ricardo da costa - extratos de documentos medievais sobre o campesinato

Upload: anderson-torres

Post on 16-Oct-2015

40 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Extratos de documentos medievais sobre o campesinato (scs. V-XV)Seleo, notas e bibliografia: Prof. Dr.Ricardo da Costa(Ufes)[1]

Famosa iluminura doEspelho das Virgens(sc. XIII), manuscrito destinado s freiras novias,que mostra o trabalho no campo, realizado, em sua maior parte, pelas prprias monjas.

Sumrio1.Sermo 13 (para uma parquia rural), de So Cesrio de Arles (470-543)2.(c. 574)Da correo dos rsticos, de So Martinho de Braga ( 520-580)3.(sc. VII)Etimologias, de Isidoro de Sevilha (c. 570-636)4.(sc. VIII)Frmula Turonense5.(c. 800) CapitularDe Villis6.(sc. IX) Polptico de Saint-Bertin7, 8 e 9.(c. 830-840)Cartasde Einhard10.(sc. IX)Polptico de Irmignon11.(sc. X)Documento da abadia de Cluny12.(997)Roman de Rou(Romance de Rolo), de Guillaume de Jumiges e Wace13.(1067)Cartulrio da Igreja de Notre-Dame14, 15 e 16.(c. 1110-1120)De vita sua, do monge Guiberto de Nogent (c. 1053-1125)17.(1192) Foral de Penacova, Portugal18.(meados do sculo XII)Arte de amar19.(final do sculo XII)Tratado do Amor Corts, de Andr Capelo20, 21, 22 e 23.(c. 1220-1235) Passagens da obraDialogus miraculorum, de Cesrio de Heisterbach24.(sc. XIII) Carta do abade de Beaulieu, no Limousin25.(c. 1255)Crnica annima de Sahagn primera(autor desconhecido)26.(1274-1276)O Livro da Contemplao em Deus, de Ramon Llull (1232-1316)27, 28, 29, 30 e 31.(1288-1289) Passagens da obraFlix ou o Livro das Maravilhas, de Ramon Llull32.(1295-1296) Arvore Questional, de Ramon Llull33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39.(sc. XIII-XIV) Setefabliaux(contos satricos burgueses) que retratam o campons40.(1311)A disputa entre Pedro, o clrigo, e Ramon, o fantstico, de Ramon Llull41.(1358)Crnicas, de Jean Froissart (c. 1337-1410)42.(c. 1394) Um campons ingls e sua famlia43.(1462) Captulos doProjeto de Concrdiaentre os camponeses da Catalunha e seus senhores.

Extrato 1Sermo 13(para uma parquia rural), de So Cesrio de Arles ( 470-543)III. (...) Vede, irmos, como quem recorre Igreja em sua doena obtm a sade do corpo e a remisso dos pecados. Se possvel, pois, encontrar este duplo benefcio na Igreja, por que h infelizes que se empenham em causar mal a si mesmos, procurando os mais variados sortilgios: recorrendo a encantadores, a feitiarias em fontes e rvores, amuletos, charlates, videntes e adivinhos?IV. (...) Onde quer que estejais, em casa, em viagem, comendo ou em reunies, no profira vossa boca palavras torpes e obscenas, e exortai os vizinhos e vossos prximos a que falem sempre o que bom e belo, e no palavras ms ou maledicncia. Evitai as danas organizadas nas festas religiosas, com suas canes torpes e obscenas: a lngua, com a qual o homem deveria louvar a Deus, ento usada para ferir a si mesmo.V. E ainda que eu creia que, com a ajuda de Deus e graas a vossos esforos, erradicados esto daqui aqueles desgraados costumes herdados do paganismo, no entanto, se ainda souberdes de algum que pratique a torpeza sordidssima dasanniculaou docervulus[2], repreendei-o severamente para que se arrependa de ter cometido sacrilgio. E, se conhecerdes quem ainda lana clamores lua nova, exortai-o e mostrai-lhe quo grande este pecado de ousar confiar-se proteo da luaque, simplesmente, por ordem de Deus, esconde-se de tempos em tempospor meio de seus gritos e imprecaes sacrlegas.E se virdes algum dirigir votos junto a fontes ou a rvores e ir procurar, como j dissemos, charlates, videntes e adivinhos, pendurar no prprio pescoo ou no de outros amuletos diablicos, talisms, ervas ou mbar, repreendei-o duramente, dizendo que quem cometer estes males perder a consagrao do Batismo.Traduo, apresentao e notas de Jean Lauand (USP). Publicado emVidetur 21.Extrato 2c. 574 Da correo dos rsticos, de So Martinho de Braga ( 520-580)Ao santssimo e por mim muito amado irmo em Cristo, Bispo Polmico, Bispo Martinho.Recebi a carta de vossa santa caridade, na qual voc me escreve que, para o castigo dos rsticos que ainda vivendo na superstio primitiva dos pagos, adoram os demnios em vez de Deus, devo-lhe enviar um certo trabalho, um tanto breve, a respeito da origem dos dolos e de suas abominaes. Mas, como necessrio oferecer-lhe uma breve descrio das coisas desde o incio do mundo de modo a satisfazer suas vontades, fui obrigado a tocar a vasta floresta de tempos e atos do passado em um curto compndio e temperar o alimento para os rsticos com a fala rstica. Ento, com a ajuda de Deus, assim deve ter incio seu sermo (...)Agora, o que que pode ser lamentavelmente dito do erro tolo pelo qual [os rsticos] observam os dias das mariposas e dos camundongos e um cristo (se que pode ser chamado assim) que venera ratos e mariposas em vez de Deus? Pois o po ou o tecido no guardado em um ba ou em uma caixa, assim de modo algum eles [os diabos] o pouparo por causa de banquetes especiais a eles ofertados. Mas homens miserveis fazem predies do futuro inutilmente, como se estando, no incio do ano, alimentado e feliz de todas as maneiras, assim ser por todo o ano. Todas essas observncias de pagos so engendradas por artifcio dos demnios (...)[3]Ed. C. W. Barlow,Martini episcopi Bracarensis Opera Omnia, Artigos e Monografias da Academia Americana em Roma, 12 (New Haven: Yale University Press, 1950), p.183-203, com correes de A. F. Kurfess, em Aevun, 29, (Milo, 1955), p. 181-186. Publicado em HILLGARTH, J. N.Cristianismo e Paganismo 350-750. A Converso da Europa Ocidental. So Paulo: Madras, 2004, p. 71-78.Extrato 3Sc. VII Etimologias, de Isidoro de Sevilha (c. 570-636)Ao rstico damos este nome porque ele trabalha o campo, a terra.SAN ISIDORO DE SEVILLA.Etimologas. Madrid: BAC, 2000, vol. I, X, 239, p. 845.Extrato 4Sc. VIII Frmula Turonense(Recomendao: ato jurdico no qual um homem livre entrava no patrocnio de algum)Aquele que se recomenda ao poder de um outro. Ao magnfico senhorx, eu,y. Dado que inteiramente conhecido de todos que eu no tenho com que me sustentar nem com que me vestir, solicitei vossa piedade e a vossa vontade concedeu-mo poder entregar-me ou recomendar-me na vossamaimbour[4]; o que fiz: pelo que, deste modo, devereis vs ajudar-me e auxiliar-me tanto quanto ao sustento como ao vestir, na medida em que eu puder servir-vos e merecer-vos. E enquanto eu viver vos deverei servir e respeitar como o pode fazer um homem livre, e em todo o tempo em que viver no terei poder para me subtrair ao vosso poder oumaimbour; mas, pelo contrrio, deverei ficar todos os dias da minha vida sob o vosso poder ou proteo. Em conseqncia destes fatos, ficou convencionado que, se um de ns quisesse subtrair-se a estas convenes, seria obrigado a pagar ao seu co-contratante a quantiaxem soldos, ficando em vigor a conveno. Pelo que pareceu bom que as partes fizessem redigir e confirmar dois diplomas do mesmo teor; o que fizeram.Formulae Turonenses. Publicado emFormulae Merovingici et Karolini Aevi, ed. K. Zeumer (MM. GG., in-4), p. 158. Citado em GANSHOF, F. L.Que o Feudalismo?Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, s/d, p. 19.Extrato 5c. 800 CapitularDe Villis(Sobre o rendimento de umavillacarolngia)[5]Cap. 62 Que cadajudexfaa um relatrio anual de todos os nossos rendimentos agrcolas[6]; um rol do que os nossos boieiros cultivam com os bois e dosmansosque devem lavrar[7]: um rol dos leites, das rendas, das obrigaes e das multas; da caa apanhada sem licena nas nossas florestas; das vrias composies[8]; dos moinhos, das florestas, dos campos, das pontes e barcos; dos homens livres e das centenas[9]que tm obrigaes para com o nosso fisco; dos mercados, das vinhas e daqueles que nos devem vinho; do feno, da lenha, varas, tbuas e outras espcies de madeiras; das terras vedadas; dos vegetais, milhete e paino[10]; da l, linho e cnhamo[11]; dos frutos das rvores, das aveleiras, tanto das maiores quanto das menores; das rvores enxertadas de todas as espcies; dos hortos; dos nabos, dos viveiros de peixes; das peles e couros; do mel e cera; da gordura, sebo e sabo; do vinho cozido, hidromel, vinagre, cerveja, vinho novo e velho; do trigo recente e antigo; galinhas e ovos; dos gansos; dos pescadores, ferreiros, armeiros e sapateiros; das arcas e cofres; dos torneios e seleiros; das forjas covas, ou seja, das minas de ferro e outras e das minas de chumbo; dos potros e guazinhas. Dar-nos-o conta de tudo isto, descrito separadamente e em ordem, na Natividade do Senhor, a fim de podermos saber o que temos de cada coisa e em que quantidade.Carlos Magno,De Villis, emMonumenta Germaniae Historica,Capitularia Regum Francorum, ed. A. Boretius, tomo I, Hanover, 1883, p. 85-89. Citado em SPINOSA, Fernanda,Antologia de textos histricos medievais, Lisboa, S da Costa Editora, 1981, p. 161.Extrato 6Sc. IX Polptico de Saint-Bertin[12]Guntberto tem oitobunnuariae cultiva quatro[13], Gerbardo tem trsbunnuariae cultiva uma, Stracfero tem seisbunnuariae cultiva uma e meia, o chefe da comunidade, Thegen, tem uma casa principal e outros edifcios, cincobunnuariade prados, vintebunnuariade terra cultivvel, cincobunnuariade um pequeno bosque e doze escravos; ocaballariusBerharius tem um manso, vintebunnuariade terra cultivvel, cinco de prados, seis de bosque, dois mansos de dozebunnuariae oito escravos.[14]Citado emCONTAMINE, Philippe, BOMPAIRE, Marc, LEBECQ, Stphane, SARRAZIN, Jean-Luc.La economa medieval.Madrid, Akal, 2000, p. 51-52.Extratos 7, 8 e 9c. 830-840 Cartasde Einhard(Eginhard, ou Eginhardo, c. 770-840[15], em favor de camponeses)1.Ao magnfico, honrado e ilustre homem, o gracioso conde Poppon, Eginhardo sada-o no Senhor. Dois pobres homens refugiaram-se na igreja dos bem-aventurados Marcelino e Pedro, mrtires de Cristo, confessando que eram culpados e que tinham sido convictos no roubo em vossa presena, como tendo furtado caa grossa numa floresta senhorial.[16]J pagaram uma parte da composio e devem pagar o resto, mas declaram que no tm com o que fazer, por causa de sua pobreza. Venho, pois, implorar a vossa benevolncia, na esperana de que (...) vos digneis trat-los com toda a indulgncia possvel (...)2.Ao nosso querido amigo, o gloriosovicedominus[17]Marchrad, Eginhardo, saudao eterna no Senhor. Dois servos de So Martinho, do domnio de Hedabach, de nome Williran e Otbert, refugiaram-se na igreja dos bem-aventurados mrtires de Cristo, Marcelino e Pedro, por causa do assassinato cometido pelo seu irmo num companheiro.[18]Pedem que lhes seja permitido pagar a composio pelo irmo, a fim de que lhes faam graa dos seus membros. Dirijo-me, pois, vossa amizade, para que vos digneis, se isso for possvel, poupar estes desgraados pelo amor de Deus e dos santos mrtires junto dos quais vieram procurar um refgio. Desejo que tenhais sempre boa sade, com a graa do Senhor.3.Ao nosso mui querido amigo, o glorioso conde Hatton, Eginhardo, saudao eterna no Senhor. Um dos vossos servos, de nome Huno, veio igreja dos santos mrtires Marcelino e Pedro pedir merc pela falta que cometeu contraindo casamento sem o vosso consentimento, com uma mulher da sua condio que tambm vossa escrava.