roberto simonsen e wladimir woytinsky no período entreguerras

32

Click here to load reader

Upload: phungdung

Post on 07-Jan-2017

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

ROBERTO SIMONSEN E WLADIMIR WOYTINSKY NO PERÍODO ENTREGUERRAS:

UM AMBIENTE DE QUESTIONAMENTO À ORTODOXIA

Luiz Felipe Bruzzi Curi1

Alexandre Macchione Saes2

ResumoO artigo procura contribuir para o aprofundamento da compreensão do pensamento econômico de Roberto Simonsen, articulando-o com o quadro de questionamento da ortodoxia econômica do período entreguerras. Para isso, são analisados textos do autor e de um contemporâneo seu, o economista russo, atuante na Alemanha da Grande Depressão, Wladimir Woytinsky. Numa confluência de história do pensamento e história econômica, enfocam-se dois momentos específicos da atuação desses pensadores, que permitem vê-los como questionadores da ortodoxia vigente. No caso de Simonsen, abordam-se sua manifestação diante da visita ao Brasil da missão financeira inglesa de 1924 (missão Montagu) e a conferência que proferiu em 1931. Para Woytinsky, o momento escolhido é a elaboração do plano de combate à crise de 1930-32, no âmbito do movimento sindical alemão. Mostra-se também que a conexão entre esses dois autores se dá por meio da obra do economista romeno Mihail Manoilesco, traduzida no Brasil em 1931. Por fim, destacam-se as abordagens dos dois autores sobre a questão da reconstrução europeia no pós-guerra, de forma a realçar as linhas de sintonia entre suas elaborações. Disso resulta a percepção de que Roberto Simonsen é um pensador que, ao longo de sua obra, vai se articulando a esse movimento de questionamento da ortodoxia econômica, no período entreguerras.Palavras-chave: Roberto Simonsen, Wladimir Woytinsky, período entreguerras, Mihail Manoilesco, industrialismo.

AbstractThis paper is intended to contribute to a more thorough comprehension of Roberto Simonsen’s economic thought, articulating it with the general context of questioning economic orthodoxy in the interwar period. In order to achieve this aim, we analyze texts by Simonsen and by a contemporary author, the Russian economist Wladimir Woytinsky, who was active in Germany, during the Great Depression. In a confluence of history of economic thought and economic history, two specific moments of these authors’ intellectual production are focused, which show them as opponents to the predominant orthodoxy. In Simonsen’s case, we deal with his reaction to the visit of the English financial mission which came to Brazil in 1924 (Montagu misson) ans with a conference held at a College in São Paulo, in 1931. For Woytinsky the moment on which we focus is the drafting of a plan to fight the 1930-32 crisis, conceived within the German labour movement. It is also demonstrated that the connection between Simonsen and Woytinsky is to be found in the work of the Rumanian economist Mihail Manoilesco, translated to Portuguese and published in Brazil in 1931. At the end, we outline the approaches of the two authors regarding the question of European reconstruction, after World War I, so as to highlight that their approaches are in tune with each other. As a result, we have the understanding that Roberto Simonsen is a thinker who is articulated to the international intellectual environment that questions economic orthodoxy, in the interwar period. Keywords: Roberto Simonsen, Wladimir Woytinsky, interwar period, Mihail Manoilesco, industrialism.

Classificação JEL: B29, B31

1Mestrando em História Econômica pela FFLCH/USP. 2Professor do Departamento de Economia da FEA/USP.

1

Page 2: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

1. Introdução/justificativas

Roberto Simonsen é reconhecidamente um autor da maior importância para as origens do desenvolvimentismo no Brasil, entendendo-se desenvolvimentismo como uma ideologia de transformação social, baseada na industrialização integral e na convicção de que seria impossível atingir essa industrialização somente pelas forças do livre mercado.3 Nesse sentido, este trabalho pretende contribuir para a compreensão do pensamento econômico de Roberto Simonsen, inserindo-o num movimento de ruptura com a ortodoxia econômica, que se desenrola no período entreguerras. O termo ortodoxia econômica tem aqui um sentido amplo, mas historicamente determinado. Trata-se do receituário de política econômica predominante, no mundo ocidental, de meados do século XIX até a consolidação da Revolução Keynesiana, no pós-guerra. Tal receituário é baseado na defesa da moeda, na austeridade fiscal e na crença no livre-mercado. Ressalte-se que a existência de um receituário predominante não implica que ele seja único: neste período, as ideias marxistas, por exemplo, têm ampla difusão internacional. Mesmo o marxismo, todavia, por vezes será refém de sua própria ortodoxia: como veremos, o apego à ideia de que a crise representa a derrocada final do sistema capitalista impede que sejam sugeridas propostas inovadoras de política econômica, no sentido do estímulo à demanda e do fomento ao crescimento. A ortodoxia, em sentido amplo, refere-se a esse quadro em que prevalecem, por diversas razões, concepções ligadas à defesa da sound currency e do equilíbrio orçamentário.

O estudo desse período permite captar duas dimensões importantes da produção simonseniana. A primeira delas é a sugestão de propostas inovadoras – fomento à indústria, diversificação produtiva – inserida ainda na lógica da economia ortodoxa do início da década de 1920. Essa dimensão está presente na carta que Simonsen envia à missão Montagu em 1924: ainda que tenha o objetivo explícito de mostrar aos credores que o Brasil é um país capaz de honrar seus compromissos internacionais, Simonsen deixa claro que essa capacidade não pode ser mantida se o país for apenas um exportador de café. Essa convivência de proposições inovadoras com uma lógica ortodoxa é característica dessa fase da produção simonseniana, em que o projeto industrialista ainda não estava solidificado.

A segunda dimensão é a articulação da obra de Simonsen com discussões internacionais e com outros autores que estavam inseridos no mesmo ambiente de produção de ideias econômicas. É com objetivo de captar esse tipo de sintonia que se faz uma incursão por alguns escritos de Wladimir Woytinsky, economista russo citado por Simonsen em texto de 1931. Woytinsky atua, neste momento, na Alemanha de Weimar e elabora, no âmbito do movimento sindical, um plano de combate à crise econômica que não chega a ser implementado. Woytinsky foi um autor muito citado por Mihail Manoilesco, economista romeno cuja obra teve reconhecido impacto no âmbito do pensamento industrialista brasileiro, fornecendo argumentos para o questionamento à ortodoxia do livre comércio. Procura-se mostrar que Simonsen cita Woytinsky a partir de sua leitura do livro de Manoilesco, cuja tradução fora patrocinada pelo CIESP, em 1931. Mostra-se que as concepções de Simonsen e Woytinsky sobre a reconstrução europeia e sobre as formas de estímulo à economia são convergentes, reforçando a ideia de um ambiente de história das ideias econômicas, no qual esses autores atuavam, marcado pela ideia de questionamento de certas concepções vigentes.

O artigo segue uma organização temática, mais do que cronológica. Após esta Introdução, são apresentados aspectos metodológicos envolvidos na elaboração deste trabalho. A seção 3 refere-se ao contexto histórico de ruptura com a ortodoxia no período entreguerras, com destaque para o esquema explicativo de Peter Gourevitch e os relatórios da Liga das Nações. Na seção 4, o foco é a atuação de Wladimir Woytinsky junto ao movimento sindical alemão e sua tentativa frustrada de que a social-democracia aceitasse um plano de estímulo à demanda, como forma de contrarrestar a crise do início dos anos 1930. A seção 5 recua no tempo para mostrar como, atuando num contexto periférico, Roberto Simonsen reage à visita da missão Montagu ao Brasil, em 1924. Na seção 6, faz-se a mediação entre Simonsen e Woytinsky, por meio de Manoilesco. Por fim, na seção 7, faz-se uma articulação das abordagens desses dois autores sobre o problema europeu no pós-Primeira Guerra. A seção 8 é dedicada às considerações finais.

2. Aspectos metodológicosA literatura distingue pelo menos duas linhagens básicas de trabalhos, no campo da história do pensamento

econômico. A distinção é entre uma pesquisa mais voltada para a história da análise econômica, no sentido schumpeteriano do termo, e uma investigação mais ampla, voltada para o contexto histórico-social em que se dá a

3Esse sentido de desenvolvimentismo é delimitado por Bielschowsky (2000).2

Page 3: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

formulação de ideias. Blaug4 propõe a denominação “absolutista” (ou reconstrução racional) para a primeira abordagem e “relativista” (ou reconstrução histórica) para a segunda, chamando a atenção para as virtudes e deficiências de cada uma delas. Na abordagem absolutista, o procedimento é extrair o núcleo téorico relevante da obra de cada autor, percebendo a lógica interna de seus argumentos e suas articulações com teorias anteriores e posteriores. Na linhagem relativista, isto é, numa abordagem mais ligada à história das ideias, o importante é reconstituir o contexto histórico da formulação do pensamento econômico. Os dois procedimentos – extração do núcleo teórico e reconstituição histórica – não são mutuamente excludentes: pelo contrário, são necessários ao historiador do pensamento econômico. A questão é a ênfase a se adotar. Neste trabalho, a ênfase é claramente a reconstituição histórica como forma de se aproximar do pensamento econômico.

O motivo dessa escolha está relacionado ao tipo de produção em estudo e às fontes utilizadas na pesquisa. Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky, mais do que acadêmicos, foram autores que atuaram politicamente: formularam propostas de política econômica e elaboraram explicações para os problemas econômicos com os quais se defrontavam e que estavam na ordem do dia. Nesse sentido, é necessária uma abordagem de reconstituição histórica. Não se consegue entender, por exemplo, a atuação de Wladimir Woytinsky na Alemanha da Grande Depressão somente analisando a validade teórica de sua ideia de estímulo à demanda por meio de obras públicas. Tampouco se compreende a defesa da estabilidade cambial, aliada a medidas de fomento à importação de máquinas, na carta de Simonsen em 1924, sem levar em conta o contexto de endividamento externo e de diversificação industrial, vivido pelo Brasil neste momento da década de 1920.

Os textos utilizados neste trabalho, publicados no período em questão, são: a carta de Roberto Simonsen à missão Montagu, de 1924; a conferência do mesmo autor, proferida no Mackenzie College de São Paulo, em 1931; o livro de Wladimir Woytinsky, Estados Unidos da Europa, publicado em francês em 1927. Também se utiliza a autobiografia deste último autor, publicada postumamente em 1961. O uso das memórias de Woytinsky requer cautela, por ser uma fonte subjetiva e representar o ponto de vista do autor sobre os debates de ideias que ele próprio travou. Ainda assim, trata-se de fonte muito rica para a reconstrução de um debate econômico em que a tentativa de romper com a ortodoxia aparece de forma exemplar. Como se vê, não se trata de compêndios teóricos, mas de textos ligados a eventos históricos sobre os quais os autores eram chamados a se posicionar. Por tudo isso, justifica-se a escolha por uma abordagem mais ligada à reconstituição histórica.

