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SEMINÁRIO NACIONAL DA VIDA CONSAGRADA
Tema: “Mística e Profecia na missão comunitária”.Lema: “Saiamos, às pressas, com Maria, aonde clama a vida”.
Conferência
“O MUNDO QUE NOS TOCA”
Prof. Dr. Sérgio Ricardo Coutinho1
Introdução: vivemos tempos escatológicos
Desde do ano de 2008 estamos enfrentando uma crise, primeiramente financeira, que se
alastrou a partir dos Estados Unidos e que nos alcançou muito mais que imaginávamos,
bem mais que as “marolinhas” que foram previstas inicialmente.
Que palavras ouvimos desde 2008? “Crise”, “recessão”, “depressão”, mas também
“mutação (profunda)” e até “mudança de época”. “Nada mais será como antes”, alguns
proclamaram rapidamente. No entanto, outros respondem: “As coisas retomarão seu
curso natural com igual vigor; percebem-se algumas recuperações, e a retomada está
próxima, já se vê uma saída, não, a recessão ainda não terminou ou está recomeçando,
mais ameaçadora ainda e, de todo modo, o desemprego deve (ainda) aumentar, e os
únicos planos possíveis são os de demissões coletivas”.
Estaríamos chegando ao fim da globalização neoliberal? Seria o fim de uma etapa do
capitalismo? Ou seria o fim do próprio capitalismo? Chegamos ao “fim dos tempos”?
Apesar de constatarmos que, uma vez superada às pressas a crise financeira de 2008,
reinou e reina por toda parte uma extrema dificuldade para enxergar além. Mais reação do
que ação. Razão do valor tranquilizador de uma fórmula expressa na palavra “retomada”
(retomar significa, de fato, reiniciar de onde se estava), diretamente ligada à nossa
1 Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor do Departamento de História das Faculdades Integradas UPIS-DF, de História da Igreja no Instituto São Boaventura-DF (OFM Conv) e de Ensino Religioso no Colégio Marista João Paulo II (DF). Ex-assessor da Comissão Pastoral para o Laicato da CNBB.
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incapacidade coletiva de escapar ao que agora se tornou usual chamar da “busca do
ganho imediato”, “o ganho aqui e agora”, o que o historiador francês François Hartog
chama de “presentísmo”. O presente único: o da tirania do instante e da estagnação de
um presente perpétuo.
O que o historiador, como eu, pode propor para um olhar crítico sobre a conjuntura de
crise em que vivemos? A expressão “retomada” não faz evidentemente parte dos
atributos do historiador. No entanto, ele pode convidar (e como historiador o faço a todos
aqui presentes) a um desprendimento do presente, graças à prática do olhar distanciado.
Isto é, a um distanciamento. E proponho um instrumento para isso: o regime de
historicidade. Esta ferramenta heurística auxilia a criar distância para, ao término da
operação, melhor ver o próximo.
O termo “regime de historicidade” expressa a forma da condição histórica, a maneira
como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve no tempo. É uma
categoria que pode tornar mais inteligível as experiências do tempo. Como passado,
presente e futuro se articulam numa determinada sociedade e num determinado momento
histórico. Especialmente quando devemos dar atenção muito particular aos momentos de
“crise do tempo” e às suas expressões, como estamos vivendo agora, visando produzir
mais inteligibilidade. Neste momento presente, sentimos uma nostalgia do passado e
desejamos trazê-lo para hoje? Ou fixamos nosso olhar num futuro que será melhor? Ou
tememos o futuro, pois seria um lugar de dor, de privações, de distopia?
Minha hipótese, que não é exclusivamente minha mas partilho com a hipótese do filósofo
esloveno Slavoj Zizek: vivemos no “fim dos tempos”. Ou seja, estamos em pleno período
Escatológico. Tempo de esperança ou tempo de medo?
Mais que causar-nos reações de medo e incertezas, queremos é estimular ações. Como
agir quando o fim dos tempos se aproxima?
Precisamos, em primeiro lugar, fazer um esclarecimento conceitual-semântico para o
termo “Escatologia”. Mesmo não sendo teólogo, vou me arriscar neste campo. Acho
necessário dedicar um pouco de tempo sobre esta noção.
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A escatologia (disciplina teológica muito articulada com a soteriologia, que cuida dos
estudos sobre a salvação) não é apenas a teologia dos “novíssimos”, das coisas novas,
céu, inferno e purgatório. É possível observar que a escatologia também é o estudo
teológico do éschaton (quando o fim vai chegar? Quando se darão as últimas coisas?).
Como desdobramento deste assunto, surge a problemática acerca do tempo e da história.
E isso me interessa.
O historiador irlandês, radicado nos EUA, especialista em Cristianismo primitivo, John
Dominic Crossan, apresenta diferentes noções do tempo que vieram do mundo antigo e
da tradição judaica, na época de Jesus. Ele diferencia “escatologia apocalíptica” de
“escatologia sapiencial ou ética”.
