma análise dos aspectos das principais civilizações. Para ele, a história

universal não é senão a história do progresso da consciência a caminho da liberdade. A filosofia da

história tem uma base, e essa base está alicerçada em um processo de desenvolvimento. É esta

análise que lhe permite perceber, principalmente na sociedade oriental, a falta de liberdade e,

conseqüentemente, o domínio do soberano e seu sistema governamental.

Como exemplo, ao citar o mundo oriental, Hegel refere-se à China, à Índia e ao antigo

império persa. Exceto o antigo império persa, as outras duas foram classificadas pelo filósofo como

civilizações estacionárias, que atingiram o seu grau de desenvolvimento e pararam. Elas não foram,

de forma alguma, capazes de proporcionar a consciência individual, a liberdade a cada indivíduo de

sua nação; somente a Pérsia, por ter um potencial de expansão. Essa civilização entrou em guerra

com Esparta, Atenas e outras Cidades-Estados da Grécia antiga. O processo de dominação entrou em

cena: o imperador persa exigiu que os gregos reconhecessem sua supremacia (como ocorrerá na

dialética do Senhor e do Escravo); mas eles se recusaram. Isso se deu ao fato de os gregos

obedecerem a uma motivação interna e natural a favor de seu país. Eles não pensavam em si

próprios, mas nos interesses da comunidade; não possuíam o conceito de consciência individual.

Segundo Hegel, essa ainda é uma forma incompleta de liberdade.

A idéia grega de liberdade, para Hegel, é limitada, pois admitia a escravidão. Os escravos

deviam existir para a execução dos trabalhos diários. A forma do conceito de consciência que os

gregos possuíam não era a individual e era incompleta, pois a idéia de liberdade não resultava do uso

da razão do indivíduo. Entretanto, o pensamento crítico e a reflexão de cada indivíduo são

necessários para alcançar a verdadeira liberdade. Através da razão o indivíduo torna-se livre de

qualquer motivação interna natural ou hábito e aprende a refletir criticamente sobre os

acontecimentos do mundo.90 Isso será comprovado por Hegel ao sistematizar tríades para o

movimento do Absoluto.

Sabendo que a filosofia é o pensar que tem por conteúdo não somente o subjetivo, ou

abstrato, mas também o próprio ser no seu desenvolvimento, o concreto, podemos identificar o

começo da história da filosofia. Diz Hegel:

A história da filosofia é a história do pensamento livre, concreto, ocupa-se somente consigo mesmo. Não existe nada racional que não seja resultado do pensar, não do pensar abstrato, pois este é o pensar inteligente (do pensamento), mas do pensamento concreto, que é a razão.91

90 Cf. SINGER, Peter. Hegel. p. 22-30.91 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à história da filosofia. p. 26.

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Dessa forma, o sujeito produz quando reflete sobre algo e quando conhece sua essência

como universal. Essa produção ocasiona o surgimento do Espírito, o surgimento da filosofia que,

automaticamente, relaciona-se e se manifesta no Estado – exigindo um povo – gerando ao próprio

indivíduo a verdadeira liberdade.92

3.2 O PROCESSO TRIÁDICO DO ESPÍRITO

Hegel, por ser o idealizador de um novo sistema filosófico, fundamenta seu pensamento em

três pontos importantes e essenciais. Com eles, determinará o objetivo e o caminho necessário para

alcançar o verdadeiro filosofar; esse é o caminho que primeiro será percorrido pelo espírito, na

consciência, e depois, pelo sujeito, em sua história. E mais, explicará que a realidade não é

substância, mas sujeito (pensamento ou espírito). Os três pontos desse processo são: a realidade

enquanto espírito infinito, que sempre supera algo determinado; a estrutura, ou vida do espírito, da

onde decorre o desenvolvimento da filosofia, do saber através de um processo dialético; e, por fim, o

elemento especulativo, ou a marca do pensamento filosófico.

O Espírito por ser infinito, se auto-gera, gerando sua própria determinação. Gera o negativo

pelo qual virá a se realizar após superá-lo. Esse Espírito está sempre atuando; sempre em

movimento, percorrendo um caminho necessário para a sua auto-realização e produzindo os

conteúdos necessários para isso. Com esse movimento, com esse percurso, é possível entender a

dialética, onde o Espírito agirá de forma circular, numa constante negação e superação: base e motor

de seu desenvolvimento.

O círculo, que fechado em si repousa, e retém como substância seus momentos, é a relação imediata e, portanto, nada maravilhosa. Mas o fato de que, separado de seu encontro, o ocidental como tal – o que está vinculado, o que só é efetivo em sua conexão com outra coisa – ganha um ser-aí próprio e uma liberdade à parte, eis aí a força portentosa do negativo: é a energia do pensar, do puro Eu.93

Neste círculo, o princípio e o fim se coincidem. O que antes era Ser, com Hegel, torna-se

devir (razão infinita) ou dever-ser: uma figura, sempre diversa, que o Espírito produz e que sempre

92 Ibidem, p. 164-168.93 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 38. v. I.

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poderá ser superada. Graças a esse movimento, denominado dialético (será apresentado

especificamente no capítulo V), o espírito sempre se auto-revelará.94

A filosofia hegeliana é idealista e ressalta a importância da dimensão histórica. Essa

dimensão é a manifestação do Absoluto; é história sagrada, pois se auto-revela a partir de seus três

momentos: Lógica, Natureza e Espírito – não num sentido cronológico – num processo para a

aquisição da razão, como uma teologia não mais revelada, mas racional. Uma manifestação da razão

que por si só é deus, é natureza, é história, é real. Hegel, com essa determinação e conclusão para o

seu sistema, inverte os valores propostos pelo cristianismo: humaniza o que antes era sagrado e

torna divino o homem e o mundo. Esse é o sentido de a filosofia (razão) e a história (homem, mundo,

sujeito) caminharem juntas e se fazerem necessárias uma à outra.95

3.2.1 OS TRÊS GRANDES MOMENTOS DO DEVIR

Como vimos, o devir é definido por Hegel como o movimento incessante dentro do Absoluto,

ou o seu desenvolvimento, sua superação. É a união do ser (aquilo que é) com o seu não-ser (aquilo

que foi negado, exteriorizado). O devir é o responsável por tornar aquilo que não-é em ser e,

conseqüentemente, aquilo que é em não-ser. Os seus três grandes momentos progridem-se em: a

idéia em si (tese), ou seja, a filosofia do Ser, a Lógica; a idéia fora de si (antítese), ou seja, a filosofia

da Natureza, a exteriorização da idéia no espaço e no tempo; e por fim, a idéia em si e para si

(síntese), ou seja, a filosofia do Espírito, que significa o retorno da idéia para si mesma. É nesse

terceiro momento que se encontra a tríade principal do espírito, que se divide em espírito subjetivo

(na qual se encontra a fenomenologia do espírito, e, dentro desta, a dialética do Senhor e do

Escravo) espírito objetivo e espírito absoluto.96

3.3 A LÓGICA: FILOSOFIA DO SER

A Lógica de Hegel é diferente da lógica tradicional; é a ciência do pensamento. Ela vai contra

as teorias tradicionais que se fundamentam na estrutura e não no conteúdo. O que Hegel demonstra

é que não se pode formular uma conseqüência lógica, pois a lógica é inseparável do próprio ato de

pensar, do pensamento. O que acontece com os conceitos na Lógica de Hegel, é o auto-movimento,

a auto estruturação do todo, ou seja, os momentos existentes para maior compreensão; e,

94 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 100-103. v. 5.95 Cf. SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia: do século XIX aos nossos dias. p. 38.96 Cf. MASIP, Vicente. História da filosofia ocidental. p. 253-255.

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conseqüentemente, a sua superação. É por meio da separação que nascem os novos conceitos; por

meio das transformações dialéticas. Porém, Hegel atribui o processo da lógica, do pensar não a um

ou qualquer sujeito particular, mas a um sujeito geral, visto que a Lógica passará a ser a própria

história ou, como diz o filósofo, um conceito eterno. Contudo, a Lógica é a única capaz de

compreender a totalidade das coisas, pois existe quando pensa a si mesma.97

Dizendo da Lógica que é a ciência do pensamento em geral, entende-se que esse pensamento não passa da forma pura e simples de um conhecimento, que a Lógica faz abstração de todo conteúdo, e que o outro elemento constitutivo, fazendo parte de um conhecimento, quer dizer, a matéria, deve vir de outra parte e que, em conseqüência, a Lógica, da qual essa matéria é totalmente independente, não pode oferecer senão condições formais do verdadeiro conhecimento, e não a verdade real, assim como não poderia ser o caminho que conduz a essa verdade real, justamente porque o elemento essencial da verdade, o conteúdo, se encontra fora dela.98

A Lógica, ou ciência da idéia em si, “[...] que constitui a metafísica propriamente dita, ou a

filosofia especulativa [...]”99 é a primeira série de tríades do sistema hegeliano. Caracteriza-se como

modo abstrato do pensamento. Ela é a Tese, perante a Natureza, que é a Antítese, e o Espírito, que é

a Síntese ou conciliação dos dois. A Idéia se divide em ser (tese), essência (antítese) e conceito

(síntese) ou noção. E, cada uma dessas divisões se subdivide, possuindo o seu ser (pequena tese), o

seu nada (pequena antítese) e o seu devir (pequena síntese). Dá-se, assim, continuidade à Lógica

proposta por Hegel, cujo Espírito sempre se supera, passando para a próxima fase. O Ser, ou a Lógica

– que é a grande Tese – da tríade do movimento Absoluto não pode ser confundida com a idéia de

ser ocorrida em sua subdivisão: ser, nada e devir.100

O ser (tese) é o primeiro momento da Idéia em si. Este momento sofreu influência direta de

Parmênides. Em relação aos outros, o ser, por ser o primeiro, é o conceito mais pobre em

determinações; é o ser em geral, o ser e nada mais; sem preenchimento. Com isso, Hegel explica

deus como ele é em sua essência. Um deus que se faz, que se constrói, que acumula riquezas e cuja

perfeição está somente no fim do processo ou do percurso a ser percorrido e não no começo. O ser

não possui corporeidade e nem determinações. Seu significado mais amplo é o imediato, a

aparência.

97 Cf. SCRUTON, Roger. Introdução à filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. p. 67-168.98 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Ciência da lógica, Introdução à 1ª edição. apud CORBISIER, Roland.

Hegel: textos escolhidos. p. 44.99 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Ciência da lógica, Prefácio à 1ª edição. apud CORBISIER, Roland.

Hegel: textos escolhidos. p. 44.100 Cf. NÓBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. p. 54-57.

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Mas, para que essa comparação seja possível, foi necessário unir os termos ser e nada ao um

mesmo significado: devem-se tornar idênticos, porém opostos, e que cada um, desapareça frente a

seu oposto: eis o devir, eis o acontecimento dialético. Ao dizer que ser e nada são a mesma coisa,

não se pode dizer que são iguais, pois são respectivos e diferentes momentos do devir, certa

inquietude. Hegel vai contra o pensamento de Parmênides ao afirmar que ser é apenas ser em sua

permanência, imutabilidade e unidade. Se assim fosse, o devir não seria possível. Portanto, sobre a

Lógica do Ser, Hegel afirma que ela não é uma matéria puramente formal, e sim a mais pura idéia, ou

seja, a mais pura realidade em sua totalidade.101

O segundo momento é a essência (antítese da idéia em si), ou seja, a negação do primeiro

momento, o negativo e o essencial ao movimento do Absoluto. Sabe-se que o ser e o nada são

distintos, porém se identificam quanto ao conteúdo que não possuem. Isso é possível entender

devido à influência que Hegel sofre de Heráclito: o ser é como o não-ser, o devir é também não é. A

unificação do ser e do nada ocorre através do devir. Hegel afirma em sua obra Ciência da lógica, que

o início não é o puro nada, porque dele deve sair alguma coisa. Assim entende-se que no próprio

início está contido o ser e o nada, está contido a unidade dos dois.

Essa essência se manifesta através de um fenômeno, ou seja, a essência torna-se uma nova

existência. Essa existência possui a mesma realidade que o ser, porém não mais de forma imediata;

ela tornou-se mediatizada pelo processo de reflexão. Possui uma razão de existir. Hegel dá a

explicação, afirmando que isso é o mundo visto como a manifestação de deus. Afirma que a essência

que deve aparecer é o mesmo que o mundo sendo a manifestação de deus. Esse é um sentido

mundano e não mítico. Dessa forma pode-se entender o que o filósofo quis dizer sobre o mundo e

deus, sobre a prova ontológica e prova cosmológica: deus se manifesta no mundo, e o mundo é a

manifestação do Absoluto. deus ainda não é, ele se constrói, se faz e precisa do ser humano para se

tornar pleno. Portanto, a essência é a verdade do ser, o verdadeiro ser, o fundamento, o conceito.102

E por fim, o terceiro momento do movimento ocorrido dentro da Idéia é a noção ou conceito

(síntese da idéia em si), ou seja, a unificação dos dois primeiros momentos. O ser (tese) e a essência

(antítese) são momentos necessários para afirmação do conceito: que é a verdade da substância.

Hegel compara o conceito ao eu transcendental kantiano, ao eu penso que se auto-cria (é razão

unificadora) e com capacidade para criar todas as determinações lógicas. É o negativo de forma

absoluta, pois nega tudo o que foi determinado e as supera; torna-se a positividade absoluta.

101 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 730-733.102 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 734-736.

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O conceito é o inteligível, a determinação reflexiva, pois se realiza primeiramente como ser e

depois como essência sendo resultado da captação e da exteriorização do intelecto que é o conjunto

dos conceitos. Hegel introduz um novo plano para a compreensão do conceito: não mais no campo

do intelecto, mas no campo superior da razão Esse refletir constitui os opostos como: particular e

universal, singularidade e pluralidade, finito e infinito, ou seja, o jogo de contradições que a realidade

apresenta.103

Portanto, no movimento dentro da Idéia em si, o primeiro momento é a unificação do ser

com o nada na pura imediaticidade. O segundo é o da essência, o auto constituir-se no jogo dos

opostos: devir de Heráclito. E, como síntese, há o terceiro momento, em que o conceito consiste na

unificação dialética do ser e do devir. O conceito torna-se Idéia, pois se auto-realizou plenamente. A

Idéia é portadora da totalidade, pois conciliou o ser e a essência (subjetivo e objetivo) nos momentos

de sua realização, em todos os momentos da Lógica num sentido especulativo. Hegel chama essa

síntese de Idéia Absoluta, porém ela precisa se manifestar como Natureza para ter existência.

3.4 A FILOSOFIA DA NATUREZA

A tríade dialética que movimentou a filosofia da Lógica também acontece com a

Natureza e, posteriormente, com o Espírito, já que fazem parte do movimento do Absoluto:

assim lembra Hegel:

A Natureza é a idéia absoluta, na forma da alteridade, da objetividade indiferente, exterior, da efetivação concreta, individualizada, de seus momentos, isto é, a essência absoluta na determinação da imediatidade, em relação à sua mediação. O vir-a-ser da Natureza é um vir-a-ser na direção do espírito.104

Deve-se lembrar que nesse movimento da tríade principal do movimento do Absoluto, a

Idéia em si, ou a Lógica é a grande Tese. Ao continuar o movimento, perceberemos que a Natureza

será a grande Antítese, ou seja, a Idéia alienada, objetivada, pois se exteriorizou no espaço e no

tempo: passará da fase em si à fase fora de si. Da mesma forma que a Lógica a Natureza se divide,

tornando-se a segunda série de tríades. Ao se dividir, a Natureza constitui-se em matéria (tese),

103 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 120-122. v. 5.104

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Propedêutica filosófica, 3º Curso, parág. 96. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 62.

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física (antítese) e orgânica (síntese).105 A Natureza perderá a sua logicidade, porém adquirirá uma

concretude.

Para entendermos a filosofia da Natureza, devemos nos lembrar de que a Lógica hegeliana é

“[...] a representação de deus em sua eterna essência antes da criação da Natureza e de um espírito

finito”.106 Se Deus é a Idéia em si, a Natureza é a Idéia alienada (ilógica), externada, fora de si. É Deus

que se fez outro, para perante esse outro ser reconhecido. O fato de a Idéia sair do local onde estava,

exteriorizar-se, não significa que ela participe de um processo contínuo, mas sim, do processo de

negação, de uma dialética.

O primeiro momento da tríade interna da Natureza é a mecânica ou matéria (tese), nos

limites do espaço e do tempo. A interioridade da Idéia, que era interna a si mesma, ao se exteriorizar

expressa-se em espaço, tempo e matéria. Um movimento local compreendido como formas ou

abstrações. Ao contrário de Kant, que havia denominado o espaço e o tempo como formas da

intuição, para Hegel o espaço é a exterioridade imediata (momento da própria realidade), ou seja, a

objetividade abstrata (uma parte distinta da outra) e o tempo é o devir intuitivo, a subjetividade

abstrata, este instante diferente daquele. A matéria nada mais é que a passagem do ideal (abstrato)

ao real (concreto).107

O segundo momento da tríade interna da Natureza é a física (antítese), que substitui a

mecânica. A tese dessa tríade era puramente abstrata: espaço e tempo, porém, aplicáveis às coisas

concretas. Agora, a antítese, ou seja, a exteriorização é a concretização das coisas, nas espécies da

Natureza e nos objetos individuais. E, por fim a orgânica (síntese); o terceiro momento da tríade

interna da Natureza. Ela é a responsável pela aquisição da unidade ocorrida nas plantas e nos

animais. Aqui a Naturezas e torna consciente, e ocorre o retorno para si; porém, não é totalmente

pura, pois é uma exteriorização irracional. Ela começa a atingir o próximo nível: o Espírito.108 Sendo

assim:

A Natureza deve ser entendida como um sistema de degraus, no qual cada um procede necessariamente do outro, não, porém, de tal sorte que cada um seria engendrado naturalmente pelo outro, mas pela idéia interior, que é fundamento da natureza. O movimento da idéia da Natureza consiste, para ela, em sair de sua imediatidade para ir em si mesma, suprimir-se e tornar-se espírito.109

105 Cf. GHIRALDELLI JR, Paulo. Introdução à filosofia. p. 85-87.106 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, parág. 256. apud

CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 142.107 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 739-741.108 Cf. NÓBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. p. 60-67.

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3.5 O ESPÍRITO

O Espírito é o terceiro e o grande momento do movimento do Absoluto, ou do sistema

hegeliano. É a Idéia tornada consciente de si mesma, para si. A Idéia, que antes era em si (Lógica) e

depois se exteriorizou, tornando-se fora de si (Natureza), retorna a si mesma numa grande Síntese

dos opostos: o Espírito. A reconciliação do dever ser (Idéia) e do ser (Natureza) é feita pelo Espírito.

Sobre o Espírito, Hegel afirma:

O espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente: o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como [também] o Em-si pensado de toda a consciência-de-si. [...] é a essência absoluta real que a si mesma se sustém.110

O Espírito, ou a Síntese do sistema hegeliano, subdivide-se em outras três tríades: 1. a tríade

do espírito subjetivo (tese), que contém a consciência (pequena tese); a autoconsciência (pequena

antítese); e a razão (pequena síntese); 2. a tríade do espírito objetivo (antítese), que contém o direito

(pequena tese); a moralidade (pequena antítese); e a eticidade (pequena síntese), determinando-se

hierarquicamente em família, na sociedade civil e no estado; 3. a tríade do espírito absoluto (síntese),

que contém a arte (pequena tese); a religião (pequena antítese); e a filosofia (pequena síntese).111

3.5.1 O ESPÍRITO SUBJETIVO

O primeiro momento da filosofia do Espírito enquanto a grande Síntese, é o espírito

subjetivo, ou seja, a sua tese interna. Ela apresenta o indivíduo que é estudado num sentido vasto

pela psicologia que se divide em antropologia, fenomenologia do espírito (que terá um capítulo

específico, por ser a obra referência de Hegel usada na elaboração deste trabalho e por conter a

dialética do Senhor e do Escravo – título técnico desta pesquisa) e a psicologia propriamente dita.

