sobre a evolução do conceito de campesinato

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VIA CAMPESINA DO BRASIL SOBRE A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE CAMPESINATO 1 Eduardo Sevilla Guzmán y Manuel González de Molina BRASILIA, MARÇO DE 2005 1 O texto original foi escrito em castelhano. A tradução literal, para uso interno da Via Campesina do Brasil, foi realizada por Ênio Guterres e Horacio Martins de Carvalho, no final de dezembro de 2004.

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  • 1. VIA CAMPESINA DO BRASILSOBRE A EVOLUO DO CONCEITO DE CAMPESINATO1 Eduardo Sevilla Guzmn yManuel Gonzlez de Molina BRASILIA, MARO DE 20051O texto original foi escrito em castelhano. A traduo literal, para uso interno da Via Campesina do Brasil,foi realizada por nio Guterres e Horacio Martins de Carvalho, no final de dezembro de 2004.

2. 2APRESENTAO, PELA VIA CAMPESINA A Via Campesina do Brasil, articulao formada pelo Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA),Movimento dos Atingidos por Barragems (MAB), Movimento de Mulheres Camponesa(MMC), Comisso Pastoral da Terra (CPT), Pastoral da Juvemtude Rural (PJR) e aFederao dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB) tem uma oportunidade impar deapresentar sociedade brasileira um estudo de Eduardo Sevilla Guzmn e ManuelGonzlez de Molina, com o ttulo Sobre a Evoluo do Conceito de Campesinato. Os autores so notrios pesquisadores e professores de universidades espanholasque desde 1980 vem pesquisando e escrevemdo sobre o campesinato na Europa e AmricaLatina com uma viso global e sistemtica dos marcos tericos, resgatando conceitos eformas de desenvolvimento do campesinato a partir do Pensamento Social Agrrio desdeo sculo XVIII at a atualidade.Esta obra vem trazer, como dizem os prprios autores, importantes ferramentastericas com as quais se poder neutralizar a ofensiva neoliberal que desde a academia e naprtica poltica esta se desenvolvendo na Amrica Latina ao pretender apresentar umainevitvel evoluo da Agricultura Familiar para o Agronegcio, no contexto daAgricultura Industrializada em sua atual verso transgnica. Assim como os autores,cremos em outra soluo para os problemas sociais e ambiemtais que atravessamos. E ocampesinato, como veremos no texto, nos traz elementos que contribuiro muito para asoluo da crise em que vivemos. Com essa publicao, queremos possibilitar aos leitores e aos estudiosos dasquestes emvolvemdo o campesinato uma viso histrica sobre a evoluo do conceito,afirmando e reafirmando no campesinato seu modo de ser e de viver nas mais diferentesformas de sociedade. Temos ainda, como meta, o fortalecimento do conceito de campons,o que uma questo estratgica para o debate com o pensamento neoliberal e ortodoxo,atravs de uma leitura crtica sobre as diferentes interpretaes feitas sobre o futuro docampesinato nas sociedades capitalistas.Cremos que esta obra de fundamental importncia para os movimentoscamponeses do Brasil, num momento em que estamos oportunizando, enquanto movimentosocial, a participao de vrios estudos que esto sendo realizados por diversospesquisadores que tem, gentilmente, dedicado tempo para oferecerem contribuies naampliao do debate sobre o campesinato entre os intelectuais e os MovimentosCamponeses do Brasil.Com este trabalho queremos oferecer sociedade brasileira uma viso de quemacredita que o campesinato tem papel fundamental para um processo de desenvolvimentorural sustentvel. Pretendemos ainda oferecer estes subsdios tericos, historicamentefundamentados, a outros pesquisadores, professores, estudantes e a cidados interessadosna temtica e na realidade camponesas. Oferecer principalmente aos camponeses e suasorganizaes, mais uma ferramenta de luta, agora no campo da batalha de idias. 3. 3SUMRIO1. Introduo....42. O campesinato na antiga tradio dos estudos camponeses....73. Da nova tradio dos estudos camponeses agroecologia....254. A modo de concluso: o campesinato na agroecologia....365. Bibliografia....39 4. 41. INTRODUOO presente trabalho um complemento de nossa intervemo no Seminrio sobre oCampesinato que, organizado pela Via Campesina, teve lugar em Braslia nos dias 19 e 20de Novembro do 2004; nele pretendemos caracterizar a evoluo do conceito deCampesinato no que definiremos mais adiante como o Pensamento Social AgrrioAlternativo. Dito conceito apresentado atravs dos discursos que, consciemte ouinconsciemtemente, encontram-se por trs dos atores coletivos que configuram o que aquichamamos orientaes tericas, como categorias intelectuais, nas que se articulamexplicaes e valores sobre algum nvel da realidade, geradoras de processos delegitimao ou deslegitimao sobre determinadas parcelas de tal realidade, neste casorelativa ao campesinato, agricultura ou sociedade rural (2). A perspectiva que vamos utilizar pretende ter uma natureza holstica, no sentido deque , sua vez, histrica e totalizadora, tentando captar a complexa diversidade dasmanifestaes do debate e de seu permanemte processo de transformao. Esta considerada no s desde uma perspectiva multidisciplinar seno em sua mais amplagemeralidade, e aceitando a articulao das diferentes orientaes tericas num processode configurao de um pensamento cientfico convencional confrontado, nas diversasconjunturas histricas, com um pensamento alternativo. O primeiro, como conseqnciadas inter-relaes da cincia com a sociedade, no questiona o sistema de relaessociais existentes. As aes de desenvolvimento realizadas como conseqncia daprofundidade scio-poltica de cada orientao terica tende a legitimar a ordem socialexistente. Pelo contrrio, o pensamento alternativo tende a transform-lo.Nas pginas que seguem pretendemos fazer uma incurso pelo Pensamento SocialAgrrio para apresentar aqueles marcos tericos que se movem numa prxis intelectual epoltica contra o capitalismo. E isso, independentemente de que atribuam ao campesinatoum papel histrico progressista (potencial revolucionrio) ou reacionrio (saco de batatas),desde o sculo XIX at a atualidade. Nossa contribuio VIA CAMPESINA pretendetrazer ferramentas tericas com as quais se poder neutralizar a ofensiva neoliberal quedesde a academia e da prtica poltica est se desenvolvendo na Amrica Latina aopretender apresentar uma inevitvel evoluo da Agricultura Familiar para oAgronegcio, no contexto da Agricultura Industrializada em sua atual verso transgnica.2 A presente investigao s adquire seu sentido cabal no contexto de outras anteriores ( Cf. Giner, S., and E.Sevilla Guzmn (1980) ; E. Sevilla Guzmn (1983);Newby, H. e E. Sevilla-Guzmn (1983); E. SevillaGuzmn, (1984 :41-107); Sevilla Guzmn, E. (1988 ); Sevilla Guzmn ( 1990 ); e Eduardo Sevilla-Guzmn eManuel Gonzlez de Molina (1992) onde se desenvolvem, em forma mais detalhada aspectos concretos desta.Gonzles de Molina e Sevilla Guzmn (1993a e 1993b) Uma viso global, muito esquemtica, considerando aimplementao prtica destes marcos tericos atravs de suas formas de desenvolvimento apareceu emportugus em Sevilla Guzmn (1997) e em ingls como E. Sevilla Guzmn and Graham Woodgate,Susttainable Rural Developmemt: Form a Industrial Agriculture to Agroecologyy em Michel Redclift andGrahm Woodgate (eds) The International Handbook of Emvironmemtal Sociology (Chaltenham: EdwuardElgar, 1997); h traduo castelhana em (Madri: Mc Graw Hill, 2002). 5. 5Cremos, pelo contrrio, que a nica soluo para o problema scioambiental queatravessamos est num manejo ecolgico dos recursos naturais, em que aparea a dimensosocial e poltica que traz a Agroecologia e que esteja baseada na agricultura sustentvel quesurge do modelo campons em sua busca de uma soberania alimentar.3 Necessidade de estabelecer um marco terico para aAgroecologia latino-americana.Cremos ser necessrio adicionar uma reflexo para assinalar que a anlise docampesinato no Pensamento Social Agrrio Alternativo que apresentamos a seguir teria deser completado com uma interpretao do processo histrico latino-americano quequeremos esboar aqui (Cf. Ottmann, 2005, no prelo) esquematicamente. E isso pelaimportncia poltica que sua introduo na Agroecologia pode ter. Tal interpretao partede uma estratgia metodolgica que rastreia os processos geradores de identidade aoapresentar contedos histricos que foram gerados pelas memrias sociais procedemtes daviso dos vencidos. A incluso, na reflexo terica e anlise histrica, de uma srie deautores-chave permitiria construir uma interpretao desde a viso do sul. Com talcontextualizao histrica se rastreariam aqueles processos que, em nossa opinio,estabeleceram os contedos histricos de uma matriz sociocultural especificamente latino-americana. O primeiro deles, que se estende ao longo de todo o perodo colonial, ressalta oltimo tero do sculo XVIII, quando surge a Ilustrao europia e tm lugar oslevantamentos incaicos no cone sul latino-americano; isso permitiria ressaltar a3Estes materiais provem da pesquisa que os autores esto desenvolvendo sobre Os camponeses e aAgroecologia, onde pretendem analisar o papel do campesinato nas estratgias de desenvolvimento ruralsustentvel, alm de apresentar a evoluo deste conceito nas Cincias Sociais e no pensamento agrrio. Paraisso, e nos termos desenvolvidos neste artigo, partimos de recuperar as razes de um pensamento alternativoem torno do campesinato. Isso nos permitir obter uma nova considerao do campesinato e seu papel nodesenvolvimento rural sustentvel. Assim, depois de mostrar que os camponeses tambm contaminam edegradam o meio ambiemte, apresentaremos uma teoria da degradao da condio camponesa. E ao faz-lo, consideraremos aos movimentos camponeses e o desenvolvimento rural sustentvel como estratgia desdeo potencial de mudana do campesinato e o desenvolvimento endgeno. O conceito de potencial endgenoem Agroecologia faz referncia, no s ao nvel de conhecimento local que possui um indivduo sobre seusagroecossistemas, seno ao grau de compromisso que possui com a identidade vinculada a dito conhecimentoe s comunidades locais que o compartilham. Isto , identificao que os sujeitos estabelecem com oscontedos histricos de suas prprias experincias vinculadas com as de seus antepassados, que sem dvidapossuem uma articulao com seus agroecossistemas. O grau de identificao dos agricultores com a matrizsociocultural gerada em sua interao com seus recursos naturais, constitui a dimenso agrria do endgeno.Nesse sentido, descrever a apario de uma tica e de uma cultura alternativa racionalidade globalizadoraque esteve e est presente a muitos movimentos camponeses. Esse o ponto de partida de qualquer estratgiade desenvolvimento rural sustentvel, no que aparece uma propemso mudana baseada na resistnciacamponesa, com sua estrutura organizativa que estabiliza e organiza a reivindicao e o leva para adiante demaneira autnoma e participativa; no a nica via, o Estado pode realizar algo parecido, mas vista do quefaz o Estado na Amrica Latina e a lentido com que aborda o problema da reconverso ecolgica daproduo agrria no Ocidente, imprescindvel a presema e o empuxo de movimentos sociais camponesese/ou ecologistas. 6. 