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Revista WELL

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Page 1: Revista WELL - casperlibero.edu.br · A rápida ascensão e o desapare-cimento das locadoras foram fenômenos claramente per-ceptíveis ao longo dos anos. Com o surgimento do VHS,

Revista

WELL

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EDITORIALChegamos à metade do caminho de quatro intensos anos. Metade essa que nunca teve tanta cara

de tudo, fi nal, começo, metade. Meios são equilibrados, um pouco disso e daquilo, mas não tanto de um e nem de outro. Um pouco de aprendizado, mas um tanto a se aprender ainda. Um pouco de tra-balho, mas não muito para querer descansar até cansar do repouso.

A revista Well, feita por nós, alunos do 2JOA com reportagens produzidas por colegas de sala, mostra essa ciclo que é a nossa vida, seja no encerramento, no início ou no meio de uma etapa. O nome, escolhido em votação é uma brincadeira entre o nome de um dos professores que mais marcou todos nós, ensinando a ver as coisas além daquilo que achávamos que já é o além. A Well contou com a ajuda dos professores Sergio Vilas-Boas e Helena Jacob, indo desde a seleção do material até as dicas sobre o design gráfi co.

Todos estão em seus inícios ou fi nais de ciclo, seja no princípio da vida profi ssional ou mesmo no cansaço tão grande que a vontade é de já desenhar o fi nal disso. Enquanto outros tiveram seu des-pertar para o aprendizado da comunicação, da sociedade, do design, da história durante 2014, e ao mesmo tempo alguns já pensam em fechar esse período para focar em outras paixões, habilidades, conhecimentos. Tá vendo? Outro ciclo começando.

Hoje, mostramos o final do 2º ano e a evolução que tivemos com os aprendizados e as histórias que retratamos. Nossa ilustração de capa é só mais um exemplo dessas ligações que começam e encerram a todo momento, assim como a crônica ao final, produzida pela Giulianna Iodice. Com especiais sobre manifestações, doação de cabelo, locadoras de filme, bancas de jornal, perfis de pessoas inspiradoras, que largaram o certo pelo incerto e matérias de viagens, seja na própria ci-dade ou em outras regiões, esperamos despertar a vontade do leitor em formar ciclos. Todo tipo, duração, intensidade e cor são válidos, desde que sejam ciclos para mais um ano que se encerra e outro que pede licença para começar.

WELL

Beatriz Malheiros Marina Gabai Octavio Milliet

Daniela Demori Mariane Monteiro

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Sumário06|Que fi m levaram as locadoras?

10|Educação de defi cientes visuais

16|Rodando por SP

20|Meu cabelo, seu cabelo, nosso cabelo

28|Supervelinhos

32|Chão, chuva e chope

38|Por trás da (quase) morte

42|Da Europa para São Paulo

50|Uma sobremesa, por favor

56|O ecletismo de um engenheiro

60|Dom Quixote é brasileiro

64|744 horas de sexta-feira

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A rápida ascensão e o desapare-cimento das locadoras foram fenômenos claramente per-ceptíveis ao longo dos anos. Com

o surgimento do VHS, ir ao cinema não era mais imperativo para assistir a algum filme. A possibilidade de aproveitar as películas no conforto de casa criou um cenário propício à disseminação desse tipo de comércio, que brotou por toda a cidade e alcançou o auge durante a década de 1990. Vinte anos após o boom das locadoras, como sobrevivem es-ses estabelecimentos hoje em dia?

A popularização da rede mundial de com-putadores fez o negócio despencar. “Não só a internet, mas a pirataria também prejudi-cou muito as locadoras”, lembra Julio Cesar Borges, filho do dono da Comics, localiza-da em São Caetano do Sul. Na ativa desde 1994, o local deixou de alugar apenas filmes e voltou o olhar para os videogames. “Lo-cação de jogos ainda é bastante lucrativa, e vai melhorar muito por que a pirataria está acabando”, acrescenta o rapaz que divide a atenção entre os aluguéis de games e a ad-ministração dos torneios que a Comics real-iza todos os fins de semana.

As locadoras acabaram tornando-se pon-

to de encontro para aficionados por filmes ou games. Com o tempo, os clientes deix-aram de consumir tanto, mas continuaram a frequentar os espaços. Organizar campe-onatos entre o público conhecido como nerd ou geek foi uma ação que manteve a lucratividade e atraiu mais jovens. “A maioria dos que vêm aqui têm entre 12 e 19 anos”, afirma Julio Cesar.

“Eu nunca aluguei nada aqui, no começo nem sabia que era uma locadora”, conta Guilherme Zacarias, que visita a Comics com certa frequência para jogar cartas com os amigos. “Costumo vir para cá por causa dos campeonatos e da galera que vem aqui”. O espaço de convivência fica sempre lotado de fregueses aos fins de semana. “Era muito divertido ir pra conversar com outras pes-soas sobre assuntos que nem todo mundo conhecia, era um lugar que unia os fanáti-cos”, relembra Murilo Romera, que nu-tre um forte sentimento de nostalgia pela época de ouro das locadoras.

Ambientes muito queridos pelos mais sau-dosistas, esses estabelecimentos se senti-ram obrigados a mudar os rumos e passar-am a alugar jogos de videogame ao invés de filmes. Por causa dessa nova de

A Game Store aluga jogos desde 1999 e hoje em dia também vende produtos variados

Que fim levaram

as locadoras

?

Por André Cáceres

CURIOSIDADE

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Fregueses da Comics disputam torneios de cartas

contados devido às novas medidas de segu-rança das fabricantes de consoles.

“Hoje em dia quem só faz locação de DVDs não tem mais como se manter, estão todos fechando. O tal do Netflix e os outros serviços que disponibilizam seriados e filmes pela in-ternet quebraram as pernas de um monte de gente”. A afirmação parece ser verdadei-ra mesmo, porque a menos de cem metros dali, a locadora Renata Filmes, que antes só disponibilizava películas, hoje reserva uma parede inteira somente para videogames.

“No começo, a gente alugava só as fitas. De-pois, começou a aparecer DVD e Blu-Ray, mas a clientela estava sumindo cada vez mais. O jeito foi migrar pros videogames, senão a loja ia falir. Hoje, ainda temos filmes, mas a procu-ra pelos jogos está aumentando”, narra Lucia-na dos Santos, que trabalha no caixa da Rena-ta Filmes. “Daqui pra frente, não sei o que vai acontecer, mas a tendência é que a busca pelos games continue crescendo”, acrescenta.

Pode parecer estranho, mas essa é a tôni-ca no mundo inteiro. Enquanto o filme mais bem-sucedido de Hollywood é “Avatar”, que desde 2009 já movimentou US$2,7 bil-hões, o jogo “Grand Theft Auto V”, lançado no final de 2013, faturou US$1 bilhão nos primeiros três dias. Os números são impres-sionantes e indicam que a indústria de jogos vem se expandindo nos últimos anos.

Os consoles atuais, como o Playstation 4 e Xbox One precisam de conexão constante com a internet para funcionar, impedindo que jogos pirateados sejam executados, pois a fiscalização online ocorre o tempo inteiro, detectando falsificações. Esse fator, somado aos serviços de streaming de filmes pela in-ternet fizeram com que as locadoras tomas-

manda do mercado, muitos acabaram ten-do que fechar as portas por não se adequar aos tempos modernos. Mesmo os que re-alizaram essa transição enfrentaram sérias dificuldades por alguns anos.

“Na época do Playstation 2, era compli-cado porque tinha muito jogo pirata e nin-guém queria saber de comprar ou alugar os originais”, lamenta Fernando Alves, gerente da Game Store, no bairro do Tatuapé, em São Paulo. Ele reconhece que as restrições contra a pirataria implementadas pelas empresas de games salvaram as locadoras. “Com os videogames novos, praticamente não existem mais falsificações. Os jogos são muito caros, então o pessoal aluga primei-ro para ter certeza de que gosta e só depois compra mesmo”, diz Fernando.

“Mas só oferecer para alugar não adianta. Pra ir pra frente, tem que vender também”, adverte Fernando. Diferente da maioria, essa locadora começou em 1999 já tra-balhando com games. “Quando apareceu a onda dos jogos paralelos, que eram bem mais baratos, nós começamos a alugar film-es também para sobreviver”. Hoje o cenário é diferente, pois a pirataria está com os dias

sem os games como principal produto.Entretanto, o futuro parece trazer bons

ventos, afinal quem trabalha no ramo demonstra otimismo em relação aos próxi-mos anos. “Daqui pra frente, acho que os lu-cros só vão aumentar”, prevê Julio. Toman-do as palavras do concorrente como suas, Fernando acrescenta: “agora devem apare-cer cada vez mais locadoras de jogos”.