Sobre o espírito subjetivo, afirma Hegel:

O espírito, desenvolvendo em sua idealidade, é o espírito enquanto cognoscente. Aqui porém o conhecer é concebido [...] no modo em que o

109HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Propedêutica filosófica, 3º Curso, parág. 97. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 62.

110 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 8. v. II.

111Cf. SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia III: do século XIX aos nossos dias. p. 40-44.

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espírito concreto se determina para ser esse conhecer. [...] Na alma desperta a consciência; a consciência se põe como razão, que imediatamente se despertou para ser a razão que sabe dela mesma; essa razão, por sua atividade, se libera para ser objetividade, a consciência de seu conceito.112

O primeiro momento da subdivisão do espírito subjetivo (tese) estuda a alma (pequena tese).

Essa é objeto da antropologia, cujo espírito se faz numa unidade vital com o corpo. O homem ainda

está fechado em sua subjetividade. O segundo momento dessa subdivisão estuda a consciência

(pequena antítese). A consciência é objeto da fenomenologia. É por ela, e através dela, que o sujeito

se autoconhecerá, refletindo-se sobre si mesmo. A fenomenologia estudará o processo cuja

consciência, ao adquirir a autoconsciência, chegará à razão. Essa autoconsciência a ser formada não é

a mesma autoconsciência adquirida pelos três momentos do espírito absoluto (arte, religião e

filosofia) que se tornam o universal; é, porém, a formação da consciência individual e singular, pois

ainda não se objetivou nas regras sociais contidas no espírito objetivo (antítese). E, por fim, o terceiro

momento, o espírito (pequena síntese), que é estudado pela psicologia; momento caracterizado pelo

auto-reconhecimento da consciência, proporcionando ao sujeito a liberdade, bem como o saber e o

querer.113

3.5.2 O ESPÍRITO OBJETIVO

O segundo momento da filosofia do Espírito, enquanto a grande Síntese, é o espírito objetivo,

ou seja, a sua antítese interna. Ao contrário do primeiro momento, o espírito

subjetivo, cujo espírito ainda é individual, nesse momento tem-se o espírito como geral, como

externalizado. O espírito subjetivo, por ser vontade, ao se libertar de toda sua subjetividade passa a

viver inserido nas instituições históricas, ou seja, vivendo sua vida de modo humano. O espírito

objetivo também possui a sua tríade. Ela esta subdividida em direito (pequena tese), moral (pequena

antítese) e ética (pequena síntese).

[...] aquele espírito, cujo Si é o absolutamente discreto, tem seu conteúdo como uma efetividade igualmente rígida, frente a ele; e o mundo tem aqui a determinação de ser algo exterior, o negativo da consciência-de-si. Contudo, esse mundo é essência espiritual, é em si a compenetração do ser e da individualidade. Seu ser-aí é a obra da consciência-de-si, mas é

112 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Enciclopédia das ciências filosóficas, parág. 387. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 71.

113 Cf. SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia III: do século XIX aos nossos dias. p. 40.

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igualmente uma efetividade imediatamente presente, e estranha a ela; tem um ser peculiar e a consciêcia-de-si ali não se reconhece.114 Esse mundo é a essência exterior e o livre conteúdo do direito; mas essa efetividade exterior, que o senhor do mundo do direito abrange dentro de si, não é só essa essência elementar que está presente, de maneira contingente, ao Si; mas é seu trabalho, - não trabalho positivo, e sim negativo.115

O espírito objetivo é aquele que se realiza enquanto liberdade objetiva, inserido no mundo,

diferente do mundo das leis, que é a Natureza. Porém, esse espírito objetivo ainda não é tudo do

mundo; ainda não está completo, porque, para se realizar plenamente são necessários a arte, a

religião e a filosofia; e essas não estão presentes no espírito objetivo, mas sim no espírito absoluto, a

próxima etapa. Hegel afirma que o espírito objetivo é liberdade; e a liberdade é a união das duas

vontades: a individual e a racional.116

O espírito objetivo é a idéia absoluta, apenas em si; [...] A vontade livre inclui, de inicio, em si-mesma, imediatamente, as diferenças, que consistem em que a liberdade é a sua determinação e seu fim interiores [...] uma objetividade exteriormente dada [...] Ora, a finalidade dessa vontade é a realização de seu conceito, a liberdade no aspecto objetivo, exterior, a fim de que esse aspecto seja um mundo determinado pela vontade. A liberdade, assumindo a figura do mundo real, recebe a forma da necessidade, cujo encadeamento substancial é o sistema das determinações da liberdade, e cujo encadeamento fenomenal constitui o poder e o reconhecimento, quer dizer, o valor da liberdade na consciência. [...] Essa unidade da vontade racional e da vontade individual, que é elemento imediato e particular da realização da vontade racional, constitui a simples realidade da liberdade.117

O primeiro momento da subdivisão do espírito objetivo (enquanto antitese) estuda o direito

(pequena tese). Esse é o momento do direito natural, ou seja, o direito voltado somente às

individualidades pessoais. O Estado, que se manifestará na eticidade, ainda não existe. Porém, o

direito deve-se fazer objetivo, deve tornar-se realidade, deve tornar-se história. O direito regula,

unicamente, a exterioridade do indivíduo; a interioridade é função da moralidade. Esse primeiro

momento, o direito, ainda contém a imediaticidade; ainda é somente vontade. Como segundo

momento dessa subdivisão, temos a ética (pequena antítese). Essa é a parte que contém a crítica a

114 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 35. v. II.115 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 36. v. II.116 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 743-744.117 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Enciclopédia das ciências filosóficas, parág. 485. apud CORBISIER,

Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 97-98.

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Kant, que afirma em seu formalismo ético: dever pelo dever. Para Hegel o dever pelo dever é

abstrato, pois é preciso o fazer, é preciso ultrapassar a moralidade subjetiva para conhecer o real

valor moral de cada ação. E, como terceiro momento, a ética (pequena e importante síntese). É nela

que surge a unidade dos dois primeiros momentos: o da existência externa, ou direito, e o da

existência interna, ou moralidade. Por ser a unidade, e unidade dos sujeitos, a eticidade também se

subdivide, possuindo uma tríade. Essa é formada por família (tese), sociedade (antítese) e Estado

(síntese). A eticidade é classificada por Hegel como o espírito de um povo, de uma história, de uma

nação.

A eticidade de modo hierárquico se manifesta na família; um desenvolvimento num mundo

pequeno demais, ainda subjetivo, não pleno. Manifesta-se também na sociedade civil, como antítese

da família; é o encontro objetivo da unidade, é a exteriorização do primeiro momento, mas ainda

não perfeito, não pleno. E, por fim, como síntese, o Estado como perfeita realização da idéia ética e

da liberdade concreta: Essa é o universal, a vontade suprema. Portanto, o que foi obtido,

concretizado no espírito subjetivo, a personalidade de cada indivíduo, é reconhecida pelo direito que

regula apenas a conduta externa. A moralidade é a que subordina interiormente o espírito humano à

lei do dever. E eticidade, ou moralidade social, que apresenta à ação moral uma finalidade concreta,

proposta à família, à sociedade e principalmente ao Estado.118 Sobre a eticidade ou a vida ética,

Hegel afirma:

O espírito é a vida ética de um povo, enquanto é a verdade imediata: o indivíduo que é um mundo. O espírito deve avançar até a consciência do que ele é imediatamente; deve suprassumir a bela vida ética, e atingir, através de uma série de figuras, o saber de si mesmo. São figuras, porém, que diferem das anteriores pos serem os espíritos reais, efetividades propriamente ditas; e [serem] em vez de figuras apenas da consciência, figuras de um mundo.119

Contudo, o espírito objetivo descreve o espírito de um povo, de uma nação que alcança a sua

plenitude e que gera uma organização social, partindo da família ao Estado – como antecipação do

verdadeiro espírito, o espírito de um povo. Na verdade, esse é o momento da encarnação do espírito

que se apresenta na história do mundo, não mais na forma de indivíduo – que não possui a liberdade

em plenitude – mas sob a forma de um povo.120

118 Cf. SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia III: do século XIX aos nossos dias. p. 40-42.119 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 9. v. II.120 Cf. HYPPOLITE, Jean. Introdução à filosofia da história de Hegel. p. 16-20.

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3.5.3 O ESPÍRITO ABSOLUTO

O espírito absoluto é o terceiro momento da filosofia do Espírito enquanto retorno da Idéia a

si; é a síntese do sujeito (espírito subjetivo) e do objeto (espírito objetivo) dentro da tríade principal

do Espírito; é o espírito divino – síntese do espírito individual e geral. Na tríade do espírito absoluto

toda dicotomia, ou seja, as oposições entre o subjetivo e o objetivo são superadas, encontrando-se

na síntese. Com isso, o Espírito torna-se infinito; é o espírito absoluto, diferentemente do espírito

humano em sua subjetividade (tese) e objetividade (antítese), pois é em si e por si; é unidade, é

totalidade, é livre, ilimitado. Ao se conhecer em sua totalidade, superando todos os limites e

imperfeições de subjetivo e do objetivo, torna-se pura liberdade.

A tríade do espírito absoluto contém três momentos de autoconsciência. Só que desta vez a

autoconsciência é universal, é a liberdade em sua plenitude, sem resquícios do cognoscível. Ela está

dividida em arte (pequena tese), religião (pequena antítese) e filosofia (pequena síntese e o ponto

ápice do sistema hegeliano).

A princípio tem-se a arte que, através das formas, manifesta o Absoluto (essa é a primeira

manifestação do Absoluto). A arte é o Absoluto se expressando na estética; é: “[..] a exterioridade

sensível do belo [...] determinação do conteúdo, e a divindade [...] determinação espiritual [...] de

uma existência natural.”121 É por meio dela que sujeito e objeto se fundem. Hegel, vê, dentre todas as

artes, a poesia como sendo a mais alta e mais pura, pois nela o sujeito encontra-se totalmente livre,

perpassando-se pelo próprio pensamento. Mas, como nessa tríade a arte é tese, é a primeira das

manifestações do Absoluto, ela tem a religião como antítese. A religião é a segunda manifestação do

Absoluto, só que na representação mítica; é a objetivação da arte. É na religião que o Absoluto se

representa como forma através da história. A manifestação subjetiva (arte ou intuitiva) e a

manifestação objetiva (religião ou representativa) é superada na filosofia; a última manifestação do

Absoluto, expressando-se de modo conceitual, lógico e pleno, cujo Espírito atinge a sua plenitude na

autoconsciência, na racionalidade e na liberdade.122 O espírito absoluto torna-se a Idéia perfeita do

ser constituído pela filosofia; agora a Idéia é conceito, é Idéia eterna, é em si e por si; livre e eterna

em si mesma. Contudo, afirma Hegel:

O conceito do espírito tem sua realidade no espírito. A fim de que essa realidade se identifique com o conceito, como saber da idéia absoluta, é necessário que a inteligência, livre em si, liberte-se efetivamente a fim de alcançar seu conceito, dele tornando-se a digna estrutura (forma). O

121 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Enciclopédia das ciências filosóficas, parág. 555. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 146.

122 Cf. SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia III: do século XIX aos nossos dias. p. 43-45.

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espírito subjetivo e o espírito objetivo devem ser considerados o caminho no qual se desenvolve esse aspecto de realidade, ou da existência.123

4 A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

Na obra Fenomenologia do espírito, o itinerário fenomenológico é demarcado, definido para

o percurso da consciência. Toda consciência almeja ser autoconsciência ou consciência-para-si. Essa

se descobre como razão e se realiza plenamente como espírito que, por meio da religião, alcança seu

ponto culminante no Saber absoluto. A consciência deve percorrer e superar esse trajeto com todas

as dificuldades, aplainando-o, para que o espírito e, posteriormente, o indivíduo, rememorem-no ao

encontro do espírito absoluto. Neste capítulo, no qual conheceremos o itinerário fenomenológico

que a consciência deverá fazer para atingir o Saber absoluto, destacaremos as principais figuras,

como: Consciência, Autoconsciência (Consciência-de-si), Razão, Espírito (esse não é o absoluto),

Religião e Saber absoluto, iniciando-os com a letra maiúscula. Essas figuras formarão o itinerário

fenomenológico.

4.1 OS TERMOS FENÔMENO E CONSCIÊNCIA EM HEGEL

123 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Enciclopédia das ciências filosóficas, parág. 553. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 145.

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A explicação de alguns termos é extremamente importante para a compreensão do

pensamento hegeliano. Fenômeno e consciência são os principais conceitos que devem ser

compreendidos para se adentrar por sua principal obra, a Fenomenologia do espírito.

Fenômeno, segundo uma linguagem comum, é aparência sensível, é manifestação de algo, ou

seja, o surgir, o aparecer. Mas, a partir do século XVIII, a palavra fenômeno passou a ter um

significado diferente: passou a ser designada como aspecto específico do conhecimento humano,

que possui uma estrutura do conhecer; torna-se correspondente à coisa-em-si, revelada segundo a

estrutura cognoscível do homem.124 Em Hegel, fenômeno significa tudo o que é percebido pelos

sentidos ou pela mente. A fenomenologia, por sua vez, será o estudo desses fenômenos ou o estudo

das coisas que aparecem a nós. Esses fenômenos são descritos na forma de momentos ou etapas da

consciência.

Sobre o termo consciência, Nicola Abbagnano afirma: “O uso filosófico desse termo tem

pouco ou nada a ver com o significado comum [...] é o de uma relação da alma consigo mesma, de

uma relação intrínseca ao homem, ‘interior’ ou ‘espiritual’, pela qual se pode conhecer-se de modo

imediato e privilegiado [...]”.125 Pode-se dizer que a consciência é a base para a filosofia hegeliana.

Contudo, sua filosofia não é uma filosofia da consciência, mas sim do espírito; esse é um dos

principais motivos que levou Hegel a censurar Kant e Fichte, denominando-os como filósofos da

consciência, pois não foram capazes de transformar a consciência em ciência objetiva e absoluta.

Kant concebia a consciência como espírito. Para Fichte a concebia como o não-eu que somente era

determinada como objeto do eu na consciência. Os dois pensadores, com suas filosofias, não

chegaram ao espírito da forma como ele é em si e por si, mas só como ele é numa relação com outra

coisa. Fiche e Schelling não citavam a consciência em seu processo de formação.126

Hegel afirma, no prefácio da Filosofia do direito, de 1821, que o indivíduo está

intrinsecamente inserido em sua época. A reflexão filosófica e a formação da consciência não se

separam, pois a filosofia se dá a partir da consciência crítica da instituição histórica. A historicidade

está presente no pensamento hegeliano, e ele a explica quando traça o caminho que a razão

percorreu e através do qual se desenvolveu. O progresso da consciência ocorre a partir das relações

morais (família ou sociedade), linguagem (o que será destacado na dialética do Senhor e do Escravo)

e trabalho ou o contato com a natureza para dela extrair a sua subsistência. Esses três momentos são

usados, ao contrário de Kant, para afirmar que a unidade da consciência não é imaginária, mas é

124 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 436-437.125 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 185.126 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 2-3.

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processo, é resultado de uma dialética que, ao se desenvolver, relembra a interação do homem com

a natureza, da qual tira os meios de sua subsistência.127

Hegel, em sua dialética, apresentará a consciência primeiramente como consciência ingênua,

imediata, que se sabe a si mesma: uma consciência-de-si. Assim como a Lógica possui o seu

movimento em ser, nada e devir, a dialética hegeliana também apresenta um movimento em três

etapas: certeza sensível, percepção e entendimento, esse que vai da consciência (cujo objeto ainda é

estranho a toda razão) à consciência-de-si. Para Hegel, a consciência-de-si é um resultado; resultado

de um percurso e não uma hipótese. Em seu estudo, ao utilizar a história da filosofia, aponta não

para uma consciência filosófica, mas para uma consciência comum, cuja meta é conduzir a

consciência à consciência de si por si mesma, por uma lógica interna antes ignorada.128

Ao referir-se à consciência individual, ou seja, o em-si, e consciência universal, ou seja, o

para-si, Hegel afirma que a passagem de uma para outra só será possível quando a consciência

individual tomar consciência do espírito de seu tempo, ou seja, de sua história. A consciência

individual, ao fazer frente a si mesma, colocar-se outra, torna-se consciência universal. Essa só será

consciência absoluta se fizer, novamente, frente a si mesma, ou seja, ao ser individual; torna-se o

espírito individual de uma religião, de um grande homem, de um povo, de uma nação. Essa é uma

individualidade universal (unidade entre consciência particular e universal) que é capaz de se elevar

ao saber absoluto (última etapa do itinerário fenomenológico), ao saber filosófico, revivendo e

reencontrando os momentos vividos de seu vir-a-ser.129

Portanto, a consciência é o ponto de partida de toda e qualquer filosofia, pois é ela a única

capaz de lhe fornecer o conteúdo. A filosofia, por sua vez, tem o papel na elaboração conceitual

desse conteúdo, do qual adquirirá absoluta verdade e realidade, tornando-se espírito ou conceito. A

consciência por si só não pode compreender, de modo absoluto o conteúdo, o todo do espírito; é

necessário um caminho a ser percorrido. A Fenomenologia do espírito é o percurso dessa consciência

a caminho do absoluto. Não é a história do mundo, mas é a história da consciência individual.130

4.2 A FENOMENOLOGIA NO PROCESSO HISTÓRICO: O ESPÍRITO É HISTÓRIA

Schelling vê a história como transcendental. Essa história é a que conduz o indivíduo a uma

filosofia da história, a uma expressão da vontade. Ela representa, para a filosofia prática, aquilo que a

127 Cf. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. p. 218-219.128 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 93-94.129 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 62-66.130 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 190.

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natureza – expressões realizadas – representa à filosofia teórica. Para ele, só é possível a história da

humanidade tendo por objeto o indivíduo sob a condição de liberdade, ou seja, o livre-arbítrio. O

indivíduo, por si só, é incapaz de se realizar. É dessa maneira que vê a manifestação do absoluto na

história: a identidade entre o subjetivo e objetivo. Para Schelling, o absoluto é a revelação contínua

da história. Entre Fichte, com sua ordem moral do mundo, e Schelling, que tem a história como

necessária à liberdade, Hegel segue o ponto de vista de Schelling ao concordar que a história é uma

teodicéia.

Mesmo a filosofia de Schelling sendo tão próxima à hegeliana, segundo o próprio Hegel,

permaneceu, apenas sobre na apreensão do absoluto, não partindo para uma reflexão.131 Eis o

motivo da crítica de Hegel a Schelling, no início da Fenomenologia:

[...] considerar um ser-aí qualquer, como é no absoluto, não consiste em outra coisa senão em dizer que ele se falou como se fosse um certo algo; mas que no absoluto, no A=A, não há nada disso, pois lá tudo é uma coisa só. É ingenuidade de quem está vazio de conhecimento pôr esse saber único – de que tudo é igual no absoluto – em oposição ao conhecimento diferenciador e pleno (ou buscando a plenitude); ou então fazer de conta que seu absoluto é a noite em que “todos os gatos são pardos”, como se costuma dizer.132

Embora Hegel, em seu sistema, não tenha desprezado a vida orgânica: filosofia da natureza

(antítese, ou segundo momento do movimento do absoluto), não concedeu a ela tanta importância

quanto Schelling, cujo saber deveria identificar-se com a vida da natureza ao fazer a afirmação que o

consciente se reúne ao inconsciente numa produção artística.133 O pensamento de Schelling é

voltado à vida em geral, a vida da natureza. Já para Hegel, o importante é a vida do espírito enquanto

história. Seu pensamento é o pensamento da história humana.

