reviver o vivido

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    REVIVER

    O VIVIDO

    Jorge Adoum

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    Ao

    Dr. Jos R. SaadiGuayaquil

    Prezado Amigo

    Numa de suas cartas, o Amigo disse que minhas obras so frutos deliciosos para oesprito; e eu, imitando a rvore, tenho uma alegria ntima e um prazer espiritual em dedicar estenovo fruto de minha maneira de sentir Reviver o vivido a seu sublime esprito.

    Aceite, querido Amigo, pois ento serei eu o agradecido em esprito e em verdade.

    Jorge E. Adoum

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    SUMRIO

    Prlogo

    A Rocha da Vingana e do Amor

    Um Relmpago na Noite

    Histria de O Livro sem Ttulo de um Autor sem Nome

    O Processo Contra o Burro

    O Mdico dos Mortos

    A Tragdia Herica

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    PRLOGO

    Se quisssemos colocar a obra do Dr. Jorge Adoum no velho e costumeiro fichrio

    literrio, teramos que dispor cada um dos seus livros numa seo parte. E no se trata do

    escritor que comea e procura encontrar seu lugar adequado; trata-se, isto sim, do desejo d

    chegar a todos os indivduos do pblico leitor, heterogneo e amorfo. Ele escreveu o ensai

    lrico-filosfico Poderes, a obra profunda As chaves do reino, A sara de Horeb, e depois

    apaixonado romance Adonai, alm de estudos histrico-sociolgicos em O povo de mil e um

    noites. Sempre aparecem, porm, duas caractersticas inconfundveis, aquilo que forma

    denominador comum da sua personalidade: a finalidade traada de antemo, o desejo de que

    obra no seja apenas uma fuga da realidade ou um ensaio de a arte pela arte, mas que tenh

    uma projeo para o real, um objetivo a cumprir, uma utilidade pragmatismo que raras vezetem resultado ao mesmo tempo que um prazer. Desta maneira, vemos o aspecto apostlico em

    todos os personagens de suas obras e a voz evanglica, meio Bblia e meio Brevirio em parte

    iguais, ressoando como um eco em cada uma das grutas que o autor intencionalmente construiu

    A segunda caracterstica de sua produo reside no fato de que ela se amolda realidade, ao

    mundo em que ele viveu, ao ambiente que o cercava e exercia influncia sobre ele. Sua obr

    sempre nos deu a sensao de autobiografia. Sempre recordou o passado. Com ele sempr

    tivemos que voltar o olhar, e alguns encontraram as prprias pegadas no caminho que el

    descrevia. E agora, com uma nova obra, Reviver o vivido, sob a forma de contos, as dua

    caractersticas constantes no desaparecem, mas confirmam sua posio de homem vivido, cujo

    projetos conhecem a terra de todas as margens de rios; e sua posio de homem que, aps um

    experincia vivida pessoalmente, coloca-a em palavras para ser assimilada por outro. Desta ve

    ele procurou o relato curto e variado. Esta variao obedece tambm ao desejo de satisfazer

    todos que o lerem. No seno a aplicao, em um s volume, daquilo que demonstrou atrav

    de toda a sua obra. So contos que, s vezes, numa referncia ao autor Ricardo Ariel, encontram

    sua explicao na poderosa imaginao oriental. um relato intricado como uma selva ainda nexplorada, emaranhada pela imaginao, mesmo quando se nos apresenta com todos o

    caracteres da histria individual do que aconteceu faz tempo e muito remotamente. Mesm

    quando alguns deles tm os nomes dos seus verdadeiros protagonistas, mesmo quando n

    podemos neg-lo haja algo de autobiografia, todos tm um mesmo sabor de lenda, todo

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    contm a mesma expectativa do extraordinrio que a expresso Era uma vez... fazia ressoar no

    crebro infantil. Todavia, apesar da variedade dos temas e da tcnica do relato, perpassando

    gama infinita da tradio histrica at a fbula, do inverossmil ao bblico, de ensino tendente

    superao tica do indivduo. Mormente nos fragmentos de uma obra indita de sua autoria

    intitulada O livro sem ttulo de um autor sem nome, que aparecem intercalados no relato.

    Nesta obra, encontramos a mais serena e profunda meditao sobre o homem, vista so

    diversos ngulos. Essa compreenso do destino humano, da obra que chamado a realizar, ess

    conhecimento que j havia evidenciado em todas as suas obras, nada esquecido por Jorge E

    Adoum, nem mesmo no relato que, s vezes, e muito equivocadamente, d-nos a sensao d

    descanso ou de abandono. E este sinal sempre evanglico, que evidentemente age em demrit

    do valor puramente artstico, quando se encara a arte como luxo do diletante ou do esnobe, faz

    nos supor, pelo menos, que dar seus frutos, enquanto houver ouvidos que ouam e olhos quvejam. Quando todos estamos empenhados na transformao humana, quando queremos, po

    diferentes meios, que se reparem os danos causados por interpretaes distorcidas da civilizao

    quando lamentamos na prpria carne os desvios individuais ou coletivos, que importa um

    descenso ou declive no exclusivamente esttico, no extraordinariamente original, se o que

    mundo necessita no propriamente uma diverso a mais, um meio a mais de distrao

    esquecimento, um veculo de evaso ou de fuga do mundo, mas uma seta que assinale os erros

    uma mo que providencie remdio para os doentes? Que importa que no haja ourives d

    imaginao, fantsticos construtores de parasos, nem paisagistas da realidade humana, quand

    surgem em seu lugar o observador analtico de um laboratrio humano e o transformador

    poltico, religioso ou mdico que faz de toda idia e palavra arma e instrumento para realiza

    aquilo que constitui a misso de todo ser que pensa, que poucos, pouqussimos, souberam

    compreender que esse era seu destino e sua misso?

    Ao concluir a leitura deReviver o vivido, fica-nos um sabor amargo na alma. todo o sa

    humano acumulado, o mesmo que sentimos todos os dias em nossos lbios, e era preciso que

    encontrssemos em algumas linhas impressas para podemos meditar, ainda que por um

    momento, na forma e dimenso do mundo que gira sob nossos ps. Porm, fica tambm e ess

    o valor das obras construtivas a esperana de que algum dia a condio humana possa mudar

    e mudar. Fica a certeza de que a nica coisa que fazia falta era a vontade. No a vontade d

    sofrer dos decadentistas nem a dos mrtires envoltos em cilcios. No mais a vontade de domina

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    e acorrentar cervizes e conscincias. somente a vontade de sanar, de destruir para construir, d

    construir sobre o construdo, de cortar e mutilar o que est estragado ... Nada mais que a vontade

    que to difcil de ser encontrada, como a soluo de um enigma.

    Esta nova obra, que segue o mesmo caminho rumo luz, tem o valor de nos ensinar o

    contedo da humanidade que no descobrimos nos Evangelhos. Talvez seja porque vimos mai

    de perto a utilizao que se fazia deles. Talvez porque aqueles que deviam nos ensinar negassem

    com as mos o que diziam com os lbios. Ou talvez porque nos parecesse afetado. Ou porque

    fosse demasiado divino...

    Sem nenhuma pretenso, e quem sabe ignorando-os, esta obra os tornou humanos. T

    humanos que o compreendemos e sentimos.

    J. E. Adoum (h

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    A ROCHA DA VINGANA E DO AMOR

    Eram trs da madrugada em Abu el Asal, um osis no deserto da Arbia, quando o gui

    beduno me acordou.- Cidi (senhor), j est na hora de comear a caminhada.

    Acordei com muita preguia, como se no tivesse dormido. O corpo exigia repouso, mao dever me chamava a cumprir essa misso secreta em Ma, cidade-estao que se encontra meio caminho da estrada de ferro entre Damasco e Medina.

    Tive que vestir-me, bocejando sem parar. a maldita guerra que exige de ns todos osacrifcios, para preparar uma emboscada que aniquile totalmente nossos irmos, em virtude dguerra chamados de inimigos.

    Sim, era a guerra de 1918. Naquele tempo, eu era rabe e os meus inimigos eram oturcos.

    De novo bocejei ainda com mais vigor, quando me ajeitei nos arreios de meu camelo.

    O nobre animal levantou-se sobre as patas traseiras com tanta rapidez que me teria jogada uns metros de distncia, se o meu instinto de conservao no me tivesse levado a agarrar-mcom firmeza na madeira dianteira da sela. Contudo, naquele momento, experimentei uma dointensa em certo lugar de meu corpo, da qual, por vergonha, no falei ao beduno. Tampoucagora tenho o desejo de falar sobre ela.

    Meu guia ia a p.

    A lua, vermelha, talvez envergonhada com a barbrie humana, ocultara-se atrs dhorizonte das areias do deserto para no contemplar aquele feroz animal chamado racional.

    Encetamos a viagem. O guia ia atrs, agarrando cauda do camelo, a fim de apress-lo com a inteno de poupar energias ao ser puxado pelo animal.

    Depois de caminharmos uma hora, o beduno disse:

    - Cidi, o Sol de hoje vai lanar verdadeiras flechas e agulha.

    - Como que voc sabe? perguntei.

    - Por esta fresca aragem respondeu.

    O rabe do deserto o melhor astrnomo do mundo: para ele, cada estrela uma bssola muito mais entendido sobre o seu deserto e sobre o seu camelo, do que um capito de navio nomar.

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    Seus olhos de guia vem as coisas muito mais ntidas do que atravs dos melhorebinculos; seu olfato distingue o cheiro de sua tribo a uma distncia fantstica, enquanto que seouvido percebe o sussurro de uma erva ou de uma flor.

    Ainda hoje, o rabe nmade continua sendo o verdadeiro filho da natureza, compreendos mistrios da imensido e sabe gozar e sofrer as ddivas e as privaes da amplido infinita.

    O rabe do deserto nobre, generoso, hospitaleiro e, por acrscimo, um filsofo nato autntico.

    Nunca manifesta cansao, nunca se queixa de sua sorte; vive sempre feliz naquele espailimitado onde o Sol queima continuamente.

    A tristeza contnua do deserto, sua aridez, suas noites montonas e interminveis diacalorentos, sua temperatura invarivel em todas as estaes do ano, suas tempestades de areiaseus ventos de simum e todas as suas calamidades retrocedem a fogem diante da natureza frredaquele nmade.

    Parece que, desde os primrdios dos sculos, a me natureza desconheceu e abandonou seu filho, o deserto, mas outorgou a seu neto, o nmade, todos os seus dons e todo o seu poder.

    O nmade no vive do cultivo da terra. Alimenta-se de leite e carne. Toma gua pura cristalina. Ele desconhece o lcool. Tece suas roupas com suas prprias mos, usando para isso l de suas ovelhas, e constri sua tenda com o mesmo tecido.

    Obedece apenas sua prpria intuio. Desde pequeno, dedica-se arte de brandir espada e manejar o rifle e de cuidar dos rebanhos. Com uma maestria surpreendente chega atirar, com a mo uma pedra que atravessa o espao, silvando como as da funda de Davi, par iatingir infalivelmente o alvo. Esta destreza ele adquiriu em sua prtica de pastor, e aquela pedrlanada a tamanha distncia poupa-lhe o incmodo de correr atrs de uma ovelha desgarrada.

    Aos quinze anos j se apaixona, poeta, bom ginete e guerreiro experimentado.

    Os osis no deserto so como as ilhas em alto-mar. As tribos vivem naquelas ilhas ddeserto, mas continuamente viajam e mudam-se com suas tendas e rebanhos, deslocando-se dum osis a outro em busca de pastagens.

