a paisagem nordestina nos filmes de wladimir carvalho

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA HUMANA

    RENATO ALVES DO NASCIMENTO

    A PAISAGEM NARRATIVA DO NORDESTE E DOS

    NORDESTINOS NOS FILMES DE VLADIMIR CARVALHO

    (Verso Original)

    So Paulo 2012

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA HUMANA

    A PAISAGEM NARRATIVA DO NORDESTE E DOS

    NORDESTINOS NOS FILMES DE VLADIMIR CARVALHO

    Renato Alves do Nascimento

    Dissertao de Mestrado desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana da Universidade de So Paulo, sob a orientao do Prof. Dr. Manoel Fernandes de Sousa Neto, para a obteno do ttulo de mestre.

    So Paulo 2012

  • FOLHA DE APROVAO

    Universidade de So Paulo

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Geografia

    Mestrado em Geografia Humana

    A PAISAGEM NARRATIVA DO NORDESTE E DOS

    NORDESTINOS NOS FILMES DE VLADIMIR CARVALHO

    Aprovada em .............. / ............... / .................. Pelos membros da Banca Examinadora: ................................................................................................... Prof. Dr. Manoel Fernandes de Sousa Neto (Orientador e Presidente da Banca) .................................................................................................... Prof. Dr. Antonio Carlos Robert de Moraes (Professor Titular do Departamento de Geografia da FFLCH/USP) .................................................................................................... Prof. Dr. Joo de Lima Gomes (Membro Externo - Docente da UFPB)

    So Paulo SP 2012

  • Dedico: A JOS FELIPE SOBRINHO e RITA FELIPE ALVES (meus pais) pelo amor e pela coragem de terem sado do campo para a cidade no af de ver os filhos alfabetizados; A ANADETE ALVES (esposa) pelo amor, dedicao, pacincia nas minhas ausncias e por compartilhar tambm de prazerosos momentos geo-cinematogrficos;

    Ao Senhor JOS PERES DA SILVA (in memoriam), amigo e cinfilo que me levou ao Cine So Jos pela primeira vez; Ao Professor PAULO ROSA (in memoriam) o primeiro a me dar crdito no dilogo entre cinema e geografia.

  • CRDITOS INICIAIS

    Essa pgina de crditos muito importante para mim, devido ao enorme

    dbito contrado antes, durante e depois dessa pesquisa, com uma infinidade

    de amigos. So dbitos impagveis do ponto de vista financeiro que procuro

    aliviar, me colocando a disposio de todos, e inscrevendo-os nesta pgina,

    como uma simples lembrana ou um singelo reconhecimento a:

    MANOEL FERNANDES (Professor doutor da USP), um autntico mestre da geografia e da histria, um inconteste orientador alm de amigo e companheiro que sem a sua parceria jamais concretizaria esse mestrado; GUIA MENDES (Poeta e escritor), amigo, irmo, companheiro de todas as horas, meu guru, meu mestre, professor das primeiras imagens e revisor de quase tudo que escrevo; MNICA TELES (Mestra em Geografia), amiga e companheira que compartilhou comigo as primeiras agonias e alegrias nessa trajetria acadmica; JOUBERTO LOPES (Analista desenvolvedor de Java), amigo, companheiro e irmo de todos os momentos em Sampa, alm de meu tradutor oficial do ingls e consultor para os assuntos de informtica; VANDA RGIS DE PAIVA (Mestra em Geografia), amiga, companheira de grandes momentos, e dos primeiros passos na geografia, que sempre acreditou em mim e uma das responsveis por este mestrado; LIVALDO CORDEIRO (Mestre em Navegao), amigo, irmo, companheiro, meu guru de assuntos diversos e internacionais, que sempre acreditou em mim e junto com Vanda foi tambm responsvel nesse projeto; CLUDIA MONTENEGRO (Mestra em Psicologia), amiga, companheira de trabalho, consultora psicolgica de vrios momentos, responsvel por esse mestrado, sempre atenta e generosa com a minha capacidade em desenvolver essa pesquisa; MARY LEADEBAL (Administradora), amiga e companheira da UFPB que est sempre pronta para ajudar, seja em perodos favorveis como em tempos difceis; VANESSA PESSOA (Estudante de Comunicao), amiga e companheira de universidade que editou as imagens e produziu o DVD que faz parte dessa dissertao;

  • ADEILDO VIEIRA (Jornalista e Msico), amigo e companheiro de labuta e de viagens musicais e audiovisuais que esteve sempre pronto quando precisei; EDUARDO MORETTIN, HENRI PIERRE e ISMAIL XAVIER (Professores Doutores da ECA), com quem aprendi muito sobre documentrios, foram grandes colaboradores neste projeto e compreensveis quando precisei viajar as pressas para Joo Pessoa, me ausentando de algumas discusses; ANTONIO CARLOS ROBERT DE MORAES (Professor Titular da USP), um verdadeiro mestre da geografia e da histria, um novo amigo que contribuiu muito com essa pesquisa, tanto nas agradveis e enriquecedoras aulas como na qualificao; JOO DE LIMA GOMES (Professor Doutor da UFPB), um verdadeiro mestre no cinema paraibano, companheiro de jornadas cinematogrficas, que sempre colaborou na minha trajetria profissional e acadmica, assim como nessa pesquisa, principalmente na qualificao; LCIA DE FTIMA GUERRA, (Professora Doutora da UFPB e Pr-reitora), uma verdadeira mestra em gesto pblica e em liderar pessoas, que contribuiu muito na minha trajetria profissional e acadmica, sempre compreensiva, acreditou e foi responsvel tambm por esse projeto; MRCIO FERREIRA NERY CORRA (Mestre em Geografia), amigo e colega da disciplina de Teoria Geogrfica, que me inspirou no ttulo da Cena 01, quando me presentou com um livro sobre cinema e geografia, com uma mensagem que dizia: A vai aquele livro que lhe falei. Tenho certeza que lhe ser muito til. Portanto, use e abuse do seu talento em cinematografar o espao e geografizar o cinema. Ambos foram teis, o livro e a mensagem; DARLAN (Violonista e Mestre em Msica), KELLY (Estudante de Arte) e DELYAN (Estudante do Ensino Fundamental), filho, nora e neto que moram no meu corao e foram, tambm, a razo de ter superado as dificuldades e a distncia longe do nosso lar; URBANO, SANDRA e MATEUS amigos que me proporcionaram momentos super agradveis e gastronmicos em So Paulo; JOO BATISTA (Tcnico em Som) e JOS GERALDINO (Assistente de Estdio), amigos e colegas da UFPB que sempre esto prontos quando preciso;

    Sem esses amigos eu no seria capaz de ter desenvolvido essa

    pesquisa, at porque, mesmo sendo funcionrio da UFPB, no tive a felicidade

    de ser contemplado com nenhum financiamento.

  • R O T E I R O

    CRDITOS INICIAIS ................................................................................... 04

    SINOPSE .................................................................................................... 07

    ABSTRACT .................................................................................................. 08

    ARGUMENTO / ABERTURA ....................................................................... 09

    CENA 01 Plano Geral: Geografizando o cinema e cinematografando o espao/paisagem .................................................................................... 13

    Tomada 1: Uma paisagem movimentada pelo cinema ....................... 13 Tomada 2: Que diabos tem a ver cinema com geografia? ............... 18 Tomada 3: Quem faz o que com cinema e geografia ......................... 20 Tomada 4: Uma paisagem que conta histrias ................................... 27 Tomada 5: Vladimir Carvalho e suas paisagens nordestinas ............. 33 Tomada 6: O Nordeste e os nordestinos nas telas do cinema ............ 37

    CENA 02 Close em Vladimir Carvalho ..................................................... 51 Tomada 01 Uma experincia marcante ........................................... 51 Tomada 02 Onde tudo comeou? .................................................... 52 Tomada 03 A empatia pelo cinema documentrio ........................... 54 Tomada 04 Da teoria prtica ......................................................... 56 Tomada 05 Diz-me com quem andas e te direi quem s .............. 67

    CENA 03 - Plano sequncia em Romeiros da Guia .................................... 73

    CENA 04 - Planos de Detalhes em A Bolandeira ........................................ 90

    CENA 05 - Travelling em O Homem de Areia ............................................. 102

    CENA 06 Panormica com Flashback na paisagem narrativa dos 3 filmes ........................................................................................................ 115

    THE END com Flash Foward ...................................................................... 140

    CRDITOS FINAIS ..................................................................................... 148

    BNUS ........................................................................................................ 155 01 Figura I - Croqui do percurso dos Romeiros da Guia .................. 156 02 Figura II Croqui da localizao do engenho de A Bolandeira .. 157 03 Figura III Croqui do trajeto realizado por J. Amrico, montado a cavalo, tomado de sua autobiografia em O Homem de Areia .......... 158 04 Filmografia de Vladimir Carvalho ................................................. 159 05 Transcries do filme A Bolandeira ............................................. 165 06 Roteiro Decupado do filme Os Romeiros da Guia ....................... 169 07 Transcries do filme O Homem de Areia .................................. 177 08 Transcrio da entrevista com Vladimir Carvalho ....................... 192 09 Glossrio dos termos tcnicos da linguagem flmica .................. 201

  • 7

    SINOPSE A paisagem narrativa um conceito abstrato de movimento que se concretiza na observao da paisagem fsica, histrica e geogrfica, assim como na paisagem flmica. Aqui, a paisagem geogrfica analisada sob o ponto de vista de uma geografia retrospectiva, numa leitura de narrativizao, a partir das imagens de filmes documentrios. Essa leitura feita no intuito de compreender como o Nordeste e os nordestinos so representados no discurso imagtico da narrativa flmica. Para isso, foram analisados os documentrios Os Romeiros da Guia (1962), A Bolandeira (1968) e O Homem de Areia (1982), focados no espao, na paisagem, na sociedade e suas relaes poltico-econmico-cultural e histrica do Nordeste brasileiro, sob o olhar do cineasta Vladimir Carvalho, realizador dos respectivos filmes. A nossa concepo de paisagem narrativa est fundamentada nos conceitos e descries de David Lowenthal, com a importncia da simplicidade e subjetividade na pesquisa cientfica; Jean Marc Besse, na valorizao da paisagem, apresentando uma viso antropolgica para o desenvolvimento das culturas visuais; Jorge Luiz Barbosa, na afirmao de que o cinema constri as representaes da realidade de maneira singular sobre o que se v (a forma) e o que se apreende do visto (o contedo); e, principalmente, com as teses de Ana Francisca de Azevedo que enxerga a paisagem como narrativa com uma presena de referncia original, capturada pela arte do cinema em operaes de narrativizao ideolgica e de estetizao, para reconfigurar a experincia de representao e contemplao da paisagem.

    Palavras-chave: Geografia Paisagem Nordeste Cinema Documentrio - Vladimir Carvalho.