Hegel vai mais longe à sua crítica a Schelling ao afirmar a relação entre espírito e história. É

simples: o espírito é a história, pois o absoluto é sujeito. O absoluto não pode ser a natureza, pois ela

não contém a história, apenas a morte como seu sentido. Essa natureza, para Hegel, não pode

oferecer a racionalidade – motivo tratado em seu sistema – mas sim a vida universal. Portanto,

somente o espírito é capaz de possuir uma história. Isso se dá a partir dos movimentos que realiza: o

exteriorizar-se a si mesmo, o negar-se e o retornar-se a si mesmo, conservando todas as

particularizações e momentos, elevando-os a uma forma absoluta. O espírito é história e isso ele

apresentará na Fenomenologia.134

131 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 43-46.132 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 29. v. I.133 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 43-46.134 Ibidem, p. 47-50.

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A Fenomenologia do espírito, embora tenha uma relação com a história do mundo, ela não é

considerada uma. O desenvolvimento do espírito do mundo é diferente do fenomenológico. A

história desempenha um papel ilustrativo, ou seja, de exemplos na Fenomenologia do espírito que

permitem conhecer, de modo concreto, o desenvolvimento da consciência. É principalmente na

consciência de si e na razão (dois dos três grandes capítulos que formam a divisão da Fenomenologia

por Hegel) que se pode compreender melhor o sentido ilustrativo da história. Um exemplo é a

consciência-de-si que se forma mediante a luta de consciências-de-si opostas, ou Senhor e Escravo. O

itinerário fenomenológico por haver a necessidade de um momento de liberdade da consciência de

si, utiliza a fase correspondente do mundo para uma auto-ilustração.

Da grande divisão proposta por Hegel: Consciência, Consciência-de-si e Razão, não se pode

considerá-las como sucessivas, mas abstrações do todo praticadas pelo espírito; são estudadas

separadamente de acordo com sua evolução. Alguns dos momentos da história, escolhidos por

Hegel, não abrangem a história como um todo, mas são de extrema importância para elaboração da

Fenomenologia.135

O termo fenomenologia, na concepção hegeliana, significa manifestar-se ou aparecer; é a

ciência do aparecer. Essa fenomenologia ocorre, segundo a sua filosofia, com o espírito em

sucessivas, ininterruptas e diferentes etapas que vão da Consciência até o Saber absoluto. Como já

foi visto que à filosofia hegeliana caminha paralelamente a história da filosofia, e dela precisa, fica

fácil compreender que, na Fenomenologia do espírito, existem dois planos que se cruzam e se

aproximam. O primeiro é o plano percorrido pelo espírito, no qual ele se realiza e se conhece. É o

caminho para chegar a si mesmo, que se dá ao longo dos acontecimentos da história e do mundo. O

segundo plano é caminho do homem singular (o simples indivíduo) que deve percorrer de novo o

caminho antes percorrido pelo espírito, para que dele possa se apropriar. A partir dos dois planos

que se cruzam, o do espírito e o do indivíduo, Hegel explica que a história da consciência do indivíduo

nada mais é que o percorrer novamente a história, ou o cominho vivido, já traçado e já aplainado

pelo espírito.136

A Fenomenologia, ao conduzir o indivíduo enquanto singular, do estado inculto ou primitivo

(Consciência, enquanto si) ao Saber absoluto, representa um método educativo e formativo. Dessa

mesma forma ela conduzirá o espírito do mundo, enquanto universal, a percorrer, no espaço e no

tempo, o mesmo trajeto já percorrido pelo indivíduo, enquanto singular. Contudo, o percurso de

ambos é realizado com menos esforço, “[...] a tarefa em si já está cumprida, o conteúdo já é a

efetividade reduzida à possibilidade. Foi subjugada a imediatez, a configuração foi reduzida à sua

135 Ibidem, p. 51-55.136 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 112. v. 5.

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abreviatura, à simples determinação-de-pensamento”.137 Os graus de formação, já foram aplanados,

desenvolvidos pela história, pelo espírito. A história do mundo já se realizou (afirma isso ao demarcar

a história que vai dos antigos – a partir dos impérios orientais – até ele – representado pelo Estado

germânico). A única necessidade existente é a de o indivíduo em sua singularidade e depois em sua

universalidade, enquanto comunidade, percorrer esse mesmo caminho rumo à consciência filosófica,

rumo ao racional.

4.3 A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO: SIGNIFICADO E FINALIDADE

A Fenomenologia do espírito é o caminho do conhecimento natural, ou seja, um percurso

que o espírito desenvolve em busca de si mesmo, dirigindo-se ao verdadeiro saber. Embora essa

trajetória seja desenvolvida de modo dialético, ela tem um início e um fim; ela tem etapas. O início

está marcado pela certeza sensível, certa de si mesma, imediata e abstrata; tida como um objeto

estranho a toda razão. Sua finalização refere-se ao Saber absoluto, já mediatizado e concreto. A

importância dessa trajetória não se refere ao início e ao fim, já que as etapas ou figuras não poderão

ser puladas, mas sim ao seu devir, a sua atuação. A atuação do espírito se dá na busca do seu em-si e

para-si, do tornar-se sujeito, através da alienação e mediante a ciência que conquista. Para Hegel “O

espírito, que se sabe desenvolvido assim como espírito, é a ciência. A ciência é a efetividade do

espírito, o reino que pra si mesmo constrói em seu próprio elemento”.138

A verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o seu sistema científico. Colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber para se saber efetivo – é isso o que me proponho. Reside na natureza do saber a necessidade interior de que seja ciência, e somente a exposição da própria filosofia será uma explicação satisfatória a respeito. [...] a única justificação verdadeira das tentativas, que visam esse fim, seria mostrar que chegou o tempo de elevar a filosofia à condição de ciência; pois, ao demonstrar sua necessidade, estaria ao mesmo tempo realizando sua meta.139

O absoluto, o logos, manifesta-se na Fenomenologia, e o espírito se manifesta através da

figuras da consciência, que mais tarde se tornarão conceitos. É na Fenomenologia que a consciência

se constrói; não é dada como pronta. A seqüência de suas figuras corresponde à história de sua

formação. É autoprodução do espírito como consciência, e consciência que se sabe a si mesma. Esse

137 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 37. v. I.138 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 34. v. I.139 Ibidem, p. 23-24.

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é o motivo pelo qual Hegel, antes de chamar sua bra de Fenomenologia do espírito, chamou-a de

Ciência da experiência da consciência. Chamou a obra dessa forma por se tratar de “uma história

romanceada da consciência, que desde suas primeiras aparências sensíveis consegue aparecer para

si mesma em sua verdadeira natureza, como Consciência Infinita ou Universal”.140

Denominou-a como Fenomenologia por se tratar de uma história pensada, ou seja, uma

união entre a fenomenologia, que descreve a história completa da formação da consciência, com a

história universal. Dessa forma, com a Fenomenologia do espírito, Hegel pretendeu proporcionar

uma introdução ao sistema da ciência: sua primeira intenção que, posteriormente, veio a sofrer

alterações em sua composição.141

Hegel tinha o desejo e a preocupação de publicar seus escritos em uma única obra; essa

formaria o conjunto de seu sistema. Porém, renuncia a publicação desse sistema para publicar

somente as partes de seus escritos que continham a lógica e a metafísica e, antes destas, como

exigência pedagógica dos editores, uma introdução. De introdução (que Hegel não era a favor de que

na filosofia ou na ciência houvesse) passou a ser, devido à sua complexidade e amplitude, a própria

ciência, o próprio sistema com sua estrutura; a primeira parte do Sistema da ciência. Foi em meados

de 1806 a 1807 que a própria Introdução recebeu o nome de Fenomenologia do espírito. A

Introdução tornou-se a descrição de todo o sistema filosófico hegeliano; uma exposição de toda a

sua filosofia.

Hegel enviou seus manuscritos aos editores em duas etapas. Isso causou uma certa confusão

entre eles e, principalmente, nas publicações. Em setembro de 1806, enviou a Niethammer uma

parte contendo a fenomenologia da Consciência, da Consciência-de-si e da Razão; uma divisão

tripartite de todo o conteúdo. Hegel havia cortado, dos manuscritos, a principal parte na qual estava

a filosofia do Espírito e que compreendia a Religião e o Saber absoluto. Essa parte foi enviada aos

editores um mês depois. Segundo descreve Jean Hyppolite, o problema na divisão ou na falta de

indicações resolveu-se da seguinte maneira:

Hegel divide de modo tripartite o conteúdo – A) Consciência, B) Consciência de Si, C) Razão -, nada de semelhante se encontra na segunda parte. Para estabelecer uma correspondência com a Fenomenologia da Enciclopédia, os editores completaram esta falta de indicações subdividindo a parte intitulada Razão da seguinte forma: C) (AA) Razão, (BB) Espírito, (CC) Religião, (DD) Saber absoluto. Contudo, ao lado daquela divisão tripartite, o próprio Hegel seguia uma ordem dos fenômenos espirituais que era a seguinte: três momentos agrupados sob o título geral de A): 1. Certeza

140 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 438.141 Cf. SANTOS, José Henrique. Trabalho e riqueza na Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 74-75.

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sensível, 2. Percepção, 3. Entendimento; em seguida, B): 4. Consciência de si; C) 5. Razão; por fim 6. Espírito, 7. Religião, 8. Saber absoluto, sem que os últimos fenômenos – razão, espírito, religião e saber absoluto – correspondam efetivamente a um terceiro momento único, oposto aos dois primeiros.142

Dessa forma a Fenomenologia do espírito, que antes possuía um esquema dialético, por

necessidade de uma pedagogia, tornou-se uma enciclopédia. Simultaneamente possui uma dupla

divisão de conteúdos: a primeira, dentro de um esquema tripartite (tese, antítese e síntese), ou seja,

Consciência, Consciência-de-si e Razão; a segunda, descreve essas três (divididas pelo próprio Hegel)

mais as da subdivisão (realizadas pelos editores) como fenômenos espirituais ou o itinerário

fenomenológico numerado de um a oito. Cada momento, cada desenvolvimento sofrido pela

consciência tornou-se como uma necessidade ao espírito, denominado fenômeno. Assim a

fenomenologia da consciência tornou-se a Fenomenologia do espírito. Ela não é, portanto, uma

filosofia do espírito, mas uma introdução à filosofia do espírito, que deve integrar todo o sistema

hegeliano.

4.4 AS ETAPAS DO ITINERÁRIO FENOMENOLÓGICO

O itinerário fenomenológico, após termos conhecido os problemas surgidos na organização

dos escritos hegelianos, é composto por seis etapas. Essas etapas contêm a divisão tripartite de

Hegel intercalado com a seqüência de fenômenos numerados apresentada pelos editores. São elas:

1. Consciência – no sentido lato do termo – com os três momentos: certeza sensível, percepção e

entendimento; 2. Autoconsciência ou consciência-de-si com sua subdivisão: a consciência-de-si, a

liberdade da consciência-de-si e a consciência infeliz; 3. Razão, que se subdivide em: razão que

observa, razão que opera e razão que unifica; 4. Espírito, também com subdivisão: espírito

verdadeiro (eticidade), espírito alienado de si (cultura) e espírito certo de si (moralidade); 5. Religião,

com sua subdivisão: religião natural, religião da arte e religião revelada e, por fim, 6. Saber

absoluto.143

142 HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 70.143 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 112. v. 5.

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Essas etapas ou figuras contêm a solução enfrentada pela consciência na relação entre o seu

eu e o objeto. É na Fenomenologia do espírito que a consciência perceberá que o objeto nada mais é

que o seu si; o si da consciência-de-si. Ela tem o objetivo de anular essa oposição gerada pela própria

consciência: a oposição entre consciência e objeto. Esse itinerário permitirá que a consciência,

enquanto autoconsciência, descubra-se como razão e se realize como espírito. Essa realização só será

possível quando contemplar a arte e a religião chegando, assim, ao saber absoluto.

Porém, para que se atinja esse Saber absoluto (sexta etapa) deve-se entender o que Hegel

quis dizer ao classificar as etapas como figuras. Para que elas se auto-realizem, mostra cada uma

delas a expressar-se de modo indeterminado, incorreto, não pleno. Isso as obriga a passarem

imediatamente a seu oposto (esse é o sentido da negação). A cada negação, a cada passo, ocorrerá a

superação progressiva do momento anterior, ou seja, do negativo anterior, porém em um nível bem

mais elevado que, por sua vez, também se determinará como inadequado e deverá ser negado. Essas

etapas são explicadas segundo o movimento dialético (esquema que se encontra incessantemente

na Fenomenologia e que será aprofundado no capítulo seguinte) adotado por Hegel. Esse movimento

dialético é a base para todo o conhecimento e expressão da auto-manifestação do absoluto. O

momento mais importante desse processo coincide com aquele que o espírito se torna objeto para si

mesmo.144

4.4.1 A 1ª ETAPA: A CONSCIÊNCIA

A primeira etapa da Fenomenologia do espírito é a Consciência (tese segundo a divisão

hegeliana). Porém ela se subdivide numa tríade interna definida como certeza sensível (tese),

percepção (antítese) e entendimento (síntese). A consciência só se tornará uma, quando se

desenvolver, se opor e se reencontrar a si mesma.

A certeza sensível é o primeiro ponto (uma crítica de todo o saber imediato); é o início, o

particular que aparece como verdade, ou seja, é o que é. É o momento da sensação. Ela não é capaz

de conhecer a verdade como todo, pois, a sua, ainda se apresenta como a mais abstrata e pobre

verdade. O ponto de partida de Hegel é o mais ingênuo que a consciência possa apresentar. Nesse

primeiro ponto, a consciência sabe, de maneira imediata, sobre o objeto. O objeto é tão próximo que

144 Ibidem, p. 113.

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faz unidade com ela. A consciência pensa que é verdade, mas não possui o saber; se o possuísse, ela

seria capaz de superar seu objeto.145 Ela ainda está aquém de toda a razão.

O conteúdo concreto da certeza sensível faz aparecer imediatamente essa certeza como o mais rico conhecimento, e até um conhecimento de riqueza infinita, para o qual é impossível achar limite [...] Além disso, a certeza sensível aparece como a mais verdadeira, pois do objeto nada mais deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude, diante de si. [...] essa certeza se faz passar a si mesma pela verdade mais abstrata e mais pobre.146

A certeza sensível possui uma dialética interna: o lado do objeto, o lado do sujeito e a união

concreta; essa é a passagem para a próxima figura: a percepção. O objeto é o saber do imediato,

posto como essencial. É a força da verdade, é o isso aí. Já o sujeito, o este aqui, recusa toda a

mediação capaz de torná-la consciência. O sujeito quer contemplar a verdade por si só, sem a

mediação de um objeto. A força da verdade encontra-se agora no eu, em sua imediatez. Ambos os

momentos se unem, formando a unidade concreta da certeza sensível. Não se trata mais de um isso

aí ou de um este aqui, mas sim de um agora é – um ato de indicar, de tornar universal, de sair de sua

imediatez – cuja reflexão é de indicação e capaz de proporcionar um movimento (o primeiro), não se

voltando mais ao ponto de partida. A certeza sensível passa a considerar a coisa, que antes estava

unida a si, como ela é em verdade; passa a percebê-la e se percebe; afirma que a coisa não está mais

em-si, mas sim, fora-de-si. Um se tornou a coisa extensa e outro, a coisa pensante. Surge a segunda

figura: a percepção.147

A percepção é o segundo ponto da tríade interna da Consciência. Ela é a antítese da certeza

sensível; agora possui a noção de coisa. Para Hegel, esse é o ponto que descreve a consciência

comum (critica as várias ciências empíricas). É nesse momento que o objeto parece ser verdade, mas

não passa de contraditório por revelar muitas propriedades. O ato de perceber é o ato de

exteriorização ou negação de si. É superar o sensível para atingir o universal. Há também uma

dialética interna nesse momento. Primeiro a percepção tem no objeto a verdade, porém se esquece

da multiplicidade que representa; segundo, classifica como ilusão a multiplicidade percebida na

coisa; terceiro, percebe que ainda há contradições, pois tanto o sujeito quanto o objeto são para-si e

para-o-outro; vivem, ainda, em suas abstrações. É necessária uma nova superação, um novo

suprassumir, ou seja, passar ao entendimento.148

145 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 98-99.146 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 74. v. I.147 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 99-104.148 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 39-43.

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O entendimento é o terceiro ponto da tríade interna da Consciência: momento da razão, ou

seja, passagem da consciência à consciência-de-si. Esse entendimento é a síntese entre a certeza

sensível e a percepção; a suprassunção dos dois; a consciência de que suprassume seus dois

momentos. Somente por meio do entendimento é que a consciência se tornará autoconsciência ou

saber de si. Após suprassumir os dois momentos, o entendimento possuirá, segundo Hegel o

universal incondicionado:

Esse universal incondicionado, que de agora em diante é o objeto verdadeiro da consciência, ainda está como objeto dessa consciência – a qual ainda não apreendeu o conceito como conceito. Importa fazer uma distinção essencial entre as duas coisas: para a consciência o objeto retornou a si mesmo a partir da relação para com um outro, e por isso tornou em-si conceito. Porém a consciência não é ainda, para si mesma, o conceito; e por causa disso não se reconhece naquele objeto refletido.149

Esse entendimento só foi possível devido ao movimento dialético, ao jogo de forças cujas

diferenças foram suprassumidas, e novas leis foram formuladas, e a unidade gerada ou tornada

capaz. Os momentos: certeza sensível, percepção e entendimento nada mais são que as figuras

internas da consciência que ainda é de-si. Somente na razão, ou no entendimento, é que ocorre a

união da consciência com a consciência-de-si: a autoconsciência.

4.4.2 A 2ª ETAPA: A AUTOCONSCIÊNCIA

A segunda etapa da Fenomenologia do espírito é a Consciência-de-si (antítese, segundo a

divisão tripartite hegeliana); é a reflexão a partir do ser no mundo sensível (na Natureza). A

autoconsciência, como toda a realidade, ainda não é totalmente clara. Ainda é consciência. Assim

como ocorre na consciência, a autoconsciência também se subdivide numa tríade interna definida

em consciência-de-si (tese), liberdade da consciência-de-si (antítese) e consciência infeliz (síntese).

Segundo a dialética interna da Consciência-de-si, encontra-se como primeiro momento dessa

subdivisão a consciência em si, dada como tese, como abstrata (abstrato sempre será o primeiro

movimento de cada figura que busca o conceito). Primeiramente ela se manifesta como vontade de

vida, ou seja, possui a vontade de se conservar, de se afirmar perante o objeto; possui aí uma atitude

contra o outro: precisa suprassumir o outro. Porém, para se afirmar realmente como

autoconsciência, deve ser reconhecida como tal, por um outro. Contudo, o outro ainda é, para ela,

149 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 95. v. I.

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um objeto; precisa torná-lo também uma consciência, para que o reconhecimento ocorra. O

movimento é recíproco; só pode ser reconhecido a partir do momento que reconhecer. O apetite

contra o outro não deve ser de destruição, nem de eliminação, mas sim de suprassunção.150 Esse

apetite de ser reconhecido gera uma luta. Uma das consciências se torna o Senhor e a outra o

Escravo. Essa luta é vontade de vida e de sobrevivência; não de destruição, afirma Hegel: “[...]

suprassume esse seu ser no Outro, e deixa o outro livre, de novo”.151 Portanto, a consciência-de-si se

realiza nos momentos do desejo, da vida, do outro eu, do reconhecimento e da luta, que contêm a

dominação, a escravidão ou o medo e a escravidão (trabalho) enquanto formação. Essa última,

segundo o último capítulo deste trabalho, é a que proporcionará a liberdade da consciência-de-si.

A liberdade da consciência-de-si, no que se refere à Consciência-de-si, é antítese. Tem-se

agora a consciência que pensa e que é liberdade. Essa figura surge a partir da luta entre o Senhor e o

Escravo. O Senhor, à medida que depende do reconhecimento do Escravo e de seu trabalho, rebaixa-

se a uma condição inferior. Por cultivar e apreender a diversidade do real, ainda não deu conta de

que possui a independência objetiva. O Escravo, enquanto consciência reprimida, por sua vez, ao

trabalhar e interagir com a natureza, encontra-se a si mesmo; chega à intuição de ser independente.