    * * *

    O sol, aquele carinhoso e bondoso pai de todo ser vivo, ergue-se no deserto como uminimigo mais feroz e vingativo. O sol, o ser mais leal, aparece no deserto como o mais cnico mentiroso, ser por que o homem falso e finito, diante da imensido, torna-se inconsciente frentao poder csmico? Ou ser a vanglria da mente que se descobre diante da verdade nua?

    - Ahmed, hoje o Sol nasce no Ocidente? perguntei.

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    - No Cidi... O sedutor facilmente se engana respondeu-me, com um sorriso nos lbios.

    Francamente, essa resposta me feriu, mas tive de morder a lngua por um momento a fimde no magoar meu guia; no porque o temesse, mas por temor ao deserto.

    Passado um momento, aparentando bondade, perguntei-lhe:- Ahmed, voc nunca enganou ningum?

    Impetuosamente, e antes que eu conclusse minha pergunta, retrucou:

    - No, por Al!

    - No feriu nem matou a ningum?

    -A muitos, Cidi replicou-me mas eu sempre prevenia de muito longe o inimigo, gritandolhe: Entregue-se ou defenda-se!

    Novamente a rplica provocou uma descarga em meu sistema nervoso como quem recebum tremendo susto. Estaria aquele filho do deserto lendo os meus pensamentos? Teria elsuspeitado que eu iria armar uma emboscada ao inimigo? No. O remorso de minha conscinciera quem aplicava uma agulhada a cada palavra do meu companheiro.

    Intuitivamente, o nmade representava o papel da minha conscincia.

    Ambos nos calamos: eu continuava meditando no valor daquele homem que, antes dluta, previne o seu inimigo, ao passo que ns, os civilizados, chamamos essa gente dselvagens.

    Depois de andar um longo trecho, quis quebrar a monotonia do deserto e perguntei ameu companheiro:

    - Ahmed, qual ser nossa prxima parada?

    - Cidi, quando o Sol chegar ao znite, estaremos sombra da Rocha da Vingana e dAmor.

    O nome daquela paragem me impressionou profundamente e lhe perguntei:

    - Ser que um osis frtil?

    - No, Cidi, o osis da Vingana e do Amor, embora nele corra um fio dgua.

    - Deve haver uma histria.

    - Sim, e por sinal muito dolorosa.

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    - Pode cont-la a mim?

    - Agora no, porque a lembrana me aniquilaria as foras e depois no poderia andar; maquando chegarmos sombra daquele rochedo contar-lhe-ei uma histria de amor mais ardentque os raios deste Sol.

    * * *

    At hoje no compreendo como pudemos nos livrar daquele inferno.

    As areias ferviam, os raios do Sol pareciam combustvel para o deserto infernal, o maimenso abrasava. Apesar da ausncia da gua e dos alimentos, naquele mar de fogo s vive Yarbuh, animal pequeno que se assemelha ao rato.

    A uma distncia incalculvel, o viandante contempla um mar de gua azul e lmpida. miragem. Uma nova tortura proporcionada pela viso para uma boca sedenta e uma lngua secaAqueles incrdulos que no acreditam no suplcio de Tntalo deveriam viajar somente um dipelo deserto, para que se convertessem nos mais ferrenhos crentes desse mito.

    Como o homem rico do Evangelho que solicitava a Abrao uma gota dgua para molhaa ponta da lngua, eu pedia a Ahmed que me cedesse uma gota dgua do odre que o camelocarregava; mas, quando molhei meus lbios e lngua, tive de cuspir a gua, porque estava quenteAlm de quente, cheirava a couro estragado e era salgada, o que fez a sede exacerbar-se.

    Tratava de respirar pelo nariz ou pela boca e por ambos os condutos aspirar fogo.

    At Ahmed, o filho do deserto, o homem frreo, comeou a soltar certos roncos que spareciam com os foles de um ferreiro.

    - Estamos ainda longe da rocha? perguntei, j esmorecendo.

    - Agora, sim, chegamos.

    Eu entendia o que significava a palavra agora pronunciada por um beduno do desertoAgora quer dizer muitos quilmetros mais, e um tempo indeterminado para quem estdesesperado.

    - Ahmed... o Sol j est no znite?

    - Ainda no, Cidi.

    O camelo e Ahmed continuavam sua marcha, mas o Sol parecia que parava para melhoapontar suas flechas contra mim.

    Que desespero e que sofrimento!

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    Depois de cem minutos ou aps seis mil lentos e interminveis segundos e ao contornauma duna de areia, minha vista tropeou com uma colina que tinha a forma duma empada cnice cortada ao meio. Tive que limpar meus olhos vrias vezes para certificar-me de que no stratava duma miragem. No... era pura realidade! Eram arbustos, era verdor, era sombra e ergua. Clon gritou: Terra! E meu corao pulou e exclamou: gua!.

    No me lembro se naquele instante chorei ou ri, mas acredito que chorei e ri ao mesmtempo, tal qual a me que reencontra seu filho, depois de muitos anos de ausncia.

    No sei como me precipitei de cima da minha montaria, nem como me arrastei at sombra de uma enorme rocha que parecia incrustada pela mo de Deus no ventre da colina, naquela sombra me desfiz do meu manto, do leno de pescoo preso por grosso cordo emminha cabea e joguei-me ao cho, de boca para cima, em forma de cruz, resfolegando, numsuspiro que significava satisfao ou uma ao de graas.

    Ahmed conduziu o camelo sombra; logo aproximou-se do manancial com umrecipiente, encheu-o e voltou para junto de mim.

    Depois de despejar o contedo de um vaso sobre uma pedra que estava perto de mimentregou-me outro, dizendo:

    - Cidi, voc tem que tom-la aos goles; seno lhe far mal.

    Eu no tinha ouvidos para escutar conselhos, peguei o vaso com a mo trmula e examinei, mas no tinha mais que um gole.

    O prudente nmade sabia o que fazia.

    Deu-me o segundo, o terceiro, o quarto, at o dcimo. Depois me disse:

    - Por enquanto, chega.

    Em seguida molhou um trapo e passou a refrescar-me as tmporas e o rosto.

    Antes de cinco minutos adormeci e sonhei que estava tomando banho num rio de guamuito claras.

    s duas da tarde, o beduno me acordou, dizendo:

    - Cidi est na hora do almoo.

    Acordei com m vontade. A gua fresca despertou-me totalmente.

    O almoo consistia de leite amanhecido, seco e posto de molho, de bolachas conservadaem boies, tmaras e tamarindo em conserva. No quis abrir nenhum boio de conservas parno aumentar a sede.

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    - Deixa estar que escapamos de uma boa disse ao meu companheiro.

    - Cidi, o deserto como Deus: rigoroso, porm bondoso.

    - Ahmed, gosto de sua filosofia.

    - Senhor, o que filosofia?

    - Filosofia a maneira de expressar bem o que se sente respondi-lhe simplesmente, parno entrar em pormenores com uma pessoa ignorante.

    Ele ficou pensativo por um instante e logo me jogou esta pergunta:

    - Ento... o sentimento sem expresso no filosofia?

    Essa pergunta me deixou intrigado. Prontamente ele continuou:

    - Faz duas horas que estou diante desta pedra e apontou para aquela sobre a qual tinhdespejado o primeiro vaso dgua e ela me ditou muitos pensamentos sem falar uma nicpalavra. Mas, se agora lhe relato com minhas frases o que a pedra me disse com o pensamentoqual dos dois tem filosofia: ela ou eu?

    Minha admirao chegava perplexidade quando ouvi aquela dissertao e, para nficar calado, disse-lhe:

    - Voc tambm poeta, e gostaria de saber o que essa pedra lhe disse.

    - D-me um pouco de fumo para encher meu cachimbo pediu.

    Dei-lhe poro dupla.

    Encheu o cachimbo, acendeu-o e absorveu a fumaa at encher os pulmes. Em seguidacom uma voz lastimosa e afvel, cantou estes versos no idioma expressivo do deserto:

    Eram dois: ele, o Sol, e ela, a Lua;ansiavam conjuno nesta vida;mas a fatalidade, arma homicida,impiedosa na tumba os une.Eram dois e no amor foram um;mas continuaram doisporque assim quis Deus.Ambos devem viver; seno, nenhum.

    Quando o cantor terminou estes versos, soltou um suspiro prolongado, calou-se por ummomento, e, em seguida, me contou esta histria:

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    Para o lado do sul e a uma curta distncia daqui, encontra-se a tribo de Luam, que contcom cinco mil rifles (5.000 guerreiros, segundo a linguagem dos bedunos); minha tribo. Oemir Has, chefe da tribo, tinha uma filha chamada Laila, a mais formosa mulher de todas amulheres do deserto. Seu pai a adorava. Desde muito criana, Laila manejava o rifle como melhor guerreiro, e a espada, como um dos mais destacados; seu brao descarregava a lan

    como um gigante. Quando montava a cavalo, todos achavam que era uma s pea com montaria. Segundo os poetas rabes, Laila tinha olhos de gazela que fascinavam; uma beleza quencantava; corpo esbelto e elegante, e seus braos trgidos dominavam o seu contendorDescrever a beleza e o valor de Laila profan-los; porque a beleza, Cidi, algo abstrato; o filhdo deserto apenas a sente.

    Comparar um corpo esbelto com uma palmeira ou a cor do rosto com uma ma, os olhocom os da gazela, a negrura do cabelo com a noite, os seios empinados com as roms... todaestas comparaes so absurdas, inconsistentes e vazias diante da realidade. Cidi, a beleza ssente, mas no se descreve.

    Na parte norte e mesma distncia daqui, vive tambm a tribo Jozha, cujo emir Nuri, qual tinha um filho de nome Munir, um perfeito exemplo de juventude, de nobreza e dheroicidade.

    Entre as duas tribos reinava uma maldita vingana que datava de muitos anos e cujorigem de dio e inimizade no pde ser apagada com o transcurso dos dias e das noites.

    Um belo dia, o tecelo dos destinos reuniu por casualidade, como dizemos por aqui, odois inimigos, filhos de inimigos, netos de inimigos: Laila e Munir, neste mesmo lugar ondestamos sentados, sob esta rocha.

    Munir nunca tinha visto Laila anteriormente e acreditou que se tratava deu uma hurvinda do cu. Ficou encantado diante de tanta beleza, de tanta graa e de tanta vivacidade. Posua vez, Laila, desconhecendo seu inimigo admirou em Munir a sua beleza, sua eloqncia e sudignidade.

    Sob a sombra desta rocha os dois se cumprimentaram, no incio com certo temor da partde Munir e pudor da parte de Laila. Em seguida passaram a conversar. De qu? No se sabporque a linguagem do amor sempre inspirao do momento e um absurdo tratar de lembratudo o que h de entusiasmo naquele momento.

    Depois compartilharam o po e a comida composta de carne cozida e fria, tmaras demais fiambres que os filhos do deserto utilizam. Mas no fim acabaram apaixonando-sloucamente sem que nenhum deles se atrevesse a declarar seu amor ao outro.

    Uma vez satisfeitos e contentes, Munir dirigiu esta pergunta a Laila:

    - Esta beleza que vejo, pode dizer-me que ?

    Sorrindo e mostrando seus dentes semelhantes a um colar de prolas, Laila respondeu:

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    - Por que no? Eu sou Laila Luam, filha do emir Has. E voc, que ?