6heterogeneidade de formas conflitivas de luta e resistncia invaso e ocupao europia,no mesmo. O segundo processo abarca o primeiro tero do sculo XIX, compreemdemdo aconjuntura histrica da dinmica de emancipao americana. Aqui a reflexo histricaconcluiria mostrando como na prtica da totalidade do territrio que hoje constitui aAmrica Latina a descolonizao se realizou numa forma incompleta. O processo nuncachegou a concluir j que, ainda que se obtivesse a independncia dos reinos ibricos, nuncase chegou a eliminar a estrutura interna da colnia, mantendo-se o domnio ideolgico doocidente.O terceiro processo se move na segunda metade do sculo XIX, com a consolidaodo liberalismo e do socialismo na Europa e a construo da independncia na AmricaLatina. Nele, as resistncias aos projetos oligrquicos que pretendiam outorgar um statusreal de cidado aos grupos indgemas ainda no exterminados foram interpretadas pelodespotismo ilustrado neocolonial como manifestaes regressivas de oposio aoprogresso. O pensamento cientfico emergente, tanto desde posies liberais comosocialistas, interpretaria as rebeldias populares como foras irracionais, incapazes decompreender o caminho marcado pelos centros civilizados: era necessria a mudana dossangues nativos por raas trabalhadoras. A introduo da interpretao de Jos CarlosMaritegui do processo histrico latinoamericano nos permitiria conceitualizar-lo desde oNeomarxismo dos Estudos Camponeses, como corrente precursora da Agroecologia. Issopermitiria o esboo dos contedos de uma matriz de pensamento popular latinoamericanocom os materiais historiogrficos de Guillermo Bonfil Batalha, Alcira Argumedo, EricWolf e Jacques Chonchol, entre outros.Os elementos centrais em que aparecem os contornos da matriz de pensamentopopular latinoamericano so: (1) a existncia de etnicidades profundas negadas por ummarco de legalidade no que se constri um imaginrio que nega, igualmente, oreconhecimento social da mestiagem; (2) desde a homogeneidade de uma elite crioula, deorigem europia; (3) que controla as bases legais e morais das formas histricas dedominao poltica. No amplo mapa latinoamericano persiste uma sincronia manifestadapelas realidades polticas e pela homogeneidade das classes privilegiadas. No entanto frentea isso, aparece uma (4) heterogeneidade sociocultural nas classes oprimidas, portadoras de(5) diferentes formas de conflictividade latente vinculadas heterogeneidade sciocultural,articuladas no poucas vezes a um catolicismo popular (como sincretismo das cremasancestrais das cosmovises de suas etnicidades profundas) com um potencial liberador.Dado que a Agroecologia supe o manejo dos recursos naturais surgido desde asidentidades dos etnoagroecossistemas locais; a existncia desta matriz sociocultural podecontribuir com um elemento essencial na configurao de um potencial endgeno humanoque mobilize a ao social coletiva em que se baseia a Agroecologia, tal como ns adefinimos (Guzmn Casado, Gonzlez de Molina e Sevilla Guzmn, 2000). Esta matrizsociocultural de pensamento popular latinoamericano se nos apresenta, neste contexto,como um saber submetido no sentido que d Foucault a este termo. E que, ao serreconstrudo pode atuar, como reparao crtica a formas passadas de legalidade e ainstituies que jogaram um papel histrico negativo, ainda que foram legitimadas pelo 7. 7poder; ou como revalorizao daquilo que sofreu uma desvalorizao ou desqualificaopor parte da hierarquia para algo que se resistia a ser submetido e ocultado.Neste sentido, a matriz de pensamento popular latino-americano aparece desde aperspectiva da Agroecologia, como uma genealogia que deve conduzir a luta justamentecontra os efeitos de poder de um discurso considerado cientfico (Foucault, 1992: 23).Efetivamente, a Agroecologia se enfrenta ao falso discurso cientfico que legitima agricultura industrializada, difundindo a biotecnologia como paradigma hegemnico eproclamando a necessria prioridade dos cultivos transgnicos. Com isso se desloca aoutros enfoques mais integradores e holsticos desemcadeando os processos de degradaoda agricultura e a sociedade que combate a Agroecologia. Desde esta perspectiva, o papelque atribumos matriz de pensamento popular latino-americano constitui o incio de umprocesso de identificao coletiva para sua aplicao posterior em identidades locais maisconcretas vinculadas ao manejo dos recursos naturais. , neste sentido, no que poderiafalar-se de uma genealogia do processo histrico latino-americano.Com respeito aos aspectos sociais da Agroecologia, resulta fundamental irgerando metodologias que permitam registrar a viso da prpria identidade local dos atoresemvolvidos. As ferramentas para faz-lo no diferem das empregadas para obter erevalorizar o conhecimento local, em seus aspectos tcnicos. No obstante, a utilizao dahistria oral, junto s metodologias qualitativas e participativas (Guzmn, et al., 2000: cap.5) comumente utilizadas para isso, podem resultar de grande valor. No entanto, osmarcadores de identidade local assim obtidos tero de situar-se nos contextos mais amplosoutorgados pela matriz de pensamento popular latino-americano em sua aplicao srealidades de cada pas, de cada regio e inclusive de cada macro-etnoecossistema.2. O CAMPESINATO NA ANTIGA TRADIO DOS ESTUDOS CAMPONESES Ao longo dos sculos XVIII e XIX tem lugar o que, desde uma perspectivacientfica, poderia definir-se como a gnese do pensamento social agrrio. Tal cristalizaoterica no em absoluto um fenmeno casual, pelo contrrio, responde a todo umprocesso de acumulao elaborado pelo legado das teorias evolucionistas provenientes dafilosofia da histria (desde Giambattista Vico at George Hegel), do evolucionismonaturalista (Lamarck, Darwin e Malthus, entre outros) e do socialismo utpico (em suaampla gama desde Pierre Joseph Proudhom a Claude Hemri de Rouvroy, conde de Saint-Simon). O processo de transformao social que acompanha implantao no Ocidente domodo de produo capitalista e as repercusses que dito estabelecimento tem sobre ocampesinato constituem a situao histrica em que surge a Antiga Tradio dos EstudosCampesinos (Palerm, 1980; Newby e Sevilla Guzmn, 1983: 140-43). Mais ainda, estanasce como uma tentativa desesperada de impedir o desenvolvimento do capitalismoatravs de formas de ao social coletiva (que hoje podiam muito bem se qualificar comode desenvolvimento rural participativo), cujo objetivo evitar a desorganizao social, 8. 8explorao econmica e depredao sociocultural que tal processo gerava nas comunidadesrurais.Rastrear a gnese terica do campesinato no Pensamento Social Agrrio, desde estaperspectiva, supe partir necessariamente de esboar os traos bsicos dos movimentosintelectuais, que poderiam ser definidos como pensamento evolucionista sobre ocampesinato e Direito Consuetudinario Campons. Os autores centrais de tais movimentosso, ao menos, os seguintes (Cf. referncias em E. Sevilla Guzmn, 1990 e Sevilla Guzmne Gonzlez de Molina, 1992): 1) George Ludwin von Maurer que, desde a Universidade deMunich, apresentou a organizao social camponesa da marca germnica como um valorhistrico da antiga civilizao germnica que era preciso conservar. A utilizao dostrabalhos de Maurer por Engels na origem da famlia, a propriedade privada e o Estadojogaria um papel chave na configurao da orientao terica do Marxismo OrtodoxoAgrrio, que consideraremos depois; 2) Lewis H. Morgan, quem em seu Anciemt Societyestabelece pela primeira vez um esquema do processo histrico interelacionando a evoluotcnica com variveis sociais como o paremtesco, a organizao poltica e a propriedade.Sua importncia radica em que a primeira viso completa do processo histrico desde aperspectiva do evolucionismo unilineal. Jogou um papel central na bifurcao terica doMarxismo Ortodoxo Agrrio e o Narodnismo Marxista que consideramosesquematicamente nas sees seguintes deste texto; 3) Hemry Summer Maine, quem tentaexplicar o progresso da humanidade com seu esquema terico de passagem das relaessociais baseadas no status s regidas pelo contrato. A anlise de suas obras Anciemt Law,Village: Communities in the East and West e Lectures on the Early History ofInstitutions, constitui um elemento imprescindvel para elaborar o contexto terico dagnese dos estudos sobre o campesinato. Ademais, a influncia de Maine sobre oAnarquismo Agrrio mediante sua utilizao por Kropotkin, situa a este autor como centralna configurao da Antiga Tradio dos Estudos Campesinos. 4) August von Haxthusem,quem estuda pela primeira vez, desde uma perspectiva cientfica, a organizao social daobshina russa. Seu trabalho se realiza por encomenda de Nicols II, como relatrio tcnicoantes de levar a cabo a abolio da servido na Rssia e joga um papel central naconfigurao do Populismo em suas trs correntes, que veremos, tambmesquematicamente mais adiante; 5) Makxim Makximovich Kovalevski, quem estudou aestrutura social do campesinato medieval europeu, primeiro desde a Universidade deMoscou e depois desde seu exlio londrino. importante, no s por seu trabalho seno porsua amizade acadmica com Marx, decisiva na configurao do que definiremos maisadiante como orientao terica do Narodnismo Marxista(4).A obra de todos estes autores se inscreve num esquema explicativo do processohistrico, em que aparece como protagonista central a estrutura social do campesinato.Rastrear a gnese terica do debate que se estabelece entre as orientaes do MarxismoOrtodoxo e o Narodnismo (que definiremos mais adiante) em torno dos envolvimentoseconmicos sociais e culturais do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, supepartir necessariamente de esboar os traos bsicos dos movimentos intelectuais que, num4Cf. Maurice Godelier (1.970); Angel Palerm (1974) e (1980) e Teodor Shanin (1984). As obras chave deKovalevsky para nosso argumento so (1.891a); (1.891b: 480-516); (1.885:177-233); (1.903) e ( 1.906). 9. 9esforo de sntese, poderiam ser definidos como a elaborao de um esquema explicativounilinear do processo histrico, em que aparece como protagonista central a estrutura socialdo campesinato, a qual se valoriza como um resultado de igualdade e solidariedade socialameaado pelos processos de privatizao, mercantilizao e urbanizao que introduz ocapitalismo nas sociedades camponesas.O elemento central de sua anlise o conflito gerado na organizao socialcamponesa pela penetrao do capitalismo. A similitude de seus esquemas tericos permitefalar de uma corrente conflitivista de estudos agrrios, que se encontra nas origems do quechamamos a Antiga Tradio dos Estudos Campesinos e que passamos a considerar atravsda definio das orientaes tericas do Narodnismo, primeiro, do Anarquismo agrrio,depois e, finalmente, do marxismo ortodoxo. Ao estabelecer tal contextualizao tericaaparecer, obviamente como elemento central, sua concepo do campesinato no processohistrico.O campesinato no Narodnismo russoO Narodnismo constitui a primeira corrente de pensamento dentro da esboadaplataforma intelectual que definimos como Antiga Tradio dos Estudos Campesinos. Estasurgiu, desde a perspectiva da teoria social agrria, como conseqncia do debateintelectual e poltico gerado na Europa do oitocentos sobre a vigncia das instituiesemcarregadas do manejo autnomo dos recursos naturais, socioeconmico e poltico dascomunidades rurais, atravs do direito consuetudinrio campons. O tema central era apossvel pertinncia de uma adaptao ao novo palco vinculado ao desenvolvimento domercado ou pelo contrrio sua drstica substituio perante as exigncias de um progressomaterial que impunha cruis sacrifcios sociais.Por outro lado, esta corrente intelectual recolheu e assimilou o contedo do OCapital de Marx em forma tal que as polmicas sobre sua aplicao na Rssia de entoconstituram algumas das circunstncias determinantes que romperam os antolhosocidentais de Marx com respeito sua interpretao do processo histrico. Da surgiu umareconsiderao por parte deste autor sobre o papel do campesinato na evoluo dassociedades que denominamos em outro lugar como Narodnismo marxista. (E. SevillaGuzmn, 1990). Tal pensamento s se v recuperado nos anos sessenta e setenta do sculopassado pela Nova Tradio dos Estudos Campesinos, que analisaremos mais adiante.No seio do narodnismo russo coexistiram diversas orientaes tericas comdiferentes prxis intelectuais e polticas que propugnaram e perseguiram para Rssia ummodelo de desenvolvimento econmico no capitalista em que aparecia como protagonistacentral do campesinato. No interior deste heterogneo conjunto de correntes com mltiplasdiferenas e correntes internas surge uma dinmica que permite diferenciar uma etapa degnese representada por Herzem e Chernychevsky, um perodo clssico no que Takchev,Lavrov, Mikhailovsky e Bervi-Flerovsky destacam como formuladores de uma teoria docampesinato, e uma efmera prxis revolucionria, como etapa final. Paralelamente se geraum ramo anarquista (ou anarquismo agrrio) cunhado teoricamente por Bakunin eKropotkin. Apesar de sua marcada diversidade, os dois traos que caracterizam seupensamento global so: por um lado, sua rejeio propagao do capitalismo que atingia 10. 