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O fim do capitalismo já começou Sem notar, estamos entrando em uma era pós-capitalista. No coração das mudanças a vir à  tona está a tecnologia de informação, novas maneiras de trabalhar e o compartilhamento da  economia. Os velhos costumes vão demorar para desaparecer, mas já é hora de ser utópico. Bem vindo à era do campartilhamento. Ilustração de Joe Magee. As bandeiras vermelhas e as marchas do Syriza durante a crise grega, mais a expectativa de  que os bancos seriam nacionalizados, reviveram por um momento um sonho do século 20: a  destruição forçada do mercado vinda de cima. Na maior parte do século XX foi assim que a  esquerda concebeu a primeira etapa de uma economia para além do capitalismo. A força seria  aplicada pela classe trabalhadora, ou nas urnas ou nas trincheiras. A alavanca seria o estado.  A oportunidade viria através de frequentes episódios de colapso econômico. Ao invés disso, nos últimos 25 anos, foi o projeto da própria esquerda que desabou. O  mercado destruiu o plano: o individualismo substituiu o coletivismo e a solidariedade; a  excessivamente expandida força trabalhado ra do mundo parece um "proletariado", mas já não   pensa ou se comporta como tal. Se você passou por tudo isso, sem aprovar o capitalismo, foi uma experiência traumática.  Mas, no processo, a tecnologia criou uma nova saída, e os remanescentes da antiga esquerda -  e todos influenciados por eles - acabam por ter que adotá-la ou morrer. Acontece que o  capitalismo não vai ser abolido por técnicas de marcha forçada, e sim ao criar algo mais  dinâmico que exista, primeiramente, quase despercebido detre o antigo sistema, mas que  

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O fim do capitalismo já começou

Sem notar, estamos entrando em uma era pós-capitalista. No coração das mudanças a vir à

tona está a tecnologia de informação, novas maneiras de trabalhar e o compartilhamento da economia. Os velhos costumes vão demorar para desaparecer, mas já é hora de ser utópico.

Bem vindo à era do campartilhamento. Ilustração de Joe Magee.

As bandeiras vermelhas e as marchas do Syriza durante a crise grega, mais a expectativa de

que os bancos seriam nacionalizados, reviveram por um momento um sonho do século 20: a

destruição forçada do mercado vinda de cima. Na maior parte do século XX foi assim que a

esquerda concebeu a primeira etapa de uma economia para além do capitalismo. A força seria

aplicada pela classe trabalhadora, ou nas urnas ou nas trincheiras. A alavanca seria o estado.

A oportunidade viria através de frequentes episódios de colapso econômico.

Ao invés disso, nos últimos 25 anos, foi o projeto da própria esquerda que desabou. O

mercado destruiu o plano: o individualismo substituiu o coletivismo e a solidariedade; a

excessivamente expandida força trabalhadora do mundo parece um "proletariado", mas já não

pensa ou se comporta como tal.Se você passou por tudo isso, sem aprovar o capitalismo, foi uma experiência traumática.

Mas, no processo, a tecnologia criou uma nova saída, e os remanescentes da antiga esquerda -

e todos influenciados por eles - acabam por ter que adotá-la ou morrer. Acontece que o

capitalismo não vai ser abolido por técnicas de marcha forçada, e sim ao criar algo mais

dinâmico que exista, primeiramente, quase despercebido detre o antigo sistema, mas que

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romperá, dando nova forma à economia, entorno de novos valores e comportamentos. Eu

chamo isso de "pós-capitalismo".

Assim como no fim do feudalismo 500 anos atrás, a substituição do capitalismo pelo

pós-capitalismo vai ser acelerada por choques externos e moldada pelo aparecimento de um

novo tipo de ser humano. E já começou.

Pó-scapitalismo é possível graças à três grandes mudanças trazidas pela tecnologia de

informação nesses últimos 25 anos. Primeiramente, ela reduziu a necessidade de trabalho,

aproximou a relação entre trabalho e tempo livre e distanciou a relação entre trabalho e

salário. A iminente onde da automação, atualmente estagnada visto que nossa infraestrutura

social não resiste às consequências, vai diminuir abundantemente a quantidade de trabalho

necessária - não só para sobreviver mas para proporcionar uma vida decente para todos.

