o brasil e a crise haitiana - wladimir valler filho

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O BRASIL E A CRISE HAITIANAA COOPERAO TCNICA COMO INSTRUMENTO DE SOLIDARIEDADE E DE AO DIPLOMTICA

MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim Secretrio-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimares

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente

Embaixador Jeronimo Moscardo

INSTITUTO RIO BRANCO

Diretor

Embaixador Fernando Guimares Reis

A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira. Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847 Fax: (61) 3322 2931, 3322 2188 Site: www.funag.gov.br

WLADIMIR VALLER FILHO

O BRASIL E A CRISE HAITIANAA COOPERAO TCNICA COMO INSTRUMENTO DE SOLIDARIEDADE E DE AO DIPLOMTICA

Braslia, 2007

Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028 Fax: (61) 3411 9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected] Capa: Orlando Castao - Abstrao 200x250 cm - OST - Ass. 4 lados Equipe Tcnica Coordenao: Eliane Miranda Paiva Assistente de Coordenao e Produo: Arapu de Souza Brito Programao Visual e Diagramao: Paulo Pedersolli e Cludia Capella

Originalmente apresentado como tese do autor no 51 CAE - Instituto Rio Branco, Braslia, 2007.Impresso no Brasil 2007

Valler Filho, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana : a cooperao tcnica como instrumento de solidariedade e de ao diplomtica / Wladimir Valler Filho. Braslia : FUNAG, 2007. 396 p ... : il. ISBN 978-85-7631-082-2 1. Poltica interna Haiti. 2. Relaes internacionais Brasil:Haiti. 3. Cooperao tcnica internacional Brasil:Haiti. I. Ttulo. II. A cooperao tcnica como instrumento de solidariedade e de ao diplomtica.CDU 323(729.4) CDU 327(729.4:81) CDU 341.232(81-82:729.4-85)Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Decreto n 1.825 de 20.12.1907

SUMRIO

Abreviaturas ............................................................................................... 7 Mapa do Haiti ........................................................................................... 11 Introduo ................................................................................................ 13 Captulo I - Aspectos da Cooperao Tcnica Internacional ................... 23 1.1. Breve histrico ..................................................................................................... 25 1.2. A cooperao tcnica a partir de 1945 ................................................................ 29 1.3. A evoluo do conceito ...................................................................................... 34 1.4. Reflexo brasileira sobre a questo .................................................................... 44 Captulo II A cooperao tcnica no Brasil e a CTPD .......................... 59 2.1. Dos anos 30 ao Governo Luiz Incio Lula da Silva ....................................... 61 2.2. Instrumento complementar para o desenvolvimento ................................... 70 2.3. Aporte para a superao de obstculos ............................................................ 73 2.4. Uma agenda para o sculo XXI ......................................................................... 90 Captulo III Sistematizao e institucionalizao a partir de 1987 ....... 103 3.1.O Itamaraty como ator ...................................................................................... 105 3.2.A estruturao da Agncia Brasileira de Cooperao ...................................... 108 3.3.Compromisso em foros internacionais .......................................................... 114 3.4. Caractersticas da cooperao tcnica prestada ................................................. 125 3.5.Tendncias futuras .............................................................................................. 129 3.6.A Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa ........................................... 133 Captulo IV A crise haitiana de 2004 ................................................... 139 4.1.Breve histrico .................................................................................................... 141 4.2.A vacncia de poder e a resposta da ONU ...................................................... 151 4.3.A queda do Presidente Aristide ........................................................................ 153 4.4.Perfil da sociedade haitiana ................................................................................ 160 4.5.Evoluo do relacionamento bilateral ............................................................. 164

4.6.A Misso das Naes Unidas de Estabilizao no Haiti ............................... 167 Captulo V - A resposta brasileira estabilizao e reconstruo ........ 173 5.1. O Interim Cooperation Framework: ponto de partida ............................... 178 5.2. A Conferncia de Doadores de Washington ................................................. 182 5.3. A primeira misso de cooperao tcnica multidisciplinar e seus desdobramentos ...................................................................................... 184 5.4. Reunies e conferncias internacionais sobre o Haiti e as Mesas Setoriais .................................................................................................. 189 5.5. A criao do Ncleo de Cooperao na Embaixada do Brasil em Porto Prncipe ............................................................................................ 201 5.6. O brao civil da presena brasileira .............................................................. 202 Captulo VI O tema na agenda da diplomacia brasileira ..................... 209 6.1. O discurso oficial ............................................................................................... 211 6.2. Solidariedade: o conceito incorporado ........................................................... 219 6.3. Princpios ancilares da cooperao ................................................................... 226 6.4. O discurso traduzido em prtica ..................................................................... 229 Concluso ............................................................................................... 249 Bibliografia ............................................................................................ 269 Lista de Anexos ....................................................................................... 283 Anexos .................................................................................................... 285

ABREVIATURAS

ABC Agncia Brasileira de Cooperao AECI Agncia Espanhola de Cooperao Internacional ACNUR Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD Banco Internacional para Reconstruo e Desenvolvimento BNH Banco Nacional de Habitao CEBRI- Centro de Estudos Brasileiros de Relaes Internacionais CEPAL- Comisso Econmica para a Amrica Latina CIAGA Centro de Instruo Almirante Graa Aranha CIDA Canadian International Development Agency CSNU Conselho de Segurana das Naes Unidas CTI- Cooperao Tcnica Internacional CTPD- Cooperao Tcnica Prestada a Pases em Desenvolvimento CTRB - Cooperao Tcnica Recebida Bilateral CTRM - Cooperao Tcnica Recebida Multilateral ECOSOC UN Economic and Social Council EMBRAPA- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria FAO Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e Alimentao FMI Fundo Monetrio Internacional GTZ - Deutsche Gesellschaft fr Technische Zusammenarbeit ICAO Organizao de Aviao Civil Internacional ILANUD Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para Preveno do Delito e Tratamento do Delinqente INFRAERO- Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroporturia ITU Unio Internacional de Telecomunicaes JICA Japan International Cooperation Agency7

MCidades- Ministrio das Cidades MDA Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MDS- Ministrio do Desenvolvimento Social MI- Ministrio do Interior MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetizao MPU- Ministrio Pblico da Unio MIF - Multilateral Interim Force (2000) MIPONUH - United Nations Civilian Police Mission in Haiti (1997/ 2000) MINUSTAH- Misso das Naes Unidas de Estabilizao no Haiti MRE- Ministrio das Relaes Exteriores MS Ministrio da Sade MT Ministrio dos Transportes OIT Organziao Internacional do Trabalho ONG Organizao No-Governamental ONU Organizao das Naes Unidas OMM Organizao Meteorolgica Mundial OPAS/OMS Organizao Pan-Americana da Sade/Organziao Mundial da Sade PALOP- Pases de Lngua Oficial Portuguesa PSL - Partido do Socialismo e Liberdade PV Partido Verde PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente SELA Sistema Econmico Latino-Americano SGEC Subsecretaria-Geral de Cooperao e Comunidades Brasileiras no Exterior UN- HABITAT Programa das Naes Unidas para Assentamentos Humanos UNAIDS Programa das Naes Unidas sobre HIV/AIDS UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNCTAD United Nations Conference on Trade and Commerce8

UNFPA Fundo de Populao das Naes Unidas UNIC Centro de Informao das Naes Unidas para o Brasil UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia UNIFEM Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher UNMIH - United Nations Mission in Haiti (1993/1996) UNODC Escritrio das Naes Unidas contra Drogas e Crime UNOPS United Nations Office for Project Services UNSMIH - United Nations Support Mission in Haiti (1996/1997) UNTAET United Nations Transitory Administration in East Timor UNTMIH - United Nations Transition Mission in Haiti (1997) USAID United States Agency for International Development

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MAPA DO HAITI

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INTRODUO

INTRODUO

When you know us better, you will realize that we dont live on money here, we live on debts.You can always afford to kill a creditor, but no one ever kills a debtor. (Graham Greene, The Comedians)

Ao assumir o comando militar da Misso das Naes Unidas para a Estabilizao no Haiti em junho de 2004, no contexto da mais recente crise poltico-institucional haitiana, o Brasil passaria a ter, no plano externo, exposio adicional e, como corolrio, novas cobranas. No plano interno, a sbita repercusso provocou polarizao de opinies sobre essa questo, manifestaes favorveis e outras contrrias presena militar brasileira naquele pas.Vozes se levantaram no Congresso Nacional com o argumento de que, em vista dos parcos recursos materiais de que dispe o Pas, haveria outras prioridades para o dispndio do dinheiro pblico. Assim, lideranas de partidos da oposio PFL, PSDB e PDT e da base aliada PPS e PV , alm de diversos analistas polticos, jornalistas e acadmicos fizeram-se ouvir1. Diante da expectativa inicial dos custos da presena militar brasileira na ordemaproximada de 70 milhes dlares e do significado pouco expressivo da economia haitiana, a existncia de perspectiva de ganho econmico conforme chegou a ser aventado era fator obviamente excludente do rol das motivaes brasileiras.A deciso de enviar tropasNo Congresso Nacional, os deputados federais que num primeiro momento se manifestaram com veemncia contra a presena militar foram Fernando Gabeira (PV RJ) e Maninha (PSL - DF). Na imprensa, destaca-se o jornal O Estado de So Paulo.1

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ao Haiti e, posteriormente, estabelecer uma vertente de cooperao civil, enquadrava-se de modo exemplar no histrico da poltica externa brasileira, ao tempo que representava questo de princpio e coerncia aos ditames da causa da solidariedade internacional. No contexto de tantas expectativas e incertezas, alm do histrico de insucessos da ao estrangeira no Haiti, o Itamaraty se veria na contingncia de adotar uma postura mais ativa e de buscar caminhos alternativos que respondessem de forma rpida e com a necessria visibilidade a esse desafio externo e assegurassem a presena brasileira naquele pas. Essa poltica seria implementada num quadro de quase inexistncia do Estado haitiano, marcado pela desintegrao de suas instituies nacionais, fragmentao do tecido social e derrocada econmica sem precedentes em sua Histria recente2. O Conselho de Segurana da Organizao das Naes Unidas CSNU, pela Resoluo 1.542, de 30 de abril de 2004, criou a MINUSTAH com o objetivo de garantir a estabilidade, apoiar a reconciliao poltica e promover a retomada do desenvolvimento do pas. Ela substituiu a Fora Multinacional Interina, criada pela Resoluo 1.529 daquele mesmo ano, instrumento aprovado no dia em que o presidente Jean-Bertrand Aristide deixou o pas. A queda do presidente, provocada em grande parte pela presso e revolta de grupos internos, agravaria as condies de segurana - poca j bastante deterioradas e colocaria em situao de extrema vulnerabilidade expressivas parcelas da sociedade civil, que conviviam com nveis alarmantes de pobreza, insegurana e violncia.Da independncia, em 1804, at 2004, ano da queda do Presidente Jean-Bertrand Aristide, o Haiti teve 41 governantes. Desse total, um suicidou-se, o segundo rei do pas recm-independente, Henri Christophe; 28 foram destitudos ou levados a renunciar, por fora de golpes de Estado ou presses da oposio; 4 foram assassinados; 3 outros, o general Alexandre Ption, em 1818, Jean-Baptiste Rich, em 1847 e Franois Duvalier, em 1971, tiveram morte natural durante o exerccio de mandatos vitalcios e 3 durante o cumprimento de mandatos no-vitalcios Philippe Guerrier, em 1845, Florvil Hyppolite, em 1896 e Tancrde Auguste, em 1913. Em dois sculos como Estado independente, s Ertha Pascal-Trouillot chegaria ao final de um mandato constitucional. A partir de 1991, com a eleio de Jean-Bertrand Aristide, diversos golpes e contra-golpes se sucederiam e dariam origem a crises que levariam a diversas intervenes internacionais e se prolongariam at 2004.2