  • 8

    ABSTRACT

    The narrative landscape is a movement abstract concept that is realized in observation of the physical, historical and geographical landscape, as well as the cinematic landscape. At this article, the geographical landscape is analyzed from the standpoint of a geography retrospect, a narrativization reading, starting at images of documentary films. This reading is done in order to understand how the Northeast and it's people are represented in the imagery speech of film narrative. For this, we analyzed the documentary Os Romeiros da Guia (1962), A Bolandeira (1968) and O Homem de Areia (1982), focused on space, landscape, society and it's historic and culture-economics-politics relations with brazilian Northeast, under the perspective of the filmmaker Vladimir Carvalho, director of the respective movies. Our narrative landscape design is based on the concepts and descriptions of David Lowenthal, in consideration of simplicity and subjectivity in scientific research; Jean Marc Besse, in appreciation of landscape, presenting an anthropological vision for the development of visual cultures; Jorge Luiz Barbosa, in the assertion that the film builds representations of reality that is unique about what you see (shape) and what is learned about (content); and, mainly, with the thesis of Ana Francisca de Azevedo, who sees the landscape as a narrative with an original reference presence, caught by the cinema's art of ideological narrativization operations and aesthetization, to reconfigure the acting experience and contemplation of the landscape.

    Key-words: Geography - Landscape - Northeast Cinema Documentary - Vladimir Carvalho.

  • 9

    ARGUMENTO / ABERTURA

    Estudos sobre cinema e geografia tm se tornado mais frequentes nos

    ltimos tempos. Numa consulta despretensiosa, possvel se encontrar uma

    infinidade de textos, artigos, crnicas, monografias, dissertaes e teses.

    A ligao entre cincia e arte certamente no privilgio apenas da

    Geografia. H cada vez mais disciplinas, particularmente das cincias humanas, que

    trilham por esse caminho: histria, sociologia, filosofia, arquitetura, psicologia, letras.

    Na geografia, estudos com cinema tomam como referncia a categoria ampla

    de espao e os conceitos de regio, territrio, lugar e paisagem para fazer a

    conexo com o tempo/espao do cinema.

    Nesse estudo, seguimos caminho semelhante com a categoria ampla de

    espao e o conceito central de paisagem, mas, sempre que necessrio, outros

    conceitos so referidos nas discusses, bem como categorias de espao-tempo,

    impossveis de ficarem margem quando o assunto cinema ou geografia.

    Est evidente pelo ttulo do nosso trabalho que o conceito central o de

    paisagem. Aqui a paisagem apropriada no sentido de narrativa, ou seja, uma

    paisagem narrativa que discorre, descreve e conta histrias, seja a paisagem

    narrativa cinematogrfica ou a paisagem narrativa fsica, analisada do ponto de vista

    de uma geografia retrospectiva. Ademais, a paisagem narrativa que est em

    evidncia nessa investigao a paisagem narrativa do Nordeste e dos nordestinos.

    Outra caracterstica nesse estudo que abordamos exclusivamente o cinema

    documentrio e no o cinema de fico e comercial, comum e mais utilizado na

    maioria das pesquisas do gnero. Adotamos especificamente o cinema

    documentrio nacional, e muito em especial o cinema nordestino e paraibano do

    documentarista Vladimir Carvalho, por entender que so obras contundentes e

    significativas, principalmente para o estudo da histria e da geografia.

    Nosso set de filmagem e investigativo se dar a partir de trs documentrios

    de sua extensa filmografia: Os Romeiros da Guia (1962), A Bolandeira (1968) e O

    Homem de Areia (1982), ambos com eventos, fatos e personagens eminentemente

    paraibanos.

    No intuito de tornar esse estudo menos maante e de mais fcil leitura, sem

    perder naturalmente seu vnculo acadmico, optamos por introduzir na discusso a

    nossa experincia de espectador e de realizador de registros audiovisuais. Para

  • 10

    isso, resolvemos inicialmente mudar a concepo do sumrio a fim de que ele

    parecesse um roteiro cinematogrfico em que os captulos so denominados de

    Cenas e os subcaptulos de Tomadas. Finalmente demos aos ttulos nomes de

    elementos da linguagem cinematogrfica, fazendo sempre que possvel uma juno

    com os temas geogrficos.

    O primeiro captulo ou Cena 01: Geografizando o cinema e cinematogrando o

    espao/paisagem, composto por 6 tomadas. Na primeira delas fazemos uma

    retrospectiva experiencial como espectador de cinema, que se estende de 1960 a

    1980, e que, segundo nossa anlise, tinha um ritual que alterava costumes, espaos

    e paisagens.

    Na tomada 02 um pouco dessa experincia ainda persiste, agora com

    preocupao acadmica, e comeamos a ver que cinema e geografia, ao contrrio

    do que muita gente pensa, guardam uma relao muito prxima.

    Na terceira tomada, j anunciada essa nossa descoberta, vamos demonstrar

    que h muitos estudiosos da geografia trabalhando com cinema sob as mais

    variadas perspectivas, entre eles Jorge Luiz Barbosa, Wesceslao Machado de

    Oliveira Jnior, Stefani Eduardo Baider, Pedro Geiger, alm da gegrafa portuguesa

    Ana Francisca de Azevedo, com a qual compartilhamos a mesma linha de

    investigao, e cujo conceito de narrativizao adotamos para embasar a nossa

    pesquisa.

    Na quarta tomada, instigados pelo conceito de paisagem narrativa,

    continuamos com a reviso bibliogrfica e encontramos vrios estudiosos do

    conceito. Mas, entre eles, destacamos os principais nomes que fundamentam essa

    nossa investigao: Jean Marc Besse, Milton Santos, David Lowenthal e a prpria

    Ana Francisca de Azevedo.

    Na penltima tomada desta cena, apresentamos os documentrios

    selecionados para anlise, o porqu da escolha, e quais as paisagens de Nordeste

    de maneira geral o autor escolheu para filmar.

    Na sexta e ltima tomada, tentamos por outro lado identificar que Nordeste foi

    filmado pelo cinema, e qual a viso dos cineastas sobre a regio por eles retratada.

    No segundo captulo ou Cena 02, procuramos saber quem Vladimir

    Carvalho, sua origem, suas incurses por vrios estados brasileiros, sua fixao na

    capital federal, para por fim iniciar, de maneira sinttica, uma reviso de toda sua

    produo cinematogrfica. Para isso, subdividimos a Cena em 5 tomadas.

  • 11

    Na primeira, descrevemos nossa experincia trabalhando ao lado do cineasta,

    visando com isso fornecer ao leitor peculiaridades acerca do estilo do

    documentarista.

    Na segunda tomada, discorremos sobre sua origem familiar e suas vivncias

    na terra natal Itabaiana, na Paraba, bem como referimos a acontecimentos que

    marcaram a sua trajetria e que esto, de certa forma, nas paisagens narrativas dos

    seus filmes.

    Na terceira tomada, tratamos de desvendar os contatos que Vladimir teve

    com o universo literrio e como espectador de cinema que o levaram a optar pelo

    documentrio.

    Na quarta tomada, intitulada Da teoria a prtica, o leitor vai conhecer como

    Vladimir Carvalho iniciou sua trajetria de cineasta como assistente de direo no

    filme Aruanda, de Linduarte Noronha, obra representativa do movimento

    cinemanovista dos anos 1960, alm de suas primeiras incurses como diretor,

    seguido de uma breve anlise de todas as suas obras.

    Na quinta e ltima tomada, sob o ttulo de Diz-me com quem andas e te direi

    quem s, apresentamos as parcerias e os contatos que Vladimir manteve durante a

    sua trajetria e que marcaram definitivamente as suas obras. So contatos com o

    Partido, como era assim chamado o Partido Comunista na poca, com artistas do

    conhecido Avant-Garde da Bahia, com o CPC da UNE, com msicos, artistas

    plsticos, polticos e cineastas da envergadura de Glauber Rocha, Eduardo Coutinho

    e Arnaldo Jabor.

    Em seguida procedemos a anlise de trs filmes, divididos em 3 Cenas sem

    subcaptulos ou Tomadas. Na Cena 03 Plano sequncia em Os Romeiros da Guia,

    analisamos o documentrio observando todas as suas caratersticas, identificando

    os elementos da gramtica flmica, a proposta narrativa e o contexto da ideia dos

    diretores Vladimir Carvalho e Joo Ramiro Mello.

    Na Cena 04 Planos de Detalhes em A Bolandeira, como na anterior,

    desenvolvemos a anlise utilizando a mesma abordagem, at porque os detalhes na

    narrativa esto tambm numa sequncia. Como se sabe, A Bolandeira um curta-

    metragem em que a narrativa est apoiada num poema cujos versos esto ligados

    s imagens em planos detalhistas.

    Na Cena 05 Travelling em O Homem de Areia, estudamos esse longa-

    metragem, de narrativa estruturada em flashback, sobre a vida do escritor, jurista,

  • 12

    poeta e poltico Jos Amrico de Almeida. um filme de muito movimento, por isso

    optamos, por assim dizer, em analis-lo maneira de um travelling, movimento de

    cmera que pode ser feito em qualquer direo. Evidentemente isso no significa

    que deixamos de lado os aspectos histricos, contextuais e estticos do filme.

    Na Cena 06 Panormica com Flashback na paisagem narrativa dos 3 filmes

    -, realizamos uma anlise abordando alguns trechos dos filmes que so mais

    representativos para o nosso conceito de paisagem narrativa. Para isso, decifrar as

    cenas, planos e sequncias da narrativa flmica foram essenciais para compreender

    as representaes do ponto de vista das paisagens narrativas histricas e

    geogrficas. Essa anlise se deu luz dos conceitos e tericos do cinema, como

    Christian Metz, J. Dudley Andrew, Antnio Costa, Bil Nichols, Joo Batista Brito,

    entre outros, e os da cincia geogrfica citados anteriormente. Por isso o ttulo

    sugere uma panormica que visualiza os trs filmes a um s tempo e um flashback

    porque fazemos um movimento de ida e volta nos documentrios e nas teorias

    selecionadas para a pesquisa.

    Por ltimo o leitor encontra, semelhana dos filmes e como concluso ou

    Consideraes finais desta dissertao, o The End com Flash Foward, em que

    fazemos uma sntese do que estudamos e consideramos fim do presente trabalho.

    Assim, o flash foward uma prospeco ou uma sugesto de continuidade para a

    discusso sobre cinema e geografia, sobretudo ou particularmente em relao ao

    nosso cinema.

    Por ltimo, as referncias bibliogrficas esto postas como Crditos Finais e

    os anexos como Bnus. Os bnus so comumente encontrados nos DVDs

    comerciais e ajudam a entender melhor como foi a produo dos filmes, entre outras

    informaes de bastidores. Essa nossa ideia nos bnus que representam os

    anexos, inclusive inserimos um Glossrio com os termos tcnicos correntes no

    cinema e na linguagem audiovisual, que foram utilizados ao longo do nosso texto.