A escatologia apocalíptica anuncia o apocalipse (palavra grega que significa “revelação”)
da intervenção divina iminente e cataclísmica (Ele manda sinais: chuvas ou secas
intensas, terremotos, erupções vulcânicas...), para restaurar a paz e a justiça de um
mundo desordenado. Se depois disso existirá o paraíso na terra ou a terra no paraíso,
não fica muito claro, mas eles, os maus, desaparecerão para sempre e nós, os
abençoados, estaremos no comando sob as ordens de Deus.
De fato, a vertente apocalíptica do tempo de Jesus, representada nos mais diversos
grupos ideológicos, ocupava-se ardorosamente com essa questão acerca do “quando”.
Além do colorido nacionalista-terreno do objeto de muitas de suas esperanças, para o
judaísmo fazia-se uma ideia muito própria acerca da realização dos últimos tempos (o
tempo escatológico da consumação definitiva das bênçãos e bens ligados à vinda do
reinado de Deus): eles se realizariam em uma troca completa e total do velho “eón” pelo
novo “eón”2 como que em uma ordem sucessiva. O novo eliminaria e substituiria o antigo.
Jesus também viveu uma “crise do tempo”, um tempo marcado pelo imperialismo
colonialista do Império Romano, pelo monopólio religioso dos saduceus do Templo e pela
expectativa da chegada de um Messias salvador da linhagem davídica. Para enfrentá-lo,
Jesus também acreditava nas expectativas escatológicas. Diz assim o texto
neotestamentário: “Depois de João ter sido preso, Jesus veio para a Galileia. Ele pregava 2 É uma medida de tempo geológica; imensurável período de tempo.
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a Boa Notícia do Reino e dizia ‘Completou-se o tempo, o Reino de Deus está próximo.
Convertei-vos e acreditai na Boa Notícia’”. (Mc1, 14s).
A escatologia de Jesus era de um outro tipo: escatologia ético-sapiencial. A escatologia
ético-sapiencial enfatiza a sapiência (a sabedoria) de como se deve viver hoje, aqui e
agora, de forma que o poder presente de Deus seja convenientemente óbvio para todos.
A escatologia apocalíptica é a negação do mundo pela ênfase na iminente intervenção
divina: nós esperamos pelos atos de Deus; já a escatologia ético-sapiencial é a negação
do mundo pela ênfase na imitação divina imediata: Deus espera pelos nossos atos. A
primeira é a mensagem de João Batista; a última, a de Jesus.
Os termos da escatologia proposta por Jesus, e vivenciada por seus primeiros seguidores
e seguidoras, se apresenta como “a resistência não-violenta ao mal estrutural”, o “protesto
não-violento contra o mal sistêmico, contra as situações usuais da discriminação,
exploração e opressão deste mundo”. O movimento do reino de Deus começou fazendo
‘da necessidade social uma virtude ética’, isto é, recusando-se a considerar a injustiça
que sofriam, normal e aceitável a Deus.
Para analisarmos a crise do tempo presente propomos anunciar uma “boa notícia”: “o
tempo se completou”, estamos vivendo o fim dos tempos, vivemos tempos escatológicos.
Para lermos este tempo, proponho o mesmo roteiro que o filósofo esloveno Zizek
elaborou em seu livro “Vivendo no Fim dos Tempos”, um regime de historicidade não
atravessado por um tom apocalíptico, mas com uma visão otimista, ao lado de um senso
de responsabilidade política.
Sem banalizar o desafio de superar o fim dos tempos, Zizek nos alerta para a
necessidade de passarmos pelo ritual do luto, encarando os seus traumas e o seu vazio
substancial como oportunidades que não devem ser perdidas. E cita Mao Tsé-Tung, líder
da revolução cultural chinesa: “Há uma grande desordem sob o céu, a situação é
excelente”. A tradução disso seria que a inconsistência do grande Outro, desse Céu que
nos cobre (e nos cobra), e que muitas vezes ficamos no aguardo de um intervenção
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divina, abre espaço para o verdadeiro ato revolucionário, que transforma os parâmetros e
o nosso posicionamento no mundo.
O grande mote e elemento estruturador deste regime de historiciadade são os cinco
estágios, os cinco tempos, característicos do luto segundo o entendimento da psicóloga
suíça Elisabeth Kübler-Ross: 1) Negação – isto não pode estar acontecendo, não comigo;
2) Raiva – como isto foi acontecer comigo?; 3) Barganha – deixe-me viver pelo menos até
meus filhos se formarem...; 4) Depressão – vou morrer, então por que me preocupar?; 5)
Aceitação – já que não posso lutar contra isto, é melhor me preparar. Estes estágios
apareceriam em qualquer tipo de perda pessoal catastrófica, da perda de um emprego à
de um ente querido, não necessariamente nessa ordem e sem que todos eles sejam
sempre vividos. Para Zizek estariam aí as cinco grandes posturas da atual cena (pós)
política global, tomando a última, a da Aceitação, como oportunidade ímpar de um
recomeço.