Segundamente, informação está corrompendo a habilidade do mercado de formar preços

corretamente. Isso acontece porque os mercados são baseados em falta, escassez, enquanto

informação farta, abundante. A forma de defesa do sistema é formar monopólios - as

gigantes companhias tecnológicas - em uma escala nunca vista antes nos últimos 200 anos,

mas que ainda assim não duram. Ao criar modelos de negócios e compartilhar estimativas

baseadas na tomada e na privatização de toda informação produzida socialmente, essas

firmas constroem uma corporativa frágil que se opõe às necessidades mais básicas do ser

humano, que é a de usar idéias livremente.

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Terceiramente, estamos vendo a ascensão espontânea da produção cooperativa: bens, serviços

e organizações que já não respondem à ditadura do mercado e da hierarquia administrativa

estão aparecendo. O maior produto de informação no mundo - Wikipédia - é composto por voluntários, abolindo o negócio da enciclopédia e privando a indústria de estimados 3 bilhões

por ano.

Quase despercebida, nos nichos e canais do sistema do mercado, diversos trechos da vida

econômica estão começando a se mover em um ritmo diferente. Moedas paralelas, bancos de

tempo, cooperativas e espaços auto-gerenciados tem começado a se propagar, quase não

notados pelos profissionais do meio econômico, e frequentemente como um resultado da

quebra das antigas estruturas da crise do pós-2008.

Você só acha essa nova economia se procurar direito. Na Grécia, quando uma uma ONG de

grassroots fez o mapeamento de cooperativas alimentícias, produtores alternativos, moedas

paralelas e sistemas locais de trocas no país, eles acharam mais de 70 projetos autônomos e

centenas de outras iniciativas menores variando de ocupações de propiedade à caronas

cooperativas à creches gratuitas. Para a corrente principal da economia essas coisas são

raramente classificadas como atividades econômicas - mas esse é o ponto. Elas existem por

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que são trocas, ainda que raras e ineficientes, na moeda do pós-capitalismo: tempo livre,

atividades em rede e coisas de graça. Parece uma coisa escassa, extra oficial, até mesmo

perigosa de se elaborar de uma alternativa para um sistema global, mas o mesmo foi pensado

da idéia de dinheiro e crédito na época do Eduardo III.

Compartilhando as frutas da labuta. Ilustração de Joe Magee.

Novas formas de propriedade, de impréstimos, novos contratos legais: uma nova subcultura

de negócios surgiu nos últimos 10 anos, a qual a mídia tem chamado de "economia

compartilhada". Jargões como "commons"(bens comuns) e "peer-production" (produção

pareada) são citados constantemente, mas poucos se preocuparam em perguntar o que isso

significa para desenvolvimento do próprio capitalismo.

Eu acredito que isto oferece uma rota de fuga - mas somente se esses projetos a nível micro

forem nutridos, promovidos e protegidos por uma mudança fundamental no que os governos

fazem. E isso deve ser dirigido por uma mudança de pensamento - sobre tecnologia,

propriedade e trabalho. Para que, quando criarmos os elementos do novo sistema, poderemos

dizer para nós mesmos, e para os outros: "Esse não é mais simplesmente meu mecanismo de

sobrevivência, meu buraco do parafuso do mundo neoliberal; esta é uma nova forma de viver

no processo de formação".

A crise de 2008 reduziu 13% da produção global e 20 % do comércio global. O crescimento

mundial se tornou negativo - numa escala em que qualquer coisa abaixo de +3% é contado

como uma recessão. Produziu, no oeste, uma fase de depressão mais longa que em 1929-33, e

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até agora, em meio a pálida recuperação, tem deixado economistas apavorados sobre a

perspectiva de estagnação de longo prazo. Os tremores secundários na Europa estão

dividindo o continente.

As soluções tem sido austeridade e excesso monetário. Mas elas não estão funcionando. Nos

países atingidos mais gravemente, o sistema de pensão foi destruído, a idade de aposentadoria

está sendo aumentada para 70, e a educação está sendo privatizada e os estudantes de

graduação tem que encarar uma vida inteira de dívidas elevadas. Serviços estão sendo

desmantelados e os projetos de infraestrutura colocados em espera.