    Enfim, este estudo busca fortalecer o dilogo ainda um pouco tmido existente

    no estudo da geografia e cinema, no que diz respeito a abordagem de filmes como

    recurso investigativo, principalmente em se tratando de cinema documentrio

    nacional. Em sntese, o leitor vai se deparar com uma viso multifacetada da

    geografia terica e emprica, no liame com a arte cinematogrfica, numa leitura de

    paisagens narrativas do nordeste e dos nordestinos, sob o olhar de Vladimir

    Carvalho.

  • 13

    CENA 01: PLANO GERAL - GEOGRAFIZANDO O CINEMA E

    CINEMATOGRAFANDO O ESPAO / PAISAGEM

    TOMADA 01 UMA PAISAGEM MOVIMENTADA PELO CINEMA

    J passa um pouco das treze horas e a praa est tomada de transeuntes

    que se movimentam nas mais diversas direes. A maior convergncia do

    movimento para o templo do entretenimento de todo domingo tarde, ao lado da

    praa. A frente do templo parece um mercado persa. Jovens e adolescentes se

    aglomeram para comprar, vender e trocar revistas, gibis, almanaques e livros de

    bolso. No difcil encontrar aqui as mais recentes novidades, relquias e

    preciosidades do mundo das Histrias em Quadrinhos. Os vendedores de balas,

    bombons, chocolates e cigarros esto apostos e atentos aos gostos e desejos dos

    fregueses do lugar. Os tabuleiros, a tiracolo, esto repletos de confeito de mel,

    pirulito, chiclete Ping-Pong, chocolate Galak e cigarros Gaivota, Continental e

    Hollywood com filtro. O homem da pipoca e do algodo doce no para de trabalhar.

    A fila dos compradores contnua e ningum entra no templo sem ter o que

    mastigar.

    Esse aglomerado cultural se desenvolvia da praa at a frente do cinema e

    culminava l dentro, antes do incio das sesses do domingo. poca, o acesso

    sala de cinema se dava em torno de 30 minutos antes de comear a sesso. Era um

    tempo suficiente para degustar um gibi de poucas pginas e depois, ao final do

    filme, trocar por outro na sada e levar para ler em casa. Era tempo suficiente

    tambm para comentar a ansiedade de ver o novo filme ou discutir sobre os filmes

    passados, seus heris, bandidos, ou as lindas donzelas.

    Era essa a paisagem tpica dos domingos tarde, que se construa nos

    espaos entre a Praa Clementino Procpio e o Cinema Capitlio na cidade de

    Campina Grande, na Paraba, nos finais dos anos 1960 at meados da dcada

    seguinte. Essa paisagem s era possvel pela fora atrativa do cinema, com o seu

    universo flmico, que deixava todos extasiados em suas mais diversas nuances e

    narrativas.

    L dentro, o espao era delineado em outra situao. Os espectadores

    acomodados em suas cadeiras, lendo, conversando, namorando, chupando balas,

    comendo pipocas, entre outras guloseimas, aguardavam o momento das cortinas se

  • 14

    abrirem, como se fosse um teatro, para visualizao da grande tela. Essa abertura

    s acontecida aps o terceiro toque de uma suave e agradvel vibrao do som de

    gongo chins que, simultaneamente, convergia com o apagar das luzes. A msica

    clssica ou instrumental que desde a entrada do pblico j massageava nossos

    ouvidos, agora sumia para dar lugar aos sons cinematogrficos.

    A partir da a sala se enchia com uma enorme tela branca que recebia um

    canho de luz e cores atravessando toda a sua extenso e modificando o espao

    para uma viagem de sonhos, fantasias e realidades projetadas atravs da pelcula

    em 24 fotogramas por segundo. Realidades tambm, porque podamos saber das

    notcias do Brasil e do mundo atravs do Canal 100. Um jornal cinematogrfico que

    era exibido antes dos traillers e do filme principal. A exibio acontecia por conta da

    legislao que, a partir do Decreto n. 21.240 de quatro de abril de 1932, obrigava os

    cinemas a exibirem os filmes informativos de curta-metragem antes do filme de

    longa-metragem, motivo principal do espetculo1. O Canal 100 marcou uma poca

    do auge do cinema e da ditadura militar, em que as notcias eram sempre dos atos

    do governo, mescladas com algumas matrias de moda e cultura tendenciosas.

    vlido observar que essas tendncias j eram um prenncio das estratgias do

    conceito de indstria cultural2 to em voga hoje.

    Mas, a grande sensao do jornal, que levava a plateia loucura e euforia,

    era o momento do futebol em que partidas de grandes clssicos brasileiros eram o

    destaque na telona. Numa produo cinematogrfica, plasticamente bem elaborada,

    os melhores lances podiam ser apreciados em ngulos e planos que seriam

    impossveis de ser vistos ao vivo num estdio. Nos sensacionais gols, nas

    impiedosas cobranas de faltas, nas defesas espetaculares dos goleiros a sala

    parecia que ia abaixo com o estouro dos gritos e vibraes da plateia. Quando a 1 Sobre o Canal 100, origem e trajetria, h pesquisas e textos importantes. Para mais conhecimento leia-se COIMBRA, Octvio Cmara de Melo. Canal 100: Um cinejornal e a memria social. Dissertao de Mestrado, UFRJ, 1988; FILHO, Kleber Mendona. O Canal 100 Captou o Imaginrio do Futebol. Disponvel em: http://www.cf.uol.com.br/cinemascopio/artigo.cfm?CodArtigo=60, Acesso em 15/06/2012; MAIA, Paulo Roberto de Azevedo. Canal 100 A trajetria de um cine jornal. Disponvel em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/download/2228/1329. Acesso em 15/06/2012. 2 Conceito utilizado pelos pensadores alemes da Escola de Frankfurt, Teodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1975), que empregaram o termo pela primeira vez no captulo O Iluminismo como mistificao das massas, no ensaio Dialtica do Esclarecimento, escrito em 1942, e s publicado em 1947. Disponvel em: http://andrelemos.info/com104/labels/resenha%20de%20aula.html. Acesso em 11/05/2012. Uma leitura importante sobre o conceito pode ser conferida em ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira Cultura brasileira e indstria cultural. So Paulo: Brasiliense, 2001.

  • 15

    partida era Vasco e Flamengo ou Santos e Corinthians no tinha como evitar o

    alvoroo. Essa euforia se explica porque apesar de termos assistidos a copa de

    1970 pela televiso, bom lembrar que, na poca, no tnhamos jogos televisados

    ao vivo, nem tampouco televiso acessvel como hoje.

    Aps o jornal, o filme comeava e outro espao se configurava de acordo com

    o gnero, tema ou enredo. Nesta poca o grande espetculo ficava por conta dos

    westerns italianos, as comdias e filmes romnticos. Ringo, Django, Roy Rogers

    eram nosso heris maiores, talvez porque os tiros, exploses e emboscadas eram

    s contra os maus e forasteiros e as balas perdidas no atingiam inocentes.

    Essas paisagens e cenrios tambm eram possveis de serem vivenciadas,

    com menos pompa, no Cine So Jos ou no Cine Avenida. O primeiro localizado

    em um bairro de classe mdia, com o mesmo nome do cinema, e o segundo em

    bairro de classe alta, na poca Bairro da Prata (hoje rea comercial), mais prximo

    do centro da cidade. Menos pompa porque em ambos as telas eram menores que a

    do Capitlio e o espao fsico, interno e externo, era menor e no tinha praa na

    frente. Desse modo, o mercado persa se organizava ao longo das suas caladas e

    dos prdios vizinhos. No So Jos no tinha cortinas para a abertura da tela e a

    campainha no era suave como a do Capitlio, mas a compensao estava no

    preo que era mais acessvel. O Cine Avenida tambm no tinha cortinas na tela,

    mas a campainha era mais agradvel e a compensao estava tambm no preo do

    ingresso. Havia tambm o Cine Babilnia localizado no centro da cidade, com os

    requintes do Capitlio, s no tinha praa na frente e o comrcio se organizava na

    calada. De qualquer forma, podia-se assistir ao mesmo filme em qualquer um deles

    e a opo estava na condio financeira do momento. O importante para a maioria

    dos jovens e cinfilos da poca estava, realmente, no ritual dos domingos em ir para

    o cinema, no importava qual deles.

    Ainda nesses anos, outros espaos eram modificados pela fora do cinema.

    Em frias, ia para uma cidadezinha pacata e distante 70 quilmetros de Campina

    Grande, Cubati, no serto paraibano. L, nos sbados noite, o mercado pblico se

    transformava no templo da imagem e do som. Os bancos de feirantes, toldos e

    barracas eram desarmados para dar lugar aos tamboretes3 e cadeiras trazidos de

    3 Tamborete uma espcie de banco feito de madeira, com 3 ou 4 pernas, muito comum no Nordeste brasileiro.

  • 16

    casa, a fim de construir um ambiente de sala de cinema. A parede principal do

    mercado ganhava uma tela de lenol branco e um dos bancos da feira apoiava o

    projetor de um comerciante do lugar, amante do cinema, que militava pela diverso

    da stima arte e ganhava uns trocados extras.

    Aqui, se o filme no tivesse ao com muito tiro, vingana, traio, amor no

    final e um heri vencedor, o Senhor Toinho Pre (como era conhecido) nem trazia,

    porque seno no outro sbado ningum ia ao cinema, para se vingar do filme ruim

    que ele trouxe anteriormente. Ou seja, um filme que no tivesse uma narrativa linear

    empolgante no era um filme de verdade, para a grande maioria daquele pblico.

    Esses eram espaos e paisagens construdos atravs do cinema comercial

    que, com certeza, muita gente vivenciou nas grandes cidades e nos interiores deste

    pas.

    No h como negar que o cinema nasceu e se desenvolveu para a vida social

    juntamente com a grande cidade, e que a sua histria se cruza com a geografia das

    cidades. Segundo BARBOSA (2000), a imagem dos lugares criada/reproduzida pelo

    cinema se torna parte constitutiva da prpria cidade. Dessa forma, ainda de acordo

    com Barbosa, depois das experincias dos irmos Lumire, as salas de exibio

    foram se transformando em verdadeiros templos de entretenimento das massas

    urbanas e se tornaram espaos de referncia da cultura moderna.

    Havia outros espaos construdos para o cinema de arte, para os filmes ditos

    marginais ou underground, que se organizavam em associaes de bairros,

    universidades e outras entidades que alimentavam a prtica da sala de cinema

    independente ou cineclubes, como eram mais conhecidos. Nesses espaos o

    pblico era resumido, seleto e composto, via de regra, de intelectuais, jornalistas,

    artistas, estudantes universitrios e tambm populares.