10j uma dimenso hegemnica na Europa Ocidental; e por outro a assuno e o desejo deque a Rssia saltasse a etapa capitalista para atingir uma sociedade mais justa, socialista,sem a descomposio do campesinato. Para isso elaboraram uns esquemas tericos nosquais eram admissveis diversas vias, substantivamente diferemciadas, na rota para oprogresso do processo histrico. Ao escrutinar tais vias introduziram como uma varivel deanlise o bem-estar social do povo, ao qual subordinam os demais objetivos de suainvestigao. Um terceiro trao do populismo russo, plenamente expressado pela Vontadedo Povo era a assuno de que o Estado Tzarista era o maior inimigo do povo russo j que,enquanto na Europa ocidental eram as classes latifundirias quem exploravam ocampesinato, na Rssia era o prprio Estado quem defendia e criava as classes exploradascontemporneas, convertendo-se assim na principal fora capitalista. Ademais, a idia deum desenvolvimento desigual, formulada claramente no esquema terico narodnista,chegou a proporcionar a sua anlise uma clara dimenso poltica. O desenvolvimentodesigual ia levar a Rssia a uma posio proletaria entre as naes ao observar asdesvantagens desta com respeito s potncias do oeste. Isso fazia necessrio um saltorevolucionrio no que o atraso podia transformar-se numa vantagem; mais ainda, emprivilgio revolucionrio (Teodor Shanin, 1.984; pp. 8-9).Num esforo de sntese, o narodnismo russo pode ser definido como uma prxisintelectual e poltica que elabora uma estratgia de luta contra o capitalismo caracterizadapelos seguintes traos: 1) Os sistemas de organizao poltica gerados no seio docapitalismo constituem formas de submisso e dominao sobre o povo que gera umaminoria que pretende se legitimar mediante falsas frmulas de participao democrtica; 2)os sistemas de legalidade assim estabelecidos desenvolvem uma prosperidade material quevai contra o desenvolvimento fsico, intelectual e moral da maior parte dos indivduos; 3)nas formas de organizao coletiva do campesinato russo existia um estado desolidariedade contrrio natureza competitiva do capitalismo; 4) era possvel freiar odesenvolvimento do capitalismo na Rssia mediante a extenso das relaes sociais docoletivismo campons ao conjunto da sociedade; 5) os intelectuais crticos devem fundir-se com o povo para desenvolver com ele, em p de igualdade, mecanismos de cooperaosolidria que permitam criar formas de progresso s que se incorpore a justia e a moral.Analisaremos a orientao terica do Narodnismo russo considerando, cronologicamente,as trs etapas (fundacional, clssica e revolucionria), antes citadas, que se correspondemcom trs momentos de sua prtica intelectual e poltica. Em cada uma delas consideraremosao menos um marco terico que ser utilizado como seu elemento caracterizador.Etapa fundacional: Teoria da marcha atrs. Ainda que no se pode negar ainfluncia de Aleksandr Ivanovich HERZEM, a figura chave deste perodo NicolaiGavrilevich CHERNYSHEVSKI, quem desde a revista Sovrememnik (Critica Literria)realizou uma atividade publicista revolucionria, no meio das dificuldades impostas pelacemsura, utilizando a literatura como marco gerador de processos de consciemtizao econtestao. Assim, mediante a anlise da experincia europia ---fundamentalmenteFrana e Inglaterra --- escrutina as vantagens e desvantagens do desenvolvimentocapitalista chegando concluso de que a Rssia podia ainda eleger outra via, evitando aproletarizao, pauperizao e desorganizao social das comunidades rurais queprovocava o avano do capitalismo: era possvel dar marcha atrs e saltar sobre a etapado capitalismo chegando diretamente ao progresso do socialismo. Isso seria possvel 11. 11mediante o fortalecimento das formas de ao solidria do coletivismo campons paraevitar o sofrimento e a explorao que sobre a comunidade rural gerava a mercantilizaodas formas de vida e da natureza. Neste contexto, o campesinato se considera a instnciamoral que engloba as potencialidades para transformar sua estrutura e organizaoprodutivas em modernas cooperativas, nas que poderiam aparecer homems e mulheresnovos (Shanin, 1984:179-188; Vemturi, 1972:274-290; Chernyschevski, 1864). Talconstruo teria de fazer-se mediante uma cooperao solidria de carter simtrico entreos camponeses e os tcnicos e intelectuais (pessoas de conscincia pressionada). Estaidia foi desenvolvida nos anos sessenta e setenta do sculo passado como dvida com opovo no contexto terico da sociologia subjetiva (Walicki, 1969), que veremos a seguir.Seus elementos tericos so claramente precursores da atual investigao ao participativae do desenvolvimento rural participativo. O Narodnismo clssico: Teoria das vantagens do atraso e sociologia subjetiva esta uma segunda fase, cujos representantes so TKACHEV, LAVROV, MIKHALOVSKIe BERVI-FLEROVSKI (Teodor Shanin, 1983: pp.172-178). A coincidncia entre eles e osrepresentantes da anterior etapa em sua rejeio ao capitalismo e em seu desejo de queRssia desse o salto ao socialismo sem passar pela descomposio do campesinatocristaliza numa formulao definitiva do marco terico anterior, com a teoria dasvantagens do atraso que permitiria elaborar ou estratgia atravs da qual seria possvelevitar a Rssia descer ao inferno do capitalismo como passo necessrio para obter oprogresso. Desta perspectiva, o desenvolvimento ficaria, em todo caso, subordinado aobem-estar social do campesinato. O progresso tem de medir-se pelo impacto dastransformaes tcnicas e sociais nas classes trabalhadoras --- includo, obviamente opequeno campesinato --- pelo que tal conceito tem de incorporar a tica para poder serrealmente cientfico. Esta teoria se encontra, alis, dentro de um contexto terico maisamplo: a sociologia subjetiva, que parte do axioma de que a histria no segue leisobjetivas seno que possvel selecionar dentre a massa amorfa de dados histricos a viaa seguir por nosso ideal social. Os ideais dos pesquisadores aparecem em seus produtos,dado que a cincia no objetiva. Para Petr Lavrovich Lavrov --- membro ativo daorganizao narodnista Terra e Liberdade, os falsos ciemtistas apologetas docapitalismo justificam os sofrimentos e a explorao do povo com leis objetivas dahistria e com leis de ferro da Economia Poltica. Mas a cincia no objetiva: osindivduos de pensamento crtico podem --- com o povo --- incorporar a tica e a justia cincia mediante o fator subjetivo com o qual se construiriam as instituies sociaispartindo da organizao autnoma do campesinato, atravs da comuna rural como ncleodo socialismo. Assim, Nicolai Konstantinovich Mikhailovskii via na obshina (comunidaderural russa) a possibilidade de evitar a homogemeizao da sociedade que estabelecia ocapitalismo atravs da industrial diviso do trabalho que impe sua lei da especializaopara o aumento da produtividade. Ao contrrio, a cooperao simples camponesa podia sermelhorada para formas de progresso real (Edie, et. al, 1965: II, 132; Vemturi, 1974:434-453; Kolakowski, 1982:316-18 XX). 12. 12 A Ida para o povo como precedemte da Pesquisa Ao participativa: De Terra eLiberdade Vontade do Povo.A implementao prtica das idias esboadas nos dois marcos tericos anteriorestem lugar a partir dos anos sessenta do sculo XIX com o incio de uma verdadeiramigrao de populao urbana, com predomnio de jovems, ao campo, convencida danecessidade de uma ao conjunta com os camponeses para transformar as precriascondies de vida em que a abolio da escravido tinha deixado os estratos camponesespobres ao privar-lhes do uso comunal de suas terras depois da privatizao destas. Esta idapara o povo tem seu pice na metade dos anos setenta. O processo supunha procurar umaanlise da realidade conjunta com os camponeses para encontrar frmulas que, surgindodeles mesmos, trouxessem solues a cada situao. Passava-se assim de uma situaoclandestina de diferentes grupos nas cidades a uma ao aberta em todo o territrio,estabelecendo conexes entre os novos grupos ali formados. O ncleo central quearticulava a rede de intercmbios era Zemia i Volia (Terra e Liberdade). Os grupos assimcriados pretendiam ser legais, desenvolvendo uma propaganda, que numa primeira fase foidemominada causa do livro, ao conseguir a ajuda de editores para a publicao de textose panfletos que se difundiam nas comunidades rurais, chegando a abranger uma grandeparte do territrio russo. A ao destes grupos mediante a lenta tarefa da propaganda e apenetrao de uma cultura moral, social e poltica, evoluiu com grande rapidez: o sucessoda causa do livro os levou a substituir esta pela causa dos operrios, que pretendia criara estrutura organizativa para passar ao transformadora.A resposta do poder estabelecido se traduziu em mltiplas detenes e o fortedebilitamento da organizao. A partir de 1.879 se dissolve esta e a maioria cria o PartidoSocial Revolucionrio da Vontade do Povo. Sua estratgia de ao poltica era o desafioarmado direto ao Estado Tzarista procurando sua derrota como preldio necessrio para atransformao da sociedade russa. Simultaneamente, uma minoria estabelece a organizaorival Partilha Negra (Cheryi Peredel) que pretendia continuar a ttica e o programa de Terrae Liberdade, isto , continuar a ao emcaminhada ao aumento da conscincia camponesa.Esta organizao, pelo seu reduzido tamanho e falta de meios, fracassou em obter omnimo impacto, a maioria de seus lderes emigraram e 1.883 abraaram o marxismo,adotando o nome de Emancipao do Trabalho (Grupa osvobozhdemiya Truda), a primeiraorganizao dos marxistas russos liderada por Plejanov (Teodor Shanin, 1.984; pp. 204-205e pp. 212-218 e Fernando Claudn, Prlogo a V.I. Lenine, 1974; pp. 11 e 51-52). Pelocontrrio, o grupo majoritrio da Vontade do Povo mostrou uma incrvel capacidade de lutae habilidade organizativa para enfrentar de forma armada o Estado Tzarista. Em 1.881,depois de vrias tentativas, conseguiram matar o Tzar Alejandro II e, ainda que a brutalrepresso sobre a organizao e os simpatizantes desta significou uma onda de detenes eexecues em massa, continuou a luta at 1.887. (Vemturi, 1975. Vol. I; pp.738-52;Walicki, 1971; pp. 69-71; Shanin 1983; pp.172-178). Anarquismo agrrio: o campesinato como agente revolucionrioe seu apoio mtuo como fator de evoluo. O movimento anarquista pode ser definido como um sistema de pensamento 13. 