Até agora muitas pessoas falham ao tentar compreender o verdadeiro significado da palavra

"austeridade". Austeridade não são oito anos de cortes de gastos, como no Reino Unido, ou

até mesmo a catástrofe social infligida na Grécia. Significa dirigir os salários, salários sociais

e padrões de vida do oeste para baixo por décadas, até que eles encontrem os da classe média

na China e Índia no topo.

Enquanto isso, na falta de um modelo alternativo, as condições para outra crise estão sendo

agrupadas. Salários reais tem caído ou permanecido os mesmos no Japão, na sul da Europa,

nos EUA e no Reino Unido. A sombra do sistema bancário foi remontada, e é agora maior

que era em 2008. Novas regras exigem que bancos retenham mais reservas que foram

diluídas ou atrasadas. Enquanto isso, encharcado com dinheiro de graça, o 1% tem ficado

mais rico.

O neoliberalismo, então, tem se transformado em um sistema programado para infligir falhas

catastróficas recorrentes. Pior que isso, ele quebrou o padrão industrial capitalista de 200

anos no qual uma crise econômica estimula novas formas de inovação tecnológica que

beneficiam todos.Isso acontece porque o neoliberalismo foi o primeiro modelo econômico em 200 anos a

retomar as bases da supressão dos salários e quebrando o poder social e resistência da classe

trabalhadora. Se revisarmos os períodos de descolagem estudados pelos teóricos de ciclo

longo - a década de 1850 na Europa, os anos de 1900 e de 1950 em todo o mundo - foi a

força de trabalho organizado, que forçou os empresários e as empresas a parar de tentar

reviver modelos de negócios ultrapassados através do corte de salários, e de inovar seu

caminho para uma nova forma de capitalismo.

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O resultado é que, em cada avanço, achamos uma nova síntese de automação, salários

maiores e consumo de valores maiores. Hoje não há pressão da força trabalhadora, e a

tecnologia no centro dessa onda de inovação não exige a criação de gastos de maior consumo,

ou o re-emprego da antiga força de trabalho nos novos empregos. Informação é a máquina de

triturar os preços das coisas para baixo e de devastar o tempo de trabalho necessário para a

manutenção da vida no planeta.

Como resultado, grande parte da classe empresarial tem se tornado neo-lúditos. Confrontados

com a possibilidade de criar laboratórios de sequenciamento de genes, eles, ao invés, abrem

cafés (coffee shops), manicures e empresas de limpeza: o sistema bancário, o sistema de

planejamento e a tardia cultura neoliberal recompensa, acima de tudo, o criador dos trabalhos

de baixo custo e altas horas de trabalho.

A inovação está acontecendo, mas não tem, até agora, acionado a quinta longa ascensão do

capitalismo de que a teoria de ciclo longo deveria esperar. As razões encontram-se na

natureza específica da tecnologia da informação.

Estamos rodeados por não apenas máquinas inteligentes, mas por uma nova camada da

realidade centrada em informações. Considere um avião de passageiros: um computador o

voa; ele foi projetado, passou por testes de resistência e foi "virtualmente fabricado" milhões

de vezes; ele está disparando de volta a informação em tempo real aos seus fabricantes. A

bordo são pessoas apertando os olhos para enxergar as telas conectadas, em alguns países

sortudos, à internet.

Visto do solo ainda é o mesmo pássaro branco de metal da era do James Bond. Mas agora é tanto uma máquina inteligente e um nó em um rede. Ele tem um conteúdo de informação e

está adicionando valor em forma de informação, bem como valor físico para o mundo. Em

um voo de negócios lotado, quando todo mundo está olhando para o Excel ou Powerpoint, a

cabine de passageiros é melhor entendida como uma fábrica de informações.

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É utópico acreditar que estamos à beira de uma evolução para além do capitalismo?

Ilustração por Joe Magee

Mas de que vale toda essa informação? Você não achará nenhuma resposta no fim das contas:

a propriedade intelectual está avaliada em normas de contabilidade modernas por

adivinhação. Um estudo do Instituto SAS em 2013 descobriu que, a fim de colocar um valor

nos dados, nem o custo para reuní-lo, nem o custo do mercado ou seu rendimento futuro

poderiam ser corretamente calculados. Só através de uma forma de contabilidade que

incluísse benefícios não-econômicos, e riscos, as empresas poderiam realmente explicar aos

seus acionistas o valor verdadeiro de seus dados. Algo está quebrado na lógica que usamos

para dar valor a coisa mais importante no mundo moderno.