Surge a liberdade da consciência-de-si.152

Na dialética interna dessa etapa há também uma subdivisão; apresenta-se em três figuras:

estoicismo, ceticismo e consciência infeliz. Refere-se ao estoicismo (enquanto pequena tese) para

indicar que a liberdade da consciência-de-si se manifesta a partir de todo o movimento precedente,

definida pela negação dos momentos anteriores. Isso a partir do esforço e do trabalho realizado pela

consciência ou pelo mundo, como denominam os estóicos. A verdadeira liberdade, segundo o

estoicismo, se dá a partir de uma educação da consciência para si; ser livre é ser estóico. A partir

desta definição a consciência-de-si deixa de ser vivente e passa a ser pensante. Quanto ao ceticismo

(enquanto pequena antítese), refere-se justamente para contrapor o estoicismo (primeiro momento

ou tese da liberdade da consciência de si). O ceticismo é a antítese. Entre a consciência-de-si estóica

e cética ocorre a mesma relação que o Senhor e o Escravo; um, como independente (que contém a

forma do pensamento), outro, como realização (que contém as experiências ou a determinação da

vida). Dessa forma Hegel compara o ceticismo, que penetra em todas as determinações vividas pelo

Escravo, com experiência; é a realização daquilo que os estóicos tinham somente como conceito,

pois possuem a liberdade do pensamento. Essa verdade de liberdade, segundo Hegel, exprime-se na

consciência infeliz, cujo momento retrata a verdade de toda essa dialética.153

150 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p. 718.151 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 126. v. I.152 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 132-133. v. I.153 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 199-200.

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A consciência infeliz é a síntese da tríade interna da Consciência-de-si. Usa da definição de

consciência infeliz a partir dos traços contidos no cristianismo medieval. Segundo uma consciência

dividida, Hegel vê a briga de afirmar e negar encadeada pelos estóicos e pelos céticos. A figura da

consciência infeliz é interessantíssima a seu ver, pois resulta de um problema de contradição: uma

por ser imutável ou consciência divina, outra por ser mutável ou consciência humana. Essa

contradição resulta a consciência infeliz, pois está duplicada. A sua infelicidade resulta do fato de não

se reconhecer como unidade dessas duas consciências. Das tentativas que faz para resolver esse

impasse, usa da devoção para gerar a superação dessa contradição. Nela, subordina a consciência

humana ou mutável à consciência divina ou imutável. O resultado dessa subordinação é ao ascetismo

e, por meio dele, a consciência reconhece a sua inferioridade e tende atingir o absoluto, unificando-

se com ele e reconhecendo-se como imutável. Essa união resulta no término do ciclo da consciência

infeliz, pois a consciência-de-si reconheceu-se como espírito, ou seja, como totalidade da realidade,

tornou-se Razão; uma reflexão de sua própria existência.154

4.4.3 A 3ª ETAPA: A RAZÃO

A terceira etapa da Fenomenologia do espírito é a Razão (síntese segundo a divisão tripartite

hegeliana). Lembremos que a Consciência (tese) é aquela que, ao final de seu percurso, reconhece e

considera o objeto como outro. Ao obter a consciência que de esse outro nada mais é que seu si,

passa a ser Consciência-de-si (antítese) – primeiro como singular, depois como universal, pois o eu

que deseja se torna o eu que pensa. Essa identidade de pensar e ser, nada mais é que a Razão

(síntese dialética da consciência e da consciência-de-si). Essa noção de Razão, como define Hegel,

corresponde à filosofia idealista: a consciência que adquire toda a realidade.155

[...] a certeza de ser toda a verdade. Porque a consciência-de-si é razão, sua atitude, até agora negativa frente ao ser-outro, se converte numa atitude positiva. Até agora, só se preocupava com sua independência e sua liberdade, a fim de salvar-se e conservar-se para si mesma, às custas do mundo ou de sua própria efetividade, [já] que ambos lhe pareciam o negativo de sua essência. Mas como razão, segura de si mesma, a consciência de si encontrou a paz em relação a ambos; e pode suportá-los, pois está certa de si mesmo como [sendo] a realidade, ou seja, está certa de que toda a efetividade não é outra coisa que ela. Seu pensar é imediatamente, ele mesmo, a efetividade; assim comporta-se em relação a ela como idealismo.156

154 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 195-196.155 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 233-237.156 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 152-153. v. I.

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Na relação com a história, a passagem da consciência infeliz à Razão relembra a passagem

do cristianismo (Igreja da Idade Média) ao Renascimento. É na Fenomenologia do espírito, uma

história concreta do pensamento humano, que a Razão possui um papel fundamental para o

desenvolvimento da consciência. A consciência-de-si se torna universal; atinge a substância; adquire

a Razão que dá forma a essa substância, atingindo a forma do espírito, ou seja, a substância que se

tornou sujeito.157

Essa etapa, ou figura, também se desenvolve como uma espiral, elevando-se de seu

momento particular, abstrato, ou tese, até a sua universalidade, ou síntese, dada a partir de uma

abstração ou momento de negação. Em seu nível mais alto, como unidade de pensamento e de ser,

surgem novas etapas para verificação dessa figura compõe sua tríade interna. A Razão é constituída

pela razão que observa a natureza (tese), razão que age (antítese) e razão que unifica (síntese dos

dois primeiros momentos).

A razão que observa (constituída pela ciência da natureza movendo-se pelo plano racional) é,

ainda, de certa forma, abstrata: é tese. Essa figura é responsável por reavaliar ou reexaminar os

conteúdos anteriores vividos pela consciência. Tem sede de conhecimento; é mais observadora.

Além disso, passa a experimentar as coisas que observa. Encontra a coisa e o si da coisa como a si

mesma. Quer se encontrar como realidade, mas não pode, pois seu conteúdo é unicamente de

observar e experimentar a essência das coisas; é ainda imperfeita ou unidade imediata do sujeito e

do objeto, sem a passagem pelo processo dialético. Para encontrar-se a si mesma no seu outro, ela

deve superar esse momento de observação e passar para a próxima etapa: a etapa ativa ou prática.

Essa etapa se situa dentro de uma esfera moral, ou seja, dentro da esfera do agir.158

A razão que opera é a razão que passou a considerar sua própria atividade espiritual, ou seja,

seu agir, enquanto individual, universal e, depois, como espírito. Esse é o conteúdo moral de que, a

razão, enquanto observadora, precisava. Agora, por ser razão ativa, começa a se realizar para superar

todos e quaisquer limites da individualidade. Seu desejo é alcançar a união espiritual dos indivíduos.

Primeiramente, vive de modo individual, buscando a realização ou felicidade no prazer e no gozo;

depois, passa a seguir as leis do coração e, por fim, vive da forma virtuosa, porém abstrata ou

separada da observação das leis que foram conhecidas e experimentadas em seu primeiro momento.

A razão que unifica é a síntese das duas figuras anteriores já percorridas. Essa é a fase cuja

razão supera a posição em relação às outras duas; descobre que a substância ética, a substância do

157 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 233-237.158 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 114. v. 5.

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bem-viver se encontra dentro de si, porém a partir da razão que observa e opera na natureza. Nessa

fase a consciência, pela experiência, chega ao ponto de ser certa de si mesma, ou de toda a

realidade: torna-se Espírito.159

4.4.4 A 4ª ETAPA: O ESPÍRITO

O Espírito é o quarto momento do itinerário fenomenológico. Nesse momento as figuras já

vividas pela consciência correspondem a momentos da história, de modo mais estrito. As figuras

vividas, percorridas pela consciência, não são para o Espírito momentos ou abstrações, mas sim

realidade, pois agora possuem uma história que se desenvolve no campo ético. A consciência, ao se

reunir com sua substância ética, torna-se razão; essa é a razão que se realiza em um povo livre.

O mundo grego é, para Hegel, o mundo que contém, na sua história, o princípio de uma

liberdade. Liberdade cujo indivíduo participa do Estado de uma maneira verdadeiramente

espontânea. Uma liberdade bela, porém frágil, ingênua. Essa liberdade estaria ameaçada quando a

vontade individual se tornaria consciência-de-si, pois (aquela liberdade) ainda não tinha sofrido as

conseqüências de uma consciência racional. O mundo grego era o portador da substância ética ou

portador da vida de um povo, pois a vontade do Estado era plenamente vivida por seus indivíduos,

ao contrário da família cuja substância ética se encontrava mais próxima da natureza do que do

Estado. Esse é o único capaz de dar ao indivíduo uma vida espiritual, permitindo-lhe viver e constituir

um mundo livre. No mundo grego não há divergências entre consciência individual e consciência

coletiva; esse mundo é uma tese. A antítese se refere ao mundo romano com suas leis; leis essas que

estavam contra os próprios indivíduos do Estado. Hegel vê, no mundo moderno, a grande síntese dos

dois grandes momentos antecedentes.160

As etapas, ou a divisão interna dialética do Espírito são: o espírito verdadeiro, ou eticidade

(tese), o espírito alienado de si mesmo ou cultura (antítese) e o espírito certo de si mesmo ou

moralidade (síntese do Espírito). Essas figuras são as figuras do mundo, da história do espírito que se

aliena no tempo. É graças a essa alienação, negação do primeiro momento, que ele se reencontra e

se reconhece como si.

O Espírito, por possuir a verdade da certeza da razão, torna-se um mundo real e objetivado.

Na primeira etapa, o espírito enquanto verdadeiro, enquanto ético, ainda não existe para si mesmo;

existe de modo imediato. Ele nada mais é que a eticidade que abrange o mundo com suas leis:

159 Ibidem, p. 114-115.160 Cf. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. p.721-722.

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humana e divina, até resultar no Estado de direito.161 Esse espírito (verdadeiro) necessita

urgentemente do si (que ainda não contém); precisa alienar-se voluntariamente, tornar-se cultura,

para constituir um novo reino, uma nova forma. Precisa passar à forma externa, estranhar-se a si

mesmo e opor-se ao si imediato, ou seja, o espírito verdadeiro é apenas uma formulação de leis,

tanto divinas quanto humanas e ainda abstratas. É necessário o movimento da mediação para

adquirir um conteúdo. Esse conteúdo é a cultura.162

A segunda figura ou espírito alienado de si mesmo é diferente do mundo ético: é o mundo

efetivo, o mundo da cultura e da alienação ou exteriorização. Como veremos no último capítulo, a

exemplo do Senhor e do Escravo, quando, por meio da alienação ou processo de formação

(trabalho), o Escravo se torna o senhor de seu Senhor. O processo do espírito alienado é resultante

de uma exteriorização do si. A substância espiritual que antes era o em-si (realidade abstrata) torna-

se efetiva. Assim, essa figura representa a alienação do ser natural que renuncia o seu si imediato

buscando uma educação de sua individualidade para o universal.163

E, por fim, a terceira figura revelada é a moralidade ou o espírito certo de si mesmo. O

aparecimento desse Espírito é superior ao aparecimento do espírito substancial, pois, agora, é saber

de si, é saber de sua essência. Notemos que, na primeira figura dessa tríade, o espírito postula leis,

abrangendo o mundo ético, com sua dualidade, que servirão unicamente para a sua atuação e, que

no segundo momento, com o acontecimento da luta com a sua própria natureza, pois, as leis divinas

e humanas, que havia produzido, tinham se tornado estranhas a ele. Já a terceira figura consiste na

grande unidade em que o espírito se encontra, e a moralidade que além de acontecer, torna-se

efetiva; o Espírito se realizou, pois, adaptou a natureza a si em vez de se adaptar a ela. “Tal unidade

somente é a moralidade efetiva porque nela está contida a oposição pela qual o Si é consciência [...]

e ao mesmo tempo, [é um] universal. Ou seja, está aí expressa aquela mediação [...] essencial à

moralidade.”164 Agora, o Espírito, que é a verdade da certeza da razão irá buscar a consciência da

essência absoluta, mesmo movendo-se apenas como elemento representativo, porém em direção ao

absoluto.

4.4.5 A 5ª ETAPA: A RELIGIÃO

161 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 389.162 Ibidem, p. 399-400.163 Ibidem, p. 409-411.164 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 104. v. II.

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A Religião é a etapa de que provém o Saber absoluto (o próximo momento, o momento de

um devir em que todas as figuras serão recapituladas, tornando-se transparentes ao Espírito) ou o

quinto momento que compõe o itinerário fenomenológico. A Religião já é a verdade, porém, num

momento particular, o da representação, Hegel afirma que, principalmente por ela, é que se chega

ao absoluto, pois é a própria expressão do absoluto. Nesse momento, após ter percorrido a última

parte da tríade interna do Espírito (espírito certo de si mesmo) o Espírito, além de ter adquirido a

consciência de si mesmo, agora passa a ter consciência da existência do absoluto, propriamente de

sua essência. Porém, a Religião, mesmo sendo um momento fundamental, não é a plena consciência

do absoluto, não é conceito, é apenas pensamento visto que ainda não é o final do trajeto, do

percurso ou dos momentos. O conceito se dará somente pela filosofia. É justamente por esse

momento que o Espírito realiza a síntese dos opostos – uma vez que está prestes a conhecer o

absoluto em sua plenitude – alienando-se de si para se possuir, mantendo no seu ser-outro a

igualdade de si-consigo.165 Sobre a Religião, Hegel afirma:

O conceito da religião verdadeira, quer dizer, daquela cujo conteúdo é o espírito absoluto, implica essencialmente que seja revelada e revelada por Deus. Com efeito, como o saber, o princípio que faz da substância espírito, enquanto a forma infinita, sendo para si, é o que se determina a si mesma, é simplesmente manifestação; o espírito só é espírito quando é para o espírito, e, na religião absoluta, é o espírito absoluto que não manifesta mais seus momentos abstratos, mas se manifesta ele mesmo.166

Segundo Hegel, a Religião já está presente nas etapas anteriores da consciência. Esse

momento ocorre quando o entendimento descobriu um interior supra-sensível, ou seja, o si da

consciência; e de lá para cá as figuras vêm se repetindo no processo pelo qual o conhecemos como

dialético. Tal consciência de si inicialmente não passa de uma consciência abstrata ou consciência

infeliz, pois, arremessava para bem longe de si seu ideal de liberdade pretendendo encontrá-la

somente na objetividade.167

A tríade interna da Religião é também composta por tese, antítese e síntese. A primeira é

formada pela religião natural, a segunda pela religião da arte e a última pela religião revelada.

Importante é relembrar que, além do itinerário fenomenológico, Hegel retoma alguns dos seus

valores ou conceitos para a explicação de seu sistema. Na grande tríade dialética do absoluto,

encontra-se, como já visto, o momento do Espírito, ou grande síntese. Esse momento se divide em

165 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 115. v. 5.166 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas, parág. 553. Apud CORBISIER,

Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 150.167 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 561.

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espírito subjetivo, no qual se encontra a Fenomenologia do espírito, espírito objetivo e espírito

absoluto. É justamente no espírito absoluto que a religião e a arte serão retomadas, para que o

Espírito contemple o espírito absoluto; isso somente com a introdução do último momento: a

filosofia. Enquanto esse momento não chega ou não é percorrido, visto que nenhum momento pode

ser suprimido, a consciência, que agora é Espírito, perpassa pela primeira vez nessa tríade da

Religião: natural, arte e revelada.

Por ser de extrema necessidade para a compreensão do absoluto, a Religião é o ponto

fundamental de suas preocupações. A Religião é a demonstração da liberdade que a consciência

absoluta possui. É por meio dela que o Espírito, e depois o sujeito, se relacionam com o absoluto.

Além de pensamento, pois ainda não é conceito, a Religião é representação e sentimento do qual se

irá originar o fato religioso que traduz o sentimento humano.

A primeira etapa da tríade interna da Religião (considerada uma tese, por ser simples e estar

no início de seu desenvolvimento) é a religião enquanto natural. Nessa etapa o espírito, que é objeto

para si mesmo, aparece de modo diferente em três formas: no primeiro momento: como luz

(pequena tese) – oculto, fonte secreta – representado pela figura do Senhor como ser imediato que

corresponde à figura da certeza sensível. Porém, esse momento enquanto luz, necessitar transforma

aquilo, no qual sua luz reflete, em coisa e, dar a ela, ou melhor, a elas, a substância necessária para

sua subsistência. O segundo momento: como plantas e animais (pequena antítese) deixando de ser

imediato, pois carrega em si inúmeras figuras de seres vivos, nesse momento, a pacífica existência

das plantas cede à pressão dos selvagens animais; ocorre uma luta – assemelhada à dialética do

Senhor e do Escravo – e a superação, dando seguimento ao próximo passo. E, por fim, nas obras de

um artesão (pequena síntese), cujo espírito contempla sua verdadeira figura pelas mãos de um

artesão que o traduz de forma interna e externamente. A segunda etapa da tríade interna da

Religião é a religião enquanto arte. Essa é a forma que corresponde à eticidade do mundo nas

formas da arte abstrata, da arte viva e da arte espiritual. Abstrata por ser imediata, singular e por

ainda não ter completado o movimento que leva a caminho da consciência-de-si e, principalmente,

por não produzir uma obra de arte que tenha vida em si; arte viva, por se tratar, enquanto eticidade,

de um povo livre e de plena consciência-de-si. Essa é o oposto da primeira, pois, os indivíduos se

multiplicam e se espalham, ao invés de se unirem e se tornarem consciências-de-si. E, por fim, a arte

espiritual, pois é representada pela união dos espíritos dos povos ,cujo elemento e morada é a

linguagem.168

168 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 178.

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Já a última etapa da tríade interna da Religião é a religião enquanto revelada. Nela a essência

da viva se torna verdadeira e inteiramente si através da encarnação, revelando-se numa

comunidade. A primeira forma dessa manifestação “[...] não tem ainda figura-de-espírito”,169 é

interna, dentro de si, pois o espírito ainda não se exteriorizou; a segunda manifestação se dá no

mundo, ou seja, no outro do espírito, cujo bem entra em conflito com o mal, e ambos aguardam a

reconciliação redentora; por fim, o retorno à consciência-de-si; agora o espírito retorna a sua

comunidade, pois realizou seus projetos e está certo de si mesmo. Sobre essa manifestação, Hegel

afirma:

O espírito da religião revelada ainda não ultrapassou sua consciência como tal; - ou, o que é o mesmo – sua consciência efetiva não é o objeto de sua consciência. Esse espírito em geral, e os momentos que nele se distinguem, incidem no representar e na forma da objetividade. O conteúdo do representar é o espírito absoluto, e o que resta ainda a fazer, é só o suprassumir dessa mera forma [da objetividade] ou melhor, já que ela pertence a consciência como tal, sua verdade deve já ter-se mostrado nas figuras da consciência.170

4.4.6 A 6ª ETAPA: O SABER ABSOLUTO: A CONSCIÊNCIA A CAMINHO DO ABSOLUTO

O Saber absoluto ou filosofia especutaliva, por ser o último momento de toda a trajetória da

consciência, não é o menos importante. Todo o caminho que a consciência percorreu foi em vista à

chegada, ao alcance dessa etapa tão importante para ela e, posteriormente, para o indivíduo. Porém,

é uma etapa obscura, muitas vezes indecifrável. É nela que está toda a superação da forma de

conhecimento representativo, que é característica do penúltimo momento, o da Religião. Essa etapa

é a etapa de um conhecimento que já é conceitual, que já é conhecimento do sistema da ciência

descrito neste trabalho, no capitulo terceiro, dentro da filosofia da Lógica, da Natureza e do Espírito

(termos em destaque por serem a tríade principal do absoluto).171

Por ser uma etapa importante, nela todas as figuras são retomadas, recapituladas, tornando-

se transparentes ao espírito. Ocorre a unificação dos momentos anteriores. Todas as figuras, que

antes eram representativas, agora se convertem em conceitos, em ciência. O que parece ser um fim,

pondo em xeque uma dialética, seja qual for, principalmente a de Hegel, na verdade não acontece. O

Saber absoluto, última etapa conquistada pela consciência, na verdade, é o princípio da manifestação

do espírito absoluto que, segundo Hegel, acorreu três vezes: a primeira, enquanto tese, foi através

169 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 206. v. II.170 Ibidem, p. 207.171 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 116. v. 5.