Passei pela experiência de dois canceres, vi o fim dos tempos muito próximo, a finitude da
vida, e passei por cada um dos estágios de Kübler-Ross. Graças à Deus, a Boa Notícia foi
a extirpação do câncer e a vida voltou “em abundância”.
Vamos analisar nossa conjuntura.
1) Negação – fim da globalização e obscurecimento ideológico
Segundo o historiador americano Marc-William Palen, o retorno ao protecionismo, assim como a
ascensão de políticas contra imigração, são "um retorno ao status quo que havia antes da
Segunda Guerra Mundial", uma reação populista à crise financeira global, e se manifesta de forma
semelhante em vários países do mundo, e que pode levar a uma desintegração sem precedentes
da ordem econômica global.
O protecionismo não apareceu de repente, e fez parte consistentemente da campanha que levou
Donald Trump à Presidência, com o argumento de colocar "os Estados Unidos em primeiro lugar"
("America First").
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Trump sempre deixou claro que acha que a globalização e o livre mercado são palavrões -
chegando a chamar "livre mercado" de "mercado estúpido". O argumento dele é que é importante
proteger e gerar empregos em alguns setores nos EUA. No caso atual é a indústria do aço e do
alumínio (que afeta muito o Brasil).
Neste sentido, o retorno mundial a políticas econômicas nacionalistas e políticas anti-imigração
são um retorno ao status quo que havia antes da Segunda Guerra Mundial. Vemos isso
claramente no Brexit, com o Reino Unido alegando que vai defender o retorno do livre mercado
internacionalmente enquanto rompe com a União Europeia. Isso enquanto está reagindo para
limitar a imigração.
É uma reação populista à crise financeira global, e se manifesta de forma semelhante em vários
países do mundo.
A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos no fim de 2016, a saída do Reino Unido
da União Europeia no mesmo ano, a quase vitória de Marine Le Pen nas eleições
presidenciais francesas no meio do ano passado. O que todos esses eventos têm em
comum? O ressurgimento de ideias do nacionalismo na contemporaneidade. É um sinal
de negação da crise. Voltar ao passado.
O nacionalismo que vemos hoje nas democracias consolidadas é muito diferente daquele
da Alemanha nazista e do Brasil dos anos 30. Afinal, o mundo está muito diferente. Não
tão presente no culto aos símbolos, como o hino e a bandeira; traz um pano de fundo
étnico, relacionado à crise de refugiados, que buscam abrigo em outros países, por
exemplo. Em alguns países há vontade de não tê-los em seu próprio território, o “medo”
que isso acabe com a cultura do povo de algum lugar e influencie negativamente na
preservação de suas tradições, tal qual o antigo nacionalismo.
Esta negação se desdobra em raiva.
2) Raiva – intolerância e preconceito
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O crescimento dos crimes de ódio é um fenômeno global. Sustentada por preconceitos e
por valores fundamentalistas, temos observado uma onda de violência desmedida em
diversos lugares do planeta, exatamente no momento em que explodem os meios de
comunicação, o que, em tese, deveria garantir maior acesso à informação.
O ataque a igrejas das comunidades negras nos Estados Unidos, ou de terreiros de
candomblé no Brasil, o espancamento de casais homoafetivos nas metrópoles
brasileiras ou, simplesmente, de pessoas que se acredita serem homoafetivos (como num
caso recente onde pai e filho foram espancados por simples manifestação de carinho), o
incêndio criminoso de mesquitas na França, o massacre diário de palestinos pelo governo
de Israel, são apenas alguns exemplos de aberrações que vivenciamos todos os dias.
Pior do que isto, o simples ato de ser levantada opinião contrária à dos ofensores ou dos
grandes meios de comunicação também acaba resultando em ameaças, perseguições e
agressões. A internet, que deveria ser o caminho da disseminação das informações
transformadoras, tem sido canal de propaganda da violência moral, da étnica, da sexual e
da simbólica.
Se durante o Iluminismo a luta por liberdade de imprensa e de opinião resultou numa
conquista sem precedentes para a humanidade, criando os alicerces para a derrubada de
impérios absolutistas, no mundo contemporâneo, na maior parte das vezes, os meios de
comunicação não oferecem suporte à democratização da sociedade. Infelizmente, não
são raros os exemplos nos quais a mídia de massa funciona como elemento de fomento a
ódios, preconceitos e violência desmedida, como no caso do nazismo, do fascismo, e da
islamofobia instaurada depois de 11 de setembro. Aqui no Brasil, vem se fomentando,
como um desdobramento do anticomunismo tradicional, uma espécie de PTfobia (medo e
rejeição de quem se simpatiza ou apoia o Partido dos Trabalhadores).
Os meios de comunicação, especialmente os canais de televisão, cumprem um papel
decisivo no fomento ao preconceito, especialmente através da construção de arquétipos,
de personagens onde o oprimido é sempre objeto de piadas. Portanto, os grandes meios
de comunicação, dominados por oligopólios e grupos conservadores, também são o ponto
de partida para vários crimes de ódio.