O grande avanço tecnológico do início do século 21 é composto não só de novos objetos e

processos, mas de antigos feitos inteligentes. O conteúdo de conhecimento dos produtos está

se tornando mais valioso do que as coisas físicas que são usadas para produzí-los. Mas é um

valor medido como utilidade, não como valor de troca ou patrimonial. Nos anos de 1990,

economistas e tecnólogos começaram a pensar a mesma coisa simultâneamente: que esse

novo papel da informação estava criando um novo, terceiro tipo de capitalismo - tão diferente

do capitalismo industrial quanto foi o capitalismo industrial do capitalismo mercantil e

escravo dos séculos XVII e XVIII. Mas eles têm se esforçado para descrever a dinâmica do

novo capitalismo "cognitivo". E por uma razão. Sua dinâmica é profundamente

não-capitalista.

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Durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, os economistas viram informações

simplesmente como um "bem público". O governo dos EUA ainda decretou que nenhum

lucro deveria ser feito a partir de patentes, apenas a partir do próprio processo de produção.

Então nós começamos a entender a propriedade intelectual. Em 1962, Kenneth Arrow, o guru

da economia tradicional, disse que, em uma economia de mercado livre o propósito de

inventar coisas é criar direitos de propriedade intelectual. Ele observou: "precisamente na

medida em que é bem-sucedido há uma subutilização da informação."

Você pode observar a veracidade disso em todos os modelos de negócio virtual já construído:

monopolizar e proteger dados, capturar os dados sociais livres gerados pela interação do

usuário, dividir forças comerciais em áreas de produção de dados que eram não-comerciais

antes, minar os dados existentes por um valor profético - garantindo sempre, e em todos os

lugares, que ninguém além da empresa possa utilizar os resultados.

Se reafirmamos o princípio de seta no sentido inverso, as suas implicações revolucionárias

são óbvias: se uma economia de mercado livre com propriedade intelectual leva à

"subutilização da informação", então uma economia baseada na plena utilização da

informação não pode tolerar o mercado livre ou direitos de propriedade intelectual absolutos.

Os modelos de negócios de todos os nossos gigantes digitais modernos são projetados para

prevenir a abundância de informação.

Ainda assim a informação é abundante. Bens de informação são livremente replicáveis. Uma

vez que uma coisa é feita, ela pode ser copiada/colada infinitamente. Uma única música ou o

banco de dados gigante que você usa para construir um avião tem um custo de produção; mas

seu custo de reprodução cai para zero. Portanto, se o mecanismo normal de preços do

capitalismo prevalece ao longo do tempo, seu preço irá cair para zero, também. Nos últimos 25 anos a economia vem lutando com esse problema: todas as economias

principais seguem de uma condição de escassez, mesmo que a força mais dinâmica no nosso

mundo moderno é abundante e, como disse uma vez o hippy gênio Stewart Brand, "quer ser

livre".

Existe, junto ao mundo de informação e fiscalização monopolizados criado por corporações e

governos, uma dinâmica diferente crescendo em torno da informação: a informação como um

bem social, livre quanto ao uso, incapaz de ser possuída ou explorada ou custeada. Eu

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pesquisei as tentativas feitas por economistas e gurus de negócios de construir uma estrutura

para compreender a dinâmica de uma economia baseada na abundante quantidade de

informações socialmente mantidas. Mas na verdade foi imaginado por um economista do

século 19 na era do telégrafo e do motor a vapor. O nome dele? Karl Marx.

...

A cena se passa em Kentish Town, Londres, em fevereiro de 1858, por volta de 4 da

madrugada. Marx é um homem procurado na Alemanha e está trabalhando duro rabiscando

experiências de pensamento e anotações. Quando eles finalmente leem o que Marx estava

escrevendo naquela noite, os intelectuais de esquerda da década de 1960 vão admitir que

"desafia todas interpretações sérias de Marx já contempladas". As anotações são chamadas de

"O Fragmento sobre Máquinas".