Nos dois momentos da obra de Simonsen que se estudam neste trabalho – carta à missão Montagu e conferência de 1931 – há uma dimensão de difusão internacional das ideias econômicas. O estudo desse processo é, no dizer de José Luís Cardoso, “um poderoso instrumento que visa tanto melhor compreensão do processso de formação da ciência econômica quanto uma tomada de consciência das suas implicações sobre o funcionamento e a mudança da realidade econômica e social num contexto nacional determinado”5. No caso da missão financeira inglesa, o estudo da reação de Simonsen mostra como o autor, embora aceite a validade da política econômica em vigor, que visava à contratação de um empréstimo de consolidação em Londres, apresenta certas considerações ligadas ao contexto nacional brasileiro, não contempladas no receituário dos banqueiros britânicos. No que se refere à convergência com certos argumentos defendidos por Woytinsky, demonstra-se que Simonsen está inserido num ambiente de discussão econômica que não se restringe ao Brasil. Esse contraponto com ideias, propostas e autores provenientes de outras realidades nacionais permite perceber elementos da gestação de um pensamento econômico brasileiro, condicionada pelas conjunturas econômicas, pelos interesses dos formuladores de ideias e de políticas, em suma, pelo contexto histórico em questão. Dessa forma, estudar a difusão internacional das ideias é contribuir para a construção de uma história nacional do pensamento econômico, no sentido dado por Cardoso.

Por fim, vale fazer uma observação sobre a estruturação do artigo. Primeiro, apresentam-se elementos para a compreensão desse período histórico de ruptura com a ortodoxia econômica: o período entreguerras. Depois, passa-se à reconstituição da atuação de Woytinsky em 1930-32 na Alemanha e recua-se no tempo para apresentar Roberto Simonsen e sua manifestação diante da missão Montagu. O objetivo desse recuo é mostrar a atuação de dois autores, em seus respectivos contextos, num ambiente de questionamento à ortodoxia com a qual se confrontavam. Os contextos são distintos, é claro. Woytinsky atua na Alemanha, a essa altura uma potência industrial, a braços com uma crise de proporções inéditas. Woytinsky propõe um plano de estímulo à demanda no âmbito do movimento

4Blaug (1962), ver especialmente a Introdução. Na quinta edição de seu livro clássico, Blaug “atualiza” a distinção entre absolutismo e relativismo para reconstrução racional e reconstrução histórica. Ver Blaug (5Ver Cardoso (2009).

3

Page 4: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

sindical, orientado por concepções marxistas. Simonsen se vê chamado a mostrar a uma missão financeira inglesa que a solidez financeira do Brasil não pode depender apenas do café e da estabilização cambial: deve passar pela diversificação produtiva e pela substituição de importações. Ambos estão, desse modo, questionando as concepções predominantes, cada um condicionado por seu ambiente histórico. Por fim, escolhe-se um eixo temático – a reconstrução alemã/europeia – sobre o qual os dois autores se debruçam (Simonsen na conferência de 1931 e Woytinsky no livro de 1927) para se captar a sintonia entre esses dois pensadores, mostrando que fazem parte do mesmo ambiente de discussão econômica. Essa sintonia é reforçada a partir da obra de Manoilesco, que cita Woytinsky e é lido por Simonsen, por ocasião da tradução patrocinada pelo CIESP.

3. O questionamento da ortodoxia econômica nos anos entreguerrasNo período que, grosso modo, vai da Primeira à Segunda Guerra mundiais houve um movimento, que se refletiu

em diversos países, de questionamento da ortodoxia econômica vigente. O receituário de política econômica à disposição dos governos até os anos iniciais da década de 1930 pode ser descrito como ortodoxo: de um lado, as políticas clássicas de austeridade fiscal e defesa do câmbio; de outro, as ideias marxistas de socialização da economia. Nesse momento crítico entre a Primeira Grande Guerra e a Grande Depressão, no entanto, essas ortodoxias são questionadas, abrindo-se a possibilidade para a formulação de ideias e de políticas econômicas inovadoras. Esse processo de questionamento da ortodoxia econômica se dá de forma específica em cada país, condicionado por fatores econômicos e políticos particulares. Aparecem, nesse contexto, autores que, de diversos pontos de vista, questionam esse modelo, herdado do século XIX, de pensar a economia e agir sobre ela.

O pano de fundo geral para esse movimento é o que Hobsbawm chamou de “era da catástrofe”, isto é, 31 anos de um processo entrecortado de guerras e revoluções que vai da eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, à rendição incondicional do Japão em 1945.6 O envolvimento em conflitos bélicos pressupõe que nações se transformem em economias de guerra e, dessa forma, surge o problema fiscal fundamental de como deveria ser financiado o conflito. Nesse contexto, os Tesouros Nacionais e ministérios de Finanças eram vistos como comandantes das economias de guerra: “se se tinha de travar a guerra em escala moderna, não só seus custos precisavam ser levados em conta, mas sua produção – e no fim toda a economia – precisava ser administrada e planejada.”7

Nos anos entreguerras, o cenário era propício à perda de confiança na ortodoxia do livre mercado, mesmo porque a Grande Depressão, que acometeu todo o mundo ocidental, foi uma crise sem precedentes. O Estado que emergiu na Rússia após a Revolução de 1917, a União Soviética, foi comparativamente menos atingido pela crise do que os países capitalistas, o que contribuiu para a desconfiança do mundo ocidental com relação ao livre-mercado, sendo evidenciadas as possibilidades que a planificação econômica representava. Nesse sentido, por mais que a possibilidade de efetivação do receituário marxista envolvesse rupturas complexas, ele deixara de ser apenas especulação teórica e constituía uma possibilidade, que se transformou em uma espécie de “ameaça” aos países capitalistas industrializados.

A questão da ruptura com a ortodoxia em alguns países industrializados foi analisada por Peter Gourevitch, por meio de um esquema interpretativo que, embora simplificador, é elucidativo para o estudo desse contexto de formulação de ideias econômicas. Com o colapso dos mercados acionários de 1929 e a crise subsequente, os países se viram diante da tarefa de restaurar a ordem capitalista vigente antes do desastre. No entanto, as alternativas de política econômica que se colocavam eram justamente aquelas as já referidas: de um lado a ortodoxia livre-cambista e deflacionista e, de outro, os marxistas. O argumento de Gourevitch é que estas alternativas eram pouco exeqüíveis, do ponto de vista político: uma classe tomaria para si todas as vantagens, em detrimento da outra. Na concepção deflacionista, o estímulo à economia deveria vir do lado da oferta, por meio da redução dos custos de produção. Altos salários desencorajariam o investimento e a produção: a solução para a crise passaria, portanto, por uma transferência maciça de renda dos trabalhadores para a classe capitalista, deteriorando as condições de vida, já pioradas pela crise, da classe trabalhadora. Por outro lado, ao adotar-se a solução coletivista, os capitalistas seriam expropriados dos meios de produção. Em suma, eram alternativas muito pouco factíveis, do ponto de vista político e social, na maioria dos países ocidentais.8

6Hobsbawm (1995).7Idem, p. 53.8Gourevitch (1986), pp. 127-131.

4

Page 5: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

Duas alternativas colocavam-se, então, para o encaminhamento da crise. A primeira, chamada por Gourevitch de “neo-ortodoxia” misturava elementos de protecionismo com um tipo de mercantilismo. Baseava-se na desvalorização cambial, em tarifas e na regulação do mercado. A segunda alternativa consistia no estímulo à demanda, isto é, faziam-se déficits públicos para gastar com obras e transferências de renda. Esta segunda alternativa representava uma ruptura mais substancial com as ortodoxias vigentes. A Inglaterra teria seguido a primeira alternativa, inovando pouco em termos de política econômica. Já a Alemanha nazista seria o país que mais fielmente perseguiu políticas de deliberado estímulo à demanda. A realização dessas duas linhagens de política econômica foi muito mais complexa do que o esquema deixa transparecer, como reconhece o próprio autor. A complexidade reside nas conexões entre economia, política e sociedade. O tipo de política adotado por cada país dependerá do acordo possível entre capitalistas, trabalhadores e produtores rurais e em nenhum dos casos fez-se uma escolha por apenas uma dessas duas alternativas “ideais” mencionadas por Gourevitch. O que houve foram combinações dessas alternativas.

O resultado desse processo de questionamento da ortodoxia será o consenso, que se estabelece nos anos 1940 e dura até a crise dos 1970-80, em torno do Estado de bem-estar. Trata-se de um acordo entre capital e trabalho. O capital mantém a propriedade privada dos meios de produção como instituto inquestionável, ao passo que os trabalhadores recebem a garantia de salários razoáveis e de seguridade social. É nesse arranjo sócio-econômico, gestado nesse movimento de questionamento das concepções econômicas ortodoxas herdadas do século XIX, que se baseará a chamada “era de ouro” do capitalismo.9 Do ponto de vista das ideias econômicas, não é demais lembrar que esse consenso a que nos referimos está muito relacionado com a adoção das propostas teóricas keynesianas, mas seria algo anacrônico referir-se ao keynesianismo como política econômica colocada em prática nos anos entreguerras, devido ao simples fato de que a teoria de Keynes estava, neste momento, em gestação. Não há dúvida, toadavia, que esse contexto de ruptura com as políticas econômicas ortodoxas no entreguerras tem influência decisiva sobre o pensamento do próprio Keynes.10

Esse processo de ruptura da ortodoxia econômica também esteve associado, no plano internacional, à transferência de hegemonia da Grã-Bretanha para os Estados Unidos.11 Essa situação pode ser percebida quando se leva em conta a política monetária no período entreguerras, ainda em momento anterior à crise de 1929. As discussões monetárias desse período se davam muito em torno da questão da adesão ou não ao padrão-ouro, isto é, ao câmbio fixo. Barry Eichengreen argumenta que o padrão-ouro clássico somente teria funcionado, para os países industrializados, da década de 1870 até a Primeira Guerra, isto é, num período em que o sistema internacional estava claramente organizado em torno da hegemonia britânica. A partir do momento em que esse sistema se abala, com o conflito de 1914-18, não há mais a solidariedade internacional que garantiria a estabilidade do esquema de câmbio fixo. Com a eclosão da Primeira Guerra e a imposição de controles às remessas de ouro, o sistema é rompido12. Existe uma tentativa de retorno ao padrão-ouro, que se restabelece de forma pouco estável entre 1926 e 1931, mas o advento da Grande Depressão desorganiza o sistema novamente. O primeiro país a desvalorizar sua moeda, pós-crise de 1929, é a Áustria, em 1931, seguida pela Alemanha e pela Grã-Bretanha.13