13aberto e nada rgido que, compartilhando com outras correntes radicais diversos elementosde seus pressupostos filosficos; da crtica sociedade atual; bem como do modelo dafutura sociedade ideal, distingue-se por alguns traos tericos comuns que se concretizamna negao do Estado e a busca do estabelecimento de inter-relaes humanas na base dacooperao voluntria expressa mediante pactos livres, desde o ponto de vista da prxispoltica. A rejeio da participao poltica nas instituies burguesas se configura, entreoutros, como o elemento mais destacado e amplo (G. Woodcok, 1.979; pp. 19-20; C. Daz,1.973; pp. 5 e ss; lvarez Junco; pp.9). Desde os interesses deste trabalho, isto , no que serefere ao conceito de campesinato, as figuras-chave configuradoras do anarquismoagrrio so Bakunin e Kropotkin, a quem passamos a considerar.Na obra de Bakunin subsiste uma teoria do campesinato como agenterevolucionrio, segundo a qual, na Rssia da segunda metade do oitocentos, existiam ascondies objetivas precisas para o desencadeamento de uma revoluo social. Bakuninidentificava estas condies com a situao das massas populares camponesas russasdefinida pela conjuno da extrema misria com uma servido feudal que era modelo emseu gnero, que adicionava uma conscincia histrica de emancipao social. No exameda conscincia histrica do povo russo, Bakunin distinguiu elementos positivos e negativos(Bakunin, 1976, VI: pp. 367-369). Entre os positivos inclua: a) a convico fortementearraigada de que a terra pertencia integralmente ao povo; b) a posse da terra era um direitoque no correspondia ao indivduo seno comunidade rural (ao mir), que se emcarregavade repart-la entre seus membros por prazos temporrios definidos; c) a autonomia polticaquase absoluta, bem como a capacidade administrativa e gerencial do mir, que provocava ahostilidade manifesta daquele em relao ao Estado. A conscincia histrica do povo russose encontrava, no entanto, obscurecida por outros trs traos que, desnaturalizando-a emparte, atrasavam a emancipao do povo russo: 1) o patriarcalismo; 2) a absoro doindivduo pelo mir; 3) a confiana no Tzar.A correo do ideal do povo russo numa orientao positiva supunha a destruiodos traos negativos, o que se produziria de maneira efetiva e completa pela via darevoluo social. Destrudos os elementos negativos, os traos positivos, particularmente aautonomia poltica e administrativa, ficariam potenciados e poderiam se desenvolver atsua total realizao. A debilidade do mir radicava, ento, em seu isolamento; acima do mir, oscamponeses somente colocavam o Tzar e no percebiam a necessidade de estreitar laos erelaes com os camponeses membros do resto de comunidades rurais. O ideal de umarevoluo popular e camponesa cristalizaria numa federao de comunidades rurais,livremente unidas. O marco terico do campesinato como agente revolucionrio consiste,pois, no estabelecimento de um sistema de fatores como estrutura analtica para explorar apotencialidade revolucionria do campesinato. O fato de que Bakunin o elaborar para umcaso concreto no bice para apreemder a anlise terica subjacemte e suas pretemses degemeralidade. Assim, a comuna russa supunha para Bakunin algo mais do que a alavancapara do que o povo russo chegasse a redimir-se a si mesmo; significava tambm apossibilidade de encontrar aqueles fatores que, desde o campesinato, conseguissem estendera revoluo a toda Europa. 14. 14Para Bakunin as zonas vazias do capitalismo permitiam gerar uma revoluo queculminaria numa Europa socialista. Estas eram a periferia europia, onde ainda existia oideal proletario dos pases latinos. O campesinato russo possua os elementos capazes degerar essa dinmica revolucionria. O ncleo central de tais elementos se baseava naconvico de que a terra pertencia ao povo, que a trabalha. A propriedade era, portanto,algo coletivo que no admitia a apropriao individual. O conceito de propriedadecapitalista no tinha sentido para a terra dentro da cultura camponesa russa. Igualmente, ouso da terra no pertence ao indivduo seno comunidade; esta, portanto, quemadjudica a seus membros a utilizao da terra para obter o acesso aos meios de vida. Oscritrios de tal distribuio constituem parte da tica camponesa, a qual faz parte de umalgica econmica alheia ao capitalismo e s formas de concorrncia que introduz nosistema de valores da coletividade (Bakunin, 1976, VI: pp. 372-3769).Como vimos anteriormente, os fundadores do populismo russo, Herzem eChernyschevsky, viram no atraso econmico a razo que poderia permitir Rssia tirarproveito dos progressos tcnico-econmicos dos pases europeus capitalistas encurtando asetapas transitrias entre capitalismo e socialismo. Em contraste, Bakunin interpretou oatraso russo, expresso em misria e dominao social, como o fator desencadeante de umarevoluo social que tinha como ideal a destruio do Estado e, junto emancipao social,a introduo de elementos como a autonomia poltica das comunidades rurais e a federaocomo modelo da organizao poltica (F. Vemturi, 1.981: p. 689). Por conseguinte, noesquema terico de Bakunin ressalta a dimenso poltica que conceitualiza o mir comoncleo social com vida prpria e com capacidade para resistir s ingerncias do Estado, delutar contra ele e de destru-lo. Resumindo, a valorao dada por Bakunin a respeito do mirdependia de suas relaes com o Estado: enquanto este se contrapunha ao Estado, erarevolucionrio, mas se integrava dentro da organizao estatal, considerava-o reaccionrio. Peter Alekseievich Kropotkin (1.842-1.921) foi claramente um discpulo deBakunin que, aceitando o ncleo central de seu pensamento, desenvolveu muitos de seusaspectos, alguns dos quais, como veremos, supem discrepncias com seu mestre. Umresumo e balano do pensamento de P. Kroptkin pode encontrar-se em G. Woodcock,(1.979; pp. 172-206); G.D.H.Escola, (1.975; pp. 328-336); A. Palerm, (1.976; pp.153-156);C. Daz, em P. Kropotkin, 1.978; pp.7-19), e em H.Arvon, (1.981; pp. 62-64 e 123-124).Em Kropokin, descemdemte da alta nobreza russa, as teorias anarquistas obtiveram um altonvel de desenvolvimento e elaborao cientficas, ao mesmo tempo em que ampliaram ecombinaram os contedos agrrios com os industriais (o anarcocomunismo), atingindo umareputao e respeito universais; suas contribuies ao pensamento anarquista se centraramna questo social, a moral solidria, o comunismo e a crtica ao darwinismo social. Entre todas suas contribuies, qui a que tem uma maior relevncia seja aconverso do apoio mtuo numa categoria cientfica. Apoio mtuo (Kropotkin, 1978)recopila os artigos que Kropotkin foi publicando no perodo 1.890-1.896 na revista TheNineteemth Cemtury em resposta ao artigo A luta pela existncia na sociedade humanaque, na referida revista, o reputado naturalista T. Huxley (1.825-1.895) publicou no nmerode fevereiro de 1.888. Em tal artigo, Huxley expressou a idia de que a civilizao humananasceu no trnsito de um estado de guerra mtua e amoralidade, caractersticas do estdioanimal e prprio de uma vida humana selvagem, a outro definido pela paz a evoluo 15. 15moral; no entanto, a persistncia de certas condies prprias de uma vida natural nahistria humana provocava que, apesar dos controles morais nascidos do progressocivilizador, a luta pela existncia mantivesse uma intensidade to aguda como a existentenum estado de guerra (A. Palerm, 1.976 ; pp. 151-156). Este trabalho teve uma importanterepercusso no sistema cientfico da poca, ao pretender fundamentar historicamente oliberalismo econmico ento emergente desde o ncleo duro do pensamento cientfico;por isso Kropotkin considerou um dever inevitvel mostrar a falsidade de tal propostaterica. Durante sua estadia na Sibria, Kropotkin pde contrastar as teorias darwinianascom a realidade observada e, nessa comparao, pode dar-se conta de que, em vez daesperada luta cruel pelos meios de subsistncia, dentro de cada espcie animal,predominava a luta individual ou associada contra algumas condies naturaisdesfavorveis. Estas primeiras idias foram maturando com o conhecimento do pensamentodesenvolvido nesta linha por outros autores, em concreto, Kessler, professor daUniversidade de So Petesburgo, quem via a evoluo das espcies como o resultado daao de duas leis, a luta mtua e a ajuda mtua, destacando o papel desta sobre aquela.Assim que quando Huxley publicou sua tese da luta encarnizadas nas espcies animais,Kropotkin, estimando-a como uma representao inexata do mundo animal, rebateu-amediante o artigo A ajuda mtua entre os animais, publicado pela revista NineteemthCemtury nos meses de setembro e novembro de 1.890.O convite efetuado por J. Knowles, diretor da revista The Nineteenth Century, aHuxley e A Kropotkin para persistir na polmica obteve a negativa do primeiro e aaceitao do segundo. Kropotkin considerou de interesse o tema, aprofundou na questo efoi publicando artigos na citada revista, cobrindo os diferentes estdios da histria humana.Assim, analisou a ajuda mtua entre os selvagems, entre os brbaros, na cidade medievale na poca moderna. Todos estes artigos reunidos num livro foram publicados com o ttuloe subttulo seguintes: O apoio mtuo. Um fator de evoluo.So de ressaltar as contribuies de Kropotkin ao debate sobre a propriedadecomunal sobretudo aquelas que se cemtram na dimenso tica das formas instituiescomunais criadas a partir da sociabilidade humana como mecanismo de sobrevivncia eluta em condies desfavorveis de existncia e no papel do Estado enquanto agenteclassista de desmantelamento e destruio de formas e instituies nascidas desde umaperspectiva de solidariedade e cooperao humanas.A comuna rural no pensamento de Kropotkin, alm de uma associao quefacilitava a cada famlia membro o acesso igualitrio ao cultivo da terra e regulava o cultivoem comum da mesma, representava o marco organizativo atravs do que se desenvolvia emsuas mltiplas variantes o apoio mtuo, fazia-se justia, organizava-se a defesa mtuacontra inimigos externos, articulava-se a participao democrtica nos assuntos comuns ese desenrolava o progresso econmico, intelectual e moral da poca. A comuna rural uniuos homems, deu-lhes a possibilidade de desenvolver progressivamente as instituiessociais e, assim, permitiu-lhes atravessar os perodos difceis e sombrios da histriahumana. No captulo de mritos da comunidade rural, Kropotkin incluiu a exploraoagrcola de bosques, pntanos, estepes e desertos, os sistemas de posse da terra e mtodos 16. 