No "Fragmento" Marx imagina uma economia em que o principal papel das máquinas é

produzir, e o principal papel das pessoas é supervisioná-las. Para ele ficou claro que, em tal

economia, a principal força produtiva seria a da informação. O poder produtivo de tais

máquinas como a máquina de rodar algodão automática, o telégrafo e a locomotiva a vapor

não dependeram da quantidade de trabalho que levou para produzí-los mas do estado do

conhecimento social. Organização e conhecimento, em outras palavras, deram uma maior

contribuição para o poder produtivo do que o trabalho de fazer e operar as máquinas.

Dado o que o marxismo estava para se tornar - uma teoria da exploração baseada no roubo do

tempo de trabalho - esta é uma afirmação revolucionária. Ela sugere que, uma vez que o

conhecimento se torna uma força produtiva em seu próprio direito, superando o trabalho real

gasto na criação de uma máquina, a grande questão não se torna uma das "salários contra

lucros" mas quem controla o que Marx chamou de "poder do conhecimento".

Em uma economia em que as máquinas fazem a maioria do trabalho, a natureza do

conhecimento trancado dentro das máquinas deve, escreve ele, ser "social". Em uma

experiência de pensamento de fim de tarde Marx imaginou o ponto final dessa trajetória: a

criação de uma "máquina ideal", que dura para sempre e não custa nada. Uma máquina que

poderia ser construída por nada seria, segundo ele, não acrescenta valor algum para o

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processo de produção e rapidamente, ao longo de vários períodos contabilísticos, reduziria os

custos de preços, lucros e trabalhos de tudo que tocasse.

Depois de entender que informação é física, e que software é uma máquina, e que

armazenamento, largura de banda e poder de processamento estão em colapso no preço a taxas exponenciais, o valor do pensamento de Marx se torna claro. Estamos rodeados por

máquinas que não custam nada e que poderiam, se quiséssemos, durar para sempre.

Nessas reflexões, não publicadas até meados do século 20, Marx imaginou que as informaões

seriam armazenadas e compartilhadas em algo chamado de "intelecto geral" - que seria a

mente de todos na Terra conectados por conhecimentos sociais, na qual cada upgrade seria

benéfico para todos. Em suma, ele tinha imaginado algo próximo a economia de informação em que vivemos. E, segundo ele, sua existência iria "explodir o capitalismo até os céus".

Com o terreno alterado, o caminho antigo para além do capitalismo imaginado pela esquerda

do século 20 foi perdido.

Mas um caminho diferente se abriu. Produç ão colaborativa, utilizando tecnologia de rede

para produzir bens e serviços que só funcionam quando são gratuitos, ou compartilhados,

define a rota para além do sistema de mercado. Ele vai precisar do estado para criar o

enquadramento - da mesma forma que criou o enquadramento para o trabalho nas fábricas, as

moedas de som e o livre comércio no início do século 19. O setor pós-capitalista é provável

que coexista com o sector de mercado por décadas, mas a grande mudança está acontecendo.

As redes restauraram a "granularidade" para o projeto pós-capitalista. Ou seja, elas podem ser

a base de um sistema de não-mercado que se replica, que não precisa ser criado de novo todas

as manhãs na tela do computador de um comissário.

A transição vai envolver o Estado, o mercado e a produção colaborativa para além do

mercado. Mas para que isso aconteça, todo o projeto de esquerda, de grupos de protesto para

os partidos social-democratas e liberais populares, terá de ser reconfigurado. Na verdade, uma

vez que as pessoas entendam a lógica da transição pós-capitalista, tais ideias não serão mais a

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propriedade de esquerda - mas de um movimento muito mais amplo, para o qual vamos

precisar de novos rótulos.

Quem pode fazer isso acontecer? No projeto da antiga esquerda foi a classe trabalhadora

industrial. Mais de 200 anos atrás, o jornalista radical John Thelwall advertiu os homens que

construíram as fábricas inglesas que eles haviam criado uma nova e perigosa forma de

democracia: "Todos workshops e fábricas grandes são uma espécie de sociedade política, que

nenhum ato do parlamento pode silenciar, e magistrado algum pode dispersar."

Hoje toda a sociedade é uma fábrica. Todos nós participamos na criação e recriação das

marcas, normas e instituições que nos cercam. Ao mesmo tempo, as redes de comunicação

vitais para o trabalho do dia-a-dia e para o lucro estão zumbindo com conhecimento

compartilhado e descontentamento. Hoje é a rede - como o workshop 200 anos atrás - que

"não se pode silenciar ou dispersar".