A situação de recessão dos anos 1930 leva os países atingidos pela crise a utilizarem do expediente da desvalorização cambial para estimular suas economias por meio de exportações mais competitivas do que as dos países vizinhos: os países praticam, nesse período da década de 1930, aquilo que alguns autores chamam de desvalorização “empobreça-o-próximo” [beggar-thy-neighbour devaluation].14 Nesse sentido, percebe-se que a desvalorização cambial e o abandono do padrão-ouro no período entreguerras têm um caráter de ruptura, no campo da política econômica, com certa concepção de economia que vigorara durante o século XIX, isto é, durante o período de hegemonia britânica. “Mesmo antes do desmantelamento do império, contudo, o colapso do padrão ouro

9Galbraith (1994).10Davidson (2011), pp. 27-41.11A questão do declínio da hegemonia britânica é objeto de extensa literatura, que não será abordada aqui. Convém mencionar apenas alguns marcos que balizam aquilo que chamamos de queda da hegemonia britânica. Hobsbawm (1995, pp. 101-102) argumenta que, já depois da Primeira Guerra, os Estados Unidos já eram quase tão internacionalmente dominantes quanto se tornariam depois da Segunda Guerra, por dois motivos básicos: já respondiam por em torno de um terço da produção industrial mundial e eram os credores do mundo. Numa perspectiva de longo prazo, Arrighi (1996), situa a hegemonia britânica como em declínio a partir da Grande Depressão da década de 1870, tendo sua crise terminal justamente em 1931. 12Eichengreen (2000, pp. 76-77).13Idem, pp. 114-122.14Idem, p. 127.

5

Page 6: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

no que se refere à libra esterlina, em 1931, marcou a crise terminal da dominação britânica sobre o capital do mundo.”15

Outro argumento para a desestruturação do padrão-ouro, defendido por Eichengreen e convergente com a ideia de Gourevitch a respeito do “acordo” entre capital e trabalho, é a questão das prioridades a serem assumidas pelo Estado. Já nas décadas de 1920-30, os trabalhadores (movimentos operários, partidos políticos trabalhistas, etc.) já têm algum peso político nas sociedades desenvolvidas, de modo que os Estados nacionais não estão dispostos a defender a moeda a qualquer preço: o custo político e social de medidas deflacionárias cujo objetivo único é a estabilidade cambial é muito mais alto, neste momento, do que o fora no século XIX. A expansão econômica passa a figurar, também, entre os objetivos a serem perseguidos pelas autoridades.16

Vale lembrar, todavia, que essas rupturas com a ortodoxia, embora tenham de fato ocorrido do ponto de vista das políticas econômicas adotadas, convivem com um discurso de austeridade e de estabilidade monetária. Essa ambivalência se reflete nos debates que se travaram no âmbito da Liga das Nações.17 Patricia Clavin identifica essa convivência de uma realidade que exigia medidas mais ousadas com um discurso ortodoxo nos relatórios da Gold Delegation, formada em 1928 na Liga, e que deveria debruçar-se sobre a questão da escassez nas reservas mundiais de ouro e sobre o impacto negativo que isso teria sobre os preços mundiais18. Vale lembrar que este momento está inserido no curto período de vigência do padrão-ouro no entreguerras (1926-31). Interessa aqui constatar, quanto aos relatórios da Gold Delegation, que o Segundo Relatório Preliminar, publicado em janeiro de 1931 e escrito em meio ao pânico da crise que se iniciara em 1929, não continha menção alguma à crise econômica: “para o Segundo Relatório Preliminar, a Grande Depressão não existia”19.

Já no Relatório Final (1932), embora a Gold Delegation afirme que seu objetivo não é estudar a depressão corrente, apresenta um diagnóstico ortodoxo da crise. Baseado em teorias de equilíbrio de preços, o Relatório argumentava que a Depressão teria sido causada por fatores exógenos, tais como a inflação durante e após a Primeira Guerra, a gastança governamental e as rigidezes de preço. Todavia, Paricia Clavin identifica posições divergentes, colocadas em notas ao Relatório Final. A primeira nota é de Albert Janssen, Robert Mant e Henry Strakosch; a segunda é de Gustav Cassel. A argumentação presente nessas notas – ou no “relatório da minoria”, como ficou conhecido – era que fatores monetários, como a má distribuição das reservas mundiais de ouro, teriam, sim, contribuído para a crise. A conclusão era que uma reforma monetária, juntamente com um programa de expansão creditícia, seriam o remédio adequado para a depressão.20 Este é um exemplo claro de que, embora houvesse um movimento de formulação de novas concepções econômicas, na esteira da transferência de hegemonia internacional e da crise econômica, estas ideias e propostas de política econômica não eram predominantes na cena internacional.

O reflexo dessa conjuntura de ruptura ambivalente com a ortodoxia econômica se manifesta não só no centro do capitalismo mundial, mas também em contextos periféricos, como a América Latina. Para os países periféricos, onde o estabelecimento do padrão-ouro sempre foi problemático devido à vulnerabilidade externa e às diferenças estruturais com relação ao centro do capitalismo, a manutenção da ortodoxia deflacionista frente a um cenário de severa restrição externa, como foi a crise dos anos 1930, era quase impossível. A periferia, exportadora de gêneros primários, é duplamente afetada em contextos de guerra e de crise econômica: retraem-se as exportações por causa do arrefecimento da demanda no centro e reduzem-se as entradas de divisas via conta de capital.21

Para o caso brasileiro, essa articulação, específica do contexto periférico, entre ruptura com uma paridade fixa (depreciação do câmbio) e preservação do nível interno de renda, por meio de políticas de estímulo à demanda, foi feita por Furtado em seu trabalho clássico.22 Em última instância, essas rupturas no centro capitalista mundial se refletem no Brasil, em termos da argumentação furtadiana e cepalina, na reconfiguração da dependência externa brasileira, já que o Brasil muda seu tipo de inserção na divisão internacional do trabalho: o modelo primário-exportador dá lugar à industrialização por substituição de importações. Sem entrar nos pormenores dessa discussão, vale frisar aqui a ideia de que essa ruptura com a ortodoxia econômica, motivada por diversos fatores associados – 15Arrighi, (1996), p. 179.16Eichengreen (2000), pp. 129-130. 17A Liga das Nações, órgão de cooperação internacional criado após a Primeira Guerra, existiu, formalmente, de 1919 a 1946.18Clavin (2003, p. 224)19Idem, p. 225.20Idem, pp. 225-226.21Eichengreen (2000), p. 80.22Furtado ([1959] 2007).

6

Page 7: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

entre os quais a Primeira Guerra, o declínio do sistema britânico de organização econômica e a crise dos anos 1930 – tem consequências específicas sobre a periferia. É sobre exemplos de interação entre esses eventos históricos do entreguerras e a formulação e difusão de ideias econômicas que tratam as seções seguintes.

4. Wladimir Woytinsky e a Grande Depressão na AlemanhaA reconstrução da Europa no pós-Primeira Guerra e a recuperação econômica dos países ocidentais no contexto

da Grande Depressão foram questões que ocuparam os economistas em boa parte do mundo. Foram oportunidades de reflexão que motivaram elaborações inovadoras, no sentido de ruptura com a ortodoxia, discutido até aqui. Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky foram autores, inseridos nesse movimento, que se posicionaram, cada um em seu contexto, sobre essas questões.

Wladimir Woytinsky (1885-1960) foi um economista nascido na Rússia, membro do Partido Social-Democrata Russo e editor da revista Izvetsia. Exilou-se na Geórgia, após a Revolução de 1917, fugindo da perseguição política que acossou aqueles que, por diversas razões, não aderiam ao governo bolchevique liderado por Lênin. Trabalhou como o representante diplomático da Geórgia até o país ser encampado pela URSS, em 1922. Woytinsky se instalou, então, na Alemanha de Weimar, onde permaneceu até a ascensão do nazismo, em 1933, quando partiu para a Suíça e para os Estados Unidos, onde viveu até 1960. Suas obras mais influentes e conhecidas nos EUA são World Population and Production (1953) e World Commerce and Governments (1955)23. São grandes coleções de dados econômicos e políticos, que Woytinsky compilou e interpretou, em co-autoria com sua esposa, Emma Woytinsky.

Woytinsky é um exemplo claro de autor que esteve diretamente inserido no movimento de questionamento à ortodoxia. Em seu perído na Alemanha, esteve envolvido, no âmbito da Confederação Geral Sindical Alemã (ADGB, na sigla original),24 com a elaboração de um programa para debelar os reflexos da Grande Depressão na Alemanha, em 1929-30. Bem nos termos de Gourevitch discutidos anteriormente, Woytinsky tinha uma proposta de estímulo à demanda para salvar a economia alemã, e essa proposta esbarrou na ortodoxia vigente – no caso de Woytinsky, a discussão não era com a ortodoxia neoclássica, mas com o marxismo dominante na social-democracia alemã. O plano baseava-se em gastos públicos com obras e inflação controlada, com o objetivo de aquecer a economia. Em sua autobiografia, Woytinsky tenta explicar as propostas daquilo que ficou conhecido como “política econômica ativa”:

[A política econômica ativa] era construída em torno de duas ideias – obras públicas e o suporte dos preços através de créditos bancários para financiar essas obras. A segunda proposta implicava gasto público e desequilíbrio orçamentário não somente como meio de financiar obras públicas, mas também como veículo para se injetar poder de compra no sistema econômico anêmico e reverter a espiral deflacionária.25

A ideia de usar o desequilíbrio orçamentário como forma de conscientemente estimular a demanda é certamente inovadora para o contexto de 1929-30. Woytinsky tenta esclarecer, algumas linhas adiante, as ideias que o teriam influenciado na elaboração deste plano:

Naquele momento, eu ainda não era familiarizado com os trabalhos iniciais de Keynes, que teriam me ajudado no desenvolvimento de meus argumentos. Mas nos relatórios sobre política do ouro da Seção Financeira da Liga das Nações, encontrei a resposta para o problema. Um aumento moderado no poder de compra ou na moeda em circulação elevaria o nível de preço ou interromperia o seu declínio, encorajando a expansão da produção, sem o perigo de uma depreciação descontrolada da moeda. Em parte sob a influência desses relatórios, decidi apresentar meu plano em termos de uma política internacional contra a crise mundial.26

Mais uma vez, aparece a convivência de concepções ortodoxas com ideias inovadoras. Segundo o próprio autor, não teriam sido as propostas keynesianas que o teriam influenciado, mas, sim, os relatórios da Liga das Nações, que,

23Não há espaço aqui para uma biografia mais extensa de Wladimir Woytinsky. Sua autobiografia Stormy Passage, Woytinsky (1961), fornece grande riqueza de dados sobre sua trajetória e sobre os agitados momentos históricos que viveu de perto. 24Esta instituição – o Allgemeiner Deutscher Gewerkschaftsbund – foi a confederação sindical alemã durante a República de Weimar. Fundado em 1919, o ADGB existiu até 1933, com a proibição dos sindicatos pelo regime de Hitler. 25Woytinsky (1961), p. 464. Os trechos de obras de Woytinsky aqui citados são traduções livres dos trechos originais em inglês, no caso do livro Stormy Passage (1961), e em francês, no caso de Les États Unis de l’Europe (1927). 26Idem, p. 464.

