marx engels campesinato

30
Estudos de Sociologia. Rev, do Progr. de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, v. 16, n. I, p. 179- 208 A VISÃO ESCATOLÓGICA DE MARX E ENGELS SOBRE O CAMPESINATO E A VIDA LOCAL RURAL) Cristiano Wellington Nobcrto Ramalho Raimundo Nonato Pereira Moreira Resumo Este texto discute as questões que justificam para Marx e Engels as fragilidades sociais e econôrnicas do campesinato e da vida local rural diante do mundo moderno, bem como a permanência dessas idéias em gerações posteriores de estudiosos marxianos. Palavras-chave Sociologia rural. Vida local. Marxismo. Campesinato. THE ESCHATOLOGICAL VISION OF MARX ENGELS ON THE PEASENTRY AND LOCAL RURAL LlFE Abstract This article díscusses the reasons whichjustify the socioeconomic fragilíties faced by the peasants and the rurallocallife in modemity according to Marx and Engels as well as the permanence of these ideas for the subsequent generations of Marxist thinkers. Keywords Rural sociology. Locallife. Marxism. Peasantry. 1 Introdução o objetivo deste texto é discutir a permanência de um discurso fatalista sobre o modo de vida camponês e rural em relação ao avanço do I Este artigo é fruto das ricas discussões possibilitadas pelo Prof. Dr. Fernando Antonio Lourenço (UNICAMP), através da disciplina A questão agrária nas ciências sociais ministrada por ele no segundo semestre de 2003 no Doutorado em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) . 179

Upload: fromgaliza

Post on 16-Dec-2015

238 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Marx e Engels sobre o campesinato

TRANSCRIPT

  • Estudos de Sociologia. Rev, do Progr. de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE, v. 16, n. I, p. 179- 208

    A VISO ESCATOLGICA DE MARX E ENGELSSOBRE O CAMPESINATO E A VIDA LOCAL RURAL)

    Cristiano Wellington Nobcrto RamalhoRaimundo Nonato Pereira Moreira

    ResumoEste texto discute as questes que justificam para Marx e Engels asfragilidades sociais e econrnicas do campesinato e da vida local rural diantedo mundo moderno, bem como a permanncia dessas idias em geraesposteriores de estudiosos marxianos.

    Palavras-chaveSociologia rural. Vida local. Marxismo. Campesinato.

    THE ESCHATOLOGICAL VISION OF MARX A~D ENGELS ONTHE PEASENTRY AND LOCAL RURAL LlFE

    AbstractThis article dscusses the reasons whichjustify the socioeconomic fragiltiesfaced by the peasants and the rurallocallife in modemity according to Marxand Engels as well as the permanence of these ideas for the subsequentgenerations of Marxist thinkers.

    KeywordsRural sociology. Locallife. Marxism. Peasantry.

    1 Introduo

    o objetivo deste texto discutir a permanncia de um discursofatalista sobre o modo de vida campons e rural em relao ao avano do

    I Este artigo fruto das ricas discusses possibilitadas pelo Prof. Dr. Fernando AntonioLoureno (UNICAMP), atravs da disciplina A questo agrria nas cincias sociaisministrada por ele no segundo semestre de 2003 no Doutorado em Cincias Sociais doInstituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas(UNICAMP).

    179

  • Cristiano Wellngton Noberto Ramalho, Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    capitalismo, bem como a incapacidade que ambos teriam para se opor aocapital. Esses argumentos, presentes em obras de Marx e Engels, vo seperpetuar, guardadas algumas singularidades, no debate de outros valiosospensadores da tradio marxiana.

    Portanto, cabe lembrar que a questo concernente aliana polticaentre o operariado e o campesinato e como ela deveria ser construda no sero ponto central do texto, embora seja mencionada em alguns momentos".

    2 Marxismo, campesinato e o dilema da vida local rural

    As grandes rebelies da Idade Mdia partiram todas docampo. mas foram totalmente malsucedidas devido disperso e conseqente rudeza dos camponeses.

    Karl Marx & Friedrich Engels, A ideologia alem

    Por mais militantes que sejam os camponeses, o ciclo desua labuta os acorrenta a seu destino,

    Eric Hobsbawm, Os camponeses e a poltica

    Em livro escrito em 1873 e lanado no ano seguinte, O Noventa eTrs (Quatrevingt-treizei, o escritor francs Victor Hugo narra a resistnciados camponeses de Vendia, na Bretanha, Revoluo Francesa e,consequentemente, implantao da repblica no pas. A trama e a saga doscamponeses vendeianos, que lutavam contra os adeptos da revoluo burguesae tinham como aliados os monarquistas e as florestas da Bretanha, revelam aoposio entre mundos distintos, entre passado e presente, e o antagonismoentre localismo e o iderio contido num projeto de nao. No so poucos osmomentos em que tal dilema se apresenta no corpo do livro: e, logo no inciode O Noventa e Trs, h um interessante dilogo entre o sargento do batalhoparisiense, que se desloca com seus soldados at a Bretanha para enfrentaros revoltosos, e uma mulher camponesa local perdida, com seus trs filhosem uma floresta, cuja situao desnuda a oposio entre modos de ser, ver eestar no mundo. o prprio Hugo (s.d, p. 13) quem escreve:

    2 Mesmo no abordando o tema aqui, um texto valioso que merece ser lido acerca da questoda permanncia do campesinato no interior do capitalismo : WANDERLEY, Maria deNazareth Baudel. 1985. O campons: 11m trabalhador para o capital. ln: Cadernos deDifuso de Tecnolgica - EMBRAPA . v. 2. n. I. Braslia: jan.zabr, p. 13-78.

    180

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    A mulher olhou o sargento e no respondeu.- Compreendeu a minha pergunta?Ela balbuciou:- Fui enviada a um convento muito nova, porm casei-me e no sou religiosa. As freiras me ensinaram francs.A vila foi queimada e fugimos to depressa que nem tivetempo de calar os sapatos.- Eu pergunto quais so as suas opinies polticas!- No sei o que isso.O sargento explicou:- que h mulheres espis. Essas ns fuzilamos. Vamos.Fale. Voc no cigana. Qual a sua ptria?Ela continuava olhando-o, como se no compreendesse.O sargento repetiu:- Qual a sua ptria?- Eu no sei - disse ela.- Como! Ento voc no sabe qual a sua terra?- Ah! Minha terra, sim.- Pois bem, qual a sua terra?- a aldeia de Siscoignard, na freguesia de Aze.Foi a vez do sargento ficar estupefato. Ficou pensativo porum momento, depois acrescentou:- Como disse?- Siscoignard.- Isso no uma ptria.- a minha terra.E a mulher, aps um instante de reflexo, acrescentou:- Compreendo, senhor. Os senhores so franceses, e eusou da Bretanha.- E o que tem isso?- No a mesma terra.- Mas a mesma ptria! - exclamou o sargento.E a mulher limitou-se a responder:- Eu sou de Siscoignard.

    Acreditamos que, mesmo antes de ocorrer o dilogo entre aspersonagens acima, a prpria idia da mulher camponesa perdida comseus descendentes (trs filhos) diante de um batalho republicano pode, em

    181

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    certo sentido, servir de metfora e simbolizar duas questes interessantes.A solido e o desamparo da camponesa contrastam com a unidade existenteno batalho republicano. Refora-se, desse modo, a representao de umanova vida que surge e que se ope ao isolamento de uma situao anterior.Passado e presente se cruzam e se opem, denunciando profundas diferenas.Monarquia e repblica. Campo e cidade. Civilizao e no-civilizao. Ptriae localidade. Esses so os dualismos colocados antes mesmo de efetivar-se aconversa entre o sargento e a camponesa vendeiana.

    No instante em que nasce o dilogo, percebe-se, ainda mais, adisparidade entre modos de vida, e a perplexidade acaba sendo a tnicada conversa, seja de quem recebe as perguntas, seja de quem escuta asrespostas. Para o sargento, a "ignorncia camponesa" em relao poltica e ausncia de sentimento de ptria mostram a "pequenez" da vida campesina.De outra parte, o desconhecido e o incomum daquilo que est muito almde seus laos de sociabilidade e de territorialidade revelam-se como algoincompreensvel para a mulher campesina, pois o seu mundo prende-se lgica existencial alde, em que a ptria e a poltica estatal nunca se fizerampresentes, nunca foram balizadoras de suas relaes e nem das de seus entes.Seu mundo a sua terra, " a aldeia de Siscoignard, na freguesia de Aze" eno a Frana, porque o projeto de um Estado-Nao algo incompreensvelpara essa mulher vendeiana. O susto do sargento representa o antagonismo eo choque entre civilizaes, onde praticamente inadmissvel a presena dooutro, por ser esse outro sinnimo de uma misria material e simblica. Porisso, sua atitude diante da resposta dada pela camponesa pergunta "qual a sua ptria?" revela-nos no s um ato de indignao contra a mulher,mas uma constatao lastimvel das condies socioculturais sob as quaisa mesma se encontra para ele: isolada e, por isso, perdida no tempo e noespao. A condio da existncia camponesa, na compreenso do militar, to insuportvel quanto a continuidade do regime monrquico.