Fernando Alves, gerente da Game Store, se diz confiante no futuro das locadoras

O estudante de psicologia Julio Cesar Borges administra a locadora Comics, negócio de família há vinte anos Apesar das dificuldades, as locadoras seguem vivas

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Educação de

deficientes visuais

ESPECIAL

Como a sociedade lida com essa questão

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Fotos e texto: Bruna Meneguetti Figueiredo

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C riadora do canal “Fila Pre-ferencial” no Youtube, Vic-

toria Schechter fala nos seus ví-deos um pouco do universo do deficiente visual. Seu problema é genético e hoje ela tem 5% da visão, mas pode enxergar clara-mente o problema das institui-ções de ensino ao lidarem com os deficientes e deixa isso bem claro no vídeo “10 coisas que os cegos odeiam”.Victoria já estudou em três colé-gios diferentes e apenas em um ela encontrou o auxílio que preci-sava. “Eles não faziam o essencial, não querem um aluno com defi-ciência porque dá trabalho, mas são obrigados a aceitar”, conta Victoria, se referindo à Lei Federal

de 1999 (nº 7.853/99), que prevê crime caso haja a recusa por parte das escolas em aceitar qualquer pessoa que tenha algum tipo de

deficiência. Mas, para Victoria, é nítida a prioridade de “investir em dez que vão passar na Fuvest, em vez de um que vai dar trabalho”.

Ela não consegue se-quer imaginar como se ria essa situação na escola pública, situação que é clara para o estudante Bruno Gabriel Moreira, de 13 anos, que estudou em uma das Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI) e pode falar abertamente: “eles não tinham nenhuma espe-cialização com deficiente visual”. Patrick enxergava bem até os cin-co anos e estudou em uma escola pública em Diadema. Ele esclarece que o professor não conseguiria dar atenção para o deficiente nem se quisesse. Devido ao elevado

número de alunos na sala (cin-quenta, mais precisamente), não havia como auxilia-lo da maneira correta.

Bruno, assim como a Victoria, começou a ter problemas de visão aos três anos. O quadro dele se de-senvolveu devido a um câncer que foi controlado, mas que acarretou na perda total da visão.

Hoje ele está no oitavo ano e estuda no Instituto de Ce-gos Padre Chico, mesma ins-tituição de ensino de Patrick Henrique de Jesus, de 18 anos. Essa situação não está presente no Instituto Padre Chico, que hoje conta com 130 alunos, a maioria entre 4 e 16 anos, distribuídos em 11 salas, cada uma com, no má-ximo, 15 alunos, obedecendo aos critérios da Secretária da Edu-cação Centro-Sul de São Paulo. O Instituto é filantrópico e conta com a doação de pessoas físicas e jurídicas, além de parcerias com empresas e isenção de impostos para manter-se. Ninguém traba-lha como voluntário, os educa-dores são registrados e precisam conhecer o braile para lecionar, apesar de familiares sem deficiên-cia dos cegos também estudarem lá. “Se eu falar para você que um

aluno cego é um aluno comum como outro que não tem defi-ciência e que a pessoa que deve se adaptar sou eu, você acredita?”, pergunta a professora Luciana Ruiz quando questionada sobre a questão de conciliar as aulas para os dois grupos de alunos.

No Instituto são priorizadas a capacitação e autonomia dos estudantes. Eles são treinados para se orientar através do som, temperatura e ventilação, sendo que nenhum deles faz o uso da bengala lá dentro.

Durante as aulas vários ins-

trumentos são utilizados para ex-plicar pelos outros sentidos o que deveria ser explicado pela visão, como o Soroban (instrumento de contas chinês), o Multiplano (usa-do para desenhar figuras geomé-tricas), além de desenhos feitos em relevo de células, planetas, etc. Outro aparelho muito impor-tante no auxílio da aprendizagem é a máquina Perkins, que produz textos em Braile. Cada máquina custa em torno de dois mil a dois mil e quinhentos reais. Pelo alto custo e por ser um material para a minoria, a Máquina Perkins é di-

fícil de achar, sendo um exemplo de como os recursos usados pe-los cegos nem sempre são de fácil acesso. Os audio books também funcionam como reurso de leitu-ra para os cegos e, assim como a Máquina Perkins, encontra grandes problemas em sua distribuição. Pedro Millet, de 58 anos, membro da Funda-ção Dorina Nowill e desenvolvedor do aplicativo de audio book Daisy Reader, nos conta que o grupo Daisy é formado por 30 representantes de instituições do mundo todo, que são voltadas para a distribuição do livro acessível. A lei vigente do direito

Victoria é criadora do canal “Fila Preferencial”, no Youtube

“Eles não faziam o essen-cial, não querem um aluno

com deficiência porque dá trabalho, mas são obrigados a aceitar”

- Victoria Schechter

O Instituto de Cegos Padre Chico conta hoje com 130 alunos, como Bruno e Patrick

ESPECIAL

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autoral diz que nenhum país pode exportar para outros um livro nesse formato, o que impede a acessibilida-de das pessoas, limitando a circulação. “Obviamente a acessibilidade e educa-ção está melhorando aos poucos, mas ainda há muito que melhorar. A adoção de material obrigatoriamente acessível para os alunos fez aumentar o número de estudantes cegos que frequentam a escola”, afirma Pedro.

Não só a frequência dos alunos nas escolas aumentou, é notável também a existência de novas aulas e cursos, como as aulas de Atividade da Vida Autônoma (AVA) e o curso Orienta-ção e Mobilidade, ambos oferecidos por diversos órgãos e institutos. No

curso de Orientação e Mobilidade o adolescente que já pode andar sozi-nho na rua é orientado no período de seis meses a um ano, desenvolvendo quatro técnicas para poder andar na rua com autonomia.

Durante este período, os ce-gos também são treinados para pedir ajuda as pessoas quando precisam. “Às vezes eu vejo um cego parado com uma bengala em uma esquina e alguém com mui-ta pressa pensa que ele quer atra-vessar, pega no braço dele e co-meça a puxá-lo”, lembra Luciana. A fala de Luciana também é um dos itens do vídeo “10 coisas que os ce-gos odeiam”, da Victoria. Ela nos

conta que vive se assustando com desconhecidos que pegam em seu ombro, assim como se assusta com pessoas que ficam gritando com ela.

“A maioria das pessoas tem a in-tenção de ajudar. Não tenha medo de perguntar, assim você dá espaço para o deficiente responder se pre-cisa ou não de ajuda”, diz Victoria. Patrick, que já fez o curso de Orien-tação e Mobilidade, afirma que a abordagem errada acontece por-que a população não tem o hábito de conviver com o deficiente visual diariamente. “Eu mesmo oriento, pego no cotovelo ou no ombro e já indico como eu gosto de ser guia-do”, afirma Patrick.

Em sentido horário: estudante Patrick; Intituto de Cegos Padre Chico; o estudante Bruno Moreira; professora Luciana Ruiz

ESPECIAL

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Meu cabelo, seu cabelo, nosso cabelo“Que cabelo lindo! Por que você não vende?” Essa é a frase escuta-da pela maioria das mulheres que possuem cabelos longos. Por que não doar? Por que a venda é sempre a primeira opção?

FOTO E TEXTO: BEATRIZ MALHEIROS

Por o cabelo ser o acessório principal de beleza e autoestima feminina, é difícil de des-vincular-se, ainda mais quando não há um benefício para si. Hoje, graças às redes so-ciais, as informações sobre doação de cabelo para a confecção de perucas destinadas às

pessoas com câncer são mais acessíveis, sendo mais fácil para despertar a curiosidade, além de simplificar o canal de comunicação entre instituições e pessoas interessadas. Antes disso, não se tinha muita noção de como era o processo de doação e, muito menos, o seu resultado.

ESPECIAL

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O prOjetO queridinhO das redes.

A página no Facebook da Cabelegria, instituição que funciona como in-termediadora no processo inteiro,

coletando mechas e encaminhando para a fa-bricação de perucas, conta com mais de 144 mil fãs. Lá, as coordenadoras do projeto, Mariana Robrahn, 24, e Mylene Duarte, 23, divulgam as doações que recebem, além de publicar fotos das pacientes recebendo suas perucas doadas. A página chega a mostrar mais de 20 pessoas - em sua maioria, mulheres - que enviam as me-chas. Já as beneficiadas são, majoritariamente, meninas entre 3 e 10 anos.

A confecção de uma peruca completa ne-cessita de muitas mechas semelhantes para poder compor uma aparência homogênea, o que acaba dificultando por demandar de um alto número de doações. A maior parte dos cabelos doados é encaminhada para um lugar já determinado, o Salão Andrea Lopes. Lá, a costureira confecciona as perucas sem cobrar nada, produzindo, em média, 3 perucas por se-mana. “Não temos nem palavras para expressar a felicidade que temos ao ver o crescimento do projeto, principalmente porque no começo, eu e a My (Mylene) ficávamos tristes por não ter o suficiente nem para produzir uma peruca por mês. É realmente incrível a dimensão que tudo tomou de repente”, disse Mariana, a designer que integra a equipe do Cabelegria.