É verdade que os estados podem encerrar o Facebook, Twitter, até mesmo toda a internet e

rede móvel em tempos de crise, paralisando a economia no processo. E eles podem

armazenar e monitorar cada kilobyte de informações que produzimos. Mas eles não podem

impor novamente a hierárquica sociedade ignorante de 50 anos atrás orientada por

propagandas, exceto - como na China, na Coreia do Norte ou no Irã - por estar fora de partes

fundamentais da vida moderna. Seria, como sociólogo Manuel Castells coloca, como a

tentativa deseletrificar um país.

Com a criação de milhões de pessoas em rede, financeiramente exploradas, mas com toda a

inteligência humana a um golpe de polegar de distância, o info-capitalismo criou um novo agente de mudança na história: o ser humano educado e conectado.

Isso será mais do que apenas uma transição econômica. Há, é claro, as tarefas paralelas e

urgentes de descarbonizar o mundo e lidar com bombas-relógio demográficas e fiscais. Mas

eu estou me concentrando na transição econômica desencadeada por informações, porque, até

agora, ela tem sido marginalizada. Par-a-par tornou-se rotulado como uma obsessão de nicho

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para visionários, enquanto os "garotões" da economia de esquerda continuam criticando a

austeridade.

A informação quer ser livre, ilustração por Joe Magee

Na verdade, em lugares como a Grécia, a resistência à austeridade e à criação de "redes que

você não pode usar como padrão" - como um ativista me explicou - andam de mãos dadas.

Acima de tudo, o pós-capitalismo como um conceito é sobre novas formas de comportamento

humano que a economia convencional dificilmente reconheceria como relevante.

Então como podemos visualizar a transição à frente? O único paralelo coerente que temos é a substituição do feudalismo pelo capitalismo - e graças ao trabalho de epidemiologistas,

geneticistas e analistas de dados, sabemos muito mais sobre essa transição hoje do que há 50

anos, quando era "propriedade" das ciências sociais. A primeira coisa que temos de

reconhecer é: diferentes modos de produção são estruturados em torno de coisas diferentes. O

feudalismo era um sistema econômico estruturado por costumes e leis sobre a "obrigação". O

capitalismo foi estruturado por algo puramente econômico: o mercado. Podemos prever, a

partir disso, que o pós-capitalismo - cuja pré-condição é abundância - não será simplesmente

uma forma modificada de uma sociedade de mercado complexo. Mas só podemos começar a

compreender em uma visão positiva do que será futuramente.

Eu não quero dizer que isso é uma maneira de evitar a pergunta: os parâmetros econômicos

gerais de uma sociedade pós-capitalista no ano de 2075, por exemplo, podem ser esboçados.

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Mas se tal sociedade for estruturada em torno de libertação humana, não da economia, coisas

imprevisíveis vão começar a moldá-la.

Por exemplo, a coisa mais óbvia para Shakespeare, escrevendo em 1600, foi que o mercado

tinha convocado novos tipos de comportamento e moralidade. Por analogia, a coisa

"econômica" mais óbvia para Shakespeare de 2075 será a reviravolta total nas relações de

gênero, ou sexualidade, ou de saúde. Talvez nem mesmo existirão dramaturgo mais: talvez a

própria natureza dos meios de comunicação que usamos para contar histórias vai mudar - da

mesma forma que mudou na Londres elisabetana, quando os primeiros teatros públicos foram

construídos.

Pense na diferença entre, digamos, Horácio de Hamlet e um personagem como Daniel Doyce

em Little Dorrit de Dickens. Ambos carregam consigo uma obsessão característica de sua

idade - Horácio está obcecado com a filosofia humanista; Doyce está obcecado com patentear

sua invenção. Não pode haver personagem como Doyce em Shakespeare; ele poderia, na

melhor das hipóteses, conseguir um pequeno papel como uma figura cômica da classe

trabalhadora. No entanto, na época em que Dickens descreveu Doyce, a maioria de seus

leitores conheciam alguém como ele. Assim como Shakespeare não poderia ter imaginado

Doyce, nós também não podemos imaginar o tipo de sociedade que os seres humanos irão

produzir uma vez que a economia não é mais central para a vida. Mas podemos ver as suas

formas pré-figurativas na vida dos jovens no mundo todo, quebrando barreiras do século 20

em torno da sexualidade, trabalho, criatividade e de si mesmos.