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Num evento pré-campanha eleitoral em 2014, a novela Meu Pedacinho de Chão, da Rede
Globo de televisão, direcionada a um público infanto-juvenil, com primoroso trabalho
estético e com rara qualidade de direção e interpretação, mesmo com sua projeção
atemporal, apresentou todos os personagens negros como empregados, criticou o direito
de voto dado aos analfabetos, uma conquista democrática de 1988, sem questionar a
origem do problema, transformando trabalhadores analfabetos em pessoas
desinteressadas na aprendizagem e converteu o Coronel, vilão da história, em herói
redimido, num gritante retrocesso em relação ao roteiro da novela original, que foi
construída sobre o alicerce da crítica social.
O que era para ser uma obra de arte, nos momentos citados foi palco para a
disseminação de preconceitos de forma subliminar, e reforço para a campanha de ódio
contra formas de pensar democráticas que é exercitado no dia a dia pelos telejornais da
emissora. Por sinal, as novelas da Rede Globo, com raras exceções, sempre foram
instrumentos de construção de arquétipos destinados ao controle dos avanços sociais.
Vejam o exemplo “do bom e do mau sem-terra” no péssimo roteiro da reprisada novela O
Rei do Gado, uma “obra-prima do preconceito”.
E aqui nem falo de uma recente novela das 18 horas (Buggy Uggy) ambientada na
década de setenta, que tinha um militar moralista como “pai de família exemplar”, e não
fez qualquer referência aos crimes praticados durante a “ditadura verde oliva” exercitados
na mesma época. Também nem falo da reiterada imposição da “ditadura da maternidade”
pelas novelas como única forma concreta de realização feminina. Normalmente as
personagens que não sonham em ser mães são apresentadas como vilãs ou satirizadas,
em síntese: mais uma forma de preconceito propagandeado.
Nesses folhetins televisivos vemos a construção de “bons políticos” que pregam discursos
de um moralismo lamentável, enquanto passam o tempo todo convivendo de forma
pacífica com seus parceiros e “bons correligionários”: latifundiários, grandes empresários,
jornalistas com condutas duvidosas e famílias tradicionais. Ou seja, “nas novelas globais,
o bom político é sempre aquele que defende o ideário e os interesses da emissora,
mesmo que estes estejam em conflitos com o avanço da democracia”.
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No ano de 2011, os canais da Discovery divulgaram um interessante documentário sobre
o “perfilhamento racial” nos Estados Unidos e a forma como a polícia, mesmo em Illinois,
reduto eleitoral de Barack Obama, continua prendendo pessoas de forma indiscriminada e
sem justificativa com base em elementos étnicos, muitos dos quais terminam na morte
dos acusados, sempre negros, pela ação policial. No Brasil, infelizmente, isso foi
naturalizado e banalizado.
Em algumas situações observamos a autovitimização do opressor como instrumento de
pregação do preconceito e de perpetuação do poder dominante, como nos discursos
inflamados de brancos contra as políticas de cotas e de ação afirmativa, ou a patética
conduta de alguns parlamentares e religiosos brasileiros defendendo o “orgulho hétero”,
num claro ato de homofobia.
Aliás, enquanto o direito civil caminhou durante milhares de anos, desde a sua matriz
romano-germânica, para reconhecer que não existe direito “de família”, mas “de famílias”,
em suas diversas formas, observamos a lamentável tentativa de retrocesso, com a
tramitação no Congresso Nacional brasileiro, em 2013, do projeto de lei do Estatuto da
Família, aprovado pela Comissão em 2015 e encaminhado ao Senado, mais um
arremedo de fundamentalismo, sexismo e homofobia.
O uso de símbolos opressivos ainda é pouco enfrentado na sociedade brasileira, mesmo
que a violência simbólica seja criminalizada na “Lei Maria da Penha”. Este tipo de
violência ainda é visto por determinados setores da sociedade como não violência, como
algo que afeta apenas a subjetividade das vítimas. Assim, a violência simbólica segue
servindo como ponte para diversos tipos de preconceitos, ou como porta de passagem
para a violência física sem nenhum tipo de controle.
Portanto, se formos buscar a fonte da disseminação inconsequente dos crimes de ódio,
não poderemos deixar de questionar o papel dos meios de comunicação de massa, ou da
ação de alguns ocupantes de assentos nos Parlamentos. Enquanto aceitarmos de forma
acrítica que valores conservadores sejam impostos às nossas casas todos os dias pelo
rádio, televisão ou internet, ou que o presidente da Câmara vá ao púlpito do Congresso
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para ofender minorias, ou negarmos a violência simbólica, ainda continuaremos
convivendo com a chaga do preconceito.
O capitalismo ainda busca brechas para sobreviver e como seu núcleo duro é a
expropriação/exploração do trabalhador, ele barganha com novas formas de trabalho.
