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  • [T]

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 33, p. 257-268, jul./dez. 2011

    Presena da filosofia e da antropologia em Totem e tabu: Freud, entre Kant, Hegel, Frazer e Schopenhauer1

    [I]

    Philosophy and anthropology in Totem and taboo: Freud, Kant,

    Hegel, Frazer and Schopenhauer

    [A]

    Josiane C. Bocchi[a], Rodrigo Barros Gewehr[b], Luiz Eduardo Prado de Oliveira[c]

    [a] Ps-Doutoranda e professora colaboradora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), So Carlos, SP - Brasil, e-mail: [email protected]

    [b] Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Doutorando na Universit de Paris 7 Denis Diderot, Paris - Frana, e-mail: [email protected]

    [c] Docente na Universit de Paris 7 Denis Diderot, Paris - Frana.

    [R]

    Resumo

    Freud cita amplamente, em permanncia, a obra de Frazer. Totem e tabu parece ser uma

    longa parfrase deste autor, exceto nas ltimas pginas, quando Darwin e dois antroplogos

    de menor estatuta que Frazer aparecem: Atkinson e Smith. Freud prope uma fico sob

    a forma de uma paleoantropologia. Mas os comentrios de Freud a respeito de Frazer so

    tambm pontuados com citaes de filsofos que marcaram seu pensamento, sobretudo

    de Schopenhauer, Kant e Anaximandro, cujo texto era quase desconhecido na poca e que

    1 A autora Josiane C. Bocchi realizou o trabalho no perodo de vigncia da bolsa de Ps-Doutoramento, FAPESP (2009/54555-8).

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

  • Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 33, p. 257-268, jul./dez. 2011

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    se viria revelar mais complexo do que o imaginava Freud. A psicanlise parece obedecer em

    suma ao projeto de Kant de constituir uma antropologia filosfica ou uma filosofia prtica,

    atravs da teraputica.[#][P]

    Palavras-chave: Psicanlise. Antropologia. Filosofia. Fico. Metodologia. [#]

    [B]

    Abstract

    Freud quotes extensively from Frazer. Totem and taboo appears as a long paraphrase; except

    for the last pages, when Darwin and two anthropologists of lesser importance than Frazer,

    Atkinson and Smith appear. Freud proposes a fiction with a paleo-anthropological disguise.

    But Freud commentaries about Frazer are also adorned with quotations from philosophers

    who have marked his thought, mainly Schopenhauer, Kant and Anaximander in his work

    under consideration. Anaximander was not well known at Freuds time and when he got to

    be known his texte proved unsuitable for Freuds use. Psychoanalysis seems to obey Kants

    project of an anthropological philosophy or a practical philosophy, through therapy. [#][K]

    Keywords: Psychoanalysis. Anthropology. Philosophy. Fiction. Methodology.[#]

    Trabalhamos agora particularmente sobre algumas das primeiras ocorrncias da presena da filosofia na obra de Freud. Concentramo-nos aqui em suas cartas de juventude e em Totem e tabu. Esta concen-trao, este enfoque se justificam. Em primeiro lugar, as apreciaes amplas e genricas a respeito da presena da filosofia na obra de Freud mostraram seus poucos resultados e limites. Vejamos, um breve resu-mo de uma dita topografia filosfica freudiana:

    trata-se de uma estrutura em crculos concntricos que, segundo o grau de importncia e de frequncia das referncias, converge em direo a um ncleo central. Deste ponto de vista, temos um centro ideolgico fcil de detectar: Schopenhauer. Em torno deste centro, gravitam trs satlites: Nietzsche, Kant e Plato. Enfim, uma srie muito diversificada compreende tantos filsofos quanto utilizaes contextuais, como j vimos no captulo precedente (ASSOUN, 2009, p. 185).

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    E, logo depois: eis a o verdadeiro caminho da inteligibilidade da funo filosfica freudiana, atravs destas escolhas de objetos fun-damentais (Plato, Kant, Schopenhauer) nos quais se investe o desejo especulativo freudiano e que lhe servem ao mesmo tempo de mediado-res e de reveladores (ASSOUN, 2009, p. 185).