    Munir arregalou os olhos e ficou petrificado em seu lugar, sem poder articular umpalavra.

    Laila insistiu:- Por que no responde?

    Ele, refeito de sua perplexidade, disse:

    - Seria prefervel que ignorasse meu nome.

    - Agora, mais que nunca, exijo sab-lo.

    - Voc h de se arrepender de sua exigncia.

    - Isto mil vezes prefervel dvida.

    - Pois bem, Laila, foi voc quem o quis. Eu sou... Munir de Jozha.

    Laila levantou-se bruscamente, como quem quer defender-se de uma vbora, e empunhoseu revlver. Munir continuou sentado em seu lugar, mas seus olhos acompanhavam o menomovimento de sua adorada inimiga.

    Durante um lapso de tempo entreolharam-se como dois lees que se preparam para a luta

    Finalmente Munir falou:

    - Laila compartilhamos e comemos do mesmo po.

    Essas palavras desarmaram a jovem. Uma tristeza infinita se apoderou dela. Jogou-se acho, silenciosa, contemplando o horizonte longnquo.

    - Laila continuou o jovem com frases arquejantes o destino foi muito cruel conoscoSem voc, j no posso viver e, com voc, impossvel viver. Tenha pena de mim. Eu sou criatura mais infeliz do mundo, somos inimigos e no h esperana nem misericrdia para mimLivre-me, minha amada, de minha tortura, de minha vida. Descarregue seu revlver em meupeito e desta maneira praticar duas boas aes: a primeira, a de matar um de seus inimigos, e segunda, a de dar-me o descanso eterno. Tenha compaixo de mim.

    Ao ouvir estas palavras, Laila tapou a boca com a mo para afogar um gemidsemelhante ao queixume duma leoa que retorna sua guarida e no encontra seu filhote. Atocontnuo, deu um salto e colocou-se diante do jovem, pegou-lhe as duas mos e falou comdificuldade, como a quem foge a respirao:

    - Munir, voc me ama?

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    -At a morte, Laila.

    - Ento... morramos os dois.

    Dito isto, puxou da arma e a dirigiu contra seu prprio corao; mas o jovem, com rapidez de um raio, apoderou-se da mo dela. Laila resistia com todas as foras, mas as mos dMunir a subjugaram como tenazes de ferro. Finalmente, o amante lhe disse:

    - Este no foi o trato.

    - Prefiro a paralisia de minha mo a disparar contra o seu corao.

    - Laila, voc me ama?

    Ao ouvir aquela pergunta, a jovem no conseguiu resistir mais; largou o revlver mergulhou num mar de lgrimas.

    Diante de uma desgraa, as mulheres choram, os homens, porm, calam-se. Para ohomens, a desgraa como a tempestade do simum: faz as aves silenciarem.

    Depois de um largo silncio, Munir continuou:

    - Laila, analisemos a situao. Somos inimigos por tradio, mas nosso amor mais fortque todas as tradies do mundo. Agora voc deve enxugar suas lgrimas e tranqilizar-se parresolver este problema... Vejamos: est disposta a seguir-me onde quer que eu v?

    - No, Munir, isso impossvel, porque meu ato, alm de ser ultrajante, provocaria umguerra de extermnio entre as duas tribos e meu pai morreria de mgoa e dor.

    - Quer que eu me entregue a seu pai, at na qualidade de escravo? Assim, talvez tenhcompaixo de mim, quem sabe, faamos as pazes entre as duas tribos...

    - No infeliz! Voc sabe muito bem que minha gente to vingativa como a sua: nperdoa a vida de nenhum de seus inimigos.

    - Ento s me resta atacar os seus guerreiros com os meus e, depois de aniquil-los, raptla fora.

    - Como voc ingnuo e ignorante! Acaso acredita ser mais forte do que ns? E, na piodas hipteses, suponhamos que voc seja mais forte. Poderia, acaso, passar pela sua cabea queu, a princesa Laila, consentiria ser raptada fora para ser sua mulher?

    Munir calou-se de novo, procurando dentro de si uma soluo satisfatria e, diante dimpossibilidade de ach-la, teve de responder:

    - Assim sendo, diante de ns temos somente a morte.

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    - Eu tambm penso o mesmo... Contudo...

    - O qu? perguntou ele, com tom de esperana.

    - No se iluda muito, para no sofrer uma decepo... Contudo, no devemos precipitar oacontecimentos... Tudo chegar a seu devido tempo... Por enquanto, devemos viver e esperar sentena fatal do destino.

    - Como posso viver sem voc?

    - sombra desta rocha podemos nos encontrar duas ou trs vezes por semana.

    - E seremos um para o outro durante a vida?

    - E at a morte concordou ela com singeleza.

    - Voc jura?

    - Juro.

    - Que prova me dar?

    - Um tufo de meus cabelos.

    - Basta-me, amada de minha vida e de minha morte.

    - Para mim, isto no suficiente.

    - Que mais voc me pede, ento?

    - Exijo o pacto de sangue.

    O jovem estremeceu de alegria e ficou olhando-a durante um demorado instante. Elsustentou seu olhar com outro cheio de ansiedade e deciso.

    Em seguida, com uma calma aterradora, ele desembainhou sua adaga, agarrou-a com mo direita e perguntou:

    - Em que lado?

    Por sua vez, ela havia tomado sua arma, enquanto seus olhos continuavam pregados ncriatura adorada e, quando ouviu a pergunta, respondeu com toda a naturalidade, ao mesmotempo em que descobria seu peito:

    - Aqui na regio do corao.

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    E ambos, com a mo firme, feriram-se mutuamente.

    O sangue brotou...

    Aproximaram-se um do outro.

    Com a mo esquerda seguram a roupa, para deixar a carne a descoberto...

    Aproximam-se lentamente...

    Cada um contempla sua prpria ferida...

    A respirao dos dois torna-se agitada...

    E com lentido e silncio colocam ferida sobre ferida.

    o pacto de sangue: vida e morte para ambos...

    Assim permaneceram um curto espao de tempo abraados, os olhares dos dois sinterpenetraram e mergulharam no mais ntimo do esprito.

    Em seguida ele falou, com voz entrecortada:

    - Selemos o pacto de sangue com um beijo.

    E beijaram-se, misturando o hlito, a emoo, a alegria, a dor, a felicidade e a desgraa.

    Era um beijo aniquilante, que uniu seus espritos, suas almas, seus coraes e suas vidasS no tinha o poder de unir seus corpos.

    O pacto de sangue uniu-os na vida e at a morte, mas a honra separava seus corpos...

    * * *

    Aqui Ahmed tornou a encher o cachimbo com o resto de fumo. Acendeu-o, absorveu fumaa e voltou a lan-la para o ar.

    Naquele lapso de tempo, eu me senti como uma criana que escuta um conto de seu pai, qual repentinamente se cala, deixando sem concluso o conto, para dizer-lhe: E agora, vamodormir.

    Tambm sofria quando, j crescido, lia uma novela folhetinesca e chegava ao final dcaptulo para ver estampada alia a fastidiosa palavra continuar.

    O filho do deserto percebeu meu desespero por conhecer o final e comeou a brincar comos meus sentimentos como um gato com sua torturada ratazana.

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    Finalmente, depois de uma pausa, que foi para mim interminvel, o historiadoprosseguiu com seu relato.

    - Cidi, eu considero os dias de felicidade com tmaras maduras: comemo-las quandtemos fome e tambm por gulodice. Assim, Munir e Laila esgotaram seus dias por fome e po

    gulodice. No comeo, encontravam-se duas vezes por semana sombra desta rocha, depois trvezes, a seguir, quatro e, posteriormente, quase todos os dias.

    O pacto de sangue fez com que sentissem seu efeito j na vida.

    O emir Has, pai de Laila, notou uma mudana em sua adorada filha. s vezes a vialegre e, com sua alegria, distraa tambm toda a tribo. Mas, em certas ocasies, a jovemrevelava certo abatimento que contagiava todas as pessoas que a rodeavam.

    Sem saber a que atribuir aquela mudana repentina de sua filha, certa noite o pai lhdisse:

    - Laila, adorada de meu corao, gostaria de te ver casada antes de minha morte.

    Diante dessa proposta, Laila tremeu e ficou plida como um cadver.

    Fitou demoradamente seu pai, em silncio, mas depois sacudiu os ombros e levantou-spara sair da tenda.

    - Que tens, minha filha? No te agradou minha proposta?

    Aquela pergunta cheia de ternura arrancou o sorriso dos adorados lbios de Laila; mas erum sorriso impregnado de uma dor e de uma tristeza que arrancam lgrimas dos olhos maisecos.

    Aquela noite, eu estava presente durante a conversa e, ao ver a amada Laila naquelestado, senti que o vu das lgrimas obnubilava minha viso. Esta foi a primeira vez, em minhvida, que senti vontade de chorar, o pai suspirou em silncio.

    Ao ver-nos mergulhados naquela tristeza, a jovem mudou subitamente de atitude e, comtodo carinho de sua alma, aproximou-se de mim; e com as polpas dos seus dedos acariciou ma de meu rosto, dizendo-me, com um tom mesclado de censura e de ternura:

    - Ahmed!

    Em seguida se dirigiu a seu pai, beijou-lhe a testa e falou-lhe com aquela voz que s afilhas sabem empregar com seus pais:

    - Emir! J ests desmamado de mim? Ah, maroto! J sei, j sei...

    O emir Has abraou-me forte, enchendo-a de beijos e, entre um e outro, lanava-lhestas palavras:

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    - Ah, sua mimada! Confiada! Travessa! Sempre ests ausente! Que fazes em tuaexcurses?

    Laila gargalhava. Adorava seu pai. Nunca lhe causou desgosto algum; at os capricho

    dela eram satisfeitos, com o consentimento do emir.Quando ouviu a pergunta do pai, respondeu-lhe, tambm rindo:

    - Estava procurando meu noivo.

    - mesmo? E o encontraste?

    - Sim.

    - mesmo? Quem ele?

    - Algum dia sabers.

    - Por que no agora?

    - Porque agora ele est muito distante.

    - Ests vendo? Mentirosa!

    - Eu no minto.

    - Dize-me quem ele.

    - No!

    - Sim!

    - No!

    Desta maneira, entre sim e no, pai e filha se beijavam, s vezes gracejavam, com ocarinho de um pai vivo que no quis levar para casa uma madrasta para seus dois filhos: Lailaque na poca tinha vinte e dois anos, e Fauaz, com apenas onze, e com o amor de uma filha quencontrou em seu pai a ternura da me que perdeu.

    Em muitas ocasies presenciei essas cenas de sim e de no, mas aquela foi a mais ternaDevo avis-lo, Cidi, que sou primo de Laila; ela me devotava muita estima e s vezes mconfidenciava certos segredinhos de sua vida ntima, segredos que no podemos contar a nossopais.

    Munir e Laila voltaram a se encontrar duas vezes por semana, em seguida trs, depoiquatro e, por ltimo, quase todos os dias.

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    s vezes Laila voltava para casa tarde da noite, mas ningum se atrevia a perguntar donde vinha nem onde ia. Somente o pai a advertia com estas palavras: cuidado com os Jozhafilhinha; so inimigos terrveis.

    E ela ria, dizendo: Nenhum dos Jozha se atreve sequer a olhar-me.Aquela resposta me causava muita admirao, mas tambm eu estava convencido diss

    sem saber por qu.

    Nas freqentes reunies dos dois namorados desenrolavam-se cenas muito variadas. vezes reinava a alegria que os fazia esquecer a situao, mas em outras ocasies apoderava-sdeles um silncio aniquilante.