    Diante disso, a motivao para o levante dos camponeses vendeianos,bretos, instaurao da repblica na Frana, para Victor Hugo, seriaresultado de uma ignorncia produzida pela condio escrava imposta a essesrurais pela monarquia, o feudalismo e o localismo: "A Bretanha revoltou-se, achando-se oprimida por essa libertao fora. Engano habitual aosescravos." (HUGO, s.d., p. 192).

    182

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    Se nos referimos aos trechos do livro O Noventa e Trs, de Hugo,isso se justifica pelo fato de encontrarmos, guardadas certas diferenas,vrias similitudes com a forma como Marx descreve e analisa o modo devida campesino e seu comportamento poltico na Frana, em pleno periodode Lus Bonaparte.

    N'O 18 Brumrio, datado de 1852, Karl Marx acredita que oisolamento e a autossuficincia material ocasionada pela pequena propriedadeagrcola e pela vida na aldeia produzem uma existncia de precariedadesmateriais que incidem em grande escala e se fazem notar a partir dos limitesintelectuais dos homens e mulheres campesinos. Na vida da pequenapropriedade rural, as relaes mtuas entre os prprios camponeses solimitadas e detentoras de um intercmbio econmico e cultural bastanterestrito. Tanto o localismo, inscrito na vida da aldeia, quanto a parcelapequena de terra produzem limitada diviso de trabalho, nulo intercmbiocom o mundo e ausncia de aplicao de mtodos cientficos de produo.Geram tambm situaes limitadas de vida, aprisionadas pela (e na) aldeia,como pela (e na) diminuta propriedade agrria. De acordo com essa viso,o intercmbio estabelecido pelo campons d-se mais com a natureza doque propriamente com a sociedade, no que se refere s trocas construdaspara obter os meios necessrios sua subsistncia corporal e espiritual. Porisso, essa vida camponesa no consegue criar seres capazes de libertar asociedade de seus grilhes, porque seus modos de existir, em grande medida,simbolizam insuficincias, so grilhes tambm. Segundo Marx:

    Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa,cujos membros vivem em condies semelhantes massem estabelecerem relaes multi formes entre si. Seumodo de produo os isola uns dos outros, em vez decriar entre eles um intercmbio mtuo. Esse isolamento agravado pelo mau sistema de comunicaes existentena Frana e pela pobreza dos camponeses. Seu campo deproduo, a pequena propriedade, no permite qualquerdiviso do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicaode mtodos cientficos e. portanto. nenhuma diversidadede desenvolvimento, nenhuma variedade de talento,nenhuma riqueza de relaes sociais. Cada famliacamponesa quase auto-suficiente; ela prpria produz

    183

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    inteiramente a maior parte do que consome, adquirindoassim os meios de subsistncia mais atravs de trocascom a natureza do que do intercmbio com a sociedade.Uma pequena propriedade, um campons e sua famlia:ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponse outra famlia. Algumas dezenas delas constituem umaaldeia, e algumas dezenas de aldeias constituem umDepartamento. A grande massa da nao francesa , assim,formada pela simples adio de grandezas homlogas, damesma maneira que batatas em um saco constituem umsaco de batatas. (MARX, 1997, p. 127).

    Ademais, para Marx, o sentimento estreito e egosta, o apego terrae a incapacidade poltica de fazer-se representar - por no se constituircomo uma classe organizada capaz de estabelecer rico intercmbio entre si -acabaram jogando o campesinato francs sob o controle de Lus Bonaparte,j que este era visto pelos campesinos como uma liderana capaz de oferecerproteo e segurana continuidade de sua vida e de sua relao com apequena propriedade agrria, sem sofrer as ameaas de um mundo cada vezmais mediado pela economia de mercado capitalista.

    Na medida em que, nas cidades e nas indstrias, os trabalhadoresassalariados mantinham mais contato entre si, experienciavam situaesmais complexas de existncia, sentiam - sem a maquiagem da relaopessoal - a opresso patronal reveladora de seu oponente comum, acabavamtendo condies de forjar, apesar de todas as ambiguidades, uma capacidadepoltica mais slida enquanto classe do que o campesinato. Sem dvida,isso no se operaria de modo mecnico, pois as tradies e experinciaspopulares e a ao patronal ofereciam cenrios plurais, e no nicos, para ofazer da conscincia operria. Entretanto, o meio urbano (com seus bairrosoperrios) e o cotidiano fabril eram terrenos mais propcios ao despertar deuma conscincia e atuao poltica mais rica; e uma prova disso foi o grandenmero de sindicatos e demais organizaes populares que se formaram emcidades inglesas at 1823'.

    3 "Por volta de 1823, havia instituies da classe operria solidamente fundadas eautoconscientes - sindicatos, sociedades de auxlio mtuo, movimentos religiosos eeducativos, organizaes polticas, peridicos - alm das tradies intelectuais, dos padres

    184

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    Tambm E. P. Thompson. em escrito sobre a classe operria inglesa,revela isso:

    o empreendimento em grande escala, o sistema fabril ,com sua nova disciplina. as comunidades fabris - onde oindustrial no s enriquecia com o trabalho da sua "mo-de-obra". como tambm se podia v-lo enriquecer nodecorrer de uma nica gerao - tudo contribui para atransparncia do processo de explorao e para a coesosocial e cultural do explorado. (THOMPSON. 1987, p.22).

    Tais evidncias, percebidas anteriormente por Marx e Engels noManifesto do Partido Comunista , de 1848, faziam com que eles julgassemimpossvel que o ser humano progredisse em busca de sua emancipaose estivesse vinculado condio campesina e ao seu sentimento pequeno-burgus de proprietrio. Deixar o campo e o modo de vida campons eraabdicar de uma existncia cercada de limites. Nesse sentido, quando asociedade burguesa e sua hegemonia fizeram com que a cidade irradiassesua luz sobre o campo. submetendo-o sua dinmica ao satelitiz -lo, retirouinmeras pessoas da existncia rural e acabou conduzindo ambos (homens esociedade) para um novo mundo ao arrancar "uma grande parte da populaodo embrutecimento da vida rural" (MARX; ENGELS, 1989, p. 35) .

    Decerto que a cidade antecedeu ao industrialismo, contudo, a mesmano detinha a pujana que passou a ter a partir das transformaes impostaspelo modelo burgus de existncia. enquanto forma hegemnica que mudavatanto a vida urbana quanto a rural :', da mesma forma que aproximava pases,

    comunitrios e da estrutura da sensibilidade da classe operria." (THOMPSON. 1987. p.17). Sobre isso Henri Lefebvre disse : "Desde ento . a cidade no aparece mais, nem mesmopara si mesma . como uma ilha num oceano campons; ela no aparece mais para si comoparadoxo. monstro. inferno ou paraso oposto natureza alde ou campone sa. Ela entra naconscincia e no conhecimento como um dos termo s. igual ao outro. da oposio "cidade-campo". O campo? No mais - no nada mais - que a "circunvizinhana" da cidade. seuhorizonte. seu limite . As pessoas da aldeia ? Segundo sua prpria maneira de ver, deixamde trabalhar para os senhores territoriais. Produzem para a cidade. para o mercado urbano.E. se sabem que os mercadores de trigo ou madeira os exploram, encontram porm nomercado o caminho da liberdade." (LEFEBVR E. 1999. p. 24).

    185

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    levando-os a contatos mais estreitos e universais. A expanso da lgicaburguesa de mundo provocou um estilhaamento do localismo, seja regional,seja nacional; colocou fim a situaes que bastavam a si mesmas no planoeconrnico e cultural; e, mais do que isso, ao efetivar essa proximidade,em decorrncia das mudanas produtivas e de comunicao, a burguesia,segundo Marx e Engels (Idem, p. 34), arrastou "na corrente da civilizaomesmo as naes mais brbaras".

    Em lugar do antigo isolamento de regies e naes que sebastavam a si prprias, desenvolvem-se um intercmbiouniversal, uma universal interdependncia das naes. Eisto se refere tanto produo material como produointelectual. As criaes intelectuais de uma naotomam-se propriedade comum de todas. A estreitezae o exclusivismo nacionais tomam-se cada vez maisimpossveis; das inmeras literaturas nacionais e locais,nasce uma literatura universal. (lbidem, p. 34).