3) Barganha – uberização do trabalho
Assistimos nas últimas décadas a uma transformação extensa (mas desgraçadamente no
interior das condições caracteristicamente capitalistas) das relações de emprego.
Intensificam-se expropriações secundárias de diversos tipos. Vamos nos ocupar apenas
da expropriação secundária dos contratos de trabalho, que atinge trabalhadores urbanos,
em muitos casos já secularmente expropriados dos meios de produção (terra e seus
instrumentos de trabalho). Por diversas razões – internacionalização da circulação de
capitais contraposta ao relativo encapsulamento dos trabalhadores em âmbitos nacionais;
ampliação das expropriações primárias nas periferias, levando a uma disponibilidade
crescente de trabalhadores em mercados de trabalho distantes, o que leva ao
aprofundamento de tecnologias voltadas para a interconexão e o transporte –, formas
secundárias de subordinação de trabalhadores já existentes passaram a se disseminar e
a assumir papel de destaque: o trabalho por peças, trabalho a domicílio, os estágios
(período complementar à formação educativa, em diversos níveis) e as empresas de
alocação de mão de obra (terceirização genérica). Forneceram um molde para a
subordinação dos trabalhadores ao capital para além do emprego. A expansão do
capitalismo em escala internacional é simultaneamente a produção de mais trabalhadores
(expropriações), capazes de produzir mais-valor, e de desemprego. Em outras palavras,
pode haver mais trabalho e menos emprego. As formas mais conhecidas são tecnologias
que dispensam trabalhadores, processos nacionais ou internacionais de deslocalização
de empresas, ou ainda ataques diretos contra direitos conquistados, quando e onde
porventura tenham ocorrido melhorias das condições salariais e organização de
trabalhadores para assegurar limites legais à jornada e às condições de trabalho.
Na atualidade, explorando intensamente as contradições experimentadas pelos
trabalhadores nas suas relações de emprego, está em curso um processo de
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subordinação direta – sem a mediação de emprego ou contrato – dos trabalhadores às
mais variadas formas de capital. Multiplicaram-se as modalidades jurídicas para
enquadrar tais situações, seccionando desigualmente direitos das relações concretas
(efetivas) de trabalho. Assim, ao lado da permanência de empregos com contratos
regulares (e direitos), multiplicam-se formas paralelas, com contratos parciais (tempo
determinado, jornada parcial ou alongada), terceirizações em vários níveis
(subcontratações), subordinação sem contrato (bolsistas, estagiários etc.), salário por
peças, trabalho a domicílio, pessoa jurídica (quando o trabalhador cria uma empresa cujo
objetivo é vender sua força de trabalho, uma das modalidades do empreendedorismo, na
qual o próprio trabalhador torna-se “empresa”, para a qual não estão previstos direitos
trabalhistas, ou ainda “trabalho voluntário”, quando trabalhadores aceitam realizar tarefas
“sociais” com a expectativa de posteriormente conseguirem empregos).
Melhor, talvez, do que uma longa explicação teórica seja detalharmos um exemplo sobre
algo muito corriqueiro: o Uber. Seu enorme impacto já gerou novos termos, como a
“uberização das relações de trabalho” e um verbo, uberizar. Vamos nos ocupar,
sobretudo, dessa empresa específica, mas ela não é nem original, nem a única. A forma
como opera atravessa diversos setores (alojamento e transporte, financiamento, produção
etc.), estimulada por processos explícitos de “incubação”, através de startups3, gerando
várias modalidades da assim mal-chamada “economia colaborativa”. Há um senso
comum que trata delas como expressão de “tecnologia”, produtoras de bens “imateriais”,
mera maquininha plataforma “reunindo consumidores e ofertantes de serviços”, como se
fossem “lojas” ou “esquinas” virtuais. Fortemente influenciado por think tanks4
empresariais e pela propaganda disseminada na mídia proprietária, o senso comum tende
a esquecer o aspecto de produção de valor (e, sobretudo, de mais-valor) que
representam. Um dos pontos de partida pode ser localizado em atividades originadas em
projetos antimercantis, estimulando iniciativas socialmente compartilhadas sem fins
econômicos. As incubadoras tornaram-se a maneira pela qual o grande capital fomenta
startups para expropriar tais possibilidades criadas para evitar o mercado. Um exemplo é
3 Uma empresa com custos de manutenção muito baixos, mas que consegue crescer rapidamente e gerar lucros cada vez maiores.4 São instituições ou organizações dedicadas a produzir e difundir conhecimento sobre temas políticos, econômicos ou científicos.