    Ele sentava-se e apoiava as costas nesta pedra. Ela ento chegava, beijava-o, colocava-sao lado dele para apoiar a cabea no seu peito e assim passavam, silenciosos, vrias horas, at momento da separao.

    Ento se despediam com outro beijo e cada um montava seu corcel e ia para seu lado. Emque pensavam? Que planos faziam? S Deus o sabia, mas eles pressentiam a proximidade ddesgraa.

    E... num sbado fatal, meu tio, o emir Has, chamou dois primos seus e a mim para que oacompanhssemos em sua excurso.

    Todos armados e montados em nossos cavalos de puro sangue, dirigimo-nos para o norteantes da aurora. Todos estvamos mal-humorados sem saber o motivo. Raras vezes falvamosMeu tio notou aquele estado de esprito e repetiu mais de trs vezes esta frase: Este dia mensageiro de desgraas.

    Finalmente surgiu o Sol; para mim no era o Sol de todos os dias, era algo diferente.

    Continuvamos andando pelas dunas, cada qual para seu lado. Por fim meu tio falouquando os raios do Sol comeavam a esfuziar:

    - J est na hora de voltar para casa.

    Todos obedecemos e juntos empreendemos o retorno.

    A mesma melancolia nos perseguia. Pela segunda vez tive vontade de chorar.

    Os cavalos seguiam bracejando pelo leito de uma extensa duna. Mais uma pouco dtempo e chegaramos plancie, e na realidade chegamos, porm...

    Aqui Ahmed calou-se; fechou os olhos, como quem quer relembrar todos os pormenoresTremendamente aflito como eu estava, no agentei esperar mais e perguntei:

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    - Que aconteceu?

    O rabe abriu lentamente as plpebras marejadas de lgrimas, coisa que me comoveuprofundamente, e continuou:

    Naquele momento demos casualmente com um ginete jovem e ataviado, que montavum cavalo negro. Ningum de ns o conhecia. Ao v-lo, paramos; tambm ele nos viu e parou.

    Empunhando o rifle, o emir Has gritou:

    -Quem o ginete?

    Com toda a tranqilidade, como quem no espera nenhuma surpresa desagradvel, jovem respondeu:

    - Munir Jozha.

    Aquele nome retumbou em nossos ouvidos como um trovo.

    Munir Jozha, a presa mais valiosa de todas as nossas vinganas, passadas e futuras.

    Munir Jozha ao alcance de nossas balas?

    Isso era inacreditvel!

    - Defenda-se! trovejou a voz do emir.

    - Como voc sabe, Cidi, a palavra defenda-se, empregada sozinha, significa: Quero tuvida.

    No pude dar-me conta do que aconteceu naquele timo. Acredito que bis veio emsocorro do jovem ou ele prprio se converteu num demnio. O certo que, antes que meu tiacabasse de falar, ele, seus dois primos e meu cavalo achavam-se atravessados pelas balas dinimigo e estendidos no cho; ningum de ns tinha disparado um s tiro.

    Antes de refazer-me da surpresa, achava-me cado na areia, e o inimigo, ao meu ladoordenando-me:

    - Levante-se!

    Pus-me de p...

    - Quem so vocs?

    Eu, que gaguejava de dor pela morte dos meus e no por medo, indiquei-lhe com a modizendo:

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    - Este o emir Has Luam... e estes so seus primos, Amin e Foad.

    Ao ouvir minhas palavras, o jovem golpeou sua fronte com a mo e externou sua dor comgemidos:

    - Maldito seja meu destino!Deu um pulo e achegou-se aos cadveres, que passou a examinar, um por um. A mort

    fora instantnea. Trs balas vararam os trs crnios, e da fronte de cada um deles minava umfilete de sangue, ao passo que do occipital brotava um jorro vermelho.

    Convencido de que estavam mortos, virou-se para mim com os olhos e o rosto injetadode sangue. A tristeza cobria-lhe as feies. Fitou-me durante um breve instante e disse:

    - Vou atrs dos cavalos. Volto j.

    No me mexi do lugar, pois estava petrificado.

    Passados alguns minutos, ele regressou com os cavalos. Carregou os cadveres sobre doideles e mandou que eu montasse o terceiro, indagando:

    - E voc, como se chama?

    - Ahmed respondi-lhe.

    - Parente do emir?

    - Sobrinho.

    - Se o conjuro pelas almas destes mortos, voc pode me fazer um favor?

    - Qual ?

    - Dizer a Laila que o assassino de seu pai lhe manda dizer: Sexta-feira.

    - Voc conhece Laila?

    Encarou-me com clera e disse:

    - Voc no deve perguntar nada. Quer levar minha mensagem?

    - Prometo-lhe.

    - Ento, adeus.

    Montou seu cavalo e dirigiu-se para a sua tribo.

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    * * *

    A desgraa que transtornou a tribo Luam no conseguiu arrancar uma nica lgrima doolhos da Laila.

    Depois do enterro, ela se fechou em sua tenda.No comia nem bebia. Eu visitava-a vrias vezes durante o dia e a noite. Ela tomava gu

    em abundncia como se um fogo a consumisse por dentro.

    Todos respeitavam sua dor, no lhe falavam porque ela no queria falar.

    Na manh de quinta-feira, ela pediu o desjejum. No almoo comeu algumas tmaras. Emseguida, convocou sua presena todos os chefes da tribo para uma reunio durante a noite.

    Todos compareceram, e ela falou-lhes com este discurso, com frases entrecortadas, comouma pessoa que se afoga:

    - Senhores... morreu meu pai... Meu irmo Fauaz ser o chefe... Seu tutor ser Ahmedmeu primo... Os que no concordam, podem deixar livremente a tribo... Eu, sozinha, vingarei sangue de meu pai e de meus tios... Muito depressa sero vingados... E nada mais tenho a dizerAdeus...

    Todos os presentes permaneceram calados, como se o anjo da morte estivesse diantdeles. Todos saram calados da reunio, mas ningum pensou em abandonar a tribo...

    * * *

    Ahmed calou-se, fechando os olhos como que quer visualizar todos os pormenores doacontecimentos. Quando os abriu, j estavam cheios de lgrimas. Contudo, depois de um suspiroprosseguiu seu relato:

    Era aurora da sexta-feira. Laila e eu no tnhamos dormido a noite inteira...

    Ela me ordenou:

    - A cavalo!

    A lua iluminava o deserto: era uma manh clara, porm triste, que anunciava a fatalidadecomo as cs anunciam o duelo com a juventude.

    Durante nossa viagem, Laila aspirou fortemente vrias vezes para encher de ar opulmes, e a certa altura me disse:

    - Ahmed... o homem sacrifica todos os seus bens para conservar a sua vida; mas tem quesacrificar sua vida para defender a honra. Ahmed, vou contar-lhe a histria mais extraordinri

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    que seus ouvido podem escutar. Ahmed, eu amo meu pior inimigo, o assassino de meu pai; euadoro Munir Jozha.

    H muito tempo que o amo e hoje, depois de vingar a honra da tribo, unir-me-ei ao meamado at a eternidade.

    coisa que voc no entende, Ahmed, mas os fatos esclarecero minhas palavras. Sabpor que o trouxe comigo? Para que assista s minhas npcias depois da vingana e transmita notcia com todos os pormenores.

    Laila parava de falar para recobrar o nimo; eu sofria interiormente porque acreditava qua mente da jovem estivesse transtornada em conseqncia das recentes desgraas e, por issodizia despropsitos. Porm, ela continuou:

    O amor um sulto tirano e poderoso; apesar disso, os coraes obedecem cegamente ele, e as almas se prostram diante dele como na presena de Deus. Diante do amor no h raznem juzo porque, depois de escravizar a mente, por a seu servio todos os demais agentes sentidos do homem: o olhar ser seu mensageiro; a contemplao, sua ordem; o pensamento, seespio e a simpatia, sua atrao desalmada; e desta maneira a sombra do ser amado viver emnossos olhos, sua lembrana em nossa boca e todo ele em nosso corao. Foi isto que acontecedesde que celebrei o pacto de sangue com meu amado Munir.

    Eu, sem poder conte-me por mais tempo, compreendi ento e gritei:

    - O pacto de sangue!!!

    - Sim, e at a morte respondeu.

    Ento ela me contou todo o plano...

    * * *

    Era dia bem claro quando aqui chegamos. O prncipe Munir nos aguardava tranqilo sombra desta rocha; quando nos viu, aproximou-se de Laila que, ao invs de apear, atirou-se emseus braos.

    Ela, ao contrrio de todo costume beduno, abraou-o e beijou-lhe a bocdesesperadamente.

    Eu contemplava essa cena, perplexo e mudo.

    Carregando Laila em seus braos, Munir a levou at a pedra que jaz diante de ns e aqui fez sentar-se com delicadeza e cuidado.

    Ningum falou uma nica palavra. Seus beijos constituram toda a sua expresso.

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    Em seguida, ouvi o jovem dizer:

    - Laila... eu no o conhecia, ele me pediu a vida e tive que defend-la.

    - Voc fez muito bem, meu amado falou Laila. Sua vida me pertence, e tampouco

    meu pai eu a teria cedido.Ele a beijou e ambos ficaram em silncio.

    Em seguida, ele me chamou.

    Ahmed, quer aceitar esta espada como lembrana minha?

    Aproximei-me realmente impressionado, peguei a arma que me oferecia e s tive umfrase de agradecimento:

    - Maldito destino!

    Logo me sentei em frente dos dois namorados, enquanto ele perguntava a Laila:

    - Amor, j est na hora?

    - Quando voc ordenar, meu amo e senhor.

    Ento ele descobriu o peito e disse:

    - Vamos, Laila, que a viagem deve ser demorada. Aqui meu amor; este o lado dcorao.

    Em seguida, com um sorriso de satisfao, continuou:

    - Est lembrada, Laila?

    - Sim, meu adorado respondeu Laila, encostando o punhal no peito dele.

    Quero pedir-lhe um favor, Laila: quando minha lngua se atar e j no possa mais falarlhe, fite-me nos olhos e eles lhe repetiro sempre: Amo-a, amo-a.

    Ao ouvir isto, Laila mordeu seu brao esquerdo para afogar o grito.

    Eu tambm tive que tapar a boca com a mo para silenciar o meu grito.

    Depois ouvi Munir ordenar:

    - J! Que est esperando?

    E a faca afundou at o cabo no peito do prncipe.

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    Ele continuava sorrindo, sem nenhum sinal de dor...

    O sangue comeou a minar da ferida.

    Pde ainda falar e disse: Beije-me.Laila ento, como o melhor cirurgio, arrancou a faca do peito do amado.

    Com toda a tranqilidade, procurou no seu peito o lado do corao.

    E... com toda a fora de suas duas mos, enterrou-a com raiva.

    Abraou Munir e lhe disse:

    - Tua at... a mor....te.... tua.... na ter... ni... dade...

    Munir j no podia falar. Um fio de sangue brotava de sua boca. Laila pousou seus lbionaquele manancial vermelho; s que ela, ao invs de sorv-lo, rendeu obsquio com o presentvermelho que tambm minava de sua boca.

    Contemplei-os em silncio... calado e absorto em meus pensamentos. E quando acordepara a realidade, havia milhares de estrelas curiosas que nos olhavam l do alto do firmamento.

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    UM RELMPAGO NA NOITE

    Jos Incio: Vamos visit-lo.