Mariana ajudando a confeccionar uma das perucas

Mylene ao lado de um molde para as perucas que confecciona

Das redes para a tesouraE foi assim, por meio das redes sociais, que

duas meninas decidiram cortar o cabelo não só por estética, mas por uma boa causa. A Ma-rianne Jordão, 24 anos, iria cortar o cabelo por rotina, mas ao conhecer o projeto Cabelegria, decidiu aderir, doando algumas mechas. Ao comentar com o cabelereiro, despertou seu interesse em ajudar, aproveitando sua profis-são. “O boca a boca é fundamental. Quando cortei, meu cabelereiro não sabia do projeto, mas ficou feliz e me deu outras duas mechas, tão grandes quanto a minha. Quando voltei lá, ele me disse que não iria cobrar o corte das mulheres que fossem doar o comprimento para instituições, assim como eu fiz.”, disse Marianne, empolgada.

Com a Ingrid (Dih) Astasio, 19, não foi muito diferente o modo como chegou à cadeira do salão.

Apesar de sempre ter acesso à venda de cabelos, Dih não gostava da ideia, mas já queria fazer algo diferente com o cabelo. “Eu comecei a acompa-nhar projetos sociais e tive amigas que doaram o cabelo, então tentei deixar no comprimento ideal para poder fazer o mesmo”, explicou Dih. A estudante de Publicidade e Propaganda, que estava ansiosa para saber como ficaria de cabelo curto, mostrou-se animada por fazer parte da ação. “Pelo fato de sermos ‘seres sociais’ temos que nos envolver com os outros, por mais que a gente pense ‘Isso não tem nada a ver comigo’. Acho nobre que uma ação ‘gra-tuita’ como essa poder enriquecer tanto a mim como outra pessoa.”, explicou Dih sobre o que acha da ação. Ao ver a mecha já separada, a estudante falava, sem parar, o quão realizada estava por sentir que, a partir dali, um pouco de si faria, agora, parte alguém.

Ingrid antes, durante e depois de cortar o cabelo para doação

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Personificação da açãoEsse outro alguém, muitas vezes, parece dis-

tante por ser mais uma foto compartilhada nas redes sociais ou personagem de matérias da te-levisão. Além disso, por se tratar de um assunto delicado, poucas pessoas sentem-se confortá-veis para falar abertamente sobre isso. O que não acontece com Denise Moura, 39, mãe de Raissa, 6 anos.

Raissa foi diagnosticada com Leucemia LLA aos 4 anos, depois da morte do pai no natal de 2012 e passar a sentir dor nas arti-culações e febres altas. Desde então, passou um tempo internada no Hospital do Câncer A.C.Camargo, indo e vindo da UTI para cui-

dar de infecções no intestino. O cabelo de Raissa caiu apenas parcialmente, já no final da quimioterapia. Por ser vaidosa, ela pediu à mãe uma peruca, mas ao consultar, viu que não teria condições de bancar o pedido da filha. Conver-sando com algumas vizinhas, conheceu o proje-to Cabelegria.

Depois de 10 dias, Raissa já desfilava com sua peruca nova, fazendo com que sua mãe per-cebesse a falta que o cabelo fazia para ela. Ape-sar de usá-lo durante a maior parte do tempo, quando chegava ao hospital, Raissa não fazia questão do uso. “Eu acho que ela fazia isso porque lá todas as crianças são iguais para ela”, explicou Denise.

Raíssa e sua mãe, Denise, após a quimioterapia Raíssa visitando a “escolinha” do hospital

Raíssa aproveita o final da quimioterapia com sua nova ursa de pelú-cia, a Giovana.

Raíssa fica animada para tentar capturar seu momento de alegria já fora do hospital

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Mas e se eu quiser vender?

Apesar de toda a divulgação e espaço na mídia que projetos e ações como esses vêm ganhando, ainda há quem opte por vender as mechas. O mercado de com-pra e venda de cabelo conta com um público bem variado, indo de senhoras que

possuem pouco cabelo por conta da idade, travestis, noivas que procuram apliques para penteados, entre outros. A loja Estoril, localizada na Rua Quintino Bocaiúva, no centro de São Paulo, é um exemplo desse negócio. Ali, o espaço é dividido entre perucas sinté-ticas e naturais, sendo que estas chegam a custar até três mil reais. “Temos movimento o ano inteiro aqui e para as mais variadas ocasiões e públicos”, explica Joyce Pinheiro, gerente da loja.

Mesmo sendo um comércio antigo e tradicional, os centros de venda e compra de ca-belo ainda atraem muitas mulheres pelo montante de dinheiro que movimentam, mas, ao mesmo tempo, a abdicação do valor monetário ganha cada vez mais espaço com a divulgação de projetos voluntários, fazendo com que mais Mariannes e Ingrids possam estampar sorrisos em várias Raissas por ai.

No centro de São Paulo, a loja Estoril ocupa integralmente seu espaço com diversas mechas de cabelo.

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Superando seus limites e as expectativas dos outros, ido-sos têm procurado, cada vez mais, por esportes radicais e aventuras. Não há espaço para o tédio na terceira idade.

SUPERVELHINHOS

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SAÚDE

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Não é todo dia que ve-mos uma senhora de 80 anos saltando de um avião a 12 mil pés

de altitude. Foi dessa maneira nada comum que Iria Sanches, hoje com 81, comemorou seu octogésimo aniversário, no dia 2 de março de 2013. O salto de paraquedas, realizado na cida-de de Boituva, conhecida pelo paraquedismo, foi presente da filha, Solange, que estava can-sada de ouvir a mãe dizendo que tinha o sonho de saltar e decidiu presenteá-la. “Eu ti-nha muita vontade de saltar de paraquedas, uma amiga da minha filha sempre dizia para a gente ir, mas nunca aconte-ceu. Então quando eu fiz 80 anos a Solange fez a surpresa”, conta Iria. Na verdade, não foi tanto uma surpresa, porque para o que o salto fosse auto-rizado, Iria teve que conversar com médicos, que segundo ela acharam a ideia um tanto lou-ca, mas autorizaram o salto. O gosto por altura vem de longa data, “sempre gostei muito de altura, era doida para subir em árvore quando era pequena, gostava de pegar a fruta mais alta”, revela. Mãe e filha contam que quando viajaram para a Disney há al-guns anos, era Iria que ia nos brinquedos mais radicais. “Ela foi no elevador, na montanha--russa e eu ficava só lá embai-xo tirando foto” diz Solange. Iria não está sozinha no time dos idosos que tem gosto pela aventura. Apaixonada por água, a paulistana Maria do Carmo de Jesus, no auge de seus 72 anos, pega a estrada toda sexta--feira para ter aulas de surf em Santos. Ela é mais uma entre os milhares de frequentadores da Escola de Esportes Radicais de Cisco Araña. Localizada na praia do José Menino, Posto 2, a escola foi criada a pedido da

prefeitura há 22 anos. Cisco, que surfa desde 1968 e se for-mou em educação física aceitou o desafio de ensinar o surf e a “filosofia do aloha” para alunos de todas as idades. “Nós aceita-mos alunos de todas as idades, de 6 até mais de 70, além de

pessoas com necessidades es-peciais”, conta ele. Hoje, com 57 anos, depois de ter iniciado tantos surfistas ele afirma: “a energia do mar é transforma-dora. Ela pode realmente me-lhorar a vida das pessoas e até curar. Temos um menino que tem paralisia cerebral. Depois de uma aula com a gente ele andou pela primeira vez em dez anos.” Maria do Carmo se surpreen-deu ao ser aceita como aluna na escola, que teve seu primei-

ro aluno da terceira idade em 1995. “Eu estava passeando pelo calçadão, aí eu vi a escola de surf. Eu achei legal, porque sempre gostei de mar, de água, de coisas radicais. Mas eu achei que fosse só para jovens. Naquela época eu já tinha 69 anos. Eu fui lá perguntar sem esperança nenhuma. Imagina, eu fazer aula de surf!”. Uma semana depois ela estava ten-do sua primeira aula, “a gen-te começa com bodyboard. Aí quando eu já estava bem, con-seguindo pegar bastante onda na bodyboard eu falei pro professor que queria ir para a prancha grande. Ele falou ‘é com a senhora, como a senho-ra quiser’, eu falei ‘vamos lá!”, lembra. A surfista amadora sempre foi fã de esporte, faz natação e já chegou a experi-mentar a adrenalina da tiro-lesa, “onde eu vou que eu vejo um esporte diferente eu faço. Eu gosto de desafios!” A coragem é característi-ca comum entre Iria e Maria do Carmo. “Em nenhum mo-mento eu pensei em desistir. Éramos em quinze pessoas no avião, eu era a única mulher e

só eu ia saltar com instrutor, os outros já eram profissio-nais. Todos eles me incentiva-ram” conta Iria. Ela descreve o salto como uma experiên-cia única, “até agora não sen-ti nada como aquilo. É muito gostoso, você se sente livre, na hora que você salta do avião é uma sensação ótima, de liber-dade, você se sente um passa-rinho voando” diz ela. “Depois de saltar, viajei para Belo Ho-rizonte de avião. Acredita que no meio do voo, olhando pro céu, me deu uma vontade de saltar lá mesmo?”