7

Page 8: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

como vimos, a essa altura ainda são marcados por concepções ortodoxas. De fato, a ideia de que o aumento na moeda em circulação “elevaria o nível de preço ou interromperia seu declínio” está ligada à concepção, convencional na economia até hoje, de que um aumento de numerário circulante se reflete em preços. O aspecto não usual do argumento consiste em propor que o Estado adote deliberadamente esse tipo de política inflacionária, fazendo déficit orçamentário financiado por emissões, com vistas à construção de obras públicas. O Estado deveria gerar inflação para combater a espiral deflacionária. A ousadia da proposta fica ainda mais clara quando se tem em conta que se trata da Alemanha, que vivera uma hiperinflação no início dos anos 1920.

De fato, a proposta era muito arriscada para ser aceita, até nos círculos da esquerda. Embora houvesse alguma simpatia pela ideia das obras públicas entre as lideranças do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), a memória da hiperinflação ainda era viva e a liderança intelectual de Hilferding, que se opunha ao plano, era inquestionável. Ainda seguindo as memórias de Woytinsky, o conflito de ideias entre W. Woytinsky, que elaborara seu plano no âmbito do ADGB, e Hilferding, se agravou quando da desvalorização da libra pelo Reino Unido, em julho de 1931. Nessa ocasião, o conselho do ADGB se reuniu para ouvir Hilferding sobre a desvalorização britânica. Nas palavras de Woytinsky:

Perguntei a Hilferding: “Como a desvalorização da libra vai afetar o desemprego na Inglaterra?”“O desemprego vai aumentar”, ele respondeu sem hesitar. (...)Então eu disse a Leipart [líder do ADGB] “(...) Hilferding fez sua previsão. Eu arriscarei a minha: a Grã-Bretanha atravessou um marco. Seu crédito será reforçado, outros países seguirão seu exemplo e depreciarão suas moedas. As exportações britânicas crescerão, sua produção se expandirá e seu desemprego declinará. A Grã-Bretanha está saindo da crise!”.27

Com o cuidado que se tem de ter com uma fonte que representa o ponto de vista de apenas um dos interlocutores no debate, a passagem é interessante por mostrar o impacto, sobre os formuladores de ideias econômicas, de um evento de ruptura como foi a desvalorização britânica de 1931, que significou, como já foi discutido, a desagregação do padrão-ouro, no bojo do processo de declínio da predominância mundial britânica. De fato, a previsão de Woytinsky se verificou e a economia do Reino Unido se recuperou, como de resto várias economias se recuperaram após soltarem as amarras do padrão-ouro.

Com a crise se agravando na Alemanha, Woytinsky continua a campanha pelo programa de obras públicas e busca o apoio de Fritz Baade, economista do SPD e membro do Reichstag, e Fritz Tarnow, presidente do Sindicato dos Madeireiros, para a elaboração de um plano prático, que ficou conhecido como Plano WTB, as iniciais dos três formuladores. Nas eleições de 1932, os nazistas haviam conquistado 230 das 568 cadeiras do Reichstag e a maioria parlamentar era formada por nazistas e comunistas, correntes pouco simpáticas à autoridade da República de Weimar. É nesse espírito que o SPD se reúne para discutir o plano WTB, em 1932. Mais uma vez, não se chega a um consenso. Woytinsky reproduz da seguinte forma a posição de Hilferding:

“Colm e Woytinsky”, [Hilferding] disse, “estão questionando os fundamentos de nosso programa [do SPD], a teoria de Marx do valor-trabalho. Nosso programa se baseia na convicção de que o trabalho, e só o trabalho, cria valor. Os preços se desviam do valor-trabalho sob o impacto da interação de oferta e demanda. Depressões resultam da anarquia do sistema capitalista. Ou elas chegam a um fim, ou têm de levar ao colapso do sistema. Se Colm e Woytinsky pensam que podem mitigar uma depressão com obras públicas, estão apenas mostrando que não são marxistas.”28

Trata-se da fala de Woytinsky relatando Hilferding, mas, dentro do raciocínio marxista daquele momento, de fato não parece haver possibilidade de conceber um programa de obras públicas. A depressão era vista como sintoma da derrocada do sistema. Como se sabe, o plano WTB não foi adotado e, ao longo dos anos 1930, a esquerda alemã se desarticulou, com a ascensão do regime autoritário nazista. O que vale reter desse relato da atuação de Woytinsky no meio político-partidário alemão é a presença, nesse contexto do período entreguerras, de um embate de ideias

27Woytinsky (1961), pp. 467-468.28Idem, p. 471. Gehrard Colm era um reputado acadêmico, que foi escolhido por Woytinsky para ser o porta-voz do ADGB – e do plano WTB – na reunião com os representantes do Partido Social-Democrata.

8

Page 9: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

econômicas: novas propostas eram elaboradas, mas esbarravam em concepções já estabelecidas, por vezes institucionalmente arraigadas.

5. Roberto Simonsen e a missão Montagu: elementos de questionamento no BrasilNos países latino-americanos, a ideia de convivência entre um receituário ortodoxo de política econômica com

uma situação que acabou por exigir a adoção de medidas que rompiam com a tradição clássica é exemplificada pelas missões dos chamados money doctors, que visitaram a América Latina para recomendar medidas de política econômica e firmar acordos financeiros, com vistas à estabilidade econômica dos países devedores. No caso dos money doctors ingleses, o objetivo mais claro das visitas era garantir que os países mantivessem o pagamento de suas dívidas externas, defendendo assim os interesses da City de Londres na América do Sul. Destaca-se aqui um money doctor em especial: Edwin Montagu29. Montagu era britânico e esteve em missão no Brasil, em 1923-24. Não se deve esquecer que, dentro do referido quadro de transferência de hegemonia mundial, a participação do Reino Unido no comércio externo latino-americano estava em declínio, com os Estados Unidos ganhando espaço; todavia, o país ainda representava o maior capital nominal investido na América do Sul, em forma de financiamentos e de empréstimos.30 As missões financeiras devem ser entendidas, dessa forma, como partindo de uma potência cuja hegemonia econômica já está em declínio, mas cuja predominância financeira, nas praças latino-americanas, ainda é inquestionável.

Antes de entrar na discussão sobre a visita de Montagu e a reação de Simonsen, vale recapitular as articulações entre a política monetária brasileira e o padrão-ouro, durante a República Velha. No período de “plena vigência” do padrão-ouro (1870-1914) o Brasil adotou a conversibilidade após o ajuste feito com o Convênio de Taubaté e a criação da Caixa de Conversão, em 1906. O câmbio fixo perdura até 1914, quando, com a eclosão da Primeira Guerra, a Caixa é fechada. Segue-se um período de câmbio flexível até 1926, quando o governo implanta uma reforma monetária e cria a Caixa de Estabilização, nos mesmos moldes da Caixa de Conversão, cujo objetivo era a emissão de notas conversíveis em ouro. Vale lembrar que, ao eclodir a crise de 1929, a primeira reação do governo Washington Luís é aferrar-se à ortodoxia, intensificando os efeitos da recessão. Como se sabe, essa situação mostrou-se insustentável, contribuindo para a derrocada do regime político da República Velha.31

Marcelo de Paiva Abreu e Pedro Loureiro de Souza argumentam que a missão Montagu aconteceu devido à pretensão do governo brasileiro de levantar um empréstimo de 25 milhões de libras junto à casa Rothschild para sanar o déficit público, que em 1923 atingira dois terços dos gastos totais. A casa bancária londrina não se dispôs a recomendar o empréstimo ao governo federal sem maiores conhecimentos da situação financeira brasileira: enviou-se, então, ao Brasil uma missão financeira, chefiada por Edwin Montagu, com o objetivo de verificar se o país tinha condições assumir o compromisso financeiro que o empréstimo acarretaria.

O relatório privado da missão continha a recomendação de que se levantasse um novo empréstimo, dado que se cumprissem as propostas feitas ao governo brasileiro. Essas medidas recomendadas incluíam: equilíbrio orçamentário, melhora na gestão do orçamento, reformas tributárias e limites ao gasto governamental. Os projetos de envolvimento do governo no setor siderúrgico deveriam ser congelados. O governo deveria considerar a venda de ativos como ferrovias e empresas de transporte para cumprir compromissos financeiros, em caso de necessidade. Uma comissão mista público-privada deveria tratar da questão das tarifas ferroviárias, ponto de atrito entre interesses britânicos e brasileiros. Por fim, o programa de valorização do café foi criticado pelo relatório. O empréstimo, afinal, não foi levantado, devido a um embargo a empréstimos externos que se implantou em Londres em meados de 1924.32

29Edwin Montagu (1879-1924) foi um político liberal inglês, que se notabilizou pelas funções que desempenhou, junto ao governo britânico, como Secretário de Estado para a Índia (1917-1922). Destituído de seu posto por questões político-partidárias, teve vários empregos na City londrina, de 1922 a 1924. Ver Packer (2012).30Saes (2008), pp 47-48. 31Fritsch (1990) pp. 41-52.32Abreu e Souza (2011), pp. 10-12; Fritsch (1990), pp. 53-54.

9

Page 10: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

É neste contexto33 que Roberto Simonsen escreve o texto chamado “Necessidade de estabilização cambial”, na verdade uma carta enviada à missão Montagu em 8 de fevereiro de 1924, que Simonsen também remeteu a Washington Luís, à época presidente do estado de São Paulo e a Carlos de Campos, líder da bancada paulista na Câmara Federal. Simonsen é enfático no início de seu texto: “Sustento que o nosso problema fundamental é o da estabilização cambial.”34 Passa, em seguida, a uma explicação do fato de ser o café a principal fonte de crédito do Brasil, em sua balança comercial.