O modelo feudal de agricultura colidiu, primeiramente, com os limites ambientais e, em

seguida, com um choque externo violento - a Peste Negra. Depois disso, houve um choque demográfico: muito poucos trabalhadores para a terra, o que elevou seus salários e fez o

antigo sistema feudal de obrigação impossível de se aplicar. A escassez de trabalho també

forçou uma inovação tecnológica. As novas tecnologias que sustentaram a ascensão do

capitalismo mercantil foram as que estimularam o comércio (de impressão e contabilidade), a

criação de riquezas comerciáveis (mineração, a bússola e navios rápidos) e produtividade

(matemática e o métodos científicos).

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Presente durante todo o processo foi algo que parece incidental para o antigo sistema -

dinheiro e crédito - mas que foi na verdade destinado a se tornar a base do novo sistema. No

feudalismo, muitas leis e costumes foram na verdade moldadas em torno de ignorar o

dinheiro; crédito era, no alto feudalismo, visto como pecaminoso. Então, quando o dinheiro e

o crédito quebraram as barreiras para criar um sistema de mercado, foi como uma revolução.

Então, o que impulsionou o novo sistema foi a descoberta de uma fonte, quase ilimitada, de

riqueza "fácil" nas Américas.

Uma combinação de todos esses fatores pegou um conjunto de pessoas que tinham sido

marginalizadas durante o feudalismo - humanistas, cientistas, artesãos, advogados,

pregadores radicais e dramaturgos boêmios como Shakespeare - e as colocou na cabeça de

uma transformação social. Em momentos-chave, embora timidamente no início, o estado

parou de impedir a mudança para promovê-la.

Hoje, o que está corroendo o capitalismo, mal racionalizada pela economia, é a informação.

A maioria das leis com relação à informação definem o direito das empresas de armazená-la e

o direito dos Estados de acessá-la, independentemente dos direitos humanos dos cidadãos. O

equivalente da imprensa e do método científico é a tecnologia da informação e suas

repercussões sobre todas as outras tecnologias, da genética aos cuidados de saúde à

agricultura ao cinema, onde está reduzindo rapidamente os custos.

O equivalente moderno da longa estagnação do fim do feudalismo é a paralisação da terceira

revolução industrial, onde em vez de rapidamente automatizar trabalho, estamos reduzidos a

criar o que David Graeber chama de “empregos de merda" com salários baixos. E muitas

economias estão paralisando.

Qual é o equivalente da nova fonte de riqueza livre? Não é exatamente a riqueza: são as "externalidades" - as coisas de graça e o bem-estar gerado pela interação em rede. É o

começo da produção fora de mercado, de informações "impossuíveis", de redes de pares e

empresas não gerenciadas. Sobre a internet, o economista francês Yann Moulier-Boutang diz

que é "tanto navio quanto mar" quando se trata do equivalente moderno da descoberta do

novo mundo. Na verdade, é o navio, a bússola, o oceano e o ouro.

Os choques externos dos dias modernos são claros: esgotamento da energia, mudanças

climáticas, o envelhecimento da população e migração. Eles estão alterando a dinâmica do

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capitalismo e tornando-a inviável por um longo prazo. Eles ainda não tiveram o mesmo

impacto que a Peste Negra - mas, como vimos em Nova Orleans em 2005, não é necessário a

peste bubônica para destruir a ordem social e infraestrutura funcional em uma sociedade

complexa e financeiramente empobrecida.

Assim que entender a transição, desta forma, a necessidade não é de um Plano Quinquenal

supercomputado - mas um projeto, cujo objetivo deveria ser o de expandir essas tecnologias,

modelos de negócio e comportamentos que dissolvem as forças do mercado, socializam o

conhecimento, erradicam a necessidade para o trabalho e empurram a economia para a

abundância. Eu o chamo de Projeto Zero - porque os seus objetivos são um sistema de zero

energia de carbono; a produção de máquinas, produtos e serviços com zero de custos

marginais; e a redução do tempo de trabalho necessário o mais próximo possível de zero.