Fonte da juventude

Em pouco tempo de conversa com Iria já é possível perceber que ficar parada não é com ela. “Eu sempre pratiquei esportes e gosto muito de viajar. Ago-ra não estou podendo por que estou com um problema no jo-elho, mas se não tivesse já es-tava viajando.” Ela conta que está planejando uma viagem para Portugal, Espanha e Itália com uma amiga, “nós estamos

querendo viajar pro exterior, mas como ela está com pro-blema no joelho e eu também, nós decidimos cuidar dos nos-sos disso para depois viajar. Se tiver que operar quero operar logo para já poder sair por aí. Já viajei bastante pelo Brasil, mas paro o exterior eu nunca fui. Onde der pra ir eu vou!” A prática de esportes e a busca por novidades parecem ser a receita para manter a mente – e o corpo – sempre jovens. Maria do Carmo con-

ta que depois que começou a se equilibrar em cima de uma prancha e ter contato direto com o mar sua vida mudou

muito, “eu estou mais anima-da, disposta, eu tinha bastan-te dor nas costas, isso dimi-nuiu. Água faz muito bem pra saúde, porque é um exercício completo.” Com 74 anos, a pratican-te de capoeira Ivany Peda-ce também conhece bem os efeitos da atividade física. Há três meses ela se inscre-veu em uma escola de capo-eira que conta com alunos de diversas faixas etárias. “Na minha turma tem pessoas de todas as idades, de 30 a 80. É bom porque lá eu tenho contato com todo o tipo de gente.” Logo de início Ivany se adaptwou ao esporte, “senti que fez bem pra mim, combi-na comigo”. Mesmo com pou-co tempo de prática ela já se sente outra, “as coisas muda-ram completamente. Minha memória, coordenação mo-tora, mudou tudo!” Além da capoeira ela faz também aula de alongamento duas vezes por semana, “mas gosto mais da capoeira, é mais agitado”, confessa. Não é à toa que a terceira idade é chamada muitas ve-zes de melhor idade. Depois de anos de dedicação ao tra-balho e a família, chega o mo-mento de se dedicar ás ativi-dades que, de fato, trazem prazer e de fazer aquilo que sempre foi sonho, mas nunca se concretizou. Está mais que provado que se mexer é o me-lhor remédio para qualquer mal da idade. Opções não fal-tam, é só ter disposição. Essa é a maior lição que Maria do Carmo tirou das aulas na Es-cola Radical, “com o surf eu vi que se você quer alguma coisa, independente da ida-de, você consegue, nada é im-possível, basta querer.”

“Independente da idade nada é impossível, basta querer”

“Nunca senti nada como aquilo, você se sente livre”

Iria e o instrutor e paraquedista profissional, Rodrigo, que fotografou as diversas etapas do salto

O Posto 2 é o melhor lugar para o surfar em Santos, segundo os alunos de Cisco Araña

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CHÃO,CHUVA

E CHOPE

Por: Vitória VaccariEspecial: Mariana Canhisares

Natália Tomé

CONHEÇA O BROOKLIN, TRADICIONAL BAIRRO

PAULISTANO

VIAGEM

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Manhã nublada de domingo. Sa-ída da estação Jurubatuba da

CPTM, às dez horas. Não ha-via movimento – apenas dois carros haviam passado até então. Uma sensação de ma-rasmo inundava o ambiente. O silêncio só era interrom-pido pelo farfalhar de folhas das muitas árvores ao nosso redor e pela risada estridente de uma criança. Sua mãe, uma das poucas pessoas ali presen-tes, tentava em vão silencia-la. Ainda assim, um rapaz dormia tranquilamente num dos qua-tro bancos próximos à porta. Como o fazia, não tínhamos ideia. Ainda assim, não seria exagero dizer que ficamos fe-lizes com a chegada da nossa carona.

De carro, demos um breve passeio pela Zona Sul: conhece-mos o Jardim Marajoara, a Chá-cara Flora, e um pequeno peda-ço do Alto da Boa Vista. O bairro comum de classe média que

deixáramos há poucos minutos dera espaço a mansões guarda-das por muros monumentais, guaritas de seguranças estrate-gicamente posicionadas a cada esquina e imponentes edifícios, sedes de escolas estrangeiras. Mais à frente, ao passarmos por outro zoneamento, nossos olha-res foram atraídos por residên-cias luxuosas – menores do que as anteriores – que dividiam espaço com casas simples, res-guardadas por singelas cercas gradeadas e portões fechados com cadeados.

Cruzamos mais uma rua. E mais outra, e mais outra... A paisagem continuava a mudar bruscamente, em um intervalo de poucos quartei-rões. Quando chegamos ao Brooklin, uma sensação de estranhamento pairava no ar.

entrandO na tOca dO cOelhO O carro trepidava pelas ruas

de paralelepípedo repletas de casarões antigos de muros baixos. Conforme adentráva-mos o bairro, carinhosamen-

te apelidado de Brooklyn Ve-lho, os muros cresciam, assim como os lotes das residências e a quantidade de seguranças. A arquitetura mais moderna de certas mansões indicava a presença de novos moradores – amplos quarteirões abriga-vam imemoriais residências do início do século passado lado a lado com as esplêndidas novas construções. Contudo, não havia prédios. No máxi-mo, casarões de três andares.

Mal percebíamos os padrões das calçadas. Não bastasse a presença invariável dos can-teiros e das muitas árvores próximas às fachadas das re-sidências, o chão era coberto de folhas e flores que, junto às coloridas casas, davam vida ao bairro. Aliás, este foi o úni-co aspecto vibrante que vimos até ali. O único ponto de ôni-bus que avistamos estava va-zio. O orelhão, completamen-te solitário. Ninguém chegava ou partia. Com exceção de um senhor, que caminhava com

Nossos pés mal cabiam lado a lado; não havia espaço. Décadas de história e

memória se confundiam nas centenas de prateleiras

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trajes esportivos, parecia que somente nós circulávamos por ali naquela manhã. Era como se estivéssemos numa pequena cidade do interior: a calmaria ditava o ritmo.

Enquanto nos aproximáva-mos da Avenida Vereador José Diniz, já caminhando em dire-ção a MaiFest, nos deparamos com uma casa em especial que nos chamou a atenção. Uma árvore frondosa encobria par-cialmente a fachada da casa de paredes amarelas; uma porta bipartida abria-se exatamente ao centro do local, margeada por grandes janelas repletas de cartazes e adesivos de grupos ativistas. Um poste de luz an-tigo, ao lado da porta, já anun-ciava o início de uma viagem ao passado – era o Sebo Brooklin, um antigo casarão, situado na Rua Joaquim Nabuco, que há 25 anos abriga incontáveis li-vros.

As obras se amontoavam em pilhas pelas mesas, pelos corre-dores estreitos e até mesmo nas escadas. Nossos pés mal cabiam

lado a lado; não havia espaço. Se não eram os livros, eram objetos antigos que ocupavam as estan-tes: telefones dos mais variados modelos, esculturas, revistas em quadrinho, discos de vinil, anti-quárias e até uma solitária tele-visão de tubo. Acima de nossas cabeças, apenas uma claraboia nos conferia um pouco de fôlego em meio aos espirros, sintomas de nossa rinite. Aquele espaço mal iluminado e bastante empo-eirado parecia estar parado no tempo.

Os livros novos, mesmo que numerosos, se destacavam su-tilmente em meio às obras já gastas. A monotonia reinava por ali. A quietude era tan-ta que somente os ocasionais miados dos quatro gatos do proprietário se sobressaíam, em meio à calmaria, pois ele mesmo passava despercebi-do em seu escritório escon-dido entre as estantes. Por isso, apesar de ter as portas abertas ao público, o sebo não era muito convidativo. Apre-sentava-se, assim, diante dos

nossos olhos, um retrato do Brooklin Velho.

O contato com o vento frio e úmido que balançava a copa das árvores da Rua Joaquim Nabuco foi um choque, depois de sair de um local tão abafa-do. Encolhidas contra o frio, cruzamos a Avenida Vereador José Diniz às pressas, por cul-pa do tempo curto do farol. Do outro lado, fileiras de tendas brancas muito parecidas com aquelas encontradas em praias nos aguardavam. Gente nas ruas, música, cheiro de comida no ar: chegávamos à MaiFest.arraial GermânicO

Nos meses de maio e ou-tubro, o quadrilátero entre as ruas Joaquim Nabuco, Barão do Triunfo, Princesa Isabel e Bernardino de Campos pas-sa por uma transformação. Adornado com as cores preta, amarela e vermelha, o Brooklin Novo se prepara para dar boas vindas ao inverno e ao verão como manda a tradição alemã: é tempo de MaiFest e Brooklin-Fest. Pessoas de classe média

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alta, protegidas por seus casacos de marca, circulavam pelo local, preenchendo o am-biente com o som de risadas e conversas animadas; alguns aproveitaram a ocasião para trazer seus bichos de estima-ção tão agasalhados quanto.