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Em 2004, foi entregue ao Representante Especial do SecretrioGeral das Naes Unidas, o Embaixador chileno Juan Gabriel Valds, a chefia da Misso3. Seu comando militar caberia ao Brasil, havendo sido designado para a funo o General Augusto Heleno Pereira Ribeiro4. A MINUSTAH, cujo mandato deveria ser renovado a cada seis meses, contava com uma fora total de 7.500 militares e 1.897 policiais. Imediatamente antes das eleies presidenciais de 2006, recrudesceram violentamente as hostilidades polticas e os enfrentamentos entre gangues urbanas, o que levaria o CSNU a autorizar a ampliao dos contingentes militar e policial at o final das eleies. Ainda em julho de 2004, o Brasil participaria da Conferncia de Doadores para o Haiti, realizada em Washington sob os auspcios do Banco Mundial, do BID, da Comisso Europia e do FMI. Nesse frum, a delegao brasileira reafirmaria o desejo do Governo de apoiar o esforo de reconstruo e recuperao scio-econmica e institucional do Haiti e assumiria o compromisso de realizar, no curto prazo, misso de avaliao para definir possveis projetos de cooperao. Por no ser o pas ainda doador de recursos financeiros, nos termos estipulados pela Ajuda Oficial ao Desenvolvimento ODA, a delegao brasileira ofereceu apoio em termos de cooperao tcnica, no entendimento de ser tal contribuio o instrumento mais adequado para proporcionar pronta resposta ao quadro de carncias exacerbadas gerado pela crise haitiana. As necessidades e prioridades para a reconstruo do Haiti seriam inventariadas por consultores estrangeiros no documento Interim Cooperation Framework ICF e serviriam de base para a Conferncia de Doadores de Washington. Esse diagnstico, embora genrico, forneceria elementos importantes para o processo de tomada de deciso brasileira, ao tempo em que determinaria o perfil da participao oferecida desde o primeiro momento.3 4

Substitudo pelo Embaixador guatemalteco Edmond Mullet em 2006. Substitudo pelo General Urano Teixeira da Matta Bacellar, em 2005, e este pelo General Jos Elito Carvalho de Siqueira, em janeiro de 2006.17

Em agosto de 2004, tendo o ICF como parmetro para suas aes, o Ministrio das Relaes Exteriores, por meio da Agncia Brasileira de Cooperao ABC, organizaria, coordenaria e enviaria a Porto Prncipe misso multidisciplinar composta por representantes de diversos Ministrios, rgos do Governo, instituies e entidades brasileiras de diferentes reas5. O diagnstico ampliado do quadro social e econmico haitiano habilitaria o Brasil, detentor de comprovada experincia tcnica em diversos campos, a atender s demandas dentro do esprito que norteia a cooperao tcnica brasileira. A resposta da poltica externa brasileira, em sua vertente instrumental da cooperao tcnica, crise haitiana, objeto do presente estudo, revestiu-se de componentes inditos, ao atualizar e aprimorar diversos procedimentos de atuao. Tais esforos merecem ser bem compreendidos e analisados, pois anteciparam comportamentos que podero, inclusive, consolidar-se e vir a nortear a cooperao tcnica brasileira nos prximos anos. De fato, a cooperao tcnica prestada pelo Brasil teve de adaptar-se rapidamente a uma realidade que impunha respostas singulares, imediatas e emergenciais. Para tanto, foram estabelecidas estratgias inusitadas e adotados novos procedimentos, ambos caracterizados por elevado nvel de consistncia, relevncia e impacto. O presente trabalho tem por objetivo, a partir do estudo de um caso especfico a crise haitiana e a participao brasileira nos esforos de reconstruo do pas analisar o papel da cooperao tcnica como instrumento de ao poltica capaz de responder s exigncias do tempo presente. O esforo permitir, ainda, reflexo conceitual sobre o que significa a cooperao tcnica. Pretende, tambm, elencar alguns elementos inditos da cooperao tcnica prestada a pases em desenvolvimento CTPD, aplicados no Haiti, que podero sinalizar certas tendncias futuras. Alm disso, o estudo buscar trazer luz argumentos que confirmariam a compatibilidade da atuao brasileira no Haiti com os princpios e a tradio5

Integraram a misso, alm de diplomatas da ABC, especialistas em agricultura, sade, saneamento, justia, defesa civil, organizao eleitoral, infra-estrutura, meio ambiente, recursos minerais e desenvolvimento social.

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da poltica externa e tambm com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, expressos em diversos documentos, tanto nacionais, quanto internacionais. Valendo-se de um critrio histrico, o presente trabalho procurar demonstrar a evoluo do pensamento, da ao e da conceituao da cooperao tcnica no Brasil. Tal demonstrao contribuiria para responder s questes levantadas por diversos setores da sociedade brasileira: Por que cooperar com o Haiti? Quais os riscos dessa cooperao? Quais seus limites? Como administrar eventual fracasso e potencializar o possvel sucesso? Prope-se, tambm, oferecer elementos de anlise para a compreenso da cooperao tcnica e de seu papel como instrumento de ao poltica, o que serviria para confirmar o grau de amadurecimento alcanado pela CTPD brasileira. Para tanto, os discursos e reflexes brasileiros em diferentes foros, com o fim de identificar, ao longo dos ltimos anos, as linhas permanentes da cooperao tcnica e os seus elementos inovadores, serviro como base principal de pesquisa. Nesse contexto ser de grande auxlio o tratamento histrico do desenvolvimento da cooperao tcnica e de sua vinculao com a poltica externa do Pas. A presente dissertao tambm recorrer anlise de expedientes telegrficos e memorandos do Ministrio das Relaes Exteriores que tratam do assunto. O tema do dever tico ou dever moral de cooperar ser igualmente examinado com o objetivo de se entender melhor o porqu de a cooperao prestada pelo Brasil ao Haiti ser considerada solidria. Alm disso, discorrer sobre o conceito de solidariedade luz de uma viso que parte da hiptese, que talvez possa ser julgada demasiado otimista, da unio de foras, da soma de esforos para mitigar dificuldades em prol de outrem, vinculando os conceitos morais sociedade das naes. O trabalho avana, com Norberto Bobbio, a idia de que a figura dentica originria o dever, no o direito. A pesquisa bibliogrfica sobre a cooperao tcnica internacional, em nvel governamental, revelou serem escassos os estudos disponveis nessa rea e, mais raros ainda, os que versam sobre a atuao brasileira, tanto em lngua portuguesa quanto em outros idiomas. Isso pode ser19

atribudo, em grande parte, ao fato de a cooperao tcnica tradicionalmente ter permanecido restrita ao mbito do Ministrio das Relaes Exteriores, pelo menos at a dcada de 90. Alm disso, para a implementao de projetos, o Itamaraty conta com parceiros na maior parte ou em sua quase totalidade governamentais, o que tem ensejado uma menor divulgao das aes levadas a cabo em pases em desenvolvimento, cujos resultados so registrados, na maior parte dos casos, em relatrios internos, habitualmente no divulgados e que permanecem nos arquivos institucionais. Por outro lado, com exceo de alguns professores que se dedicaram ao tema, e isso muito recentemente, pouco se tem discutido sobre cooperao, que tambm comea a aparecer como tema de teses de mestrado ou monografias de final de curso. A recorrncia s mesmas fontes institucionais acaba por implicar viso necessariamente fragmentada e pouco crtica sobre o assunto. O trabalho, em esforo tambm prospectivo, procurar aventar, sem preocupao exaustiva, condutas e aes que podero nortear a CTPD brasileira e reforar a percepo, que nem sempre existe de modo claro, do Brasil como parceiro empenhado no desenvolvimento econmico e social de outros pases. No apenas os de seu entorno imediato, a Amrica do Sul, mas tambm dentro do conceito mais amplo de fronteiras de cooperao.6 Sem dvida, a globalidade dos interesses externos do Brasil faz com que sua ao internacional no se restrinja s reas de relacionamento mais denso, como a Amrica do Sul, mas projete sua imagem em regies mais distantes, em pases da frica e sia tenhamos ou no com elas afinidades scio-culturais, como o caso de pases de expresso portuguesa e dos pases centro americanos e caribenhos.6. O conceito de fronteiras de cooperao pode ser encontrado em diferentes obras de Celso Lafer e tambm em diversos de seus discursos. A ele faz referncia na pgina 52 das Questes para a diplomacia no contexto internacional das polaridades indefinidas: notas analticas e algumas sugestes e tambm em Brasil: dilemas e desafios da poltica externa. Para ele, a consolidao pacfica do espao nacional foi responsvel para fazer do desenvolvimento o tema bsico da poltica externa nacional e criou condies para que o Brasil reafirmasse o componente sul-americano de sua identidade internacional. Este entendimento teria, na viso de Lafer, transformado fronteiras de separao em fronteiras de cooperao. Rio de Janeiro, Estudos Avanados, vol. 14, n 38, 2000.20

Um exerccio de cenrios pressupe sempre alguma dose de simplificao. Mais do que procurar apreender o futuro do Haiti nosso estudo de caso e da cooperao tcnica internacional, trata-se de identificar algumas tendncias, foras dominantes ou importantes num cenrio temporal previsvel, visualizando sua direo. E ainda, mais do que introduzir um elemento de prognstico do futuro, o que se pretende indicar possveis desdobramentos e formas de articulao na rea da cooperao tcnica entre pases em desenvolvimento. O presente exerccio de reflexo sobre a crise haitiana e a correspondente resposta do Brasil, ao iluminar certos aspectos da realidade daquele pas, pode ser til para melhor balizar a poltica externa e permitir a construo de estratgias alternativas nesse setor. Algumas recomendaes, com o intuito de permitir reflexo ampliada sobre possveis constrangimentos ou restries cooperao tcnica prestada pelo Brasil, sero tambm apresentadas neste trabalho.