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a plataforma Linux, não proprietária, que atualmente integra celulares Android (Samsung)
e grandes empresas de informática; outro é a web, convertida em base de controle sobre
a população em escala planetária. Suas imensas possibilidades jamais se converteram
em enfrentamento da dinâ- mica social concreta do capitalismo, que gera e reproduz
mercados através de expropriação, concentração de recursos sociais e extração de mais-
valor. Decerto, parte desses novos processos e técnicas nasce como inquietações frente
às intensas contradições aguçadas pelo capitalismo e apontam para novas e poderosas
possibilidades, mas precisam ser exploradas de maneira crítica. Não à maneira de muitos,
fascinados, como se essas experiências fossem imediatamente o que dizem ser
(“colaborativas”, “livres”, “bens comuns”). Ao contrário, é preciso identificar as relações
reais que acolhem seu nascimento, suas formas específicas de adaptação às formas
concentradas do capital, sua generalização e, por fim, as possibilidades e tensões novas
que introduzem na relação entre capital e trabalho.
Essas iniciativas não acabam com o trabalho, mas aceleram a transformação da relação
empregatícia (com direitos) em trabalho isolado e diretamente subordinado ao capital,
sem mediação contratual e desprovido de direitos. Antes como depois, o interesse central
do capital prossegue sendo a extração e a captura do mais-valor.
4 – Depressão – paradoxo das redes sociais: novas formas de patologia subjetiva
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, foi um dos mais ferozes críticos da modernidade e
da sociedade de consumo, e em uma recente entrevista com o jornal El País fez algumas
apreciações sobre o desencanto que estamos vivendo ante as políticas neoliberais e a
inundação tecnológica.
O sociólogo polonês diagnosticou que a promessa neoliberal de que a riqueza de uns
tantos acabaria se derramando para outros estratos da sociedade se revelou como uma
grande mentira, e a desigualdade segue crescendo sobre esta promessa. Assim se cria o
que chama um "precariado", uma sociedade precária que sofre as expensas de uma
minoria privilegiada.
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O desencanto está chegando a um ponto crítico segundo ele:
"O que está acontecendo agora, o que podemos chamar a crise da democracia, é o
colapso da confiança. A crença de que os líderes não só são corruptos ou estúpidos,
senão que são incapazes. Para agir é preciso poder: ser capaz de fazer coisas; e precisa-
se política: a habilidade de decidir que coisas têm que ser feitas.
A questão é que esse casamento entre poder e política em mãos do Estado-nação
terminou. O poder globalizou, mas as políticas são tão locais como antes. A política tem
as mãos cortadas. As pessoas já não creem no sistema democrático porque não cumpre
suas promessas. É o que está acontecendo, por exemplo, com a crise da migração. O
fenômeno é global, mas agimos em termos paroquianos.
As instituições democráticas não foram desenhadas para manejar situações de
interdependência. A crise contemporânea da democracia é uma crise das instituições
democráticas."
Bauman considera que a visão que foi promovida é a de um individualismo rasteiro que
produz uma perda do sentido de comunidade, um "ativismo de sofá" desvinculado das
ações que realmente podem fazer uma diferença. A isto contribui o adormecimento
generalizado dos meios digitais, especialmente das interações mediadas em redes
sociais. Talvez a Internet não seja um instrumento tão revolucionário como pensamos, diz
ele:
"A questão da identidade foi transformada em uma tarefa impossível: as pessoas agora
têm que criar suas próprias comunidades. Mas não se cria uma comunidade, ou você a
tem ou não; o que as redes sociais podem criar é um substituto, um paliativo que não
serve praticamente a nenhum princípio.
A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a rede
pertence a você. Você pode acrescentar amigos e pode deletá-los, escolher as notícias
que quer ou não ler e controlar as pessoas com a quais se relaciona. As pessoas se
sentem um pouco melhor porque a solidão é a grande ameaça nestes tempos de
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individualização. Mas nas redes é tão fácil acrescentar amigos ou apagá-los que não são
necessárias habilidades sociais.
As habilidades sociais são desenvolvidas apenas quando estamos na rua, ou quando
vamos ao local de trabalho, e nos encontramos com outras com as quais temos uma
interação razoável. Aí sim temos que enfrentar as dificuldades, desenvolver um diálogo.
Como exemplo, o papa Francisco, que é um grande homem, ao ser eleito deu sua
primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um auto-proclamado
ateísta. Foi um sinal: o diálogo real não é falar com pessoas que pensa o mesmo que
você. As redes sociais não ensinam a dialogar porque é fácil evitar a controvérsia...
Muita gente usa as redes sociais não para unir, não para ampliar seus horizontes, senão
ao invés, para se encerrar no que chamo zona de conforto, onde o único som que ouvem
é o eco de sua voz, onde a única coisa que veem são os reflexos de sua própria cara. As
redes são muito úteis, dão serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha."
A chave parece estar em nossa relação editada, comodificada com os outros nas redes
sociais, o que não nos permite confrontar com a realidade da diferença do mundo das
ruas, podemos criar nosso próprio universo fechado, inoculado, a salvo de ter que ver o
que não gostamos. Podemos controlar o que vemos e o que nos dizem desde a
comodidade de nosso sofá. Isto é evidentemente uma ilusão; talvez estas plataformas
digitais estejam muito próximas a uma trilha perfeita em direção a idiocracia.