[19]Vimos, pois, solicitar a vossa bondade para que em nosso favor useis de indulgncia em relao a este homem, se julgais que a sua falta pode ser perdoada. Desejo-vos boa sade com a graa do Senhor.Cartas de Eginhard, publicado em A. Teulet,Oeuvres Compltes dEginhard, Societ de lHistoire de France, Paris, 1843, tomo II, p. 13, 27 e 29. Citado em SPINOSA, Fernanda,Antologia de textos histricos medievais, Lisboa, S da Costa Editora, 1981, p. 183-185.Extrato 10Sc. IX Polptico de Irmignon(Passagem de um cadastro das propriedades e rendimentos da abadia de Saint-Germain-des-Prs [Paris], mostrando as obrigaes do colono)Walafredus, umcolonuse mordomo, e sua mulher, umacolona(...) homens de Saint-Germain, tm 2 filhos (...) eles detm 2 mansos livres com 7bunuariade terra arvel,6 acresde vinha e 4 de prados. Deve por cada manso uma vaca num ano, um porco no seguinte, 4 denrios pelo direito de utilizar a madeira[20], 2 mdios de vinho pelo direito de utilizar as pastagens[21], uma ovelha e um cordeiro. Ele lavra 4 varas para um cereal de inverno[22]e 2 varas para um cereal de primavera. Deve corvias, carretos, trabalho manual, cortes de rvores quando para isso receber ordens, 3 galinhas e 15 ovos (...)Polptico de Irmignon, B. Gunard,Polyptyque de labb Irminon, vol. II, 1844, p. 6. Citado em SPINOSA, Fernanda,Antologia de textos histricos medievais, Lisboa, S da Costa Editora, 1981, p. 185.Extrato 11Sc. X Documento da abadia de Cluny(Encomendao servil com perda de liberdade)Eu, Bertrio, coloquei a corda no pescoo e me entreguei sob o poder de Alariado e de sua esposa Ermengarda para que desde este dia faais de mim e de minha descendncia o que quiserdes, os vossos herdeiros o mesmo que vs, podendo guardar-me, vender-me, dar-me a outros ou manumitir-me, e se eu quiser subtrair-me a vosso servio podeis deter-me vs mesmo ou vossos enviados, do mesmo modo como o fareis com vossos restantes escravos originais.Recueil des chartes de labbaye de Cluny, Bernard A., Bruel, A. (ed.), Paris, 1876, tomo I, p. 887. Citado em PEDRERO-SNCHEZ, Maria Guadalupe.Histria da Idade Mdia. Textos e testemunhas. So Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 105.Extrato 12997 Roman de Rou(Romance de Rolo), de Guillaume de Jumiges e Wace(Revolta de camponeses na Normandia em 997)Os camponeses e os viles / Os da mata e os da plancie / Aos vinte, aos trinta, aos cem / Tiveram muitas reunies / E espalharam a divisa de seu conselho / Nosso inimigo nosso senhor / E falaram isso em segredo / E muitos juraram entre si / Que jamais, por sua vontade / Teriam senhor ou mediador (...) / Com tais ditos e palavras / E outras ainda mais loucas / Marcaram seu consentimento / E juraram solenemente / Que todos ficariam juntos / E juntos se defenderiam / E elegeram, no sei onde nem quando / Os mais hbeis, os que falavam melhor / Que foram por toda a regio / Recolher os juramentos (...) / Raul se exaltou de tal modo / Que no fez qualquer julgamento / Colocou todos tristes e doloridos / De muitos arrancou os dentes / E outros mandou empalar / Arrancou os olhos, cortou os pulsos / A todos mandou assar os jarretes[23]/ Mesmo que com isso morressem / Outros foram queimados vivos / Ou colocados em chumbo fervente / Assim tratou a todos / Ficaram com aspecto horroroso / No foram vistos depois disso em lugar nenhum / Onde no fossem reconhecidos / A comuna ficou reduzida a nada / E os viles se portaram bem / Se retiraram e se demitiram / Daquilo que tinham comeado.Roman de Rou. Citado em LE GOFF, Jacques.A civilizao do ocidente medieval II. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, p. 60-61.Extrato 131067 Cartulrio da Igreja de Notre-Dame(Revolta dos servos de Viry contra os cnegos de Notre-Dame de Paris)No ano 1067 da Encarnao do Senhor, sob o reinado de Felipe, rei dos francos, durante a vida de Godofredo, bispo de Paris, de Eudes, deo, e de Raul, preboste; durante a vida, igualmente, de Heberto, conde de Vermandois, e de Vuacelino, procurador de Viry, os servos de Viry, revoltando-se contra o preboste e os cnegos de Santa Maria, afirmaram no dever aquilo que seus ancestrais manifestamente pagaram, a saber, a guarda da noite, e poder, alm disso, sem a autorizao do preboste e dos cnegos, esposar as mulheres que quisessem. Sua oposio levou-nos a participar de uma audincia na qual eles demonstraram que no deviam precisar esperar a autorizao dos prebostes e dos cnegos. Mas como queriam, por seus raciocnios, reduzir esse costume a nada, pelos mritos de Maria, a santssima Me de Deus, suas lnguas se embaraaram de tal forma que o que eles haviam avanado, pensando fazer progredir os seus negcios, se voltou para confundi-los e dar plena satisfao aos nossos. Assim confundidos, segundo julgamento dos oficiais emitido conforme a lei, eles nos restituram o direito de guarda, repondo o deo Eudes a luva esquerda. Pelo direito, eles abandonaram a reivindicao sobre as mulheres estrangeiras: doravante no as desposaro sem a autorizao do preboste e dos cnegos.Cartulrio da Igreja de Notre-Dame, tomo III, Paris, ed. B. Gurard, 1850, p. 354-355. Publicado em DUBY, Georges,A Europa na Idade Mdia, So Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 13-14.Extratos 14, 15 e 16c. 1110-1120 De vita sua, do monge Guiberto de Nogent (c. 1053-1125)O castigo divino para osrepugnantes camponesesEles foram recebidos em quase todos os lugares com a reverncia que mereciam. Mas em uma vila a eles foi recusada admisso pelo padre em sua igreja e pelos camponeses em suas casas. Encontrando duas casas desabitadas, eles guardaram sua bagagem em uma e a usaram para alojamento enquanto a outra era usada para abrigar as santas relquias. Entretanto, os repugnantes camponeses persistiram em sua obstinada recusa de coisas divinas e os clrigos deixaram a vila no dia seguinte. Assim que partiram, repentinamente e com um terrvel estampido de trovo, um relmpago estourou entre as nuvens e atingiu a vila, reduzindo a cinzas todas as suas casas. E um maravilhoso sinal do senso de discriminao de Deus! aquelas duas casas que estavam situadas no meio das outras que estavam em chamas foram poupadas. Deus quis dar um sinal muito claro que se patifes foram afligidos com fogo era por causa do desrespeito que tiveram com a Me de Deus.Em relao ao padre perverso, que simplesmente havia aumentado a crueldade daqueles brbaros e que era supostamente educado, ele organizou os bens domsticos que pensou terem escapado do fogo divino e veio para a margem do rio (ou do mar, eu no tenho certeza), esperando atravessar. Mas l, tudo que ele coletou para se mudar para outro lugar foi aniquilado no local por relmpago. Assim, esse bando selvagem de rsticos que no eram instrudos nos mistrios de Deus foi levado a entender atravs de seu sofrimento. (De vita sua, 3, 13)O campons e o demnioCap. III, 19 Nessa mesma provncia, ao anoitecer de um sbado, um campons que retornava de seu trabalho havia se sentado sobre a margem de um crrego, descobrindo suas pernas e ps para lav-los. De repente, do fundo da gua na qual suas pernas estavam sendo banhadas, um demnio saiu e agarrou seu p. Sentindo-se preso, o campons gritou pedindo ajuda a seus vizinhos. Eles o levaram de volta a sua casa, onde em sua tpica maneira rude eles tentaram de todas as formas libertar seus ps. Eles se esforaram por um longo tempo nessa srie intil de esforos, mas todas as tentativas para livrar o homem foram vs.Coisas espirituais somente podem ser contra-atacadas por coisas espirituais. Finalmente, depois que andaram em crculos por um longo tempo, um peregrino uniu-se a eles agarrando os ps acorrentados do homem enquanto observavam e os libertou em segundos. Depois disso, ele desapareceu antes que algum pudesse perguntar quem ele era. (De vita sua, 3, 19)

O processo de dois camponeses herticos da aldeia de Bucy (Bucy-le-Long, cerca de trs milhas a leste de Soissons)Cap. XVII Visto que conhecemos os herticos que esse mpio conde de Soissons amava,[24]podemos mencionar certo campons chamado Clemente, que vivia em Bucy com seu irmo Evrard, uma vila na vizinhana de Soissons. Freqentemente anunciava-se que ele era um dos lderes de uma heresia. O infame conde costumava perambular dizendo que um homem mais sbio do que esse Clemente no podia ser encontrado em lugar algum. Esse no o tipo de heresia cujo ensinamento abertamente defendido pelos seus mantenedores. Pior, ela rasteja clandestinamente como uma serpente e somente se revela atravs de seus contnuos deslizes.Laconicamente, era encorajada pelos seus seguidores: eles declaram que a encarnao do filho da Virgem uma iluso; rejeitam o batismo de crianas antes da idade da razo, quaisquer que sejam seus padrinhos; invocam em seu prprio discurso a palavra de Deus, que se sucede atravs de uma longa recitao de palavras; odeiam o mistrio que ns cantamos sobre nossos altares e chamam a boca de qualquer padre deboca do inferno. A fim de ocultarem sua heresia de outros, eles sempre recebem nossos sacramentos. Naquele dia, se consideram obrigados a jejuar e no comem mais nada. No fazem distino entre os cemitrios de solo sagrado e qualquer outro tipo de solo. Condenam o casamento e a procriao da prole.De fato, por onde quer que estejam espalhados pelo mundo latino, esses homens podem ser vistos vivendo com mulheres sem tomar o nome de marido ou esposa. Nem mesmo podem-se ver homens e mulheres se confinarem aos mesmos parceiros: homens dormem com outros homens e mulheres com mulheres, pois asseguram que a relao de homens e mulheres um crime. Eliminam qualquer descendncia que brote de suas relaes. Eles mantinham seus encontros em galerias sob o solo, em pores escondidos e sem distino de sexo. Acendiam velas e se apresentavam para exibirem a uma jovem que e isso est relatado posicionava-se inclinada tendo suas ndegas expostas para todos verem.Em breve, as velas se apagavam e eles gritam Caos! de todos os lados e todos tinham relaes com a primeira pessoa que tinham em suas mos. Se uma mulher ficasse grvida no processo, voltavam para o mesmo lugar depois que ela tivesse dado luz. Uma grande fogueira acesa e aqueles sentados ao redor arremessam o beb de uma mo para a outra atravs das chamas, at que a criana esteja morta. Quando o corpo da criana est reduzido a cinzas, fazem po com elas e uma parte distribuda a todos, como um tipo de sacramento e, uma vez tomado, ningum se salva daquela heresia. Se algum rel a lista de heresias compilada por Agostinho, percebe que ela muito parecida com a dos maniquestas.[25]Originalmente iniciada por pessoas bem educadas, essa heresia absorveu os camponeses que, alegando estarem absorvendo a vida apostlica, tinham lido osAtos dos Apstolose um pouco mais. Ento, o bispo Lisiard de Soissons, um homem muito ilustre, intimou-os para o propsito de uma inquirio entre os dois herticos que mencionamos, diante dele. O bispo comeou acusando-os de realizar encontros fora da igreja e com herticos bem conhecidos por aqueles ao redor deles. Clemente respondeu: Meu senhor, voc no leu no Evangelhobeati eritis? [Voc dever ser abenoado?].