Sendo o café um produto de que o Brasil tem praticamente o monopolio, as oscillações cambiaes não desorganizam a sua producção. De facto, o cambio subindo muito rapidamente, é sempre possivel promover uma valorização do producto pela sua simples retenção nas mãos dos vendedores, dada a impossibilidade dos mercados irem se suprir sufficientemente de outros fornecedores. O mesmo não acontece, porém, com o algodão, a carne, o fumo e outros productos agricolas e materias primas dos quaes não temos privilegio ou monopolio da producção.35 (grifo nosso).

Ou seja, o café era nossa principal fonte de recursos pela posição monopolista ocupada pelo Brasil no mercado internacional. Essa posição dava ao Brasil, neste momento, certa independência das oscilações cambiais. No caso de outros produtos de exportação, porém, o comportamento da taxa de câmbio, mais especificamente a possibilidade de valorização repentina da moeda nacional, tem papel importante, chegando a determinar a oferta ou não de tais produtos pelo Brasil. Vale lembrar que este é um momento em que o Brasil adotava um regime de câmbio flexível, estando em curso um processo de depreciação do mil-réis (final de 1923 e 1924)36. “A taxa cambial ao nivel baixo em que actualmente se encontra constitue, certamente, por algum tempo, um forte premio para a exportação.”37 As exportações brasileiras, todavia, não necessariamente se deveriam restringir ao café: “é incontestavel que o Brasil offerece, neste momento, uma grande opportunidade para o desenvolvimento e exportação de outros produtos.”38

Simonsen propõe, então, um esquema de política econômico-financeira baseado no desenvolvimento do plantio do algodão, por considerar que o Brasil tem grande potencial para produzir este gênero, aproveitando que possui um custo mais baixo do que o norte-americano, o que tornaria a cotonicultura nacional mais competitiva que a dos EUA.

Os peritos financeiros e technicos, determinariam o custo médio da producção do algodão nos Estados Unidos e no Brasil; e estabeleceriam, algebricamente, uma taxa de cambio a vigorar para o Brasil, calculada de tal fórma que o custo da producção do algodão no paiz, transformado em ouro, ficasse 10% inferior ao custo de producção do algodão nos Estados Unidos.39

O Brasil deveria, portanto, adotar uma taxa cambial que fosse favorável ao aproveitamento dessa oportunidade identificada no setor algodoeiro. Há dois aspectos a se notar nessa proposta de Simonsen. O primeiro é bem evidente. Simonsen pretende mostrar aos financistas ingleses que o Brasil tem condições de, com as divisas obtidas, não só pela venda de café, mas pela exportação de outros gêneros, fazer frente aos seus compromissos externos. O que estava em jogo era um empréstimo de 25 milhões de libras, por meio do qual o governo brasileiro pretendia regularizar sua situação financeira. Nesse sentido, Simonsen pretende mostrar aos credores que o Brasil conta com outras fontes potenciais de divisas, e não somente com a lavoura cafeeira. Um segundo aspecto, talvez menos perceptível, é que Roberto Simonsen atrela a possibilidade de o Brasil ser um país com finanças sólidas, capaz de fazer frente aos seus compromissos, à diversificação produtiva. Somente a lavoura cafeeira não seria suficiente para isso.

33No início da década de 1920, a principal atividade de Simonsen era a construção civil. Em 1920, sua empresa, a Companhia Construtora de Santos, assinou contrato com Pandiá Calógeras, ministro da Guerra de Epitácio Pessoa, para a construção de 103 estabelecimentos militares em nove estados brasileiros, de acordo com um projeto governamental de melhoria das instalações do exército. A projeção de Simonsen como líder industrial aumentou ao longo da década de 1920: em 1923, assumiu a presidência do Sindicato Nacional dos Combustíveis Líquidos e, no ano seguinte, passou a dirigir a Cerâmica São Caetano. Ver Dias (2001), p. 5482. 34Simonsen (1924), p. 144.35Idem.36Fritsch (1989), p. 5337Simonsen (1924), p. 145.38Idem.39Idem, p. 146.

10

Page 11: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

Não se trata aqui de uma defesa aberta da industrialização planejada, nem do protecionismo, como Simonsen fará em momentos posteriores de sua obra. O documento analisado é a carta de um industrial a uma missão financeira estrangeira: uma peça de convencimento, para que o Brasil consiga levantar um empréstimo para regularizar suas finanças. Aparecem, no entanto, argumentos que, embora inseridos no vocabulário e na lógica ortodoxa da política econômica do momento, apontam na direção da diversificação da economia brasileira. O raciocínio seria: o câmbio fixo (nos termos do padrão-ouro) seria importante não só para garantir a inserção do Brasil nos fluxos de capitais internacionais, mas também para que se permitisse, por meio da eliminação da incerteza cambial, a diversificação de nosso parque produtivo, por meio, por exemplo, da cotonicultura de exportação.

O argumento fica mais claro quando Simonsen se refere aos “outros problemas”, para além do cambial. “Debatemo-nos em forte crise de transportes, em deficiencia de organização e de credito e na falta da regularização da importação.”40. O problema dos transportes deveria ser resolvido com a atração de capitais externos, sobretudo ingleses, visando ao fornecimento de material ferroviário. O encaminhamento da questão do crédito passaria pela establização do câmbio, que, aliada a uma “politica bancaria convincente” traria para o Brasil correntes de numerário, organização da produção e, como corolário, facilidades creditícias. Quanto à questão da pauta de importações, Simonsen é mais enfático:

Impõe-se, a meu vêr, uma politica do Governo, facilitando a importação de machinas, ferro, aço, carvão e productos medicinaes e tornando verdadeiramente prohibitivas as importações de productos de luxo. Do contrario, correremos sempre os riscos de orgias na importação em certos Estados do Brasil, em momentos de grande abundancia de recursos regionaes, prejudicando toda a nação. Essa medida em nada virá affectar a Inglaterra que é, para orgulho de seus filhos, productora principalmente de artigos de primeira necessidade.41 (grifo nosso).

Há aqui novamente dois eixos. Por um lado, Simonsen pretende mostrar aos ingleses que o Brasil não desperdiçará divisas com importações de produtos de consumo conspícuo, de modo a priorizar compromissos financeiros, como o empréstimo que se desejava levantar em Londres. Por outro, as importações deveriam ser controladas por meio de uma política consciente do governo, de modo a garantir o fornecimento dos insumos necessários à indústria nacional em vias de se implantar: “machinas, ferro, aço, carvão”. Mais uma vez, a solidez brasileira passa não só por uma política de “economia de divisas” para fazer frente aos compromissos externos, mas pela diversificação produtiva. No caso do trecho acima, passa pelo fomento à indústria que se instalava, por meio de uma política deliberada de substituição de importações.

A reivindicação por uma política de discriminação de importações faz sentido ao se notar que a década de 1920 é um momento de diversificação da indústria de transformação brasileira. Wilson Suzigan argumenta que é neste momento que o investimento na indústria brasileira passa a não se concentrar primordialmente em ramos complementares à economia exportadora: diversifica-se para os setores de bens intermediários, como cimento, ferro e aço, produtos químicos, fertilizantes, papel e celulose e para o setor de bens de capital. Todavia, este é um período em que a formação de capital industrial ainda depende do desempenho da economia exportadora, devido ao grau de dependência externa para fornecimento de insumos e bens de capital. Nesse sentido, Simonsen está fazendo a reivindicação da parte de uma indústria que estava em plena expansão e diversificação da capacidade produtiva (o investimento industrial se mantém elevado para praticamente toda a década de 1920, segundo Suzigan), mas que ainda depende fortemente de importações.42

O que se pretende frisar é que, dentro do contexto aludido de ruptura com um modelo ortodoxo de pensar a economia e de fazer política econômica, Simonsen traz, em sua carta, elementos de uma ruptura expressiva, associada às necessidade de um setor industrial em diversificação. A linguagem usada é a da ortodoxia dos money doctors. Simonsen mostra à missão Montagu que o Brasil tem capacidade de pagamento para contrair um empréstimo externo. Mas, para tal, a economia brasileira deveria passar por certas reformulações, na direção da diversificação produtiva, tanto no setor agrícola, quanto na indústria. A sugestão de que o governo deveria, conscimentemente, discriminar importações em favor dos insumos industriais não é algo que se inclui no receituário professado pelos

40Simonsen (1924, p. 146).41Idem, p. 147.42Suzigan (2000), pp. 90-93 e pp. 261-264.

11

Page 12: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

money doctors. Ademais, vale lembrar que, neste momento, embora houvesse um problema cambial, ainda não estava em curso a mudança estrutural trazida pela industrialização: o eixo dinâmico da economia brasileira era dado pelo setor exportador e não pela acumulação industrial. A proposta de discriminação de importações em favor dos insumos e equipamentos industriais, em 1924, tem, portanto, um elemento inovador digno de destaque.

O argumento simonseniano, neste momento de início dos anos 1920, ainda não incorpora questões como a superação do atraso ou a industrialização programada, que Simonsen abordará posteriormente: o que fica claro é que, para ser um país financeiramente sólido, o Brasil deveria adotar certas prioridades, na direção da diversificação da sua pauta de exportações e do fomento à indústria. Dentro dos termos do questionamento à ortodoxia no período entreguerras, neste caso ainda anterior à crise dos anos 1930, o que se tem é uma argumentação, relativa aos problemas brasileiros, que incorpora sugestões inovadoras, embora ainda não esteja calcada num sólido projeto industrialista. A construção desse projeto – e da consciência nacional a respeito da industrialização – é um processo longo, que ganha força considerável a partir de 1930, no governo Vargas.43 O tipo de argumentação adotado por Simonsen posteriormente reflete essa solidificação do projeto industrialista, como ficariá claro nas próximas seções.

6. Simonsen e Woytinsky: uma leitura mediada pela obra de ManoilescoNão parece haver dúvida de que Simonsen e Woytinsky se incluem num ambiente de formulação de propostas

econômicas que vão na direção do questionamento da ortodoxia, no período entreguerras. Antes de passar a alguns pontos de convergência entre textos desses dois autores, convém indagar a respeito do tipo de contato que Simonsen tinha com as obras de Wladimir Woytinsky. Esse contato, como se pretende mostrar, foi mediado por Mihail Manoilesco.