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dos Impérios orientais, cuja liberdade era reservada somente aos monarcas; a segunda manifestação,

enquanto antítese, deu-se no Império Romano, cuja liberdade estava reservada à aristocracia; e, por

fim, como terceiro e grande momento da manifestação do espírito absoluto, esta enquanto síntese,

que se deu através do Estado Germânico, mais precisamente na Prússia, cuja liberdade foi

assegurada a todos; é, portanto, a manifestação máxima desse espírito na história.

Portanto, o Espírito, ao se manifestar no espaço, torna-se natureza; e no tempo, torna-se

história. É através da rememoração – relembrar as etapas já concluídas, tendo em vista a forma do

agir livre – que o espírito absoluto se manifesta através da arte, da religião e, principalmente, através

da filosofia. Esse Espírito recebe de seu predecessor o reino deste mundo e a concretização do

caminho para o espírito absoluto, ou seja, para o espírito que se reconhece como espírito. Agora é a

Idéia que pensa a si mesma, a verdade que se identifica com a história da filosofia, que é a

manifestação progressiva do absoluto.172

172 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 217-219. v. II.

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5 A DIALÉTICA HEGELIANA

Dialética era, na Grécia antiga, a arte do diálogo: eu falo, você escuta; você fala, eu escuto.

Mas uma síntese era necessária para a distinção dos conceitos, já que todas as coisas deveriam

passar por um processo dinâmico, ou seja, de transformação. A dialética torna-se, para Hegel, um

dos pontos básicos e fundamentais para o desenvolvimento de todo seu sistema. Ela reflete o

movimento da realidade, e realidade enquanto espírito que possui vida independente. Hegel usa da

dialética para caracterizar os diversos momentos sucessivos e contraditórios que toda essa realidade

apresenta. É como o desabrochar de uma flor (antítese) que negou seu momento anterior, o botão

(tese), e, conseqüentemente será negada pelo momento que o sucede, o fruto (síntese). Dessa forma

entende-se que o real é um processo que se auto-cria enquanto percorre seus momentos sucessivos.

5.1 ANALÍTICOS E DIALÉTICOS

Os analíticos e os dialéticos não se entendiam devido a um problema de sintaxe. Os analíticos

usam de um sujeito e um predicado para formar uma proposição bem feita; e disso não abrem mão.

Para os dialéticos, desde Platão, o sujeito está oculto, o sujeito é tudo o que foi pressuposto e o

predicado é ser, é nada, é devir. Para os dialéticos, não é necessária a construção perfeita de uma

proposição: sujeitos e predicados não são necessários. A necessidade é a do jogo dos opostos.173 Até

Aristóteles, principalmente com Platão, a filosofia seguia como o jogo dos opostos e, a partir dela,

para afirmar o sentido da vida e explicar o mundo. Aristóteles, não aceitando esse método, parte

para outro caminho, um caminho próprio: o analítico (método que mais tarde veio a influenciar todo

o pensamento ocidental).

A vertente da dialética assumida por Hegel, provém de Heráclito, depois assumida por

Platão. A vertente da analítica provém de Parmênides e, posteriormente, reassumida por Aristóteles.

173 Cf. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para todos. Faixa: O que é dialética.

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A analítica se fundamente na análise da proposição, e proposições formadas de sujeito e predicado.

Essas podem ser proposições afirmativas ou negativas. Já a dialética, ao usar do jogo dos opostos,

busca sempre uma síntese entre os dois momentos; busca uma conciliação. A idéia aristotélica

(analítica) que contém e abrange todas as regras lógicas, foi ilustrada, mais tarde, pelos pensadores

medievais, como uma figura de um quadrado chamada quadrado lógico. Foi a partir desse quadrado

lógico que analíticos e dialéticos se enfrentaram e se fundamentaram na diferença entre contrários e

contraditórios.174

O quadrado lógico é formado pelas letras ou figuras A, E, I e O. Nesse quadrado, nos cantos

superiores, estão: à esquerda, o A (positivo), e à direita, o E (negativo). Eles são denominados

universais. Já nos cantos inferiores, estão: à esquerda, o I (positivo), e à direita, o O (negativo). Esses

são particulares. É através dessas figuras que as proposições são formuladas e classificadas. Nesse

quadrado, as proposições ocorrem da seguinte forma: as que transitam entre A e O e entre E e I são

chamadas de oposições contraditórias, pois cruzam pelo meio do quadrado. A oposição que ocorre

entre A e E, sem cruzar pelo meio do quadrado, é chamada de oposição entre contrários. As

subcontrárias são as que ocorrem entre I e O. As oposições ocorridas no modo vertical entre A e I

(lado esquerdo) e entre E e O (lado direito) são chamadas de subalternas. Para cada tipo de oposição

há regras de inferência. Aristóteles descreveu todas as possibilidades na formulação das proposições.

Possibilidades que geraram objeções entre analíticos e dialéticos.

A primeira objeção foi apresentada, segundo Carlos Cirne-Lima, por Adolf Trendelenburg

(1802-1872) ao afirmar que a dialética nega o princípio da não-contradição. Lembra que, na dialética,

primeiro se afirma a tese, depois se afirma a antítese, e depois, num terceiro momento, se negam os

dois. Ao fazer isso, negar a tese e negar a antítese, a dialética está indo contra a principal regra da

lógica: o principio de toda racionalidade, o princípio da não contradição.

Porém, quando Hegel fala de contradição, ele quer dizer contrariedade, ou seja, no quadrado

lógico, é a oposição que virge de A a E e não de A a O, cruzando pelo meio do quadrado. Conforme a

afirmação de Cirne-Lima, todos os filósofos admitiram que da contradição (A e O) não pode resultar

simultaneamente duas proposições verdadeiras e nem falsas; já a contrariedade (A e E) também não

pode resultar simultaneamente duas verdadeiras, mas pode, duas falsas.175

Se a dialética trata de proposições não contraditórias, mas contrárias, tese e antítese podem

ser simultaneamente falsas: elas são contrárias e não contraditórias. Isso mostra que o sujeito lógico

de tese e antítese é o mesmo; e o quantificador também é o mesmo. Na Enciclopédia, Hegel

174 Cf. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para todos. Faixa: O que é dialética.175 Ibidem, Faixa: O que é dialética.

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demonstra que o sujeito lógico de todas as categorias é o absoluto; o absoluto que é ser, que é nada.

Dessa forma o sujeito é o mesmo e o quantificador não mudou, é o mesmo – como relata Hegel na

grande Lógica, ao afirmar que o sujeito não aparece, mas está subtendido – no primeiro momento

tudo é ser (tese), no segundo momento tudo é nada (antítese) – o quantificador é o mesmo. O

grande impasse entre Trendelenburg e Hegel fica resolvido.176 Essa diferença entre contrário e

contrariedade será melhor explicado por Hegel na parábola do Senhor e do Escravo que,

fundamentando-se na dialética, explica que essa relação, senhor-escravo, no decorrer da

aprendizagem, torna-se harmônica.

Portanto, analítica e dialética são filosofias diferentes. Na dialética a assimetria (propriedade

de relação que, afirmada entre A e B, não pode ser afirmada entre B e A sem haver uma

transformação) é superada e guardada. Essa é uma relação dialética que se predica da totalidade do

absoluto. Ao contrário da analítica, que corta e separa para evitar a contradição, a dialética não nega

o princípio da não-contradição; pelo contrário, ela trabalha com esse princípio, buscando a unidade:

pega o que foi antes cortado pela analítica para juntar num todo orgânico. Essa junção, em busca da

totalidade, é a mola motora do pensamento dialético, que impede que ou a tese ou a antítese seja

desprezada. É na unidade que se encontra a totalidade, ocorrendo assim a síntese dos opostos.177

5.2 ORIGENS DA DIALÉTICA: A DIFERENÇA ENTRE A DIALÉTICA HEGELIANA E A GREGA

O filósofo que mais deu ênfase à dialética, na Grécia antiga, foi Heráclito de Éfeso (aprox.

540-480 a.C.). Segundo Heráclito, tudo o que existe está em uma constante mudança, e é por meio

desse conflito que tudo existe. Dessa forma nega uma e qualquer estabilidade no ser. Dizia o filósofo

que, tanto o homem quanto o rio, ao entrarem em contato pela segunda vez, ambos não seriam

mais os mesmos; haveriam mudado. Sua concepção se contrapunha à de Parmênides (mais

convincente) que afirmava que a essência do ser não mudava, o que mudava era apenas sua

superfície; uma concepção metafísica que prevaleceu ao longo da história.178

O termo dialética, na história da filosofia, não possui um único significado, mas quatro:

quatro doutrinas. Nicola Abbagnano define em seu dicionário de filosofia, que dialética “[...] é o

processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser refutada, e que supõe,

portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito ou dois momentos ou duas atividades

176 Cf. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para todos. Faixa: O que é dialética.177 Ibidem, Faixa: O que é dialética.178 Cf. KONDER, Leandro. O que é dialética. p. 7-9.

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quaisquer”.179 Essa sua definição é uma espécie de ponto comum entre as quatro maiores definições

dadas na história para esse termo.

O primeiro significado do termo dialética foi dado por Platão, que tinha a dialética como

método da divisão. Com essa definição, quis ressaltar a técnica da investigação conjunta, possível

através de duas ou mais pessoas, de perguntas e respostas. Platão usou desse termo para descrever

o que pensava Sócrates. O ato de realizar dialética é visto por Platão como uma atividade própria,

realizada por uma comunidade livre. Importante é lembrar que, enquanto método de divisão, a

dialética não é um método dedutivo ou analítico, mas indutivo e sintético. O método platônico está

mais próximo da pesquisa empírica que do modo como é apresentado pelo silogismo ou pelo

raciocínio a priori.180

O segundo significado foi apresentado por Aristóteles como lógica do provável. Ele atribuiu a

Zênon de Eléa (aprox. 490-430 a.C.) a fundação da dialética. Ao contrário da definição platônica, que

pendia mais para o demonstrativo, partindo de premissas verdadeiras, Aristóteles afirma o inverso: é

apenas um procedimento racional que não parte de premissas verdadeiras, mas sim prováveis ou

aceitáveis. É justamente essa premissa provável que continha a contradição como próxima

alternativa capaz de gerar o movimento dialético.

A terceira doutrina ou significado do termo foi apresentada pelos estóicos como lógica; isso,

para explicar o algo menos compreensível, partindo da utilização do algo mais compreensível. Era

uma lógica que não continha a retórica ou ciência do bem falar com a utilização dos recursos das vias

de saída. Ao submeter a teoria dialética do raciocínio de Aristóteles a certa radicalidade, os estóicos

passam a definir a dialética como ciência do discutir corretamente através de perguntas e respostas.

A lógica, para os estóicos, identificava-se com a teoria dos signos, definindo-se como ciência do

verdadeiro e do falso e do que não é nem verdadeiro e nem falso. Dessa forma a dialética era

explicada através da evidência sensível. O raciocínio estóico, baseado sempre em hipótese, constava

unicamente de uma premissa e conclusão: se é dia, há luz (um retorno à concepção platônica de

dialética).181

E, por fim, a quarta doutrina do termo dialética é formulada por Hegel (através do Idealismo

romântico) como síntese dos opostos. O princípio dessa concepção deu-se primeiramente em Fichte,

entre os opostos eu e o não-eu e sua conciliação. Denominava a dialética como a síntese dos opostos

por meio da determinação recíproca. Partindo dessa concepção, Hegel define a dialética como a

própria natureza do pensamento:

179 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 269.180 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 269-270.181 Ibidem, p. 270-272.

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Chamo dialética o princípio motor do conceito enquanto não apenas resolve as particularizações do universal, mas as produz. Não se trata de uma dialética concebida como uma maneira de dissolver, se tornar confuso ou manipular em todos os sentidos um objeto, uma proposição, etc. dados ao sentimento, à consciência imediata, procurando produzir o seu contrário. Não se trata de uma forma negativa da dialética, freqüentemente encontrada, mesmo em Platão. Essa forma negativa pode-se imaginar que obteve seu último resultado quando chegou à afirmação do contrário de uma representação, seja sustentando com firmeza, como o ceticismo dos antigos [...] O que determina a dialética superior do conceito é não limitar-se a produzir uma determinação como simples limitação ou contrário, mas, a partir dessa determinação, engendrar e apreender o conteúdo e o resultado positivo.182

Hegel foi o pensador que procurou unir filosofia e história. Apresenta o conteúdo já vivido

como verdade de sua história e intimamente unida a si: o homem deve ter certeza de si mesmo. Para

que a verdade seja encontrada é necessário que o sujeito tenha realmente vivido entre os fatos de

sua época – para trazê-los à razão – e principalmente se colocar contra eles para a obtenção do

conceito. O conceito caracteriza-se em produzir e compreender, por si mesmo, os conteúdos. A

dialética nada mais é que a mola ou o motor desse conteúdo, que contém a negatividade como

extremamente necessária para, a partir da negação e da afirmação, obter tal conceito. Esse é o

autêntico método filosófico.183

Como filho de seu tempo, cada indivíduo deve deixar-se envolver pelo espírito de seu tempo,

não ficando à parte desse processo dialético. O desenvolvimento pleno, a liberdade absoluta, o

indivíduo só alcançará quando se inserir num Estado, à ele servi-lo em uma perfeita harmonia e

liberdade. Essa forma de liberdade ocorre no espírito quando o mesmo vem conhecer-se a si mesmo

como realidade última. Enquanto o espírito não se conhece, ou o indivíduo ainda está alienado do

Estado à verdadeira liberdade ainda não aconteceu, não se tornou plena. Ambos só alcançarão essa

liberdade a partir do momento que entrarem em contato com a filosofia hegeliana.184

No ponto de vista filosófico, a dialética consiste, primeiramente na apresentação de um

conceito simples, abstrato e muito limitado, imediato - essa é a tese (intelectual); depois na

determinação de seu oposto através da negação ou geração de uma antítese (momento dialético); e,

por fim, a síntese (momento especulativo ou racional). Porém, a dialética não é somente o segundo

182 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia do direito. parág. 31. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 52.

183 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel. In: Hegel. p. 598.184 Cf. MAGEE, Bryan. História da filosofia. p. 159-162.

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momento, como apresenta a divisão hegeliana, mas sim o conjunto dessas etapas descritas que

caracterizam a identidade entre o racional e o real. Ela não é formada de conceitos abstratos, ou leis

do pensamento, mas de pensamentos concretos, ou realidade que contém a sua tríade de tese,

antítese e síntese.185 Assim, Hegel usará da dialética enquanto síntese dos opostos para explicar e

fundamentar todo o seu sistema. A dialética para Hegel é o único método para se adquirir o

conhecimento do absoluto ou a razão, e capaz de elevar a filosofia à ciência.

5.3 A RAZÃO NA HISTÓRIA

O ponto central da filosofia hegeliana é muito parecido com a tese de Heráclito, que afirmara

que nada no mundo é permanente; tudo muda com o tempo; tudo flui. Para Hegel, tudo também é

resultado de um desenvolvimento ou de um processo de mudança. Todo momento contém

elementos de conflitos e, todos os conflitos devem ser superados para gerar um novo momento.

Todo esse processo, Hegel o chamou de dialética. Esse processo contém uma tríade ou partes

definidas como fases principais e necessárias.

A primeira fase, no ponto de vista histórico, é o estado da coisa inicial ou a tese; a segunda

fase a reação por ela provocada e dela originada: são as forças que se contrapõem a si mesmas ou

elementos de conflito, é a antítese; e por fim, a terceira e aparentemente última, a síntese. Essa

tanto retém elementos de ambas como os eliminam. Por ser uma situação nova, e agora de forma

única, também possui conflitos internos e se desenvolve a partir de si, como tese, gerando uma nova

tríade e desencadeando um novo processo de mudança contínuo e sem repouso e interrupções.186

Hegel introduz três grandes idéias que desempenharam, no mundo ocidental, um papel

muito importante. A primeira (enquanto tese) afirma a realidade como processo histórico,

intimamente ligado ao devir. O processo é entendido como algo que vem a ser o que é e, ao mesmo

tempo, algo que já passou. A segunda associação (enquanto antítese) é a alienação ou a negação de

si. Tal alienação é desencadeada pelo homem em seu processo de civilização. Nesse processo cria as

leis, regras, e idéias que depois vêm exercer pressão sobre ele. Um exemplo é a religião, cujo

indivíduo projeta, num deus, as características de perfeição que espera de si; vê em deus seu oposto

a partir do momento que se coloca diante dele como impotente e ignorante. Essa alma é a infeliz e

ingênua, pois não percebe que compartilha a mesma existência espiritual com deus; ambos são um.

Outra idéia ou associação foi a de que toda a história do mundo possui uma estrutura racional. Essa

185 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. p. 273.186 Cf. MAGEE, Bryan. História da filosofia. p. 159.

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estrutura somente é alcançada em uma grande síntese e entendida através do processo dialético.187

“O real é o racional, e o racional é o real”188; isso nada mais é que as leis das mudanças ocorridas na

história. Tudo o que se verifica no plano do racional passa a ser efetivo no âmbito real.

No período em que Hegel viveu em Frankfurt, surge a primeira aparição do método dialético

com a apreensão dos momentos da história, do tempo. Para ele, a história não pode ser encarada

num aspecto particular, de um único indivíduo com seus ideais; esse seria incapaz de superar suas

limitações, e assim, estaria impedido de alcançar o absoluto. Se assim fosse, a história nada mais

seria que um amontoado de fatos. Ao referir-se à história, Hegel refere-se à história do mundo, e

nela, à manifestação do espírito que alcança e realiza o saber, tornando mundo existente.

A razão, enquanto realização do espírito teria ocorrido durante três vezes no percurso da

história: a primeira (enquanto importante tese) no mundo oriental. Sobre a primeira realização,

afirma Hegel:

O império oriental. A primeira figura do Espírito é, portanto, o Oriente. Esse mundo tem por fundamento a consciência imediata, a espiritualidade substancial [...] O que aparece aqui é, inicialmente, um Estado em que o sujeito ainda não adquiriu seu direito, é uma ordem ética imediata e desprovida de leis que reina. É a idade infantil da história. [...] O Estado é o que é o pensamento substancialmente para si na forma de um fim substancial, universal, válido para todos.189

A segunda manifestação ou realização do espírito na história (enquanto antítese), ocorreu no

mundo greco-romano. Sobre esta manifestação, Hegel afirma:

O mundo grego. A segunda forma pode ser comparada a adolescência. Compreende o mundo grego. O que a caracteriza é uma multidão de Estados. É o reino da bela liberdade. Aqui, a individualidade se desenvolve na ética imediata. Aqui se ergue o principio da individualidade, a liberdade subjetiva, instalada, porém, na unidade substancial.190

187 Ibidem, p. 162-163.188 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Prefácio da filosofia do direito. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos

escolhidos. p. 18.189 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, A razão na história (Introdução às Lições sobre a filosofia da história). p.

279-296. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 132-133.190 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, A razão na história (Introdução às Lições sobre a filosofia da história). p.

279-296. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 137.

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E, por fim, a terceira e a última manifestação do espírito (de forma plena e sintética),

referente ao seu contexto, ocorreu no mundo germânico ou na monarquia constitucional da Prússia.