[26]Como era iletrado, pensou que a palavraeritissignificava herticos e, alm disso, pensou que herticos era para ser entendido no sentido de herdeiros, ainda que no de Deus, para ser sincero.Quando foram interrogados sobre suas crenas, eles responderam da maneira mais crist e negaram manter tais encontros. Mas como essas pessoas tipicamente negam todas as acusaes e, em segredo, seduzem os coraes e as mentes de pessoas simples, foram sentenciados para exorcismo ao ordlio da gua. Enquanto os preparativos para esse ordlio estavam sendo feitos, o bispo me pediu para tomar em particular as opinies deles. Quando levantei a questo do batismo de crianas, eles responderam: Quem acredita e batizado ser salvo.[27]Como estava atento que uma boa resposta poderia, nesse caso, ocultar a mais soberba perversidade, perguntei a eles o que pensavam a respeito dos que so batizados de acordo com outra f, e eles responderam: Por Deus, no nos investigue to profundamente! E para cada uma das questes, acrescentaram: Ns acreditamos em tudo o que voc diz. Ento, eu me lembrei de um daqueles dizeres ao qual todos os priscilianistas costumavam aderir: Faa juramento, perjure, mas no entregue o segredo.[28]Ento virei para o bispo e disse: Como as testemunhas que os ouviram professar essa doutrina no esto aqui, levem-nos para o julgamento que foi preparado. As testemunhas eram certa dama que Clemente havia enlouquecido durante o ano passado, e um dicono que ouviu Clemente dizer as coisas mais perversas. Ento, o bispo celebrou a missa e os herticos receberam os sacramentos de sua mo assim que ele disse: O corpo e o sangue do Senhor pedem por vocs a prova neste dia. Mais tarde, esse bispo mais que sagrado dirigiu-se para as guas com Pedro, o arcediago, homem de f inabalvel que havia rejeitado os pedidos dos herticos para no serem submetidos ao ordlio. Com muitas lgrimas, o bispo recitou as litanias e procedeu ao exorcismo.Depois disso, o acusado jurou que nunca havia acreditado ou pensado em coisa contrria nossa f. Atirado dentro do tanque de gua, Clemente ficou boiando como um pedao de palha. Vendo isso, toda assemblia foi arrebatada com jbilo. Deve ser acrescentado que esse teste havia arrastado uma multido de ambos os sexos e que ningum conseguiu se lembrar de ter visto algo assim. O companheiro de Clemente confessou seu erro, mas sem expressar qualquer remorso. Com seu irmo condenado, ele foi atirado em uma cela. Dois outros herticos declarados da vila de Dormans[29]vieram para o espetculo e do mesmo modo foram arrastados. Ns ento fomos ao Conclio de Beauvais para consultar os bispos sobre o que deveria ser feito. Mas enquanto isso, o povo, cheio de f e temendo a fraqueza do clero, correu para a priso, forou-a e queimou os herticos em uma grande pira acesa fora da cidade. Assim, o povo de Deus, temendo que esse cncer se espalhasse, fez justia com suas prprias e zelosas mos.[30]De vita sua, cap. XVII O julgamento e a punio de alguns herticos em Soissons. Publicado em ARCHAMBAULT, Paul J.A monks confession: the memoirs of Guibert of Nogent. Pennsylvania State University Press, 1996, p. 195-198. Trad. e notas: Prof. Carlile Lanzieri Jnior.Extrato 171192 Foral de Penacova, Portugal(A dependncia dos habitantesdo novo concelho[31][cavaleiros vilos[32]] ao senhor local)Aquele que lavrar com um jugo d um moio.[33]Aquele que lavrar com dois d um moio. Aquele que lavrar com mais de dois, de quantos bois forem, dois quarteiros[34], um quarteiro de trigo e outro de milho. Aquele que lavrar trigo e milho d metade de um e metade de outro. Aquele que no houver onde dar jugada de milho, d a quarta. O cavo que lavrar trigo ou milho ou centeio d uma teiga do po que lavrar.[35]O peo d a dzima de seu vinho (...) O peo de Penacova faa no ano uma via e seja to longa aquela via que possa tornar nesse dia sua casa; e faa o seu fossado.[36]O cavaleiro que houver herdades fora, sejam-lhe livres (...) E o cavaleiro e os seus homens iro ao fossado de El-Rei (...) Os cavaleiros e os pees faam cubas e casas no castelo de Penacova ao senhor de Penacova e dessa mesma terra. E quando fizerem as cubas ou as casas, o senhor da terra dar aos que a lavrarem de comer (...) e o senhor da terra receba o seu relego por trs meses[37], convm a saber, Janeiro, Fevereiro e Maro (...) Dos peixes do mar que trouxerem pelo rio Mondego, dem a dzima ao senhor da terra at ao ms de Maio (...) Os monteiros que forem a monte, daquele veado que matarem daro ao mordomo o lombo (...) E se alguma coisa por esquecimento ficou que no fosse aqui escrita, ponham-na depois (...)Foral de Penacova, publicado emPortugalia Monumenta Histrica Leges et Consuetudines, vol. I, Kraus Reprint, Liechtenstein, 1967, p. 483-485. Citado em SPINOSA, Fernanda,Antologia de textos histricos medievais, Lisboa, S da Costa Editora, 1981, p. 183-185.Extrato 18Meados do sculo XII Arte de amarA vontade de amar que o vilo sente o excita como a uma besta selvagem; ele no pode empregar seu corao em nenhum tipo de cortesia nem em bondade alguma, pelo contrrio, ele ama loucamente e sem dissimulao. E o que h no amor, mas uma espcie de furor quando os viles resolvem amar. Pois ningum pode saber amar se no conhecer a maneira de amar do sculo e seus uso.Citado em ANDR CAPELO,Tratado do Amor Corts.So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 207, n. 130.Extrato 19Final do sculo XII Tratado do Amor Corts, de Andr Capelo(Andr responde ao amigo Gautier ...como dois amantes podem preservar a integridade de seu amor bem como os meios pelos quais os que no so amados podem libertar-se das flechas que Vnus lhes enterrou no corao.)Captulo XI Do amor entre rsticosPara que no chegues a pensar que o que dissemos antes a respeito do amor entre os plebeus se aplica tambm aos camponeses, acrescentaremos algumas observaes a respeito destes. Afirmamos que perfeitamente impossvel encontrar camponeses que sirvam na corte do Amor, pois eles so naturalmente levados a realizar as obras de Vnus como o cavalo e o mulo[38], que so ensinados pelo instinto natural. que aos camponeses bastam os incessantes trabalhos da terra e os prazeres ininterruptos da lavoura e da charrua.Mas mesmo que, contrariando a sua natureza, lhes acontea raramente, verdade ser instigados pelo aguilho do amor, no convm inici-los na arte de amar: seria de se temer que, desejando comportarem-se em oposio s suas disposies inatas, eles abandonassem a cultura das ricas terras que frutificam habitualmente graas a seus esforos, e que estas se tornassem improdutivas para ns. Mas se por acaso o amor das camponesas te atrair, abstm-te de lisonje-las com muitos louvores, e, se encontrares ocasio propcia, no hesites em satisfazer teus desejos e possu-las fora; porque dificilmente poderias vencer o rigor que ostentam a ponto de se confessarem prontas a ceder sem restries ou permitir que obtenhas os prazeres que delas esperas. Antes de tudo preciso coagi-las um pouco para cur-las do pudor. No entanto, dizendo isso, no pretendemos incitar-te a amar camponesas; queremos apenas que, se imprudentemente fores levado a am-las, possas aprender com estes poucos preceitos que atitude adotar.ANDR CAPELO,Tratado do Amor Corts.So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 206-208.Extratos 20, 21, 22 e 23c. 1220-1235 Passagens da obraDialogus miraculorum, de Cesrio de HeisterbachO campons e o diaboUm campons agonizava; um diabo ameaava enfiar-lhe na boca uma estaca inflamada. Conhecendo o seu pecado, o campons se virava para c e para l, mas o diabo no parava de assombr-lo com sua estaca. Ele tinha plantado uma estaca da mesma forma e da mesma grossura que tinha em seu campo no de um honesto cavaleiro da mesma aldeia, para ganhar parte de sua propriedade. Mandou os seus at esse cavaleiro, prometendo restituir-lhe o que havia tomado e implorando-lhe para perdo-lo. O cavaleiro lhes disse: No perdoarei: que ele seja bem torturado. De novo o campons se viu aterrorizado, como da primeira vez; de novo enviou os seus, mas no obteve o perdo. Uma terceira vez seus mensageiros, banhados em lgrimas, foram at o cavaleiro, dizendo: Ns lhe suplicamos, senhor, em nome de Deus, perdoe esse infeliz, pois ele no pode morrer e no lhe permitido viver. O cavaleiro respondeu: Estou bem vingado: eu perdo. Nesse momento cessou toda a angstia diablica.O dio entre as duas linhagens de camponesesNa diocese de Colnia, um dio mortal separava duas linhagens de camponeses. Cada qual tinha por chefe um campons influente, orgulhoso, que sempre fomentava novos conflitos, instigando-os e impedindo qualquer acordo. Quis o cu que eles morressem no mesmo dia. E como fossem da mesma parquia, pela vontade de Deus, que queria fazer conhecer atravs deles quo ruim a discrdia, os dois cadveres foram colocados na mesma cova. Coisa admirvel e inaudita: todos os que ali se encontravam viram os dois corpos voltarem as costas para o outro, entrechocando-se impetuosamente com a cabea, com os ps, com as costas, como cavalos indomados. Um deles foi retirado a fim de ser enterrado em outra cova. E, por causa da rixa entre os dois mortos, a paz voltou a habitar entre os vivos.O cavaleiro e o camponsHavia em Saxe um cavaleiro chamado Ludolfo. Ele era um tirano. Um dia, quando cavalgava pela estrada trajando roupas novas e escarlates, encontrou um campons conduzindo sua carroa. O movimento das rodas sujou de lama a roupa do orgulhoso cavaleiro que, fora de si, puxou da espada e cortou um dos ps do homem.O campons e a pedraUm campons chamado Henrique estava beira da morte: ele viu uma pedra grande e ardente suspensa no ar acima dele. Doente, queimado pelo calor dessa pedra, ele clamou com voz horrvel: O fogo desta pedra acima de minha cabea me devora. Chamaram um padre que o confessou, mas em vo; o padre ento lhe disse: Lembras de ter feito mal a algum com essa pedra? Forando a memria, o campons disse: Lembro-me: para aumentar meus campos, desloquei essa pedra para alm dos limites.Dialogus miraculorum, de Cesrio de Heisterbach, ed. Strange, Colnia, 1851 (XII/48, XII/56, XI/18, XII/47). Publicado em DUBY, Georges,A Europa na Idade Mdia, So Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 35-37.Extrato 24Sc. XIII Carta do abade de Beaulieu, no Limousin(Rendas e servios dos camponeses)

...Os camponeses devem entregar ao vigrio no tempo da colheita duas gavelas por cada quatro de terra.[39]E as daro segundo a lei tal como costume, segundo o salrio dos ceifadores, a mesma coisa com relao ao feno. Devem entregar por cada quarto de terra o peso que um homem pode levar normalmente desde a casa do lavrador do vigrio sem utilizar-se de artimanhas. Esta renda pagar-se- desde So Martinho at o jejum. Quanto mistura de trigo e centeio que devem abonar os camponeses, segundo o censo, a seguinte: dois sectrios por quarto, trs medidas de aveia e um quarto de cevada ou mistura de trigo e centeio. E se no quiserem entregar a mistura de uma s vez, ao entreg-la acrescentaro quantidade indicada uma medida cheia e no rasa de cevada, acrescentaro uma medida colmada[40]e de mistura de trigo e centeio em medida rasa.