É conhecida a influência que a obra do economista romeno Mihail Manoilesco exerceu sobre os industriais brasileiros. Mauro Boianovsky refere-se a um declínio da influência de Friedrich List, referência básica para os protecionistas, a partir da publicação da Teoria do protecionismo e da permuta internacional, em 1931, devido à atratividade que exercia, sobre os industriais brasileiros, o “protecionismo científico” de Manoilesco, capaz de trazer vantagens a todas as nações: avançadas e atrasadas.44 A tradução publicação do referido livro no Brasil deu-se por iniciativa do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP). Joseph Love afirma que Manoilesco teria fornecido o argumento decisivo para que Otávio Pupo Nogueira, industrial e porta-voz do recém-fundado CIESP, se manifestasse contra a acusação, feita pelos cafeicultores, de artificialidade da indústria de sacos de estopa, em razão de sua matéria-prima importada, a juta. Pupo Nogueira teria, então, se interessado por trazer a obra de Manoilesco para o Brasil. A tradução foi feita em 1931 e o livro deveria ser publicado com um prefácio especial para a edição brasileira, o que não aconteceu, pois o CIESP não conseguiu fornecer os dados estatísticos necessários a Manoilesco.45

No texto “As finanças e a indústria”, uma conferência proferida no Mackenzie College de São Paulo, em 8 de abril de 1931, Roberto Simonsen faz referência explícita ao protecionismo de Manoilesco, destacando seu caráter científico. “Manoilesco faz notar que o interesse nacional, o verdadeiro criterio scientifico que deve prevalecer no estabelecimento de um systema de tarifas, resalta do estudo que se faça da productividade.”46 Simonsen destaca alguns aspectos centrais da teoria de Manoilesco, isto é, a ideia de que o lucro nacional é mais importante que o lucro individual e o argumento de que deveriam ser incentivados (ou protegidos) os setores com “coeficiente de qualidade” mais elevado, sendo este coeficiente uma medida da produtividade, em sentido absoluto.47

É também neste texto de 1931 que Simonsen faz referência a Woytinsky, autor citado, à sobeja, por Mihail Manoilesco na Primeira Parte de sua Teoria do protecionismo. Uma ideia geral da teoria apresentada por Manoilesco ajudará a clarear o sentido das referências feitas por ele e por Simonsen a Woytinsky. O argumento central do economista romeno é que não é a produtividade relativa (ou os preços relativos, vistos como reflexo da

43A questão da construção da ideologia industrialista e desenvolvimentista no Brasil é objeto de discussão de uma extensa literatura, que não será discutida aqui, dado o limitado escopo do trabalho. A ideia de que o projeto industrialista é conscientemente apoiado pelo poder público a partir do governo Vargas é defendida por Fonseca (2003), que se contrapõe ao argumento furtadiano da industrialização como resultado das políticas de preservação da renda do setor cafeicultor. 44Boianovsky (2011), pp. 26-28. Vale lembrar, com Boianovksy, que, a despeito da leitura seletiva feita pelos industriais sul-americanos da obra de List, a industrialização, para este pensador, não deveria se expandir para os países tropicais. Já Manoilesco diz explicitamente que a indústria, a ser instalada via protecionismo, representa uma opção mais vantajosa do que a agricultura, para os países atrasados. 45Love (1998), pp. 339-340. Ver também a “Apresentação da Edição de 1931” em Manoilesco ([1931] 2011).46Simonsen (1931), p. 250. 47Idem, p. 251.

12

Page 13: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

produtividade) que deve ser levada em conta ao se mensurar as vantagens do comércio internacional, mas, sim, a produtividade absoluta. Qualquer atividade que eleva a produtividade média do país deve ser instalada, sendo irrelevante a comparação com o estrangeiro. Importa, sobretudo, elevar a produtividade média do país. Usando o exemplo clássico de Ricardo, Manoilesco insiste que pouco importa que a indústria têxtil da Inglaterra seja mais produtiva que a de Portugal: o resultado teórico é que os dois devem se especializar em panos, pois a indústria em um determinado país é, via de regra, mais produtiva do que a agricultura neste mesmo país (obtém-se mais produto por unidade de trabalho ou capital empregado). Para se tornar mais produtivo, portanto, e auferir maior lucro nacional um país deve se industrializar cada vez mais, transferindo recursos da agricultura, setor pouco produtivo, para a indústria, setor mais produtivo, ainda que para isso tenha de proteger os setores industriais novos, menos competitivos do que a indústria estrangeira. À indagação sobre a possibilidade de importar a custos menores, já que a indústria estrangeira é mais produtiva, Manoilesco responde com a ideia de mercadoria de permuta. Para importar algo, um país deve dar em troca (ou vender para obter divisas) mercadorias de permuta, as quais, geralmemnte, são produzidas em condições menos sofisticadas, ou menos produtivas, do que aquelas em que se produz a mercadoria importada. A proteção, portanto, se justifica sempre que o setor que se deseja instalar operar com produtividade mais elevada do que os setores nos quais são produzidas as mercadorias de permuta, usadas na importação. Isso garante que se eleve a produtividade média da nação e, por conseguinte, seu lucro nacional.48

Esta recapitulação esquemática, que não incorpora diversos condicionantes apresentados por Manoilesco, pretende destacar o seguinte ponto: é fundamental, para esta teoria do comércio internacional, que, de modo geral, os setores que se deseja instalar no país sejam mais produtivos que os setores já existentes, ou no caso dos países atrasados, a indústria seja mais produtiva que a agricultura. A Primeira Parte do livro é dedicada a mostrar, com dados tomados, sobretudo, de Woytinsky, a superioridade, em termos de produtividade, da indústria sobre a agricultura. “Do exposto, resulta que, para os países agrícolas e atrasados, há maior vantagem relativa em passar das ocupações agrícolas às ocupações industriais.”49

Vale observar que o livro do qual Manoilesco retira os dados com os quais elabora seus índices que mostram a superioridade da indústria sobre a agricultura é Die Welt in Zahlen (O mundo em números), um compêndio de dados econômicos, em sete volumes, elaborado por Wladimir Woytinsky e sua esposa, Emma Woytinsky, na década de 1920, período em que estiveram na Alemanha, alguns anos antes do episódio referido na seção 4.50 Simonsen refere-se a Woytinsky nos seguintes termos: “De acordo com Woytinski o rendimento liquido da industria, excluindo mesmo a mineração, é mais forte que o rendimento liquido da agricultura na Inglaterra, Estados Unidos, Allemanha, França, Belgica, Suissa, Hollanda e Australia, isto é, nos mais ricos paizes do mundo.”51

Embora não cite a fonte dessa informação, compare-se o trecho de Simonsen com a nota 40, da Primeira Parte do livro de Manoilesco: “Segundo Woytinsky (vol. I, p. 159), a renda líquida total da indústia (sem as minas) é maior do que a renda líquida total da agricultura nos seguintes países: Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Suíça, Canadá e Austrália (igualdade)”.52 Não parece haver dúvida de que Simonsen retira do livro de Manoilesco essas informações elaboradas por Woytinsky. Para além dessas referências textuais, convém sublinhar o caráter fundamental, para Simonsen e Manoilesco, da associação entre indústria e riqueza, entre industrialização e progresso ou superação do atraso. É nesse sentido que Simonsen busca os dados de Woytinsky, provavelmente por meio da obra de Manoilesco cuja tradução patrocinada pelo CIESP ele mesmo prefaciara. O trabalho estatístico de Woytinsky tem a importância de dar corpo à ideia, fundamental para a teoria do comércio internacional em questão aqui, de que a indústria é mais produtiva do que as atividades primárias, sendo, portanto, a opção mais vantajosa para os países atrasados.

Feita essa referência à apropriação de Woytinsky via Manoilesco, serão analisadas, na próxima seção, algumas afinidades entre Simonsen e Woytinsky, no que se refere à questão europeia.

7. Roberto Simonsen, W. Woytinsky e a renconstrução europeia

48Manoilesco ([1931] 2011), “Segunda Parte – A teoria”.49Idem, p. 46.50Woytinsky (1961), pp. 451-454.51Simonsen (1931), p. 224. Ver também Fanganiello (1970), pp. 135-136. A autora faz um panorama dos principais argumentos defendidos por Simonsen neste texto, destacando os autores citados pelo autor. 52Manoilesco ([1931] 2011), p. 204. “Notas e referências”.

13

Page 14: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

Em seu livro Estados Unidos da Europa,53 publicado em alemão em 1926 e em francês em 1927, Wladimir Woytinsky, expõe seu projeto de reconstrução da Europa no pós-Primeira Guerra. Esse processo deveria passar pela unificação política e econômica do continente, de modo a permitir uma integração que evitasse uma escalada de autoritarismo e violência, que fatalmente levaria a novos conflitos bélicos. A ideia fundamental é que o principal objetivo a ser atingido deveria ser a estabilidade econômica. “Eis o caminho que conduz à segurança da Europa: ele passa pela economia e, antes de tudo, pelo estudo da evolução econômica”54. Ambos os autores estão envolvidos com estudos de história econômica, cujo objetivo é a compreensão da realidade com a qual se defrontam, tendo em vista a possibilidade de agir sobre ela, de forma a superar problemas presentes.

Um dos principais aportes intelectuais de Simonsen é justamente introduzir, para o caso brasileiro, um enfoque histórico sobre as questões econômicas, que enfatiza a especificidade da evolução econômica brasileira, de forma a questionar a ideia, baseada na concepção ricardiana, de uma manifesta “vocação agrícola”. Simonsen assim resume o objetivo da História econômica do Brasil (1937), sua empreitada intelectual de maior fôlego:

Procuraremos determinar, pela evolução comparativa entre os povos, a razão do atraso de nossas atividades econômicas em determinadas épocas e para determinadas regiões. (...). Esforçar-nos-emos, enfim, por indagar a origem dos muitos entraves que dificultaram e dificultam, a nossa evolução progressista.55

Essa abordagem abre a possibilidade do planejamento e da intervenção sobre a economia, com vistas a induzir o desenvolvimento.56 O fato de Simonsen estar em contato com um autor que também estuda a evolução das economias com vistas a superar certos entraves reforça a ideia de que estava envolvido num ambiente amplo de formulação de ideias econômicas que passava pelo estudo da história e das especificidades da evolução e do atraso de cada economia nacional.