    Jonas: No seja ingnuo, Jos.

    Jos Incio: No entendo o motivo da sua averso. Esse homem tem feito muitas curaque, segundo dizem por a, so maravilhosas. Todo mundo fala dele. Nem que seja por mercuriosidade, podemos ir v-lo rapidamente para conversar com ele e poder avaliar o que fazNada se perde. No acha que estou certo?

    Jonas: Como no?! De minha parte, sinto que perderei o respeito para comigo mesmo, sfor conhecer um charlato. Olhe, Jos, no pretendo seu um sbio infalvel, mas creio que madquiri certas noes que me colocam num nvel que me habilita a distinguir o falso d

    verdadeiro. Parece-me muito interessante e, alm do mais, de grande utilidade fazer um resumde minhas idias sobre aquela filosofia, antes de iniciar o estudo dela. Quanto moral, no vejomotivos para espos-la; no tocante psicologia, tampouco, porque sou um materialista ferrenho(palavras textuais). Tenho muitas provas comigo. Partirei de uma base a realidade objetiva:

    1) O mundo real. Nele est compreendido o meu prprio corpo.

    2) Para mim, existe tambm a natureza do eu: no estado atual da nossa evoluo intelectual, n determinvel nem incognoscvel.

    3) No aceito que a introspeco, tampouco a intuio, possam demonstrar-nos a existncia d

    alma e dar-nos o conhecimento dela, porque tambm os mtodos cientficos no nos oferecemnenhum dado concreto.

    4) Por estar em conformidade e de acordo com minha tendncia intelectual, considerarei esprito uma das energias fsicas j conhecidas, talvez somente em estado de transformao (emestado transformativo).

    5) O conhecimento do mundo exterior possvel e evidente.

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    6) Os sentidos so o elo de unio entre o sujeito e o objeto.

    7) Os sentidos so aparelhos fsicos, registradores de molculas ou de radiaes.

    8) Qual a importncia do esprito no mundo? Para mim secundria. O pensamento no passde uma manifestao (fenmeno?) transitria, assim como a vida, que seu substrato. A energipsquica tem como base o protoplasma vivente. No temos experincia de que a faculdade dpensar se encontre na matria inerte.

    9) Segundo a maior probabilidade, fornecida pelos dados e indues cientficos, a vida devdesaparecer de nosso planeta num futuro mais ou menos distante. Ento desaparecer tambm energia psquica. (Ser mesmo?) eterna? Ser que retornou, talvez, ao estado de matria que jno parece ser seno energia solidificada? Ser que foi a outras partes mais longnquas dUniverso, que um todo?

    10) A intuio, a f e a adivinhao no so fontes de conhecimentos.

    11) O nico mtodo eficaz e seguro que podemos empregar para conhecer a experinciamesmo em se tratando de fenmenos anmicos.

    12) No passam de... (representaes?)... sensaes, estados nervosos (portanto, fisiolgicosque influem nos juzos que formamos e que, de acordo com a lei das probabilidades, s vezepodem coincidir com a realidade.

    Jos Incio: Jonas, agora o compreendo; para voc no h esprito, nem alma, nem mentsuperior...

    Jonas: Para mim no pode haver outra explicao do mundo seno a mecnicaPorventura nossa inteligncia capaz de abranger o Universo e apreender o infinito e o eternoMinha opinio negativa. O Universo que conhecemos no passa do campo em que as foraatuam. A idia de um deus carregado de atributos no pertence filosofia. No h por que levla em considerao. Em filosofia pode-se aceitar a questo da causa primeira? Na realidadetalvez no exista nem o infinito nem o eterno.

    Por conseguinte, parece-me um absurdo pretender resolver o problema da origem dmundo. No podemos conhec-lo; portanto, para ns exatamente como se no o tivssemoconhecimento algum a respeito. O mesmo se pode dizer do problema da finalidade; dele nadpodemos conhecer; como se para ns ele no existisse (palavras textuais).

    Jos Incio ficou um momento pensativo, meditando nas palavras de Jonas Guerreiro; emseguida disse:

    - Ento, segundo seu parecer, so falsas todas essas correntes de pensamentos, desdZoroastro at nossos dias?

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    - Na histria do desenvolvimento do pensamento humano apresentam-se com bastantfreqncia sistemas filosficos, opinies, crenas e, s vezes, doutrinas cientficas que, aps umlonga gestao no obscuro limbo do intelecto, sofrendo ali talvez um lento trabalho dmetamorfose como o gusano no seu casulo voltam depois de longos anos a apropriar-se dointelecto do homem. Pode ser que estes casos lancem alguma luz sobre a lenta e pesada evoluo

    intelectual que, partindo da triste pobreza conceitual do homem primitivo, foi se estendendo atnossos tempos, como a chama de um poderoso incndio, deixando-nos entrever para o futuruma riqueza e uma complexidade ainda muito maiores. Parece-me que nisso que se estriba importncia de seu estudo.

    - No seria bom e conveniente consultar este novo mago para ouvir suas idias sobre assunto?...

    - Ah! Ah! Ah! Voc sempre est pensando em seu novo mago. No resta dvida de quse torna interessante ver como um pensamento informe e nebuloso como o balbucio inconscientde uma criana enunciado somente para satisfazer aquela imperiosa necessidade espiritual dpossuir uma explicao dos fenmenos do mundo, de inventar uma chave que os decifre e oconverta em escravos do homem arraigou-se e apoderou-se de quase todo o campo da cincimoderna, culminando em vastas e lgicas teorias...

    Jonas Guerreiro calou-se por um momento e logo acrescentou:

    - O seu mago ir lhe explicar a teoria da evoluo. A meu ver, esta doutrina evolucionistparece verdadeira, porque explica satisfatoriamente os problemas biolgicos. A doutrina devoluo repousa nas causas e nos efeitos. Mais ainda: se queremos informar-nos das causas quproduzem essas mudanas, isto , a respeito do porqu da evoluo, vemo-nos reduzidos a merahipteses, mais ou menos verossmeis, entre as quais, com legtimo direito, podemos aceitaaquela que mais em harmonia esteja com nossa contextura espiritual ou, num caso extremorejeit-las todas para buscar uma explicao diferente, sempre que esta tenha como base aplicao das leis naturais. Explico-lhe tudo isto, caro amigo Jos Incio, para que no se deixembair por esse novo charlato, quando formo v-lo.

    - Ento, voc vai comigo?

    - S para fazer-lhe companhia.

    * * *

    30 de outubro de 1936.

    O autor destas linhas se achava no prprio consultrio, sentado diante de umescrivaninha, engolfado na leitura de um manuscrito raro, tentando decifrar suas palavras e seusignificados, quando ouviu alguns toques na porta.

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    Aquele toque me fez voltar a mim bruscamente e com enfado, como quem acorda de umsono profundo, despertado por um alarme.

    Com enfado disse:

    - Entre.Entraram dois cavalheiros. Um deles se apresentou e em seguida apresentou se

    companheiro, dizendo:

    - Jos Incio e o Sr. Jonas Guerrero.

    - Sentem-se.

    Jos Incio era um tipo simptico e emocional por seus sentimentos. As formas do serosto eram limitadas por segmento de elipse, testa unida e pouco desenvolvida, olhoamendoados, sobrancelhas paralelas ao contorno dos olhos, nariz clssico, boca carnuda, queixredondo, estatura mais que mediana, olhar meigo e lnguido, voz melodiosa e pausada e gestodistintos. Em geral, era o tipo harmonioso, sensitivo, de grande sensibilidade de corao e vidsentimental intensa.

    Jonas Guerrero era um tipo completamente diferente do anterior. Aqui cabe dizer que oopostos se atraem. Jonas Guerrero tinha as formas algo primitivas, compleio desenvolvidagrosseiramente esculpida, contorno geral de retngulo curto, testa desenvolvida mais no sentidda largura do que da altura, sobrancelhas intricadas e horizontais, olhos mopes. Usava lentemuito grossas; nariz reto, largo e curto, queixo macio, estatura um tanto alta, robusta, darticulaes pronunciadas, voz surda. Possua uma poderosa vitalidade. Era um tipo que tinha sentido prtico muito desenvolvido.

    Coloquei minha cadeira na frente dos dois e logo perguntei:

    - Em que lhes posso ser til?

    Jos Incio respondeu:

    - Doutor, a finalidade de nossa visita conhec-lo pessoalmente e ter uma conversa sobrdiferentes assuntos espiritualistas. H algum inconveniente nisso?

    - Nenhum inconveniente, senhor, mas gostaria de saber se vocs vm para fazer uminvestigao a respeito de minha pessoa ou se para buscar alguma informao. Se o primeirocaso e olhei para Jonas Guerrero no me acho em condies de d-la a ningum; se for segunda hiptese dirigindo o olhar para Jos Incio , tampouco me considero um mestre parreceb-lo.

    O tom com que estas palavras foram pronunciadas causou admirao aos dois. Jonadisse ento:

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    - No sei por que o doutor diz isto. Quando resolvemos vir, no pensvamos no que senhor nos diz agora.

    Calei-me por um instante. Depois disse:

    - Olhe, amigo Jonas, estamos vivendo numa poca de incessante procura e, por isso, dceticismo universal. Os homens de hoje em dia dizem: Dai-nos uma prova positiva, demonstrainos com aparelhos cientficos a verdade e ns acreditaremos, apesar dos progressos cientficosPrecisamente posso repetir aqui com o rabino da Galilia: Esta gerao perversa me pedirprovas e no lhe sero dadas. O senhor Jos Incio uma criatura espiritualista que admite influncia sutil embora misteriosa, porque sente; ao passo que voc, senhor Jonas, quer ver parcrer e eu, infelizmente, no tenho uma balana para pesar a honra, o amor, a compaixo e verdade.

    Estas ltimas palavras provocaram um riso geral entre ns trs.

    Jonas Guerrero perguntou:

    - Por que o senhor acredita que sou ctico? Gostaria de sab-lo.

    Esbocei um sorriso e falei:

    - Amigo Jonas: reconheo o seu progresso intelectual, bem como seu contumamaterialismo. Se dependesse de mim que um anjo descesse do cu ou que um mortressuscitasse, voc acreditaria que eu o sugestionei ou hipnotizei para faz-lo ver coisas absurdaque nunca existiram. Disse o famoso sbio, liphas Lvi: Ningum pode convencer a quem nest de antemo convencido e est a pura verdade.

    Quando Cristo curou aquele possesso (possudo do demnio), todos comentaram: Com poder de Belzebu afugenta o demnio.

    Como soube que voc ctico? outro estudo da filosofia ocultista que voc repudicomo embuste.

    Ns os ocultistas acreditamos que do ser visvel podemos chegar ao invisvel, porquefetivamente a forma no mais que o reflexo do esprito ou, como outros dizem, da alma, emque voc no acredita. Nisto no h nada de sobrenatural. Ao examinar a sua forma deduzi oseguinte:

    Tendncia patolgica; inacabamento ou proliferao defeituosa dos tecidos; mafuncionamento de alguns rgos. Neurose.

    Predisposio fisiolgica: poderosa vitalidade, porm captada em forte proporo para vida vegetativa.

    Caracteres psicolgicos: tica desenvolvida, mas segundo convices prprias.

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    Intelecto: capta muito, contudo incapaz de uma produo pessoal. Assimilao limitadpara o utilitarismo imediato. Sua mente inclina-se facilmente para os costumes de ordem, dmtodo, de exatido.