    Em que pese o carter antigo deste texto de 1976, est ele em sua terceira edio, de 2009, sempre tal qual, apesar de um novo prefcio de 1995, onde feito um levantamento dos termos de filosofia e de filosofar na obra freudiana. Ora, este tipo de exerccio sempre pe-rigoso, mesmo quando conta com ferramentas bastante sofisticadas, o que no aqui o caso. Aqui, encontra-se apenas algumas 40 refern-cias em toda a obra freudiana para os termos apontados, enquanto em ingls pode-se encontrar mais do que o dobro para um nico desses termos, tendo-se em considerao a correspondncia de Freud e a fer-ramenta da informtica, ela prpria, entretanto, insuficiente, visto sua incapacidade de contextualizar ou abraar o movimento intertextual.

    Assim, Hegel um autor que Assoun no considera como fazen-do parte nem do centro, nem dos satlites presentes no pensamento de Freud, nem como sendo um objeto do desejo especulativo freudia-no ; ainda um autor indicado apenas uma vez na Standard Edition e trs vezes na edio informatizada da Psychoanalytic Editor Publishing. Ora, Hegel um autor essencial ao pensamento freudiano, no obstante Freud parecer declar-lo obscuro. Ele est presente em toda parte. No existe metapsicologia sem se levar em considerao a sombra do pensamento hegeliano. A dinmica freudiana ou o retorno do re-calcado correspondem dialtica hegeliana. As leituras que Freud faz de Kant ou de Schopenhauer j so inteiramente informadas pela presena de Hegel, que Freud o tenha lido diretamente, na fonte, ou no. Freud certamente estudou os discpulos de Hegel. Em uma carta de 7 de maro de 1875, endereada a seu amigo de infncia Eduard Silberstein, Freud afirma, a respeito de Feuerbach que ele entre todos os filsofos, aquele que mais admiro e respeito (FREUD, [1875] 1990, p. 138-139). Pouco depois, numa carta datada de 11 de abril, Freud dis-cute certos aspectos do pensamento de Kant e manifesta seu interesse

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    em relao ao pensamento de Brentano. Ambos, Feuerbach e Brentano, so discpulos de Hegel, bastante prximos a ele, embora o critiquem.

    Assim, uma outra estratgia para a apreciao da topografia filosfica freudiana, caso queiramos guardar tais termos, se impe. Na estratgia que propomos, no se pode considerar a filosofia como o apndice de uma disciplina que seria a psicanlise, inventada por Freud a partir do nada, puro objeto de seu desejo especulativo, ttulo pomposo para curiosidade, no melhor dos casos. Consider-la assim corresponde a se condenar a fechar a psicanlise, que uma forma de pensamento como outra qualquer, sem levar em considerao nem sua histria nem sua situao.

    De um ponto de vista histrico, a psicanlise se situa na encruzi-lhada de vrias correntes de pensamento. H uma corrente psiquitrica, sem dvida. Lembremos que um dos primeiros livros de psiquiatria, obra de Pinel, tem como ttulo Tratado de medicina filosfica e que durante muito tempo assim considerada a abordagem dos problemas no enquadrados no campo das doenas do corpo. Kant um dos primeiros a considerar que filsofos e os mdicos devem unir-se para compreender as doenas mentais. A prpria psiquiatria j se encontra em uma encruzilhada entre fisicalistas e espiritualistas. Ainda outra corrente que aparece na arbo-rescncia da psicanlise a antropologia. Um de seus principais criadores Kant, que escreveu uma Antropologia do ponto de vista pragmtico.

    As prprias palavras tm sua histria, como sabemos. Antes do sculo 12 no existem filsofos, antes do sculo 17 no existem an-troplogos e antes do sculo 19 no existem psicanalistas. O que, en-tretanto, no quer dizer que os homens nunca pensaram sobre o fato de pensarem, ou nunca estudaram outros homens de mundos diferentes do seu, ou que nunca souberam que eram depositrios de mistrios que Freud desvendou.