    Nestes lugares a paisagem era diferenciada, tanto do ponto vista esttico

    quanto tcnico, com projetores de 16mm para filmes de curta- metragem, pois j

    havia uma grande produo de filmes nesta bitola. As sesses eram seguidas de

    debates coordenados, geralmente, por um estudioso de cinema e apreciador das

    teorias flmicas e cinematogrficas. O ritual das sesses era quase sempre o

    mesmo: o responsvel por ter encontrado o filme fazia a sua apresentao e

    contava como tinha conseguido a pelcula. Fato que se configurava num feito

    herico, porque o cinema de arte no se encontrava com facilidade, principalmente

    fora do circuito do Sudeste, e os filmes mais apreciados eram os europeus e

  • 17

    soviticos. vlido um adendo aqui, porque no se pode negar que os cineclubes

    funcionaram na poca, tambm, como ttica ideologista do Partido (PCB).

    De qualquer forma os cineclubes foram impulsionadores, formadores e

    fomentadores de crticos, professores de cinemas, cineastas, diretores e tcnicos

    que se consagraram no exerccio da profisso e so reconhecidos at hoje.

    Cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Eduardo Coutinho ou

    os paraibanos Linduarte Noronha, Vladimir Carvalho e Manfredo Caldas comearam

    suas trajetrias nos cineclubes.

    Esses trs espaos descritos, construdos a partir da influncia do cinema e

    de filmes, so apenas uma pequena amostra do universo paisagstico que a arte

    cinematogrfica configurou e continua configurando espacialmente por meio da sua

    magia da imagem em movimento.

    Hoje, o cinema continua cumprindo com a sua misso de causar as mais

    diversas sensaes nos espectadores, como tambm modificando, construindo e

    alterando espaos e paisagens. Aos poucos, da dcada de 1980 para c, o cinema

    se transferiu das grandes salas, praas e mercados para ocupar os shoppings

    centers. Nesses templos modernos quase impensvel a falta de uma sala de

    cinema. H shoppings com mais de dez salas exibidoras, modernas e sofisticadas,

    para atrair uma clientela de gostos diversificados, bem como espectadores assduos

    e amantes da stima arte.

    Claro que a paisagem outra. O pblico tem novos e variados gostos e

    comportamentos. Para isso, as salas e as exibies tambm mudaram para se

    adequar aos desejos do pblico e nova estrutura criada a partir do prprio cinema,

    porque ele tambm produz seu pblico. Na frente destas salas no se vendem nem

    se trocam mais gibis e revistas. O acesso sala s se d dez ou quinze minutos

    antes do incio do filme. O Canal 100 h muito desapareceu das telas. Os jovens

    entram no cinema s pressas, porque no tm mais o tempo para as literaturas,

    apenas para a pipoca e o refrigerante vendidos por empresas vinculadas do

    cinema, com preos acima do mercado. E quando se entra na sala, no tem mais

    campainha nem cortinas, porque o filme comea logo. Algumas vezes so exibidos

    dois traillers, ou no mximo trs, depois de alguns comerciais de empresas

    multinacionais instigando o consumo dos seus produtos ps-modernos.

    Nesse sentido, a magia anterior ao filme e construo da paisagem

    externa dos templos dos cinemas dos anos 1960, 1970 e incio de 1980, tambm

  • 18

    se tornaram efmeras. Na verdade, foram metamorfoseadas pelos novos

    conglomerados econmicos que concentram as atividades sociais, culturais,

    econmicas e polticas em seus templos fechados, como nos burgos do perodo

    medieval, porm com uma roupagem nova denominada shoppings centers.4

    No entanto, os espaos e paisagens internos aos filmes continuam vivos,

    ativos e em constante aperfeioamento, com novas tcnicas digitais e sem alterar os

    verdadeiros propsitos do espetculo flmico e cinematogrfico, que expressar e

    representar nossas vivncias e relaes com o espao, a natureza e o prprio ser

    humano.

    Nossa convivncia naquela poca, naqueles espaos e paisagens foram

    marcantes na nossa vida e formao. De tal maneira que, ao chegar na

    universidade, encantado tambm pela geografia desde os primeiros letramentos,

    tentei imediatamente vincular as duas coisas geografia e cinema.

    TOMADA 02 - QUE DIABOS TEM A VER CINEMA COM GEOGRAFIA?!!!

    Essa foi uma das primeiras reaes que vivenciei, no incio dos anos 1990,

    quando declarei que pretendia concluir meu curso de bacharelado em geografia com

    uma monografia sobre cinema e geografia.

    Vrios colegas disseram: T louco! Fazer trabalho com cinema coisa l da

    comunicao.

    O mais impressionante foi que ouvi coisas desse tipo no s de colegas do

    curso, mas tambm de alguns professores. Por outro lado, alguns deles no me

    desanimaram, mas alegavam: Acho uma ideia fantstica, s no sei como fazer a

    vinculao e nem me atrevo a lhe orientar.

    Isso me deixou inquieto e angustiado, porque eu no conseguia desvincular

    as semelhanas e o parentesco entre a arte cinematogrfica e a cincia geogrfica.

    Para mim, era um casamento perfeito quando se tratava de analisar, representar ou

    criticar o espao, a paisagem e o tempo nas relaes sociedade/natureza.

    4 Sobre os Shoppings Centers h uma considervel literatura sobre o tema: MESQUITA, Dilma. Shopping Center: a cultura sob controle as relaes atuais entre literatura e sociedade de consumo. Rio de Janeiro: gora da Ilha, 2002; IWACOW, Ana Elisabeth. O comportamento jovem e os shoppings centers um objeto para a publicidade. Tese de doutorado em Cincia da Comunicao pela Unisinos, 2003; PADILHA, Valquria. Shopping center a catedral da mercadoria. So Paulo: Boitempo, 2006.

  • 19

    Ainda imaturo, no conseguia enxergar as demais categorias e conceitos

    inerentes aos dois, que me possibilitassem por um lado contra-argumentar as

    desfeitas, e por outro vislumbrar a forma de elaborar um projeto.

    Eis que, certo dia, cursando uma disciplina com um dos mais recentes

    professores contratados, falei da minha vontade. Ele prontamente me surpreendeu,

    indagando: At que enfim algum t enxergando arte e cincia num corpo s. E

    emendou: isso a garoto, o que voc pensa fazer?.

    Fiquei um pouco atordoado. Afirmei que no tinha certeza, mas via nos filmes

    muita geografia, principalmente nos documentrios, reportagens e nos filmes da

    National Geographics, assim como via na geografia muita coisa de cinema, s no

    sabia como unir os dois temas.

    Depois de alguns encontros e conversas, chegamos a um denominador

    comum, proposto por ele, que era demonstrar que o vdeo era um importante

    instrumento de registro de fenmenos geogrficos. Essa pesquisa resultou no meu

    trabalho de final de curso. Era algo como um gegrafo com a cmera na mo e o

    espao na cabea, parafraseando Glauber Rocha. A proposta foi intencional, j que

    eu trabalhava no ncleo de cinema da UFPB, como videomaker, e andava

    registrando e produzindo vdeos sobre o trabalho extramuros da universidade. A

    monografia recebeu destaque e foi publicado num Caderno de textos da Pr-reitoria

    de Extenso5.

    Fiquei empolgado e no consegui mais desvincular a geografia do

    audiovisual, passando a desenvolver inmeros trabalhos tanto num como no outro,

    ou com os dois juntos. Isso foi concretizado tambm na licenciatura e depois numa

    especializao em psicopedagogia, ambas realizadas na UFPB.

    Essa unio me empolgava muito, e ainda empolga, porque no conseguia me

    deter apenas no cinema enquanto entretenimento ou enquanto recurso de ilustrao

    pedaggica ou ainda como instrumento de registro da memria e da identidade de

    um lugar ou de costumes de um povo.

    O cinema para mim tem um efeito alm da imagem, da narrativa e do discurso

    audiovisual. Uma sala de cinema, por exemplo, tem a fora de modificar a paisagem

    5 NASCIMENTO, Renato Alves. O vdeo como instrumento de registro de fenmenos geogrficos. Srie Extenso, doc. 9 PRAC/COEx/NUDOC. Joo Pessoa: Cartex, 1996.

  • 20

    de um lugar e os hbitos de uma populao de maneira muito sutil, como vivenciei

    nos anos de 1960 a 1980, conforme descrevi aqui.

    Por isso quando comecei a estudar geografia e trabalhar com cinema,

    reportei-me quelas pocas e passei a tentar responder algumas questes, como:

    Ser que o cinema realmente modifica paisagens e lugares? Porque mesmo que as

    pessoas mudem os seus hbitos e costumes, com novas tecnologias inclusive, o

    cinema continua com a magia de concentrar multides? Ser que alguns filmes

    como documentrios e reportagens mudaram realmente a paisagem geogrfica de

    certos lugares ao divulgar as imagens e representaes dos mesmos? Qual a

    importncia da paisagem cinematogrfica em relao paisagem geogrfica

    enquanto narrativa, identidade e memria de um lugar ou de um povo?

    So questes que passaram a me inquietar e que hoje buscamos responder,

    ou pelo menos entender parte delas, ao longo da nossa investigao.

    O mais interessante nessa histria que s recentemente pesquisando para

    o mestrado me dei conta da quantidade de trabalhos existentes em torno da

    geografia e do cinema. Alm, claro, do cinema com outras cincias como a

    histria, a sociologia, a psicologia, a arquitetura e a filosofia, por exemplo.

    O melhor que essa juno de cincia e arte no nenhuma novidade na

    geografia, mesmo sendo um dilogo de certa forma ainda tmido. H muitos estudos

    e pesquisadores que trilham por esse caminho com vises bastante interessantes e

    distintas.

    TOMADA 03 - QUEM FAZ O QUE COM CINEMA E GEOGRAFIA

    Numa breve revista em trabalhos sobre geografia e cinema e seus

    respectivos autores, encontramos diversas abordagens e temas interessantes, alm

    de preocupaes com a pesquisa do cinema na geografia. A gegrafa portuguesa

    Ana Francisca de Azevedo, entre outras consideraes, alerta que Geografia e

    Cinema como domnio de investigao recai sobre a anlise do cinema como

    produto cultural que interfere na definio da interaco entre os indivduos e o

    espao reflectindo estruturas sociais e ideolgicas. (AZEVEDO, 2006, p.65-66)

    Ela aponta ainda que essa abordagem definida por autores como Zoon

    (1984), Gold (1985), Lukinbeal e Kennedy (1993), Zeimmerman (2005). Nessa

    seara, a prpria Ana Francisca nos seus estudos de Geografia e Cinema analisa a

  • 21

    paisagem cinematogrfica como representao cultural, do mesmo modo que Gandy

    (2004). Estudos sobre o efeito da indstria cinematogrfica e da produo de filmes

    no desenvolvimento econmico e na promoo de regies e lugares, tambm so

    notrios na geografia pelos estudos de Holloway e Millington (1999). H ainda

    trabalhos que so pautados nos aspectos geopolticos dos filmes, como os de

    Jenkin (1990); Godfrey (1993) e Klauss (2005), assim como estudos sobre a anlise

    do efeito das foras hegemnicas e contra-hegemnicas na representao dos

    lugares realizados por Rose (1994) e Macdonald (1994).