    Para Marx e Engels, apesar dos inmeros mecanismos de dominaoe da sofisticao presente neles, a hegemonia burguesa quebrou situaesde precariedades profundas antes existentes na humanidade, revolucionandoo campo e outros pases que foram incorporados por sua dinmica, comonenhum outro modo de produo havia feito na histria. As economiaslocais e/ou nacionais renderam-se fora e s vantagens, de alguma forma,do processo de internacionalizao imposto pela (re)produo ampliada docapitalismo. claro que Marx reconhecia o surgimento de novas formas deexcluso, de contradies, construdas pelo capitalismo em relao massaassalariada urbana que emergia das runas dos camponeses, a qual ele iriadenominar de "proletrios sem direitos".' Mesmo no caso dos trabalhadoresassalariados agrcolas, Marx constatou uma queda brutal na renda destes eem sua qualidade de vida entre os anos de I795 e I814, na Inglaterra, fato

    5 "O roubo dos bens da Igreja, a alienao fraudulenta dos domnios do estado, a ladroeiradas terras comuns e a transformao da propriedade feudal e do cl em propriedade privadamodema, levada a cabo com terrorismo implacvel. figuram entre os mtodos idlicos daacumulao primitiva. Conquistaram o campo para a agricultura capitalista. incorporaram asterras ao capital e proporcionaram indstria das cidades a oferta necessria de proletriossem direitos." (MARX, 1980, livro Lv. 2, p. 850, grifo nosso) .

    186

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    que o fez afirmar que "de todos os animais mantidos pelo arrendatrio, otrabalhador, o nico que pode falar, foi, desde ento, o mais atormentado, omais mal alimentado e o mais brutalmente tratado" (MARX, 1980, livro 1,v. 2, p. 784).6

    Entretanto, apesar dessas agruras, para Karl Marx, o modo burgussoltou as amarras de populaes e naes do tradicionalismo, tanto na formade produzir, quanto de experienciar a vida. Reduziu as relaes sociaisfundadas em pactos pessoais (servis, parentela, cl, linhagem e outros) emacordos mercantis, impessoais, que passaram a ser o principal mecanismode mediao da sociedade, fato que deu a esta maior dinamismo e revelou demodo mais ntido aos trabalhadores assalariados a sua situao de exploraodiante do capital ista. :

    A vida local e seu reducionismo - material e espiritual - foramdemolidos pela amplitude do modo de produo capitalista e seu complexointercmbio, que se fez cada vez mais internacional pela demanda de novosmercados e produo de novas mercadorias. inegvel que na cidade

    6 O contexto de pobreza dos trabalhadores agrcolas emerge com fora depois da lutaestabelecida entre as fraes da classe dominante (burguesia industrial e grandes produtoresrurais), quando o setor dos industriais resolve fazer presso para eliminar - ou ao menosreduzir - as barreiras aduaneiras que foram edificadas com vistas a proteger a produoagrcola inglesa. particularmente a da aristocracia da terra, elemento mencionado por Marxno seguinte trecho d'O Capital: "O tempo que imediatamente precede revogao das leisaduaneiras relativas aos cereais lanou nova luz sobre a situao dos trabalhadores agricolas.Era interesse dos agitadores burgueses provar que aquelas leis em nada protegiam osverdadeiros produtores do trigo. A burguesia industrial bufava de raiva contra as denncias,relativas s condies das fbricas. feitas pelos aristocrticos das terras. contra a compaixoque esses fidalgos ociosos, corruptos e desalmados simulavam sentir pelos sofrimentosdos trabalhadores das fbricas, e contra seu "zelo velhaco" pela legislao fabril. Segundoum provrbio ingls. quando dois ladres brigam. algo de til acontece. Realmente. a lutaruidosa e apaixonada entre as duas faces da classe dominante, para determinar qual delasexplorava mais cinicamente o trabalhador, serviu para revelar o que havia de verdadeiro dosdois lados." (MARX. 1980, livro 1. v. 2, p. 785)., "Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia calcou aos ps as relaes feudais.patriarcais e idlicas . Todos os complexos e variados laos que prendiam o homem feudal aseus "superiores naturais" ela os despedaou sem piedade, para s deixar subsistir. de homempara homem. o lao do interesse, as duras exigncias do "pagamento vista". Afogou osfervores sagrados do xtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismopequeno-burgus nas guas geladas do clculo egosta." (MARX; ENGELS, 1989, p. 33).

    187

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho, Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    aconteceu "um processo cumulativo relativamente contnuo: acumulao deconhecimentos, de tcnicas, de coisas, de pessoas, de riquezas, de dinheiro,depois de capital" (LEFEBVRE, 1999, p. 34), diferentemente do que ocorreuno campo.

    Para existir, o capitalismo e seu modo burgus de vida precisou, noincio, superar o regime feudal, destituir artesos e camponeses da situaode produtores independentes, formar fora de trabalho disponvel para asempresas e, depois, ultrapassar seus prprios limites, enquanto imperativoessencial para continuar sobrevivendo. Assim, o processo de acumulaoprimitiva tomou-se elemento crucial para o nascimento do modo de produocapitalista, sua etapa inaugural, sem a qual no poderia haver surgido ocapitalismo.

    o sistema capitalista pressupe a dissociao entre ostrabalhadores e a propriedade dos meios pelos quaisrealizam o trabalho. Quando a produo capitalistase toma independente, no se limita a manter essadissociao, mas a reproduz em escala cada vez maior.O processo que cria o sistema capitalista consiste apenasno processo que retira ao trabalhador a propriedade deseus meios de trabalho, um processo que transformaem capital os meios sociais de subsistncia e os deproduo e converte em assalariados os produtoresdiretos. A chamada acumulao primitiva apenas oprocesso histrico que dissocia o trabalhador dos meiosde produo. considerada primitiva porque constitui apr-histria do capital e do modo de produo capitalista.(MARX, 1980, livro I, v. 2, p. 830).

    o capitalismo tomou a terra um bem de capital; ps fim propriedadecomunitria; transformou a produo urbana e agrcola em valores-de-troca;fez do mercado translocal o locus privilegiado da vida socioeconmica;atraiu trabalhadores para o centro urbano em busca de empregos; efetivoua produo de mercadorias em larga escala; expulsou do campo famliasinteiras. Tudo isso culminou na separao dos produtores diretos (artesose pequenos agricultores) de seus meios de produo, ao convert-los, to-somente, em proprietrios apenas de sua fora de trabalho, enquanto etapaelementar para a gerao da mais-valia. Neste sentido, a cada progresso

    188

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    da economia de mercado ocorria uma intensa fragilizao da economiacampesina, que anteriormente bastava a si mesma.

    As idias sobre a presena do processo de acumulao primitivaestiveram implicitamente colocadas em diversas cartas enviadas porEngels ao narodnik (ou populista ruSSO X) Danielson, entre 1891 e 1893.Nelas, denunciava a impossibilidade do campons de continuar a existir e,por isso, de ser uma alternativa para se alcanar o socialismo, sem que aRssia passasse pelo processo vivenciado em pases da Europa Ocidental(a Inglaterra era o modelo clssico), de industrializao e proletarizao";afirmativa essa recusada radicalmente por Danielson'".

    Havia, portanto, na concepo de Engels, a naturalizao de umcaminhar histrico comum s sociedades, no que diz respeito ao aumentoda expropriao e ao fim do campesinato. Lutar contra isso seria negar aprpria realidade e a condio essencial para o desenvolvimento econrnicoe humano de um pas, pois, como escreveu em carta de 15 de maro de1892, "no h como escapar aos fatos econmicos" (ENGELS, 1982, p.219). Para ele, quem no compreendia e aceitava esse processo inexorvelia ser obrigado a faz-lo pelos fatos, que revelariam a necessria extino

    8 O emprego do termo populista I1/SS0 no possui o mesmo sentido que o conceito criadopara dar conta das correntes populistas surgidas na Amrica Latina nos meados do sculoXX. Sobre isso. ler: FERNANDES. Rubem Csar. 1982. A Rssia e o ocidente. ln:(Org.). Dilemas do socialismo: a controvrsia entre Marx. Engels e os populistas russos.Rio de Janeiro: Paz e Terra. P. 11-73; NETTO, Jos Paulo. 1982. Introduo. ln: LNIN,Vladimir Ilitch. O desenvolvimento do capitalismo na Rssia: o processo de formao domercado interno para a grande indstria. So Paulo: Abril Cultural. P. VII-XXI.q Em missiva enviada a Danielson, no dia 22 de dezembro de 1892. Engels disse: "Umadas conseqncias necessrias da grande indstria a destruio do seu mercado internono mesmo processo que o cria. Ela o cria destruindo as bases da indstria domsticacamponesa. E, sem esta indstria, os camponeses no podem existir. So arruinadosenquanto camponeses, seu poder de compra reduzido ao mnimo e enquanto no seajustam s novas condies de existncia proletria. formam um pobre mercado para asfbricas que surgem." (ENGELS. 1982. p. 237, grifos do autor).10 Em resposta a carta de Engels de 18 de julho de 1892, Danielson escreveu no dia 03 deoutubro de 1892: "Se nossa sociedade deixar de procurar uma sada e ficar a contemplarsilenciosamente como seus membros se degeneram e morrem, ela perder o direito vida,deixar de ser uma sociedade - ser um corpo em estado de desintegrao, cuja vida seresume a contemplar passivamente a sua prpria degenerescncia" (DANIELSON, 1982,p. 241).