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CAPTULO I ASPECTOS DA COOPERAO TCNICA INTERNACIONAL

CAPTULO IASPECTOS DA COOPERAO TCNICA INTERNACIONAL

Ce nest pas parce que les choses sont difficiles que nous nosons pas, cest parce que nous nosons pas quelles sont difficiles. (Sneca)

1.1. Breve histrico Por que os Estados cooperam entre si? Esta indagao, em geral, antecede as reflexes de quem se proponha analisar o tema da cooperao internacional, antes mesmo de buscar sua definio. Mas o que cooperar? O Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa define o termo como operar em obras simultaneamente; colaborar; prestar colaborao, servios, trabalhos em comum, ajudar, participar. O Ministro das Relaes Exteriores, Celso Amorim, em seminrio sobre cooperao internacional realizado no Rio de Janeiro, em 1994, observou que o tema da cooperao se presta a duas leituras :uma que privilegia a cooperao internacional e, em especial, a maneira como ela vem sendo desenvolvida pelo Brasil; e outra mais ampla, que veria nela uma discusso quase filosfica da condio atual das relaes entre os Estados7.

Na ocasio, o Ministro remeteria ao conceito da cooperao internacional como sendo uma idia fugidia. J os gregos teriam iniciado7

Ver: Perspectiva da Cooperao Internacional in: MARCOVITCH, Jacques e outros (org.): Cooperao internacional: estratgia e gesto. So Paulo: EDUSP, 1994, pp. 149150, pg.07.25

uma reflexo sobre o tema, pois Plato, no Livro I das Leis e muito mais tarde sobre o mesmo assunto se debruariam Hobbes e Maquiavel afirma que todos os Estados esto constantemente envolvidos numa incessante luta, uns contra os outros [...] pois a Paz [...] no passa de uma palavra. Tanto em Plato, como em outros autores gregos, o termo (sinergasa) tem o sentido de impedimento guerra. Na Itlia renascentista, em que pontificaram pensadores de agudo realismo como Maquiavel e Botero, a chamada Razo de Estado prevaleceria sobre qualquer considerao de ndole universalista e o mximo que se poderia aspirar era que o equilbrio de egosmos suprisse a ausncia de um ideal mais elevado. No sculo XVIII, o abade de Saint-Pierre8, negociador do Tratado de Utrecht de 1712-1713, inspirou-se nas complexas discusses diplomticas para conceber duas obras que o celebrizariam, Projeto de Paz Universal entre as Naes e Projeto para a Paz Perptua entre os Soberanos Cristos. Essas obras influenciariam Rousseau e so consideradas como a primeira viso da unificao europia, alm de terem servido de referncia e inspirao para os criadores da Liga das Naes, em 1919, e das Naes Unidas, que nelas, e mais ainda no pensamento de Kant9, encontrariam embasamento para a proposta de um mundo ps-nacional. No livro A Paz Perptua, datado de 1795, Kant postulou uma aliana entre os Estados, preservando suas liberdades, mas congregados8 Escritor, diplomata e acadmico francs (1658-1743) considerado precursor do Iluminismo. Na sua poca, foi reconhecido como grande idelogo e humanista e sua influncia marcaria a filosofia do sculo XVIII. 9 Filsofo alemo, representante do Iluminismo, e pensador influente (17241804), autor de vasta obra, considerado como o ltimo grande filsofo dos princpios da era moderna. Kant teve um grande impacto no Romantismo alemo e nas filosofias idealistas do sculo XIX, faceta idealista estimada como ponto de partida para o pensamento de Hegel. Alm dessa vertente idealista que iria desembocar na filosofia hegeliana e de Marx, alguns autores consideram que Kant fez no nvel da epistemologia uma sntese entre o Racionalismo (de Ren Descartes e Gottfried Leibniz, onde impera a forma de raciocnio dedutivo) e a tradio emprica inglesa (de David Hume, John Locke e George Berkeley, que valoriza a induo). Kant famoso sobretudo pela sua concepo conhecida como idealismo transcendental - todos ns trazemos formas e conceitos a priori para a experincia do/no mundo, os quais seriam de outra forma impossveis de determinar. A filosofia da natureza e da natureza humana de Kant historicamente uma das fontes do relativismo conceptual que dominou a vida intelectual do sculo XX.

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numa federao permanente que os protegesse da guerra, a partir do conceito de imperativo categrico que enunciava ser a paz um dever moral e vlida como lei universal, um fim em si mesma pois seria o nico estado no qual a razo pode ser alcanada. Kant via no Iluminismo do sculo XVIII sinais encorajadores da marcha da humanidade em direo paz perptua. No seu livro Idia de uma Histria Universal do Ponto de Vista Cosmopolita, ele esboaria um afresco histrico que anima esta idia. Partindo da histria grega at a histria poltica das naes esclarecidas, reconheceu um processo de melhoria sistemtica da constituio civil da nossa parte do mundo. Seriam necessrios alguns sculos de conflitos recorrentes e, sobretudo, o desastre da Primeira Guerra Mundial, com toda a sua seqela de destruies, para que a idia de aliana assumisse fora suficiente e viesse a traduzir-se em ao, com a criao da Ligas das Naes10, que contava, na sua origem, com 45 pases, dos quais 26 no-europeus. A Liga chegou a compreender 57 pasesmembros e tinha como objetivo assegurar a paz atravs de trs princpios fundamentais: respeito ao direito internacional, abolio da diplomacia secreta e resoluo de conflitos por meio da arbitragem. Os ideais que presidiram sua criao seriam enunciados por Woodrow Wilson e retomados no pacto que normatizava as relaes entre os estados-membros, todos empenhados, no momento inicial que se seguiu Conferncia de Versalhes, em renovar os bons propsitos de uma poltica de cooperao voltada para assegurar a manuteno da paz. No entanto, apesar de prever o direito de aplicar sanes econmicas e militares, a Liga no dispunha de fora de interveno armada e fracassaria quanto questo do desarmamento mundial. Lograria, por outro lado, algum xito10

Criada em abril de 1919, no contexto da Conferncia de Versalhes. A recusa do Congresso norte-americano em ratificar o Tratado de Versalhes impediu que os Estados Unidos se tornassem membro do novo organismo. A Liga possua uma Secretaria Geral permanente, sediada em Genebra, e era composta de uma Assemblia Geral e um Conselho Executivo. A Assemblia Geral reunia, uma vez por ano, representantes de todos os pases membros da organizao, cada qual com direito a um voto. J o Conselho, principal rgo poltico e decisrio, era composto de membros permanentes (Gr-Bretanha, Frana, Itlia, Japo e, posteriormente, Alemanha e Unio Sovitica) e no-permanentes, estes ltimos escolhidos pela Assemblia Geral. Em abril de 1946, o organismo dissolveu-se, transferindo as responsabilidades que ainda mantinha para a recm-criada Organizao das Naes Unidas, a ONU.27

como mediadora para pequenos conflitos que se seguiram, mas no o consenso de seus membros sobre reduo das foras armadas nacionais. Sua atuao foi bem-sucedida no arbitramento de disputas nos Blcs e na Amrica Latina, na assistncia econmica e na proteo a refugiados, na superviso do sistema de mandatos coloniais e na administrao de territrios livres, como a cidade de Dantzig. Mas ela se revelou impotente para bloquear a invaso japonesa da Manchria (1931), a agresso italiana Etipia (1935) e o ataque russo Finlndia (1939). O perodo histrico que se estende de 1919 a 1939, denominado entre-guerras, seria marcado por crises sucessivas que abalariam o frgil equilbrio sobre o qual repousava a ordem europia. Um novo conflito mundial seria fruto da incapacidade para se garantir uma paz estvel e promover a cooperao entre as Naes. Ao final da Segunda Grande Guerra, novo desenho viria presidir s relaes internacionais e as idias de cooperao ressurgiriam, juntamente com a esperana de uma paz duradoura. Dumbarton Oaks (1944), Bretton Woods (1944), Ialta (1945) e So Francisco (1945) so elos do processo que resultaria na Carta das Naes Unidas, assinada por representantes de 50 pases em junho de 1945 e ratificada em 24 de outubro do mesmo ano, quando foi instituda a Organizao das Naes Unidas11. Entre suasO Sistema da ONU est formado pelos seis principais rgos da Organizao, por Fundos ou Programas e pelas Agncias Especializadas. Atualmente as Naes Unidas tm 26 programas e agncias a ela vinculados, apesar de terem oramentos, regras e metas prprias. Todos os programas e agncias especializadas possuem rea especfica de atuao e nelas atuam tanto tcnica quanto humanitariamente. Seus funcionrios esto ligados ONU atravs de acordos internacionais e alguns desses rgos, programas e agncias so anteriores a criao da ONU, como, por exemplo, a Organizao Internacional do Trabalho -OIT, que existe desde 1919 ou a Unio Postal Internacional - UPI, criada em 1875.11

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competncias institucionais estavam arroladas a preveno de conflitos e a cooperao internacional. Nesse perodo, seriam enfatizadas preocupaes com a paz e a reconstruo da Europa e outras instituies internacionais seriam criadas, de modo a consolidar uma teia de cooperao entre estados. Aos temas econmicos seria conferida relevncia especial, vinculando-os ao conceito de desenvolvimento, muito embora, no curto prazo, o objetivo primeiro fosse o de evitar a reincidncia do quadro de recesso, desemprego e restries ao comrcio do perodo de entre-guerras. A criao de um Banco Mundial, originalmente concebido como Banco de Reconstruo, incluiria na sua designao a palavra desenvolvimento por presso dos pases latino-americanos e passou a denominar-se Banco Internacional para a Reconstruo e Desenvolvimento - BIRD12. Assim, a preocupao com o desenvolvimento passaria a ser, no perodo posterior Segunda Guerra, objeto declarado da cooperao, conceito incorporado na Carta das Naes Unidas, que provaria ser, nos anos subseqentes, essencial para a garantia da paz nos pases perifricos. 1.2. A cooperao tcnica a partir de 1945 O acelerado processo de descolonizao dos pases afro-asiticos, a renovada conscincia da Amrica Latina quanto a seu atraso estrutural e o deslocamento dos focos de tenso mundial do centro desenvolvido para a periferia, com guerras anticoloniais como as da Indochina e Arglia,12