    Sendo assim, desde os anos 1980 temos uma considervel variedade de

    diferentes perspectivas de abordagens tericas e metodolgicas na investigao da

    geografia no cinema.

    Para Azevedo (2006) observvel que as anlises de carter mais

    sociolgico definem um conjunto de abordagens voltado para os aspectos do papel

    do filme na produo e reproduo de valores dos grupos dominantes, apontado por

    Burgess e Gold em 1985. Por outro lado, as anlises de carter cognitivista definem

    abordagens voltadas para os aspectos do papel do cinema enquanto mediador das

    relaes entre o indivduo e o ambiente, como to bem enfatizado por Aitken em

    1991.

    Enquanto sintoma de importantes alteraes ocorridas e verificadas no mbito

    da Geografia Humana, Azevedo (2006) indica que os estudos do cinema em

    geografia refletem duas grandes tendncias: a) o desenvolvimento das abordagens

    Humanistas e dos Estudos da Paisagem; b) o desenvolvimento dos Estudos Scio-

    culturais:

    Os primeiros tm como problemticas de anlise as representaes de paisagem e o significado dos lugares nos filmes, pelo que as aproximaes metodolgicas manifestam um pendor mais interpretativo, estando mais associadas s humanidades, Histria da Arte, Crtica Literria, e Esttica. Os segundos, centram as problemticas de anlise nas polticas scio-culturais subjacentes a cada filme, analisando relaes de subordinao e domnio que trespassam a construo do significado flmico, pelo que as aproximaes metodolgicas esto mais associadas Sociologia e aos mtodos de anlises qualitativa (AZEVEDO, 2006, p. 65)

    Essa natureza bipolar dos estudos e investigao geogrfica em cinema,

    desenvolvida nas ltimas dcadas, enfatizada por Christina Kennedy e Christopher

    Lukinbeal (1997), acusando a necessidade de uma eroso nos quadros tericos e

  • 22

    metodolgicos bipolares que, na verdade, revelam a naturalizao de ideologias

    baseadas numa racionalidade bipolar. De acordo com Azevedo (2006), a proposta

    de carter eminentemente holstica no conjunto de estudos e investigao neste

    domnio, at porque:

    Estruturadas as problemticas em torno dessas tendncias de investigao, a interpenetrao dos diferentes quadros tericos, funda um domnio de investigao cuja riqueza advm, antes de mais, do aprofundamento do dilogo intradisciplinar, dentro de uma disciplina cuja vitalidade radica na prpria porosidade transdisciplinar (AZEVEDO, 2006, p. 66).

    Essa afirmao notria aqui no Brasil onde j existe uma considervel

    investida nos estudos de cinema e geografia, assim como em vrios outros campos

    cientficos. Jorge Luiz Barbosa, professor da Universidade Federal Fluminense, por

    exemplo, desde meados de 1980 desenvolve pesquisas e produz textos sobre

    geografia e cinema como arte de representao do espao e da paisagem

    geogrfica. Entre os seus inmeros trabalhos destaca-se As paisagens

    crepusculares da fico cientfica: a elegia das utopias urbanas do modernismo, sua

    tese de doutorado (2002), que atravs dos filmes Metrpolis (1927), Alphaville

    (1965), Blade Runner (1982) e Matrix (1999) busca compreender a paisagem urbana

    como produto de concepes ticas e estticas que atravessam as prticas dos

    sujeitos em situao, anunciando a metrpole como um espao social habitado por

    utopias do Ser atravs da existncia.

    Outro que desde a dcada de 1990 tambm escreve e pesquisa sobre cinema

    o professor da Unicamp Wenceslao Machado de Oliveira Jnior. Os seus trabalhos

    apontam preocupao com o cinema na perspectiva de representao do espao e

    da paisagem urbana, mas tambm como recurso para pesquisa, a exemplo do texto

    O que seriam as geografias de cinema? (2011) em que ele prope uma pesquisa

    com as imagens e os sons de cinema, indicando para a criao de geografias

    oriundas do encontro entre os universos culturais de cada um de ns e as imagens e

    os sons de cada filme. Sua tese de doutorado Chuva de cinema: natureza e culturas

    urbanas, de 1999, um estudo em que as interpretaes ocorrem na atmosfera das

    chuvas dos filmes Antes da Chuva (1994) e Blade Runner (1982), as quais so

    importantes para as suas criaes. O foco do trabalho centrado nos tempos que a

  • 23

    chuva cria e nas portas de entrada que ela pode ser no entendimento das muitas

    temporalidades inventadas no cinema, como criaes poticas.

    O gegrafo Stefani Eduardo Baider destaque tambm neste contexto, uma

    vez que desenvolveu uma pesquisa de mestrado intitulada A geografia dos cinemas

    no lazer paulistano contemporneo: redes e territorialidades dos cinemas de arte e

    multiplex, apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    (FFLCH) da USP (2009) e orientada pelo professor Jlio Csar Suzuki. Baider

    recorreu, alm da bibliografia acadmica, aos guias semanais de jornais, e realizou

    entrevistas em campo com frequentadores dos diversos tipos de cinema. As

    questes abordaram as caractersticas dos pblicos e os motivos da escolha dos

    cinemas, entre outras. O objetivo foi a partir de um levantamento das salas cinema

    da cidade procurar entender como elas esto distribudas espacialmente e quais as

    repercusses sociais dessa distribuio no espao urbano paulistano.

    H ainda trabalhos como o do gegrafo Pedro P. Geiger, pesquisador

    associado do LAGET da UFRJ, que trilha por uma linha mais filosfica como no

    texto Cinema, Arte e a Geografia no cinema de David Lynch (2004). Aqui as

    correspondncias entre Geografia e Cinema so aprofundadas na tentativa de cobrir

    os temas do espao vivido e das representaes do espao, onde o foco maior

    procurar discutir as relaes entre Geografia e Cinema em uma perspectiva filosfica

    das relaes Arte/Cincia.

    Podemos encontrar tambm trabalhos com a preocupao do espao rural no

    cinema, como o do mestrado de Valesca Souza Farias da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul, intitulado Cinema e Geografia: a idealizao do rural (2005).

    Aqui h uma discusso de como o cinema retrata os movimentos de resistncia dos

    insurgentes da histria brasileira. Para isso, a autora analisa os filmes O drago da

    maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, produzido em 1969, e Cabra

    marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, filmado em 1964 e s finalizado em

    1984, depois que a equipe foi perseguida pelos militares e algumas latas de filmes

    apreendidas e destrudas na represso s ligas camponesas e aos cineastas que

    estavam resgatando a histria do assassinato do lder campons Joo Pedro

    Teixeira. Os dois filmes foram produzidos no perodo da ditadura militar e fizeram

    parte de grandes momentos de discusses cinematogrficas. O primeiro foi

    realizado sob a gide do movimento do cinema novo. O segundo, pelo Centro de

    Cultura Popular da Unio Nacional dos Estudantes/UNE, no auge das Ligas

  • 24

    Camponesas. O objetivo da autora foi proporcionar uma compreenso a respeito da

    construo cinematogrfica mundial, particularmente a americana, de como o

    cinema pode interferir na sociedade ou evidenci-la, e entender a forma como o

    cinema se apropria do espao geogrfico para construir suas narrativas.

    Geografia e cinema: paisagens e imagens do semirido nordestino, esse

    tema foi um trabalho de graduao de Pedro Paulo Pinto Maia Filho (2008),

    orientado pelo gegrafo e professor Doutor Caio Augusto Amorim Maciel, na

    Universidade Federal de Pernambuco. O texto tem como objetivo compreender

    como as paisagens do semirido nordestino, retratadas pela produo

    cinematogrfica recente (perodo 1996-2006), podem adquirir status de

    representantes de um quadro geral, contribuindo para a re-significao da ideia de

    serto na sociedade brasileira. Os autores analisaram os filmes Baile Perfumado

    (1996); Central do Brasil (1998); Eu, Tu, Eles (2000); Cinema, Aspirinas e Urubus

    (2005); O cu de Suely (2006) e rido Movie (2006), a fim de compreender como o

    cinema nacional se apropria do semirido no s como cenrio, mas tambm como

    parte da trama, tornando evidente a importncia simblica das paisagens e imagens

    do Nordeste seco na cultura brasileira.

    Alm desses trabalhos, h uma infinidade de textos voltados para o estudo de

    cinema e geografia, com as mais distintas abordagens, tais como: Geografias de

    cinema: do espao geogrfico ao espao flmico (2010), de Alexandre Aldo Neves,

    dissertao de mestrado em Geografia na Universidade Federal da Grande

    Dourados; Da geografia s imagens do cinema: uma discusso sobre espao e

    gnero a partir de Pedro Almodvar (2011), de Karina Eugenia Fioravante,

    dissertao de mestrado em Geografia na Universidade Estadual de Ponta Grossa;

    Cinema, geografia e sala de aula (2006), de Rui Ribeiro Campos, professor da

    Unicamp (uma breve anlise com indicao de filmes para o emprego de

    audiovisuais na sala de aula pelos professores de Geografia); Periferia no cinema:

    narrativas territoriais da periferia (2011), de Daniella Guimares Barcellos,

    dissertao de mestrado na Universidade Federal Fluminense; A geografia das

    imagens: discutindo o espao pblico no filme de Eric Rohmer (2009), de Alice

    Nataraja Garcia Santos, do programa de ps-graduao em geografia da UFRJ; O

    territrio em cena: Geografia, cinema e imperialismo (2008), de Manoel Fernandes

    de Sousa Neto, do departamento de Geografia da USP; Geografias de Cinema: A

    espacialidade dentro e fora do filme (2007), de Antonio Carlos Queiroz Filho,

  • 25

    pesquisador do Laboratrio de Estudos Audiovisuais da Unicamp; entre outros que

    seria quase impossvel enumerar aqui.

    Um fato visvel que na grande maioria desses estudos, textos e pesquisas

    dos filmes escolhidos, analisados e retratados so do gnero de fico. Quando se

    utiliza de documentrios, particularmente nos estudos de geografia, sempre de

    forma tmida ou fazendo comparaes com outro de fico, a exemplo de Cabra

    Marcado para morrer (documentrio) com O drago da maldade (fico), no trabalho

    de Valesca Souza Farias, citado anteriormente.