    A particularidade da concepo kantiana da filosofia que a con-siderava como devendo ser analtica. Cito Kant ([1768] 1985, p. 138-139):

    pode-se ento admitir que, se nos fosse possvel penetrar a maneira de pensar de um homem, da forma como se revela tanto por atos internos quanto externos, e de modo suficientemente profundo para conhecer

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    cada um de seus motivos, mesmo o menor deles, como todas as situa-es exteriores que podem agir sobre tais motivos, poderamos calcular a conduta futura deste homem de modo to preciso quanto um eclipse da Lua ou do Sol, sem deixar de declarar que o homem livre.2

    A compreenso do modo de pensar de um homem tal como apa-rece em seus atos internos e externos, em outros termos, a anlise de sua alma, ou seja, a psicanlise literalmente anlise da alma, Psych. Para tanto, Kant escrever uma Antropologia.

    Entre totens e tabus

    Totem e tabu um livro de estranha arquitetura, que hipnotiza o leitor. Totem e tabu chama nossa ateno para um conjunto de fatos e abordagens destes fatos, para mudar inteiramente sua orientao mo-mentos antes de se concluir. Dividido em quatro partes, algumas delas se subdividem e algumas vezes estas prprias subdivises se dividem ainda mais. Amplamente apoiado em Frazer, que Freud cita algumas 80 vezes, as vezes Totem e tabu parece ser um permanente comentrio, seno um simples resumo do que escreveu Frazer e do que escreve-ram autores citados por Frazer. A estes comentrios ou resumos, Freud aplica algumas categorias da psicanlise nascente: a noo de ambiva-lncia, herdada da definio que Bleuler prope para a esquizofrenia; a noo de narcisismo, herdada de Karl Abraham; a funo do nome, herdada de Stekel, s quais Freud acrescenta a noo de projeo e seu interesse pelo luto. Entretanto, tudo isso parece ser uma simples prepa-rao para o que se vai desencadear no final do texto, a saber o mito da horda primitiva, do assassinato do pai, da refeio caniblica onde se con-sume seu corpo e da nova ordem social criada a partir da. Nestas lti-mas pginas, Freud acrescenta a Frazer uma hiptese de Darwin traba-lhada por Atkinson que o inspira. A partir da, Freud repete com muita

    2 Ver PRADO DE OLIVEIRA. Les pires ennemis de la psychanalyse, Montral: Liber, 2009; KANT, I. (1768), Critique de la raison pratique. Paris: Gallimard, 1985. Traduo de L. Ferry et H. Wismann. Tambm: Paris: Flammarion, 2003. p. 205. Traduo de J.-P. Fussler.

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    frequncia sua hiptese, quase como uma frmula mgica. Trata-se de uma obra de fico paleoantropologia.

    Quanto ao carter intertextual, em que os textos aparecem em rede com outros textos, a tradutora francesa de Totem e tabu adverte: dados os hbitos de traduo de Freud e seu uso pouco rigoroso das aspas do ponto de vista contemporneo por vezes difcil distinguir a citao li-vremente traduzida da reformulao pessoal ou da parfrase (FREUD, [1913] 1993, p. 58). Como a propsito de Frazer, a comparao com o texto original revela que difcil fazer a distino entre o que citao, adaptao livre, e reformulao pessoal (FREUD, [1913] 1993, p. 276). Todo texto se situa num tecido intertextual. Os pontos sobre os quais insiste a tradutora francesa permitem melhor compreender o mtodo de exposio freudiana, ou seja, o dispositivo de seu argumentrio.

    E o prprio Freud que adverte, por sua vez, atraindo nossa ateno sobre dois pontos muito importantes, limitando o alcance de suas prprias teses:

    no h lugar para o temor de que a psicanlise primeira a descobrir a sobredeterminao constante dos atos e das formaes psquicas seja tentada de derivar algo to complexo quanto religio de uma s origem [...]. Apenas uma sntese feita a partir de diferentes domnios da pesquisa pode decidir que importncia convm atribuir, na gnese da religio, ao mecanismo que tratamos aqui; mas tal tarefa ultrapassa tanto os meios quanto os propsitos do psicanalista (FREUD, [1913] 1993, p. 227).