A sigla BIRD vem de Banco Internacional para Reconstruo e Desenvolvimento, que, em conjunto com a Associao Internacional para o Desenvolvimento (AID) formam o que tradicionalmente conhecido como Banco Mundial. O BIRD a parte do Banco que faz emprstimos para os pases em desenvolvimento com renda per capita mdia, como o Brasil. J a AID, que menor que o BIRD, faz doaes e emprstimos sem juros para os pases mais pobres do mundo. O Grupo Banco Mundial formado por BIRD, AID e outras trs agncias: a Corporao Financeira Internacional (IFC - que empresta para empresas), a Agncia Multilateral de Garantia de Investimentos (AMGI - que faz seguros para investimentos nos pases em desenvolvimento), e o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI - que julga disputas sobre investimentos). As cinco agncias trabalham em conjunto para o objetivo final da reduo da pobreza. [http:/ /www.bancomundial.org.br/index.php/content/view_folder/2436.html]29

as revolues em Cuba e no Congo, trouxeram o tema do desenvolvimento para o palco dos debates internacionais. Os pases do Terceiro Mundo utilizariam a ONU como tribuna para suas reivindicaes, conjugando, muito especialmente, a independncia poltica com o desenvolvimento e brandindo, ao longo dos anos 60, a frase: a questo social a questo mundial. Em junho de 1967, tambm a Igreja catlica se manifestaria de modo inequvoco ao divulgar a encclica Populorum Progressio, tambm chamada encclica sobre o desenvolvimento dos povos. Nela, Paulo VI abordava questes relacionadas com a repartio da riqueza no mundo e propunha medidas polticas concretas conclamando as lideranas em prol de um desenvolvimento solidrio da humanidade, uma vez que o desenvolvimento o novo nome da Paz. As discusses sobre uma nova ordem econmica constituiriam nova etapa na lenta histria da afirmao e incluso dos pases do Sul no cenrio internacional e a Organizao das Naes Unidas desempenharia papel decisivo nessa estratgia de reconhecimento mundial. As independncias das ex-colnias transformaram a viso da ONU e modificaram seu funcionamento. O ponto de partida desse vasto movimento seria a conferncia afro-asitica de Bandung, em abril de 1955, na qual estavam representados 29 Estados e trinta movimentos de libertao nacional. Celso Furtado assinala que assim nasceria, em um contexto de exacerbao da guerra fria, no incio dos anos 60, o movimento de pases no-alinhados. Os pases do Terceiro Mundo afirmavam-se como uma terceira fora potencial, independente dos dois blocos hegemnicos, e, a partir desse momento, fariam da ONU sua tribuna de reivindicaes13. Na Amrica Latina, num contexto marcado pela posio de vanguarda de economistas como Ral Prebisch (durante anos secretrioexecutivo da Comisso Econmica para a Amrica Latina), Celso Furtado, Jos Maria Echevarra, Anbal Pinto, entre outros, as discusses sobre13

Ver Celso Furtado, Transformao e crise na economia mundial, pginas 143-159.

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questes estruturais como o terceiro-mundismo, o nacionalismo, as formulaes econmicas do modelo de substituio de importaes, abriram novos debates sobre dependncia, desenvolvimento, subdesenvolvimento, centro e periferia14. No vivo das discusses que eram travadas originadas entre acadmicos e intelectuais, e que galvanizavam a vida pblica latinoamericana, a Organizao das Naes Unidas inseriria em sua agenda o tema do desenvolvimento, vinculando-o ao comrcio, e o faria convocando a I Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento UNCTAD, cujo primeiro Secretrio-Geral seria o argentino Ral Prebischm, que nesse posto permaneceria at 1969, impregnando-a com o esprito cepalino. A UNCTAD iria sustentar estratgias com vistas autonomia industrial dos pases do Sul e apoiar a poltica de substituio das importaes, ao reconhecer que a independncia poltica acabaria por tornar-se uma fico, caso as regras do mercado mundial continuassem a ser usadas em detrimento dos pases em desenvolvimento. A Conferncia indicaria ainda os elementos essenciais para a elaborao de poltica internacional de comrcio e desenvolvimento, resultado da nova diviso internacional do trabalho, mais racional e eqitativa, acompanhada dos necessrios ajustes da produo e do comrcio mundiais. Naquele momento, e esse pensamento perduraria pelas14

Uma avaliao histrica desse perodo pode ser encontrada em Cinqenta anos do Pensamento da Cepal de Ricardo Bielchovsky (2000) e em Progresso, Pobreza e Excluso: Uma Histria Econmica da Amrica Latina no sc. XX, de Rosemary Thorp (2000). E sobre o tema da mudana do perfil do desenvolvimento no Brasil, com a passagem da estrutura agrrio-exportadora para a de substituio de importaes ver estudos de Celso Furtado, Caio Prado Jr., Bresser Pereira e Ricardo Bielschovsky. As publicaes da CEPAL constituem a principal referncia e fonte de informao das disciplinas. Os trabalhos de Celso Furtado, Maria da Conceio Tavares, Wilson Cano, Ricardo French-Davis e Ral Prebisch so tambm largamente difundidos e destacam-se no conjunto. As obras de maior importncia dos autores citados so: Auge e Declnio do Processo de Substituio de Importaes no Brasil de Maria da Conceio Tavares (1963); Anos de Soberania e Poltica Econmica na Amrica Latina de Wilson Cano (1998); Dependncia e Desenvolvimento de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falletto (1970); O Desenvolvimento Econmico da Amrica Latina e Alguns de seus Problemas Principais de Raul Prebisch (1949) e Formao Econmica da Amrica Latina de Celso Furtado (1970).31

dcadas seguintes, acreditava-se que o aumento da produtividade e do valor agregado dos bens e produtos dos pases em desenvolvimento contribuiria para o crescimento econmico dos pases industrializados e se converteria em instrumento de prosperidade mundial. no contexto das discusses e dos debates sobre a necessidade de cooperar para desenvolver, debates que se somariam s presses para a construo scio-poltica e econmica mundial, que surgiriam novas agncias e programas das Naes Unidas, futuros e fundamentais mecanismos da cooperao multilateral. A estrutura original da ONU se ampliaria at conter 26 programas e agncias especializadas, com oramentos prprios, regras e metas especficas, cobrindo reas diversas: da educao moradia, do trabalho infncia15. Estaria fora do alcance do presente trabalho reconstruir toda a histria da cooperao tcnica internacional. importante frisar, no entanto,15

So agncias e programas da ONU: ACNUR Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados BIRD Banco Internacional para Reconstruo e Desenvolvimento CEPAL - Comisso Econmica para a Amrica Latina ECOSOC UN Economic and Social Council FAO Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e Alimentao FMI Fundo Monetrio Internacional ICAO Organizao de Aviao Civil Internacional ILANUD Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para Preveno do Delito e Tratamento do Delinqente ITU Unio Internacional de Telecomunicaes OIT Organizao Internacional do Trabalho OMM Organizao Meteorolgica Mundial OPAS/OMS Organizao Pan-Americana da Sade/Organizao Mundial da Sade PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente SELA Sistema Econmico Latino-Americano UN- HABITAT Programa das Naes Unidas para Assentamentos Humanos UNAIDS Programa das Naes Unidas sobre HIV/AIDS UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNCTAD United Nations Conference on Trade and Commerce UNFPA Fundo de Populao das Naes Unidas UNIC Centro de Informao das Naes Unidas para o Brasil UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia UNIFEM Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher UNODC Escritrio das Naes Unidas contra Drogas e Crime USAID United States Agency for International Development

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que essa modalidade de cooperao teve seus fundamentos formulados a partir do imediato ps-guerra e coincidiria com os processos de descolonizao e emancipao posteriores a 1945. Nessa conjuntura, discusses sobre cooperao seriam promovidas e, para a consecuo dos objetivos propostos com a criao da ONU, alm do BIRD, seria tambm criado um Fundo Monetrio Internacional FMI. Num cenrio internacional marcado pela tenso da crescente disputa entre americanos e soviticos para consolidar e expandir suas respectivas reas de hegemonia, essas iniciativas marcaram um consenso das naes em favor da preservao da paz e da estabilidade do sistema internacional, condicionando-o ao tema do desenvolvimento. Dito de outra forma, essas novas premissas impulsionaram a promoo da cooperao e da solidariedade internacionais, trazendo-as para o ncleo dos debates multilaterais. No perodo compreendido entre 1945 e 1949, a cooperao tcnica centrava-se no que seria a ajuda para a reconstruo da Europa e para o desenvolvimento em escala mundial, ajuda essa vital para a montagem dos sistemas de alianas das duas superpotncias e da preservao de suas respectivas esferas de influncia. Em 1948, a Assemblia Geral da ONU, por meio da Resoluo 200, instituiria formalmente a assistncia tcnica internacional e por meio dela lanaria seu programa multilateral. Por assistncia tcnica entendia-se a transferncia, em carter no comercial, de tcnicas e conhecimentos, atravs da execuo de projetos a serem desenvolvidos em conjunto entre atores de nvel desigual de desenvolvimento prestador e recipiendrio envolvendo peritos, treinamento de pessoal, elaborao de material bibliogrfico, aquisio de equipamentos, realizao de estudos e pesquisas (Anexo I). Data desse mesmo ano a adoo da Declarao dos Direitos do Homem, primeiro instrumento internacional que enunciava no s direitos de carter civil e poltico, como tambm os de natureza econmica, social e cultural. Coerente com a polarizao poltica do momento, marcado pelo antagonismo Leste-Oeste, seria lanado em 1949 o I Programa de33

Assistncia Tcnica Bilateral dos Estados Unidos para os Pases Subdesenvolvidos, que privilegiava o aspecto de ajuda ou assistncia e abria caminho para que esta fosse utilizada com fins econmicos ou ideolgicos. A anlise do texto do Programa evidencia o carter de prinvestimento da ajuda que favorecia empresas ou servios norte-americanos e consolidava uma estrutura de desigualdade e dependncia. 1.3. A evoluo do conceito As Naes Unidas representariam uma importante conquista internacional, uma vez que sua antecessora, a Liga das Naes, no previa qualquer mecanismo de construo da paz, mas to-somente rgos de preveno da guerra. A Carta da ONU estabelece em seu Prembulo o princpio da promoo do progresso social e a melhora das condies de vida e reconhece a importncia de um mecanismo internacional que promovesse o progresso econmico e social de todos os povos. Esse documento tambm enumera, em seu artigo 1, o propsito de promover a cooperao internacional para minorar os problemas de carter econmico, social, cultural ou humanitrio e promover e estimular o respeito aos direitos humanos e s liberdades fundamentais, sem distino de raa, sexo, lngua ou religio. Os princpios da cooperao internacional seriam estabelecidos nos artigos 55 e 56 do captulo IX da Carta, com fundamento na igualdade de direitos e na autodeterminao dos povos. Os dois artigos tratam da cooperao internacional, indispensvel para criar as condies de estabilidade e bem-estar necessrias s relaes pacficas e amistosas entre as naes. Para tanto, deveria ser favorecida a soluo de problemas internacionais de ordem econmica, social e sanitria. O texto do artigo 56 revela um carter mandatrio na medida em que, para a realizao dos propsitos enumerados no artigo 55, insta todos os membros da Organizao a se comprometerem a agir em cooperao com esta, em conjunto ou separadamente. Conceituar o que se entende por cooperao tcnica internacional necessrio, pois a matria no pacfica e est longe de traduzir34