    Diante desse panorama que decidimos analisar Cinema e Geografia a partir

    de filmes documentrios. sabido que o uso de filmes documentrios foi prtica

    comum dos gegrafos nos anos 1950-1960 para ilustrar e retratar diferentes lugares,

    os quais eram considerados como uma janela sobre a realidade. (AZEVEDO,

    2006, p. 59)

    No Brasil, durante os anos de 1967 at 1989 o governo militar criou o Projeto

    Rondon com o objetivo de promover o contato de estudantes universitrios

    voluntrios com o interior do pas. O projeto oportunizava aos estudantes

    desenvolver pesquisas em diversas reas e realizar atividades assistenciais em

    comunidades carentes e isoladas. As aes e atuaes desenvolvidas pelo Projeto

    Rondon impulsionaram a produo de registros documentais no s escritos como

    de imagens fotogrficas e at cinematogrficas. Em 1989, quando foi extinto, o

    projeto tinha envolvido mais de 350 mil estudantes e professores de todas as

    regies do Brasil, o que gerou um acervo documental de grande valia6. A prtica

    desses registros foi, tambm, uma forte aliada na credibilidade e valorizao dos

    documentos imagticos no mbito acadmico e profissional nas diversas cincias,

    principalmente nas disciplinas de Histria e Geografia.

    S a partir da dcada de 1980 a investigao geogrfica em cinema passa a

    ser preocupao como campo de estudo na perspectiva crtica da utilizao de

    filmes enquanto representao rigorosa do mundo, dos lugares e das pessoas em

    seus ambientes e com suas culturas.

    6 Em 1970 o Projeto Rondon foi organizado como rgo autnomo da administrao direta e, em 1975, transformado em Fundao Projeto Rondon. As atividades, inicialmente desenvolvidas apenas durante frias escolares, evoluram com a criao do campus avanado, dos centros de atuao permanentes e de operaes regionais e especiais. O Projeto Rondon foi retomado mais de quinze anos depois de sua extino pelo governo federal e a pedido da Unio Nacional dos Estudantes (UNE), em Tabatinga (AM), a 19 de janeiro de 2005. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Rondon. Acesso em 23/06/2012)

  • 26

    Essa preocupao foi notria no s na geografia mas em diversas

    disciplinas, questionando o lugar do filme documentrio no seu conjunto de

    representao, como descrio objetiva da realidade. At porque um filme

    caracteriza sempre um olhar sobre o espao de forma subjetiva e determinada do

    seu realizador, como muito bem enfatiza Barbosa (2000):

    O processo de criao do cinema apoiou-se largamente na captura de formas espaciais. Desde a origem do cinema, o espao tornou-se um recurso de ambincia dos personagens, de localizao das tramas dos roteiros e de ndice de relaes e sentimentos. Essa particularidade da arte cinematogrfica faz com que autores a exemplo de Antonio Costa, definam o cinema como dispositivo de organizao de espaos para determinar papis que envolvem o diretor, ator e o prprio espectador (BARBOSA, 2000, p. 80)

    O renomado cineasta italiano Pier Paolo Pasolini afirma que o cinema se

    constitui de uma linguagem no convencional, diferente da falada e escrita, porque

    expressa o mundo no por meio de smbolos, mas atravs de uma realidade prpria.

    E Barbosa conclui:

    A criao dessa realidade prpria se constitui a partir das representaes do espao que o cinema constri de maneira singular, tecendo envolvimento entre o que se v (a forma) e o que se apreende daquilo que visto (o contedo). O registro cria seus objetos de elucidao, fazendo do sensvel e do inteligvel uma s matria constitutiva da linguagem-imagem. (BARBOSA, 2000, p.81)

    Na verdade, o confronto entre o filme de fico e o filme documentrio como

    descrio objetiva da realidade sempre foi latente nas artes e nas cincias. Na

    geografia os questionamentos se davam na evocao de um sentido de lugar e a

    explorao das qualidades estticas da paisagem, como elementos apelativos para

    a fixao de audincia e representaes enviesadas da realidade (AZEVEDO,

    2006). Isso por que:

    No filme documentrio, o nvel de realismo objetivo proposto na realizao do filme dava a idia de que o retrato factual produzido durante o processo de criao da manufatura no era alvo de manipulao. (...) Atestava-se para o nvel de subjetividade do realizador e como a narrativa condiciona a forma em que as audincias percebem o espao retratado (AZEVEDO, 2006, p. 60-61).

  • 27

    As discusses sobre o que real e o que fico nunca se esgotaram. Mas o

    entendimento da importncia de ambos na narrativa cinematogrfica como

    representao do espao/paisagem geogrficos, e nas relaes da sociedade com

    os seus lugares foi amenizado, e h um maior reconhecimento acadmico e

    cientfico da leitura crtica dessa mdia nas diversas cincias, particularmente na

    geogrfica contempornea. Isso por que, quando se utiliza de recursos ficcionais no

    filme documentrio, via de regra, na tentativa de proporcionar mais realismo a

    determinado fato, situao ou personagem retratado.

    No h como negar que todo conhecimento necessariamente subjetivo

    tanto quanto objetivo, e os desdobramentos do mundo que so puramente materiais

    e factuais, costumeiramente parecem muito ridos e inanimados para se assimilar.

    Sendo assim, um pouco de investida na subjetividade numa pesquisa geogrfica ou

    numa obra de arte no nenhum pecado quando o intuito primar por mais

    realismo ao objeto focado. David Lowenthal nos ensina que atrs dos simples fatos,

    exigimos experincias novas, de primeira mo, opinies e preconceitos individuais,

    e complementa quando trata das produes geogrficas, vislumbrando que: As

    geografias memorveis no so textos de compndios, mas estudos interpretativos

    incorporando um acentuado ponto de vista pessoal. (LOWENTHAL, 1982, p. 137)

    Nesse sentido, a nossa anlise do cinema documentrio est assentada

    numa leitura critica contextual, esttica e tcnica, mas tambm geogrfica, tomando

    como categoria ampla o espao e como conceito principal a paisagem.

    TOMADA 04 - UMA PAISAGEM QUE CONTA HISTRIAS

    A nossa anlise est pautada num conceito de paisagem, entendido aqui

    como de narrativizao (AZEVEDO, 2010), ou seja, uma juno de narrativa com

    visualizao, na busca de compreender a paisagem flmica e a paisagem geogrfica

    como paisagens que narram, mostram e contam histrias. Uma paisagem de

    narrativa flmica que descreve, identifica e representa a memria de um determinado

    lugar e dos processos de relao entre o espao, a sociedade e a natureza. Uma

    paisagem narrativa geogrfica que por si s uma narrativizao de um

    determinado espao, de um contexto histrico e de uma geografia retrospectiva.

    Em nossa opinio, essa paisagem uma constante no cinema documentrio

    ao se apropriar da paisagem geogrfica, que j narrativa, e construir o seu

  • 28

    discurso narrativo. O conceito de narrativizao apresentado por AZEVEDO

    (2010), quando trata da erotizao do punctum barthesiano da paisagem atravs

    dos filmes, alegando que leva a recodificao da percepo do lugar confrontando o

    assunto com a no dialtica, o no recuperado e o no inteligvel do passado, com

    uma inscrio particular do lugar, sendo assim:

    While activating the sense of a lost object, the film caption of the land functioned as a referent saturated by the operations of anideological narrativization of place and by its aesthetization. In a moment when the organization of experience denounced new forms of embodiment of space, the politics of image and the new Technologies of representation seam to reconfigurate the experience of landscape contemplation (AZEVEDO 2010, p. 433 - grifo nosso).7

    A ideia de paisagem, a nosso ver, uma construo que nasceu com um

    paradigma cultural concebido, desde cedo, a partir das relaes totalitrias e

    acabadas, entre ser humano (sujeito) e o meio ambiente fsico (objeto). Essa

    concepo est, de certa forma, posta no primeiro relato no incio deste texto

    quando dos nossos constructos nas paisagens em movimento das praas e dos

    cinemas dos anos de 1960 a 1980.

    Com efeito, h um pressuposto nessa ideia que decorre do esforo

    empreendido por ns na busca da subjetividade, no exerccio discreto de se

    expressar com posicionamentos e resultados, diante de um conjunto de prticas e

    vivncias do espao. Esse exerccio com a paisagem uma comunicao de

    primeira ordem do corpo com a terra, o lugar, a vida, os seres, numa re-leitura e re-

    escrita do espao de uma geografia da experincia, como enfatiza Azevedo (2008).

    A autora lembra que essa tarefa no privilgio s de gegrafos e da

    geografia, mas de todos aqueles que se encontram envolvidos na ativaco daquilo

    que Dona Haraway designa pela cincia como cultura pblica (AZEVEDO, 2008, p.

    12). Nesse sentido, a partir do momento em que algum est simplesmente a olhar

    para uma dada poro do espao j um artifcio para modelar e interpretar a

    paisagem, em estado natural, antes de se tornar um trabalho de arte ou da cincia.

    7 Enquanto ativa os sentidos do objeto perdido, a captura cinematogrfica do lugar funciona como uma referncia saturada pelas operaes de uma narrativisao ideolgica do lugar e pela estetizao. No momento, quando a organizao da experincia denuncia novas formas de personificao do espao, as polticas de imagens e as novas tecnologias de representao vem para reconfigurar a experincia de contemplao da paisagem (Traduo de Jos Jouberto Fonseca Lopes e grifo nosso)

  • 29

    Para Azevedo (2008), aqui o incio de um processo pelo qual o espao

    convertido em paisagem pelo observador.

    Uma converso mental que tem vindo a ser efectuado de forma recorrente h sculos e na qual a arte e as tcnicas de representao se especializaram. Posteriormente, o desenvolvimento de uma cultura visual, do movimento e da viagem contribuiu para a naturalizao desta ideia, uma ideia que simultaneamente foi sendo legitimada por uma ordem de conhecimento (AZEVEDO, 2008, p. 18).

    A noo de paisagem inicialmente compreendida como construo cultural foi

    evoluindo atravs da incorporao de sistemas de signos geogrficos. Nesse

    sistema, o termo original de paisagem surgiu de Landschaft, termo germnico que

    no conjunto de inflexes semiticas teve inmeros significados noutras lnguas

    europeias. Azevedo alega que Kenneth Olwig afirmou que a primeira inflexo

    semitica do termo ocorreu em resposta importao pelas artes de um termo pr-

    moderno associado ao territrio de um grupo ou comunidade.

    Usada desde o Renascimento para a designao artstica de um conjunto de representaes pictricas de natureza, a deslocao desta ideia veio inverter o sentido original do termo, o qual, na cosmologia orgnica do feudalismo, estava associado a valores comunitrios de uso e de controlo da terra e a um sentido de pertena a um territrio agrrio colectivo a que os indivduos se ligavam por laos de sangue. Posteriormente, e j sob o efeito das artes cenogrficas, este termo veio a significar a aparncia de uma rea e, mais especificamente, a representao de um cenrio, passando a ser entendido paralelamente como representao e como realidade material. (AZEVEDO, 2008, p. 20)

    Jean Marc Besse, em seu livro Ver a Terra (2006), ao analisar a paisagem

    alm da esttica, afirma ser a noo de paisagem na modernidade um dos

    postulados mais disseminados atualmente e talvez o menos discutido. Essa noo

    faz dela essencialmente uma representao de ordem esttica e que tem sua

    origem, antes de tudo, pictrica. Besse comenta ainda que:

    De fato, trs termos so encadeados (representao, esttica, pintura) para afirmar que a paisagem , de maneira geral, uma construo cultural, que ela no um objeto fsico, que ela no deve ser confundida com o ambiente natural, nem com o territrio ou o pas. A paisagem da ordem da imagem, seja esta imagem mental, verbal, inscrita sobre uma tela, ou realizada sobre o territrio (in visu ou in situ) (BESSE, 2006, p. 61).