Sobre o feudo do juiz, o vigrio no tem jurisdio nem poder de embargo: nem tampouco o vigrio tem jurisdio nem o juiz poder de embargo sobre o feudo do despenseiro, nem do cozinheiro, guarda-bosques, pescador, coletor de censos, nem sobre os bosques senhoriais. Os homens do territrio de So Pedro no se casaro com mulheres de fora, enquanto possam encontrar no domnio mulheres com as quais possam casar legalmente. As mulheres ficaro igualmente sujeitas a esta norma. E se o juiz ou o vigrio tivessem infringido esta lei por qualquer razo, paguem ao abade ou ao preboste a multa determinada pela lei que de 60 soldos. E se o campons tivesse agido sem o consentimento deles pagar segundo a lei, e o homem ou mulher voltaro para a sua terra, sem recorrer a enganos.Charte de labbaye de Beaulieu en Limousin, ed. M. Deloche, Paris, 1859. Citado em PEDRERO-SNCHEZ, Maria Guadalupe.Histria da Idade Mdia. Textos e testemunhas. So Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 106-107.Extrato 25c. 1255 Crnica annima de Sahagn primera(autor desconhecido)(Revolta dos camponeses contra o senhorio do abade do mosteiro de Sahagun)Nesse tempo se juntaram todos os rsticos e lavradores, ou gente pequena, e fizeram uma conjurao contra seus senhores para que nenhum deles desse aos seus senhores o servio por causa dessa conjurao chamada de A Irmandade; e pelos mercados e vilas os pregoeiros andavam pregando a altas vozes: saibam todos que em tal e em tal lugar, em tal dia assinalado se juntar A Irmandade, e quem faltasse e no viesse sua casa seria derrubada.Ento eles se levantaram como bestas feras, fazendo grandes reunies contra seus senhores e maiores, e contra seus vigrios, mordomos e feitores, pelos vales e colinas, perseguindo-os ou afugentando-os, rompendo e quebrando os palcios dos reis, as casas dos nobres, as igrejas dos bispos, as granjas e obedincias dos abades, e assim gastando o po, o vinho e todas as coisas necessrias manuteno, matando os judeus que eram culpados; alm disso, negavam as taxas, tributos e trabalhos a seus senhores, e se porventura alguns mandavam, logo o matavam; e se algum dos nobres fizesse um favor ou ajuda, desejavam que este fosse seu rei e senhor; e se alguma vez parecia que cometia um excesso, ordenavam que dessem a seus senhores somente o cultivo, negando e tirando-lhes todas as outras coisas.Um dia o abade foi a uma plancie da vila chamada Grajal, onde estava reunida a dita irmandade, e como se queixou a muitos deles que os moradores da vila de Sant Andres se negavam a fazer o cultivo devido a ele, aqueles rsticos ali reunidos, com grande mpeto e rudo quiseram mat-lo. O abade sentiu o perigo, fugiu de seuayuntamiento[41]e foi para as portas da vila, quando os burgueses fecharam as portas. Ento, como os ditos rsticos o seguiram para prend-lo, ele foi se refugiar na cidade de Leon, e dali foi para o mosteiro de Nogal, e por trs meses continuou fugindo.Crnica annima de Sahagn primera, cap. 19. Edicin: Julio PUYOL Y ALONSO. Crnicas annimas de Sahagn enBoletn de la Real Academia de la Historia LXXVI(1920), 7-25. 111-123, 242-256, 339-356, 395-410, 512-519, y LXXVII (1920), 51-59; concretamente, pg. 245. Publicado por J. A. GARCA DE CORTZAR,Nueva Historia de Espaa en sus Textos. Edad Media, Pico Sacro, Santiago de Compostela, 1975, pp. 560-461.Extrato 261274-1276 O Livro da Contemplao em Deus, de Ramon Llull (1232-1316)(obra confessional dirigida a Deus)Cap. CXXI Como se deve olhar o que fazem os lavradores[42]1.Oh, Deus amoroso! De Vs seja conhecida toda a altura, toda a grandeza e toda a honra como livre Senhor. Bendito sejais Vs, pois vemos que os lavradores lavram a terra e a maduram para que d fruto; e vemos, Senhor, que a terra que mais bem lavrada e pensada aquela que melhor d fruto. Assim, se a terra, que coisa morta, sem entendimento e sem razo, d fruto onde mais bem pensada e lavrada, da mesma forma a alma humana deixa dar fruto se o corpo obediente e submetido s Suas virtudes.2.Glorioso Rei da glria, assim como os lavradores restituem a sade terra e a maduram para semear nela a semente, da mesma forma vemos que Vs, Senhor, tendes semelhantes homens pobres diante da presena de homens ricos para que os ricos dividam suas riquezas com os pobres, pois aquelas riquezas do frutos e se duplicam para os homens ricos.3.Portanto, bendito sejais Vs, Senhor Deus, pois assim como haveis dado muitas e diferentes sementes aos lavradores para que semeiem a terra, da mesma forma haveis dado aos homens ricos muitas e diferentes riquezas para que eles possam dar e dividi-las com os homens pobres que, pelo Vosso amor, desejam ser pobres e adquiri-las dos homens ricos.4.Santo Senhor, poderoso, no qual est toda a nossa salvao e a nossa sade. Vemos que os lavradores percebem que conforme o tempo do ano convm semear, e ento semeiam; e vemos, Senhor, que conforme convm o tempo de secar o trigo e reunir os frutos, eles secam e renem. Mas disso muitos homens fazem totalmente o contrrio, pois no esperam nem o tempo, nem a maturidade para fazerem suas obras, e mal iniciam, j esperam ter o fruto, e quando poderiam receber e colher o fruto, no sabem reunir nem receber.5.Assim como o lavrador seria louco e nscio se sempre que semeasse a semente quisesse logo ter o fruto e no desejasse esperar o tempo em que o fruto pode frutificar, assim vejo, Senhor, que existem muitos homens nscios e tolos nesse mundo, pois mal comeam algum feito logo desejam a coisa chegar ao seu fim, e no querem esperar o que convm ao tempo e hora que a finalidade pode chegar ao seu trmino. Assim, por causa desse tal desordenamento que existe em ns, muitos feitos so perturbados e destrudos, porque o homem apressa muito o seu tempo.6.Senhor, vemos que aqueles que so lavradores sbios diferenciam o tempo do tempo, o lugar do lugar, e a semente da semente, pois de acordo com o tipo de semente convm que sejam diferentes os lugares e os tempos. Mas os homens mundanos fazem o contrrio disso, pois no esperam o tempo, nem diferenciam um lugar de outro, nem uma pessoa de outra. Por isso, quase tudo o que fazem feito vilmente, malvadamente e falsamente.7.Serenidade e altura, paternidade e senhoria sejam conhecidas em Vs, Senhor Deus, que dais exemplo nas obras que os lavradores fazem, pois assim como os lavradores separam o trigo e o limpam para que as ms ervas no matem nem destruam os gros, da mesma forma ns, Senhor, se fssemos homens sbios limparamos nosso corpo de todos os vcios e pecados, para que a alma no morresse pelos pecados e pudesse crescer e se multiplicar nas obras das virtudes.8.Senhor justo, vemos que quando os lavradores secam o trigo, o batem, e aps baterem-no, o ventilam para que o vento separe a palha do gro; vemos tambm que eles estocam o trigo em seus celeiros e depsitos subterrneos e deixam a palha de fora. Assim, tudo isso semelhana e demonstrao para ns, que no dia da morte neste sculo, que vento, a alma sair do corpo, e ento Vs, Senhor, tomareis as almas dos homens justos e colocareis em Vossa glria, e as almas dos homens pecadores, que no so dignos de estarem na glria, sero deixadas para serem atormentadas no fogo perdurvel.[43]9.Senhor liberal, ns vemos que quando os sbios lavradores colhem seu trigo, o estocam em seus depsitos subterrneos conforme a necessidade anual de comer e de semear. Mas muitos homens fazem o contrrio disso, Senhor, pois sempre que colhem seus frutos e sua colheita que Vs haveis dado, colocam tudo a perder e os destroem, e quando chega o inverno e os frutos encarecem, eles tm que procur-los e compr-los.10.Paciente Senhor, amoroso, sbio acima de todos os sbios, bom acima de todos os bons. Ns vemos que os lavradores podam as vinhas e as rvores para que elas durem mais e dem mais frutos. Tudo isso, Senhor, exemplo para ns, para que quando o corpo estiver com superfluidade da natureza e com muito desejo de ter o movimento de pecar, que ns mortifiquemos nossa carne com jejuns, com aflies e com oraes para que no tenhamos o movimento ao pecado.11.Senhor, vemos que os hortelos e os lavradores adubam e maduram a terra com fezes, que coisa feia, ftida e suja. Assim, quem sbio neste mundo falso e enganador, cheio de fedor, de luxria, de carne e de ossos fedorentos e cheios de vermes, pode encontrar e receber a glria celestial, que glria muito gloriosa e muito abundante de todos os bens e de todos os cumprimentos.12.Senhor, vemos que os lavradores sabem ter conhecimento das terras e quais rvores e sementes so convenientes a elas conforme suas propriedades e natureza. Mas vemos que existem muitos homens malvados neste mundo que no sabem ter conhecimento de Vossa bondade nem daquelas coisas que vem de Vs em gratido eem prazer. Eisso uma grande loucura e uma grande estupidez, que o homem saiba conhecer qual terra boa ou m, mas no deseje ter conhecimento de Vossa bondade.13.Ah, Senhor sbio acima de todas as sabedorias! Ah, Senhor poderoso acima de todos os poderes! Ns vemos que quando os lavradores precisam muito de chuva, sempre recorrem a Vs, que lhes d tanta chuva quanto eles necessitam; e depois, quando Vs haveis dado muita chuva, eles sempre pedem que Vs faais cessar a chuva e lhes d belo tempo. E ainda vemos, Senhor, que quando Vs no fazeis de sua maneira, eles sempre mentem e ficam irados com Vs.14.Senhor, isso me parece coisa muito injuriosa, pois assim como os lavradores agradecem quando Vs dais chuva ou sol, eles deveriam Vos agradecer por no receber chuva ou sol, j que louvam e bendizem quando obrais com justia em ns ao dar-lhes chuva quando pedem, como louvam e bendizem quando obrais misericrdia em ns ao dar o que vos pedem, pois tanto sois bom por obra da justia quanto por obra da misericrdia.15.A melhor e mais proveitosa arte que ns vemos neste mundo, Senhor, aquela dos lavradores, pois todos os homens deste mundo vivem com os lavradores, em nenhuma arte existe to pouco engano e falsidade como na agricultura, nenhum homem confia tanto sua arte em Vs como os lavradores, e nenhuma arte, Senhor, est to freqentemente demonstrada Vossa grande justia, Vossa grande misericrdia e Vosso grande poder quanto no ofcio dos lavradores.16.Oh, Senhor Deus, que dais gozo, suspiros e amores a Vossos servidores, e aos olhos daqueles dais lgrimas e prantos![44]Ns vemos que os lavradores aram, cavam, trabalham e sofrem; e vemos, Senhor, que do trabalho e do maltrato que os lavradores sofrem, os reis, os bares e os homens ricos tm felicidade, remdio, deleite e descanso. E quanto mais os prncipes e os homens ricos tm deleites e alegrias, vemos que os lavradores mais tm males e sofrimentos pelas grandes injrias que recebem dos prncipes, dos cavaleiros e dos homens que vivem de seu duro trabalho.17.Em todo o mundo, Senhor, vemos que no h arte e ofcio to necessrio aos homens como a arte dos lavradores; pois se os lavradores no existissem, nenhum homem viveria. Assim, como os lavradores so to proveitosos e necessrios para a vida do homem, uma grande maravilha para mim que os lavradores sejam os mais aviltados, os mais injuriados e menosprezados homens de todo o mundo.18.Senhor, todos os homens, todas as aves e todas as bestas fazem mal aos lavradores, porque os reis e os cavaleiros os roubam, os foram e os colocam em guerra, quando os fazem morrer e perder tudo o que tm, cortam e destroem seus gros, suas vinhas e suas plantas, queimam e destroem suas casas; e os ladres e os homens falsos os roubam e os enganam e as aves e as bestas quebram seus gros e comem seu bestirio. De todas as maneiras vemos que os lavradores so injuriados, escarnecidos e maltratados.19.Senhor honrado, Senhor amado, Senhor desejado em todos os bons pensamentos, em todos os bons desejos e em todas as foras. Ns vemos que quando os lavradores tm um mau ano e suas colheitas so perdidas, todos os outros ofcios e mesteres valem menos e estragam, e quando os lavradores tm bom tempo e bom ano, todos os outros ofcios e mesteres valem mais. Assim, Senhor, j que atravs deles todas as outras artes e os outros ofcios so melhorados ou desvalorizados, como todas as gentes podem ser contrrias e inimigas dos lavradores? E porque eles so menosprezados por todas as gentes?20.Ah, Senhor Jesus Cristo! Bendito sejais Vs e tudo que de Vs, pois assim como a arte da agricultura mais aviltada e afrontada que qualquer outra arte, da mesma forma, Senhor, Vossa dolorosa Paixo e Vossa angustiosa morte foram a morte mais aviltada e desonrada que qualquer outra morte. E assim como a arte dos lavradores a mais proveitosa arte para a vida temporal, a Santa Paixo que Vs suportastes na cruz foi mais proveitosa para a vida celestial que qualquer outra paixo ou morte.21.Senhor, os lavradores so to amantes da paz e do bem que no vejo nenhum homem em todo o mundo que tenha to grande desejo de paz quanto os lavradores. E eles tm maior desejo de paz que qualquer homem porque sofrem mais na guerra que qualquer outro homem. Assim, Senhor, como os lavradores desejam paz, grande desconhecimento e vilania fazem todos aqueles que os colocam na guerra e no os deixam ter paz.22.A Vs, Senhor, seja dada e conhecida glria e louvor, e nobreza e honra por todos os tempos, pois haveis dado os lavradores para que atravs deles o corpo humano possa ter vida, e haveis dado homens sbios e homens religiosos para que sejam ocasio