16de cultivo, o avano da produo domstica, a infra-estrutura de servios, o direito comume penal, etc. Assim mesmo, Kropotkin interpretou o processo de formao das naeseuropias como um resultado, em suas caractersticas fundamemtais, derivado do surto,crescimento e extenso pelo territrio das comunidades rurais (P. Kropotkin, pp. 143-146163-166; Jos Alvarez Junco, 1.977; pp. 9-29).A teoria do apoio mtuo como fator de evoluo faz uma caracterizao dasdiferentes formas histricas de organizao social do campesinato e critica as intencionadaspolticas de extino das comunidades rurais. Nas prprias palavras de Kropotkin: asteorias correntes dos economistas burgueses e de alguns socialistas afirmam que a comunamorreu na Europa ocidental de morte natural, posto que se supunha que a posse comunal daterra era incompatvel com as exigncias contemporneas do cultivo da terra. Mas averdade que em nenhuma parte desapareceu a comuna aldeana por prpria vontade; aoinvs, em todas partes as classes dirigemtes precisaram em vrios sculos de medidasestatais persistentes para desenraizar a comuna e confiscar as terra comunais, P.Kropotkin, XXCC p. 228). Ademais mostra como o ento emergente liberalismoeconmico no tem nada que ver com a evoluo bitica das espcies; as sociedadeshumanas no podem ser regidas pela concorrncia do mercado e umas falsas leis quejustificam a explorao do trabalho.Uma leitura do pensamento de Bakunin, completada com o de Kropotkin, sobre ocampesinato e a revoluo, contextualizada pela prxis intelectual e poltica do populismorusso, permite definir a orientao terica do anarquismo agrrio como um populismoespecificamente anarquista que no v em Rssia os privilgios do atraso a partir daperspectiva de uma reconduo do processo de avano das fora produtivas seno odesencanto, a misria e como conseqncia o desespero do campesinato. O atraso nopermite a marcha atrs seno o avano para a revoluo social. Assim se pode falar, portanto, de um populismo anarquista ou anarquismo agrrio que, num esforo de sntese,poderia definir-se como uma teoria da revoluo na que o campesinato uma classerevolucionria em potencial, j que: 1) o apoio mtuo constitui um elemento central danatureza das relaes sociais existentes no interior das comunidades rurais que possvelpotenciar frente a elementos inibidores; 2) a estrutura organizativa e material de suaorganizao econmica possui, certamente, um atraso que pode ser superado em formasde ao social coletiva de carter revolucionrio ao reter este a energia da naturezapopular; 3) a condio subordinada a que se v submetida sua forma de produzir, dentrode uma dinmica de explorao crescente em que trabalhar com as mos lhes condicionamoralmente fazemdo-os odiar os exploradores do trabalho, de forma tal que: 4) sdeterminados aspectos tradicionais, atuantes como preconceitos, lhes separam, realmente,dos comuns interesses dos trabalhadores urbanos, pelo que, rompidos tais preconceitospela comunidade de interesses da classe trabalhadora, possvel desatar a autnticarebeldia natural existente na estrutura social do campesinato (Bakunin, 1.979; vol, 7.pp.46-61, 76-79 e 11-123, e 1974, vol. 2 pp.292-309; Kropotkin, 1978: 143-68).Os mecanismos desta ruptura so os que requerem diferentes tipos de anlisessegundo as condies histricas e o lugar que ocupem no sistema capitalista. Seuescrutnio diferencial nas condies da semiperiferia do capitalismo, realizado tomandocomo evidncia emprica a Frana (Cartas a um francs) diferem de sua anlise da periferia 17. 17onde trata em forma diferemciada a Rssia, que conserva o mir, de Espanha ou o sul deItlia (Circular a meus amigos de Itlia), onde os camponeses esto castigados pelapobreza. De igual forma, seu conceito de operrio urbano varia segundo a posio desteno capitalismo. O operrio urbano o setor marginal da cidade em cada situao especfica,mas nunca a aristocracia operria. O papel central no processo revolucionrio docoletivismo campons s seria explicvel l onde existam instituies com tal natureza; ali,depois da guerra civil no campo, surgiria sem nenhum tipo de imposio, a ao socialcoletiva transformadora como uma conseqncia lgica do instituto socialista campons.No obstante, a existncia de uma tica natural contrria que introduz o capitalismo ereproduz o Estado com a propriedade privada como instituio central, algo que a culturacamponesa mantm como algo impresso em sua natureza. A justificativa terica disso estno conceito de apoio mtuo como contribuio de Kropotkin. (Franco Vemturi, 1.975;tomo I. pp. 176-177, e tomo II, pp.688-689; Alexander I. Herzem, 1.979; M. Bakunin, Vol.III; pp. 5-40). Sobre o marxismo ortodoxo O marxismo ortodoxo constitui o conjunto de desenvolvimentos sobre opensamento de Marx e Engels, realizados a partir da Segunda Internacional (1889), eencaminhados a gerar uma estratgia terica e metodolgica desde os interesses doproletariado para, ao ser assumidos por este, atingir o socialismo. Foi ento quandoPlejanov, mximo representante do marxismo russo, estabeleceu que o marxismo era umaviso total do mundo e introduziu o termo materialismo dialtico para expressar aestratgia terica e metodolgica do marxismo, o qual era, assim, considerado como umanova cincia que a modo de filosofia natural generalizaria as contribuies das cinciasespeciais, tanto naturais como sociais, construindo teorias gerais da natureza e dasociedade. O trabalho chave do que se supe que se desprende esta concepo cientfica domundo o Anti-During, de Engels. Por conseguinte o conceito de marxismo ortodoxo serefere assimilao por parte do proletariado da crtica economia poltica efetuada pelomaterialismo dialtico para levar a cabo a revoluo socialista. Neste contexto, KarlKautsky --- um dos autores clssicos da sociologia rural, como veremos mas adiante,atribuiu ao trabalho de Marx e Engels o status de uma teoria geral da evoluo que incluatanto a natureza como a sociedade e qual subsaa uma tica naturalista e uma visomaterialista do mundo.Mas Marx rejeitou vrias vezes, durante sua vida, que seu trabalho constitusse umsistema terico do qual desprendesse uma viso do mundo, ainda que sempre aceitou queeste se realizava desde os interesses das classes trabalhadoras. Pelo contrrio, Engels - umavez morto Marx e utilizando os materiais (conhecidos como cadernos ou anotaesetnolgicos) que Marx elaborou durante a ltima dcada de sua vida - pretendeudesenvolver uma teoria geral do processo histrico, que culminasse a obra realizadaconjuntamente por ambos autores, ao escrever A origem da famlia, da propriedadeprivada e do Estado (Engels, 1972a, 1 edit. 1884; 1972b, 1 edit. 1878; Hobsbawm, 1978;pp. 353-374; Bottomore, 1983; e Shanin, 1983). No entanto, deve-se a Engels oconhecimento cabal da obra chave de Marx: O Capital, do qual s o volume I foi publicadoem vida de seu autor (1867), sendo os outros dois volumes editados e publicados porEngels (1885 e 1894) a partir dos manuscritos e notas de Marx.. 18. 18 importante no confundir o marxismo ortodoxo desde uma perspectivaacadmica, tal como vai ser definido mais adiante, com o marxismo Leninismo, que hque diferenciar, a sua vez, da obra de Vladimir Ilich Ulianov Lenine vinculada srealidades sociopolticas da Rssia prerrevolucionria, primeiro e da URSS, depois, deespecial relevncia para a sociologia rural. Assim, o marxismo Leninismo tem de serentendido como o conjunto de desenvolvimentos da obra de Lenin encaminhados a obter aassimilao, por parte do proletariado de uma prtica intelectual e poltica para levar a caboa revoluo em coordemadas de tempo e espao determinadas. Desta forma, as prxisintelectuais e polticas elaboradas na Rssia pr-revolucionria, em Cuba por Fidel Castro eseus guerrilheiros, e na Nicargua pelo Sandinismo respondiam ao social coletivadesenhada pelo marxismo Leninismo para provocar a mudana social revolucionria.Baseia-se esta nos conceitos tericos de vanguarda, conscincia de classe em si e parasi, a importncia da organizao na ao social coletiva e ttica e estratgia nadinmica da mudana planejada, desenhados por Lenin em Que fazer ? (1902); Um passo frente dois passos atrs (1904); Duas tticas da socialdemocracia na revoluodemocrtica (1905); O Estado e a revoluo (1917); A respeito do infantilismo esquerdistae do esprito pequeno burgus (1918) ; e Mais vale pouco e bom (1923) ( Cf. V. I : Lenin,,1961 ; 3 Vol.).Na Rssia, funcionou a estratgia desenhada por Lenin ainda que suas adaptaes acada conjuntura histrica mostraram que seu esquema possua uma ampla flexibilidadeanaltica. Assim, naquele momento histrico, uma elite intelectual transmitiu pequemapopulao j empregada na indstria em grande escala sua prxis poltica de libertao nainfraestrutura organizativa delimitada pela teoria de Lenin do partido poltico, comogerador da ttica e estratgia da ao social coletiva revolucionria. A ideologia --- talcomo mais tarde, durante a poca de Stalin e de forma verdadeiramente pouco crtica,chamou-se a esta doutrina do marxismo enquanto viso do mundo --- tinha por objetoassegurar a disciplina e exclusividade dos quadros do partido e sua indiscutvel orientaode liderana. Desta forma se inverteu a relao entre classe operria e sua conscincia de simesma: em primeiro lugar com a ajuda dos intelectuais que pertenciam ao partido, osquadros do mesmo desenvolviam esta conscincia de classe cujo ncleo estava constitudopela viso marxista do mundo e, consequentemente, tal conscincia era transmitida classeoperria, que depois da revoluo cresceu rapidamente. Enquanto Lenin estava aindadisposto a aceitar revises de sua teoria, sobre a base das circunstncias empricas, comStalin a doutrina da viso do mundo ficou congelada em dogma durante o perodo daconstruo de um socialismo burocrtico de Estado. O marxismo se converteu na doutrinaoficial do Estado e do partido, e era um ponto obrigatrio para todos os cidados soviticos.Foi neste perodo, aproximadamente a partir de finais dos anos vinte, quando a viso domundo se converteu numa camisa de fora que se imps, no somente aos cidados; senotambm cincia e arte (Bottomore, 1984; pp. 496; Shanin, 1988). Foi bem como surgiuo marxismo ortodoxo que passamos a definir, desde uma perspectiva acadmica. Contexto terico do Marxismo ortodoxo O Marxismo ortodoxo, como contexto terico geral, constitui o primeiro enfoqueconstrudo como desenvolvimento do pensamento de Marx e Engels, e pode ser 19. 