  • 30

    Para esse autor, na medida em que se concebe a paisagem como uma

    construo cultural, necessrio fazer jus a outros olhares culturais lanados sobre

    a natureza e outros universos de significao, outras prticas e outros conceitos.

    Isso porque h o olhar do cientista, do mdico, do engenheiro, do religioso, do

    peregrino, entre tantos outros. Com efeito, esses diferentes olhares sejam eles

    estticos, tcnicos, cientficos, polticos ou religiosos, surgem no interior de uma

    dada cultura, numa modalidade que pode ser descrita historicamente e

    sociologicamente. Segundo Besse:

    Parece, consequentemente, mais razovel encarar a questo da paisagem no mbito de uma indagao antropolgica geral sobre o desenvolvimento e as transformaes das culturas visuais do que encar-las de modo restritivo somente no interior da esfera esttica. (...) os intercmbios entre a cincia e a arte, no concernente paisagem, so muito mais freqentes e muito mais profundos do que geralmente se supe (BESSE, 2006, p. 62).

    Nesse sentido, a paisagem um signo ou um conjunto de signos, que

    preciso aprender a decifrar, descrever numa perspectiva, alm da emoo, num

    esforo de interpretao que , tambm, um exerccio de conhecimento. Na

    verdade, Besse afirma que a ideia que h de se ler a paisagem e que ler a

    paisagem extrair forma de organizao do espao, extrair estruturas, formas,

    fluxos, tenses, direes e limites, centralidades e periferias. (BESSE, 2006, p. 64)

    Uma anlise geogrfica da leitura da paisagem toma como ponto de partida

    que a paisagem o resultado, o efeito, ainda que indireto e complexo de uma

    produo, mesmo sendo a paisagem uma dimenso do visvel. A paisagem um

    produto objetivo, do qual a percepo humana s capta, de incio, o conjunto

    exterior. (BESSE, 2006, p. 65)

    De fato, as paisagens humanas esto inscritas em todos os lugares. Essas

    inscries ou impresses so paisagens que interessam aos estudos das cincias

    humanas, particularmente aos gegrafos. O renomado gegrafo Milton Santos, em

    sua obra A natureza do espao (2009), nos ensina que paisagem e espao no

    so sinnimos uma vez que a paisagem o conjunto de formas que, num dado

    momento, exprimem as heranas que representam as sucessivas relaes

    localizadas entre homem e natureza. O espao so essas formas mais a vida que as

    anima. (SANTOS, 2009, p. 103). Ele afirma ainda que a paisagem histria

  • 31

    congelada, mas participa da histria viva e que numa perspectiva lgica paisagem

    j o espao humano em perspectiva (SANTOS, 2009, p. 106).

    Como diz Besse (2006), a paisagem, aos olhos do gegrafo, uma

    impresso e que ele no o nico a encarar a paisagem desse modo. Esta

    abordagem tambm a do historiador, que coloca como princpio da anlise

    histrica, no que concerne paisagem real, que a paisagem um testemunho

    humano (BESSE, 2006, p. 67).

    Esse testemunho humano ser, sem dvida, alvo das nossas anlises

    flmicas, at porque imagens cinematogrficas so textos codificados que veiculam

    complexas construes geogrficas, mas permitem decifrar o contexto cultural em

    que foram produzidas. Como bem enfatiza Azevedo (2012), o cinema proporciona a

    compreenso do envolvimento do ser humano com o ambiente, pois apresenta-nos

    uma matriz de cdigos visuais e de smbolos cuja explorao permite a anlise das

    mais diversas problemticas que marcaram a construo da ideia de paisagem na

    cultura ocidental (AZEVEDO, 2012, p. 01).

    Ainda, para ela, analisar essa construo da ideia de paisagem na cultura

    ocidental implica a compreenso da prpria experincia de paisagem em distintos

    contextos e a sua apropriao pelos discursos geogrficos em diferentes perodos

    (Ibid, p. 01). A representao dessa paisagem foi fixada atravs de convenes

    artsticas e importada para a cincia e, particularmente, uma composio atrativa

    para o movimento de legitimao da arte cinematogrfica, tanto do ponto de vista

    ficcional quanto documental.

    For that, filmic technicians worked complex techniques as framing, editing or depth of Field, which allowed a higher degree of realism in the act of registering intertwined moments of time and space transforming the act of shooting in a coherent narrative (AZEVEDO, 2010, p. 432).8

    Sendo assim, a nossa concepo de paisagem narrativa coerente ser

    fundamentada nos conceitos e descries que foram expostas aqui, desde David

    Lowenthal, com a importncia da simplicidade e subjetividade na pesquisa cientfica;

    Jean Marc Besse, na valorizao da paisagem com uma viso antropolgica para o 8 Para isso, profissionais de cinema trabalham em tcnicas complexas de frames, edio ou profundidade de campo, que os permite um degrau maior de realismo no ato de registrar momentos entrelaados de tempo e espao transformando a cena em uma sequncia narrativa coerente". (Trad. Jos Jouberto Fonseca Lopes)

  • 32

    desenvolvimento das culturas visuais; Jorge Luiz Barbosa, na afirmao de que o

    cinema constri as representaes da realidade de maneira singular sobre o que se

    v (a forma) e o que se apreende do visto (o contedo); e, principalmente, com as

    teses de Ana Francisca de Azevedo sobre a paisagem como narrativa com uma

    presena de referncia original, capturada pela arte do cinema em operaes de

    narrativizao ideolgica e de estetizao, para reconfigurar a experincia de

    representao e contemplao da paisagem.

    Nas anlises dos filmes selecionados, no tocante s questes de ordem

    tcnicas, estticas e de linguagem audiovisual, a nossa experincia ser

    fundamental, mas faremos luz de tericos da literatura da arte cinematogrfica,

    tais como Christian Metz (A significao no cinema - 2004); J. Dudley Andrew (As

    principais teorias do cinema - 2002); Antonio Costa (Compreender o cinema -

    1989); Joo Batista Brito (Imagens Amadas Ensaios de crtica e teoria de

    cinema - 1995); Bill Nichols (Introduo ao documentrio - 2005); Silvio Da-Rin

    (Espelho partido tradio e transformao do cinema documentrio - 2004);

    Joo de Lima Gomes (Aspectos do cinema documentrio - 1992); Andr

    Gaugreault e Franois Jost (A narrativa cinematogrfica - 2009); Nobert Alcover e

    Luiz Urbez (Introduccin a la lectura del film - 1976); entre outros.

    Do mesmo modo sero basilares as leituras flmicas das experincias e obras

    de cineastas como Serguei Einseinstein: A greve (1924), O Encouraado Potemki

    (1925), Outubro (1927); Dziga Vertov: Srie Kinonedelia (1919), O aniversrio da

    Revoluo (1919), Srie Kinopravda (1925), A sexta parte do mundo (1925), O

    Homem com a cmera (1929); Robert Flaherty: Nanook (1922), O oleiro (1925),

    Moana (1925), Tabu (1931), O homem de Aran (1934); Linduarte Noronha: Aruanda

    (1960), O cajueiro nordestino (1962), O salrio da morte (1971); Glauber Rocha:

    Barra Vento (1962), Deus e o diabo na terra do sol (1963), O drago da maldade

    contra o santo guerreiro (1968), A idade da Terra (1980); e o prprio Vladimir

    Carvalho. Esses nomes sero referenciados sempre que necessrio, especialmente,

    em cada anlise dos documentrios nos captulos seguintes.

    Conscientes da importncia da imagem cinematogrfica na construo das

    suas narrativas com a paisagem geogrfica, que nos apropriamos do cinema

    documentrio de Vladimir Carvalho, enquanto discurso flmico da histria e dos

    contextos scio-poltico-cultural do Nordeste. Essa apropriao se d na curiosidade

  • 33

    de identificar quando e como os seus filmes, escolhidos por ns, representam a

    paisagem do Nordeste e dos nordestinos na concepo desse cineasta.

    TOMADA 05 - VLADIMIR CARVALHO E SUAS PAISAGENS NORDESTINAS

    Para analisar esse conceito de paisagem no cinema documentrio e a

    geografia, escolhemos trs filmes de Vladimir Carvalho: dois de curta- metragem e

    um de longa-metragem. Trata-se dos curtas Os Romeiros da Guia (1962) e A

    Bolandeira (1968), e o do longa O Homem de Areia (1982). A escolha dessas obras

    se deu devido ao contedo documental e a paisagem representativa do Nordeste e

    dos nordestinos, particularmente a Paraba, que os filmes retratam.

    Os Romeiros da Guia um registro documental sobre uma procisso

    realizada por pescadores que se deslocam em suas embarcaes, na travessia de

    um brao de mar, para a devoo Nossa Senhora da Guia, entre as cidades de

    Lucena e Cabedelo, na Paraba. O documentrio aborda o lado religioso e o profano

    da romaria, com um toque dramtico e ficcional que o torna mais sensvel

    realidade tratada.

    A Bolandeira faz um resgate histrico da decadncia dos engenhos de acar

    no Nordeste. No filme, Vladimir Carvalho parte de uma pea da engrenagem que

    move o engenho, feita de madeira, conhecida como bolandeira (o que deu nome ao

    filme), para construir a narrativa. O discurso flmico, alm das imagens em

    movimento, tambm ilustrado com pinturas de engenhos antigos de Rugendas,

    Vischer e Franz ainda com o uso da mo-de-obra escravizada, e um poema do

    poeta paraibano Jomar Morais Souto sobre o sacrifico dos trabalhadores na

    fabricao do acar e da rapadura.

    O Homem de Areia um filme denso, forte, enigmtico e poltico. Nele,

    Vladimir dar a conhecer a figura de Jos Amrico de Almeida, sua influncia no

    governo de Getlio Vargas e de Joo Pessoa, bem como sua atuao enquanto

    governador do Estado. Longe de ser apenas uma apologia ao lder poltico

    paraibano, poeta, jurista, escritor e precursor do romance regionalista com o livro A

    Bagaceira (1928), o documentrio resgata a histria conturbada da poltica

    paraibana com imagens e paisagens de um Nordeste multifacetado e estereotipado,

    mas atrelado a fatos da conjuntura nacional obscuros na histria brasileira.