A tranquilidade habitual das ruas deu lugar a uma efer-vescência cultural incomum no cenário praticamente inte-riorano. Muito similar a uma quermesse – com exceção do contexto religioso que cerca tal evento – a MaiFest sur-preendeu-nos por sua plura-lidade. Além de muito chope, salsichões, joelho de porco, re-polho e batata, as tendas culi-nárias ofereciam um verdadei-ro banquete cultural: tapioca, churros, yakissoba, maçã do amor, bolinho de bacalhau e crepe suíço eram algumas das iguarias oferecidas aos visitan-tes. A aceitação e assimilação de elementos tão diferentes foi

uma descoberta e tanto, em meio a um bairro tradicional, fortemente enraizado em uma cultura que valoriza a manu-tenção dos valores, o que fica-va claro na composição do pú-blico: muitas pessoas usando símbolos germânicos, como chapéus e canecas de cerveja.

No entanto, nem mesmo essa chegada impactante teria nos preparado para o próximo acha-do dessa aventura. Caminhando pela Rua Barão do Triunfo, ob-servando a beleza e a diversida-de dos artesanatos expostos em pequenas barracas, uma tenda destoava radicalmente do que se oferecia em todas as outras. Po-sicionada em frente à charmosa Galeria Brooklin, um conjunto de lojas inspiradas na arquite-tura alpina, a tenda do Mago Scarcelli era um espetáculo à parte. Chapéu apontando para o céu, “como convém a um mago”, capa branca, cabelos platinados, olhos coloridos por uma lente

assustadoramente azul e diver-sos amuletos pelo corpo.

Com um sorriso calmo, João Hessel Scarcelli Neto, 490 en-carnações, um legítimo descen-dente de alemães e italianos, nos conta que, há três anos, quando expôs suas imagens exotéricas pela primeira vez: “Não teve muito retorno, porque as pesso-as ficavam cismadas ‘O que será isso, é um pai de santo?’. Demo-rou até as pessoas aos poucos irem compreendendo”.

A mudança de comporta-mento é perceptível entre os frequentadores da feira. Não foram poucos os que se interes-saram pela arte da quiromancia teosófica do Mago, baseada em estudos orientais e que, diferen-temente da leitura de mãos ci-gana, que interpreta os montes das palmas das mãos, observa os traçados das linhas e, dessa forma, consegue atuar na saúde das pessoas, prevendo doenças como diabetes e câncer.

Um exemplar das barracas presentes na festa

Na opinião de Scarcelli, o recente sucesso de sua exótica atividade se deve à incorpo-ração de diferentes culturas à MaiFest. “Nós temos um rá-dio que funciona nos dias de evento e transmite ao mesmo tempo para a Alemanha, e o rapaz, o André, uma figura muito carismática, logo no iní-cio nos entrevistou [a equipe] e as pessoas começaram a ter uma maior aceitação, come-çaram a entender melhor este trabalho”, disse ele.

Involuntariamente, o Mago respondeu a uma de nossas dú-vidas: a origem daquele rock dos anos 70, que soava como música de fundo da nossa aula de teosofia. Num estúdio envi-draçado em frente às barraqui-nhas da MaiFest, Paulo Lima, o proprietário da web rádio – vol-tada quase que exclusivamente para quadros musicais – acom-panhava toda a programação, assistindo às entrevistas com as atrações enquanto coordenava as canções seguintes.

O contato com o público de

uma webrádio é quase exclu-sivamente via redes sociais. “Podem solicitar músicas, des-de que esteja mais ou menos dentro da programação. Não dá para ser popular demais também. Mas, lógico, temos uma boa intenção e queremos que todos participem, porque vai nos ajudar, inclusive”, disse Lima.

A chuva apertou e o público escondeu-se nos espaços co-bertos. Esse era o caso da famí-lia de Rose Camargo, moradora do Brooklin há seis anos. Com os filhos, a nora e neto, apro-veitava aquela tarde para pas-sear por seu bairro a pé, coisa que não faz usualmente. “Eu moro mais perto da Avenida Santo Amaro, então faço tudo de carro. Até porque, duran-te as noites, as ruas são muito escuras, principalmente onde tem casas. Aqui [Rua Joaquim Nabuco], onde tem comércio, é tudo bonitinho, arrumadinho.”

A descrição da aposentada nos surpreendeu. As ruas esta-vam incrivelmente limpas, so-

bretudo tendo em vista que ha-via poucas lixeiras espalhadas por todo o evento e o recorrente uso de materiais descartáveis. Mas, como? “É uma tradição do bairro, porque é um povo que vem de uma cultura diferente. Têm muitos alemães e, como eles são limpos, as outras pesso-as se sentem constrangidas de sujar. Por isso, não jogam nada no chão. Preferem manter, não digo civilizado... Mas talvez seja isso mesmo. Civilizado.”

“É um bairro bom para a fa-mília”, acrescentou ela. “Mas, não sei se daqui a alguns anos essa afirmativa vai ser válida. Num dia, você passa por um lugar e está tudo certo. Na se-mana seguinte, você volta lá e destruíram um quarteirão in-teirinho para construir um pré-dio.” De fato, apesar de ainda preservar o ar interiorano do Brooklin Velho, assim como as raízes na tradição alemã, a parte mais nova do bairro já sente a influência da Pauliceia Desvairada afetando seu típico ritmo sossegado.

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e O fim do dia se aproxima e a chuva finalmente dá uma tré-gua; a luz do entardecer colo-re as ruas do Brooklin novo.

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Por trás da(quase)morte

O pós-vida é um mistério para quase todas as crenças. Enquanto isso, algumas pessoas afirmam já ter passado

pela experiência.

Por: Juliana Machado

ESPECIAL

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O que existe após a vida? Enquanto al-guns são enfáticos ao responder que

a morte é o fim de tudo, muitos outros simplesmente não sa-bem como reagir a tal pergun-ta. Dúvidas, medo e incerteza são alguns dos sentimentos que tomam conta da maioria das pessoas ao serem questionadas sobre o que realmente acontece quando chega sua hora. Mas e quanto àquelas que já passaram por situações que as fizeram crer que a vida realmente não termi-na por aqui?

Alexander Eben, um neuro-cirurgião americano, relatou em seu livro Proof of Heaven – tra-duzido, Uma Prova do Céu – a experiência de quase-morte que mudou radicalmente o rumo de sua vida. Cientista cético, Ale-xander nunca acreditou naquilo que não pudesse ser explicado pela ciência. Diversas vezes ig-norou relatos de pacientes sa-ídos de estados terminais que juravam ter conhecido o Paraíso e reencontrado parentes mortos, afirmando que muitos deliravam ou até mesmo mentiam. A fim de provar que tudo poderia ser des-vendado logicamente através da medicina, dedicou boa parte de sua carreira estudando a mecâ-nica cerebral dos seres humanos.

Em uma manhã de 2008, de-

pois de acordar com forte dor de cabeça, o neurocirurgião foi diagnosticado com um raro sur-to de meningite bacteriana e, poucas horas depois, entrou em coma vegetativo com quase zero por cento de chances de sobre-vivência. Após uma semana de inatividade cerebral e sem qual-quer esperança por parte dos médicos, os olhos de Alexander inesperadamente se abriram. Não houve sequelas físicas ou psicológicas: as únicas marcas permanentes foram deixadas pelas visões que jura ter presen-ciado durante uma viagem ao outro lado da vida.

“Minha primeira lembran-ça das profundezas do coma foi que tudo estava meio sombrio, marrom, vermelho e escuro. Eu literalmente me lembro de raízes sobre a minha cabeça... E pare-ceu ser um tempo muito longo”, explicou. Em seguida, relatou o surgimento de um foco de luz que se expandia enquanto tocava uma melodia, limpando toda a sujeira na qual ele se encontrava. “De repente, uma espécie de por-tal foi aberto para um vale exten-so de cores indescritíveis, com cachoeiras e milhares de borbo-letas. Em certo momento, eu es-tava voando em cima das asas de uma delas e não me lembrava de absolutamente nada da minha vida. Não existia corpo nem lin-

guagem, tudo era sentido através de explosões de cores e luz”.

O médico também afirmou ter sido acompanhado o tempo intei-ro por uma mulher de olhos azuis que transmitia por pensamento frases como “Você será amado e querido para sempre. Não há o que temer”, e então emendou “Ire-mos mostrar muita coisa para você aqui. Mas, por enquanto, você vai voltar”.

Relatos inacreditáveis como esse, apesar de parecerem terem saído de livros de ficção, são mais comuns do que se imagina. Se-gundo o professor de psiquiatria da Universidade Federal de Juiz de Fora, Alexander Moreira de Al-meida, uma em cada dez pessoas que passaram por uma ressuscita-ção bem sucedida relatam experi-ências de pós-vida.