    Sensibilidade: as emoes e as impresses sensoriais so as nicas que influem em voc

    Sua imaginao age somente sob o imprio dos motivos fsicos.Sua existncia dificultosa e montona, repleta de tdio e de preocupaes contnuas.

    Os materialistas, quase sempre, por seus sofrimentos internos, procuram o alvio no amoque dedicam a algum ser. Conheci um filsofo materialista que amava sua gata branca at adorao.Outro amava os seus pais.Tambm voc pode ter este carinho, que chega a raiar osacrifcio, por sua me, irmos ou irms e esse carinho constitui a porta de sua salvao porquecomo diz o Evangelho, a quem ama muito, muito lhe ser dado.

    Que mais quer que lhe diga? Sua inteligncia superior, aprende facilmente e retm acoisas sem dificuldade; seu tipo pode ser poliglota, pode aprender com perfeio muitos idiomasPara voc a poesia no deve existir, nem tampouco a arte, salvo como um adorno. Voc umhomem positivo que se dedica s cincias exatas e srias. Equivoquei-me em alguma coisa?

    Depois de dirigir aquela pergunta, reinou um silncio sepulcral. Em seguida Jos Incifalou:

    - Doutor, seu estudo psicolgico perfeito e eu acredito que o silncio diante dmaravilhoso seja a venerao mais sincera que se lhe possa ofertar.

    - Nem tanto assim, amigo. Tambm eu tenho muitas falhas e cometo equvocos e gostque algum me corrija.

    Jonas, que continuava em silncio at aquele momento, disse:

    - Doutor, pode dizer-me como foi que descobriu em mim estas verdades?

    - J lhe disse antes que na forma visvel se reflete o invisvel. Essencialmentespiritualista, a Antiguidade filosfica ensinava em segredo, no silncio dos santurios da ndiada Caldia, da Prsia, do Egito, o que nos foi transmitido atravs das idades; concebia oproblema do ser como uma sucesso indefinida de existncias que levavam ao conhecimentintegral.

    Antes de chegar a esta ltima finalidade, a alma, evoluda a partir do estado primitivoatravs de todas as fases necessrias para seu perfeito desenvolvimento, percorria uma srie dciclos compostos, cada um, de um perodo de ao e assimilao.

    Segundo esta teoria, vimos ao mundo condicionados de acordo com nossas atividadefsicas e psquicas e nos encontramos situados em tal relao do eu com o no-eu quprecisaremos passar pelo estado de conscincia s vezes doloroso indispensvel acumprimento de um progresso espiritual que nos aproxima do fim supremo.

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    Meu senhor, isto no fatalismo absurdo e arbitrrio; pelo contrrio, o encadeamentolgico resultante, gravado no homem desde o seu nascimento, de acordo com os seusentimentos passados, relacionados com a verdade ou com o erro, com os maus ou com os bonsentimentos, com a iniciativa visando ao conhecimento ou com a indolncia prazenteira do

    sentidos.A vontade no pode evitar a conseqncia de uma falta, mas sim, suportar a dor ou o

    prejuzo envolvidos nessa falta devido a um esforo deliberado, equivalente e suscetvel doperar, na conseqncia, uma modificao correspondente ou superior prevista pela lei.

    Jonas, no pretendo convenc-lo da verdade destas teorias, porque voc me dir que oestado atual de nosso entendimento no nos permite perceber este tipo de verdade.

    Em virtude do que se disse, podemos afirmar que o estado presente resulta da totalidaddo passado e da preparao do futuro. Esta hiptese parece indispensvel para conciliar a de umjustia infinita com as mltiplas desigualdades de nascimento estas desigualdades denominadaazar por aqueles a quem uma palavra basta como explicao.

    Seja como for, no podemos crer no azar e na casualidade, mas, sim, no fenmeno-figuraNo prprio indivduo encontramo-lo inscrito em duas partes do corpo que sintetizam todo o serno rosto e nas mos.

    O misterioso subconsciente dos filsofos modernos no seno o corpo astral dohermticos e compreende a musa do poeta, a inspirao do compositor, o gnio do grandhomem, o talento de alguns, as faculdades e os instintos de outros. Conserva tambm os germenvirtuais dos xitos ou fracassos causados pelos mritos ou demritos passados. Pode-sdenomin-lo substncia do destino. Analis-lo segundo suas correspondncias exteriores descobrir as marcas do destino.

    - Ento, o que o livre-arbtrio e para que serve exatamente o querer? perguntou Jonas.

    - O livre-arbtrio est muito longe de ser equivalente em todos os seres, embora seja maiou menos notrio em cada ser humano segundo o maior ou menor esforo de cada um. Afirma-see cresce sob o efeito da subordinao do ser s evolues inspiradas pela conscincia objetivaEu, pessoalmente, comparo o livre-arbtrio com a fora muscular. Todos nascemos com essfora, porm uns a desenvolvem mais que outros, por meio do exerccio. Aqui age a vontadeporque garante a supremacia do eu sobre as condies primitivas, de onde resulta o carter, sobre a fatalidade do destino.

    Modificar as prprias disposies alterar os acontecimentos prximos ou distantesporque desta maneira se faz com que no atue a causa comum de uns e de outros. Outrcomparao: suponhamos que voc me insulte. Por meu livre-arbtrio, posso devolver-lhe oinsulto; em seguida surge a briga, depois o escndalo, e por fim, o castigo da autoridade. Masem virtude do meu livre-arbtrio, posso tambm dominar meus impulsos, faz-lo ver que estequivocado e continuarmos assim como bons amigos. Afinal de contas, esta reao voluntri

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    contra o destino se expressa claramente na fisionomia da pessoa, em seus movimentos, em seumodo de andar e at em sua caligrafia.

    Longe de pensar em vencer seus impulsos, todos os homens colocam ao servio ativdesses impulsos sua inteligncia e sua vontade. Embora infelizmente sejam excees, existem

    alguns que se afastam, com o esforo, dos demais; que norteiam seu destino como umcompetente capito que dirige seu barco.

    Todo homem tem uma voz interior; uns a chamam de conscincia, outros de moral. Onome no importa. Mas essa voz sempre grita e nos persuade de que devemos deixar de agitanosso esprito e nossos nervos, perseguindo sempre a harmonia. Ela nos revela que, parconseguir esse estado, necessrio cri-lo em ns mesmos mediante a modificao de nossopensamentos.

    A grande lei toda equidade e preside a todos os destinos. Quem pede o reino de Deus seu justo uso, infalivelmente lograr o reinado soberano sobre as conseqncias.

    - Ento, segundo voc, no existe o destino e tudo efeito de uma causa anterior? Istoporm, aplicvel tambm s enfermidades? perguntou Jonas Guerrero, com tom de triunfo.

    - Antigamente, o homem era dono do seu destino; hoje, o destino senhor do homem atnas enfermidades. Por que estas devem escapar da lei universal?

    O homem impelido pela experincia ou, melhor dizendo, pelos seus atos a contraicertas enfermidades porque, para curar-se das mesmas, tem que apelar para as energias que em smesmas representam um progresso para o conjunto de sua evoluo. Quando se cria umsituao deste tipo, em que o homem anteriormente se deixou arrastar por suas paixes, produzse essa enfermidade que conhecemos com o nome de difteria.

    Pois bem, onde podemos encontrar uma influncia contrria que atue diante do princpiodo desequilbrio? Eu percebo intuitivamente esta fora e este poder e tambm que se podempreg-los, porm...

    (Silncio...)

    - E a pneumonia, no ela a conseqncia de um carter dissoluto, e dado a vivesensualmente, seja fsica ou mentalmente? Como se pode vencer todos os casos de pneumoniase a individualidade humana no chega, precisamente, a reagir contra as foras sensuaiatmicas?

    Talvez a tuberculose pulmonar tenha um cura mais fcil. Todo tuberculoso deve ser oter sido materialista. A enfermidade pode sugerir-lhe algo de espiritualidade, e o ser humanointerno pode combater contra os efeitos da materialidade externa.

    Ento, o homem que sai curado de sua enfermidade alcanou o fim proposto que vai srevelando em sua enfermidade. Ao triunfar sobre ela, adquiriu foras para substituir as qu

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    precedentemente eram imperfeitas, o que lhe permite empregar as foras novamente adquiridapara seu prprio bem e o dos demais. Ento a cura definitiva.

    Porm, e se morrer? porque o seu ser o fizera obter certos resultados, que no seriamcontudo, suficientes para poder auxiliar os demais, ou ento a morte, pela enfermidade, seria o

    trmino da obra comeada.Pois ento, como posso ensinar a autocura humanidade? No seria maravilhoso qu

    cada homem se curasse a si mesmo, empregando certo estmulo ou perfeio para triunfar sobra enfermidade?

    Sim, mas o segredo consiste em atrever-se a dizer tudo o que se pensa e em seguida nter medo da crucificao.

    A ltima frase provocou o riso de todos, e Jonas Guerrero falou:

    - Doutor, voc tem idias muito estranhas e quisera saber o que dizem os mdicos destanovas idias.

    - Senhor Guerrero, voc deve saber que h muita diferena entre um mdico e umcurandeiro. No obstante, h muitos mdicos que se converteram em curandeiros; um deles Alxis Carrel. J leu a sua obra intituladaA incgnita do homem? No? Pois ento, recomendo-porque a leitura desta obra pode dissipar muitas dvidas. Uma pessoa pode curar outra commassagens, drogas etc., mantendo nestes casos o paciente passivo, como a argila nas mos doleiro. No h dvida alguma de que estes tratamentos podem fazer com que as afeces tratadadesapaream e o doente se restabelea temporariamente; porm as causas reais de sua doenno foram devidamente apreciadas e este no compreende que ela a conseqncia da violadas leis da natureza; portanto, continuar violando-as; como resultado, a mesma doena ou outrvoltar a afligi-lo; A cura um processo fsico. Curar radicalmente diferente, porque neste casse exige que o paciente coopere espiritualmente e fisicamente com o curandeiro. At hojressoam em nossos ouvidos as palavras do Nazareno que, depois de curar o doente, disse-lheS existe um poder diante do qual recuam a dor, as doenas e as desgraas: a moral.

    Mas, senhores, estou prestando-lhes uma informao sem perceber, e esta no foi minhinteno.

    Ento Jos Incio exclamou:

    - Suplico-lhe, doutor, que continue instruindo-nos.

    - Sim, sim continuou Jonas Guerrero isto novidade para ns e muito interessante.

    - Muito bem continuarei . Os contos e as lendas antigas sempre encerram umaltssima sabedoria. O fgado nos fornece justamente um exemplo. Ele precisamente o rgdas iluses do mundo fsico, sendo ao mesmo tempo o rgo que nos acorrenta terra. Pois bemaquele que, segundo a lenda, deu aos homens a fora, o fogo Prometeu foi acorrentado a umrocha onde um abutre lhe devorava o fgado. O abutre desta lenda no significa o causador d

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    dor, mas nos demonstra que, para podermos empregar corretamente o fogo divino, devemoeliminar todas as iluses causadoras da dor e dos transtornos que se enrazam no fgado; Prometeu, o Cristo no homem, ia permitir que este se enleasse mais nas iluses. O poder inimigoda iluso devia vir e declara que da em diante a dor reinaria sobre o ser humano.

    desta maneira que agem em nossa vida as potncias adversas causadoras da dor e dadoenas.

    No devia t-los conduzido at essas profundezas da conversa, mas foi algo inconsciente por isso lhes peo perdo.