  • 34

    So filmes que podem ser considerados como clssicos na filmografia

    paraibana, tanto pelo teor e importncia histrica como pelo formato. Os trs

    documentrios foram rodados e finalizados em 35mm e em preto e branco. Os dois

    curtas foram filmados sem captao de som direto, apenas o longa teve o som

    captado em sincronia, com microfone Nagra, top de linha em equipamento sonoro

    na poca. So documentrios tradicionais e de narrativa linear, que tm a assinatura

    inconfundvel de Vladimir Carvalho e o seu modo muito peculiar de conceber um

    fato, uma histria ou um tema especfico.

    Definir especificamente um modo de filmes ou o gnero adotado, sempre foi

    tarefa difcil para cineastas e estudiosos. Bill Nichols, autoridade conhecida

    internacionalmente no campo do documentrio e de filme etnogrfico, professor de

    cinema na San Francisco State University, esboou uma pretensa classificao para

    os modos de documentrio. So seis as denominaes convencionadas por ele:

    potico, expositivo, observativo, participativo, reflexivo, performtico. Esses modos

    podem ser utilizados apenas como parmetro argumentativo para uma espcie de

    subgnero do documentrio (conceito adotado por ele), mas que so bastante

    flexveis e se interpenetram quando da tentativa de considerar ou definir uma obra

    documental, como o prprio Nichols esclarece:

    A ordem de apresentao desses seis modos corresponde, aproximadamente, cronologia do seu surgimento. Portanto, pode parecer fazer uma histria do documentrio, mas imperfeitamente. A identificao de um filme com um certo modo no precisa ser total. Um documentrio reflexivo poder conter pores bem grandes de tomadas observativas ou participativas; um documentrio expositivo pode incluir segmentos poticos ou performticos. As caractersticas de um dado modo funcionam como dominantes num dado filme: elas do estrutura ao todo do filme, mas no ditam ou determinam todos os aspectos de sua organizao. Resta uma considervel margem de liberdade (NICHOLS, 2005, p. 136).

    Mas o que caracteriza esses subgneros de documentrio proposto por

    Nichols (2005)?

    Um documentrio de modo potico enfatiza associaes visuais, qualidades

    tonais ou rtmicas, passagens descritivas e organizao formal. Trata-se de um

    modo muito prximo do cinema experimental, pessoal ou de vanguarda.

  • 35

    Um documentrio de modo expositivo procura dar nfase ao comentrio

    verbal e a uma lgica argumentativa. Esse modo o que a maioria das pessoas

    identifica como sendo um documentrio geral.

    Um documentrio de modo observativo prioriza o engajamento direto no

    cotidiano das pessoas que representam o tema do realizador, conforme so

    observados por uma cmera discreta.

    Um documentrio de modo participativo enfatiza a interao do realizador e o

    tema. A narrativa construda com entrevistas ou outras formas de envolvimento

    ainda mais direto. Geralmente ilustrado com imagens de arquivo para examinar

    questes histricas.

    Um documentrio de modo reflexivo procura chamar a ateno para as

    hipteses e convenes que regem o cinema documentrio. Com uma narrativa

    metalingustica, esse tipo de produo agua a conscincia do espectador para a

    construo da representao da realidade impressa no filme.

    Um documentrio de modo performtico prioriza o aspecto subjetivo ou

    expressivo do prprio engajamento do realizador com seu tema e a receptividade do

    pblico a esse engajamento. Dessa maneira rejeita ideias de objetividade em favor

    de evocaes e afetos. Geralmente os filmes desse modo compartilham

    caractersticas com filmes experimentais, pessoais e de vanguarda, mas com uma

    vigorosa nfase no impacto emocional e social sobre o pblico.

    Com esses parmetros de classificao, podemos dizer que Os Romeiros da

    Guia um documentrio de modo expositivo com segmento potico. J A bolandeira

    um documentrio de modo potico com segmento expositivo. Enquanto que O

    Homem de Areia um documentrio de modo participativo com segmentos reflexivo,

    observativo, expositivo e potico.

    Desse modo, buscamos analisar e compreender como Vladimir Carvalho,

    cineasta paraibano radicado em Braslia, se utiliza das paisagens do Nordeste e dos

    nordestinos para realizar os seus filmes. Ao mesmo tempo procuramos entender

    como se d a narrativa dessas paisagens, enquanto representao da paisagem

    geogrfica do Nordeste e do seu povo com as suas crenas, culturas e vivncias,

    assim como pelo discurso criado de espao hostilizado tambm pela natureza.

    A primeira vista percebvel que os filmes de Vladimir Carvalho, nas suas

    mais diversas abordagens, tm sempre uma preocupao com o trabalho em si, as

    tcnicas empregadas pela produo humana e, particularmente, com os

  • 36

    trabalhadores de maneira geral e o processo de explorao da mo-de-obra. Por

    isso, na leitura das narrativas e paisagens impressas nos filmes escolhidos, levamos

    em considerao os aspectos contextuais, histricos, econmicos, polticos e,

    obviamente, geogrficos, como tambm os aspectos tcnicos e estticos de cada

    obra.

    A escolha dessas obras se deu, alm do j exposto, por identificar durante a

    nossa pesquisa a pouca importncia que foi dada aos filmes na poca em que foram

    lanados e/ou quando a crtica especializada se reporta produo de Vladimir

    Carvalho. So quase trinta filmes realizados na sua carreira e esses trs so os

    menos comentados de acordo com as fontes investigadas por ns, tais como:

    Cinemateca Brasileira, Nudoc/UFPB, Arquivo Nacional, MIS, sites de busca da USP,

    Unicamp, UFRJ, Unesp, UnB e os sites convencionais da web.

    Com efeito, no h nenhum artigo, texto ou estudo aprofundado sobre

    nenhuma dessas obras. Encontramos pequenos releases ou notas de jornais,

    revistas e catlogos de festivais. H maiores informaes sobre esses filmes no livro

    de Wills Leal intitulado A histria do/no cinema paraibano, e na tese de mestrado

    de Jos Marinho na ECA/USP, h uma pequena abordagem sobre a produo de

    Os Romeiros da Guia.

    Essa lacuna nos instigou mais ainda a trabalhar com os filmes e dar mais

    visibilidade s obras, porque entendemos ser de fundamental importncia para os

    estudos de cinema documentrio, para a geografia paraibana e para a paisagem

    nordestina e dos nordestinos representados nos trs documentrios.

    Outro critrio que nos levou a fazer essa escolha o fato de que neles a

    presena e a representao do Nordeste e dos nordestinos divergem da forma e do

    contedo com que esses personagens so representados nos filmes mais

    divulgados e conhecidos de Vladimir Carvalho. Por exemplo, no seminal e polmico

    Pas de So Saru (1971) os elementos narrativos, personagens e paisagens so de

    um Nordeste seco, devastado, de um povo sofrido pobre e miservel. Em

    Conterrneos Velhos de Guerra (1990), um dos seus filmes mais representativos da

    carreira, o Nordeste e os nordestinos esto fora da sua terra, como judeus errantes,

    e discorrem sobre sofrimento, trabalho duro e mal remunerado, injustias e mortes,

    culminando numa situao tambm de miserabilidade.

    A nosso ver, nos filmes escolhidos, esse Nordeste no est posto diretamente

    nas paisagens, mas sim de forma sutil no discurso diegtico. Neles, o Nordeste e os

  • 37

    nordestinos se apresentam num patamar mais digno do carter de um povo por

    demais sofrido e submisso, mas que no reclama da sua sina, so felizes, e at

    cantam e danam como em Os Romeiros da Guia. Ou so representados na

    inteligncia tcnica de construir, com madeira, uma engrenagem de moinho de

    engenho que ganha vida na narrativa flmica em imagens e versos de um poeta

    nordestino renomado.

    Nessa mesma direo, O homem de Areia o filme onde a expresso mais

    nobre de um nordestino intelectual, poeta, escritor, jurista, poltico de

    reconhecimento nacional exposto sem apologias, recebendo crticas de seus

    adversrios, mas imponente nas suas concepes, posturas e viso de Nordeste e

    de Brasil, ou seja, uma paisagem de Nordeste e de nordestinos que no se encontra

    nos filmes mais destacados de Vladimir Carvalho. Neste filme h sim uma

    representao de uma regio seca, de povo pobre e sofrido, apenas numa

    sequncia que ilustra a autobiografia de Jos Amrico quando da sua viagem ao

    serto feita, ainda, montado a cavalo.

    Nesse sentido, esse Nordeste e nordestinos um pouco diferentes dos

    propalados - no s nos filmes de Vladimir Carvalho mas na maioria das expresses

    artsticas -, que nos interessa e o foco das nossas anlises do espao e da

    paisagem narrativa, flmica e geogrfica.

    TOMADA 06 - O NORDESTE E OS NORDESTINOS NAS TELAS DO CINEMA

    Os holofotes da poltica, da economia, da cultura e principalmente do cinema

    sempre estiveram com o foco voltado para a regio Nordeste. Os interesses de cada

    segmento neste espao do Brasil so os mais diversificados e diferentes. Algumas

    caractersticas como o preconceito, a pobreza, a misria e a seca alimentam, at

    hoje, o discurso dos que se utilizam e/ou se beneficiam do Nordeste e dos

    nordestinos enquanto locus e povo de contradies.

    Para muitos pesquisadores, estudiosos do assunto, o Nordeste uma regio

    vtima dos processos naturais que a tornaram um espao sofrido pelas secas

    constantes, descaso de governantes, consequentemente um lugar subdesenvolvido,

    pobre, de pessoas rudes e ignorantes. Assim sendo, torna-se um rico arsenal para

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    os prprios nordestinos extrair usuras do poder pblico com discursos demaggicos,

    complacentes e apelativos9.

    O historiador Albuquerque Jnior (2001), no seu livro A inveno do

    Nordeste e outras artes, procurou contribuir com a desmistificao deste conceito

    inventado sobre a regio Nordeste e o esteretipo do seu povo. Albuquerque Jnior

    afirma que essa inveno de um Nordeste seco e pobre, com gente de baixa

    estatura, diferente e mal adaptada, comeou nos meados da dcada de 1910,

    oriunda da runa da antiga diviso geogrfica entre Norte e Sul.

    No incio dos anos vinte, a percepo do intelectual que desembarca no Recife, vindo dos Estados Unidos, de que a prpria paisagem, o prprio fsico da regio, alterara-se profundamente. Seria outra, a sua crosta. Outra, a fisionomia. (...) O espao natural do antigo Norte cedera lugar a um espao artificial, a uma nova regio, o Nordeste, j prenunciada nos engenhos mecnicos ciclpicos usados nas obras contra as secas, no final da dcada anterior (ALBUQUERQUE JNIOR, 2001, p. 39).

    Antes disso, os problemas do Nordeste no eram vistos, ou sequer existiam

    para o Governo Federal ou para as prprias elites nordestina