    189

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    da economia camponesa. Mas, segundo o autor expressou em nova missivaescrita em 17 de outubro de 1893, ao menos "no h nenhum grande malhistrico que no seja compensado por um progresso histrico" (ENGELS,1982, p. 253) . O fim do modo de vida campons representava, portanto,o nascimento de uma sociedade superior. I I "E infelizmente as pessoas soto tolas que nunca conseguem reunir a coragem para apoiar o verdadeiroprogresso se no so foradas a isto por sofrimentos to grandes, queparecem totalmente desproporcionais ao objetivo alcanado." (ENGELS,1982, p. 248).

    Em artigo elaborado em 1894, Engels caminha na mesma direoao chegar a afirmar que o "nosso campons, como tudo que seja resquciode um modo de produo caduco, est condenado irremediavelmente aperecer. O pequeno lavrador um futuro proletrio." (ENGELS, 1981, p.63). Esse fenmeno vinha ocorrendo, particularmente, em decorrncia daprpria expanso da economia de mercado e de suas formas mais modernase racionais de produo e comercializao, cujo surgimento devia-se aodesenvolvimento de sujeitos sociais mais capacitados (burgueses, proletriose empresrios rurais) para instaurar uma nova dinmica histrica. Dinmica

    II Mesmo com essa fora do progresso histrico contida na referida abordagem de Engels,seria inoportuno taxar simplesmente o marxismo de evolucionista e/ou determinista, tendoem vista algumas afirmativas feitas por Marx em carta tambm a uma das lideranas donarodnik, Vera Zasulitch. em 08 de maro de 1881, essencialmente no que diz respeito srespostas contidas no livro O Capital: "A anlise feita em O Capital no oferece. portanto,razes nem a favor nem contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que fizsobre ela, e cujo material pesquisei em fontes originais, convenceu-me de que esta comuna o ponto de apoio para a regenerao social na Rssia: porm, a fim de que ela possa funcionarcomo tal, primeiro seria preciso eliminar as influncias deletrias que a assolam por todosos lados e, ento, assegurar-lhe as condies normais de um desenvolvimento espontneo."(MARX, 1982, p. 188). Diferentemente das respostas de Marx a Vera Zasulitch, FriedrichEngels mais ortodoxo diante dos pensadores vinculados esquerda russa, por no abrirpossibilidades de interpretao e de ao poltica que no sejam aquelas destinadas a uminelutvel e nico caminhar histrico da humanidade ao capitalismo. Por isso, recomendouEngels certa "neutralidade", uma no resistncia aos fatos histricos e, assim, a ausnciade defesa do campesinato como sujeito social capaz de levar a Rssia ao socialismo: "Seeles nos agradam ou no, outro assunto, pois, agrademo-nos ou no, os fatos continuama ser os fatos. Quanto mais nos desvencilharmos de nossas simpatias e averses em nossaanlise, tanto melhor poderemos avaliar os prprios fatos e suas conseqncias" (ENGELS,1982, p. 230) .

    190

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o carnpesinato e a vida local rural

    essa que foi capaz de transcender espaos locais, devido s caractersticasde sua produo global denunciadora do carter universal das novas classessociais, ou seja, do modo de produo capitalista. Diante de tal fato, osatores locais e/ou pertencentes a momentos anteriores ao aparecimento docapitalismo (artesos, camponeses, pescadores artesanais) no teriam forasuficiente para conseguir competir, em termos econmicos e polticos, comos agentes socioeconmicos inerentes ao modelo de expanso da economiade mercado global e toda uma infraestrutura criada e fortalecida (transportenaval, essencialmente) para promover essa integrao entre mercados. Ento,o passado no poderia enfrentar o presente e nem o futuro.

    O desenvolvimento da forma capitalista de produorompeu o nervo vital da pequena explorao naagricultura; a pequena explorao agrcola est decaindoe marcha irremediavelmente para a runa. A concorrnciados Estados Unidos, da Amrica do Sul e da ndia inundouo mercado Europeu de trigo barato, to barato que noh produtor local capaz de competir com ele. (ENGELS,1981, p. 60).

    Alm de sofrer concorrncia externa, os camponeses tambm eramvtimas dos grandes empreendimentos agrcolas modernos em suas prpriasregies, visto que estes haviam racionalizado suas etapas produtivas com oarrendamento das terras, o uso de maquinarias, adubos qumicos, tcnicasmais modernas de manejo produtivo e comercializao advindas de seucontato e subordinao aos conhecimentos tcnico-cientficos que brotaramda vida das cidades.

    Tudo isso mostra que a amplitude do intercmbio revelava a riquezae/ou a pobreza da vida social de um agrupamento humano, de uma localidade,de um pas. A capacidade de expandir-se e de estabelecer interaes sociais,econmicas e culturais com outras regies e povos denunciava o que era ecomo se organizava uma sociedade, e o grau de desenvolvimento que elahavia atingido. No plano da qualidade poltica, a vida presa ao mundo localrevelava tambm, na compreenso de Engels, as razes de uma suposta apatiamilitante do campesinato.

    Em relao ao poder poltico. at hoje o campons smanifestou, na maioria dos casos, uma grande apatia,

    191

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho, Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    que tem razes no isolamento da vida rural. Esta apatia dagrande massa da populao constitui o ponto mais slidode apoio no s da corrupo de Paris e de Roma, comotambm do despotismo russo. (ENGELS, 1981, p. 59).1~

    Em certo sentido, acreditamos que essa viso de Engels pode sercomparada aos valores depreciativos atribudos ao modo de vida doscamponeses vendeianos elaborados por Victor Hugo. A passagem abaixoilustra esta similitude:

    Se se quiser compreender a Vendia, imagine-se esteantagonismo, dum lado a revoluo francesa e do outroo campons breto. Em face destes acontecimentosincomparveis, ameaa imensa de todos os benefcios aomesmo tempo, acesso de clera da civilizao, excessode progresso furioso, melhoramento desmedido eininteligvel, coloque-se este selvagem grave e singular,este homem de olhar claro e cabelos compridos, vivendode leite e castanhas, limitado ao seu teta de colmo, suasebe e ao seu fosso, distinguindo cada aldeia da vizinhanapelo som do sino, servindo-se da gua unicamente parabeber, tendo aos ombros uma jaqueta de couro comarabescos de seda, inculto e bordado, pintando seusvestidos, como seus antepassados Celtas pintavam seusrostos, respeitando seu amo em seu carrasco, falando umalngua morta, o que fazer habitar um tmulo em seupensamento, aguilhoando os bois, aguando as foices,limpando o trigo negro, amassando o po de centeio,venerando em primeiro lugar a charrua, e em segundolugar a av, crendo na Virgem-Santa e na Dama-branca,devoto do altar e tambm da alta pedra misteriosa erguidaem meio charneca, lavrador no campo, pescador nacosta, caador na mata, amando os seus reis, os seussenhores, os seus padres, os seus piolhos; pensativo,

    12 A maneira de minimizar a qualidade do campons e da vida rural nunca foi um atributoexclusivo de alguns estudiosos de tradio marxiana. j que Georg Simmel, pensador neo-kantiano, chegou a afirmar que a vida na cidade implicava "uma conscincia mais elevada euma predominncia da inteligncia no homem metropolitano" (SIMMEL. 1969. p. 15).

    192

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    imvel muitas vezes durante horas inteiras na grandepraia deserta, sombrio escutador do mar. E pergunte-se depois se este cego podia aceitar aquela claridade.(HUGO, s.d.. p. 190, grifo nosso).