Sobre essa realização, afirma Hegel:

O mundo germânico. O reino da subjetividade, sabendo-se a si mesma, é a aurora do Espírito real [...] em que o princípio do Espírito desenvolveu-se concretamente em um mundo. Esse mundo do Espírito real tem como principio a conciliação absoluta da subjetividade existente para ela mesma [...] o sujeito é livre para si e só é livre na medida em que se torna adequado ao Universal e permanece essência. É o reino da liberdade concreta.191

Para Hegel, o único e verdadeiro método da exposição científica é o dialético. Método que

denomina simples e necessário ao desenvolvimento da lógica e de seu sistema, bem como toda a

Fenomenologia do espírito. Na demonstração da eficácia e perfeição do método dialético, dá

exemplos aplicados a objetos concretos: o primeiro deles é a consciência, e também o mais

importante; outros são descritos na Filosofia da história, caracterizada por um imenso movimento

dialético. Esse movimento origina-se desde o mundo grego até os dias de hoje.

Como vimos no capítulo primeiro, a sociedade grega, baseando-se numa moral já tradicional,

possuíam pensamentos em comum; todos agiam para o bem da sociedade. As particularidades não

existiam; tudo girava em torno do Estado. Esse é o movimento inicial, o ponto de partida ou um

exemplo de sociedade ainda abstrata: momento da tese. A antítese surge devido ao questionamento

de Sócrates ao afirmar que os gregos, ou o indivíduo não poderiam ficar excluídos de um

pensamento independente. Antes havia uma harmonia baseada nos costumes, mas, com a antítese

de que uma consciência independente seria necessária, essa estabilidade se desfez. A antítese ao

primeiro momento foi justamente a Reforma e, com ela, o reconhecimento do indivíduo ou

consciência individual. O que era harmonia, ao quebrar-se, torna-se a verdadeira liberdade.

Por se tratar de uma tríade, o segundo momento, ou a liberdade individual, também haveria

de ser negada ou tida como inadequada. Antes, uma harmonia, porém abstrata; depois, uma

liberdade, também abstrata. É com a síntese, ou terceiro momento que parte de ambos os

momentos seriam aproveitados e parte descartadas. Quando o segundo momento dessa dialética foi

colocado em prática (o principio da liberdade absoluta) ela se transformou, segundo Hegel, no caos

da Revolução Francesa. Ambos os momentos, por serem unilaterais, geraram o terceiro momento na

história, a grande síntese: a sociedade alemã da época de Hegel. Essa sociedade foi denominada 191 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, A razão na história (Introdução às Lições sobre a filosofia da história). p.

279-296. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 141-142.

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como síntese, pois continha a harmonia por ser uma comunidade orgânica, mantendo a liberdade

individual por ser organizada racionalmente. Embora Hegel tenha determinado um fim ou uma

síntese – que era o processo final ou a última etapa da tríade do movimento dialético – ela, agora

como uma nova tese, em qualquer outro momento, também se tornará unilateral, ou seja, ainda

abstrata para o novo momento, que será manifestado pelo devir.192

5.4 A IDÉIA ABSOLUTA

Como vimos, a lógica é composta por três categorias: ser (enquanto tese), nada (enquanto

antítese) e devir (enquanto síntese). Dessa forma, o absoluto é ser, porém falso, pois nem tudo é ser.

Se fosse, seria incorruptível (como a esfera de Parmênides) seria puro ser sem a possibilidade de

movimento. O absoluto é nada; também falso, pois dizer que tudo é nada, é falso. Assim como, já

observado no quadrado lógico sobre a contrariedade, sendo a tese falsa e a antítese igualmente

falsa, deve-se buscar um plano mais alto, uma harmonia: essa é a síntese, é o devir.

Fica compreendido que o absoluto não é apenas ser, nem apenas nada, mas é movimento

caracterizado do ser para o nada e do nada novamente para o ser. Esse movimento é devir, é

conciliação. Hegel, dessa forma, concilia a filosofia de Heráclito e Parmênides. Ambas as teses, de

que tudo é ser e de que tudo é nada, são falsas, pois afirmam que o correto é que tudo está em

constante movimento: “É como se na esfera imóvel de Parmênides corresse sempre a água do

movimento de Heráclito”.193 Essa é a imagem perfeita do universo como devir, que construirá o

sistema hegeliano que, partindo da lógica, assume as categorias da natureza e do espírito.194

Para entendermos o significado da idéia absoluta, precisamos recordar que a dialética faz do

pensamento, da consciência ou do progresso da história um constante devir. Eles contêm elementos

que serão contrapostos, e algo de novo que surgirá como uma reconciliação das idéias, tornando-se

cada vez mais adequados. O mundo e a consciência progridem de modo dialético. A idéia absoluta é

o objetivo almejado pela lógica hegeliana através do método dialético. A lógica demonstra a

necessidade de um idealismo absoluto que parte de um simples conceito do ser e chega a conceitos

que contêm a natureza da realidade com maior precisão e verdade. Para Hegel, a idéia absoluta é o

que inclui em si todas as coisas já determinadas ou distintas. A manifestação desse absoluto se

realiza dentro da estrutura triádica do processo dialético.195

192 Cf. SINGER, Peter. Hegel. p. 105-107.193 CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para todos. Faixa: O que é dialética.194 Cf. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para todos. Faixa: O que é dialética.195 Cf. SINGER, Peter. Hegel. p. 109.

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5.5 O NEGATIVO COMO MOMENTO DIALÉTICO QUE LEVA AO POSITIVO

Mesmo Hegel dialogando com Kant, com Fichte e com Schelling, apresenta uma nova noção

sobre os conteúdos filosóficos. Ao elaborar o seu sistema, de forma enigmática, nova e com termos e

conceitos próprios, constitui a razão como motor da história, ou seja, as verdades, devido ao

movimento dialético, que são constituídas no tempo. Como já visto, não descarta as filosofias desses

três filósofos, mas as aprimora, dando um novo sentido: o devir; a filosofia do vir-a-ser, do processo.

É pelo fato de se afirmar que o ser está em constante movimento que há a necessidade de uma nova

lógica, cujo princípio de identidade não seja estático, e que a mesma possua o princípio da

contradição, para que o real seja sempre expressado; esse é o movimento dialético. A contradição é

definida por Hegel como:

A contradição é, geralmente, o que se afasta em primeiro lugar das coisas, do ser e do verdadeiro em geral; diz-se, notadamente, que nada é o contraditório. Em segundo lugar, ao inverso, fazem-na refluir para a reflexão subjetiva, dizendo que é essa reflexão que põe a contradição à força de relacionamento e de comparações.196

Esse movimento de contradição é o que determina a mudança das coisas, ou a morte, como

afirma Goethe. A morte é a responsável por toda a mudança e, conseqüentemente, criadora. Esse

momento negativo está contido em todo o ser, bem como a negação da negação que será a

responsável por uma atual superação.197

Em se tratando de negação, ou negatividade, essencial à continuidade do movimento, a

dialética também é o processo pelo qual as contradições geradas pela consciência e pela história são

resolvidas, ou seja, superadas. Essa resolução se dá a partir do momento do negativo. É o negativo

que obriga a razão a suprassumir, ou o suspender da contradição.198 Toda consciência, toda história

possui o ser, ou o que é, e a manifestação ou negação; possui a tese, a antítese e a síntese, a qual,

posteriormente, tornar-se-á uma nova tese. A verdade, assim, é determinada na coincidência entre

ambos: entre a tese e a antítese. O processo torna-se verdadeiramente dialético à medida que o ser

e a manifestação justapõem-se negativamente. O mais forte anula o mais fraco, mas não o aniquila,

196 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Ciência da Lógica, Livro II, 1ª Seção, Cap. II, nota III. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 59.

197 Cf. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. p. 143.198 Cf. COOPER, David E. As Filosofias do mundo: uma introdução histórica. p. 336.

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pois conserva dele algumas características. O negativo tem que ser em algum momento positivo,

devido às fazes não se aniquilarem e sim se conservarem. No movimento dialético, a negatividade,

por ser o motor do processo, é o que conduz a razão a uma nova apreensão.199 Sobre a negatividade,

afirma Hegel:

A negatividade [...] é a fonte interna de toda atividade, de todo movimento espontâneo, vivo e espiritual, a alma dialética que extrai toda sua verdade desse ponto, graças ao qual é a única verdade [...] O segundo negativo, o negativo do negativo, consiste na supressão da contradição, mas, sim como a própria contradição, não é obra de uma reflexão exterior, porém constitui o momento mais profundo, mais intimo e mais objetivo da vida do espírito [...]200

5.6 A ESTRUTURA TRIÁDICA DO PROCESSO DIALÉTICO: TESE, ANTÍTESE E SÍNTESE.

É graças ao movimento circular e triádico, desenvolvido pela dialética, que o devir do espírito

ao absoluto torna-se possível. Através dessa tríade, indicada pelos termos tese, antítese e síntese, a

compreensão do sistema hegeliano torna-se capaz. Por ser um filósofo cuja linguagem é complexa,

usa muito pouco esses termos. Sua preferência está em usar os termos: abstrato, imediato,

intelectivo, singular, enquanto tese; lado dialético, negativo, alienado, exteriorizado, negativamente

racional, enquanto antítese; e os termos: especulativo, positivamente racional, enquanto síntese.201

5.6.1 TESE: O 1º MOVIMENTO

O primeiro momento da dialética é o momento do intelecto ou a tese. Devemos lembrar que

toda tese traz em si sua contradição ou sua antítese. A tese é a ação do intelecto que abstrai

conceitos e neles permanece. Por ser um momento de afirmação, sua ação ainda é abstrata, embora

sua atividade esteja em obter a universalidade das formas. O intelecto se autosepara por possuir um

conhecimento abstrato ou inadequado. Ele se distingue quando produz novas separações; separa-se

ou passa a operar quando o intelecto age de maneira contrária à intuição imediata e à sensação que

possuía; e se autodefine, quando por sua potência, afasta-se do particular, elevando-se ao universal.

Contudo, o intelecto ainda está preso à sua própria abstração; tornou-se vítima de suas próprias

199 Cf. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. p. 221.200 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Ciência da Lógica, Livro III, 3ª Seção, Cap. III. apud CORBISIER,

Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 61.201 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 106. v. 5.

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abstrações. Por buscar a verdade racional, não pode ficar limitado a e esse falso infinito, precisa ir

além de seus limites.202

5.6.2 ANTÍTESE: O 2º MOVIMENTO

O segundo momento da dialética é a antítese ou lado dialético. Esse é o momento de negar o

que antes fora afirmado; é um passo a mais e necessário que o intelecto dá em busca da verdadeira

razão. Esse passo é constituído por um momento negativo e outro positivo. O momento negativo ou

parte negativa, dá-se quando a rigidez do intelecto e suas definições são quebradas, contrapostas,

questionadas. Ao negar algo que já existe, automaticamente se afirma algo que será apresentado.

Esse é o motivo por esse momento também se chamar dialético, ou momento da morte, segundo o

próprio Hegel.

A morte – se quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto.203

A antítese é um momento fundamental na dialética e descreve a ação de uma nova tese, que

é vista somente como antítese, já que se relaciona, unicamente, com a primeira, definida como tese

inicial. Esse ir além dos limites do intelecto extrai um novo conceito. Um conceito extraído da tese ou

rigidez abstrata necessita de oposto. Da idéia de uno, pensa-se à idéia de múltiplo; da igual à

desigual, da particular, à universal; do finito ao infinito etc. O intelecto se mostra a partir de sua

negação. É exatamente o negativo que exerce o papel de mola, capaz de elevar o intelecto a uma

síntese ou momento especulativo, ou momento mais alto de toda a tríade dialética. A tensão entre a

tese e a antítese resulta numa síntese, negação da negação, ou seja, uma nova afirmação, ou

afirmação absoluta. 204 “[...] a negação em geral deve distinguir-se da segunda negação, que é a

negação da negação, negatividade concreta absoluta, assim como a primeira é a negatividade

abstrata”.205

202 Ibidem, p. 106-107.203 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 38. v. I.204 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da Filosofia. p. 107. v. 5.205 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Ciência da Lógica, Livro I, 1ª Seção, Cap. II. apud CORBISIER, Roland.

Hegel: textos escolhidos. p. 58.

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5.6.3 SÍNTESE: O 3º MOVIMENTO

O momento especulativo, ou síntese, é a grande novidade que conduz e movimenta a

filosofia de Hegel. Filósofos que o antecederam, praticamente ignoraram esse movimento. Visto que

a dialética hegeliana possui seus três momentos ancorados na tese, enquanto afirmação, na antítese,

enquanto negação ou momento oposto, e na síntese, enquanto negação da negação, o momento

especulativo é a retomada, ou melhor, a reafirmação do positivo, que se dá mediante a negação do

segundo momento: a antítese.

A retomada de parte do positivo que havia sido negada e a negação da parte do negativo que

havia sido imposta, em seu grau mais elevado, é o momento especulativo, ou seja, o superar, a tese e

a antítese, sem negá-las, mas tirar parte delas e conservá-las. A ilustração desse momento

especulativo será apresentada no capítulo seguinte, no qual a verdadeira liberdade só será alcançada

quando, pela dialética, o Senhor e Escravo se relacionarem, eliminando parte do outro, a ponto de se

encontrarem em sua própria afirmação.206

Esse momento, por ser o terceiro e o mais esperado para a realização da dialética, é

considerado como positivamente racional; é síntese, ou identidade dos opostos. “A síntese contém e

salienta a não-verdade dessas abstrações: em si mesmas, essas abstrações formam uma unidade

com outra coisa, quer dizer, não existem por si mesmas, enquanto absolutas, mas apenas e

unicamente enquanto relativas”207 As duas primeiras partes do processo dialético geraram uma

contradição entre as determinações. O terceiro momento, por ser um momento sintético, contém

em si a positividade ou a superação de ambas as determinações opostas, que detêm o intelecto. O

momento positivamente racional se mostra como concreto e como totalidade, suspendendo ou

cessando a contradição gerada entre tese e antítese. Com esse momento, o momento especulativo

requer a retirada e a conservação dos dois momentos já ocorridos. Essa ação é definida como

aufheben, ou superação. Com essa superação, o intelecto atinge o seu limite e garante o verdadeiro

conhecimento: o conhecimento absoluto.208

206 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 108-109. v. 5.207 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Ciência da Lógica, Livro I, 1ª Seção, Cap. I, nota III. apud CORBISIER,

Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 57.208 Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia. p. 108. v. 5.

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6 O SENHOR E O ESCRAVO

O Senhor e o Escravo representam, na filosofia de Hegel, duas consciências, ou melhor, uma

única consciência que tem o desejo de ser reconhecida. Ambas desejam sobreviver e, ao levar a cabo

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sua abstração (apresentação de si mesma), sujeitam-se a um duelo, ou confrontam-se. Na primeira

consciência, a essência é o ser-para-si, ou seja, o domínio; na segunda, a essência é apenas a vida.

Uma é independente, outra dependente. Lutam entre si expondo todo o seu ser imediato. A primeira

está repleta de coragem: é o Senhor; aceita arriscar sua vida por um desejo de dominação e

superioridade. Coloca-se acima de suas necessidades e de sua existência. A segunda não quer

arriscar sua vida: é o Escravo; deixa-se vencer, não quer morrer. O Senhor, ou seja, o vencedor, por

conter o desejo de dominação, poupa a vida do outro: o Escravo. Faz dele um sinal de sua vitória e

única testemunha dela: foi conservado e não eliminado, pois, é o único capaz de reconhecê-lo como

Senhor, como consciência. Ambos desejam a liberdade, a verdadeira liberdade que os possibilitarão

contemplar o Absoluto. Todo o trajeto que percorrem é necessário e, após percorrê-lo, uma das

consciências que agora é totalmente imediatizada e independente, adquire a liberdade e caminha

em busca da razão. Os conceitos Senhor e Escravo, neste capítulo, bem como em todo este trabalho,

aparecerão destacados, em suas iniciais, com a letra maiúscula, por se referirem unicamente à

consciência.

6.1 A PARÁBOLA DO SENHOR E DO ESCRAVO NA HISTÓRIA

Toda a dialética hegeliana, principalmente vista na Fenomenologia do espírito, fundamenta-

se na passagem de uma dialética do desejo a uma dialética do reconhecimento. Com esse

movimento, Hegel proporcionará um movimento a todo o seu sistema. Especialmente através da

dialética, marcará o caminho que, primeiro e especialmente, o homem ocidental deverá percorrer: o

caminho da razão; um caminho que o conduz do desejo ao reconhecimento, da servidão ao senhorio;

porém, um senhorio que se impõe através do medo, da obediência e da servidão, do trabalho, para

que alcance a verdadeira liberdade que se encontra no interior da escravidão.

O Senhor ou Escravo, ou senhorio e servidão, são dois termos dialéticos usados por Hegel

para o movimento do reconhecimento das consciências através da superação da contradição que há

entre elas. Esse movimento é a luta de vida ou morte, uma luta em busca da liberdade. “Trata-se de

desenrolar o fio dialético da experiência que mostra na ‘duplicação’ da consciência-de-si em si

mesma – ou no seu situar-se em face de outra consciência-de-si – o resultado dialético e, portanto, o

fundamento da consciência do objeto”.209 A dialética do Senhor e do Escravo é uma experiência que

o mundo todo deverá realizar. Primeiramente, coube ao homem ocidental desenvolver essa

realização, situar-se frente à sua história, obtendo o lugar em seu tempo e, principalmente, conhecer

a face misteriosa do saber científico, ou seja, a partir de um processo dialético-histórico, pensar-se

209 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução. In: Fenomenologia do espírito. p. 23.

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sobre si próprio. Está subentendido, nesse movimento da dialética do Senhor e do Escravo, a

problemática da racionalidade do ethos.

Hegel deixou bem claro, ao escrever a Filosofia da história, que a história possui um sentido;

tem um início e um destino. Através dos fatos ocorridos em sua época: a Reforma Protestante, a

Revolução Francesa e o Império napoleônico (como a mais alta expressão de racionalidade), Hegel

pôde classificar esses fatos como sendo universais e essenciais para o progresso e desenvolvimento

humano:

A história mundial não é, aliás, o tribunal em que o Espírito pronuncia seu veredito [...] essa história mundial é, segundo o conceito de liberdade do Espírito, o desenvolvimento necessário dos momentos da razão, e, conseqüentemente, da consciência de si e da liberdade do Espírito: é, pois, a explicitação e a realização do Espírito universal.210

Para ele, a verdadeira história começou a ser traçada com o desenvolver de uma consciência

de liberdade. A Filosofia da história relata isso, e a dialética do Senhor e do Escravo mostra esses

acontecimentos de modo enigmático.

A dialética hegeliana do Senhor e do Escravo está fundamentada nos acontecimentos

históricos, principalmente os vividos por Hegel. Para definir o processo e reconhecimento de

libertação que a parábola contém, Hegel apresenta alguns exemplos. Primeiramente, para

caracterizar a falta da verdadeira liberdade, descreve a vida dos gregos. Eles costumavam pensar em

si mesmos, em seus próprios interesses, bem como nos interesses do Estado. Misturavam a tal ponto

os interesses que não conseguiam distinguir quais eram os seus e quais eram os do Estado. Segundo

Hegel, viviam numa prontidão para fazer o melhor para o Estado; porém, não continham a

verdadeira racionalidade; era uma forma incompleta de liberdade, pelo fato de serem motivados

naturalmente, ou seja, uma motivação interna, imediata, como a de uma consciência que se

reconhece a si própria. Não viviam a verdadeira liberdade por não conterem em si o pensamento

crítico e reflexivo, ou seja, a razão. Outro momento histórico no qual Hegel viveu e partiu para

caracterizar a dialética do Senhor e do Escravo foi a Reforma Protestante. Para Hegel, a Reforma

Protestante foi a conquista do povo germânico, que viveu a liberdade em sua plenitude, por conter

em si a honestidade e a simplicidade de coração, ou seja, sem a intenção de dominação, como a

consciência-de-si irá mostrar. Pode-se dizer que a Reforma foi o princípio ao qual o indivíduo

210 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia do direito, parág. 342. apud CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. p. 126.