5 – Aceitação – sinais do surgimento da subjetividade emancipatória e práticas de democracia participativa: economia solidária e as ocupações estudantis em escolas públicas
A emergência de modos mais solidários de produzir, distribuir e consumir evidencia as
potencialidades positivas da contemporaneidade, que também engendra seus novos
processos de subjetivação num sentido emancipatório, considerando a emancipação
como liberdade para criar territórios existenciais singulares através de coletivos potentes.
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Entender o sujeito dentro da concepção e do projeto de emancipação significa, porém,
pensá-lo e inscrevê-lo dentro de múltiplas possibilidades. O sujeito solidário, mas livre,
precisa poder escolher, intersubjetivamente, dentro de seu contexto, a melhor forma de
emancipação. O caráter contraditório das relações sociais na contemporaneidade abre
espaços para que distintos atores sociais busquem oportunidades para o
encaminhamento de suas demandas, incluindo aqueles que se veem sem possibilidades
de inclusão digna no mercado de trabalho predominantemente capitalista.
Diante dessa realidade, o trabalho associativo e cooperativo parece ser uma das
respostas viáveis, em termos de condições e meios de trabalho, ao considerar-se o
empobrecimento das populações e a falta de oferta de emprego. O Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento faz a distinção entre o crescimento econômico que é
favorável aos pobres (pro-poor) e o crescimento que discrimina os pobres (anti-poor).
Mesmo havendo um relativo crescimento econômico, os pobres não conseguem integrar-
se no processo de expansão, podendo tornar-se o trabalho veículo de precarização e não
de melhoria da qualidade de vida dos que trabalham.
A formação de redes de produção e consumo solidários acrescenta aspectos como
reciprocidade e vínculos sociais fortalecidos à lógica econômica, podendo consolidar o
papel da economia solidária no desenvolvimento de atividades econômicas e de geração
de renda com justiça social e responsabilidade ambiental. A força dos Empreendimentos
Econômicos Solidários reside no fato de eventualmente combinarem o espírito
empresarial e o espírito solidário, unindo os vetores da autogestão com os da eficiência.
Entretanto, muitas são as precariedades enfrentadas, especialmente em países da
periferia do sistema mundial, que já ocupam um lugar subalterno na divisão internacional
do trabalho.
O objetivo do empreendimento solidário é a obtenção da quantidade e da qualidade do
produto ou serviço que venha a atender a demanda social, e não apenas maximizar o
lucro. O excedente terá seu destino decidido pelos trabalhadores em assembleia, pois a
propriedade e concepção coletivas dos meios e da gestão do trabalho deverão ser
características do empreendimento solidário. Tais critérios, obviamente, não são
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encontrados de forma absoluta nos empreendimentos, existindo diversos graus de
apropriação dos mesmos, bem como de práticas autogestionárias.
A autogestão diferencia-se da heterogestão, onde a alta cúpula decide, orienta e define os
rumos dos processos da e na produção. Na autogestão, as decisões deverão dar-se no
coletivo, discutindo-se em grupo quais são as ações prioritárias; é definida como o
conjunto de práticas que propicia a autonomia de um coletivo responsável pela concepção
e decisões dos processos de gestão, entendida como um fenômeno multidimensional que
ultrapassa a noção de gerência, abrangendo aspectos políticos, técnicos, psicossociais,
etc. E, certamente, exige novos processos de subjetivação, para que se potencialize a
ação coletiva dos trabalhadores, através das relações entre sujeitos individualmente
propensos ao enfrentamento desses desafios. Sujeitos capazes da operação crítico-
reflexiva de pensar na própria existência, tomando decisões e compartilhando
dificuldades.
Segundo Paul Singer, falecido recentemente, a gestão cooperativa, ou gestão coletiva do
empreendimento por todos os seus sócios através do sistema de “uma pessoa um voto”,
surgiu na Europa no início da industrialização, como forma de superar a oligocracia
empresarial. Tem-se difundido mais intensamente na medida em que o modelo
empresarial predominante no capitalismo globalizado passou a gerar a precarização da
relação assalariada e enfraquecimento das organizações dos trabalhadores. Faz-se
necessário analisar com cuidado as experiências em curso, numa abordagem crítica que
revele pontos positivos e negativos em cada processo. Espera-se, no pólo positivo, a
emergência de uma sociabilidade comunitária, onde sujeito e coletivo sejam dimensões
complementares e onde os conflitos – inevitáveis onde haja pessoas em relação – sejam
trazidos à esfera pública do empreendimento e devidamente reconhecidos como tal.
Mesmo ciente da dificuldade existente nesses processos, pesquisas recentemente
conduzidas permitem afirmar que o trabalho na economia social e solidária, pelo modo de
gestão que lhe é próprio, tende a aumentar os processos de dialogia entre os atores,
propiciando que o circuito de doação e recepção de elementos necessários ao psiquismo
se fortaleça. A oportunidade de falar e manifestar-se em assembleias e reuniões propicia
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que o sujeito se constitua, na ação e na linguagem, na produção simbólica e na interação,
num sentido emancipatório. É com base em observação empírica que se acredita que o
trabalho organizado de forma autogestionária e solidária pode permitir formas de
subjetivação emancipatórias, para além de fórmulas prontas ou ditames da gestão. Não
há nenhuma garantia que esse processo ocorra; mas sua construção será possível na
medida em que a dialogia entre os/as trabalhadores/as for sendo desenvolvida.