    De fato, a situao de ignorncia, de cegueira frente ao mundo,por parte dos camponeses descritos por Victor Hugo, pode ser comparadaao embrutecimento, apatia e estreiteza da vida local rural e do camponscriticados por Karl Marx e Friedrich Engels; bem como a luz de um novotempo denunciada em cada frase, no assombro e no prprio ato de acolhimentoda campesina pelo condutor do batalho republicano parisiense n '0 Noventae Trs possui similitude com o processo civilizatrio inerente ao modo devida burgus/cidatino presente n' O Manifesto do Partido Comunista.

    No estamos, com isso, dizendo que Victor Hugo haja influenciadoMarx e/ou Engels ou vice-versa - pois tal fato, alm de no haver ocorrido",no central para este texto; e nem que Marx haja elaborado um conceitorigoroso sobre o campesinato e a questo agrria, tema j analisado porRicardo Abramovay (l998)'~. O que queremos, de fato, observar que, decerto modo, havia uma problemtica comum naquele perodo, quando avida camponesa e o localismo significavam, para esses autores, bloqueios aoprojeto civilizatrio. Situao em que os sujeitos de carter universal- ora osrepublicanos, ora a burguesia e o proletariado - representavam a superaodos grilhes do tradicionalismo vinculados ao provincianismo da vida local

    13 Alis, no episdio referente preparao do golpe construdo por Lus Bonaparte. KarlMarx chega a tecer crticas ao comportamento poltico de Victor Hugo, como parlamentarna Assemblia Nacional francesa. em uma passagem do livro O 18 Brum rio. ao acus-lo de ser detentor de "um pretenso liberalismo" (1997. p. 65). Ademais. no prefcio dasegunda edio. escrito em 1869 por Marx. ele se refere obra escrita por Hugo - Napolon,le Petit - sobre o aludido episdio da seguinte maneira: "Victor Hugo limita-se invectivamordaz e sutil contra o responsvel pelo golpe de Estado. O acontecimento propriamentedito aparece em sua obra como um raio cado de um cu azul . V nele apenas o ato defora de um indivduo. No percebe que engrandece. ao invs de diminuir, esse indivduo,atribuindo-lhe um poder pessoal de iniciativa sem paralelo na histria do mundo" (Idem.p.13-14).14 "[... ] apesar da importncia da agricultura no trabalho terico de Marx. no existe nadaneste trabalho que contemple aquilo tratado. j no final do sculo XIX. como o eixo dearticulao da questo agrria: a produo familiar na agricultura. suas tendncias e suasfunes no desenvolvimento capitalista:' (ABRAMOVAY, 1998, p. 32).

    193

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    e dos principais agentes sociais que a perpetuavam (camponeses, arteso,pescadores artesanais) 15.

    Particularmente quanto s concepes de Marx e Engels sobre o modode vida campesino e a questo local, essas vo encontrar eco e reverberarnuma srie de pensadores que construram suas concepes tericas epolticas sob sua influncia, no final do sculo XIX e durante - podemos dizerassim - todo o sculo XX, com profundo impacto sobre a sociologia. Nopretendemos dizer, com isso, que as teses de Marx no devam ser levadasem conta, como instrumental rico, para que se entendam especificidades depases e/ou regies, pois se trata do mais genial entre os pensadores sociais.

    Todavia, o que nos impressiona como suas anlises vo serreafirmadas, s vezes quase como uma 'colagem', em tempos e/ou espaosdistintos, por uma gama significativa de seus seguidores, que sempre voltama ressaltar o princpio da mediocridade do esprito campons, que se coadunacom os limites impostos pela existncia local. Alm disso, percebe-se apresena, em certo sentido, de um discurso escatolgico, irremediavelmentefatalista, sobre o campesinato, que vai acompanhar tambm geraesposteriores de alguns estudiosos marxianos.

    O uso desse tipo de discurso, feito por essas geraes, no diz respeitoapenas a uma abordagem metodolgica, ou quanto a sua importncia (fatoque seria, por si s, valioso), mas tomou-se, acima de tudo, uma busca porreafirmar concluses e teses universais do pensamento de Marx em qualquertempo e espao".

    15 A questo do avano do mundo moderno, do capitalismo. tambm foi um tema quepreocupou. em 1906, o socilogo alemo Max Weber, especialmente quando ele explicitouque, na Europa, "os ltimos dois mil anos no treinaram o campons para produzir visandoo lucro" (WEBER, 2002. p. 254).16 Em relao ao mtodo marxiano, Georg Lukcs frisou seu valor de modo brilhante: "Omarxismo ortodoxo no significa, portanto, um reconhecimento sem crtica dos resultadosda investigao de Marx, no significa uma "f" numa ou noutra tese, nem a exegese deum livro "sagrado". Em matria de marxismo, a ortodoxia se refere ao mtodo" (LUKCS,2003, p. 64, grifo do autor).

    194

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o carnpesinato e a vida local rural

    3 As repercusses do debate de Marx e Engels nas elaboraes de Lnin,Karl Kautsky, Rosa de Luxemburg, E. P. Thompson e Hobsbawm

    Em um dos primeiros estudos dedicados questo agrria sob oolhar do marxismo, publicado em 1899, Lnin analisa a entrada do capitalno meio rural de uma sociedade perifrica e agrria e assinala "0 histricopapel progressista do capitalismo na a~ricultura russa" (LNIN, 1982, p.206) , embora reconhecendo as contradi es e excluses geradas por essefenmeno sobre os habitantes rurais. Contudo, mesmo focalizando o casoda Rssia, interessante observar como h, no trecho abaixo, o reforodas teses/argumentos elaborados por Marx e Engels em passagens citadasanteriormente neste trabalho, no intuito de revelar a validade universaldelas.

    o capitalismo destruiu o esprito estreito e provinciano;substituiu as pequenas divi ses med ievais dos agricultoresporapenas uma gr

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    dcada de 1960 sobre a fonnao da classe operria inglesa", chega a umaconcluso prxima no que diz respeito ao menor grau de conscincia polticados homens e mulheres que habitavam o campo frente aos trabalhadoresurbanos, inclusive para defender o direito terra no sculo XIX, quandodiz:

    uma ironia histrica que tenham sido os trabalhadoresurbanos, e no os rurais, que organizaram o movimentonacional mais coerente pela devoluo da terra. Algunsdeles eram filhos e netos de camponeses, com oentendimento aguado pela vida das cidades, livres dasombra do proprietrio rural. Alguns - os partidriosdo Plano da Terra - eram teceles e artesos de origemcamponesa [oo.] (THOMPSON, 1987, p. 66).

    Contemporneo de Thompson, o tambm historiador britnico EricHobsbawm, em artigo publicado em 1973, reafirma a noo do aprisionamento vida local e as implicaes negativas que isso representava para umprocesso de disputa poltica mais amplo, mais moderno, j que entendeque "os camponeses so perfeitamente capazes de julgar a situao polticalocal, mas sua verdadeira dificuldade est em discernir os movimentos maisamplos da poltica que podem determin-la" (HBSBAWM, 1998, p. 229).

    Em 1994, Hobsbawm vai ratificar a mesma linha de raciocnio,quando analisa o terceiro mundo aps a Segunda Guerra Mundial. O autorcontrape os desejos dos defensores de uma sociedade moderna em termossociopolticos e econmicos frente s expectativas dos prprios camponesesacerca da questo da reforma agrria, e conclui:

    Contudo, o que os modemizadores viram nela [reformaagrria] no foi o que significava para os camponeses,

    17 Thompson - alm de revelar que a conscincia operria tambm resultou de experinciascampesinas e artess, no se iniciando do zero - descreve e analisa como havia. no imaginriodos trabalhadores urbanos. um ideal da aldeia comunitria camponesa, na qualidade dealgo mais justo e menos opressor do que a vida na cidade e a situao de assalariados daindstria. fundamentalmente inspirado no owenismo, Thompson (1987. p. 64) escreveu: "possivel que seus vestgios perdurem at hoje. nessa nsia por pequenos lotes e hortas. Aterra carrega sempre outras conotaes - de status, segurana e direitos - mais profundasdo que o simples valor da colheita."

    196

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    desinteressados por problemas macroecon rnicos evendo a poltica nacional de uma perspectiva diferenteda dos reformadores da cidade. e cuja exigncia dereforma agrria no se baseava num princpio geral. masem reivindicaes especficas (HOBSBAWM. 1995. p.349).18

    Retomando s idias de Lnin, percebemos que a "marcha para oprogresso" iria vitimar a permanncia camponesa ao aumentar sua misria ecausar tambm sua proletarizao, levando, assim, descarnponizao. " Defato, como Marx e Engels, Lnin acreditava na concentrao e intensificaodas relaes entre duas classes sociais antagnicas (burgueses e proletrios)como processo inerente ao prprio capitalismo.