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submeteu a própria luz da razão.211 Já num outro momento, dialético-histórico, está a Revolução

Francesa e as sucessivas conquistas napoleônicas. Porém, com as passageiras vitórias de Napoleão, o

código de direito do cidadão na Alemanha foi implantado, e os indivíduos puderam se libertar,

principalmente, das obrigações feudais. Através da figura de Napoleão, Hegel chegou a sugerir que o

processo da idéia de liberdade havia alcançado sua concretização. Para que isso se tornasse possível,

os indivíduos precisariam governar-se a si mesmos, alcançando sua própria consciência; e, o Estado,

formado por instituições sociais e políticas, fosse racionalmente organizado. Dessa forma, quando o

indivíduo escolhesse governar-se a si mesmo, seguindo sua consciência, estaria seguindo livremente

o agir da lei e da moralidade do mundo objetivo; sendo assim, a liberdade torna-se-ia completa, pois,

passaria a existir tanto no mundo interno, subjetivo, como no mundo externo, objetivo. Os indivíduos

teriam total liberdade de escolher, ao contrário dos gregos, o mais necessário: ora os interesses

próprios, ora os interesses do Estado.212

6.2 O EPISÓDIO DIALÉTICO DO SENHOR E DO ESCRAVO EM HEGEL

A Fenomenologia do espírito abrange, em sua complexidade, os temas já descritos, que vão

da arte à teologia, da ciência à história. Por se tratar de filosofia da história Hegel, apresenta, em

toda extensão de sua obra, modelos ou exemplos ocorridos na história, ou seja, vividos pelo espírito

e, posteriormente, indicados para o homem para que ele os vivesse para a compreensão do

absoluto. Além dos principais exemplos da história, dos quais relata a manifestação do espírito

absoluto, utiliza muito de parábolas, e parábolas intelectuais, para a descrição de seu conhecimento,

de sua filosofia, de seu sistema. A mais conhecida e, por certo, a mais importante, é a do Senhor e do

Escravo. Ela é o cerne, ou seja, o núcleo de toda a sua filosofia, haja vista que, por se tratar de um

sistema complexo, todas as idéias são retomadas e reaplicadas para a compreensão de novos

conceitos.213 A dialética do Senhor e do Escravo é uma análise do processo de formação da

consciência, determinado pela relação com o outro, através de uma experiência de reconhecimento

e desejo de superação. Assim Hegel define o Senhor e o Escravo:

Nessa experiência, vem-a-ser para a consciência-de-si que a vida lhe é tão essencial quanto a pura consciência-de-si. Na consciência-de-si imediata, o Eu simples é o objeto absoluto; que no entanto pra nós ou em si é a mediação absoluta, e tem por momento essencial a independência subsistente. A dissolução daquela unidade simples é o resultado da primeira experiência; mediante essa experiência se põe uma pura

211 Cf. SINGER, Peter. Hegel. p. 27-34.212 Ibidem, p. 36-37.213 Cf. SCRUTON, Roger. Introdução à filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. p. 171.

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consciência-de-si, e uma consciência que não é puramente para si, mas para um outro, isto é, como consciência essente, ou consciência na figura da coisidade. São essenciais ambos os momentos; porém como, de início, são desiguais e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente, para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo.214

6.3 O MOMENTO DA FORMAÇÃO DA AUTOCONSCIÊNCIA: A CONSCIÊNCIA DA VIDA

Como descrito no capitulo IV deste trabalho, dentro da compreensão das etapas do itinerário

fenomenológico, como a segunda etapa, a consciência – com o auxílio da razão e do entendimento –

busca, almeja uma auto-superação, visando sua independência, sua auto-realização, ou seja, sua

liberdade, sua autoconsciência. Como em todas as partes do movimento fenomenológico há

subdivisões, com a autoconsciência não seria diferente. Ela também contém uma tríade interna que

se divide em consciência-de-si ou consciência da vida (tese), liberdade da consciência-de-si ou a

consciência que pensa e que é liberdade (antítese), e, por fim, a consciência infeliz ou a consciência

dividida no interior de si mesma (síntese). Não mais como uma subdivisão, mas sim como momentos,

cada etapa destaca-se de forma única e precisa para definição, formação e consolidação de uma

autoconsciência.

Os momentos destacados e, por certo, os mais importantes da consciência-de-si ou da vida

enquanto tese, são: o desejo, a vida, o outro eu, o reconhecimento e, dentro desse, a presença da

dialética do Senhor e do Escravo com: a luta de vida ou morte, a dominação e a escravidão, ou seja, o

medo. Já a antítese ou os momentos da liberdade da consciência-de-si são definidos como:

estoicismo ou tomar a racionalidade como critério, o ceticismo ou operação que elimina falsas

independências e, a consciência infeliz como introdução para o próximo momento. E, por fim, a

síntese da autoconsciência, ou seja, a consciência infeliz que é a liberdade, embora confusa que tem

sempre na unidade de sua essência a outra.215 O primeiro momento será o assunto específico deste

trabalho e especialmente deste capítulo; os demais já foram abordados dentro do processo do

itinerário fenomenológico, descrito no capítulo quarto.

A partir desses momentos a consciência-de-si, que é desejo, só se tornará verdade depois de

ser reconhecida por outra consciência-de-si, dando início a momentos destacados acima. É

justamente nesse reconhecimento que se encontra a dialética do Senhor e do Escravo: do 214 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 129-130. v. I.215 Cf. SCRUTON, Roger. Introdução à filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. p. 718.

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reconhecimento à liberdade. As forças que foram descobertas a partir do entendimento (presentes

na primeira etapa do itinerário fenomenológico) proporcionaram a dualidade de consciências e,

automaticamente, a busca por sua independência.216

A primeira etapa da tríade interna da autoconsciência é o da consciência enquanto

consciência-de-si; é a tese, é o momento inicial. Essa é uma consciência-de-si que é todo desejo, é

desejo em geral, desejo negativo. A consciência-de-si, por ser desejo, vai em busca do outro para

poder ser destruindo-o e diluindo-o em sua própria identidade. O desejo é definido, portanto, pelo

movimento de retorno da consciência-de-si que, ao observar o outro, vai até ele, suprassume a

oposição, ou a ameaça criando assim a sua própria identidade: eu sou eu. Esse movimento, esse

reconhecimento, mesmo ainda sendo primitivo, só é possível graças ao outro, pois é a partir dele que

a consciência realiza o retorno a si.217

6.3.1 O DESEJO

Conforme Hegel, só existe o desejo quando há o querer de alguma coisa e, a partir do

desejo, já se imagina que o objeto exista independentemente de si, embora a consciência-de-si ainda

não o aceite, tente suprassumi-lo. Essa atitude da consciência-de-si ainda primitiva, simples, porém

não ingênua, pois já deseja, o domínio sobre a outra, é o primeiro passo para o reconhecimento de si

e do outro. Embora seja todo desejo a consciência-de-si possui ainda um desejo primitivo. Ainda não

contém o desejo autêntico, mas sim animal, instintivo, natural, que é unicamente capaz de explorar

o mundo como um objeto. O desejo é muito forte e predominante no início da consciência-de-si, pois

há um momento muito importante, denominado subjetivo: momento da oposição, porém primitivo.

Nesse momento a consciência-de-si observa que o mundo está contra ela e quer dominá-la; precisa

reagir, precisa lutar, precisa sobreviver; encontrou um rival, encontrou seu outro eu, encontrou seu

outro igual.218

Contudo, a consciência-de-si não está inerte. Possui um movimento que a coloca frente ao

mundo numa disputa de vida ou morte. Mesmo o mundo sendo para ela inferior, ou seja, o que

desaparece ou não possui sustentabilidade em si próprio, é necessário para a sua existência. O

objeto do desejo, ou seja, o outro, não é totalmente independente: é enquanto é e por pouco

tempo, pois sua verdade será consumida, negada pela ânsia da consciência-de-si de se assemelhar a

si mesma. Dessa forma, o desejo não é um objeto sensível, mas um meio, uma necessidade para a

216 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 171.217 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 56.218 Cf. SCRUTON, Roger. Introdução à filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. p. 172.

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consciência-de-si entrar em contato consigo mesma. O que a consciência-de-si deseja, nada mais é

que a si mesma, ou seja, seu próprio desejo, que alcançará somente quando encontrar um outro

desejo, ou uma outra consciência-de-si; e isso só depende de si própria. Mais que desejar os objetos

do mundo, deve desejar a vida, deve desejar o reconhecimento, que só será possível quando

reconhecer o outro eu, a outra consciência-de-si.219

6.3.2 A VIDA

Graças ao desejo, a consciência-de-si tem conhecimento da vida, e vida que é unicamente

objeto de seu desejo; desejo e vida se juntam e dão à consciência-de-si o impulso em direção ao

outro eu. No início do conhecimento da vida, a consciência-de-si fará uma experiência da

independência de seu objeto, determinando-o como ‘vida’ cuja essência é o infinito. Esse infinito,

agora possível e determinado pela consciência-de-si, traz a multiplicidade dos seres vivos, cujas

singularidades de cada um deles formam a unidade do todo. Os seres, ao fazerem a experiência da

independência, afirmam que são para-si. Sendo para-si, significa que retornaram à unidade, são

determinados. Só retornarão à sua unidade quando negarem o outro e, conseqüentemente, forem

negados. Essa formação de diversas figuras independentes resulta no processo da vida: é o ciclo de

uma totalidade, de todo um desenvolvimento que agora é possível. O objeto torna-se reflexão em si

próprio.220

A consciência-de-si, ao encontrar-se com o seu outro, não o encontra mais como um objeto

sensível de sua percepção, mas como reflexão de si próprio. Hegel assim define:

Para nós, ou em si, o objeto que para a consciência-de-si é o negativo, retornou sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência também [fez o mesmo]. Mediante sobre essa reflexão-sobre-si, o objeto veio-a-ser vida. O que a consciência-de-si diferencia de si como essente não tem apenas, enquanto é posto como essente, o modo da certeza sensível e da percepção, mas é também Ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato é um ser vivo.221

A vida é a prova de que a consciência-de-si se põe à prova e se procura a partir do seu outro.

Ela se resume no outro da consciência-de-si, ou seja, ao desejá-lo, deseja principalmente o seu si,

deseja a sua existência, já que é somente por ele que a consciência se reconhece como tal e qual.

Contudo, a unidade do outro consigo mesma torna-se um ato de repelir-se a si de si mesmo. Com

219 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 174-175.220 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 57.221 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 121. v. I.

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esse repelir-se, surge a oposição entre a consciência e a vida, vida essa que coloca à prova a

independência total do outro; proporciona uma espécie de teste, buscando conhecer a resistência

do seu objeto. Nisso, quanto mais a consciência se torna independente, mais o outro (objeto) se

torna em si.222 “A consciência-de-si, que é unicamente para si e que marca imediatamente seu objeto

como o sinal do negativo, ou que é de início desejo, fará antes, portanto, a experiência da

independência desse objeto”.223

6.3.3 O OUTRO EU

Mesmo a consciência-de-si permitindo a independência do outro, ou seja, que o outro

também se torne desejo, ela continua o seu movimento; dessa vez com a intenção de ver o objeto se

enriquecer de todas as qualidades ou decisões do processo da vida. A consciência-de-si ainda tem a

intenção de suprassumir o outro. Seu desejo incansável ainda se expressa na certeza da aniquilação

dele. Porém, para que isso aconteça, para que o outro seja suprassumido, ele (o outro) deverá existir

tal e qual identicamente a consciência-de-si: deverá existir como independente, não sendo somente

um em-si, mas um para-si; deverá ser desejo, outro desejo. Somente com o encontro de outro desejo

é que a consciência-de-si se satisfaz. A princípio, a consciência-de-si se satisfazia ao levar o outro à

negação de si mesmo; agora, por conter em si não só o desejo, mas a vida, necessita do

reconhecimento do outro enquanto consciência-de-si para se realizar plenamente. Eis que o outro,

que antes era objeto, torna-se consciência-de-si.224

A alteridade, ou seja, o outro, enquanto consciência-de-si, é essencial ao desejo, é necessário

para que a consciência-de-si possa negá-la. Porém, essa alteridade aparece de modo provisório, pois

“[...] a essência do desejo é um outro que não a consciência de si, e por meio dessa experiência, tal

verdade torna-se presente à consciência de si”.225 A consciência-de-si, que é unicamente para si

segundo seu desejo, e não pode realizar-se plenamente se o outro não se apresentar como

consciência-de-si; caso ele se apresente como objeto, a consciência-de-si não passará de outro

objeto; essa é a relação de alteridade.

Na dialética, os caminhos do desejo são descobertos pondo, em relevo, suas condições. Uma

delas, e a que acabamos de ver, é a condição da consciência-de-si que se fundamenta na existência

de outras consciências-de-si. Nisso implica também o verdadeiro desejo, que deve ser aquele que

222 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 174-177.223 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 121. v. I.224 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 58.225 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 125. v. I.

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permite a manifestação de outro desejo que se encontro, num outro ser. Nesses três momentos

vistos acima: o desejo, a vida e a alteridade, o conceito de consciência-de-si se completa;226 e Hegel,

os define dessa forma:

a) O puro Eu indiferenciado é seu primeiro objeto imediato. b) Mas essa imediatez mesma é absoluta mediação: é somente como o suprassumir do objeto independente; ou seja; ela é desejo. A satisfação do desejo é a reflexão da consciência-de-si sobre si mesma, ou a certeza que veio-a-ser verdade. c) Mas a verdade dessa certeza, é antes a reflexão redobrada, a duplicação da consciência-de-si. A consciência-de-si é um objeto para a consciência, objeto que põe em si mesmo seu ser-outro, ou a diferença como a diferença de-nada, e nisso é independente [...]. Porém o objeto da consciência-de-si é também independente de si mesmo [...] é uma consciência-de-si viva.227

6.3.4 O RECONHECIMENTO

Duas consciências-de-si, duas forças. Elas, não sendo somente em-si e de-si, mas para-si,

trazem dentro de si, e reconhecem a verdade de seu desdobramento e a necessidade do

reconhecimento quando opõem-se a si mesmas. “O que naquele [jogo de forças] era para nós, aqui é

para os extremos mesmos [...] Como porém é consciência, cada extremo vem para fora de si; todavia

ao mesmo tempo, em seu ser-fora-de-si, é retido em si; é pra-si; e seu ser-fora-de-si é para ele”.228

Esse, segundo a dialética, é o reconhecimento mútuo das consciência-de-si, ou seja, o pleno

desenvolvimento. Para que esse desenvolvimento realmente aconteça, a consciência-de-si, por ser

desejo, nega toda a alteridade, ou o outro. Da mesma forma que nega o outro, é negada por ele, que

também contém em si sua absolutez. Dessa forma, compreende-se que cada consciência-de-si, ao

mesmo tempo, é ser vivente frente a si e objeto vivente (fora) frente o outro.229

Esse momento, o do reconhecimento, também contém um problema que deve ser superado,

resolvido: a desigualdade entre as consciências-de-si deve ser superada de ambos os lados. O

problema é que, para que a consciência-de-si encontre sua verdade, é necessário fazer-se

reconhecer pela outra consciência: um sinal de dependência, ou seja, “[...] cada uma vê a outra fazer

a mesma coisa que ela faz, cada uma faz ela própria o que exige da outra, e, portanto, faz o que faz

enquanto a outra também o faz”.230 Esse é o sentido e a maneira pelos quais se dá o reconhecimento

226 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 177-178.227 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 125. v. I.228 Ibidem, p. 127.229 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 179-180.230 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 127. v. I.

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mútuo e, ao se reconhecerem reciprocamente, geram o elemento da vida espiritual, permitindo que

o sujeito se reconheça como objeto e se encontre, definitivamente, no outro, sem que desapareça a

alteridade essencial a si. Esse momento da alteridade é o sentido e a expressão da dialética

hegeliana: o desejo só se torna desejo verdadeiro quando se refere a um outro.231

Há ainda uma recusa por parte da consciência-de-si (podemos dizer que ainda há a vontade

da dominação sobre o outro), pois a consciência-de-si contém, em seu ser, o sinal da recusa de ser.

Essa recusa de ser aquilo que é gerará a luta pelo reconhecimento e, conseqüentemente, para a

dominação. Eis que se inicia a dialética do Senhor e do Escravo, descrita por Hegel, como uma

metáfora ao desenvolvimento de todo o seu sistema. Porém, antes de adentrarmos o processo de

dominação-servidão, entendamos o processo da luta entre as consciências-de-si:

Toda a dialética sobre a luta das consciências de si opotas, sobre a dominação e a servidão, supõe a concepção de ambos os termos: o Outro e o Si. O outro e a vida universal tal como a consciência de si a descobre enquanto diferente de si mesmo; é o elemento da diferença e da substancialidade das diferenças. E o Si, em face dessa positividade, é a unidade reflexiva que se tornou pura negatividade. Agora, o Si se encontra no Outro, emerge como uma figura vivente particular [...] Mas é preciso não apagar a dualidade sob o pretexto de apreender a unidade. O elemento da dualidade, da alteridade, é precisamente o ser-aí da vida, o absolutamente Outro, e, como vimos, esse Outro é essencial ao desejo.232

6.4 A DIALÉTICA DO SENHOR E DO ESCRAVO: RELAÇÃO COM O OUTRO NA CONSTITUIÇÃO DA

IDENTIDADE

Sem dúvida nenhuma, a parte mais intrigante e fundamental para a concepção do processo

de formação da consciência é a metáfora do Senhor e do Escravo descrita por Hegel em sua mais

celebre obra, a Fenomenologia do espírito. Mostra essa parábola a importância da relação com o

outro, ou seja, entre duas consciências-de-si para a constituição da identidade e aquisição da

liberdade. Todos os momentos propostos na Fenomenologia devem ser percorridos, superados, para

que, como já vimos no capítulo terceiro, a consciência atinja o conhecimento absoluto e abra o

caminho para o indivíduo enquanto integrante de um Estado.233 Sobre essa relação com o outro,

descreve Hegel:

231 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 180-181.232 HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 182.233 Cf. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. p. 222.

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A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido. O conceito dessa sua unidade em sua duplicação, [ou] da infinitude que se realiza na consciência de-si, é um entrelaçamento multilateral e polissêmico. Assim seus momentos devem, de uma parte, ser mantidos rigorosamente separados, e de outra parte, nessa diferença, devem ser tomados ao mesmo tempo como não-diferentes, ou seja, devem ser sempre tomados e reconhecidos em sua significação oposta.234

A dialética do Senhor e do Escravo tem início quando uma consciência-de-si tenta submeter a

outra sob o seu domínio, prendendo-a como objeto. Como já vimos, a consciência-de-si sente a

necessidade de ser reconhecida; para que isso seja possível, além de reconhecê-la como objeto, é

necessário reconhecê-la como sujeito: relação recíproca. “Mas o Outro é também uma consciência-

de-si; um indivíduo se confronta com outro indivíduo [...] figuras independentes, consciências

imersas no ser da vida”.235 Por serem consciências-de-si independentes, agem de forma

independente e desejam a sua sobrevivência; “[...] cada um tende, pois à morte do Outro [...] a

relação das duas consciências-de-si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e

uma a outra através de uma luta de vida ou morte”.236

6.4.1 A LUTA DE VIDA OU MORTE

A outra consciência-de-si que surge é de igual dependência que a primeira. Ambas as

consciências-de-si ainda estão imersas no ser da vida, não possuem a verdade em sua certeza, pois

cada uma está certa apenas de si e não da outra. Ainda estão apegadas à vida. Precisam desapegar-

se. Para que isso aconteça, usam do processo de reconhecimento para atingir o ser-para-si, ou seja, o

seu ser outro deve se apresentar como objeto independente. Pois não há possibilidade de luta, visto

que esse outro é ela mesma. Se isso não ocorrer, ficariam eternamente apegados ao desejo da vida,

indo contra a proposta da dialética hegeliana. Feito isso, comprovado o seu desapego de um ser-aí

determinado, a consciência-de-si adquire o desejo de morte da outra, pondo a sua vida, ou todo o

caminho já conquistado, que é precioso, em risco. Sendo assim, por serem de igual dependência, elas

se provam e provam à outra, através da luta.237

234 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 126. v. I.235 Ibidem, p. 128.236 Ibidem, p. 128.237 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 60.