da alma humana receber a vida em glria, por sua sabedoria, sua prece e seu bom exemplo.23.Ah, Senhor sbio e amoroso! Assim como a vida corporal se estraga e se destri quando os lavradores param e, por sua negligncia, no desejam cultivar os frutos para que se possa viver, vejo, Senhor, que a vida da alma adoece e se estraga com o fim das preces, dos bons exemplos e dos bons costumes.24.Senhor, se os lavradores tm seus pensamentos e seu corao na terra, no nenhuma maravilha que na terra vivam e ajudem a todos ns. O que uma maravilha so os malvados prelados, religiosos e outros homens que so designados para pregar e castigar os pobres para que a alma viva e eles tenham seu corao na terra para que o corpo viva. Pois assim como os lavradores tm seu corao em seu ofcio, os beneficiados da Santa Igreja e os religiosos deveriam ter seu corao naquele ofcio que Vs haveis encarregado.25.Senhor, verdadeiro Deus, que sois amado e desejado no corao dos homens justos e dos bem-aventurados religiosos. No vejo nenhum homem, Senhor, que tenha tanto trabalho na terra quanto os lavradores, pois eles todos os dias lutam com ela, lavram-na, mexem-na para c e para l e no a deixam estar em paz ou em descanso.26.Se os lavradores, Senhor, tivessem pacincia em sua arte e no fossem homens invejosos, seriam os melhores homens de todo o mundo. Mas por causa das grandes injustias que os homens lhe fazem, e por razo do grande menosprezo das gentes, so quase todos cheios de m-vontade e impacincia, e por causa da grande pobreza e carncia que suportam, so quase todos cheios de inveja e cobia.27.Ah Senhor! Como so bem-aventurados aqueles lavradores que tm pacincia, que no so invejosos, que no tm m-vontade e so verdadeiros em todas as suas obras, pois assim como os lavradores so mais propcios de serem impacientes e invejosos que quaisquer outros homens, tm mais mrito se conseguem reprimir a inveja e ter pacincia.28.Benigno Senhor, onde est toda a bondade, toda a santidade, toda a virtude e todo o fim. O melhor lavrador que eu vejo, Senhor, sois Vs, que com Vosso corpo glorioso e com Vosso precioso sangue haveis restaurado os corpos e as almas de todos aqueles que amam a Vossa Paixo.29.Os lavradores retiram as ms ervas dos campos, das vinhas e das hortas, arando, cavando e limpando. Mas Vs, Senhor, limpais a ns com o derramamento de Vosso sangue e as feridas de Vossa carne, com o pranto, as lgrimas, as dores profundas e a morte angustiante.30.Como Vs, Senhor Deus, sois um lavrador to bem-aventurado e piedoso, e como o vosso servidor e o vosso submetido to sujo e to cheio de ms ervas, peo a Vs, Senhor, que neste mundo derramou o precioso sangue e as lgrimas amorosas, que limpe o Vosso servidor de seus pecados e de suas pesadas culpas, para que d glria e louvor de seu Senhor Deus.RAMON LLULL, Llibre de contemplaci.In:Obres Essencials. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, vol. II, p. 363-366 (traduo: Ricardo da Costa).Extratos 27, 28, 29, 30 e 311288-1289 Passagens da obraFlix ou o Livro das Maravilhas, de Ramon Llull (1232-1316)(Novela alegrica)Cap. 42 Da batalha do Leopardo e a OnaUm rico campons desejava honraria e deu sua filha como mulher a um cavaleiro que amava a riqueza do campons. A honraria converteu-se em riqueza, e a riqueza no pde ter to grande poder no campons para torn-lo honrado, mas a honraria do cavaleiro tirou a riqueza do campons de tal maneira que ele ficou pobre e sem honra e o cavaleiro rico e honrado. Naquele momento o campons disse ao cavaleiro que a intimidade entre o cavaleiro e o campons fez o campons estar em trabalho e pobreza e o cavaleiro em honra. Assim, disse o Boi, a intimidade do Boi com o Leo resultar na morte do Boi e na satisfao do Leo.[45]Cap. 66 Da Justia e da InjriaUm rei tinha condenado morte um campons que havia morto outro campons. Aquele rei, aps muito tempo, foi caa e por acaso foi depois albergar na casa do filho do campons que condenara morte. Quando estava na casa do campons e deitou-se em seu leito, o campons teve vontade de mat-lo porque ele tinha mandado enforcar seu pai. Estando o campons em tal considerao, relembrou a justia pela qual o rei havia punido seu pai e pensou que desejava matar o rei por causa da injria. Aps ter pensado isso, disse para si mesmo estas palavras: Injria, estais excessivamente multiplicada no mundo e afrontando a justia. Ao menos para fazer honra justia em alguma coisa, queira ser justa com o rei, que meu senhor, e que enforcou meu pai com a justia. Fao isso para honrar a vs, justia, e para diminuir a injria. Enquanto o rei adormecia, pensou que talvez o campons desejasse mat-lo, mas a justia o ajudava, e ao adormecer fez uma promessa justia: se ela o ajudasse e impedisse o campons de mat-lo, ele jamais lhe faria um ultraje ou falta.Cap. 73 Da Humildade e do OrgulhoEra uma vez um campons que tinha uma bela mulher que era de linhagem nobre. Aquele campons amava muito sua mulher, a vestia bem, a fazia estar ociosa e dava-lhe o melhor de comer, mais que para si. A mulher do campons, por se ver bela, por ser de linhagem nobre e vendo que o campons a honrava mais que a si mesmo, era orgulhosa e menosprezava seu marido, pelo qual menosprezo caiu no pecado da luxria. O campons se maravilhou muito por sua mulher ser to orgulhosa. E maravilhou-se de como ela era mais orgulhosa quanto mais ele a amava e honrava.Cap. 74 Da Continncia e da InvejaO eremita disse a Flix que havia um campons pobre que tinha uma vinha prxima do campo de um cavaleiro que era muito rico e poderoso: Aquele campons tinha inveja do campo daquele cavaleiro e o cavaleiro tinha inveja da vinha do campons. Aconteceu de ambos irem se confessar com um freire, e cada um confessou seu pecado. O freire deu maior penitncia ao campons que ao cavaleiro, porque o cavaleiro opunha-se inveja mais fortemente que o campons, pois no desejava usar de seu poder contra o campons, j que poderia tomar a vinha se assim o desejasse.Cap.92 Da Honra e da DesonraAconteceu em uma cidade que um homem, filho de um pobre campons, foi eleito bispo. Seu bispado era muito honrado e ele se tornou muito rico. O bispo, tanto quanto podia, honrava seu pai, sua me, e todos os seus parentes, mas no lhes dava nada porque tinha prazer com o fato de serem pobres. Todos aqueles do bispado se maravilhavam com o bispo, pois ele no tinha vergonha de honrar pessoas to vis como seu pai e sua me, pelo contrrio, honrava-os sem lhes dar nada nem os tornava ricos-homens. Aconteceu que um arcebispo que fazia todo o contrrio disso foi hspede daquele bispo e ouviu sua fama, isto , que ele no enriquecia seus parentes e os honrava. O arcebispo repreendeu o bispo por no enriquecer seus parentes e porque os fazia andarem pobremente vestidos diante si. O bispo respondeu ao arcebispo com estas palavras: Riquezas so perigosas quando vem para o homem vil e de vil linhagem, e o mesmo se segue da honraria.[46]Assim, eu honro meus parentes porque me humilham e mostram minha vil linhagem, pois a humildade amvel a mim na pobreza de meus parentes. E assim como honro meus parentes em minha honraria, da mesma forma Deus honra a mim em Sua honraria.[47]Flix o el Libre de Meravelles, publicado emObres Selectes de Ramon Llull (1232-1316)(ed. introd. i notes de Antoni Bonner), Mallorca, Editorial Moll, 1989, volume 2, p. 19-393 (traduo e notas deRicardo da Costa eGrupo I de Pesquisas Medievais da Ufes[Bruno Oliveira Eliane Ventorim Priscilla Lauret]).Extrato 321295-1296 Arvore Questional, de Ramon Llull (1232-1316)(Um dos captulos da obra enciclopdicarvore da Cincia, com perguntas e respostas acerca do contedo da obra)Questo 158:Ramon, como nenhuma arte mecnica mais necessria que a agrcola, porque o campons menos honrado que qualquer outro mecnico?Soluo:Conforme o corpo natural, a utilidade pblica mais amvel que a especfica. Por isso, atenta contra a natureza aquele que no faz honraria ao campons e faz ao mestre que constri a torre ou o navio.Questo 159:Ramon, em qual arte existe mais filosofia?Soluo:Conforme a experincia, nenhum homem sabe tanto de filosofia quanto os camponeses.Questo 160:Ramon, quais homens tm maior esperana nas artes mecnicas?Soluo:Nenhum mecnico tem maior esperana que o campons, que semeia o gro na terra e cava a vinha.[48]rvore Questional, publicado em RAMON LLULL,Obres de Ramon Llull(ed. Salvador Galms), Palma de Mallorca, 1917, vol. XI, Tom III, p. 247-259, e RAMON LLULL.Obres Essencials(OE). Barcelona: Editorial Selecta, 1957, vol. I, p. 933-938.Extratos 33, 34, 35, 36, 37, 38 e 39Sc. XIII-XIV Setefabliaux(contos satricos burgueses) que retratam cruelmente o campons[49]O escroto negroSenhoras, em vossa presena quero dizer diante de todos o motivo pelo qual vim corte. J se vo sete anos que sou casada com um aldeo, que nunca conheci a fundo atm ontem noite, quando descobri, pela primeira vez, o motivo pelo qual no posso mais ficar com ele, nem permanecer em sua companhia. Dai f a meu testemunho: meu marido tem o membro mais preto que o ferro e o escroto mais negro que a tnica de um monge ou de um padre; e hirsuto[50]como a pele de um urso, e nem sequer a mais velha bolsa de um usurrio parece mais estufada que o seu saco. O que vos conto a pura verdade como no saberia contar melhor.Um marido embaraante o escroto negro (sc. XII-XIV), publicado em ECO, Umberto (org.). Histria da feira. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007, p. 136.Do vilo de Bailleul, de Jean de BovesSe umfabliaupode ser verdadeiro, ento aconteceu, diz meu mestre, que um vilo morava em Bailleul.[51]Cultivava o trigo e a terra e no era usurrio nem cambista. Um dia, na hora do almoo, ele veio para casa muito esfaimado. Era grande e terrvel e mau e feio de cara. Sua mulher no se ocupava dele por que era tolo e mau, e ela amava o capelo.Assim, os dois, a mulher e o padre, tinham planejado passar o dia juntos. Ela havia feito seus preparativos. O vinho j estava no barrilete[52]e ela tambm mandara cozer o capo. E o bolo, creio eu, estava coberto com uma toalhinha. E eis que chega o vilo, bocejando de fome e de fadiga. Ela corre ao seu encontro e lhe abre o porto. Porm no ligou para sua vinda. Teria preferido receber o outro. Diz ento, para engan-lo, como quem, no tendo outro recurso, gostasse mais dele enterrado do que morto:Senhor, que Deus me santifique, como vos vejo combalido e plido! No tendes mais que os ossos e o couro.Erme, estou morrendo de tanta fome responde ele. As almndegas esto cozidas?Por certo estais morrendo, no tenho a menor dvida. Nunca ouvireis dizer verdade maior. Deitai depressa, pois estais morrendo. Ai, isso mau para mim, pobre miservel! Depois de vs, no cuido em viver, pois que me deixais. Senhor, como estais vos afastando! Morrereis daqui a pouco.Zombais de mim, dona Erme? torna ele. Entretanto estou ouvindo muito bem nossas vacas mugirem. No creio que v morrer. Em vez disso eu poderia viver bem mais.Senhor, a morte que vos entontece torna-vos plido e vos ensombrasse o animo, tanto que j no h em vs mais que a sombra. Daqui a pouco ela tocar vosso corao.Deitai-me ento, bela irm[53], se estou to mal responde o vilo.Ela se afaina no poderia ser mais rpida em o enganar com suas patranhas. Fez para ele uma cama num canto parte, uma cama de palha picada e restolho, com lenis de cnhamo grosseiro. Depois despe-o e deita-o. Fechou-lhe os olhos e a boca. Ento se deixa cair sobre o corpo.Irmo diz ela , ests morto. Que Deus tenha piedade de tua alma. Que far tua infeliz mulher, que se matar de tristeza?O vilo jaz sobre o lenol, o tempo todo acreditando-se morto. E a outra vai ao encontro do padre, que era muito astuto e ardiloso. Coloca-o a par da histria com o vilo e conta sobre a tolice dele. Ambos rejubilaram por ter acontecido assim. Voltaram os dois juntos tramando o seu prazer. Assim que o padre cruzou a porta, comea a ler os salmos e a mulher pe-se retorcer as mos. Mas essa dona Erme mal consegue fingir, e desiste antes que uma s lgrima lhe caia do olho. O padre, por sua vez, encurta o ofcio. No se preocupava em encomendar sua alma. O padre puxou a mulher pelo pulso. Vo para um cantinho parte. Ele despiu-a e desarrumou-a. Sobre a palha recm-cortada ambos se engalfinharam, ele em cima, ela embaixo. O vilo, que estava coberto com o lenol morturio, viu tudo, pois tinha os olhos abertos. Por isso viu muito bem a palha se mexer e viu o capelo se mover. Sabia que era o capelo.Ai! Ai! disse o vilo para o padre. Filho de uma puta suja, se eu no estivesse morto, certamente vos arrependereis de a ter agarrado. Jamais um homem seria to bem batido como vs, senhor padre.Amigo, bem possvel responde este. Ficai sabendo que se estivsseis vivo, eu teria vindo a contragosto enquanto vossa alma estivesse no corpo. Porm, como estais morto, preciso aproveitar. Ficai quieto. Fechai os olhos. Eles no devem mais permanecer abertos.Com isso o vilo tornou a fechar os olhos e calou-se novamente. E o padre obteve seu prazer sem medo e sem temor. No sei declarar-vos se eles o enterraram pela manha, mas ofabliauvos diz no final:Louco seja chamado aquele/Que cr mais na mulher do que nele.Explicit du Vilain de Bailleul.Do vilo de Bailleul, de Jean de Boves.In:Pequenas fbulas medievais: fabliaux dos sculos XIII e XIV. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 1-3.