    Noutras palavras, no h razo alguma para generalizar as teses relativas ao papel paterno na origem da cultura. Alias, ainda uma ad-vertncia de Freud: paterno ou, melhor dizendo, parental (FREUD, [1913] 1993, p. 312).

    Outra ressalva feita por Freud:

    mas talvez seja bom expor inicialmente ao leitor as dificuldades que precisam ser enfrentadas para o estabelecimento de fatos neste domnio [...]. Em primeiro lugar, as pessoas que recolhem as observaes no so as mesmas que as elaboram e as discutem. Uns so viajantes e mis-sionrios, outros so homens de cincia que talvez jamais se depararam com seu objeto de pesquisa. Em segundo lugar, a comunicao com os

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    selvagens no fcil: nem todos os observadores conheciam as lnguas dos povos estudados, ou tinham que recorrer a intrpretes, ou discutir com aqueles a quem interrogavam atravs de uma lngua auxiliar, o pidgin english. Os selvagens no so comunicativos no que concerne aos elementos mais ntimos de sua civilizao e s se confiam a estrangei-ros que passaram muitos anos entre eles. Pelas razes mais variadas, fornecem frequentemente informaes falsas ou confusas. Por outro lado, no se deve esquecer que os povos primitivos, longe de represen-tarem povos jovens, so to antigos quanto os povos civilizados e no se pode esperar que, para garantir nossa instruo, tenham mantido suas ideias e instituies originais sem a menor evoluo ou transformao. certo, ao contrrio, que transformaes profundas se produziram em todo sentido, de modo que fica difcil delimitar com preciso o que foi conservado dos traos originais do passado, nas condies e opinies atuais dos primitivos, e o que corresponde a uma transformao e de-formao (FREUD, [1913] 1993, p. 230-231).

    Noutros termos: o que diz Freud que este trabalho, cujas te-ses tm um alcance limitado, se apoia em dados bastante discutveis. Freud ([1913] 1993, p. 312) insiste:

    tendo o hbito dos malentendidos, no acho suprfluo sublinhar clara-mente que as explicaes propostas aqui nunca esquecem a natureza complexa dos fenmenos que tentamos deduzir e que pretendem so-mente acrescentar s origens j conhecidas ou ainda desconhecidas da religio, da moral e da sociedade, um novo fator ligado s exigencias da psicanlise,

    para a qual, entretanto, cumpre dizer, Freud reivindica o papel principal.

    Apelo aos antepassados

    neste conjunto de discusses, de avanos e recuos, de hesita-es e afirmaes que Freud busca confirmao de suas teses junto a Kant, Schopenhauer e Anaximandro, de maneira direta e indireta.

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    A primeira vez que o faz logo em seu prefcio de 1913: o tabu, no fundo, se perpetua entre ns ; ainda que formulado de ma-neira negativa e com outros contedos, por sua natureza psicolgica, apesar de tudo, sem ser em nada diferente do imperativo categrico de Kant (FREUD, [1913] 1993, p. 65).

    Em seguida, no comeo da segunda parte de seu estudo: O tabu e a ambivalncia dos sentimentos, justificando seu interesse em relao ao tabu, Freud retoma este mesmo argumento: o estudo do tabu pode es-clarecer o que o imperativo categrico (FREUD, [1913] 1993, p. 108).

    Ainda sobre o mesmo tema, o imperativo categrico se amplia: a conscincia moral tabu sem dvida a forma mais antiga sob a qual nos aparece o fenmeno da conscincia moral. Com efeito, o que a conscincia moral? Como testemunha a lngua, ela participa do que sabemos com a maior certeza; em certas lnguas sua denominao em nada difere da denominao da conscincia em geral (FREUD, [1913] 1993, p. 175).