Roberto Simonsen se manifesta sobre as questões europeias na referida conferência “As finanças e a indústria”, de 1931.57 Essa palestra já está inserida num momento mais maduro da produção simonseniana, em que o projeto industrialista do autor já está mais sólido. Para Vera Cepêda, o momento que inaugura a chamada “segunda fase” da produção de Simonsen é a fundação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, que teria significado a ruptura com os interesses do comércio, marcando a autonomização do projeto industrialista.58 A Associação Comercial de São Paulo, entidade que antes congregara os interesses de todos os ramos de negócios no estado de São Paulo, quando de fato era o capital comercial o eixo da vida econômica paulista, fora cindida entre os interesses dos comerciantes ligados à importação e à indústria nacional, culminando com os industriais fundando a sua própria associação, o CIESP, que tinha como presidente Fransico Matarazzo e como vice Roberto Simonsen.59

Vale ressaltar a diferença entre os dois momentos da obra de Simonsen: a carta de 1924 e a conferência de 1931. Sem dúvida, o texto de 1931 apresenta uma preocupação mais centrada no problema da indústria. Convém lembrar, ainda, que, entre esses dois momentos, ocorre a quebra da bolsa de 1929, marcando o início da crise dos anos 1930 que marcou profundamente a história econômica brasileira. A interpretação clássica de Furtado é que a partir da restrição externa dos anos 1930, aliada às políticas de manutenção da renda interna, teria havido o deslocamento do centro dinâmico da economia brasileira do setor exportador para a acumulação industrial.60 Do ponto de vista institucional, Simonsen passou a ocupar uma posição mais destacada de porta-voz da indústria. O lugar de vice-presidente da FIESP lhe assegurava destaque institucional e um vínculo mais claro do que o que tinha na década de 1920 com os interesses específicos da indústria. No plano intelectual, é clara, no texto de 1931, a preocupação em justificar, por meio do diálogo com outros autores coevos, a defesa da indústria. Em 1924, o eixo da argumentação era a estabilidade cambial, embora a ela estivessem associadas, de forma original para a época, preocupações relativas ao

53O livro a que tivemos acesso é a edição francesa de 1927, intitulada Les États Unis d’Europe. 54Woytinsky (1927), p. 09. 55Simonsen ([1937] 1969), p. 24.56Ver Bruzzi Curi e Cunha (2011).57Simonsen (1931).58Saes et al. (2008), pp. 3-4 e pp. 11-12.59Cepêda (2003), pp. 226-227.60Furtado ([1959] 2007). Por mais que se discutam as interpretações da crise dos anos 1930 para o desenvolvimento industrial do Brasil, é consenso que a crise foi um marco e que uma parte maior da demanda, sobretudo por bens de consumo, passou a ser atendida pela indústria doméstica.

14

Page 15: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

desenvolvimento industrial. A assimilação teoria da permuta internacional advogada por Manoilesco e empiricamente reforçada pelas constatações de Woytinsky é um aporte importante, para que a defesa dos interesses industriais ganhe o status de um projeto intelectualmente coerente e teoricamente benéfico para a nação: neste momento, é colocada de forma muito clara por Simonsen a associação entre indústria e progresso nacional, implícita na ênfase, dada por Manoilesco, no lucro nacional, ou seja, na produtividade média do país.

O texto ”As finanças e a indústria” está dividido em três seções: introdução, “A racionalização Allemã” e “A Politica Industrial no Brasil”. Vale lembrar que Simonsen discute a industrialização alemã de forma geral e a capacidade que o país teria tido de se recuperar da Primeira Guerra e da espiral inflacionária dos anos 1920. Não se detém tanto sobre a conjuntura europeia, como faz Woytinsky. Isso não impede que suas propostas se aproximem das defendidas por Woytinsky, tanto em seu livro de 1927, quanto em seu referido plano WTB, contra a crise alemã.

O argumento central de Simonsen, na seção referente à “racionalização allemã”, é que a Alemanha, profundamente atingida pela guerra e pela inflação de 1923-24, teria conseguido se reintegrar à economia mundial como uma potência por meio da inteligência e do trabalho. É esse esforço que orienta a racionalização, cujos objetivos seriam o abaixamento do custo e aumento da qualidade na produção industrial.61 Simonsen ressalta que as duas grandes manifestações exteriores da racionalização alemã seriam a “fabricação contínua” (o fliessende Arbeit) e a concentração das empresas.

A fabricação continua, fliessende arbeit, comprehende o systema de producção que, tendo o trabalho em transportador como base, abrange a padronização dos typos e a especialização das usinas sob a formula geral de produzir accelerando o escoamento do capital circulante.62

Trata-se aqui de uma evolução do sistema fordista, o qual Simonsen elogia nesta mesma conferência, que

compreenderia, além da linha de montagem, uma padronização dos estabelecimentos produtivos, cujo objetivo principal seria a redução do custo de produção por meio da diminuição daquilo que Simonsen chama de “valor do produto em curso de fabricação”, que é parte do capital circulante. O fliessende Arbeit teria como objetivo principal acelerar a rotação do capital circulante, de forma a diminuir a necessidade de seu emprego, favorecendo assim uma redução de custo.63 Sobre esse aspecto, Simonsen conclui que “os dispositivos de Ford soffreram alterações apreciaveis na Allemanha, onde a sciencia ao serviço do espirito meticuloso da raça conseguiu combinações e modalidades interessantissimas”.64 O outro aspecto da racionalização se refere à concentração das empresas em Konzerne, que ocorreria por motivos, acima de tudo, financeiros: sendo o capital para investimento escasso num país devastado pela guerra, era necessário que as firmas economizassem recursos, por meio da eficiência produtiva e do usufruto de economias de escala.

Vale destacar aqui duas questões, relativas à industrialização alemã, que mostram que Simonsen e Woytinsky estavam num mesmo campo de discussão, tentando pensar em formas de intervenção sobre a economia, que levassem ao desenvolvimento industrial e à superação de entraves: a primeira questão é se refere à forma de se estimular a economia alemã/europeia e a segunda, à unificação europeia.

Num povo que perdeu pela guerra e pela inflação seus capitaes e rendas, é na massa dos salarios que reside quase que unicamente a criação do poder aquisitivo do mercado consumidor interno. Dahi a justificação da politica de altos salarios conjuntamente com a baixa do preço de custo, com o duplo intuito de criar maior poder aquisitivo e intensificar o consumo incrementando o escoamento dos productos industriaes.65

As duas formas de atacar o problema alemão, para Simonsen, são a diminuição do custo de produção, por meio da referida racionalização produtiva, e o incremento do poder aquisitivo dos trabalhadores, por meio de uma política de altos salários, do lado da demanda. Alguns anos antes, Woytinsky discutira as saídas para a Europa pós-Primeira Guerra, no referido livro sobre a unificação europeia, de 1927. A terceira parte do livro, intitulada “À procura de uma saída”, discute propostas para dinamizar a economia do continente. As duas primeiras seções dessa parte, que é uma

61Simonsen (1931), p. 234.62Idem, p.. 237.63Idem, p. 238. 64Idem, p. 240-241.65Idem, p. 240.

15

Page 16: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

coletânea de propostas para reaquecer a economia são: “A diminuição dos custos de produção” e “O aumento do poder de compra da população”. São justamente as duas estratégias defendidas por Simonsen para o caso alemão.

Em seu livro, Woytinsky começa por recusar a redução de salários como forma de se reduzir custos. “O abaixamento do preço de custo a expensas dos trabalhadores enfraquece o poder de compra interior do país. Essa política contribui para retração dos mercados internos e reduz o significado de um país como mercado exterior para outros países.”66 O autor propõe que se reduzam os custos de produção por meio de quatro medidas que deveriam melhorar as condições da indústria europeia, a qual, segundo ele, desperdiçava considável quantidade de trabalho. As medidas sugeridas para diminuir custos são: aumento da qualidade do trabalho, por meio da formação profissional; política racional de habitação, visando à redução dos aluguéis; política alfandegária visando a diminuição dos direitos de entrada de itens básicos e de matérias-primas industriais; e política de unificação europeia.67

A política de altos salários, que Woytinsky considera como amplamente difundida nos Estados Unidos, mas ainda pouco empregada na Europa, se justifica pelo aumento do poder de compra da população e consequente restabelecimento do dinamismo da economia.

Nesse caso [uma crise de subconsumo], uma elevação metódica dos salários conduz, no final das contas, não ao incremento, mas à diminuição dos preços por unidades das mercadorias, pois que essa elevação salarial aumenta e garante a demanda dos produtos industriais e permite, por conseguinte, o restabelecimento da produção, na amplitude do poder produtivo da indústria.68

Woytinsky volta seu olhar para o lado da demanda e, diagnosticando o problema europeu como de subconsumo, propõe uma política de altos salários como forma não só de aquecer a economia, mas, também, de diminuir os custos de produção, já que uma demanda aquecida favoreceria o restabelecimento da indústria em suas condições normais, isto é, usufruindo de economias de escala e de uma demanda garantida, apoiada no alto poder de compra dos salários.

Nesse ponto, Simonsen faz uma conexão interessante entre economias de escala, planejamento e a questão da unificação europeia. Referindo-se aos Konzerne alemães, salienta:

Essas concentrações da produção formadas dentro do systema da racionalização, em que a produção em grande massa, os baixos preços de custo e os altos salários são directrizes a serem observadas, têm o efeito de evitar perturbações no mercado productor e impedir superproduções geradas pelas concorrências que muitas vezes occasionam crises. Trazem ainda o aproveitamento mais eficiente da mão de obra, o estudo dos verdadeiros interesses dos mercados, supprimindo produções inuteis e trabalhos em pura perda. A racionalização comprehende, portanto, idéas motrizes que formam como que uma “economia dirigida”. (...) É natural que uma industrialização levada a um grande desenvolvimento procure uma expansão além de suas fronteiras e dahi os carteis internacionaes de que a Allemanha tem tido a iniciativa no continente europeu e que evoluem para a formação de grandes “trusts” internacionaes que só podem concorrer para a approximação dos povos e para a formação do bloco econômico europeu.69 (grifos nossos)

A concentração das indústrias seria, então, parte do processo de racionalização, que envolve baixo custo de produção aliado a altos salários. O resultado disso seria uma forma de produção que pode usufruir de economias de escala e de demanda garantida. No fundo, todo esse esforço que Simonsen chama de racionalização é uma estratégia de planejamento, isto é, uma forma de se reduzir as incertezas inerentes à produção capitalista, por meio da organização/padronização de processos e da criação de uma demanda pujante e garantida. Na medida em que esse tipo de planejamento se alastrasse pelo continente europeu, a consequência seria uma “aproximação dos povos”, isto é, uma coordenação, em nível supranacional, dessa “economia dirigida”. É para essa direção que apontam as propostas de Woytinsky para a Europa do pós-Primeira Guerra. Seu livro de 1927 é, na verdade, um chamado aos países europeus para que adotem políticas de unificação econômica.