entendimento universal. Em verdade, esse conceito representa um consenso tnue entre as posies paternalistas dos pases desenvolvidos e as reivindicaes daqueles em desenvolvimento no que diz respeito a relaes internacionais equnimes. Subjacente a ele, trata-se, de fato, da existncia do direito ao pleno desenvolvimento econmico e social, direito que seria inalienvel e independeria da vontade unilateral dos pases prestadores de cooperao. Para melhor situar a evoluo do conceito de cooperao tcnica, recorre-se ao vocabulrio das relaes internacionais dos anos 60. O termo assistncia tcnica est registrado no Dictionnaire de la Terminologie du Droit International como expresso empregada para designar a ajuda fornecida pelos Estados com estrutura econmica adiantada aos pases insuficientemente desenvolvidos, a fim de colocar disposio destes os meios tcnicos que lhes fazem falta para promover suas economias. A assistncia tcnica consiste, pois, em ajuda diversificada e em princpio gratuita, fornecida por mecanismos internacionais em proveito dos Estados subdesenvolvidos. No mesmo dicionrio o verbete coopration aparece como a ao de trabalhar conjuntamente com outros. Na expresso cooperao internacional, esse termo visa, em geral, ao coordenada de dois ou mais Estados, com vistas a atingir resultados por eles julgados desejveis. J o termo assistance technique est ligado idia de ajuda. Esta, na poca em que passou a ser empregada, correspondia noo que os pases desenvolvidos tinham do subdesenvolvimento e dos meios para remedi-lo. O subdesenvolvimento era analisado como um atraso que se poderia superar por meio da assistncia tcnica e financeira. Tal concepo conduzia, na maioria dos casos, como se pode inferir, perpetuao da dependncia, revelando-se inadequada porque, a partir dos debates da UNCTAD, e em especial da Rodada Tquio do GATT (1973-79)16, j no se utilizava a terminologia pases subdesenvolvidos, mas pases em vias de desenvolvimento.16

Com a instituio do GATT, tentou-se estabelecer um mecanismo regulatrio mediante a criao de um conjunto de regras que permaneceriam vigentes at o momento da instalao da Organizao Internacional do Comrcio, em 1995. A stima rodada do GATT (19731979) conhecida como a Rodada de Tquio. Pela primeira vez o GATT tratou da questo das barreiras no-tarifrias, estabeleceu cdigos de conduta referentes a tais barreiras e consolidou a adoo do tratamento preferencial aos pases em vias de desenvolvimento.35

Aos poucos, o termo assistncia tcnica foi sendo substitudo por cooperao tcnica17, conforme determinou a Resoluo 1.383 da Assemblia Geral da ONU, de 1959. No se tratava, contudo, de mera questo vocabular, mas de uma mudana de enfoque. A alterao contemplava a idia do direito ao desenvolvimento, conjugado com o dever de cooperao por parte dos pases industrializados, dentro dos princpios anunciados na Carta da ONU. De fato, autores como Guido Soares e Peter Knz afirmam que a noo de cooperao tcnica traz em si os sentidos de tica e de eqidade e se baseia no interesse mtuo, na ajuda para fins de desenvolvimento, e vo alm ao reconhecerem que o Estado receptor tem de encontrar meios para que a cooperao no somente cumpra com suas propostas e objetivos, mas tambm possa multiplicar-se. Ao longo dos anos 50, prevaleceria o conceito de ajuda ou assistncia internacional para minorar os efeitos do subdesenvolvimento, desconsiderando-se sua acepo de capacitao para o desenvolvimento. No final dessa dcada, no entanto, despontariam as primeiras crticas ao bipolarismo entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica e suas respectivas reas de influncia. A engenharia jurdica da Carta da ONU, por um lado, instaurava um sistema de segurana coletiva e de cooperao internacional. Por outro, admitia regime de tutela para alguns pases do Sul e ignorava e ao fazlo legalizava a administrao dos povos colonizados. Em 1945, embora o direito internacional tivesse de adaptar-se necessidade de neutralizar o nascente conflito Leste-Oeste, manteria a expresso clssica das relaes de foras interestatais, nas quais o Terceiro Mundo ainda no encontrara lugar. Ao concentrar-se sobre a grave questo da interdio do recurso guerra, a ONU permitiria que ficasse intacta a questo da dominao econmica, epicentro da geopoltica Norte-Sul. Ao mundo polarizado ideologicamente entre o capitalismo e o comunismo, marcado pela Guerra Fria, superpunha-se a dicotomia entre17

In: MARCOVITCH, Jacques e outros (org.), Cooperao internacional: estratgia e gesto. So Paulo: Ed. EDUSP, 1994, pp.169.

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o desenvolvimento econmico Norte-Sul18. Aproximadamente dois teros da humanidade viviam sob o signo trgico do subdesenvolvimento no chamado Terceiro Mundo, termo concebido em 1952 por um economista e demgrafo francs19 por assimilao ao Terceiro Estado do Antigo Regime e que pretendia designar o conjunto dos pases que no pertenciam nem ao bloco ocidental, nem ao bloco comunista. Novos conflitos armados eclodiriam em diferentes partes do mundo, aos quais se juntariam a expanso do arsenal de armas nucleares, a corrida espacial, a construo do Muro de Berlim e a descolonizao da frica e da sia mediante cruentas guerras de independncia, que por sua vez engendrariam o surgimento de novos Estados, logo reunidos no movimento que se queria o dos pases no-alinhados. A origem do Movimento pode ser encontrada na Conferncia sia-frica, que reuniu dirigentes de 29 pases na Indonsia, em 1955, para debater preocupaes comuns e coordenar posies no campo das relaes internacionais. Nessa Conferncia, seriam enunciados os Dez Princpios de Bandung, que deveriam orientar as relaes entre as naes grandes e pequenas, adotados posteriormente como os principais fins e objetivos da poltica de no-alinhamento, e definidos os critrios para pertencer ao Movimento. Dentre eles, a promoo dos interesses mtuos e da cooperao, coerentes com o respeito justia e s obrigaes internacionais. A Primeira Conferncia dos Chefes de Estado e de Governo No-Alinhados se reuniria em Belgrado, de 1 a 6 de setembro de 1961, por iniciativa dos lderes polticos Tito, Nasser, Sukarno, Chu En-Lai e Nehru. Delegaes de 25 pases sendo que da Amrica Latina o nicoOs autores Guy Feuer e Herv Cassan, em estudo intitulado Droit International du Dveloppement (Dalloz, 1985), estudaram a questo da perpetuao da dependncia em aes de cooperao internacional e os vnculos entre cooperao tcnica e cooperao comercial/econmica, que marcaram a Cooperao Norte-Sul. 19 Em artigo publicado na revista LObservateur, em 14 de agosto de 1952, Alfred Sauvy, que tambm foi assessor do Governo Mends-France, escreveria : Car enfin ce Tiers Monde ignor, exploit, mpris comme le Tiers-tat, veut, lui aussi, tre quelque chose . No final de sua vida, rejeitaria o uso da expresso por considerar que ela mascarava uma realidade que inclua na mesma denominao pases da frica negra e os emergentes tigres asiticos.18

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pas participante foi Cuba estabeleceram oficialmente o Movimento dos Pases No-Alinhados, sobre uma base geogrfica mais ampla. Com a independncia de ex-colnias, novos pases se associaram ao Movimento dos No-Alinhados, que passou a contar com mais de cem membros. Sucederam-se diversas conferncias sobre a questo do desenvolvimento, o que contribuiu para a consolidao do Movimento, como as do Cairo em 1964, da Arglia em 1973, de Havana em 1979 e de Belgrado em 1989. Mas seria a criao da UNCTAD que marcaria a primeira vitria do Terceiro Mundo. Em anlise retrospectiva, o Embaixador Rubens Ricpero, que dcadas mais tarde, em 1995, viria a ser Secretrio-Geral da UNCTAD, afirmaria que a descolonizao havia mudado a paisagem internacional e validado uma promessa no apenas de independncia poltica, mas tambm de desenvolvimento e de justia social para os milhes de indivduos que pertencem aos povos at ento esquecidos. Como resultado da presso dos pases subdesenvolvidos, para usar a terminologia da poca, a Assemblia Geral da ONU, em 1959, por meio da Resoluo 1.383, resolveu rever o conceito de assistncia tcnica e o substituiu pela expresso cooperao tcnica, retomando o ideal de cooperao em termos mais equnimes, uma vez que esta expresso pressupe a existncia de partes (Estados) iguais/desiguais (mais desenvolvidos e menos desenvolvidos) e representa uma relao de trocas e interesses mtuos. Na perspectiva dos pases do Terceiro Mundo, as relaes de cooperao deveriam ser um instrumento para impulsionar seus processos de desenvolvimento e no mera assistncia tcnica, vinculada a fins polticoestratgicos. As crticas que eram formuladas combatiam a idia-conceito de desenvolver o subdesenvolvido atravs de ajuda, o que se traduzia sempre em aes de cunho paternalista e da existncia, por um lado, de um doador (fonte principal e exclusiva de recursos e de conhecimento tcnico) e, por outro, de um receptor passivo desses recursos. Estudos e intensos debates em foros internacionais conduziriam evoluo do conceito de cooperao internacional, cujas principais38

modalidades seriam gradualmente delimitadas: econmica, cientfica e tecnolgica, poltica, cultural e tcnica. Na dcada de 60, a cooperao tcnica internacional passaria a ser considerada como uma alternativa para a captao de tecnologia por parte dos pases do Terceiro Mundo, enquanto os pases prestadores ou ofertantes veriam nela uma oportunidade para fortalecer seus interesses e sua presena no exterior. Embora o conceito de cooperao tenha, na sua origem, sido marcado pelos primeiros programas emergenciais para a reconstruo da Europa, isto , o discurso sobre a cooperao internacional passaria a incluir pouco a pouco a dimenso da tcnica voltada para o desenvolvimento. Do ponto de vista da Carta das Naes Unidas, o desenvolvimento e as agncias operacionais voltadas para a sua promoo deveriam, no longo prazo, no apenas lograr alcanar os objetivos enunciados na Declarao Universal dos Direitos do Homem e na Conveno de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, como tambm reduzir as tenses internacionais. Aps longos anos de colonizao, colocados diante de dificuldades econmicas aparentemente insuperveis, entraves ao to almejado sonho de desenvolvimento, alguns lderes do Terceiro Mundo aliaram-se, conscientes de que sua unio poltica poderia representar a fora necessria para que fossem questionadas as relaes Norte-Sul. Para Celso Furtado, o quarto de sculo que se concluiu nos primeiros anos do decnio de setenta constitui um dos perodos mais exitosos do desenvolvimento da economia capitalista, com forte tendncia concentrao geogrfica da renda, em benefcio dos pases que constituam o centro do sistema, ou seja, o grupo de economias que, tendo avanado precocemente na acumulao de capital, controlavam a criatividade tcnica e definiam o estilo de desenvolvimento. De fato, a acelerao do crescimento exacerbou duas tendncias do sistema: a concentrao da renda em benefcio do centro e a agravao das desigualdades sociais nos subsistemas perifricos. Nos dois casos, acentuando tendncias seculares, com o aprofundamento da deteriorao dos termos de intercmbio dos pases de economia dependente.39