19caracterizado atravs dos seguintes traos tericos: i) incompreenso do contexto terico deO Capital; ii) interpretao errnea do ltimo Marx por parte de Engels; iii) unilinearidadedo processo histrico; e iv) considerao da agricultura como um ramo da indstria.Vejamos, ainda que de maneira esquemtica, cada um desses traos.i) Incompreenso do O Capital. A incompreenso do enfoque terico que, ostericos ortodoxos do movimento operrio, realizam do O Capital se deve, sobretudo, aonvel de conhecimentos existentes naquela poca sobre a obra de Marx. No obstante,tambm influenciou nele um conjunto de fatores, entre os quais se destaca a peculiar formade escrever de Marx, ao relegar elementos centrais de seu discurso a notas de rodap de pde pgina ou a lugares perifricos de seu mtodo expositivo e, obviamente, odesconhecimento da intencionalidade explcita de Marx em cada um dos seus escritos,conhecidos a partir dos anos sessenta do sculo passado aps uma rigorosa pesquisa de seusmateriais de trabalho (Maurice Godelier, 1970, 1986 e 1987); Eric Hobsbawm, 1964, 1978e 1996; Lawremce Krader, 1988; Teodor Shanin, 1983 e Angel Palerm, 1976b. Talincompreenso radica na generalizao a todo o mundo das apreciaes que Marx haviaobtido atravs de uma evidncia emprica europia, centrada no primeiro pasindustrializado, Inglaterra. Outro erro consiste no desconhecimento da metodologiautilizada por Marx na citada obra, toda a vez que elevam a categoria de lei universal aseqncia de modos de produo (comunal, escravista, feudal e capitalista) utilizados porMarx to somente como modelos ou cortes histricos em seu processo de contrastao nointerior de seu mtodo de regresso histrica, que consideraremos com maior detalheadiante.ii) Esquecimento do ltimo Marx. Sem chegar a aceitar a conhecida diferenciaodo pensamento de Marx em trs etapas: uma hegeliana e idealista da juvemtude; outramadura e materialista de carter cientfico; e uma terceira de aproximao ao campesinato; sim necessrio, como demonstrou Shanin (1983), reconhecer a virada narodnista que seoperou no pensamento de Marx em seus ltimos dez anos, onde comea a analisar o papeldo campesinato no processo histrico e inclusive, na opinio de alguns estudiosos, possvel detectar a aceitao de determinados elementos dos marcos tericosesquematizados na orientao terica do narodnismo como a diversidade de vias para osocialismo e, possivelmente, a existncia de uma via camponesa (Shanin, 1983). E isso,sobretudo, se, como se depreende do Prefcio da Contribuio crtica da economiapoltica, Marx j se havia proposto, com anterioridade, no somente construir uma teoriageral do processo histrico (Marx, 1971: pp, 7-11), seno a possibilidade da existncia emtodas as formas de sociedade de uma determinada produo que indique a todas as outrassua correspondente classe e influncia; ou dito em outras palavras, a possibilidade dearticulao entre vrios modos de produo dentro de uma mesma formaosocioeconmica (Marx, 1971; pp. 615-642 e 1973; pp. 106-107). O fato de que estesmanuscritos foram publicados em 1939-41, quer dizer, quase um sculo depois, apesarde que Marx os realizara no para serem publicados seno para esclarecimento de suasprprias idias; foram escritos no final dos anos cinquenta quando preparava a revisopublicada um ano depois de O Capital; e que a excelente sntese que escreveu a partir delescomo prefcio sua Contribuio foi por ele suprimida ao publica-la; j que adiantaresultado, ainda por demonstrar; tem muito a ver com a prxis poltica do Marxismo 20. 20ortodoxo, que estamos caracterizando em sua dimenso acadmica (Marx, 1973; pp 9-66 e106-1079; Palerm, 1976,b).Por outro lado, como veremos mais adiante, aps a morte de Marx, seu amigo ecompanheiro de trabalho Engels empreende a tarefa de reconstruir seu pensamento nesseperodo. Engels tenta elaborar uma teoria geral da evoluo das sociedades, seguindo anecessidade histrica marcada pelos clssicos do pensamento social da poca, e cai noscitados erros com respeito existncia de uma seqncia nica, inexorvel,compartimentada de modos de produo, dando a falsa evidncia de que Marx haviaalcanado tal propsito em sua obra, quando, pelo contrrio, como vimos anteriormente, eleconsiderava que ainda no havia alcanado a maturidade de pensamento nem a evidnciaemprica suficiemtes para formula-la, como se depreende dos Grundisse e do Prefcio Contribuio. Isso s se pode compreender sob o prisma da incompreenso de Engels aoler os Apontamentos Etnolgicos de Marx (Lawremce Krader, 1988). Tal erro sups umalegitimao da interpretao dos marxistas ortodoxos, obviando os citados achados de seucompanheiro.iii) Processo histrico unilinear. Os tericos do Marxismo ortodoxo consideram queMarx subscrevia uma teoria geral dos modos de produo e formaes socioeconmicasaplicvel universalmente a todas as sociedades histricas. Assim, um modo de produo uma espcie de estrutura que articula formas de produzir com maneiras de pensar a atuar,surgidas delas de certa maneira. A dinmica de mudana das sociedades implica o trnsitode uns modos de produo a outros mediante determinadas leis do movimento econmicodas sociedades. O primeiro modo de produo conhecido o comunismo primitivo, noqual a caa e a coleta constituam a base material do sustento da sociedade. Deste modo deproduo se passa ao modo de produo escravista, onde a apropriao do trabalho alheioimplica inclusive o domnio sobre as vidas e fazemdas de pessoas submetidas a tal forma dedominao. O Modo de Produo feudal se caracteriza pela vinculao pessoal docampesinato usufruturio da terra com o senhor que possui o domnio eminemte sobre ela.E finalmente aparece o modo de produo capitalista, em que a explorao do trabalho seproduz atravs dos mecanismos do mercado e na base do surgimento da propriedadeprivada dos meios de produo. A passagem de um modo de produo a outro se realizasegundo perodos de transio, nos quais se produz um desajuste entre as formas deproduzir e a maneiras de pensar e atuar. Aparece assim novas lgicas sociais quetransformam as relaes entre os homems e a maneira de atuar sobre a natureza para extrairdela as condies materiais da vida social.Para os marxistas ortodoxos esta periodizao, que corresponde em linhas gerais realizada por Engels na A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado (1972a), se aplica a qualquer sociedade histrica para conhecer seu estado de evoluo para oprogresso: a sociedade sem classes, quer dizer, o socialismo, modo de produo posteriorao capitalismo, no qual se superam as contradies deste Assim, pois, uma determinadaestrutura socioeconmica se construir sobre as bases das antigas formas de produzir,pensar e atuar do modo de produo anterior, numa seqncia taxonmica nica atravs deperodos de transio at alcanar uma coerncia entre a base material e a superestruturapoltica, ideolgica e cultural, consolidando-se assim um novo modo de produo. A 21. 21mudana social na histria se produz atravs de leis de transformao dos modos deproduo irreconciliveis entre si numa seqncia compartimentada de fases histricas,quer dizer, atravs de um processo unilinear (Godelier, 1987; Shanin, 1983).iv) Considerao da agricultura como um ramo da indstria. Para analisar oselementos bsicos da agricultura Marx, no O Capital, estabeleceu a hiptese de que aagricultura europia j era um ramo da indstria. Por isso no fez uma anlise especficapara ela seno em formaes sociais prcapitalistas. O marxismo ortodoxo considera que,de fato, a agricultura no modo de produo capitalista tem que atuar como um ramo daindstria j que o desenvolvimento das foras produtivas havia permitido ao homemdominar a natureza para extrair dela o acesso aos meios de vida. Ignora, portanto, que nomtodo regressivo atravs do qual Marx perscruta a realidade, a agriculturaindustrializada uma ferramenta heurstica para desvelar os mecanismos de evoluo domanejo dos recursos naturais at a agricultura industrializada. Presumia, pois, que OCapital possua um vazio terico que havia de preencher. Trabalho esse que atribuam aLnin, de um lado, e Kautsky, de outro, os quais em 1899, em seus respectivos trabalhos, ODesenvolvimento da Agricultura na Rssia e A Questo Agrria, analisaram a passagem daagricultura feudal para a capitalista, tomando como base emprica a Rssia e Alemanha,respectivamente (Godelier et. Al. 1986; Shanin, 1983 e 1985-87; Palerm, 1976 b). Semdvida, como acabamos de ver os planos de Marx eram muito distintos ao considerar queseu trabalho ainda no estava maduro para a letra impressa, quando a morte o surpreendeu,em plena anlise do campesinato (cf. Lawremce, 1972: pp. 1-70).Os marcos tericos surgidos do debate sobre a questo agrria: do marxismo clssico heterodoxo a um narodnismo marxiano?A questo agrria constitui o debate intelectual e poltico estabelecido na Rssia dooitocentos com relao ao papel da forma de manejo dos recursos naturais no processohistrico, quer dizer, a natureza da agricultura e, portanto, da evoluo do campesinato.Deste debate surgem vrias correntes tericas que vamos aqui considerar: i) o Contextoterico do O Capital; ii) o narodnismo marxiano (ainda que este, de natureza marxiana,tenha sido descoberto nos anos sessenta do sculo passado (Sc. XX); iii) o marxismoclssico heterodoxo; iv) o marxismo ortodoxo agrrio.i) O contexto terico do O Capital. Marx, em sua obra chave, O Capital (1867-1869) perscrutou os mecanismos atravs dos quais funcionava e se desenvolvia ocapitalismo. Seu tratamento da agricultura se encontrava, todavia, limitado pela estratgiametodolgica dotada em tal obra, que se conhece com o nome de estratgia da marchapara trs ou mtodo regressivo. Consistia este em estabelecer desde o presentediferentes hipteses sobre o futuro da agricultura. A partir do modelo hipottico assimconstrudo, toma aqueles elementos que se postulam como essenciais para perceber assimsua evoluo. Esta se obtm ao ser confrontado cada elemento com seus homlogos tal ecomo aparecem no modelo de cada modo de produo correspondente aos perodoshistricos anteriores. 22. 22Para analisar os elementos bsicos da agricultura, Marx, no O Capital, estabeleceu ahiptese de que a agricultura europia seria no futuro um ramo da indstria. Por isso, nofez uma anlise especfica para ela no presente histrico, seno que o fez para os elementostericos chaves da agricultura em cada uma das formaes sociais precapitalistas, e noperodo em transio do feudalismo ao capitalismo, que considerou que englobava desde oltimo tero do sculo XV at o momento em que escreve, e que denominou forma deproduo mercantil simples na agricultura, qual alguns qualificam como modo deproduo campons, ainda que este no possa, rigorosamente, denominar-se como tal, jque nesse perodo as formas de organizao social e de pensamento vinculadas agricultura se correspondem, numa boa parte, ao modo de produo capitalista, enquantoque as formas materiais de manejo dos recursos naturais possuem entretanto mltiploselementos do modo de produo feudal. Por isso, a produo mercantil simples naagricultura como forma de produo s desempenha um papel subordinado nareproduo da sociedade (Godelier, 1987; pp 7 e 1986; E. Prez Tourio, 1983; Shanin,1983 e 1985-87; Palerm, 1976b).Serve-nos como exemplo da aplicao do mtodo regressiva agricultura aconsiderao do funcionamento da renda da terra como mais-valia. Marx pensa que quandoo sistema capitalista est plenamente consolidado j ter deixado de existir a agriculturaparcelaria ou camponesa na sua modalidade de produo simples de mercadorias agrriase j se ter imposto a industrial. A projeo desta ao passado o leva a demonstrar que naagricultura comunal no existe mais-valia agrria. No escravismo, a mais-valia fica empoder do proprietrio individual a quem pertence o escravo, quando campons, com ousem terra. No feudalismo, a renda como uma remanescente sobre o lucro mdio apropriada pelo senhor feudal na forma de trabalho, para depois adquirir a dimenso darenda no sentido moderno da palavra; quer dizer, como uma remanescente sobre a parteproporcional que corresponde a cada capital concreto na mais-valia produzida pelo capitalglobal da sociedade, o que se alcanou mediante um trnsito da renda em trabalho a estaem produtos e em dinheiro (Marx, 1966; pp. 766).ii) O narodnismo marxiano. Como assinalamos anteriormente, nos ltimos dez anosda sua vida, e motivado pela riqueza que adquire na Rssia os debates populistas em tornodo primeiro tomo do O Capital, Marx aprende russo e, sob a influncia desses debates, seintroduz na anlise do campesinato no processo histrico. E, ao faze-lo, retoma osproblemas colocados em seus esquemas aclaratrios sobre a evoluo das sociedades comocrtica economia poltica. Segundo mostra Shanin e seus colaboradores na sua anlise doltimo Marx, este parece chegar a aceitar um evolucionismo multilinear do processohistrico, assim como a coexistncia de distintas formas de explorao na estruturasocioeconmica de uma determinada sociedade, abrindo com isso imemsas possibilidadespara o estudo dos processos que tm lugar na agricultura. De fato, se introduzirmos aproblemtica populista com relao valorao do conhecimento local e em parte deste nomanejo dos recursos naturais, aparece como conseqncia lgica o possvel desenho demltiplas vias para obter o progresso. iii) O marxismo clssico heterodoxo. Em estreita relao com estas ltimascolocaes se situa uma srie de autores que mostram claras discrepncias com a corrente 23. 