O vilo e o camundongoEm seguida, vou contar-vos a aventura de um campons tolo que acabara de tomar mulher. Ele ignorava tudo, no sabia o que podiam ser as delcias de ter uma mulher nos braos, pois nunca havia experimentado. Mas a recm-casada j tinha descoberto tudo o que os homens sabem fazer, pois para dizer a verdade, o padre fazia com ela sua vontade quando a desejava e lhe apetecia, at o dia em que ela casou.Nesse dia o padre lhe disse:Doce amiga, se vos aprouver, quero ver-vos antes que o vilo toque em vs.E ela respondeu:De bom grado, senhor. No ouso vos esconder aqui, mas apressai-vos quando souberdes que est na hora. Ento vinde depressa, antes que meu marido se faa homem, pois eu no gostaria de ficar sem vossa beno.Assim o plano foi combinado. Depois disso, o vilo no tardou a vir deitar. Mas a mulher pouco se importava com ele, com seu contentamento e seu prazer. Ele a toma nos braos e aperta-a com toda fora, pois tudo que sabe fazer, de forma que ela se v achatada sob seu peso. Defende-se o melhor que pode e pergunta:Mas o que estais querendo fazer?Quero erguer meu pau e depois vos foderei, se puder e se conseguir achar vossa cona.[54]Minha cona? diz mais que depressa a mulher. No achareis minha cona.Onde ela est? No a oculteis de mim!Senhor, pois que quereis saber, direi onde ela est, por minhalma. Est escondida ao p do leito de minha me, onde a deixei esta manh.Vou busc-la, por So Martinho![55]Sem mais delongas, ele vai correndo buscar a cona. Mas o burgo onde nasceu sua mulher fica numa comuna situada a mais de uma lgua. Enquanto o campons ia em busca da cona, o capelo deitou em seu leito com prazer e delcia e ali fez tudo o que lhe aprazia.Mas ainda no terminei de contar-vos como o vilo foi logrado. Ningum nunca viu homem mais tolo. Quando chegou casa da me de sua mulher, disse-lhe:Minha cara senhora, vossa filha mandou-me aqui para buscar sua cona, que ela escondeu junto de vosso leito, segundo me contou.A mulher refletiu um pouco e depois que a filha o enganava para lhe pregar uma pea. Ento ela vai at o quarto e encontra uma cesta cheia de retalhos. No importa como pretendesse us-los, agora os recorta.Esta cesta vai servir.Ento ela pegou a cesta. Mas no meio dos trapos havia se escondido, e to bem que se enrolara todo... um camundongo. Sim, isso mesmo... um camundongo. A me entrega-lhe o pacote e ele prontamente enfia-o embaixo do casaco e to logo pode escapa dali para refazer caminho. Chegando charneca, diz uma cousa bastante espantosa:Por So Paulo diz ele , no sei se a cona de minha mulher est dormindo ou acordada, mas, por So Vol, eu bem que a foderia antes de voltar para casa, se no temesse que ela me fuja campo afora. Sim! Mesmo assim vou fod-la, para saber se verdade ou no o que dizem: que cona um bicho mui macio e suave.

Com essas palavras, a cabea de seu pau se levanta ereta como uma lana e se enfia por entre os panos e comea a escarafunchar. O camundongo pula da cesta e foge l para o meio dos campos. O campons corre atrs com quantas pernas tem, pois acredita que ele vai fazer uma bobagem. E vai dizendo consigo:Meu Deus! Um bichinho to bonito! Creio que inda no foi desmamado, pois nasceu h pouco tempo. Posso ver que bem pequeno. Recomendo-o ao Pai, ao Filho e ao Esprito Santo. Na verdade, creio que a cona tem medo de meu pau. Sim, pelos olhos de Deus! Quando deparou com sua cara toda vermelha e preta, ela ficou com medo. Ai de mim! Cada vez mais percebo que na certa sentiu medo. Se morrer, ser uma grande perda. Santa Maria! Se cair na vala, vai se afogar e estar perdida. Molhou toda a barriga, as costas e os lados. Pra a! Oh, senhor Deus! Pra! O que ser de mim se ela morrer?O campons retorce as mos por aquele camundongo que berra e negaceia. Quem o visse fazer beicinho e morder as bochechas olhando o vilo se lembraria da careta zombeteira do macaco.[56]Inutilmente o vilo grita:Cona bonita, cona gentil, voltai depressa! Dou minha palavra de que no mais vos tocarei antes de estarmos em casa e de vos ter entregado minha mulher. Se pelo menos eu conseguir vos livrar do orvalho! Serei motivo de chacota para todo mundo se souberem que me fugistes. Ai de mim! Acabareis vos afogando nesse orvalho. Vinde, entrai em minha luva, eu vos colocarei aqui em meu peito.Assim ele se fatiga em vo. Por mais que chame, ela no retorna, e desaparece no capim rasteiro. O campons fica triste e pensativo, pe-se a caminho e continua sem parar at chegar sua casa. Sem uma s palavra, sem explicao, sentou num banco e comeou a tirar as roupas. Ficai sabendo que ele no estava nada alegre. Sua mulher pergunta:Caro senhor, o que h? No ouo uma s palavra. No estais contente? No estais bem?Eu no, senhora responde o vilo, que continua a se calar e a se despir.Ela ergue a coberta e abre espao. O vilo joga-se ao seu lado, deita e vira-lhe as costas. No fala mais que um monge votado ao silncio, e permanece assim, estirado. Ela o viu mudo e silencioso e perguntou:Senhor, ento no trouxestes minha cona?Eu... no, senhora, no, senhora... no. Foi uma desgraa ter ido busc-la, pois l fora ela me caiu por terra e agora se afogou nos prados.Ah! torna a mulher. Estais zombando de mim!Por certo que no, senhora. No estou brincando.Ento ela o toma nos braos.Senhor diz ela , no vos atormenteis. Sem dvida ela sentiu medo de vs, pois no vos conhecia. Penso que deveis haver feito algo que a desagradou. Se a tivsseis nas mos neste momento, que fareis com ela? Dizei-me.Eu a foderia, por minha f! Eu lhe daria uma de furar o olho, por todo o desgosto que me causou.A mulher responde na mesma hora:Senhor, ela agora est aqui, no meio das minhas pernas. Mas, como voltou s vossas mos to mansa e docilmente, eu no queria, por Santo Etampes, que ela fosse infeliz.[57]O vilo estende a mo, agarra-a e diz:Est na minha mo!Prendei-a bem com as duas mos, para que no fuja diz a mulher. E no receeis que vos morda. Segurai-a bem para que no vos escape. mesmo diz ele , acho que nosso gato, Deus nos livre, certamente a comeria se a encontrasse. Ento ele comea a acarici-la e sente que est toda molhada.Coitada! Est ainda ensopada do orvalho em que caiu. Coninha, hoje me humilhastes muito. Por mim ela nunca ser censurada porque se molhou. Podeis dormir e repousar, pois no quero mais vos perturbar. Estais sem flego, esgotada.Nesta fbula vos ensino: Mulher sabe mais que o maligno / Meus olhos podeis arrancar / Se a verdade tento ocultar / Com o que diz, se lhe d gana / Mais o atordoa e mais o engana / Do que o homem o mais ladino / Minha fbula assim termino: /No deixeis que vossa querida/Vos atormente assim a vida./Ci fenit dela Sorisetedes estopes.II. O vilo e o camundongo.In:Pequenas fbulas medievais: fabliaux dos sculos XIII e XIV. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 4-8.Do vilo que conquistou o Paraso defendendo sua causaEncontramos na escritura uma maravilhosa aventura que aconteceu a um vilo. Ele morreu numa sexta-feira pela manh. Por acaso aconteceu que nem anjo nem diabo apareceu na hora em que ele morreu e a alma deixou o corpo. Ningum veio lhe pedir nada nem lhe ordenar cousa alguma. Sabei que sua alma ficou mui feliz com isso, pois estava cheia de medo. A alma do vilo olhou para o cu e viu o arcanjo So Miguel, que jubiloso levava consigo uma outra alma. Ento a alma do vilo se ps a caminho atrs do anjo.Segundo me disseram, seguiu o anjo at a entrada do Paraso. So Pedro, que vigiava a porta do Paraso, recebeu a alma que o anjo trazia. E depois de receber essa alma voltou-se para a porta e l encontrou a alma do vilo, que chegara sozinha. Perguntou ento a ela:Quem te conduziu at aqui? Aqui s h alojamento para quem obtiver por julgamento. E ademais, por Santo Alo, no nos ocupamos de vilos. Nenhum vilo chega at ns.Ouvindo isso a alma respondeu:No existe ningum mais vilo do que vs, meu bom So Pedro! Sempre fostes mais duro que pedra! Pelo Pai Nosso, Deus foi louco quando fez de vs Seu apstolo. Pois no houve honra alguma quando renegastes o Senhor! Vossa f foi mui pequena quando O renegastes trs vezes. Se sois de Sua companhia, o Paraso no vos convm nadinha. Vamos, depressa, para fora, infiel! Quanto a mim, sou homem honrado e fiel e meu direito permanecer aqui!So Pedro sentiu-se estranhamente envergonhado. Fez meia-volta e deparou com So Tom. Sem nada omitir, contou-lhe toda sua m aventura, seu desprazer e dissabor. So Tom disse:Vou falar com o vilo. Deus jamais consentir que ele permanea aqui.Ento o apstolo Tom foi ter com o vilo e falou-lhe assim:Ei, vilo, este solar pertence apenas a ns, aos mrtires e aos confessados. Em qual lugar te penitenciaste, para creres que deves viver aqui dentro? No podes ficar, pois este o abrigo dos fiis.Ao que o vilo respondeu:Tom, Tom, estais indo muito depressa! Demasiado falais de leis! No fostes vs que respondestes aos apstolos que tinham visto o Senhor? Isso mais que sabido. Depois da Ressurreio fizestes vem vosso sermo, dizendo que s acreditareis quando tocsseis em Suas chagas. Naquela hora fostes falso e descrente.Ao ouvir tais palavras, So Tom hesitou. Baixou a cabea, sem responder, e foi ter com So Paulo e contou-lhe seu dissabor.Por minha cabea replicou So Paulo , vou at l. Verei se essa alma vai querer me responder. E atravessou o Paraso inteiro, disposto a confundir a alma.Alma perguntou , quem te trouxe at aqui? Onde fizestes as tuas boas obras, aquelas para as quais a porta se abre? Sai j do Paraso, vilo falso!E a alma respondeu:Por que, Dom Paulo esquentado? Sois to atormentador quanto fostes horrvel tirano? Nunca haver outro to cruel. Santo Estevo pagou caro por isso, ele e a quem mandastes apedrejar. Sei contar a histria de vossa vida. Muito homem honrado foi morto por vs. Em sonhos, Deus recompensou-vos com um tapa de Sua mo pesada. Ento no bebestes o vinho dessa mo que selou o acordo? Ah! Que santo e que divino! Acaso pensais que no vos conheo?So Paulo ficou em grande aflio. Mais que depressa, voltou sobre seus passos. Encontrou So Tom, que estava falando com So Pedro. Em segredo, contou-lhe como o vilo o derrotara. E acrescentou:De minha parte, ele conquistou o Paraso, e assim lhe concedo.E os trs vo juntos consultar Deus. Pedro contou tudo honestamente, contou como o vilo