Em 1973, a Conferncia de Argel reuniria 75 pases no-alinhados, que apresentaram um programa destinado a reverter as relaes de fora internacionais, clamando pela diminuio das medidas protecionistas com relao aos produtos provenientes do Terceiro Mundo e a nacionalizao dos recursos naturais. Mais uma vez pressionada pelos pases do Terceiro Mundo, que nesse momento j representavam a maioria na Assemblia Geral, a ONU, atravs da UNCTAD, escutaria as exigncias formuladas e adotaria por consenso um programa de ao relativo instaurao de uma Nova Ordem Econmica Internacional NOEI. Algumas iniciativas que se seguiram, como os Acordos de Lom (1975), representaram sensvel avano no dilogo Norte-Sul ao abolirem as taxas alfandegrias das exportaes da frica, Caribe e Zona ACP do Pacfico para a Comunidade Econmica Europia. Essas medidas revelaram-se eficazes por menos de 20 anos, pois no resistiram onda de globalizao e do livre comrcio. A vitria inicial alcanada na Conferncia de Argel, que fora marcada pela elevao do preo do petrleo pelos pases da OPEP (aumento que quadruplicaria em um ms o preo do barril at atingir, dez anos mais tarde, catorze vezes seu preo inicial) se revelaria como uma vitria de Pirro. No perodo que se estendeu desde a Guerra-Fria, o Terceiro Mundo consolidou uma dependncia econmica em relao ao Norte, que, por sua vez, no aceitava facilmente as transformaes de uma ordem que o beneficiava e dividia o mundo entre zonas de abundncia e de pobreza absoluta. Assim, a utopia representada pela NOEI no perdurou e logo se veria reduzida a uma simples declarao de princpios, apesar das inmeras conferncias que engendrou. As crises representadas pela alta do preo do petrleo levariam a uma recesso internacional a partir dos anos 80, que afetou os pases do Norte e os levou a fechar seus mercados aos produtos concorrentes. Com a queda do Muro de Berlim, atenuou-se o antagonismo Leste-Oeste e os pases em desenvolvimento, mais uma vez, perderam tanto em termos polticos quanto econmicos, pois os recursos at ento disponveis para cooperao internacional foram redirecionados para o fortalecimento das economias internas dos pases desenvolvidos.40

Diante de crescentes dificuldades apresentadas para a implementao de aes de cooperao, o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD20, organismo operacional composto por membros eleitos pelo Conselho Econmico e Social ECOSOC, desdobrou-se, em 1978, com criao de uma unidade especial encarregada de promover a cooperao tcnica entre pases em desenvolvimento, a Special Unit for South-South Cooperation, com mandato para promover, coordenar e apoiar a cooperao entre pases em desenvolvimento, a partir das diretrizes fixadas pelo Comit de Alto Nvel sobre Cooperao SulSul (High Level Committee on South-South Cooperation). Retomavam-se, ento, as discusses sobre cooperao que passaria a ser conhecida como cooperao Sul-Sul ou cooperao horizontal iniciadas nos idos de 1964, por ocasio da I UNCTAD. Para contornar as limitaes impostas, a Assemblia Geral da ONU, por meio da Resoluo 2.974, de 1972, determinaria a criao de um grupo de trabalho ad hoc para estudar mecanismos que incrementassem a cooperao e analisar as possibilidades da cooperao tcnica regional e internacional. Ao longo da dcada de 70, registrar-se-iam importantes declaraes sobre a cooperao tcnica Sul-Sul, seja por parte do Movimento dos Pases No-Alinhados, seja por parte do Grupo dos 7721. O ponto culminante desse novo pensar foi a convocao de uma conferncia em que ficou estabelecido que a cooperao tcnica entre pases em desenvolvimento no substituiria os programas tradicionais de cooperao, fossem bilaterais ou multilaterais, mas a eles se acrescentaria.O PNUD seria institudo em 22 de novembro de 1965, por meio da Resoluo 2.029 da Assemblia Geral da ONU. 21 Criado em 15 de junho de 1964 por pases em desenvolvimento signatrios da Declarao Comum dos 77 Pases publicada ao final da I Sesso da UNCTAD, em Genebra. A primeira reunio ministerial do Grupo, em Argel, em 1967, adotou uma Carta, que contemplava a uma estrutura institucional permanente. Embora tenham aderido ao Grupo outros 133 pases, conservou-se o nome original por seu significado histrico. Representa a maior coalizo do Terceiro-Mundo nas Naes Unidas e fornece os meios para que os pases em desenvolvimento possam articular e promover seus interesses econmicos coletivos, aumentar sua capacidade de presso sobre as principais questes econmicas internacionais no sistema da ONU, alm de promover a cooperao econmica e tcnica entre esses pases.20

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Foi ento elaborado o Plano de Ao de Buenos Aires, que a Assemblia Geral transformou na Resoluo 33/134, de 19 de dezembro de 1978 (Anexo II). A cooperao tcnica entre os pases em desenvolvimento, ou simplesmente, CTPD, nasce, pois, a partir do reconhecimento da urgncia e da dimenso dos problemas com os quais a comunidade mundial se defrontava, bem como daqueles que haveria de enfrentar no futuro. Os problemas de desenvolvimento social e econmico, nacional e internacional exigiam esforos concertados tanto dos pases em desenvolvimento, quanto dos pases desenvolvidos para que pudesse ser convertida em realidade a nova ordem econmica internacional. Sem negar que o progresso dos pases em desenvolvimento dependia, em primeiro lugar, de seu prprio empenho, seu xito seria tambm influenciado pela poltica e pela atuao dos pases desenvolvidos. Por outro lado, tornavase claro que o progresso dos prprios pases desenvolvidos estava afetado, num quadro de crescente interdependncia, pela poltica e pela atuao dos pases em desenvolvimento. Nessa etapa em direo a uma nova ordem econmica internacional, a CTPD assumiria uma importncia crtica: em primeiro lugar, seria um meio para fomentar uma cooperao mais ampla e efetiva entre os pases em desenvolvimento. Em segundo lugar, seria fora decisiva para organizar e fomentar o desenvolvimento, ao transferir ou partilhar conhecimentos e experincias. Sob essa tica, o Plano de Buenos Aires acabou por constituirse em documento bastante completo. A ele dedicaram-se, por cerca de cinco anos, grupos de peritos que, em reunies intergovernamentais, quer na sede do PNUD, quer em outros organismos ou agncias do sistema das Naes Unidas para o desenvolvimento, detalhariam necessidades e possibilidades de cooperao tcnica Sul-Sul em nvel nacional e regional. Na Conferncia de Buenos Aires centenas de especialistas do setor pblico, provenientes de todo o mundo, 45 ministros de estado, 41 secretrios-gerais, 81 diretores de departamentos de planejamento e cooperao para o desenvolvimento estudaram e42

debateram cada linha do projeto. Adotado in limine por 138 Estados, propunha: Fomentar la capacidad de los pases en desarrollo para valerse de medios propios mediante el aumento de su capacidad creadora para encontrar soluciones a los problemas de desarrollo en consonancia con sus propios valores, aspiraciones y necesidades especiales; Promover y reforzar entre los pases en desarrollo la capacidad colectiva para valerse de medios propios intercambiando experiencias, compartiendo y utilizando sus recursos tcnicos en forma combinada y desarrollando capacidades complementarias; Fortalecer la capacidad de los pases en desarrollo para identificar y analizar colectivamente los principales problemas con que tropiezan en su desarrollo y para formular las estrategias necesarias para dirigir sus relaciones econmicas internacionales, mediante la mancomunidad de los conocimientos de que se dispone en esos pases y mediante estudios conjuntos realizados por las instituciones existentes, con miras a establecer el nuevo orden econmico internacional; Aumentar el volumen y mejorar la calidad de la cooperacin internacional y aumentar la eficacia de los recursos dedicados a la cooperacin tcnica general mediante la mancomunidad de capacidades; Fortalecer la capacidad tcnica existente en los pases en desarrollo incluido el sector tradicional, aumentar la eficacia con que se utiliza esa capacidad y crear nuevas capacidades y posibilidades, y en este contexto promover la transferencia de tecnologia y pericia apropiadas para los recursos de que disponen esos pases y para su potencial de desarrollo, de modo que se afiance su confianza individual y colectiva en sus propias capacidades; Aumentar y perfeccionar las comunicaciones entre los pases en desarrollo que lleven a una conciencia ms elevada de los43

problemas comunes y a un acceso mayor a los conocimientos y experiencias disponibles as como a la creacin de nuevos conocimientos para enfrentarse con los problemas del desarrollo; Perfeccionar la capacidad de los pases en desarrollo para absorber y adaptar la tecnologa y la pericia requeridas para satisfacer sus necesidades especficas de desarrollo; Reconocer y solucionar los problemas y necesidades de los pases en desarrollo menos adelantados, sin litoral, insulares y ms seriamente afectados. Hacer que los pases en desarrollo estn en condiciones de lograr un mayor grado de participacin en las actividades econmicas internacionales y ampliar la cooperacin internacional. A Conferncia de Buenos Aires representou importante etapa nos debates sobre uma nova ordem econmica internacional. Nela, a CTPD, de fato, veio a ser reconhecida como um instrumento hbil para gerar comunicao e fomentar um dilogo amplo e efetivo entre os pases em desenvolvimento. Constituiu-se em referncia na discusso do tema e representou contribuio inequvoca para que esses pases pudessem, na poca, iniciar, organizar e fomentar polticas nacionais de desenvolvimento. 1.4. Reflexo brasileira sobre a questo Em 1993, em nota introdutria s Reflexes sobre a Poltica Externa Brasileira, resultado de discusses internas e de seminrios organizados pelo Itamaraty com a participao de amplos setores da sociedade brasileira, o ento Ministro de Estado interino, Luiz Felipe Lampreia22, observou ser comum ouvir que o Brasil no tinha condies para fazer poltica externa, enquanto no resolvesse os problemas internos [...] embora a ausncia de uma preocupao ampla e constante dos brasileiros sobre as questes internacionais no tenha impedido,22

In: Reflexes sobre a poltica externa brasileira. Braslia, Editora FUNAG/IPRI, 1993, pp. 19.