    Ou seja, o estudo dos totens e dos tabus se baseia em ampla lei-tura de Frazer, qual Freud aplica conceitos de Kant. Podemos mesmo dizer que o texto de Freud obedece a uma estratgia precisa: colocar Kant de p com a ajuda de Frazer. mesmo o que afirma Assoun (2009, p. 185): Correlativamente, o imperativo categrico kantiano aproxi-mado do tabu edipiano do qual ser uma expresso sublimada. E o autor acrescenta que em O problema econmico do masoquismo o imperativo catagrico kantiano aparece como herdeiro do complexo de dipo, tendo como intermedirio o superego.

    Este mtodo apresenta um primeiro problema, que o de con-fundir as temporalidades e inverter a ordem das geraes. Freud o aplica com muita frequncia em Totem e tabu: uma tese de Frazer que vem confirmar uma de suas teses e no o contrrio, apesar de Frazer ser um predecessor de Freud. Aqui, Kant que confirma Freud e no o contrrio. o nascimento do filho que confirma a paternidade do pai. Alis, Freud no faz nenhuma meno ao pai de dipo, Laos.

    O que h de positivo neste mtodo, ou seja colocar de cabea para cima o que est de cabea para baixo, herana de Feuerbach e Marx. O que Freud faz identico ao que faz Feuerbach em relao

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    Sagrada Famlia, quando explica ser esta uma projeo celeste da famlia real existente na terra. Assim, se reinstala Hegel no pensamento freu-diano, embora de maneira regressiva.

    Freud cita ainda Schopenhauer, sempre em Totem e tabu. Lembremos que entre os trs principais tabus mencionados, h o tabu dos mortos, seja de toc-los ou mesmo de pronunciar seu nome, o que leva Freud a uma inverossmil teoria lingustica, onde toda a bateria lexical de um povo teria que ser transformada completamente a cada morte. Mais importante, porm, assinalar que, enquanto as referncias a Kant correspondem a uma comparao entre a psicanlise e a filoso-fia, ambas utilizando as noes de conscincia e mesmo de conscincia moral, a referncia a Schopenhauer apenas uma alegao: Segundo Schopenhauer, o problema da morte o comeo de toda filosofia; aprendemos igualmente a atribuir impresso que a morte produz nos homens a formao das representaes das almas e da crena em dem-nios, que caracterizam o animismo (FREUD, [1913] 1993, p. 207).

    Entretanto, Freud nada diz da relao entre a crena em almas e demnios, por um lado e, por outro lado, a filosofia. Trs questes devem ser mencionadas:

    - mesmo considerando que a crena em almas e demnios basta para caracterizar o animismo, que, na verdade, bem mais complexo que isso, o vnculo que Freud estabelece entre animismo e filoso-fia simplesmente um lao de contiguidade e no um lao de con-tinuidade3 (ASSOUN, 2009). E ainda bem que assim, posto que uma leitura atenta da origem da filosofia mostra que os homens no estavam particularmente preocupados com a morte, seno que se interessavam pelas origens do universo, ao cu e s estrelas.

    3 Apesar de que talvez um problema de traduo do alemo para o francs exista aqui. O problema da morte se encontra desde Schopenhauer na entrada de toda filosofia, diz literalmente Assoun, aparentemente traduzindo ele prprio, diretamente, o texto alemo, posto no apresentar referncias ao texto francs que utiliza. A traduo com a qual eu trabalho diz: Schopenhauer disse que o problema da morte aparece no incio de toda filosofia. A traduo de Assoun faz com que Freud reconhea um carter fundador em Schopenhauer, enquanto a traduo que utilizo faz que Freud alegue uma proximidade com o filsofo.

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    - Levando em considerao o princpio fundamental da sobrede-terminao estabelecido por Freud ou, antes, tomado a Hegel por Marx e Freud, a filosofia no deve ser considerada como tendo uma origem nica, porm, sim, uma origem, sobredeter-minada. Alis, Freud o observa logo depois, em 1915, em suas Consideraes atuais sobre a guerra e a morte: no prpria-mente a morte que se encontra na origem do pensamento filos-fico, mas o conflito de sentimentos diante de um morto.

    - A crtica aos filsofos pode, agora, aparecer como crtica de Schopenhauer, em particular (FREUD, [1915] 1988).