A maioria dos esquerdistas do século 20 acreditava que eles não tinham o luxo de uma

transição gerenciada: era um artigo de fé para eles que nada do sistema que estava por vir

poderia existir no velho - embora a classe trabalhadora sempre tentasse criar uma vida

alternativa dentro e "apesar" do capitalismo. Como resultado, uma vez que a possibilidade de

uma transição de estilo soviético desapareceu, a esquerda moderna ficou preocupada

simplesmente com se opor à coisas: a privatização do sistema de saúde, as leis anti-sindicais,

fracking - e a lista continua.

Se eu estiver certo, o foco lógico para suportes de pós-capitalismo é construir alternativas

dentro do sistema; usar o poder governamental de uma forma radical e perturbadora; e dirigir

todas as ações para a transição - não a defesa de elementos aleatórios do sistema antigo. Nós

temos que aprender o que é urgente e o que é importante, e que às vezes eles não coincidem.

...O poder da imaginação se tornará crítico. Em uma sociedade de informação, nenhum

pensamento, debate ou sonho é desperdiçado - seja concebido em um acampamento, uma

prisão ou o espaço de tabela de futebol de uma empresa.

Assim como com a fabricação virtual, na transição para o pós-capitalismo o trabalho

realizado na fase de projeto pode reduzir erros na fase de implementação. E o design do

mundo pós-capitalista como com o software, pode ser modular. Diferentes pessoas podem

trabalhar com ele em lugares diferentes, e em diferentes velocidades, com relativa autonomia

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7/23/2019 O fim do capitalismo do Paul Mason

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de cada um. Se eu pudesse convocar uma coisa à existência de graça seria uma instituição

global que modelasse o capitalismo corretamente: um modelo de código aberto de toda a

economia; oficial, cinza e preto. Cada experimento executado através dele iria enriquecê-lo;

seria de código aberto e com tantos pontos de dados quanto nos modelos climáticos mais

complexos.

A principal contradição hoje é entre a possibilidade de bens e informações livres e

abundantes; e um sistema de monopólios, bancos e governos tentando manter as coisas

privadas, escassas e comerciais. Tudo se resume à luta entre a rede e a hierarquia: entre as

velhas formas de sociedade moldadas em torno de capitalismo e novas formas de sociedade

que prefiguram o que vem a seguir.

...

É utópico acreditar que estamos à beira de uma evolução para além do capitalismo? Vivemos

em um mundo em que homens e mulheres homossexuais podem se casar, e em que a

contracepção, em 50 anos, fez a média das mulheres da classe trabalhadora mais livre do que

a libertina mais louca da era Bloomsbury. Por que, então, é tão difícil imaginar uma liberdade

econômica?

São as elites - separadas em seu mundo sombrio de limusines pretas - cujo projeto parece tão

desesperado quanto o das seitas milenaristas do século 19. A democracia de esquadrões de

choque, políticos corruptos, jornais controlados por magnatas e o estado de vigilância parece

tão falso e frágil quanto a Alemanha Oriental há 30 anos.

Todas as leituras de história têm que permitir a possibilidade de um resultado negativo. Ele

nos persegue no filme de zumbi, no filme-catástrofe, no deserto pós-apocalíptico de filmes

como The Road ou Elysium. Mas por que não deveríamos formar uma imagem da vida ideal, construída a partir de informação abundante, trabalho não-hierárquico e da dissociação do

trabalho de salários?

Milhões de pessoas estão começando a perceber que foi vendido um sonho em desacordo

com o que a realidade pode oferecer. Sua resposta é a raiva - e negação contra formas

nacionais de capitalismo que só fazem dividir o mundo. Observando-os surgir a partir de

facções de esquerda pró-Grexit em Syriza para o Front National e o isolacionismo do direito

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7/23/2019 O fim do capitalismo do Paul Mason

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americano tem sido como assistir os pesadelos que tivemos durante a crise do Lehman

Brothers se tornarem realidade.

Precisamos mais do que apenas um monte de sonhos utópicos e projetos horizontais de

pequena escala. Precisamos de um projeto baseado na razão, provas e projetos testáveis, que

corte com o grão de história e que seja sustentável pelo planeta. E precisamos começar logo.

- Pós-capitalismo de Paul Mason; disponível no site:

http://www.theguardian.com/books/2015/jul/17/postcapitalism-end-of-capitalism-begun