Maria Aparecida, hoje com 76 anos, descreveu a experiência de quase-morte pela qual passou aos 34. Depois de chegar ao hospital praticamente inconsciente devido a uma enorme perda repentina de sangue, foi descoberta uma grave hemorragia uterina em seu orga-nismo. Ao ser atendida, Maria já se encontrava sem sinais vitais.

Suas únicas lembranças duran-te o tempo em que tentavam rea-nimá-la era de estar em um lugar desconhecido e escuro, onde ao fundo encontrava-se uma luz in-tensamente clara. “Eu estava com

muito medo, mas não conseguia parar de ir de encontro à luz. Eu andava muito e nunca chegava nela, era como se o caminho fos-se cheio de curvas”, explica. Em seguida a luz desapareceu e um frio intenso tomou conta de seu corpo. Ainda em completo breu, Maria escutou os médicos come-morando o sucesso da ressusci-tação.

Alexander Moreira ainda afirma que os pacientes que vi-venciam situações como essas tendem a ter, ao longo do tem-po, aumento da satisfação com a vida, diminuição do medo da morte e maior apreciação da es-piritualidade.

Foi este o caso de Edson Ro-berto Nogueira, de 48 anos, após sobreviver ao acidente que mu-dou sua perspectiva de vida para sempre. A memória que tem do dia 2 de abril de 2001, antes de ser atropelado por um caminhão guincho enquanto atravessa-va a rua, é de ter dado carona para sua sobrinha até o centro de Campinas. Repentinamente, percebeu estar em outro lugar e, ao olhar para frente, viu-se desa-cordado em uma maca. Segundo ele, era como se estivesse senta-do há alguns metros de seu pró-prio corpo.

Em volta desta maca, Edson relatou ter visto entidades con-versando entre si, todas cober-

tas por túnicas. Confuso e apa-vorado com o que viria a seguir, olhou para um dos lados e ines-peradamente deparou-se com seu pai, falecido em 1995. “Meu pai estava calmo, sorrindo... Pe-diu que eu ficasse tranquilo e foi ao encontro das entidades. Eles conversaram por alguns instan-tes, mas eu não pude ouvir o que falavam. No final meu pai se voltou para mim sorridente e, fa-zendo um sinal de positivo com dedo, disse ‘ta tudo certo’”. Se-guido disso, Edson acordou com a imagem do teto do quarto em que estava e com uma voz expli-cando-lhe o acidente e as sema-nas que passara em coma.

Aposentado em circunstância

das sequelas, até hoje busca ex-plicações para a experiência pela qual passou, sem conseguir chegar a uma conclusão concisa. Apesar da vida limitada, assegura sen-tir-se feliz e totalmente diferente. “Hoje nada me aflige, tenho mui-to mais paciência. A experiência de abril de 2001 foi um divisor de águas em minha vida, pois não sou mais a mesma pessoa de antes do acidente”, completa.

Independentemente de todas as tentativas médicas, espirituais e científicas de explicar o que real-mente são esses acontecimentos, na verdade nunca será possível chegar a um consenso final. Cabe somente aos sobreviventes o crer ou esquecer.

O neurocirurgião americano, Alexander Eben, é autor do livro “Proof of Hea-ven” e dá palestras sobre sua experiência

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DaEuropaparaSão

Paulo

Um dos maiores sonhos turísticos para os bra-sileiros é comprar uma

passagem com destino à Europa. O continente fica logo atrás dos Estados Unidos em se tratando de destino preferido. Recente-mente, as viagens internacionais têm se tornado mais viáveis para os brasileiros. Porém, um pe-daço do leste europeu pode ser encontrado na própria capital paulista. O bairro da Vila Zeli-na, zona leste da capital, contém uma enorme carga de diversida-de cultural. São, ao todo, onze comunidades que convivem na região: búlgaros, croatas, eslo-venos, estonianos, letos, húnga-ros, lituanos, poloneses, russos,

tchecos e ucranianos. Segundo documentos e resquícios de mo-radores, estima-se que o bairro tenha sido fundado por volta de outubro, em 1927.

Para proteger essa identidade cultural e evitar que grupos mais radicais alterassem o nome do bairro para Vila Lituânia, alguns moradores fundaram, em 2008, a AMOVIZA, Associação de Mo-radores e Comerciantes do Bair-ro da Vila Zelina.

História Marcada em Pedra

O ar frio de maio pode facil-mente fazer parte da sensação de estar na Europa durante o ou-tono. Logo pela manhã, as ruas

ainda estão praticamente va-zias, à excessão de alguns carros que circulam pela região. Pouco tempo depois, porém, a comuni-dade começa a ganhar vida. Co-merciantes se locomovem pelas ruas para abrir suas lojas, um aglomerado de estudantes pode ser visto ao redor da região do Colégio Católico São Miguel Ar-canjo. Começa mais um dia no bairro.

O dia a dia dos moradores não difere excepcionalmente da rotina de outros bairros da zona leste. Realmente, o que faz a diferença nessa região são as marcas que os imigrantes europeus deixaram ao longo de 87 anos de fundação.

Em 1928, por exemplo, já

Com descendentes de onze países do

leste europeu, o bairro da Vila Zelina é

uma gigantesca mistura harmoniosa

entre as culturas

P O R D A N I E L A D E M O R I

havia sido fundada a Igreja Ba-tista Boas Novas, de influência russo-ortodoxa. Em 1936, após ajuda financeira da comunidade lituânia dos Estados Unidos e da própria Lituânia, inaugurava-se o primeiro templo católico lituâ-nio da América do Sul: a Igreja Católica de São José de Vila Ze-lina. A construção, de formação simples e muito geométrica, à primeira vista parece não se diferenciar das demais igrejas católicas brasileiras, porém, ao observar melhor, é possível ver, logo na fachada, uma cruz de cruz lituânia, que a caracteriza como tal. A partir de então, vá-rias outras igrejas foram cons-truídas, a grande maioria rus-

so-ortodoxa, caracterizadas por suas abóbadas arrendodadas.

Ainda hoje, aos domingos, algumas dessas igrejas realizam missas no idioma de seus cons-trutores, como a própria Igreja de São José, na qual a missa é rezada em lituano, e na Paró-quia Santíssima Trindade, onde é falado eslavo antigo. “É uma maneira de manter a tradição”, segundo o presidente da AMO-VIZA, Victor Gers Junior.

O Leste Europeu no prato

Segundo Junior, os imigran-tes que tinham acabado de se instalar no bairro e não procura-ram emprego nas proximidades,

que já tinham fábricas e ativida-des comerciais acabaram fun-dando por conta própria esta-belecimentos, como empórios e mercearias com ingredientes de pratos típicos do leste europeu.

Uma das grandes responsá-veis por manter a identidade europeia do bairro é a culinária típica, pois a comida influencia tanto na rotina como na memó-ria, através da memória afetiva – quando um sabor nos lembra algo que traz um sentimento – e preserva, todos os dias, aspec-tos que sobreviveram entre os nativos do bairro. Por lá, há de tudo um pouco: pratos típicos da Lituânia, Rússia, Croácia, entre outros países, são facilmente en

CIDADE

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contrados e fazem parte da alimentação diária dos morado-res do bairro. A rotisserie Delí-cias Mil, de uma senhora lituana Alana Trinkunas Dzigan, beiran-do seus 70 anos, é a responsável por fornecer iguarias com o DNA de seu país cravejado: como o Virtiani, uma espécie de ravióli recheado de carne ou queijo e o Silke, sardinha em conserva. Por trás do balcão, está a nativa e proprietária, que declara: “Acre-dito que grande parte dos mora-dores do bairro permanecem se-guindo os costumes de seu país nativos graças a preservação do nosso tipo de alimentação.”

Outro ponto essencial – seja pelo cheiro que invade as nari-nas ou simplesmente por con-servar a essência lituana – é o Bar do Vito, aonde é servido por-ções de pepino azedo e a Koshi-lenai, geléia de carnes de boi e porco, além de outros pratos típicos que circulam pelo salão antigo, frequentado principal-mente por homens. Até mesmo restaurantes brasileiros do bair-ro, como a lanchonete Santa Co-xinha, famosa por seus milhares de sabores do tipico salgado bra-sileiro, incorporou sabor com carne para agradar o paladar dos moradores.

A Naturalização do bairro

Centenas de árvores com flo-res, idosos jogando tranquila-mente em mesinhas de dominó e mulheres com carrinhos de feira formam o cenário da região. Re-duto de imigrantes do leste eu-ropeu, é quase uma vila interio-

rana no meio de São Paulo. Mas, ao andar pelas ruas, escuta-se idiomas como polonês, lituano e russo, ao invés do carregado “r”. Entre os sete mil habitantes estão os filhos e netos dos eu-ropeus fugidos das duas gran-des guerras. São eles que desde 2008 lutam pela tematização do bairro para caracterizá-lo como Bairro do Leste Europeu de São Paulo – um ponto turístico, cul-tural e gastronômico da cidade de São Paulo, como a Liberdade.