23terica do marxismo ortodoxo antes considerada. Entre eles nos interessa considerar aindaque em forma esquemtica a Rosa Luxemburgo, Nikholai V. Bujarin e E. Preobrazhemsky,j que suas contribuies permitem delimitar os contornos de uma corrente terica distantedas rigidezes da doutrina oficial. possvel atribuir Rosa Luxemburgo o estabelecimento de um marco tericosobre os espaos vazios do capitalismo, segundo o qual em toda sociedade se produz acoexistncia de regimes de produo diferentes assim como um forte intercmbio entreeles. Neste sentido, o campesinato como estrutura social no capitalista possui mecanismosde funcionamento que marcaram fortes peculiaridades em seu intercmbio com a forma deexplorao dominante nessa determinada sociedade. Em forma anloga, Preobrazhemskyao analisar a transio ao socialismo elabora uma teoria da acumulao primitivasocialista, de forma tal que assinala a necessidade de um perodo de pequema produopara a consecuo de um modo de produo socialista atravs de uma acumulaoprimitiva especfica. Nesta linha, Bujarin desenvolve uma estratgia para o campesinatosegundo a qual junto explorao parcelaria no nvel da produo apareceriam formas deintegrao vertical no processo de circulao, gerando assim infraestruturas de cartercomunitrio ou, em suas prprias palavras, uma socializao da circulao (Luxemburgo,1985; pp. 140-41. Preobrazhemsky, 1965; Bujarin, 1972; Palerm, 1976 b; Shanin, 1971).iv) O marxismo ortodoxo agrrio. Uma vez clarificado o conceito marxismoortodoxo e as correntes tericas que se afastam de tal codificao do pensamentorevolucionrio possvel a ns considerar a interpretao que este faz da questo agrria.Assim, num esforo de sntese o Marxismo Ortodoxo Agrrio poderia definir-se como oesquema terico que interpreta a evoluo da estrutura agrria no processo histrico atravsdas seguintes caractersticas: 1) Evoluo unilinear: As transformaes que se operam naagricultura respondem s mudanas que se produzem na sociedade global. Estas mudanasesto determinadas pelo crescimento das foras produtivas e a configurao do progressocomo resultado, gerando formas de polarizao social nas quais se produz um processoacumulativo de formas de explorao social. Assim, a escravido a primeira forma deexplorao, a forma prpria do mundo antigo; a sucede a servido, na Idade Mdia, e otrabalho assalariado nos tempos modernos; 2) Sequncia histrica: Tais formas deexplorao se inserem em fases histricas de evoluo das sociedades em que a reproduodas relaes econmicas e sociais responde lgica de funcionamento do desenvolvimentodas foras produtivas. Portanto, as transformaes que tm lugar no campo se produzemseguindo uma seqncia histrica de modos de produo inconciliveis entre si; 3)Dissoluo do campesinato: A apario do capitalismo, como modo de produo prvioao socialista, determina a dissoluo do campesinato como organizao socioeconmicacaracterstica dos modos de produo prvios a ele. A centralizao e concentrao comoprocessos necessrios ao capitalismo industrial eliminam o campesinato da agricultura porser ele incapaz de incorporar-se ao progresso tcnico; 4) Superioridade da grandeempresa agrcola: as grandes possibilidades de adaptao da grande explorao aofuncionamento da agricultura capitalista, como um ramo a mais da indstria, dotam olatifndio de uma potencial superioridade tcnica que, atravs das vantagens daseconomias de escala, permitiriam o crescimento de sua composio orgnica do capital,avanando assim para a socializao da produo agrria. 5) Contraposio entre a 24. 24grande e a pequema explorao: Como resultado do anterior, a dinmica do capitalismogera uma confrontao entre o campesinato e o latifundismo que tem como desenlace aproletarizao do campesinato e a polarizao social no campo.Os marcos tericos do marxismo ortodoxo: da funo histricaprogressista do capitalismo agonia do campesinato Como acabamos de ver, o marxismo ortodoxo atribui Kautsky e Lenin aformulao do contexto terico das transformaes que se produzem na agricultura duranteo desenvolvimento do capitalismo. Tais caractersticas apontadas esquecem que a riquezada anlise realizada por ambos, ao tentarem explicar a evoluo do campesinato naagricultura, permite encontrar em seus trabalhos inmeros elementos tericos plenos defertilidade analtica claramente contraditria com tal formulao. Assim, as matizaes deKautsky em relao tendncia geral do capitalismo em dissolver e eliminar o campesinatoo levam a explicar os mecanismos da maior lentido dos processos de centralizao econcentrao na agricultura. E ao faze-lo, formula propostas tericas com respeito spresses polticas dos grandes proprietrios de terras e o papel do Estado, por um lado, e asformas de resistncia do campesinato, por outro.Chega assim a definir --- contraditoriamente tese central de seu trabalho --- osetor campons da economia poltica capitalista como uma fonte de acumulaoprimitiva contnua. De forma anloga, a caracterizao que faz Lnin dos mecanismos deproletarizao do campesinato interpretada em um contexto terico geral e no somenteaplicada Rssia. Nessa caracterizao aparecem mltiplas contradies com relao forma de explorao camponesa e o latifundismo, o qual atuaria como uma forma deexplorao grmem de uma tendncia para a socializao da produo. De fato em seuDesenvolvimento do Capitalismo na Agricultura chega a demonstrar a polarizao socialda agricultura e a conseqemte proletarizao social do campesinato na Rssia dooitocentos. So estes os marcos tericos centrais do marxismo ortodoxo com relao questo agrria.Deve-se Plejanov e outros intelectuais revolucionrios que se afastaram donarodnismo a elaborao do esquema terico central desta corrente terica, ao atribuir aocapitalismo um trabalho histrico progressista. Aparece assim um novo marco tericosegundo o qual para alcanar o cu do socialismo torna-se inelutvel descer ao inferno docapitalismo. Apresenta-se esta como uma lei objetiva constatvel mediante umacontrastao com o processo histrico. Tal proposio aparecia subjacemte, para estesautores, investigao realizada por Marx no primeiro tomo do O Capital. esta umainterpretao que, ao contrrio da intencionalidade do prprio Marx ao escrever ditotrabalho, eleva a teoria geral o processo histrico europeu. No seria, portanto, o apoiomtuo, como defendiam os anarquistas, o elemento chave na evoluo do processohistrico, seno os avanos tecnolgicos materiais, o desenvolvimento das forasprodutivas, e o enfrentamento social que este provocaria; quer dizer, a luta de classes. O 25. 25proletariado seria o agente propulsor da mudana ao reagir de forma revolucionria contra aexplorao a que se encontrava submetido pela burguesia.Concretamente, a questo agrria no marxismo ortodoxo atribui um sentidohistrico e alguns condicionamentos estruturais ao desenvolvimento do capitalismo deforma tal que o campesinato se converte em resduo anacrnico condenado inelutavelmentea desaparecer ante o inexorvel desenvolvimento das foras produtivas. No poderia ser deoutra maneira na medida em que o capitalismo fosse considerado um estdio superior daracionalidade possvel e, ainda desejvel, no avano irrefrevel das foras produtivas eestas seguem consideradas como o demiurgo que finalmente conduziria os povos a graussuperiores de bem estar, dado seu carter socializador imanente. Somente a crise ecolgicae o questionamento subseqemte tanto do impacto do desenvolvimento tecnolgico comodo conceito mesmo de progresso poderia --- como veremos --- colocar em questo taisaxiomas.Resumindo, no decorrer do sculo XIX, se configuram duas categorias intelectuaisnas quais se articulam duas prxis sociopolticas claramente definidas. Por um lado onarodnismo, como defensor da vigncia do campesinato, com um potencial de adaptaohistrica; e, por outro, o marxismo ortodoxo, para quem o campesinato no seria mais doque um resduo anacrnico que haveria de ser sacrificado nos altares do progresso. Otriunfo do marxismo ortodoxo (baseado na interpretao dogmtica dos trabalhos deLnin e Kautsky, e na represso da burocracia estalinista para impor uma realidadeformalmente distinta, mas, em sua raiz ltima, coativamente uniformizadora) supunha,paradoxalmente, uma convergncia com o pensamento liberal agrrio: a agricultura haveriade transformar-se num ramo da indstria. Isso unido hegemonia poltica e intelectual dosEEUU, e sua crema cega na judiciosa mo invisvel do mercado, (que premiaria oshonrados negociantes e castigaria os que vagabundeavam), mutilaria no fundo qualquertentativa de reflexo terica sobre a dimenso histrica das estruturas agrrias. Pelocontrrio, a Mass Society, por um lado, e a classe operria industrial, por outro, seconstituiriam no foco de atemo de suas reflexes, as quais se veriam sempre tomadaspela viso marxista da agonia do campesinato (anteriormente considerada). Assim, opensamento cientfico convencional, da mesma forma que o marxismo oficial aceitaramque os processos evolutivos agrrios teriam de seguir inelutavelmente distintas etapas deum processo que se assume seqemcial e taxonomicamente nico (Howard Newby e E.Sevilla Guzmn, 1983: 137-165 y 145).3. DA NOVA TRADIO DOS ESTUDOS CAMPONESES AGROECOLOGIAExiste uma aceitao geral, dentro da literatura sobre o campesinato, em situar 1948como o ponto de partida da nova tradio de estudos camponeses. Foi ento quandoKroeber caracterizou a sociedade camponesa como uma forma de organizao social comestruturas rurais apesar de viver em relao com os mercados das cidades; formando umsegmento de classe de uma populao maior que engloba geralmente centros urbanos e, svezes, at capitais metropolitanas. Constituem sociedades parciais com culturas parciais.Carecem de isolamento, a autonomia poltica e a autarquia dos grupos tribais; mas suasunidades locais conservam sua velha identidade, integrao e apego terra e aos cultivos 26. 