    O campesinato antigo no se "diferencia" apenas: eledeixa de existir. se destri. inteiramente substitudo pornovos tipos de populao rural. que constituem a base deuma sociedade dominada pela economia mercantil e pelaproduo capitalista. Esses novos tipos so a burguesiarural (sobretudo a pequena burguesia) e o proletariadorural - a classe dos produtores de mercadorias naagricultura e a classe dos operrios agrcolas assalariados.(Idem, p. 114).

    Perder a pequena parcela de terra e tomar-se assalariado representavaentrar num mundo de relaes sociais e de conscincia poltica avanadas,pois a propriedade da terra impelia o campons para um suposto isolamento epara a inexistncia de sentimento comunitrio. Aqui, Lnin reafirma tambma tese do apego do campons propriedade e as implicaes negativas para

    IS Caminhando em sentido inverso a tais concluses. James Petras escreveu um emblemticoartigo. no ano de 1997. em que discute o papel importante que os movimentos sociaisrurais tiveram na Amrica Latina para se contrapor hegemonia neoliberal no continente,tomando-se a principal fora de esquerda na regio : PETRAS. James. 1997. As esquerdase as novas lutas sociais na Amrica Latina . ln: LI/tas Sociais. n. 2. So Paulo : 1. semestre.p.5-18.19 "Observamos que o processo de decomposio dos pequenos agricultores em patres eoperrios agrcolas constitui a base sobre a qual se forma o mercado interno na produocapitalista:' (LNIN, 1982. p. 35).

    197

  • Cristano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    uma lgica cooperada que isso trazia, particularmente para a adoo de ummodelo de produo coletiva:

    O que impede o pequeno produtor (o arteso e ocampons) de passar produo coletiva o nfimodesenvolvimento da solidariedade e da disciplina, seuisolamento, seu "fanatismo de proprietrio", notrio noapenas entre os camponeses da Europa Ocidental comotambm, acrescentamos, entre os camponeses "comunais"russos [...] (LNIN, 1981, p. 92).

    Desse modo, segundo Lnin, o pequeno agricultor era um sujeitofadado ao desaparecimento cedo ou mais tarde, devido ao progresso docapitalismo e por conta de seus limites polticos e econmicos, para ser umaalternativa expanso do capital.

    A insero mais incisiva da economia mercantil na sociedade russalevaria ao aumento da proletarizao, inclusive no campo, e completasubordinao da vida rural ao meio urbano, ocasionando, dentre outrascoisas, o esfacelamento do campesinato, cujo incio dar-se-ia pela criaode contradies entre os pequenos agricultores e, em consequncia, pelocrescimento da categoria dos camponeses pobres entre eles. Linhart (1983,p. 39) expe que, na compreenso de Lnin, esses pequenos produtoresagrcolas pobres constituam os "aliados naturais no campo" do proletariado,tendo em vista que eles eram as maiores vtimas da fora da expropriaocapitalista.

    Para Lnin, o que interessava ao mercado capitalista era de que modoele podia conseguir extrair mais renda dos produtores, no importando queisso significasse a expropriao destes e causasse a passagem deles situaode assalariados. O momento de proletarizao seria parte da formao domercado interno, do desenvolvimento e da ampliao da lgica societriaburguesa na Rssia.

    [...] para o mercado, o que importa no o bem-estardo produtor, mas os seus meios pecunirios disponveis;o declnio do bem-estar de um campons patriarcal,que antes praticava uma economia predominantementenatural, perfeitamente compatvel com o aumento do

    198

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    volume de recursos pecunirios em suas mos, pois quantomais esse campons se arruna tanto mais forado arecorrer venda de sua fora de trabalho e maior a partedos meios de subsistncia (mesmo que sejam os meiosexguos) que ele deve adquirir no mercado. (LNIN,1981,p.16).

    Sendo assim, caberia ao campons sujeitar-se ao inevitvel desenrolarhistrico e aliar-se ao proletariado como nica possibilidade para enfrentaro capitalismo, no mais na qualidade de produtores individuais, mas comosujeitos vinculados construo de uma propriedade social coletiva de cunhoestatal, abdicando, dessa maneira, da condio campesina. A condio deproprietrio, alm dos limites econmicos, era enxergada como um aspectoque poderia fragmentar a luta dos trabalhadores ao manter o desejo da posseprivada dos meios de produo em uma parcela da populao desfavorecida.A propriedade social seria, ento, a anttese do desejo individualista, limitadoe invivel economicamente.

    Enfrentar o capitalismo assentando-se na pequena propriedade privadaseria, na compreenso de Lnin, algo impossvel de ser feito. A situaoplausvel para que os camponeses pudessem sobreviver enquanto produtoresrurais era a de que eles fizessem parte de organizaes cooperadas estataisonde todos se convertessem em trabalhadores agrcolas. O autor deixa issoevidente em um texto escrito em 1901:

    Qual a sada, que meios devem ser utilizadospara melhorar a sorte do campons? Os pequenoscamponeses no podem libertar-se do jugo do capitalseno aderindo ao movimento operrio e ajudando osoperrios a lutar pelo regime socialista, pela conversoda terra e dos demais meios de produo (as fbricas, asmquinas, etc.) em propriedade social. Procurar salvaro campesinato, defendendo a pequena explorao e apequena propriedade contra o impulso do capitalismo,significaria frear inutilmente o desenvolvimento social,enganar o campons com a iluso de um possvel bem-estar sob o capitalismo e dividir as classes trabalhadoras,criando uma situao privilegiada para uma s expensasda maioria. (LNIN, 1978, p. 24).

    199

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho, Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    Em livro dedicado exclusivamente questo agrana e publicadotambm em 1899, Kautsky chega mesma concluso, na medida em queconfirma a incapacidade de pequenos proprietrios agrrios de desenvolverslido sistema de cooperao, forte o suficiente para se opor ao modo deproduo global e racionalizado do capitalismo. A tradio das lgicascooperadas camponesas traria o peso negativo do passado e da produoe sociabilidade locais, e quando conseguisse funcionar de modo bem-sucedido seria facilmente apropriada e subordinada ao desenvolvimentodo capitalismo no campo. Para Kautsky, o sistema campons de produo,mesmo cooperado, nunca poderia ser alternativo ao capitalismo, no sentidoda superao deste.

    [oo.] sob o regime da propriedade particular dos meiosde produo a forma comunitria de propriedade jamaistem condies de tomar-se universal; todas as tentativas(bem-sucedidas) j feitas nesse sentido, mais cedo oumais tarde acabaram entrando na linha capitalista. , pois,apenas sob a forma da propriedade social que os meios deproduo tm condies de se tomar em propriedade emtermos cooperativos. (KAUTSKY, 1986, p. 276) .

    Tais teses sobre organizaes coletivas campesinas j estavampresentes tambm em um texto de Engels lanado em 1875, que advertiaacerca da impossibilidade de formas de cooperao tradicionais camponesasde trabalho - particularmente o artel - constiturem-se em oposioconsistente ao capitalismo, pois acabariam sendo usadas como mais um dosmecanismos de explorao efetivados pelo capital.

    Os artis so fundados sobre a base de um contratofirmado por todo os seus componentes. Se seus membrosno podem reunir o capital necessrio, o que ocorre comfreqncia, por exemplo. na produo de queijos e napesca (para a compra de redes. barcos etc.), o artel cai nasgarras do usurrio. que lhe empresta, ajuros exorbitantes,o dinheiro requerido e que, a partir deste momento, seapropria da maior parte das rendas que o artel obtm comseu trabalho. Contudo. so ainda mais ignominiosamenteexplorados os artis que se alugam coletivamente a um

    200

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    patro como um conjunto de trabalhadores assalariados[...] O predomnio que esta forma tem na Rssiaprova, naturalmente, que existe no povo russo umaacentuada tendncia associao, mas no demonstra,absolutamente, que este povo possa saltar, ajudado poresta tendncia, do arte! para a sociedade socialista.(ENGELS, 1982a, p. 148-149, grifos do autor).

    Com a idia do iminente fim do pequeno agricultor e de seuslimites para construir caminhos de oposio ao capitalismo, mais uma vezreforava-se o argumento do proletariado como sujeito mais capaz pararealizar a revoluo socialista tambm em Kautsky, particularmente devidoaos atributos espirituais, capacidade tcnica de produo e ao grandecrescimento numrico da classe assalariada, em detrimento da queda daquantidade de camponeses.