As manifestações de 2013 (conhecidas por Jornadas de 2013) trouxeram à tona
seguimentos diversos da sociedade. Mulheres saíram às ruas exigindo respeito,
igualdade de condições e representatividade; jovens bradavam por educação de
qualidade e oportunidades; movimentos sociais se fizeram ouvir, por moradia, terra e
direitos. De fato, o gatilho dos protestos foi o aumento das passagens de transporte
público, mas, tal qual a palavra de ordem da época preconizava, “não é só por vinte
centavos”. Não era e não foi; as reivindicações foram, de maneira dinâmica, se
aprofundando e se diversificando. Com efeito, 2013 expôs uma ferida aberta na
democracia brasileira: a fragilidade, ou mesmo ausência, da identificação dos indivíduos
para com aqueles que deveriam representá-los, a inequívoca e sintomática falta de
representatividade de nossa política.
Um fato já chama a atenção em 2013: uma forte tendência política de autonomismo em
setores das manifestações. Não somente os grupos de tendência anarquista chamados,
genericamente, de Black Blocks, como também outros setores da juventude, que lutavam
por maior participação política, reivindicando um diálogo aberto e horizontal entre
representantes e representados. Nas ocupações paulistas de 2015, essa pauta não só foi
retomada, mas sintomaticamente aplicada na maioria das escolas sob ocupação.
Não somente a dinamicidade com a qual as ocupações se alastraram por todo o estado
foi surpreendente, mas também a demonstração de pertencimento e identidade dos
estudantes para com suas escolas e o tipo de organização implementada durante o
tempo em que ocuparam e geriram autonomamente as unidades escolares. Havia um
senso comum até 2015 de que os estudantes não gostavam de suas escolas, de que as
frequentavam por obrigação. Não obstante, as ocupações demonstram de forma empírica
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que os estudantes criam sim laços afetivos, de identidade e de pertencimento para com
sua realidade e espaço escolar.
A juventude que ocupou as escolas em 2015 assistiu às manifestações de 2013. A
influência de movimentos como o MPL (Movimento Passe Livre) em algumas ocupações
demonstra a herança direta das contestações mobilizadas em 2013. A insatisfação e a
falta de representatividade acabaram por gerar uma relevante tendência ao autonomismo
em 2013, essa disposição foi herdada e aplicada nas ocupações de 2015.
A forma de organização de boa parte das ocupações tomou por princípio o autonomismo.
Não só pelas assembleias deliberativas, mas pelo próprio modo de gerir as escolas.
Comissões foram criadas para lidar com a segurança, com a imprensa, com a limpeza e a
alimentação. A busca de construção de um modelo horizontal chamou a atenção dos
meios de comunicação na época e demonstrou a espantosa capacidade de autogestão
dos jovens.
Mas essa característica democrática e horizontal não se restringe aos métodos
organizacionais. A forma com que os estudantes se apropriaram do espaço escolar
demonstra muito do que se chama de “pedagogia antiburocrática e autodidatismo”. Além
do cuidado demonstrado, os secundaristas não deixaram de entender o papel pedagógico
da escola, assim, oficinas, saraus e aulas públicas faziam parte do cotidiano das
ocupações. Professores e intelectuais foram convidados a palestrar e debater nas escolas
ocupadas; artistas e músicos foram convidados ou se dispuseram a fazer apresentações
para os estudantes das ocupações e para as comunidades dos arredores das escolas.
Se pudermos aprender algo com o movimento de ocupações (que em 2016 estendeu-se a
outros estados) que seja isto: a política deve ser construída sobre o diálogo aberto. A
identidade, mesmo hoje, engendra-se a partir da interação entre sujeitos e escolas,
bairros, colegas e amigos; identidade essa que, amiúde, atualiza-se no espaço virtual das
redes sociais, mas que, invariavelmente, emerge de e converge para o encontro real.
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Considerações finais
Para concluirmos esta análise de conjuntura, Jesus propôs que saibamos olhar/interpretar
os “sinais dos tempos” (Lc 12, 54-56): Então admoestava Ele à multidão: “Quando vedes
surgir uma nuvem na direção do pôr-do-sol, logo dizeis que é sinal de chuva, e, de fato,
assim ocorre. Também, quando sentis soprar o vento sul, proclamais: ‘Haverá calor!’, e
acontece como previstes. Hipócritas! Sabeis muito bem interpretar os sinais da terra e do
céu. Como não conseguis discernir os sinais do tempo presente?
Podemos responder como Mao Tsé-Tung: “Há uma grande desordem sob o céu, a
situação é excelente”.