    De fato, trata-se de um problema importante na leitura de Freud, o de saber a quem se refere ao atacar os filsofos, quando Kant e Hegel constituem o ncleo de seu pensamento. Outros estudos, minu-ciosos, se impem. Freud parece critic-los pare se apoderar da filoso-fia sem reconhecer qualquer dvida em relao a ela.

    Um ltimo exemplo

    H um ltimo filsofo presente em Totem e tabu, que Anaximandro. Trata-se de um filsofo pr-socrtico bastante impor-tante, provavelmente o primeiro a utilizar a noo de arkh para desig-nar a origem, o comeo do mundo e das coisas que nele esto. Freud invoca este filsofo na ltima parte de seu livro, cujo ttulo O retorno infantil do totemismo. O ttulo no corresponde em nada aos assuntos de que Freud trata, que merecem consideraes separadas. Nesta par-te trata-se do mito da horda primitiva, do assassinato do pai e de seu consumo caniblico. Freud necessita buscar nas lendas mais antigas o fundamento do mito que prope.

    Em um fragmento de Anaximandro, escreve Freud, diz-se que a unidade do mundo foi rompida por um crime perpetrado no comeo e que tudo que resultou deve continuar a sofrer por isto (FREUD, [1913] 1993, p. 307). Mas ocorre que se trata de uma citao de segunda mo, o que no raro neste texto de Freud. Na ocorrncia, trata-se de uma

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    citao de Cultos, mitos e religies, de Salomon Reinach, arquelogo he-lenista que, na verdade, cita outros autores que citam Anaximandro, configurando assim uma citao para Freud de terceira ou quarta mo, sem rigor.

    Reinach um autor interessante para o estudo da intertextua-lidade nos textos de Freud. Sua importncia vem do fato de ter par-ticipado na querela arqueolgica sobre a existencia ou no de Jesus. Freud segue Reinach neste ponto tambm, guardando um certo ceti-cismo quanto ao cristianismo, da mesma forma que mantm um certo ceticismo quanto existncia de Shakespeare. Mas estas j so outras histrias. Hoje em dia, conhece-se melhor Anaximandro e o argumen-to de autoridade utilizado por Freud quando o cita deve ser afastado. O filsofo pr-socrtico no parece ter algum dia escrito o que quer que seja a respeito de um crime perpetrado no comeo.

    Ento, vemos qual o dispositivo do texto freudiano: baseia-se amplamente em Frazer, utiliza um filsofo recente, Schopenhauer, um filsofo mais antigo, Kant, e um filsofo antiqussimo, Anaximandro, para validar suas teses, que acabam vindo de outras fontes, na ocor-rncia Atkinson e Reinach. Tal dispositivo terico parece muito com o dispositivo da anlise dos sonhos e mesmo com a tcnica da hipnose, ou seja, chamar a ateno para algo propondo, ao mesmo tempo, outra coisa. No fim das contas, isso o que fazemos todos quando queremos chamar a ateno para algo de que no temos certeza.

    Referncias

    ASSOUN, P.-L. Freud, la philosophie et les philosophes. 3e. d. Paris: PUF, 2009.

    FREUD, S. Lettres de jeunesse. Paris: Gallimard, 1990.

    FREUD, S. Totem et tabou. Paris: Gallimard, 1993. Publicado originalmente em 1913.

    KANT, I. Critique de la raison pratique. Paris: Gallimard, 1985. Publicado

    originalmente em 1768.

  • Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 33, p. 257-268, jul./dez. 2011

    BOCCHI, J. C.; GEWEHR, R. B.; PRADO DE OLIVEIRA, L. E.268

    KANT, I. Critique de la raison pratique. Paris: Flammarion, 2003. Publicado

    originalmente em 1768.

    PRADO DE OLIVEIRA, L. E. Les pires ennemis de la psychanalyse. Montral:

    Liber, 2009.

    Recebido: 25/05/2011

    Received: 05/25/2011

    Aprovado: 21/06/2011

    Approved: 06/21/2011