    O proletariado no conta apenas com todas as vantagensde sua inteligncia superior que a vida urbana lhe confere,com as vantagens de sua melhor organizao e com otreinamento de suas foras, bem como, ainda, com odomnio que a indstria exerce sobre a agricultura, masconta igualmente com a vantagem de sua superioridadenumrica que no presente j se faz sentir. (KAUTSKY,Idem, p. 28 I).

    Essa concepo de Kautsky vai a favor da tese referente aodesaparecimento gradual dos pequenos produtores agrcolas e de sua apatiapoltica e intelectual, bem como da pobreza material e espiritual da existnciarural. 20

    20 "O desenvolvimento capitalista atua, no entanto. de forma diferente sobre o campo esobre a cidade. No campo ele no une. mas dispersa as pessoas. Esse desenvolvimentotambm no leva apenas a um despovoamento relativo do campo. A certa altura de suaevoluo o desenvolvimento capitalista chega mesmo a produzir um despovoamento emtermos absolutos. E so precisamente os elementos mais competentes. mais enrgicos e maisinteligentes que so atrados do campo para a cidade. Apenas os mais fracos e incapazes soos que acabam ficando. Esse despovoamento do campo faz-se acompanhar. inclusive. deuma decadncia em termos de nvel intelectual da populao remanescente:' (KAUTSKY,1986. p. 282).

    201

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    Se o avano ou decomposio da economia camponesa no ocorria emalgumas localidades, devia-se, segundo Rosa Luxemburg em ensaio redigidoem 1913, s caractersticas ecolgicas da agricultura (tempo de colheita e decriao dos animais) e aos ciclos naturais aos quais se encontrava submetidaa vida das pessoas que moravam no campo (sazonalidade de trabalho),ajudando, de alguma maneira, a conservar "o carter de uma produo atcerto ponto primitiva e domstica que depende em grau muito menor domercado e das revolues que neste se do" (LUXEMBURG, 1988, p. 245).

    Este fator permitiu, dentre outras coisas, a continuidade da produocamponesa como fora de trabalho de reserva da grande propriedade, a serempregada em temporadas de colheita ou de plantio, situao que tomouo campo local portador de maior conservadorismo produtivo, cultural epoltico. "Desta maneira surgem as condies que propiciam artificialmentea existncia da pequena propriedade camponesa junto com seu inerenteatraso e sua misria cultural" (Idem, p. 245, grifo nosso), decorrentes dosseus contatos pfios com o mundo mais amplo da produo, sociabilidade ecirculao mercantil. Nesse caso, essa permanncia tem a ver menos com afora da pequena propriedade rural e mais com certas condies naturais docampo e a debilidade e/ou estratgia econrnica do capitalismo.

    Essa concluso j estava exposta em teses defendidas por KarlKautsky acerca da importncia do campesinato para o latifndio anos antes,tanto no que se refere a sua no concorrncia em termos de produo demercadorias, quanto ao fato de ser o pequeno estabelecimento agrcola umceleiro valioso de mo-de-obra para a grande propriedade agrria". Dessamaneira:

    ~I "Esse empenho que existe por parte do latifndio. de colaborar na multiplicao dopequeno estabelecimento. nos mostra claramente o quanto errnea a explicao segundoa qual o estabelecimento agricola vem se mantendo graas sua capacidade competitivaem relao ao grande . Pelo contrrio. ele subsiste precisamente porque j no maisconsiderado um concorrente deste ltimo. vendendo os mesmos produtos agrcolas queeste seu vizinho. o grande estabelecimento. tambm produz . esse o papel que o pequenoestabelecimento deixa de desempenhar sempre que, ao seu lado. passa a desenvolver-seum grande estabelecimento de cunho capitalista. O pequeno estabelecimento deixa deser vendedor e passa condio de comprador do produto que o grande estabelecimento'produz em excesso'. A mercadoria que ele mesmo produz em abundncia precisamente omeio de produo de que o grande estabelecimento agrcola tanto necessita, ou seja, a mo-de-obra." (KAUTSKY, 1986. p. 147. grifos do autor).

    202

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o campesinato e a vida local rural

    Quando a situao chega a esse ponto, o grandeestabelecimento deixa de excluir o pequeno, e vice-versa,passando um a condicionar o outro reciprocamente, comoacontece com o capitalista e o proletrio; vai acontecerainda que o pequeno lavrador assumir, tambm cadavez mais, o carter deste ltimo em relao ao grandeestabelecimento agrcola. (KAUTSKY, 1986, p. 147).

    Ademais, reputava o autor a submisso do pequeno agricultor suaautoexplorao, que chegava a lev-lo subalimentao e superexploraode sua prpria fora de trabalho e de sua famlia. Segundo Kautsky (Idem,p. 100), "0 pequeno lavrador no s mete o chicote em si mesmo, masdele tambm se serve para pr a trabalhar, igualmente, a sua famlia?"; e

    22 Karl Kautsky relata, atravs de inmeras citaes de textos, o grande uso que as unidadescamponesas faziam do trabalho infantil, chegando a dizer que: "Existem regies na Baviera ena ustria, principalmente, em que os camponeses discordam do ensino pblico obrigatrioat a idade de 14 anos; chegam mesmo a exigir ou nisso insistem, pelo menos, que a idadeescolar obrigatria no ultrapasse a faixa dos 12 ou 13 anos" (1986, p. 101), havendo casosde empregarem filhos de 7 anos de idade na faina agrcola. Entretanto, esqueceu ou omitiuKautsky que esse no era um problema exclusivo do meio rural, j que o prprio Marx.denunciava, em seu livro O Capital, a existncia de vrios inquritos parlamentares sobrea explorao do trabalho infantil em indstrias de cermica, entre 1860 e 1863, nas cidadesinglesas. Em relao a isto, escreveu Marx.(1980, livro I, v. 1, p. 276): "A indstria cermicade Statfordshire foi objeto de trs inquritos parlamentares durante os ltimos vinte e doisanos. Os resultados deles figuram nos seguintes relatrios: o de Scriven de 1841, dirigidoaos "Childreri's Employment Commissioners", o do Dr. Greenhow de 1860, publicadopor determinao do diretor mdico do Conselho Privado ("Public Health, 3rd Report",I, 102 a 113) e finalmente o de Longe de 1863. Para nosso estudo basta extrair algunsdepoimentos de crianas exploradas, encontrados nos relatrios de 1860 a 1863. Pelo queocorre com as crianas pode-se deduzir o que se passa com os adultos. principalmente commeninas e senhoras, numa indstria ao lado da qual a fiao de algodo e outras atividadessemelhantes pareceriam agradveis e sadias." Mais adiante afirma Marx, particularmenteem relao s fbricas de fsforos que se desenvolveram depois de 1845 na Inglaterra, emLondres, Liverpool, Bristol, Norwich, Newcastle e Glasgow: "A metade dos trabalhadoresso meninos com menos de 13 anos e adolescentes com menos de 18 anos. Essa indstria to insalubre, repugnante e mal afamada que somente a parte mais miservel da classetrabalhadora, vivas famintas etc., cede-lhe seus filhos, 'crianas esfarrapadas, subnutridas,sem nunca terem freqentado escola'." (MARX, 1980, livro I, v. 1, p. 279).

    203

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    prosseguia dizendo, de maneira enftica, a quem defendia a "qualidade" daeconomia campesina diante do grande estabelecimento agrcola:

    necessrio ser um admirador fantico da pequenapropriedade para ver qualquer vantagem nessa coaoque ela exerce sobre seus trabalhadores, coao que ostransforma em simples animais de carga e cuja vida toda,exceto nas horas de dormir ou de comer, no passa detempo exclusivamente dedicado ao trabalho. (Ibidern, p.100).

    Diante disso, julgava Kautsky que a vida do proletariado era superiorem termos econmicos e culturais existncia camponesa, por no viveraquele sob uma "misria suja e degradante" (op. cit., p. 104) como o pequenoprodutor rural. Segundo ele, "mesmo no campo o trabalhador assalariadose considera uma pessoa, no um animal de carga; as necessidades dele somaiores que as do pequeno lavrador. Ele apresenta um grau de cultura maiselevado que o deste ltimo." (op. cit., p. 104-105, grifo nosso). Fica claroque, para o autor, a permanncia do campesinato significava a continuidadede diversas esferas do atraso: econmca, cultural, cientfica e poltica.

    Voltando a Karl Marx, este autor vai externar que a sobrevida docampons francs ocorreu por ser vital gerao de capital, a partir dopagamento da hipoteca da terra, da renda da terra, aos usurrios urbanos(bancos, comerciantes, por exemplo), o que acabou ampliando a misria ea explorao dos pequenos produtores agrcolas, levando-os a ter uma vidaprecria para poder pagar juros pelo arrendamento do solo e manter suaposse da terra a todo custo.