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historicamente, que houvesse uma poltica externa articulada e apoiada num razovel consenso. Recentemente, dadas a atuao brasileira na Amrica do Sul, a questo do MERCOSUL, a multiplicada presena do Pas na frica e na Amrica Central, as dificuldades da Rodada Doha, a formao do G-20 e do G-3, os riscos e oportunidades da ALCA, a poltica externa, estampada na mdia, passaria a freqentar o cotidiano de segmentos variados do povo brasileiro. A diplomacia brasileira tem-se empenhado em criar uma agenda positiva no relacionamento internacional do Brasil e a cooperao tcnica vem sendo um campo em expanso da poltica externa nos ltimos anos. Sobressai, nesse mbito, a cooperao prestada pelo Brasil a pases em desenvolvimento, cujo sucesso depender, cada vez mais, da coerncia na escolha das prioridades para a implementao de projetos e das condies para determinar a aplicao de recursos escassos diante da demanda em franca expanso23. A Professora Maria Regina Soares de Lima, do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ, acredita que o Brasil possui um patrimnio de relaes que alcana praticamente todo o mundo, ao tempo em que reconhece haver uma disposio inequvoca para que o Pas assuma uma liderana solidria na Amrica do Sul. No entanto, como a universalidade do relacionamento brasileiro se traduz em processos concretos muito diferenciados, em algumas situaes o Brasil parceiro demandado e em outras, demandante, na medida em que, como potncia mdia, se encontra imerso em situaes variadas, que vo da hegemonia dependncia. Nesse contexto, a vocao universalista, mais que fonte de prestgio, fator de ampliao de nossa margem de atuao diplomtica. Tal situao precisa ser necessariamente combinada com a articulao de capacidade concreta de ao para que o Pas sendo fiel a suas circunstncias possa reforar seus ganhos bilaterais24.23 24

Ibid, pp. 32-33. In: A trajetria do pragmatismo: uma anlise da poltica externa brasileira. Rio de Janeiro, Dados, vol 25, 3, 1982, pp. 86.45

Essas anlises so relevantes porque apontam elementos que, se no forem bem trabalhados, podero vir a impor restries e constrangimentos expanso da CTPD brasileira no futuro. Se, por um lado, a vocao universalista do Brasil dever implicar compromissos crescentes para o Estado, por outro, a identificao de prioridades tornarse- cada vez mais um elemento imprescindvel num quadro marcado por recursos financeiros limitados. De fato, desde o retorno do Brasil democracia, tornou-se recorrente sublinhar a correlao positiva entre essa forma de vida e de regime e a poltica externa. Essa conexo reveste-se de grande relevncia e nos permite atuar de modo crescentemente desenvolto na ordem internacional. A Constituio de 1988 fez da democracia sua idia-fora e aceleraria o processo de constitucionalizao do que at ento eram apenas princpios de relaes internacionais. Assim, os princpios passaram a operar como padres jurdicos a guiar a gesto da poltica externa claramente direcionada. No plano dos limites, que estabelecem proibies em matria de poltica externa, e no plano dos estmulos, que buscam encaminhar a ao externa numa determinada linha. A lei mxima brasileira marcaria um passo adiante no processo de progressiva constitucionalizao das relaes internacionais do Brasil ao estabelecer entre seus princpios a prevalncia dos direitos humanos, a defesa da paz, a soluo pacfica dos conflitos, o repdio ao terrorismo e ao racismo. No plano dos estmulos, a integrao seria erigida em objetivo fundamental das relaes externas. As metas globais que a sociedade brasileira persegue democracia, respeito aos direitos humanos, desenvolvimento, equilbrio social, erradicao da pobreza refletem-se, portanto, na ao externa do Pas. Essas so as constantes a partir das quais a diplomacia atua, levando em considerao, ademais, a juno entre as dimenses interna e externa da vida nacional, inclusive o monoplio declinante do Estado em matria de poltica externa e a crescente afirmao da democracia brasileira. O Itamaraty busca organizar o debate sobre o processo internacional e estabelece, a cada passo da formulao diplomtica, alianas com diversos segmentos da sociedade e da burocracia governamental, de tal forma que as opes46

concretas tenham base real de apoio ao refletirem interesses profundos da sociedade civil. Se bem certo que o Brasil no dispe de poder para transformarse em lder no encaminhamento de questes e crises globais, uma poltica externa ativa e atuante exige mais do que simples declaraes de princpios. O grande esforo da poltica externa brasileira nos ltimos anos vem sendo, portanto, o de situar diplomaticamente o pas nas situaes emergentes e encontrar nichos de oportunidades para o exerccio de papis ativos no processo de construo ou aplicao de novas regras, dedicandose, paralelamente, construo de novas realidades de convivncia. Outro ponto merecedor de ateno o fato de se buscar compatibilizar as necessidades internas do Pas com as possibilidades externas, aproveitando as oportunidades oferecidas pela conjuntura internacional. Para tanto, a diplomacia brasileira vem obedecendo a dois eixos bsicos: o da adaptao criativa e o da viso de futuro, levando em conta tanto as exigncias do presente (o imperativo de conviver com um mundo real) quanto as exigncias de um projeto reformista e de longo prazo, que possa contribuir para a emergncia de um mundo em que a paz esteja fundamentada em um processo crescente de igualdade e solidariedade25. Alm disso, importante compreender que a cooperao Sul-Sul, na viso da diplomacia brasileira, no se prope reproduzir os mecanismos da antiga assistncia tcnica Norte-Sul. Em vez disso, as maiores vantagens comparativas da cooperao horizontal residem nos esforos conjuntos para a resoluo de problemas comuns por parte dos pases em desenvolvimento. Desse ponto de vista, a cooperao internacional passou a ser necessria no apenas nas reas costumeiras como as da sade, agricultura ou educao, mas representa tambm ferramenta para fortalecer os anseios por uma democracia representativa e funcional para apoiar a modernizao do papel e da estrutura do Estado e da sociedade civil.25

Em discurso proferido na Sesso da Assemblia Geral da ONU, em 12 de setembro de 2002, Celso Lafer alertava que: A poltica externa brasileira condena a tese do dever de ingerncia, contrria estruturao da ordem mundial em bases eqitativas, e defende, por uma questo de solidariedade humana bsica, que a comunidade internacional preste assistncia eficaz a homens, mulheres e crianas em situao crtica.47

Ademais desses elementos, a ao brasileira nesse campo coadunase com a viso contempornea da cooperao tcnica internacional, ao entender que a mesma deve procurar englobar a transversalidade de temas, atores e experincias, sejam estes nacionais ou internacionais, ao partir do pressuposto de que esses atores devem atuar de forma articulada em direo a objetivos comuns previamente determinados. O Ministrio das Relaes Exteriores considera a cooperao internacional importante elemento dentro de uma estratgia para o desenvolvimento. Com base nessa premissa, o Brasil participou e continua a participar ativamente dos debates em torno do tema cooperao internacional. Representantes brasileiros estiveram presentes s principais conferncias multilaterais, em especial no mbito das Naes Unidas, em que se definiu e formalizou seu conceito. Desse modo, o Itamaraty assimilaria as principais teorias sobre cooperao e as poria em prtica, tanto em seu aspecto recipiendrio, bilateral e multilateral, quanto prestatrio a pases em desenvolvimento. Ao longo dos anos, portanto, experincias seriam acumuladas e mtodos de trabalho desenvolvidos, sempre voltados para os interesses nacionais. E ainda, a prtica que se estendeu por dcadas na implementao da cooperao tcnica estimularia a promoo de avaliaes continuadas de seus mtodos de trabalho, atualizando-os e adaptando-os para melhor atender aos objetivos da poltica externa nacional. O fato de a cooperao tcnica brasileira ter sido, por largo perodo, atividade exclusiva do Estado representou monoplio na sua formulao, o que no deixou de estar infenso a crticas, em especial a partir da redemocratizao do Pas. Nesse momento, diferentes atores da sociedade civil, academia, ONGs, entidades de classe, entre outros, passariam a demandar espao na definio de polticas estatais. O Itamaraty tem buscado responder a esse legtimo anseio, reflexo de uma cidadania que se consolida, e promovido, com o intuito de debater estratgias e discutir gesto, seminrios com diferentes setores da sociedade civil. O incio formal do dilogo entre o governo e a sociedade civil sobre cooperao foi o Encontro Nacional de ONGs sobre Cooperao48

e Redes, financiado por ONGs da Itlia e do Canad, pelo IBASE e pelo PNUD, com o apoio da ABC. O Encontro reuniu representantes do Governo brasileiro, cinco agncias internacionais, seis embaixadas, cinqenta ONGs brasileiras e cinco estrangeiras, marcando uma nova relao com os rgos envolvidos na cooperao. Ao mesmo tempo, dentro do contexto poltico nacional, sinalizava a preocupao de uma maior interao entre o sistema governamental de cooperao e a sociedade civil. A assimilao de novas teorias comearam de fato na dcada de 70, e consoante o que dispunha o Plano de Buenos Aires, o Itamaraty passou a empregar a expresso cooperao internacional, que substituiu, em documentos oficiais, o termo assistncia tcnica. A nova concepo de cooperao trazia embutida uma relao entre iguais, parceiros que almejam uma meta comum, embasada em princpios e valores universais, refletindo uma disposio de tomada de deciso conjunta, com transparncia de aes e mtua subordinao para o alcance dos resultados pretendidos. A viso da diplomacia brasileira sobre os novos conceitos da cooperao tcnica internacional comearia a ser exposta de maneira circunstanciada na XV Reunio de Diretores de Cooperao Internacional da Amrica Latina e Caribe, realizada em Montevidu, em maro de 200226. Essa reflexo moldaria e inspiraria as participaes dos representantes oficiais do Brasil nos foros internacionais e reunies bilaterais a partir de ento. De fato, como visto, essa era uma tendncia percebida de forma cada vez mais ntida, desde os ltimos anos da dcada de noventa. Com efeito, o sistema tradicional de cooperao internacional que pautara as relaes Norte-Sul na ltima metade do Sculo XX havia esgotado a maior parte de seus paradigmas e passara a sofrer presses internas e presses externas, o que acabaria por criar dificuldades de duas ordens: operacional e de definio poltica. No que dizia respeito s dificuldades operacionais, o Itamaraty se defrontava com a criao de um grande nmero de agncias e organizaes afiliadas, cujo resultado eraDiscurso do Diretor-Geral da ABC (2001-2003), Embaixador Marco Csar Meira Naslausky.26