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O motivo pelo qual a luta é traçada está na intenção da elevação de toda a sua certeza à

verdade. Cada uma deseja ser verdade para si e para a outra, visto que da outra não poderá se

desfazer jamais, para a conservação da verdadeira liberdade e para provar que, agora, é um ser-para-

si. Somente ao arriscar a vida, a consciência-de-si, ou o indivíduo, alcançará o reconhecimento e a

sua independência. (podemos citar, aqui, o exemplo de Napoleão). Porém, a morte do outro está

intrinsecamente ligada com o arriscar sua vida, pois, sua vida vale mais que a vida o outro.238 Sobre o

reconhecimento e a independência ou liberdade, afirma Hegel:

Devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; e se prova que a essência da consciência de-si não é o ser [...] O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente. Assim como arrisca sua vida, cada um deve igualmente tender à morte do outro; pois para ele o Outro não vale mais que ele próprio.239

Nessa dialética, por ser enigmática, não está às claras o verdadeiro sentido da morte. Hegel

afirma que o outro, que também é si, deve ser colocado em perigo de morte para que suprassuma

toda a sua alteridade, todo o seu ser outro e deixe de ser uma consciência perdida na pluralidade de

ser: indefinida, pobre, simples. Ao colocar o outro em perigo, a consciência-de-si, automaticamente,

e com consciência disso, coloca a si mesma em perigo, pois reconhece a necessidade de passar por

essa suprassunção, por essa negação absoluta. Além da elevação da certeza de que é toda verdade, a

consciência-de-si almeja a vida. A partir dessa experiência, a consciência-de-si se divide: tornam-se

dois momentos essenciais à unidade que ainda não aconteceu; uma consciência é o Senhor, outra, o

Escravo.240

6.4.2 A DOMINAÇÃO

Após a luta (o confronto) a consciência que permaneceu para si denomina-se Senhor, e a

consciência que ficou sendo para-o-outro, Escravo; porém, continuam sendo consciência-de-si. O

Senhor tornou-se Senhor, ou seja, alcançou o seu reconhecimento, a sua negação absoluta por causa

da outra consciência: o Escravo. O Escravo, por sua vez, com medo de perder a vida, não participa

desse gozo.

238 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 60.239 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 128-129. v. I.240 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 60.

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Mas, nesse processo dialético, o Escravo não se mantém estagnado, imóvel, mas parte para o

seu reconhecimento. Embora pareça que o Escravo esteja em desvantagem, não é verdade, pois nele

já há a experiência da servidão. Ora, se com a servidão, que desempenha, consegue manter o

Senhor, isso significa que o Escravo já contém alguns elementos para tornar-se para-si. Se o que o

Escravo considera-se como a obra do Senhor, então ele pode fazer a mesma obra para si. Sendo

assim, para que o processo de reconhecimento se realize, só lhe resta o reconhecimento do Senhor.

Mas há uma vantagem que o Escravo, se souber, pode bem aproveitá-la: o Senhor só chegou a se

tornar um (ser certeza-de-si) a partir do reconhecimento que o Escravo a ele concedeu. O Escravo

deve perceber que a consciência do seu Senhor é pertencente a ele, pois foi por meio dele que o

Senhor se reconheceu. Sendo assim, a verdade, que o Senhor tanto almejava, nada mais é que uma

verdade da consciência escrava.241 Contudo, essa dialética da servidão e da dominação vem mostrar

que o Senhor nada mais é que o servo do seu Escravo e o Escravo nada mais é que o senhor de seu

Senhor. Todas as desigualdades e desvantagens serão restabelecidas pelo processo do

reconhecimento.242

6.4.2.1 O SILOGISMO DA DOMINAÇÃO

Quando Hegel determina o processo de dominação como um silogismo, isso primeiramente

consiste no fato de o Senhor colocar o Escravo entre si e a natureza. É por meio do Escravo que o

Senhor se relaciona com a natureza. Sendo assim, o Escravo é o termo médio. A perfeita simetria,

quando cada um fazia em si o que o outro fazia nele, está quebrada. O Senhor colocou uma barreira

entre si e o Escravo: um trabalha e o outro participa do gozo, ou seja, consome o que o Escravo

produziu. Compreendamos melhor esse silogismo: existe o Senhor, existe o Escravo. Entre eles há a

natureza, ou a coisa. O Senhor somente consegue se relacionar com a coisa por meio do trabalho do

Escravo. Consome o que há na natureza, graças ao trabalho do escravo, que o transforma em algo

consumível. O Escravo é obrigado a se relacionar com a coisa visto que está preso a ela. É justamente

com essa coisa que o Escravo se relaciona e dela tira o sustento do Senhor e também o seu próprio

sustento (somente o necessário para não morrer), pois necessita viver para si e para o outro. Esse é

um silogismo que mostra que Escravo está inteiramente subordinado ao Senhor. O Escravo que só se

relaciona com a natureza por causa do Senhor; ainda não notou que ela é essencial para a sua

liberdade. O desejo que o Escravo – por causa do Senhor – possui, ainda é um desejo reprimido.243

241 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 61-62.242 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 187.243 Cf. SANTOS, José Henrique. Trabalho e riqueza na Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 90-91.

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A coisidade, ou natureza, pode ser dividida em duas partes: a natureza como bruta, ou

independente, e a natureza como bem de consumo, ou dependente. Uma, trabalha pelo Escravo e, a

outra é o resultado do trabalho do Escravo. O relacionamento do Senhor com a coisa (natureza) não

é completo. Relaciona-se de modo independente com a natureza como bem de consumo, já

transformada e pronta para ser consumida, e de forma dependente com a outra parte da coisa, a

natureza como bruta. Para se relacionar com essa, somente é possível via escravo. Esse é o

relacionamento do lado do Senhor.

O relacionamento do lado do Escravo se dá da seguinte forma: Como vimos há o Senhor, o

Escravo e a coisidade em geral, ou seja, a natureza. Da mesma forma, a natureza está entre o Senhor

e o Escravo. O Escravo se relaciona com a natureza bruta de forma independente. Porém, seu

relacionamento com a natureza como bem de consumo é dependente. Mesmo que a produção

possa ter sido ocasionada pelo Escravo, ele só terá parte, ou dela consumirá, se e quando o Senhor

permitir. Contudo, a coisa contém a independência para o Escravo, representa a sua verdade, o seu

reconhecimento; mas ele ainda não percebeu, não conseguiu alcançá-la.

Como a coisa é para o Senhor, até mesmo o negativo, ou seja, aquilo a que durante a luta,

não deu muita importância, o próprio Senhor possui um domínio sobre ela que, por sua vez, possui

um domínio sobre o Escravo. O Senhor é capaz de negar a coisa e pode, pois, além dela, possuir o

Escravo; já o Escravo não, pois depende dela e, se negá-la, acabará se destruindo. Da mesma forma,

o Senhor não depende da coisa, apenas goza dela; deixa a dependência ao Escravo. A coisa é a cadeia

do Escravo. Dessa forma, nesse silogismo, o Senhor mantém o pleno domínio sobre o outro: o

Escravo.244

6.4.3 A ESCRAVIDÃO: O MEDO E A FORMAÇÃO

O Escravo é mantido escravo pelos desejos do Senhor. O Escravo é fundamental na e para a

existência do Senhor; é por intermédio dele que conseguirá se relacionar com o ser da vida e com a

coisidade. A relação do Senhor com a coisa, seu objeto de desejo, é mediato, ou seja, depende do

Escravo. Há, porém, outra relação mediata: é a com o próprio Escravo, pois precisa dele para se

relacionar com a vida e consigo próprio. O Senhor chega a negar a coisa completamente, embora

usufrua dela, para afirmar completamente a si mesmo. Em outras palavras, o Senhor jamais

reconhecerá importante a coisa, bem como os serviços prestados pelo Escravo.245 Inicialmente, o

Escravo tem a verdade no Senhor e não em-si. Eis o motivo pelo qual ainda não é para-si. Como

244 Cf. SANTOS, José Henrique. Trabalho e riqueza na Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 92-93.245 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 188.

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vimos, o Escravo segue com uma vantagem: já experimentou o medo, a angústia; negou o para-si.

Resta-lhe, pelo trabalho, passo a passo, superar esse medo, essa angústia.246 “Essa consciência

experimentou a angústia, não a respeito desta ou daquela coisa, não durante este ou aquele

instante, mas experimentou a angustia a respeito da integralidade de sua essência, pois sentiu o

medo da morte, o senhor absoluto”.247 Porém, o Escravo não é propriamente servo do Senhor, mas

servo da vida. Ele é menos servo do Senhor do que da vida, pois, se entregou diante da morte,

optando pela servidão à liberdade. “[...] essa é sua cadeia, da qual não pôde abstrair no combate, e,

por isso, mostrou-se dependente, tendo sua independência na coisidade”.248

O que o Senhor não sabe, e que o Escravo já descobriu, é que somente ele – o Escravo –

possui o lado objetivo. Como já vimos nos exemplos citados por Hegel, somente quem tem os dois

lados, o subjetivo e o objetivo, poderá encontrar a plena realização, a plena felicidade, a plena razão.

Necessário é agora que o Escravo se realize para-si como toda verdade, já que todas as suas

determinações foram dissolvidas: fator essencial para a aquisição da liberdade quando Hegel diz que

a verdadeira sabedoria inicia-se com o temor no Senhor. Com isso a satisfação do Escravo estava

sempre crescendo, enquanto a do Senhor sempre desaparecendo. O Escravo possui o trabalho, o

Senhor nem sabe o que é isso.249

De início, todo o ser do Escravo está fora dele, fora de sua consciência. Não possui o ser-

para-si, mas possui o ser-da-vida, ou seja, o ser-outro. Já que é Escravo, entende que sua primeira

ação para o processo de formação está em contemplar o Senhor; conseqüentemente, humilha-se

reconhecendo-se Escravo. O Senhor faz-se mostrar ao Escravo como verdade, porém não uma

verdade autêntica, mas aquele que impõe ao Escravo. A verdadeira verdade e liberdade se darão

unicamente pelo medo, pelo serviço e pelo trabalho.250

[...] o momento do medo e do serviço em geral, e também momento do formar, e ambos ao mesmo tempo de maneira universal. Sem a disciplina do serviço e da obediência, o medo fica no formal, e não se estende sobre toda efetividade consciente do ser-aí. Sem o formar, permanece o medo como interior e mundo, e a consciência não vem-a-ser para ela mesma. Se a consciência se formar sem esse medo absoluto primordial, então será apenas um sentido próprio vazio; pois sua forma ou negatividade não é negatividade em si, e seu formar, portanto, não lhe pode dar a consciência de si como essência.251

246 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 62.247 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 132. v. I.248 Ibidem, p. 130.249 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a fenomenologia do espírito. p. 62.250 Cf. HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 189-190.251 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 133. v. I.

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6.4.4 O TRABALHO

Toda consciência-de-si é movida pelo desejo. O que difere uma consciência-de-si da outra é

que uma é compulsiva (essa é o Senhor) cujo desejo é o poder; a outra é repulsiva, torna-se Escravo,

pois o desejo que a mantém é o de sobrevivência. Foi justamente pelo trabalho que Escravo

conseguiu refrear o seu desejo e se formar para atingir a plena consciência-de-si e para-si.252

Quem trabalha somente é o Escravo, e muito. Trabalha mais que o necessário para o

consumo do Senhor. Trabalha tanto que cria excedentes, riquezas. O Senhor desfruta dos resultados

desse trabalho, pois possui o desejo de consumo. Esse ponto de excessivo trabalho, já representa, de

um lado, a transformação de um, e de outro, a dependência. O Escravo começa a se tornar

independente, e o Senhor não percebe que está cada vez mais dependente. Os valores começam a se

inverter. O Senhor é servo do seu Escravo, e o Escravo torna-se senhor do seu Senhor. Contudo, o

Escravo não pode se tornar Senhor chegando à negação absoluta.253

Pelo trabalho, experimentando o medo e a morte, ou como afirma Hegel Senhor absoluto, o

Escravo se suprime, torna-se ser-para-si e realiza tudo o que o Senhor realizava nele. Agora o que o

Escravo faz é, também, o fazer do Senhor. Porém, somente o Escravo, por meio do Senhor, que é

uma essência, tornou-se verdadeiramente para-si, pois, pelo trabalho, adquiriu a sua essência; e

essência verdadeira. O Escravo realizou a experiência da negatividade absoluta e, a partir dela,

experimentou a vida em toda a sua totalidade, o que não aconteceu com o Senhor. É também pelo

trabalho que o Escravo elimina a vida submissa chegando a si mesmo. Outro ponto fundamental, que

só o Escravo realiza, é o da relação com o objeto, ou com a coisa. Somente ele possui uma relação

com ele, independente. Essa relação se torna a singularidade da consciência ou o puro ser-para-si. A

consciência-de-si, que temeu diante da morte, que aceitou a submissão, que serviu, que trabalhou,

chega à intuição de si mesma como uma consciência-de-si independente; agora ela é em-si, de-si e

para-si, realmente.254 Somente assim, superando sua condição de submisso, é que a consciência

poderá adquirir a verdadeira liberdade e dar continuidade ao itinerário fenomenológico, visando o

absoluto. E, assim explica Hegel:

Se não suportou o medo absoluto, mas somente alguma angústia, a essência negativa ficou sendo para ela algo exterior: sua substância não foi integralmente contaminada por ela. Enquanto todos os conteúdos de sua consciência natural não forem abalados, essa consciência pertence ainda,

252 Cf. MENESES, Paulo. Para ler a Fenomenologia do espírito. p. 63.253 Cf. SANTOS, José Henrique. Trabalho e riqueza na Fenomenologia do espírito de Hegel. p. 93.254 Ibidem, p. 94-95.

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em si ao ser determinado. O sentido próprio é obstinação [...], uma liberdade que ainda permanece no interior da escravidão. [...] não pode ser um formar universal, conceito absoluto; mas apenas uma habilidade que domina uma certa coisa, mas não domina a potência universal e a essência objetiva em sua totalidade.255

CONCLUSÃO

Quando se ouve falar em Senhor e Escravo, logo nos remetemos a um pensamento referente

ao ser humano e suas dominações e submissões. Porém, essa não é a intenção deste trabalho. Por

ser essencialmente filosófico, a servidão se deu na consciência, e a partir dela, segundo a filosofia de

255 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. p. 133-134. v. I. (grifos nosso)

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Hegel, buscamos entender o seu processo de liberdade. Com certeza, assim como Hegel, todos os

meios necessários para a execução de uma verdadeira filosofia e, conseqüentemente, a possibilidade

da aquisição de uma verdadeira liberdade, foram oferecidos neste trabalho. Caberá ao leitor a

atualização desses conceitos em sua história, assim como fez Hegel, quando indicou ao indivíduo que

assim fizesse, enquanto participante de um Estado, de uma nação.

O objetivo deste trabalho foi, a partir da dialética do Senhor e do Escravo, compreender o

conceito de liberdade da consciência e trabalhar a hipótese de que a liberdade da consciência,

dentro do processo Senhor e Escravo, ocorresse somente através do medo e do trabalho de uma

delas, que, temendo morrer, se sujeitaria à escravidão. Esta hipótese foi levantada, trabalhada e

atingida.

Concluí que, desde o início deste trabalho, com a apresentação do contexto histórico e

filosófico, a hipótese começou a ser respondida. Isso só ocorreu graças ao sistema dialético

apresentado por Hegel. Como e quando isso aconteceu? Através dos fatos observados por Hegel

ocorridos na história. O primeiro abarca uma análise da vida dos gregos (tese) que misturavam seus

interesses com os do Estado, não contendo a verdadeira racionalidade e por certo uma incompleta

forma de liberdade. O segundo (antítese) foi a Reforma Protestante assistida por Hegel a qual

representou, em seu sistema, a conquista da liberdade do povo germânico que vivia numa

obediência cega e abstrata, (não concreta). E, por fim, o terceiro momento (síntese) relata a

importante Revolução Francesa através de sua ruptura com o antigo regime feudal. Com ela, Hegel

afirmou que o processo da idéia de liberdade havia alcançado sua concretização. A Revolução

simbolizou a vitória de todos os povos contra qualquer forma de poder autoritário a favor da

liberdade.

Contudo, a hipótese continua a ser respondida em todo o corpo deste trabalho; basta ter um

olhar dialético sobre toda a filosofia de Hegel. Isso percebi com o desenrolar do segundo capítulo e a

compreensão do sistema hegeliano, representado pela Idéia, Natureza e Espírito. Esse relatar a

dinamicidade do movimento dialético em direção ao absoluto, porém, com uma especial importância

do segundo momento (antítese) – que encontramos presente em toda a dialética do Senhor e o

Escravo. Esse momento é o momento da alienação, da exteriorização, ou seja, a Idéia que se expõe e

se submete ao espaço e ao tempo.

Encontrei mais respostas à hipótese, quando as etapas do itinerário fenomenológico foram

abordadas. Elas representaram as etapas do processo formativo da consciência e, em todos os

momentos, estava ali presente o momento negativo ou o momento da submissão e do contato com

a natureza. Essas etapas foram elaboradas a partir de um movimento dialético, e isso ficou claro no

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quinto capítulo, que afirmou a hipótese de que a antítese nada mais é que a negação da afirmação

que, posteriormente, será negada, porém, não esquecida. Assim se fez o Escravo nessa relação de ser

negado por seu Senhor, porém, com a impossibilidade de ser esquecido, eliminado, pois, fez-se

necessário ao reconhecimento próprio. Em todos os momentos deste trabalho, a dialética hegeliana,

ilustrada com o Senhor e com o Escravo, fez-se necessária para a compreensão e para o andamento

do processo que levou a consciência, na liberdade, à compreensão do absoluto. Esses foram os

resultados obtidos e sua grande contribuição ao tema aqui proposto, ao objetivo buscado e à

hipótese levantada.

Atingi o objetivo quando adentrei profundamente a metáfora do Senhor e do Escravo e

percebi que a verdadeira liberdade, que levaria à verdadeira reflexão, inicialmente realizada pela

consciência, só foi atingida por causa do medo, que resultou o desejo de vida, por causa do trabalho,

que resultou o desejo do serviço, que foram assumidos. E esse assumir proporcionou o momento do

formar de maneira universal e concreta. A partir disto, da disciplina e da obediência, o medo passou

a dar lugar à efetividade, ao ser-aí.

A liberdade sempre esteve no interior dessa escravidão, e foi essa resposta que tive a

intenção de buscar. A liberdade sempre esteve no interior da antítese, no interior da natureza; coube

à consciência encontrá-la, trabalhá-la e dinamizá-la a partir do processo dialético, para que a

consciência, com posse da liberdade, continuasse o seu trajeto a caminho do absoluto. O presente

trabalho encerrou-se quando a hipótese foi respondida.

Não coube a mim fazer uma ligação da consciência, no seu processo dialético Senhor e

Escravo, com a presente atualidade, apenas demonstrar os meios eficazes, que, segundo, Hegel, é o

caminho necessário para que o indivíduo obtenha a verdadeira razão, a verdadeira liberdade. Que o

indivíduo seja capaz de, em sua história, elencar e dividir, os momentos do devir presentes enquanto

tese, antítese e síntese. A dialética hegeliana, como muitos pensam, não possui um fim, e Hegel não

colocou em xeque o seu sistema, mas, ao contrário, é ela (dialética) a grande responsável por

dinamizar a história e, a partir daí, revelar a manifestação do absoluto. Durante toda a elaboração

deste trabalho, vivi o ardor de minha história!

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