o insultara. Terminou falando assim:Ele nos venceu com suas palavras. Eu mesmo estou to confuso que nunca mais falarei a respeito.Disse Nosso Senhor:Quanto a mim, vou at l, pois quero ouvir essa nova.Ento Deus foi ter com a alma. Chama-a e pergunta como adveio que entrasse sem autorizao:Sem licena nunca entra aqui nunca alma nenhuma, nem de homem nem de mulher. Blasfemaste e aviltaste e desdenhaste meus apstolos e ainda acreditas que vais ficar aqui?Senhor responde a alma , se justia me for feita, devo morar aqui, como fazem eles. Nunca Vos reneguei nem jamais duvidei de Vs. No matei ningum. Eles, porm, fizeram tudo isso outrora e esto no Paraso agora. Enquanto permaneceu no mundo, meu corpo levou vida limpa e honesta. Dei po aos pobres, alberguei-os de noite e de dia. Aqueci-os em meu fogo, abriguei-os at morrerem e depois levei-os igreja. No deixei faltar-lhes calado nem camisa. Agora j no sei se isso foi sensato. Confessei-me como devido, recebi Teu corpo dignamente. Segundo nos pregam, quem assim morre, Deus perdoa todos os seus pecados. Sabeis muito bem se estou dizendo verdade. Entrei aqui sem objeo. J que aqui estou, por que ir embora? Quereis negar a Palavra? Em verdade haveis prometido que quem entrar aqui no ser expulso. E no mentireis por minha causa.Vilo respondeu Deus , concedo-te o que queres. Apresentaste tal defesa que ganhastes o Paraso. Estiveste em boa escola, Sabes usar bem da palavra, sabres fazer valer seu verbo.O vilo diz-me seu provrbio que muito homem ataca o erro quando seria melhor defender a causa. A arte falseou o que direito. Os falsos venceram a natureza. Torto vai direito e direito vai de lado.Menos vale a fora que a habilidade.IX. Do vilo que conquistou o Paraso defendendo sua causa.In:Pequenas fbulas medievais: fabliaux dos sculos XIII e XIV. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 44-47.O peido do vilo, por RutebeufAs pessoas caridosas tm um grande quinho no Paraso celeste, porm aqueles que no trazem em si nem caridade nem bem nem paz nem fidelidade perderam esse jbilo. E no creio que algum desfrute dele se no tiver piedade humana dentro de si. Digo isso pelo povo dos viles, a quem jamais padre nem clrigo amou. No creio que Deus lhes fornea lugar nem espao no Paraso. No apraza a Jesus Cristo que um vilo seja albergado com o filho de Santa Maria. Pois isso no defensvel nem certo. Est dito na Escritura. Eles no podem ter o Paraso nem pelos dinheiros nem por outros bens.Mas perderam tambm o Inferno. Os Diabos esto privados de sua posse. Ouvireis aqui por qual m ao eles perderam esse lugar.Outrora um vilo ficou doente. O Inferno estava preparado para receber sua alma. O que vos estou dizendo verdade. Veio para c um diabo, por quem a justia era mantida. To logo chega casa do vilo, pendura-lhe no cu um saco de couro, pois o demnio acredita sem falha que a alma sai pelo cu.[58]

Mas o vilo, para se cuidar, naquela tarde havia comido peixe, havia comido bastante e boa carne de vaca na gua e sorvido tanto caldo quente que sua pana no estava nada mole. Estava esticada como corda de ctara. Inda no pensam que esteja perdido, pois se conseguir peidar ficar curado. E ele se ocupa nesse esforo, se anima, se torce, se mexe tanto que, ao se empinar, um peido lhe salta, enche o saco e o lambuza, pois o demnio, para lhe puni-lo, pisara-lhe na pana com os ps. E bem dizem naquele provrbio que muito forar faz cagar.O demnio foi embora, at que chegou Porta com o peido que transporta. Joga no Inferno o saco e tudo, e o peido sai pela ponta. E eis cada um dos diabos irado e inflamado, e todos maldizem a alma do vilo.Na manh seguinte eles reuniram o cabido e se puseram de acordo sobre este princpio: que nunca mais seja trazida nenhuma alma que tenha sado de vilo, pois ela s pode feder. Assim ficou decidido que nunca nenhum vilo pode entrar no Inferno nem no Paraso. Ouvistes toda a explicao.Rutebeuf no sabe dizer onde possvel colocar a alma do vilo, depois que ela faltou com esses dois reinos. Ora, que ela v cantar com as pererecas, pois o melhor remdio que ele v. Ou que se mantenha no bom caminho para aliviar sua penitncia, na terra do pai Audigier.[59] na terra de Cocusse[60]que Audigier caga em seu chapu.Explicit du Pet au Vilain.XXXVII. O peido do vilo, por Rutebeuf.In:Pequenas fbulas medievais: fabliaux dos sculos XIII e XIV. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 204-205.O vilo dos asnosHavia em Montpellier / um vilo que costumava / apanhar a bosta e acarret-la / com dois burros para adubar a terra. / Um dia, depois de os ter carregado, / encaminhou-se rapidamente / para a aldeia, levando os burros / penosamente na sua frente / e dizendo constantemente: arre! / Tanto andou que chegou / rua dos mercadores / onde os rapazes batem o pilo. / Mas quando sentiu o cheiro das especiarias / nem que lhe dessem cem marcos de prata / o fariam dar mais um passo: / caiu imediatamente esmorecido / como se estivesse morto. / Grande foi a desolao das gentes que diziam: / Deus nos acuda! / Olhem este homem que veio aqui morrer! / E ningum sabia dizer por qu. / Os burros, esses ficaram quietos / tranqilamente no meio da rua / pois o burro no est acostumado / a andar para frente sem ser obrigado. / Ora, um bom homem que ali morava / que passava por aquela rua / aproximou-se e perguntou / aos que estavam sua volta: / Meus senhores, disse ele, se algum quiser / mandar tratar deste homem / eu cur-lo-ei a troco de farelos. / Logo um burgus lhe respondeu: / Cure-o imediatamente, / receber vinte soldos em dinheiro. / E o outro respondeu: / De boa mente. / Ento pegou na forquilha que o vilo / levava para fazer avanar os burros, / levantou uma pazada de bosta / e chegou-lha ao nariz. / Quando o outro sentiu o cheiro da bosta / e deixou de sentir o cheiro das ervas, / abriu os olhos, levantou-se / e disse que estava completamente bom. / Muito contente e cheio de alegria, / disse que nunca mais ali viria / se pudesse passar por outro lado. / Por este exemplo que mostrar-vos / que se revela sbio e prudente / aquele que se desfaz do orgulho. / Ningum deve renegar a sua natureza. /ExplicitO vilo do asno.O vilo do asno.In: Fabliaux.Ertica Medieval Francesa. Poesia ertica e satrica francesa sculos XIII-XIV. Lisboa: Editorial Teorema, 1997, p.13-15.O campons mdicoEra uma vez um rico campons / que tinha muito, mas era muito avarento. / Tinha trs charruas e oito bois / todas a trabalhar no seu lavrado / e duas guas e dois cavalos; / tinha trigo, carne e vinho com abundncia / e tudo o mais que lhe era necessrio.[61]/ Mas no tinha mulher / todos os amigos o censuravam / e todas as pessoas da terra / at que ele disse que aceitaria / uma boa, se a encontrasse. / E eles disseram que lhe arranjavam / a melhor que lhe pudessem encontrar. / Na terra havia um cavaleiro / que era velho e sem mulher / e tinha uma filha muito bela / e muito bem educada. / Os amigos falaram ao campons / e pediram ao cavaleiro / a mo da filha para o vilo / que era to rico e opulento / e tinha jias e tecidos preciosos. / Que vos direi? Imediatamente / foi ajustado o casamento. / A donzela, que era muito sensata / no quis contrariar o pai / pois era rf de me: / consentiu em tudo o que ele quis / e o vilo, o mais cedo que pde / fez a boda e desposou / aquela a quem muito pesou. / Ah, se tivesse ousado desobedecer / quando foi resolvida a questo / da boda e de tudo o mais / no demorou muito tempo / que o vilo reconsiderasse / e dissesse para consigo / que tinha feito muito mal. / No convinha ao seu mester / ter filha de cavaleiro. / Quando eu andar com a charrua / o capelo passa na rua / para quem todos os dias so de festa / e quando eu tiver me afastado / de minha casa, o sacristo / vir aqui um dia e outro / at que seduzir a minha mulher / que nunca mais me amar / nem ter por mim (nenhuma) considerao. / Ai de mim! Infeliz! Exclama o vilo. / No sei como me aconselhar / de nada serve arrepender-me. / Comea ento a matutar / como poder conserv-la. / Meu Deus, diz ele, se eu lhe batesse / todas as manhs quando me levanto / para ir para o meu labor, / ela chorava o dia inteiro / e bem sei que enquanto chorasse / ningum lhe faria a corte. / E meia-noite, quando eu voltasse / pedia-lhe perdo, em nome de Deus. / F-la-ia feliz noite / e desesperada de manh! / Depois de ter pensado nisto / o vilo pediu de comer: / no havia peixe nem perdizes / mas bons queijos e ovos fritos / e po e vinho com abundncia / que o vilo tinha arrecadado. / E quando a mesa foi levantada / com a palma da mo / que era grande e larga / bateu na cara da mulher / que ficou com os dedos marcados; / depois agarrou-a pelos cabelos / o vilo, sem nenhuma piedade / e bateu-lhe exatamente / como se ela bem o merecesse. / Depois foi-se, lavrar os campos / e ela comeou a chorar: / Ai de mim, diz ela, infeliz! / Ai de mim, porque que eu nasci? / Meu Deus, como sou desgraada! / Meu Deus, como o meu pai me traiu / quando me deu a este vilo! / Tinha medo que eu morresse de fome? / E eu estava completamente louca / quando aceitei este casamento. / Meu Deus, porque que minha me morreu? / Era assim que ela se lamentava / e todas as pessoas que ali vinham / para a ver, voltavam para trs. / Assim manifestou a sua dor / todo o dia at o sol se pr / at que o campons voltou / caiu aos ps da mulher / e suplicou: Por Deus, perdoai-me / sabei que foi o diabo / que me fez fazer tal loucura. / Dou-vos a minha palavra / que nunca mais vos tocarei! / Estou desolado e arrependido / de vos ter batido. / Isto disse-lhe o vilo fedorento / e a dama lhe perdoou / e depois deu-lhe de comer / do que tinha preparado. / Quando acabaram de comer / foram-se deitar na boa paz. / De manh o vilo nojento / voltou a maltratar a mulher / que por pouco no a aleijou.