    Mas no decorrer do sculo XIX, os senhores feudaisforam substitudos pelos usurrios urbanos; o impostofeudal referente terra foi substitudo pela hipoteca: aaristocrtica propriedade territorial foi substituda pelocapital burgus. A pequena propriedade do campons agora o nico pretexto que permite ao capitalista retirarlucros, juros e renda do solo, ao mesmo tempo que deixaao prprio lavrador o cuidado de obter o prprio salriocomo puder. A dvida hipotecria que pesa sobre o solofrancs impe ao campesinato o pagamento de uma soma

    204

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o carnpesinato e a vida local rural

    de juros equivalentes aos juros anuais do total da dvidabritnica. A pequena propriedade, nessa escravizaoao capital a que seu desenvolvimento inevitavelmenteconduz, transformou a massa da nao francesa emtrogloditas. Dezesseis milhes de camponeses (inclusivemulheres e crianas) vivem em antros, a maioria dosquais s dispe de uma abertura, outros apenas duas e osmais favorecidos apenas trs. E as janelas so para umacasa o que os cincos sentidos so para a cabea. A ordemburguesa. que no princpio do sculo ps o Estado paramontar guarda sobre a recm-criada pequena propriedadee premiou-a com lauris, tomou-se um vampiro quesuga seu sangue e sua medula, atirando-o no caldeiroalquimista do capital. (MARX, 1997, P 131-132).

    Em situaes como a da Irlanda, Marx analisa que parte da populaorural, que continuava no campo, dedicava cada vez menos seu trabalho atividade agrcola e mais a outros ramos produtivos, principalmente a partirda terceirizao de sua fora de trabalho a empresas confeccionadoras decamisas, que fez da misria da populao rural "a base de gigantescas fbricasde camisas" (MARX, 1980, livro 1, v. 2, p. 819). Ou seja, "encontramos a oj descrito sistema de trabalho a domiclio, que cria trabalhadores suprfluospor meio de salrios de fome e de trabalho excessivo" (MARX, 1980, livro1,v.2,p.819).

    Segundo a noo marxiana, todas essas chagas sociais tomariamimpraticvel a existncia da vida camponesa ao longo do tempo, porque faziada proletarizao algo iminente. A economia campesina no conseguiriamais garantir o sustento da famlia, como havia realizado sculos antes.Sucumbiria diante de uma nova realidade econmica. Sua produo, decarter limitado, seria frgil no enfrentamento de produtos advindos dogrande empreendimento agrrio e da concorrncia comercial com produtosagropecurios provenientes de outras partes do globo. Sendo assim, o fim docampesinato e sua converso em assalariados estaria no horizonte prximoda histria.

    205

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho. Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    4 Algumas consideraes finais

    o tema da Questo Agrria e do Campesinato continua sendo algo noresolvido no campo da esquerda. Para que isto seja notado, basta mencionara prpria polrnica que envolve o MST, no caso de sua idia sobre reascoletivas nos assentamentos, e os limites que algumas lideranas aindaenxergam na posse da propriedade rural camponesa, bem como centenasde estudos acadmicos que emergem das universidades a cada ano sobre atemtica mencionada. Ademais, o prprio dilema que envolve a capacidadedos sujeitos sociais locais e de seus modos tradicionais de existncia deresponder ao capitalismo global sem se deixar sucumbir a ele permanecetambm bastante atual.

    As teses edificadas por Marx e Engels continuam, assim, dialogandocom o nosso tempo e inspirando novas geraes de pensadores sociais, pelafora que possuem para explicar inmeras situaes e realidades . De fato,no podem e nem devem ser descartadas, mas entendidas como elementosessenciais para se avaliar o debate presente e os estgios pelos quais passoue no qual se encontra o modo de produo capitalista. Todavia, devem essasteses ser compreendidas sob diferentes aspectos: por um lado, como resultadodo tempo em que viveram esses autores e dos elementos socioeconmicose polticos inerentes s suas pocas; e. por outro, pela capacidade que aindatm de explicar o nosso momento sem dogmatismos e imposies analticasarbitrrias, levando-se em conta a riqueza metodolgica que respaldaramsuas concluses.

    Referncias BibliogrficasABRAMOVAY, Ricardo. 1998. Paradigmas do capitalismo agrarto emquesto. 2a . ed. Campinas: Editora da Unicamp; So Paulo: Hucitec.

    DANIELSON, N. F. 1982. N. F. Danielson a F. Engels. ln: FERNANDES,Rubem Csar (Org.). Dilemas do socialismo: a controvrsia entre Marx,Engels e os populistas russos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. P. 205-251.

    ENGELS, Friedrich. 1981. O problema campons na Frana e na Alemanha.ln: SILVA, Jos Graziano; STOLCKE, Verena (Orgs.). A questo agrria:

    206

  • A viso escatolgica de Marx e Engels sobre o carnpesinato e a vida local rural

    Weber, Engels, Lnin, Kautsky e Chayanov. So Paulo: Brasiliense. P. 59-80.

    ___o 1982. N. F. Danielson e F. Engels. ln: FERNANDES, RubemCsar (Org.). Dilemas do socialismo: a controvrsia entre Marx, Engels e ospopulistas russos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. P. 205-251.

    1982a. A questo social na Rssia. ln: FERNANDES, RubemCsar (Org.). Dilemas do socialismo: a controvrsia entre Marx, Engels e ospopulistas russos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. P.141-155.

    HOBSBAWM, Eric. 1998. Os camponeses e a poltica. ln: . Pessoasextraordinrias: resistncia, rebelio e jazz. 2a. ed. So Paulo: Paz e Terra.P.215-239.

    . 1995. Era dos extremos: o breve sculo XX - 1914-1991. 23 ed. SoPaulo: Companhia das Letras.

    HUGO, Victor. S.d. O Noventa e trs. So Paulo: Martins.

    LEFEBVRE, Henri. 1999. A revoluo urbana. Belo Horizonte: Ed.UFMG.

    LNIN, Vladimir Ilitch. 1978. O Problema Agrrio 1. Belo Horizonte:Histria; Aldeia Global.

    ___o 1981. O capitalismo na agricultura: o livro de Kautsky e o artigodo senhor Bulgkov, ln: SILVA, Jos Graziano; STOLCKE, Verena (Orgs.).A questo agrria: Weber, Engels, Lnin, Kautsky e Chayanov. So Paulo:Brasiliense. P. 81-126.

    ___o 1982. O desenvolvimento do capitalismo na Rssia: o processode formao do mercado interno para a grande indstria. So Paulo: AbrilCultural.

    LINHART, Robert. 1983. Lnin, os camponeses, Taylor. Rio de Janeiro:Marco Zero.

    LUK.CS, Georg. 2003. Histria e conscincia de classe. So Paulo: MartinsFontes.

    LUXEMBURG, Rosa. 1988. A questo nacional e a autonomia. BeloHorizonte: Oficina de Livros.

    207

  • Cristiano Wellington Noberto Ramalho, Raimundo Nonato Pereira Moreiras

    KAUTSKY, Karl. 1986. A questo agrria. So Paulo: Nova Cultura.

    MARX, Karl. 1980. O capital: crtica da economia poltica. Livro I, v. I. sa.ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira.

    . 1980. O capital: crtica da economia poltica. Livro I, v. 2. 6. ed.---

    Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira.

    . 1982. Vera Zasulitch e Karl Marx. ln: FERNANDES, Rubem---

    Csar (Org.). Dilemas do socialismo: a controvrsia entre Marx, Engels e ospopulistas russos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. P. 169-188.

    ___o 1997. O 18 Brumrio e Cartas a Kugelmann. T', ed. Rio de Janeiro:Paz e Terra.

    MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. 1989. Manifesto do Partido Comunista.So Paulo: Anita Garibaldi.

    SIMMEL, Georg. 1969. A metrpole e a vida mental. ln: VELHO, OtvioGuilherme (Org.). O fenmeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar. P. 13-28.THOMPSON, E. P. 1987. Aformao da classe operria inglesa: a maldiode Ado. 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. V. 2.

    WEBER, Max. 2002. Capitalismo e sociedade rural na Alemanha. ln: __. Ensaios de sociologia. sa edio. Rio de Janeiro: LTC Editora. P.253-267.

    ZASULITCH, Vera. Vera Zasulitch e Karl Marx. ln: FERNANDES, RubemCsar (Org.). Dilemas do socialismo: a controvrsia entre Marx, Engels e ospopulistas russos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. P. 169-188.

    208