Para colocar o projeto em prática, os moradores criaram iniciativas como a tematização de ruas e calçadas, um portal na entrada do bairro e a deco-ração dos postes com floreiras. As feirinhas típicas também vêm tomando forma e espaço na re-gião, como a que ocorrerá no dia 8 do mês de junho, que além das comidas típicas, conta com arte-sanatos. Ricardo Teixeira, 23, já esteve na feira de maio e se en-cantou pela região. “Apesar de relativamente pequena, passear por lá foi muito gostoso. Pude ver os tradicionais ovos pinta-dos, e levei para casa um scra-pbook com fotos, bloquinhos e estojos, feito pelos artesãos da comunidade.”

A tradição do artesanato ficou marcada de geração para gera-ção. As pinturas com temas ucra-nianos em porcelana, as famosas matrioskas, bordados típicos e a arte em madeira caracterizam e remetem aos povos mais anti-gos da Europa. A arte também foi preservada e é passada aos mais jovens através dos grupos de dança e corais folclóricos. O Nemunas Ansanblins é um gru-po comunitário que possui entre suas principais atividades a dan-ça. Através de trajes típicos, com saias longas e rodadas, camisas brancas e muitos ornamentos floridos, combinados a passos bem executados com a trilha sonora lituana, somos trans-portados para o Leste Europeu imediatamente. Tamara Dimi-trov, 52, é presidente da Asso-ciação Cultural Grupo Volga de Folclore, que existe há 33 anos. “Temos cerca de 50 integran-tes no grupo. Nossa associação começou pequena e agora faze-mos mais de 40 apresentações por ano Brasil a fora. Queremos manter a cultura europeia viva, não só em nosso bairro, mas por todo o país”. Afinal, quando a cultura é forte, a distância fica pequena.

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Kugelis, prato típico da Lituânia, que é uma torta de batata com bacon e cebola

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Mas e ojornaleiro?Em meio a Era da Internet e a crise dos impressos, as bancas de jornal penam

para sobreviver. Como então esse tradicional comércio paulistano

mantém-se firme até hoje?Por Mariana Canhisares

CIDADE

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Foi-se o tempo em que se viam enormes bancas de jornal espalhadas pela ci-

dade de São Paulo, vendendo ex-clusivamente jornais e revistas. Hoje em dia, observam-se ban-cas enxutas e entulhadas, reple-tas dos mais variados produtos, em virtude dos obstáculos que os jornaleiros têm encontrado, ao longo dos anos, para manter seus lucros ou, até mesmo, suas portas abertas. Segundo o presidente do Sindicato dos Jornaleiros, José Antônio Mantovani, é possível apontar duas principais causas para a dificuldade de manter esse negócio, que provocaram, inclusive, o fechamento de 1500 bancas de jornal nos últimos cin-co anos. Primeiramente, a inter-net e as novas tecnologias, como tablets e smartphones, contri-buíram e muito para a redução do fluxo de pessoas nas bancas, afinal criou-se no público novos hábitos de leitura. Como os jor-naleiros só tinham permissão para vender jornais e revistas, seu faturamento foi bastante afetado. Somado a isso, Manto-vani ainda responsabiliza a úl-tima gestão da prefeitura. “Ele [Gilberto Kassab] não tinha uma simpatia com as bancas de jor-nal, pois, para ele, elas ‘enfeia-vam’ a cidade. Era ignorada a função cultural que as bancas têm para a população de São Paulo. Dessa forma, assim como

ele instituiu a Lei da Cidade Limpa, ele tentou fazer algo se-melhante com as bancas de jornal. Por exemplo, o jor-naleiro que colocava uma ge-ladeira com refrigerante, água, suco ou então doces e chicletes para vender, era multado pela prefeitura, de maneira que ele perdia sua autorização para tra-balhar.” Contudo, para o sindi-calista, hoje a situação pode ser considerada mais estável devido à instituição da lei municipal 432/2013. Por meio desta, foi permitido às bancas que utilizas-sem até 25% de seu espaço para comercializar outros produtos além dos impressos. “Agora, o jornaleiro tem a possibilidade de ter um atrativo a mais para o cliente, prestar outros serviços à população”, afirma.

Lojas de conveniência

Bolas de futebol, cami-setas, aparelhos de barbear, is-queiros, talões de zona azul, do-ces, cigarros, chips para celular, pilhas, canetas, guias de viagem. Esta é a banca na qual Miriam Xavier, 38 anos, trabalha, no bairro da Bela Vista.

Há dez anos, quando seu irmão a

chamou para ajuda-lo no seu ne-gócio, ela já sentia as dificulda-des em manter esse tradicional comércio paulistano. “A gente não podia vender um doce aci-ma de 30g. Por isso, todo mun-do era fora da lei, afinal se você não agregasse outras coisas, viveria de que? De revista, jor-nal? Você não sobreviveria. De recarga de celular que você não ganhava nem 5%? Então, a gen-te era obrigado a vender outros itens, mesmo estando fora das normas da prefeitura, correndo o risco de sermos fiscalizados e multados”, relata. Por isso, ela viu com bons olhos a lei citada por Mantovani. “Estávamos estabilizados, sem chances de crescer. Agora, com

“Ainda há um público fiel, que gosta de passar na banca para

olhar as novidades”

a aprovação dessa nova lei que permite a venda de refrigerantes e outras mercadorias, está dan-do uma melhorada.” Cleferson Dorizete, 31 anos, também se beneficiou com a nova lei. No ramo há pouco mais de um ano, se surpreendeu ao ver várias bancas do bairro fechando e vendas abaixo das suas expectativas. Atualmente, os impressos não rendem tanto quanto doces, recargas de ce-lular e cigarro, os artigos mais vendidos da sua banca localiza-da em Pinheiros. “Tirando o ci-garro e a recarga, dá para ganhar um dinheirinho razoável.” Contudo, José Santos, 60 anos, não vê tantas vanta-gens em tornar sua banca de jornal uma pequena loja de con-veniência. “Aqui na banca nós não vendemos nada além dos impressos. Sei até que outros produtos ampliariam nossos ga-nhos, mas é muito problema. Há alguns produtos, cuja venda em banca de jornal é permitida, mas que fogem ao acordo de consig-nação da categoria que impõe o pagamento de 30% da mercado-ria vendida. Eles querem que o jornaleiro aceite vender o pro-duto e ganhar 15%, 20% do va-lor. Isso eu não aceito. É como uma espécie de boicote”. Entretanto, concorda com o presidente do Sindicato dos Jornaleiros: a internet di-ficultou os negócios. “Podemos dizer que a primeira queda da

venda de jornais, deveu-se a ampliação das estratégias de as-sinaturas. Mais recentemente a popularização da internet gerou uma queda ainda maior.” Apesar das crescentes di-ficuldades enfrentadas pelo se-tor, as bancas ainda sobrevivem.

Não apenas pela possibilidade de vender novos produtos, mas porque existem pessoas que ain-da não abrem mão de visita-las regularmente. De acordo com José Santos “ainda há um pú-blico fiel, que gosta de passar na banca para olhar as novidades”.

Nas bancas, há uma variedade de produtos que não se limita a impressos

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Uma sobremesa, por favor!

TEXTO: Júlia Ishikawa e Stephanie Vapsys“Na verdade, eu me dei con-

ta que não queria passar o resto da vida vendendo havaianas” explicou Danielle Noce ao ser questionada de onde surgiu a ideia de criar um canal de con-feitaria no Youtube.

Dani, como gosta de ser chamada, foi uma das convi-dadas da palestra “Uma Pitada de Interatividade: Os canais de culinária que bombaram na in-ternet”, realizada na Faculdade Cásper Líbero. Ao lado de seu marido e companheiro de tra-balho, Paulo Cuenca, Otávio Albuquerque, conhecido pelo programa Rolê Gourmet e Caio Novaes, do Ana Maria Brogui, Dani contou sobre sua rotina de trabalho.

Conhecida pelo canal de con-

feitaria I Could Kill for Dessert, que conta com mais de 155 mil inscritos, Danielle deixa cla-ro que seus vídeos não seguem um roteiro e que o improviso é essencial na internet. “Se espe-cializar na área faz com que se perca um pouco do charme”, diz a confeiteira que passou dois anos, entre 2012 e 2013, estu-dando na escola de gastronomia de Paris, Lenôtre.

Em nosso segundo encontro, marcado para ser em seu es-critório, Dani estava se maqui-ando para gravar novos episódi-os da sua série e esqueceu que havia combinado de nos encon-trar. Por sorte nossa, seu marido tinha ido até o escritório buscar um equipamento de filmagem. Mas, por azar deles, deparou-se

com duas estudantes de jornal-ismo perdidas na porta de seu escritório. Depois de ligar para casa e confirmar que nós tín-hamos, de fato, combinado de conversarmos naquele horário, ele gentilmente topou em nos levar até sua casa.

Chegando lá, fomos festiva-mente recepcionadas por seus dois cachorros, ambos Bulldogs franceses – Bom e Boboy – e um gato laranja e peludo em cima da mesa, o Mellick. O aparta-mento que também é o cenário para vídeos de seu canal, tem uma decoração rebuscada de livros de gastronomia e diver-sos adornos com ar vintage.