    Jos Incio falou:

    - De minha parte, fico-lhe agradecido, doutor, e permita-me dar-lhe, como lembrandesta entrevista, a obra intitulada Os mistrios do Oriente, que trarei amanh ou depois, a quaconstituir um motivo para reatar esta interessante conversa.

    Com efeito, da a dois dias recebi a obra daquele amigo, a qual at agora conservo comgratido e bom grado.

    Durante a noite daquele dia, o senhor Jonas Guerrero escreveu o seguinte em seu dirio,caderno n. LXXV, pgina 23:

    30 de outubro Hoje conheci o Dr. Jorge Adoum, terapeuta mental. Conversamos durantemuito tempo, junto com Jos Incio e este libans, em seu consultrio. Os temas foram variados,mas todos giraram em torno do espiritualismo e da filosofia ocultista. Cabe perguntar: ele umiludido? Apesar do meu empedernido ceticismo no que toca a estes assuntos, gostaria deexperimentar. Talvez este indivduo me ajude; se encontrasse o caminho, a vida se me tornariamuito mais tolervel, porm...

    Os dias continuavam, lanando-se no precipcio da Eternidade.

    Jonas Guerrero comeou a experimentar, como se havia prometido. Em seu dirio diz oseguinte:

    12 de novembro vou comear a leitura da obra de Carrel, A incgnita do homem, fim de lhe fazer uma crtica, conforme pensei.

    E, na realidade, comeou o estudo e a crtica desta obra, segundo vemos em seu dirio.

    13 de novembro Carrel,A incgnita do homem, pg. 9. O homem um conjunto indivisvelde suma complexidade. Trata-se, pois, de uma profisso de f monista?

    Parece que as ocupaes do senhor Jonas Guerrero o obrigaram a abandonar oestudo da obra de Carrel durante um ano completo; por isso vemos que, depois deste tempovolta a anotar suas crticas.

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    10 de outubro Carrel,A incgnita do homem, pg. 11. O autor diz que no percebemos ohomem como um conjunto e que no meio do cortejo de fantasmas adianta-se uma realidade quedesconhecemos.

    No constitui isto uma impossibilidade caracterstica de nosso entendimento?

    Carrel, pg. 16.

    Muito menores so os tomos, os prtons e os eltrons e, apesar de sua pequenez, foramestudados satisfatoriamente. Por conseguinte, no acredito que seja o tamanho o que impede oseu conhecimento. Parece-me que a causa reside, isto sim, no fato de que at agora no seinventou uma tcnica avanada. Porque muitas coisas, que pareciam que jamais seriamconhecidas, j encontraram a sua explicao. Aninho a convico de que, sem duvida, provveque aqueles fatores desapaream.

    * * *

    Daqui em diante no h datas, s a citao do autor e as pginas de sua obra.

    Carrel, pg. 22.

    Nem tanto como se poderia crer.

    Carrel, pg. 26.

    Estou absolutamente de acordo.

    Carrel, pg. 27.

    Sempre acreditei no mesmo. A meu ver, os msculos se desenvolvem em detrimento dainteligncia. Quase todos os atletas, os homens de grande musculatura, mesmo em universidadese colgios, so faltos de inteligncia. Tambm eu pude observar em mim mesmo que, depois deum forte exerccio fsico, o crebro trabalha mal. Em contrapartida, a euforia fsica muitomaior. Sente-se mais alegria de viver. O que se explica facilmente, visto que no se consegue aelevao do nvel intelectual com a multiplicao de institutos docentes, mas com a maneira deensinar e com a quantidade de conhecimentos assimilados pelos alunos.

    Carrel, pg. 28

    Absolutamente de acordo. S que eu no poderia generalizar o que se passa neste pas.

    Carrel, pg. 43.

    Por conseguinte, a nica coisa razovel no estado atual da cincia a dvida. Porm, na minhaopinio, ela procede, realmente, devido ao temperamento intelectual de cada pessoa e segundo aclasse de estudos que tenha preferido cultivar, ter preferncia por uma ou outra das hipteses...

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    E, desta maneira, Jonas Guerrero continua seus apontamentos sobre a obra deCarrel. Quando encontrava uma hiptese que concordava com suas opinies pessoais, aceitava-totalmente; caso contrrio, rejeitava-a. Por exemplo, vejamos Este pargrafo:

    Carrel, pg. 52.

    Este pargrafo me parece bastante inexato. Seguramente existem livros aos milhares sobre aspaixes do homem, suas inclinaes estticas, sua moral, etc. ... Os romances psicolgicos soincontveis. Existe uma legio de psicanalistas ilustres altura de um Freud, um Jung e umAdler. Por que o resultado nulo? Por que no existe tcnica para este estudo? Cada dia quepassa mais me conveno de que todo mtodo ou tcnica introspectivos revelam-se falsos einteis.

    Carrel, pg. 138.

    Sou da opinio de que no resultaria nenhuma penetrao extraordinria.

    Creio que os clarividentes devem ter muito pouca inteligncia.

    Carrel, pg. 125.

    Apesar de tudo, isto , da fora de raciocnio baseada nos fatos reais, no chego a convencer-mede que exista uma teologia nos processos orgnicos.

    Certamente eu no poderia rebater satisfatoriamente os argumentos e muito menos explicar estesfenmenos ou enunciar uma teoria que estivesse livre de defeito; porm, o certo que meuesprito resiste desesperadamente a aceitar tal hiptese, sem que eu mesmo possa perceber ascausas de semelhante impermeabilidade espiritual.

    Com se v, a obra de Carrel dissipou uma parte do ceticismo de Jonas Guerrero removeu a outra parte. Em seu dirio, com data de 21 de novembro de 1937, escreve o seguinte:

    Assim, por enquanto, eu me propus a ler demoradamente, o livro de Carrel e a fazer uma crticadele; porm, parece-me justo estudar um pouco que seja de filosofia, para melhor julgar a parteque dela contenha a obra... e que modifica substancialmente as antigas concepes em pontos toessenciais como o espao e o tempo, a causalidade, a matria e a radiao. Seu efeito atendncia espiritualista de nossos tempos em fsicos e filsofos.

    E assim, nas trevas das dvidas, brilhou um relmpago. Alm de seu idioma, JonaGuerrero dominava o alemo, o ingls, o francs e o italiano; escrevia em todos eles com muitperfeio. Em seu dirio, muitas vezes fazia apontamentos de suas miscelneas ntimas e secretanuma lngua estrangeira. Para o autor estas notas so sagradas, razo por que no posso profanlas.

    Depois do estudo de A incgnita do homem, Jonas dedicou-se ao estudo de muitas obrafilosficas. Embora sempre duvidasse e criticasse, comeou a praticar e a desenvolver o poder dsua vontade.

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    Com data de 02 de janeiro de 1937, diz ele em seu dirio:

    Deixar-me dominar por preconceitos e idias errneas ser joguete das paixes e oscilar aovaivm dos caprichos do momento; lamentvel; eu quisera ser duro com o ao, porm, como

    ele, tenaz e flexvel. possvel dominar o subconsciente por meio da vontade firme e reflexiva?No poderia traar-me uma linha de ao e segui-la rigorosamente em todo momento e em todaao?

    No resta dvida de que a minha vontade muito inconsistente e fraca. Devo comear por umareeducao dela, de maneira metdica. O que no consigo resolver se vale a pena fazer esteesforo, na minha idade.

    Neste ano que passou, em minha vida se operou uma mudana, embora pequena.

    Em outra passagem diz o seguinte:

    Percebo cabalmente que o cultivo das cincias exatas e das cincias naturais deve ser feitomuito cedo e nelas o meio ambiente tudo. E hoje, portanto, rejeitaria a todas; consagrar-me-ia Histria da Filosofia; e, em qualquer das duas, a um ramo ( teoria do Conhecimento na segundaou Metafsica na primeira, em uma determinada poca). Mas toda tentativa intil para opresente. No viria jamais a libertao?.

    Os dias e os meses continuavam, sepultando-se na Eternidade.

    Jonas Guerrero continuava registrando seus pensamentos ntimos no dirio.

    Vrias vezes veio visitar-me e diversas vezes tive que intervir no tratamento de algunmembros de sua famlia, pelos quais Jonas nutria muita ternura.

    No quis casar-se para no levar sua adorada me uma nora que possivelmente molestasse. Teve tambm outro motivo: o fator dinheiro. No podia permitir que sua famlipassasse por necessidades, coisa que no podia evitar, caso viesse a formar um lar.

    Continuava lendo as obras msticas e teosficas. Comeou a estudar a Iniciao, dautoria de Steiner, e disse:

    No passei dos dois ou trs captulos, porque no podia crer em tudo o que estesmsticos dizem, os quais graciosamente nos oferecem a taumaturgia como panacia universalpara todos os males e, em especial, para os enfermos da nsia de saber.

    Contudo, vrias vezes me agradeceu pelo tratamento de um dos membros de sua famliausando estes termos:

    Talvez este seja o renascimento de que tanto falam os ocultistas: voc o fez renascer dnovo.

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    Assim se expressava e sorria bondosamente.

    Com o decorrer do tempo, chegou a ter uma f cega no poder curativo de esprito e poisso o vemos estudar a obra de Heyer intitulada O poder curativo do esprito. De repenteprocurava-me para consultar-me sobre suas dvidas; porm, sua saudade era muito grande.

    Como um bom amigo, nunca se esquecia das criaturas com quem compartilhava suaopinies e suas dores ntimas. Jos Incio era para ele como uma alma gmea.

    Este, porm, teve que abandon-lo para ocupar o cargo de cnsul em Bremen. Por issvemos Jonas citar o seu amigo com freqncia no dirio.

    A 03 de outubro de 1937 diz:

    J se vo quase dois meses desde a ida de Jos Incio. Cada dia me sinto mais solitrio,extraviado neste mundo.

    Em outra passagem:

    Por que no poderia eu dedicar todos os meus momentos livres a escrever e adesenvolver, precisamente em forma de conferncias que, naturalmente, jamais sero feitas empblico minhas opinies e pontos de vista? Pois, sempre sinto em meu foro ntimo uma espcide remorso ao considerar quo sbio as pessoas me julgam. Porm, para escrever um livro comoCarrel ou os de Jean ou Eddington, so necessrios anos e mais anos de paciente estudo ereflexo.

    Minha antiga afeio pela biologia, com a leitura da obra de Carrel, recobrou impulso eacendeu-se o desejo de voltar ao seu cultivo com mais mpeto.

    Ele foi professor de matemtica e depois de geologia na Universidade Central. Ocupoalguns cargos pblicos. Sempre pensou em escrever alguma coisa sobre a geografia do Equadodando-lhe uma forte base geolgica. O assunto ou idia diretriz podia ser interpretao dos traofisiogrficos do pas, mediante o levantamento da cordilheira dos Andes e pela subseqenteroso:

    ...porm, ao mesmo tempo, traduzir, preparar as conferncias de filosofia e coordenar aspublicaes (geolgicas) parece um pouco difcil.

    E os dias continuam, desprendendo-se como folhas da rvore do tempo, e as idias doprofessor Jonas Guerrero continuam engastando-se no seu dirio. E anota a leitura e a crtica dcentenas de livros em todos os idiomas que aperfeioava. Neste pequeno trabalho no me possvel citar a todas; porm, posso dizer que tratava de um aculturar-se em todos os ramos dacincias antigas e modernas.

    Vrias vezes deixou de fumar e sempre voltava ao mesmo vcio, depois de algum tempoNo inventava desculpas, como outros. Ao contrrio, queixava-se da fraqueza de sua prprivontade.