[62]/ Depois foi para o campo lavrar / e ela comeou a chorar. / Infeliz, disse ela, que farei? / E como me aconselharei? / Bem sei que a minha m ventura! / Meu Deus, alguma vez o meu marido foi malhado? / Decerto no sabe o que levar pancada / se o soubesse, por nada deste mundo / me bateria desta maneira! / E enquanto ela se lamentava / eis que chegam dois mensageiros do rei / cada um sobre um grande palafrm / e entraram pela casa adentro / e pediram-lhe de jantar. / Ela deu-lhes de comer de boa mente / depois disse-lhes: Caros amigos, / donde sois e que buscais? / Dizei-mo se vos apraz. / E um responde: Dona, por boa f, / somos mensageiros do rei / que nos enviou procurar um mdico: / vamos a caminho da Inglaterra. / Por boa f, graciosa donzela, / a filha do rei est to doente/ que j so passados oito dias / que no pode beber nem comer / porque uma espinha de peixe / lhe ficou atravessada na garganta. / O rei est muito acabrunhado / se a perde nunca mais ter alegria. / Senhores, disse ela, ora ouvi-me: / ireis mais perto do que cuidais: / garanto-vos que o meu marido / um bom mdico, acreditai. / Por certo sabe mais de medicina / e de fsica e de urina / que nunca soube Hipcrates.[63]/ Senhora, estais a brincar? / No tenho vontade de brincar, disse ela, / mas ele tem tal feitio / que no quer fazer coisa nenhuma / se no for antes bem espancado. / Eles respondem: Vamos a ver, / j por falta de pancada / no deixar de o fazer. / Senhora, onde o podemos achar? / Encontr-lo-o sem falta / quando sarem deste ptio / junto ao ribeiro, ali embaixo, / ao lado daquela velha rua / a primeira terra de charrua / que encontrardes a nossa. / Ide, por So Pedro Apstolo, / disse ela, aonde eu vos mando. / E eles vo, dando s esporas / at que encontram o campons. / Sadam-no da parte do rei / e dizem-lhe sem mais rodeios / que v junto ao rei sem demora. / Fazer o qu? diz o vilo / Pelo saber que vs possus / no h melhor mdico em parte alguma / viemos de longe procurar-vos. / Quando o outro ouviu chamarem-lhe mdico / abanou a cabea e disse / Ah, de que que estamos espera? / disse um ao outro, sabes bem / que ele quer ser espancado / antes de dizer seja o que for. / Um bate-lhe junto s orelhas / o outro d-lhe em cheio nas costas / com um pau que tinha grande e grosso. / Tanto malharam nele os dois / que o atiraram ao cho. / Quando o vilo sentiu o pau / dar-lhe nos ombros e nas costas / bem viu que no levava a melhor / e disse-lhes: Sou um bom mdico / por Deus, merc, deixai-me em paz! / Ora, s tendes de montar, / dizem eles, e vir junto ao rei! / No procuram outro palafrm, mas montam imediatamente / o vilo em cima de uma gua. / E quando chegaram corte / o rei correu ao seu encontro / como quem deseja ardentemente / a sade de sua filha. / Pergunta-lhes o que encontraram / e um dos mensageiros respondeu: / Trazemos-vos um excelente mdico, / mas de muito m raa. / Ento contaram-lhe do vilo / e das qualidades que ele tinha / e que no queria fazer nada / sem primeiro ser espancado. / O rei respondeu: Que mau mdico! / Nunca ouvi falar de um assim! / Pois seja bem espancado, se assim ! / Eles respondem: Estamos prontos: / assim que vs o ordenares / pagar-lhe-emos os seus honorrios. / O rei chamou o campons: / Mestre, disse ele, sentai-vos aqui. / Vou mandar chamar a minha filha / que muito necessita de cura. / Na verdade, senhor, eu bem vos digo / que nada sei de medicina / nem nunca na vida soube nada. / Ah, disse o rei, o que que eu ouo? / Espancai-o! / E eles espancaram / e de boa vontade o fizeram. / Quando o vilo sentiu a pancada / nos ombros e nos costados / disse ao rei: Senhor, piedade! / Cur-la-ei, eu vo-lo prometo! / O rei responde: Deixai-o agora! / Mal haja que ora lhe tocar! / A jovem entrou na sala / muito plida e descorada. / Por causa da espinha do peixe / tinha a garganta toda inchada. / Ento o vilo ps-se a pensar / como a poderia curar / pois sabe bem que ter / de a curar ou morrer. / Sei, na verdade, que se ela risse / com o esforo que fizesse / talvez a espinha se soltasse / pois no est dentro do corpo. / Tenho de fazer ou dizer / algo que a possa fazer rir. / E disse ao rei: Senhor, merc! / Ora escutai: que me faais / uma fogueira acender / num lugar bem recuado / onde no haja ningum / s eu e ela unicamente. / Depois vereis o que farei. / E o rei responde: Certamente! / Saem os criados e escudeiros / e apressam-se a acender o lume / no lugar onde o rei mandou. / Na sala esto, segundo creio / juntos o mdico e a donzela. / Ela sentou-se junto do lume / num assento que lhe trouxeram / e o vilo comeou a despir-se / apenas ficou com as ceroulas / e sentou-se diante da fogueira / coou-se e comeou a tostar. / Tinha as unhas compridas e a pele dura: / no h homem at Saumur[64]/ se se coasse daquele modo / que no ficasse logo assado. / E quando a donzela o viu / apesar das dores que sentia / quis rir e fez tal esforo / que a espinha lhe voou / da boca para a lareira. / E o vilo sem mais demora / vestiu-se, pegou a espinha / e saiu da sala triunfante. / Viu o rei e gritou: Senhor, / a vossa filha est curada! / Aqui est a espinha, graas a Deus. / O rei regozijou-se muito: / Decerto, mestre, bem vos digo / que vos amo mais que tudo no mundo; / vs me restitustes a minha filha! / Bendita seja a vossa vinda / dar-vos-ei jias e vestidos de preo! / Graas, senhor, mas no os quero / no posso convosco mais morar, / tenho que voltar minha terra. / Por Deus, disse o rei, isso no fareis vs: / sereis meu mdico e cirurgio! / Graas, senhor, disse o vilo / na minha casa no h po / quando parti ontem de manh / estvamos para ir ao moinho. / E o rei responde: Veremos! / espancai-mo e ele ficar! / Eles saltaram imediatamente / e bateram-no prontamente / e o vilo ps-se a gritar: / Eu fico, deixem-me em paz! / O campons ficou na corte / apararam-lhe o cabelo e a barba / e vestiram-lhe vestes de escarlate. / J se julga livre de embaraos / quando os doentes do pas / eram trinta ou quarenta, creio eu / vieram em peso junto a el-rei / e cada um contou seu caso. / O rei disse ao vilo: Mestre, / encarregai-vos desta gente! / Depressa, curai-mos todos! / Disse o vilo: Por Deus, piedade! / So demais, eu vo-lo garanto. / O rei chama os seus servidores, / cada um pega num cacete / pois ambos sabiam muito bem / porque o rei os chamava. / Quando o vilo os viu vir / cheio de medo disse ao rei: / Piedade, senhor, Cur-los-ei! / Ah, disse o rei, quero ver isso! / E o vilo mandou vir lenha / havia muita, quanta quisesse / e na sala acende uma fogueira / ele prprio era o mestre cozinheiro. / Mandou pr os doentes em fila / e disse ao rei: Quero pedir-vos / que vos digneis sair por ali / vs e todos os que no esto doentes. / O rei consente de boa mente / e retira-se com sua gente. / E o vilo diz aos doentes: / Senhores, pelo Deus que me criou, / muito difcil obter a vossa cura! / No poderia lev-la a cabo / seno do modo que vou vos dizer: / vou escolher o mais doente / e queim-lo nesta fogueira. / Vs outros tereis grande proveito / pois beberei as suas cinzas / e ficareis logo curados. / Ento olharam-se uns aos outros / e no houve paraltico nem hidrpico[65]/ nem que lhe dessem a Normandia / que reconhecesse / ter a mais grave doena. / O vilo disse ao primeiro: / Acho-te muito enfraquecido / de todos s o mais enfezado. / Mestre, disse ele, estou perfeitamente so! / Ento sai daqui, O que vens c fazer? / E o outro precipita-se para a porta. / E o rei pergunta-lhe Ests curado? / Sim, meu senhor, graas a Deus. / Estou so como um cachorro! / O mdico um homem nobre. / Que vos ia eu contar? / No houve pequeno nem grande / que por nada deste mundo deixasse / que o mdico ao fogo o lanasse, / antes se foram indo assim / como se estivessem todos curados. / E quando o rei isto viu / ficou como louco de alegria / entrou na sala e disse: Caro mestre, / maravilho-me como pode ser / que os curastes to depressa. / Senhor, disse ele, eu encantei-os; / conheo um encantamento / que vale mais que gengibre ou zedoria.[66]/ Mestre, disse o rei, agora podeis ir / a vossa casa quando quiserdes. / Dar-vos-ei panos e dinheiros / e palafrns e cavalos de luta / e nunca mais vos mandarei espancar / pois tenho vergonha de vos maltratar. / Graas, senhor, disse o vilo, / sou o vosso humilde vassalo / farei todo o vosso comando! / Saiu da sala prontamente /depois voltou a sua casa / e instalou-se na terra ricamente. / Nunca mais empurrou a charrua / nem mais foi por ele batida / sua mulher, que amou e estimou. / Tudo se passou como eu vos digo: / pela mulher e pela manha / foi bom mdico sem cincia.O campons mdico.In: Fabliaux.Ertica Medieval Francesa. Poesia ertica e satrica francesa sculos XIII-XIV. Lisboa: Editorial Teorema, 1997, p.71-86.Extrato 401311 A disputa entre Pedro, o clrigo, e Ramon, o fantstico, de Ramon Llull (1232-1316)(Pequena pea escrita em forma dedisputatio)(11)Ento o clrigo contou: Meu pai foi um homem pobre e rstico e eu, quando era estudante, vivia de esmolas. Quando obtive as cincias, consegui ricas prebendas, obtive o ttulo em Artes e dois em Direito, fui feito presbteroarcediago, acumulei muitos benefcios e pude tornar ricos meus irmos, que eram rsticos. Alm disso, eles se tornaram cavaleiros, e eu casei minhas irms com cavaleiros, exaltando minha linhagem do grau mais baixo ao mais alto. Estes trs jovens estudantes se olhares para trs poders v-los me seguindo a cavalo so meus sobrinhos. Cada um deles j tem uma rica prebenda, inclusive quero agora obter nesse Conclio outros benefcios para eles. E de mim o que direi? Uma grande prelatura me faz vir at a Cria[67]; creio que a obterei e viverei com muitas honras; porto uma grande companhia de cavaleiros, escudeiros, cozinheiros e numerosos criados, como vs mesmos podeis ver; como em pratos de prata, possuo grandes riquezas e tenho grandes despesas. Por tudo isso, se desejais, podeis ver claramente que eu no sou fantstico, e sim prudente e discreto.(12)Disse Ramon: Escutei tudo e entendi qual a causa que vos move e por qual motivo me tens como fantstico. Contudo, antes de vos responder, desejaria, de maneira semelhante, dizer algumas poucas palavras de mim mesmo. Eu fui um homem ligado pelo matrimnio, tive filhos; era discretamente rico, lascivo e mundano. Deixei tudo de bom grado para poder me dedicar a fomentar a honra de Deus, o bem pblico e exaltar a santa f. Aprendi rabe e fui muitas vezes pregar entre os sarracenos; por causa da f fui preso, encarcerado e surrado. Trabalhei quarenta e cinco anos tentando mover a Igreja e os prncipes cristos ao bem pblico. Agora sou velho, agora sou pobre, mas ainda tenho o mesmo propsito e o terei at a morte, se Deus