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uma complexa burocracia com a conseqente lentido na aprovao de projetos e programas. No que diz respeito s dificuldades de definio poltica, essas decorriam da crescente polarizao entre pases desenvolvidos e pases em desenvolvimento, no tocante utilizao da mquina administrativofinanceira. Cabe ainda mencionar que nem mesmo entre os pases em desenvolvimento, ante os diferentes estgios em que se encontravam e s relaes de maior e menor independncia que mantinham com os diferentes blocos hegemnicos, era possvel definir polticas de ao comuns. Outro aspecto que caberia mencionar o do conceito de graduao. Com o crescimento econmico dos pases em desenvolvimento e o fortalecimento de suas capacidades internas ao longo do tempo houve uma diminuio dos recursos alocados pelos doadores tradicionais. A graduao identificava diferentes patamares de desenvolvimento entre os pases do Terceiro Mundo, condicionando, destarte, o montante dos recursos alocados via cooperao internacional. Esse novo quadro, que imps a reviso do sistema de cooperao das Naes Unidas, bem como dos mecanismos de implementao de projetos, modificaria tambm o modus operandi do Ministrio das Relaes Exteriores. O modelo que se desenvolveria a partir de ento traria novas abordagens, concebidas e implantadas com vistas ao aperfeioamento da cooperao. Outras modalidades emergiriam, como foi o caso da cooperao Sul-Sul, que ao crescer se tornou um dos principais itens da agenda diplomtica bilateral dos pases em desenvolvimento. Os resultados que a cooperao Sul-Sul tem oferecido para o estreitamento das relaes internacionais entre pases em desenvolvimento, praticamente em todas as reas do conhecimento, tm sido objeto de grande ateno por parte do Itamaraty, ao tempo em que provocam debate estimulante sobre o futuro da cooperao internacional entre os diversos pases em desenvolvimento, que nos ltimos anos viram surgir diversas agncias concebidas para coordenar e promover essa promissora vertente da cooperao. Na Amrica Latina, apenas para exemplificar, pases como a Argentina, o Chile, a Colmbia, o Peru e a Costa Rica instituram agncias50

de cooperao, nos moldes da agncia brasileira, algumas ligadas s respectivas Chancelarias, outras sob a competncia da Presidncia da Repblica ou Ministrio do Planejamento. Essas agncias respondem hoje por parte substantiva dos programas mantidos com os pases em desenvolvimento, os quais, sem substituir a cooperao vertical, mas ao complement-la, redimensionaram e enriqueceram a cooperao tcnica internacional. O Itamaraty, nesse contexto, trabalha com base na nova conceituao da cooperao, ao identificar estratgias mais consistentes para alcanar os objetivos propostos pelos programas e projetos. Ao mesmo tempo, optou e privilegiou o enfoque multissetorial para a superao dos problemas e necessidades dos pases em desenvolvimento. Esse tipo de atuao tem logrado particular xito em reas como a erradicao da pobreza ou desenvolvimento sustentvel. Para a poltica externa brasileira fica patente o entendimento de que o impacto e a sustentabilidade de muitos programas e projetos dependem de planejamento e de operacionalizao que contemplam atividades integradas. Ou aqueles operacionalizados por mais de uma instituio - governos central e local, universidades, ONGs etc. Exemplo prtico dessa situao a vinculao entre projetos na rea produtiva e investimentos no campo da educao. Ou a implementao de programas na rea social e o desenvolvimento de metodologias e tecnologias de monitoramento e avaliao de programas pblicos. Ou ainda a desmobilizao de combatentes em zonas de conflito e programas de reconverso e profissionalizao. Essa intersetorialidade no tratamento das questes de desenvolvimento social e econmico, como o caso da cooperao com o Haiti, est presente nos projetos de cooperao tcnica internacional, de maneira que esta no mais se restrinja prestao de consultorias pontuais, realizao de treinamentos em escala restrita e compra de equipamentos, muitas vezes desnecessariamente sofisticados. O entendimento que prevalece o de explorar com maior acuidade os insumos locais e terceirizar determinados componentes, sempre sob estreita coordenao das instituies executoras nacionais e superviso geral dos governos.51

Com esse esprito, a proposta de reconceituao da cooperao tcnica internacional, para o Itamaraty, toma como referncia a Agenda para o Desenvolvimento, aprovada no mbito das Naes Unidas, e passa a contemplar a eficcia, a eficincia e a transparncia como elementos essenciais consecuo dos projetos que vm sendo implementados. A diplomacia brasileira tem procurado evoluir luz dos debates internacionais que se desenvolvem sobre a gesto da cooperao tcnica internacional, mudana qualitativa centralizada em dois pontos. O primeiro o controle de qualidade aplicado aos programas e projetos, que supera a preocupao bsica com o desempenho fsico-financeiro, prioriza a efetiva gerao de resultados sustentveis e capaz de transformar a realidade social e econmica. O segundo constitudo pelo desenvolvimento de uma poltica de acesso e difuso de informaes sobre a execuo de projetos e gerao de resultados. Desse modo, e pautada por tais premissas, pode ser conferida maior legitimidade a toda essa rea de atividades internacionais. Outro ponto considerado, decorrente do processo de democratizao, consiste na participao da sociedade civil na formulao e implementao de polticas, planos e programas de interesse nacional. De fato, um dos efeitos desse processo a crescente interao em projetos de cooperao tcnica, cabendo aos governos a delicada tarefa de preservar seu papel de coordenador dos programas, sem que sua dinmica e agilidade sejam prejudicadas. Ainda necessrio que seja levado em conta, no que diz respeito cooperao tcnica internacional, o fator descentralizao provocado pela proliferao de redes de informao em diferentes setores de atividade, pois, em muitos casos, a cooperao e o intercmbio tcnico podero ser feitos diretamente entre instituies. As instituies governamentais responsveis pela cooperao vm sendo chamadas a atuar como articuladoras, orientadoras e supervisoras desses contatos, o que preserva o equilbrio necessrio entre as partes, ao tempo em que assegura um mnimo de padronizao dos projetos executados e das atividades implementadas.52

Os pontos focais de cooperao internacional, isto , as agncias nacionais de cooperao, como o caso da ABC, assumem perfil de assessoria tcnica altamente qualificada num quadro que demanda crescente especializao. Os Organismos Internacionais e as agncias dos pases desenvolvidos tm dirigido sua ateno para o potencial subaproveitado da cooperao Sul-Sul e articulam seus programas para estimular essa vertente de cooperao, ensejando aes trilaterais. Em seminrio realizado em Madri, em julho de 2006, o Itamaraty afirmaria, no painel denominado The South in the International Contemporary System, que:The practice of South-South cooperation comprises multiple modalities, and we must have this in mind when discussing the way developing countries understand it. Some developing countries converge the management of all modalities of South-South exchanges under a single focal point. Other countries, by their turn, have distinct focal points, depending on the subject. This diversity of understanding about the subjects that fall within the scope of South-South flows is a limiting factor to a more coordinated dialogue among developing countries in search for common strategies either bilateral or multilateral conductive to their social and economic progress.

O Itamaraty situa-se claramente nesse novo nicho aberto pela cooperao e, em anos mais recentes, nele desenvolve preferencialmente suas aes de CTPD. Os laos culturais, histricos e polticos que unem o Brasil aos pases da Amrica Latina e do Caribe, aos pases africanos de lngua portuguesa e o Timor-Leste, facilitam a transferncia de conhecimentos e experincias. Alm dessa vertente bilateral, a cooperao horizontal brasileira faz tambm uso do canal multilateral, por meio do qual so implementados projetos conjuntos com organismos internacionais como a Organizao dos Estados Americanos (OEA), o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Fundo de Populaes das Naes Unidas (FNUAP) e a Organizao para Alimentos e Agricultura (FAO).53

A traduo em prtica dos novos conceitos da cooperao tcnica internacional incorporados sistemtica e gradualmente e a filosofia de parceria para o desenvolvimento, adotada pelo Brasil, consolidam a idia de que a relao de cooperao acarreta sempre, para ambos os lados envolvidos, o compartilhamento de esforos e benefcios. Tendo como referncia os paradigmas de sustentabilidade, intersetorialidade, eficcia, eficincia, transparncia, descentralizao e especializao, o Itamaraty avalia as demandas de cooperao luz do impacto e do alcance que possam ocasionar s comunidades ou setores beneficirios. Tal procedimento implica constante aprimoramento dos mecanismos de negociao, avaliao e gesto de projetos, a fim de que estejam sempre adequados s reais necessidades dos demandantes. Desse modo, reforada a caracterizao da cooperao tcnica internacional como um instrumento de desenvolvimento capaz de apoiar mudanas estruturais e superar eventuais restries ao crescimento econmico e social. Nesse perodo de mudana e transio, a dinmica da cooperao, que ocupa espao crescente na agenda da poltica externa brasileira, vem sendo pautada, tambm, por respostas que traduzem a crescente insero brasileira como pas detentor de conhecimentos e tecnologia, bem como pela capacitao crescente de tcnicos envolvidos no setor. Em seu nvel operacional, a cooperao procura orientar-se para responder a objetivos especficos, com aes executadas uma a uma e sob encomenda, podendo ademais ser mais ou menos complexas em funo do tempo, do nmero de pessoas e dos recursos envolvidos. No perde tampouco o sentido de atualidade de certos temas e discusses. Nesse contexto, a diplomacia brasileira tem-se mostrado capaz de perceber quo crucial o combate fome27 e misria no plano externo, e quo essencial desenvolver polticas cuja implementao atende ao interesse nacional.27

Sobre o combate fome, ver a circular-telegrfica 61.530, de 09 de outubro de 2006, que transcreve artigo do Ministro de Estado do Desenvolvimento Social e Combate Fome, Patrus Ananias, sobre o ato de promulgao da Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional.

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De um lado, o Brasil tem problemas tpicos de pases desenvolvidos, causados pelos padres e formas avanadas de produo industrial e, de outro, problemas comuns a pases em desenvolvimento, fruto principalmente das mltiplas dimenses do fenmeno da pobreza. O Ministro das Relaes Exteriores Celso Lafer afirmava em seus discursos ser o Brasil terra de contrastes, que exibe uma realidade econmica e social com padres de primeiro mundo e, ao mesmo tempo, padres de terceiro mundo. Essa formulao, derivada, em parte, de autores que pensaram o Brasil na dcada de 60, como Jacques Lambert, em Os Dois Brasis, seria retomada por Edmar Bacha, em 1974, ao cunhar a expresso Belndia para definir o que seria o pas, cuja distribuio de renda comportava aspectos de uma pequena e rica Blgica e uma imensa e pobre ndia. O economista ainda pensa ser vlida a expresso para caracterizar a distribuio da riqueza no pas hoje, pois segundo dados apurados pelo IBGE, no campo da distribuio de riquezas o Brasil, tem pouco a comemorar, pois no espao temporal entre 1992 e 1999, o rendimento dos 10% mais ricos e dos 40% mais pobres apresentou o mesmo crescimento percentual. Em termos absolutos, o fosso aumentou. A dura questo da distribuio de renda faz com que haja um Brasil que ocupa o 11 posto na lista das maiores economias mundiais, convive