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    Durante os ltimos anos, realizou muitas excurses interessantes para estudar a geologido pas.

    Foi vtima de muitos revezes da sorte, porm o golpe mais terrvel foi desferido pel

    doena de sua adorada me, que lhe destroou completamente o nimo, embora, ao mesmtempo, abrisse diante de si uma larga porta para a meditao.

    Um pargrafo do seu dirio diz o seguinte:

    E, em meu caso particular, creio que subitamente cheguei compreenso de que andoextraviado e confuso ao pensar que o conveniente para minha estrutura espiritual a solido, oensimesmamento... A amarga redeno quando j me acho nos umbrais dos 60 anos! Queremdio, que linha de conduta devo adotar em vista destas consideraes? Aqui o espritocomea a sentir uma terrvel confuso e a nadar num penoso mar de incertezas. Porque o lgicoparece que seria tomar uma resoluo, um caminho, e seguir por ele com energia, sem vacilar.Porm, no chego a ver claro nem a ter essa energia....

    Portanto, o que que domina o homem da civilizao atual: o esprito ou o corpo? No possvel escapar mtua dependncia? Os corpos mal nutridos, esqulidos, sem a menor forafsica, no desprendem energia sobre-humana? No interior daquelas runas corporais, no brilhae arde magnificamente uma chama viva e fulgurante que sustenta e canaliza todas as energias?Lembro So Francisco de Assis, Gandhi, Pascal, Carlyle, Beethoven e centenas e mais centenas.A fora nervosa e a sua capacidade so ainda um mistrio. E a fora, ou fluido, ou a correntenervosa, que relao tm eles com o que convencionamos chamar vontade? No so ambos umanica e mesma coisa: energia?

    Acabo de lerO poder curativo do esprito. Embora a impresso causada em mim sejabastante forte, no conseguir remover por completo as dvidas e as desconfianas que meu pobresprito enfermo e cansado cronicamente sempre abrigou. Contudo, a soberba e a orgulhosaincerteza que meu antigo materialismo erigiu em dogma sofreu uma sacudida no decorrer destesltimos tempos. Apesar de tudo, a leitura deixou-me um pouco de tristeza. Procurando investigara causa que a produz, creio encontr-la no fato de pensar que, nesta terra imprestvel emiservel, sequer permitido a uma pessoa com eu consultar um especialista de psicoterapiaque, seguramente, no teria grande trabalho em curar-me.

    A nsia de liberdade espiritual produz em mim uma fonte inesgotvel de desassossego eangstia. Enfim, creio que estou no bom caminho para aprender a esperar.

    20 de novembro de 1940 Esta data ficar gravada para sempre em minha memria.Depois do cruel suplico de trs meses e meio de dores atrozes e sofrimentos incessantes, minhaadorada mamezinha se foi para nunca mais voltar. Que dias de aflio, que nsia de fugir e deno pensar!

    Por que no mimei mais? Por que no a cobri de beijos quando ainda era tempo? Por qumeu carinho no pde evitar que casse no abismo insondvel e negro que se abriu diante dela?

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    Ainda no consigo acreditar que seja um fato real, ainda agora me parece que umaausncia temporria e, quando a verdade aparece subitamente na conscincia, sinto um choquebrusco, como um golpe fsico que me causa um padecimento indizvel....

    Jonas escreve amplamente e descreve com mincias seus sofrimentos. Em seguida diz:

    Todas as filosofias, todos os sofismas da razo, todos os consolos que nossa misriainventa so palavras vs, meros rudos vazios e sem sentido. No teria feito o suficiente parasalvar sua vida to cara, to preciosa para mim? Que remorso terrvel! Que ira, que acessos defuror diante do fato consumado, diante das coisas irremediveis!

    Sim, no h dvida de que a f tranqila e cega na sobrevivncia do melhor que existe emns h de ser uma grande consolao. E deve s-lo! E, no obstante, no pude nem pensar nisso,nem senti-lo. Por conseguinte, estou condenado.

    E essa nobre alma se recrimina a si mesma, dizendo:

    Por que fui to cruel dando-lhe motivos de aflio? Por que no lhe entreguei meucorao num abrao?... como ser a vida de hoje em diante? No sei, nem me atrevo a pensarnisso. S brilha em meu esprito a inquebrantvel resoluo de que sua doce lembrana meacompanhe em todo instante; de que, pelo grande amor que me inspirou e que jamais se h deapagar, minha vida seja mais pura, mais irrepreensvel a minha conduta em todas ascircunstncias, mais elevados e mais nobres meus pensamentos e mais viva e ardente minha fno ideal.

    Com efeito, a morte daquela me querida desarraigou muitas idias antigas dpensamento de Jonas Guerrero e semeou em seu lugar muitas idias novas e, assim, aquela almnobre agora se eleva cada dia mais, aprofunda-se e penetra, porque voa sempre com mairapidez, porque abrange e concentra-se ao mesmo tempo. E precisamente isto que no possexpressar com palavras frias e superficiais.

    Por que a expresso verbal no traduz a emoo que produz na alma a gua que corremansamente ou se precipita furiosa e que d ao vento um doce rumor ou um gritoensurdecedor...? E os estados da alma? A msica, em contrapartida, constitui um maravilhosoinstrumento de expresso para o interior e o exterior. Que louco fui eu quando no continueicultivando a msica! .

    * * *

    Mais trs anos de sofrimentos e abatimento, de doena e de melhoras, de leitura e dcrtica de obras.

    nimo deprimido, luta contnua consigo mesmo e com os demais. Jonas Guerrero semprdesejou escrever... novelas cientficas, textos didticos: Sempre tropeo, porm, - diz ele coma falta de tranqilidade para dedicar-me a qualquer trabalho srio e com minha manifestincapacidade para devotar-me ao mesmo tempo a vrios trabalhos que no tenham ntimconexo entre si.

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    Em outra passagem diz:

    Assim vou levando tombos pela vida, sem nunca encontrar nem a verdade, nem ocaminho; sem encontrar tampouco a verdadeira vida; com um sonmbulo, como um doente que

    j est semimorto.Outras vezes chegou a duvidar de umas coisas e a afirmar outras; queria conhecer a

    coisas por suas causas e sempre chegava causa sem causa e ali se detinha desarmado.

    No ltimo dia de seu dirio, diz o seguinte:

    11 de maio de 1944 Acabo de lerMinhas Confisses, de Mximo Gorki. Como todasas obras deste grande novelista russo, esta me deixou uma grata impresso. Naturalmente, a tesedefendida na novela me deixa indiferente, porm, apenas at certo ponto. Acredito firmementeque agora domina a injustia em todas as reas, na distribuio dos bens da terra, que monstruosa e antinatural; que preciso lutar implacavelmente contra ela at afog-la e que indispensvel instaurar um novo regime sobre as cinzas do atual. Porm, no acredito que seja opovo, a grande massa annima, que efetuar o movimento e alcanar o resultado feliz; faltam-lhes luzes e sobram-lhe rancores e malevolncia. Penso que esta ser a tarefa dos intelectuais,mas daqueles entre eles que tenham o esprito e o corao sadios, daqueles para os quais osconhecimentos no serviram para lhes corromper e apodrecer a alma, e no dos que se tornaramcapazes das maiores baixezas para satisfazer sua nsia de prazer.

    Num dos primeiros dias do ms de junho fui chamado com urgncia pelo professor JonaGuerrero.

    Fazia alguns dias que se achava gravemente doente e o tratamento mdico fora intiAngina de peito. As dores eram fortes e agudas. Queixava-se de muita dor e de desvelo.

    Quando cheguei, disse-me ele:

    - Doutor, coloque sua mo aqui, neste corao que me mata. Pode ser que voc tenhpoder de acalmar os transtornos desta nova Cidade de Jerusalm. Ai, Doutor! Sou como Moissque contempla de longe a Terra Prometida sem poder entrar nela.

    Eu, com um leve sorriso e para tranqilizar-lhe o esprito, disse:

    - Tenha pacincia, amigo; vou acalmar suas dores, porm: o que voc entende por TerrPrometida?

    - Terra Prometida a paz interna. D-me essa paz interna.

    Da a cinco minutos, Jonas Guerrero estava dormindo tranqilamente; aquele alvimomentneo, porm, despertou nele o desejo ardente de ser tratado diariamente por mim.

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    Nos dias seguintes aguardava minha visita quase com desespero; quando eu estava a selado, sentia-se feliz e alegre. Ele no acreditava em seu restabelecimento, mas tudo o qudesejava era somente o alvio da dor e a paz interior.

    Finalmente, no dia 13 de julho, e s na presena de seu melhor amigo, Jos Incio

    Burbano, sua alma desvencilhou-se de seu corpo dolorido para retornar ao Oceano dEternidade.

    * * *

    At aqui o leitor pode folhear uma histria que no pude transformar numa novela.

    Quanto ao resto, no vale a pena que chame a ateno de ningum, nem merecer ser lidoporque no passa de um... Sonho...Um sonho talvez idiota..., Produzido pela impresso que vida e a morte de Jonas Guerrero causaram em mim.

    Em certa noite do ms de julho, eu me encontrava sozinho, e ento minha mente comeoua divagar e a pular de uma lembrana a outra at chegar lembrana de Jonas, e ali se deteve.

    Em seguida, eu talvez tenha adormecido e o vi sentado ao meu lado com toda naturalidade. Aquele sonho, ou viso, no me causou estranheza. A impresso foi como se jesperasse por ela.

    No com palavras, mas em pensamento, Jonas Guerrero me disse:

    - Eu estava deitado; ao meu lado achava-se Jos Incio, lendo um livro; senti um pequenengasgue e tratei de elimin-lo, tossindo. Senti uma brisa perfumada, ouvi com ateno, e vi qutodos entravam no quarto e pareceu-me que diziam Morreu!; e choravam. Procurei falar, mano consegui; percebi que com extremo cuidado me fecharam os olhos e ento vi tudo o que mrodeava; meu companheiro olhava-me em silncio e triste; toda a famlia chorava e eu dizicomigo mesmo: Por acaso morri? No pode ser, se ainda vejo tudo atravs de meus olhofechados; Oxal no me enterrem vivo porque no me parece que morri. Sim, meu corpo estplido como a cera. Meu rosto, imvel. Em seguida vi minha me. Seu amor arrancou-me destperplexidade. Ela me disse: Durma, filhinho adorado, durma em meus braos. Com efeitodormi com todo o prazer, como quando era criana. Depois de no sei quanto tempo, acordeMinha me continuava a meu lado, me falou de muitas coisas e despediu-se de mim. Eu noqueria que se ausentasse, porm no pude fazer com que ela ficasse junto de mim.

    Depois tive a impresso de que me separava definitivamente de meu corpo e me sentmais leve. Quis andar, mas no pude, e voei como sonhava quando ainda criana. Tudo estavescuro. Eu chamava por minha me e ouvia sua voz que me dizia, como quando era garotoVenha sozinho, sozinho. Eu me esforava ao mximo e cheguei a ver uma tnue claridadesuficiente para fazer salientar-se, no fundo do cu, uma montanha; e tinha que subir at seucume, que era muito alto e sem fim. Ouvi somente a voz de minha me que me dizia: Estamontanha formada por suas iluses, suas dvidas e seus apegos ao que os vivos chamam dcincias. Voc tem que preparar-se para novos trabalhos, agora que est morto, para desfazeiluses.

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