O que os dois autores pretendem é elevar a produtividade nacional por meio da racionalização produtiva, da coordenação: se efetuado por cada país isoladamente, esse processo não funcionaria, pois a exportação é parte da

66Woytinsky (1927), p. 95.67Idem, p. 99.68Idem, p. 103. 69Simonsen (1931), p. 243.

16

Page 17: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

demanda e as importações são parte da oferta de uma economia nacional. Se não houvesse um esforço conjunto de coordenação, a garantia de que a indústria teria sua produção demandada ficaria enfraquecida, a ideia de uma “economia dirigida”, capaz de garantir uma estabilidade ao capitalismo industrial, não seria possível. Nesse sentido, Woytinsky e Simonsen convergem na questão da importância de um esforço maior de coordenação para se resolver a questão alemã/europeia, que culminaria com um processo de unificação econômica (e política, para Woytinsky).

Levando em conta que a discussão feita por Simonsen nesse texto está informada pela teoria do comércio internacional de Manoilesco, que pressupõe que todas as nações devem atingir os níveis mais elevados na escala de produtividade, mesmo que isso acarrete a necessidade de proteção, a preocupação com as políticas de unificação internacional se torna mais importante. Ora, o resultado, no limite, do esquema teórico protecionista é que todas as nações internalizariam, via proteção, todos os setores industriais mais produtivos, levando a uma situação de autarquia generalizada: para garantir a continuidade do comércio internacional, dentro do modelo de Manoilesco, seria necessário adotar algum tipo de coordenação e integração em nível internacional, para que os países não se fechassem totalmente. Parece incoerente fazer a defesa do protecionismo e propor políticas de coordenação em nível internacional. Embora Simonsen não proponha isso explicitamente, essa contradição pode-se resolver com adoção, num arranjo do tipo união aduaneira (como foi o Zollverein alemão), de uma tarifa externa comum, que seja protecionista com relação à produção fora da união aduaneira e, ao mesmo tempo, favoreça as trocas comerciais no interior da união, por meio da redução de barreiras internas.

É claro que Simonsen estuda o caso alemão para chegar, no final de sua conferência, à industrialização brasileira, mas essas convergências com W. Woytinsky dão mostra de que a elaboração simonseniana está inserida nesse ambiente de história das ideias, em que se buscam medidas não-ortodoxas para a superação dos problemas econômicos.

8. Considerações finaisO período do século XX que medeia entre as duas guerras mundiais foi marcado por embates políticos e de

ideias, nos mais diversos níveis. No campo da história do pensamento econômico, houve um movimento de questionamento às ortodoxias vigentes, herdadas do século XIX, que ganhou sua expressão teórica mais bem-acabada com as elaborações de Keynes nos anos 1930. Todavia, mesmo antes de que se difundissem essas formulações teóricas, já estava em curso um movimento de questionamento ao receituário vigente de política econômica, uma série de rupturas, ambivalentes e condicionadas pelas conjunturas, com a forma estabelecida de se pensar a economia e de se fazer política econômica.

É nesse sentido que se relatou, neste artigo, a atuação de Wladimir Woytinsky e de Roberto Simonsen, que, ambos inseridos nas conjunturas em que atuavam, elaboraram propostas que tinham traços inovadores. Woytinsky, sempre preocupado com a questão europeia, escreve um livro em que defende a unificação do continente, a coordenação de esforços de racionalização produtiva e o estímulo ao consumo como formas de superação dos problemas colocados pela Primeira Guerra. No contexto da Grande Depressão, chega a propor um programa de obras públicas à social-democracia alemã, que não o adota. Já Simonsen, diretamente envolvido com as questões brasileiras, inclui, em sua carta à missão financeira de 1924, ideias relativas a uma política de substituição de importações, num momento em que a indústria brasileira se diversificava, com um sério problema de dependência externa. Essa defesa de medidas pró-indústria, por parte de Simonsen, se tornaria ainda mais robusta em 1931, quando Simonsen buscará argumentos entre autores coevos, como Manoilesco e Woytinsky. Mostrou-se que Simonsen e Woytinsky convergem no que se refere à adoção de políticas de estímulo à demanda, por meio de altos salários, como forma fundamental de se estimular uma economia fraca. Os custos deveriam ser reduzidos por esforços de racionalização e por economias de escala, isto é, por meio do planejamento da produção, mais do que pela diminuição dos salários.

Com isso, procurou-se evidenciar a existência de um ambiente internacional de questionamento à ortodoxia econômica, no qual circulavam ideias e informações, que os autores utilizavam na construção de suas argumentações relativas aos contextos nos quais estavam inseridos. Nesse sentido, Simonsen não está em contato com Woytinsky por acaso: trata-se de um ambiente de discussão econômica que apresenta certa coerência. Têm presença marcante a ideia de que o estímulo à economia deveria necessariamente passar pela demanda, com o aumento do poder aquisitivo dos salários e a concepção de que a evolução das economias é algo histórico e, por isso, não é irreversível: a industrialização teria o potencial de fazer as nações (sobretudo as atrasadas) rumarem para o progresso. A noção de

17

Page 18: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

um ambiente de difusão internacional de ideias é reforçada pela conexão, via Manoilesco, entre Simonsen e Woytinsky. Woytinsky compila dados, na Alemanha dos anos 1920, que mostram ser a indústria superior à agricultura em termos de produtividade. Manoilesco utiliza esses dados para dar suporte à sua teoria do comércio internacional, que advogava que os países deveriam, por meio da proteção, internalizar os diversos setores industriais, de modo a aumentar a produtividade nacional. Simonsen cita dados de Woytinsky, usados por Manoilesco, que atestam ser a indústria a atividade-chave dos países mais ricos do mundo, associando, assim, indústria e riqueza, industrialização e progresso. Essas referências cruzadas e as afinidades de ideias demonstradas são elementos importantes para se pensar o ambiente de questionamento à ortodoxia econômica no período entreguerras, do qual Roberto Simonsen certamente fazia parte.

REFERÊNCIAS

1. Textos de Manoilesco, Simonsen e Woytinsky

MANOILESCO, Mihail. (1931) Teoria do protecionismo e da permuta internacional. Rio de Janeiro: Capax Dei, 2011. Tradução de 1931 do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo.

SIMONSEN, Roberto. (1924) “Necessidade de estabilização cambial”. IN: SIMONSEN, Roberto. À margem da profissão: discursos, conferências, publicações. São Paulo: São Paulo Editora, 1932.

_____. (1931) “As finanças e a industria”. IN: SIMONSEN, Roberto. À margem da profissão: discursos, conferências, publicações. São Paulo: São Paulo Editora, 1932.

_____. (1937). História econômica do Brasil (1500-1820). 6ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

WOYTINSKY, Wladimir. Les États Unis de l’Europe. Bruxelas: Maison Nationale d’éditions L’Eglantine, 1927.

_____. Stormy Passage. Nova York: The Vanguard Press, 1961.

2. Bibliografia consultada

ABREU, Marcelo de Paiva e SOUZA, Pedro Carvalho Loureiro de. “ ‘Palatable foreign control’: British money doctors and central banking in South America”. Texto para Discussão, No. 597. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2011.

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. São Paulo: UNESP, 1996.

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento economico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 4ª edição. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

BOIANOVSKY, Mauro. “Friedrich List and the economic fate of tropical countries”. IN: Anais do 39º Encontro Nacional de Economia/ANPEC. Foz do Iguaçu: ANPEC, 2011.

BLAUG, Michael. Teoría económica em retrospección. 3ª edição. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2001. Tradução da 5ª edição norte-americana.

BRUZZI CURI, Luiz Felipe e CUNHA, Alexandre Mendes. “Redimensionando a contribuição de Roberto Simonsen à controvérsia do planejamento (1944-45): pioneirismo e sintonia”. IN: Anais do 39º Encontro Nacional de Economia/ANPEC. Foz do Iguaçu: ANPEC, 2011. CARDOSO, José Luís. “Reflexões periféricas sobre a difusão internacional do pensamento econômico”. IN: Nova Economia, vol. 19, nº 2. Belo Horizonte, 2009.

CEPÊDA, Vera Alves. Roberto Simonsen e a formação da ideologia industrial no Brasil – limites e impasses. São Paulo: FFLCH/USP, 2003. Tese de doutorado.

CLAVIN, Patricia. “‘Money talks’ – Competition and cooperation within the League of Nations”. IN: FLANDREAU, Marc. Money doctors: the experience of international financial advising 1850-2000. New York: Routledge, 2003.

DAVIDSON, Paul. John Maynard Keynes. São Paulo: Actual, 2011.

18

Page 19: Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky no período entreguerras

DIAS, Sônia. “Roberto Simonsen”. IN: Dicionário histórico-biográfico brasileiro: pós-1930. 2ª edição. Rio de Janeiro: FGV/CDPDOC, 2001. (pp. 5481-5485)

EICHENGREEN, Barry. A globalização do capital: uma história do sistema financeiro internacional. São Paulo: Ed. 34, 2000.

FANGANIELLO, Helena. Roberto Simonsen e o desenvolvimento econômico. São Paulo: FEA/USP, 1970.

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. “Sobre a intencionalidade da política industrializante do Brasil na Década de 1930”. IN: Revista de Economia Política. v.23. n.1(89). jan-mar/2003.

FURTADO, Celso. (1959). Formação econômica do Brasil. 34ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FRITSCH, Winston. “Apogeu e crise na primeira república”. IN: ABREU, Marcelo de Paiva (org.). A ordem do progresso. Rio de Janeiro: Campus, 1990.

GALBRAITH, John Kenneth. Uma viagem pelo tempo econômico. São Paulo: Pioneira, 1994

GOUREVITCH, Peter. Politics in hard times. Ithaca; London: Cornell University, 1986.

HOBSBAWM. Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LOVE, Joseph. A construção do terceiro mundo: teorias do subdesenvolvimento na Romênia e no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

PACKER, Ian. “Biography of Edwin Montagu”. Liberal Democrat History Group. Disponível em: <http://www.liberalhistory.org.uk/item_single.php?item_id=54&item=biography>. Acessado em: 20/04/2012.

SAES, Alexandre Macchione. Conflitos do capital: Light versus CBEE na formação do capitalismo brasileiro (1898-1927). Campinas: Unicamp, 2008. Tese de doutorado.

SAES, Alexandre Macchione; CYTRYNOVICZ, Monica Mussati; CYTRYNOVICZ, Roney. História da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Fecomércio 70 anos. São Paulo: Federação do Comércio, 2008.

SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origens e desenvolvimento. São Paulo: Hucitec, 2000.

19