26(5). Ainda quando nesta definio se emcontrem j os elementos chaves que seroposteriormente utilizados para definir o campesinato, de fato foi Robert Redfield queminicia realmente este novo processo de acumulao terica. Assim, Redfield leva a cabo umestudo de vrias comunidades camponesas mexicanas centrando sua anlise nas mudanasque nelas tm lugar como conseqncia das inter-relaes existentes entre elas e asociedade urbanoindustrial (6).Desde um ponto de vista terico, Redfield dedicou seus esforos para a formulaode um tipo ideal de sociedade camponesa que passou ao pensamento social como a Folk-Society(7). Para Redfield os camponeses so um segmento de classe de uma sociedademaior (Part-society com Part-culture) vinculados ao mercado ainda quando o grosso de suaproduo vai para o autoconsumo da unidade familiar. Seu trao central, sem dvida, constitudo pela forma de dependncia que possui com a sociedade maior em termos deexplorao(8). Sem dvida, o conjunto de estudos mais relevantes sobre o campesinato,dentro desta tradio terica, surge do grupo vinculado a Julin H. Steward, que se inscreveteoricamente como o evolucionismo multilinear ou a ecologia cultural. Junto a Steward,cabe destacar como figuras mais relevantes a Sidney Mintz, Eric Wolf, Karl A. Wittfogel,Robert Adams e Angel Palerm, entre muitos outros(9). Recuperando a antiga tradioProvavelmente a caracterizao mais completa do campesinato desta tradioterica se deve a Eric Wolf. Este no s recolhe os elementos mais interessantes dacontribuio de seus companheiros, seno que ademais incorpora sua anlise relevantesaspectos da antiga tradio dos estudos camponeses e em especial os trabalhos deChayanov. Aparece assim, o marco terico dos Ecotipos Camponeses que anos maistardem se completaria com o enfoque conflitivista do processo de expanso europia para aLatinoamrica em sua excelente anlise sobre os povos sem histria (10). Tem grandeinteresse a caracterizao que faz Sidney Mintz dos operrios agrcolas como parte docampesinato. E, sobretudo, suas ltimas anlises sobre o campesinato caribemho das quaissurge o marco terico que temos denominado de Campesinato com encaixe histrico (11).Sem dvida este trabalho um dos primeiros estudos onde o conhecimento do campesinato5A.L.Kroeber, (1948: 284).6Redfield estuda, primeiro, em companhia de sua esposa e filhos, uma populao azteca prxima cidade doMxico (Teopozland, a Mexican Village: a Study of Folk Life) (1930) e, depois (ajudado por quem maistarde seria seu discpulo e colega, Alfonso Villas Rojas, ento, professor rural), quatro comunidadesyucatecas (Chan Kom: A Maya Village) (1934), y ,The Folk Culture of Yucatn (1941). Publicados todoseles em The University of Chicago Press).7R. Redfield, (1947: 293-308). Sobre seu carter de modelo terico, cf. "The Natural history of the FolkSociety", (1953: 224-228).8R. Redfield, (1956: 29-30 y 64-68).9A configurao deste grupo surge do trbalo interdisciplinar que Steward dirigiu em Porto Rico ao final dosanos quaremta Cf. The People of Puerto Rico (Urbana Ill.: University of Illinois Press, 1956. Daqui surgemas teses doutorais de Sidney Mintz e Eric Wolf gerando uma acumulao torica que incorporava o legadoterico de Childe y White.10 Erick R. Wolf, (1982).11 Sidney Mintz, (1960). H edio em espanhol de 1988 (Rio Piedras: Edies Huracn). Para o marco tericodo campesinato como encaixe histrico Cf. Caribbean Contours (1985). 27. 27sobre o manejo dos recursos naturais tomado como uma das variveis definidoras domesmo aproximando-se da posio da Agroecologia, emergente naqueles anos.Outro autor de grande relevncia, dentro desta tradio terica Boguslaw Galeski,quem recolhemdo o legado de V.I. Lnin, reelabora o conceito de estrutura socialaplicando-o anlise do campesinato. Aparece, assim, o que pode definir-se como o marcoterico da estrutura social rural(12). Mas sem dvida o grande impulsionador dos novosestilos camponeses Teodor Shanin que em seus trabalhos sobre Chayanov, Lnin eKautsky rompe com a perspectiva unilinear do marxismo ortodoxo agrrio(13) e gera, o quetemos aqui denominado, o marco terico do Narodnismo Marxiano, recuperando assim, ovalioso legado de sua multilinearidade para o desenvolvimento dos paises perifricos (14).Tem um grande interesse sua recopilao de trabalhos publicada como DefiningPeasants(15). Junto com Teodor Shanin e Hamza Alavi (articuladores dos estudoscamponeses com a Sociologia do Subdesenvolvimento), provavelmente a figura inovadoradesta tradio intelectual Joan Martinez Alier(16), quem introduz uma dimensoagroecolgica na sua anlise dos movimentos sociais nos paises perifricos construindoassim o marco terico da A ecologia dos pobres (17). A eles obrigado acrescentar aoncleo de trabalhos mais impactantes nas transformaes da sociologia rural europia paraum enfoque mais interdisciplinrio, descolando assim definitivamente da sociologia da vidarural; so estes os estudos sobre desenvolvimento rural vinculados a Norman Long que,desde uma perspectiva neomarxista e utilizando materiais recolhidos sobre sia, frica eLatinoamrica, exploram os problemas das sociedades rurais do Terceiro Mundo. Seutrabalho chave constitudo pela anlise que, sobre as teorias da modernizao e osmarcos da dependncia, o levam a formular propostas de desenhos de mtodos dedesenvolvimento rural. Primeiro desde a Inglaterra(18) e depois desde a Universidade deWagemingem (19), elabora uma estratgia metodolgica para encarar o problema doemcontro entre diferentes identidades para a construo de processos de desenvolvimentolocal. Constitui assim uma interessante equipe que se integraria uma das que sero maisrelevantes figuras do panorama atual do pensamento social agrrio Jan Douwe van derPloeg, que consideraremos mais adiante.Outra figura destacada da sociologia rural inglesa, que incidir nesta orientaoterica Michael Redclift, quem, apesar de certas incurses nos estudos de comunidade naInglaterra e Espanha, se dedicar anlise do Terceiro Mundo, centrando-se nos estudossobre A Reforma Agrria no Equador(20) e Mxico, onde analisa o fenmeno do populismo12Boguslaw Galeski, (1972: 100-133).13 Teodor Shanin, em A.V. Chayanov, (1986). H traduo em espaol em Agricultura y Sociedad, n48; ycon Hamza Alavi, em Karl Kautsky, (1988), tambm h verso castelhana em Agricultura y Sociedad.14 Teodor Shanin (1983).15 London: Basil Blackwell, 1990.16 Landlabourers and Landowners in Southern Spain (London: Allem and Unwin, 1971), assim como seustrabalhos sobre Cuba, Per e outros pases latinoamericanos. Haciemdas, Plantations and Collective Farms(London: Frank Cass, 1977).17 Cf. Ecological Economics (Oxford: Basil Blackwell, 1987). E sobretudo seu De la economa ecolgica alecologismo popular (Barcelona: Icaria, 1992).18 Cf. An Introduction to the Sociology of Rural Developmemt (London: Tavistock, 1977).19 Norman Long (1989 y 1992).20 Michael R. Redclift, (1978). 28. 28agrrio como via camponesa de transio para formas de organizao poltica maisigualitrias(21). Sem dvida, a contribuio fundamental de Robert Redclift ao pensamentosocial agrrio tem lugar no processo de confluncia desta orientao terica com asociologia do subdesenvolvimento que acabamos de ver; seu livro com David Goodman,From Peasant to Proletarian constitui a mais lcida anlise dos marcos tericos dosubdesenvolvimento(22). obrigatrio considerar aqui a Hamza Alavi e Teodor Shanin(23)como iniciadores deste processo de confluncia. No obstante, dentro da sociologia daagricultura que veremos depois, onde Michael Redclift destacar como principal introdutordo enfoque (meio) ambientalista na sociologia rural das sociedades avanadas (24).O que denominamos em outro lugar como marco terico do Ecodesenvolvimentopoderia, pela relevncia que d ao conhecimento do campesinato, situar-se dentro dosestudos camponeses; sem dvida, o enfoque utilizado pelo seu principal elaborador, IgnacySachs(25), o separa sensivelmente desta orientao terica. O conceito deecodesenvolvimento(26) constitui uma tentativa de introduzir o manejo ecolgico dosrecursos naturais no desenho de esquemas de transformao das sociedades rurais(27),mesmo quando a cooptao desta categoria analtica por parte dos organismosinternacionais o tenha constitudo uma forma de desenvolvimento convencional. Um deseus mais relevantes discpulos, Enrique Leff, ao caracterizar o processo histrico em suasinteraes com a poltica agrria e rural desenhada pelos organismosinternacionais, situaecodesenvolvimento no seguinte contexto: As estratgias do ecodesenvolvimento tem sidodesarticuladas do marco geral das lutas sociais pela apropriao dos recursos, isso fez doecodesenvolvimento, apesar de promover a autonomia cultural e a gesto tecnolgica dascomunidades, aparea como uma resposta do capital crise ecolgica (de recursos, deemergticos, de alimentos) do momento atual, mais que como uma prxis de transformaoprodutiva e de mudana social para assentar as bases de um desenvolvimento eqitativo esustentvel. Esta avaliao se desprende do sentido explcito das propostas do discursoecodesenvolvimentista no marco poltico internacional em que se insere. Mais tarde, ospropsitos de ecodesenvolvimento foram definidos como a valorizao (mise em valeur)dos recursos especficos de cada ecoregio(28). Mas, esta valorizao dos recursos implica aapropriao capitalista da natureza, sua introduo no processo produtivo de mais-valia esua circulao como mercadorias no mercado(29). A contribuio de Enrique Left aosEstudos Camponeses no perodo de sua virada ecolgica na segunda metade dos anosoitenta, radica em sua busca de uma racionalidade ecolgica nos processos de21 Michael Redclift, (1980: 492-502). Cf., tambm, seu trabalho "Production Programs for Small Farmers:Plan Puebla as Myth and Reality" em (1983:.551-570).22 (Oxford: Basil Blackwell, 1981).23 Cf. Sociology of "Developing Societies" (London: MacMillan Press, 1982).24 Michael Redclift, (1987) e seu estudo com David Goodman (1991).25 Ibid, p. 135.26Naciones Unidas, El desarrollo y el medio ambiemte. Founex, Suiza 4-12 junho 19 8 7 XXX?, pp. 1, 2, 30 y 40 citado no trabalho de Leff na nota de rodap adiante.27 Sachs, (1.981: 20-22). Uma anlise do Ecodesenvolvimento no contexto de outras posies ambientalistaseuropias podem ser apreciadas em Michael Redclift, (1.984). Existe uma verso castelhana no FCE to maltraducida que praticamente inteligvel.28 Naciones Unidas, El desarrollo y el medio ambiemte. Founex, Suiza 4-12 junho 19 8 7 XXX?, pp. 1, 2, 30y 40 citado no trabalho de Leff da nota de rodap seguinte.29 Enrique Leff, (1994: 320-321). 29. 29transformao levados a cabo atravs do movimento ambiental e sua introduo naperspectiva ecolgica do marxismo(30); com ele colabora na construo da orientaoterica da Agroecologia, que consideraremos mais tarde. Da Sociologa da Agricultura Existe uma ampla literatura sobre a removao terica que experimemta asociologia rural na dcada dos oitenta do sculo passado conhecida como Sociologia daAgricultura (Buttle, 1979, 2001; fonte, 1988; Butlle et al., 1990; Sevilla Guzmn, 1995;Fridland, et. Al. 1991). At meados dos novemta, o ncleo central destas contribuiessurgia em torno do problema do desenvolvimento do capitalismo na agricultura.Esquematizando um rico e complexo debate, o dilema ltimo radicava em se a agriculturafamiliar estava condenada a desaparecer ante uma mercantilizao incontida ou se pelocontrrio possua mecanismos de resistncia para manter sua natureza socioeconmica.Friederick H. Buttel, em seu ltimo e documentado trabalho (2001: 18 e 19), demominaesta polmica como o debate sobre a Questo Agrria (desconhecemdo o anteriormentecaracterizado) e qualifica como correntes do Marxismo Chayanoviano a ltima postura; ecomo Economia e Sociologia Poltica Leniniana primeira31.30 Enrique Leff, (1986). A edio de 1994 supe uma reavaliao substantiva deste trabalho introduzindo contribuies de grande valor.31Cf. A expresso economia poltica Leniniana no seno uma variante atual do Marxismo ortodoxo, desenvolvida por Alain de Janvry (1981 e Deere and De Janvry, 1979). Pelo contrrio a expresso marxismo chayanoviano que procede de Lehman (1986: 601-607), tem sido amplamente aceita pela comunidade cientfica da sociologia da agricultura norteamericana conforme os citados trabalhos de Butell, Friedland, Mara Fonte e a valiosa tentativa de Margaret Fitz Simmos para integrar esta