Depois de um tempo brin-cando com os bichos de esti-mação e conversando com

Com paixão por doces, Danielle Noce, do I Could Kill for Dessert, largou tudo para se dedicar ao improviso dos vídeos que dão água na boca de

qualquer um.

PERFIL

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Nicole, uma das estagiarias da produtora e também for-mada pela Cásper Líbero, Dani chega com um kit de unhas e nos cumprimenta. “Pronto, po-demos começar.” Ela diz tiran-do o esmalte com acetona.

Dani começa a entrevis-ta relutante em dizer qual a sua idade, porém, sempre com um tom risonho e brincalhão. Chutamos algo entre os 20 e 27 anos, mas logo depois relem-brando de sua infância deixa escapar os seus 30 anos. “Minha infância foi super boa. Meus pais ficaram juntos até meu pai mor-rer. Uma família super unida. Minha mãe tem muitos irmãos, é uma família bem grande com vários primos, toda aquela coi-sa de festa de família no final de semana, brigas aconteciam também, é claro. Tenho duas irmãs e dois irmãos. Tirando a perda do meu pai, da minha avó e da minha tia favorita, tudo isso entre meus 12 e 15 anos, o resto foi tudo ótimo.”

Nascida em Brasília, veio

para São Paulo aos 17 anos para estudar moda na Faculdade Santa Marcelina e, coincidente-mente, foi quando conheceu o Paulo, seu marido. Nascido em Jundiaí e dois anos mais novo que Danielle, Paulo também veio para São Paulo fazer faculdade na FAAP, no curso de Cinema e, por ordem do destino, os dois viram-se como vizinhos de por-ta. “Ele era meu melhor amigo. Estamos juntos faz nove anos, mas nunca nos casamos oficial-mente”, revela a confeiteira.

“Pensamos em vender Havaia-nas como se fosse balinha, Wvenderíamos por cores.”

Dani se formou como uma

das melhores do ano na San-ta Marcelina, mas deixa claro porque não seguiu carreira. “Eu sempre fui muito ‘nerd’ em tudo que faço. Na San-ta Marceli-na, existe um fórum onde os dez melhores alunos se apresentam e eu decidi fazer dois TCCs, um de acessório e

um de moda e fui classificada para esse fórum nos meus dois trabalhos. Quando isso acon-tece, normalmente essas pes-soas já saem de lá empregadas e comigo não foi diferente. Re-cebi três propostas de trabalho, porém, uma era pior que a out-ra. Eu teria que trabalhar 24 horas por dia e meu salário não daria nem pra pagar o aluguel, então percebi que hoje em dia, para ser formado em moda, ou seus pais são muito ricos e po-dem te sustentar ou não tem como sobreviver.”

Ela aproveita a deixa da moda para perguntar para Paulo se ele encontrou sua saia preta e ele confessa que ficou tão atordoado com nos-sa chegada inesperada no es-critório que se esqueceu de procurar. “Nossa Dani, agora que percebi que você está de calça. Acho que nunca te vi de jeans” comenta Nicole, a as-sistente de Dani. “Ela teve

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uma fase que só usava jeans, uns anos atrás, mas do nada ela parou”, respon-deu Paulo.

“Mas, voltando...” inter-rompeu Dani, mostrando-se séria e comprometida com a nossa entrevista. Foi nesse momento que começou a nos contar como decidiu abrir as lojas da Havaianas. O casal estava em Brasília quando surgiu a ideia. “Um amigo da minha tia tinha uma loja de Havaianas, mas era tudo espalhado e sem organização. Olhamos para aquilo e vimos com outros olhos. Pensamos em vender como se fosse bal-inha, venderíamos por cores e foi assim que nasceu a primei-ra loja padronizada das Ha-vaianas no país. Procuramos lugares em São Paulo, mas acabamos optando por abrir a loja em Santos. E foi com esse dinheiro que nós nos sustentá-vamos até pouco tempo atrás”.

Dani já tinha terminado de pintar as unhas, que agora estavam da cor “Cinturinha” rosa claro da marca Impala da

coleção “Anos Dourados” – o que já demonstra seu gosto por coisas antigas –, enquan-to Paulo postava mais um vídeo no canal. Ficamos cu-riosas para saber como era a relação profissional do casal. “A gente sempre trabalhou junto, então acho que já es-tamos acostumados. A gente briga, lógico, como qualquer casal e como qualquer profis-sional”.

Ambos trabalham de se-gunda a segunda e confessam que o último dia que não tra-balharam foi no aniversário do Paulo e que estão torcen-

do para conseguir o mesmo no

aniversário dela, gravando dois programas por dia. “Acontece que internet não é igual tel-evisão, você é a sua própria mídia e se você não está lá todos os dias, as pessoas te esquecem. Por isso que não dá para ter uma rotina”. Pelo mesmo motivo, ela não se permite desconectar das re-des sociais – o que não parece incomodá-la muito. Paulo acrescenta afirmando que, de-pois de um tempo, a internet torna-se o mundo real e que, graças a ela, fizeram muitos amigos, como a Nicole.

Contudo, no início do ca-

nal, tudo era muito diferente. Fartos de vender Havaianas, ti-raram alguns anos para encon-trarem no que realmente gos-tariam de trabalhar. Nesse meio tempo, Dani fez MBA em Gestão de Luxo e aulas de teatro, o que lhe rendeu a ideia de viajar com Paulo para Amsterdam, largar as lojas e lá abrirem uma confeitar-ia. Eles, de fato, passaram alguns meses em Amsterdam, mas a id-eia da confeitaria nunca chegou a acontecer.

Ao voltarem, Dani decid-iu ressuscitar suas habilidades gastronômicas de sua época de menina. Inclusive, uma de suas primeiras memórias colocando

a mão na massa é de quando tinha cerca de sete anos e cos-tumava preparar sonho, aque-la sobremesa tradicional de massa e creme que existe em qualquer padaria do Brasil. Entre outras palavras, a con-feiteira sempre mostrou inter-esse pelas receitas doces e ela encontra o porque disso. “Eu nunca tive interesse nenhum em comida salgada, não sei se é porque minha mãe não deixava

eu colocar a mão na massa de jei-to nenhum. Ela é mineira, ou seja,

ela cozinha muito bem então nin-guém tocava em nenhuma panela da minha mãe. Quando ela en-trava na cozinha, normalmente ela não queria ninguém com ela então eu nunca tive nenhuma ex-periência com comida salgada”.

Embora sua mãe, Dilma Ma-ria, tenha lhe fornecido a en-trada ao mundo culinário, Dani também afirma que todos os Noce sempre foram verdadeiros chefes de cozinha. “Minha família intei-ra é mineira, portanto todo mun-do lá em casa cozinha. Meu tios, tias, mãe, todo mundo. Minha mãe trabalhava como diretora executiva de RH no BNDES, por-tanto ela trabalhava a beça, mas ai chegava sábado e domingo e cozinhava o tempo todo. Era um hobby lá em casa cozinhar”.

Na volta da capital holandesa, Dani passou a cozinhar para os colegas cineastas de seu marido, que na época passava muito tempo ocupado produzindo filmes, quan-do um deles teve a ideia de filmá-la, devido à espontaneidade e por ser muito desastrada. Porém, o primeiro vídeo só veio a ser filmado depois de uma noite de bebedeira em uma boate no centro da cidade. A partir desse dia, I Could Kill For Dessert tornou-se uma realidade.

Em 2012, um ano após o início do canal, movida pela vontade de compreender melhor o “porque” das coisas, decidiu que gostaria de estudar confeitaria. E que lugar melhor para aprender mais sobre o assunto do que na capital gas-tronômica do mundo, Paris? Alex Atala, chefe de um dos melhores restaurantes de São Paulo, o D.O.M e, então, indicou a escola de confei-taria Lenôtre, onde Dani passou es-tudando dois anos de sua vida.

Desde então, a confeitaria tem

sido sua vida. Sua vida virou de cabeça para baixo com a criação do canal, afinal, nasceu ali em seu apartamento uma produtora, a Enfim Filmes. Ela diz que já é para sempre e que não se imagina tra-balhando longe dessa área. Por isso, quase nunca se permite ter outros hobbies que se distanciem muito da culinária. O pouco que faz do seu tempo livre – e que não envolva farinha, açúcar e creme de leite – é passear com os bulldogs e assistir um filme na própria cama.

Danielle vive completamente imersa nesse mundo doce que ela mesma criou, mas toda essa cor-reria nas a impede de criar planos para o futuro do site. Sempre com um tom de humildade em sua voz, ela não se considera a estrela na qual todos os colaboradores de-vem giram em torno. “Acho que o I Could Kill For Dessert vai contin-uar ‘comigo ou sem migo’.

Tem muita gente competente envolvida dentro dele que atual-mente sou mais uma colabora-dora, até porque estou abrindo um blog próprio em breve, que vai ter coisas de moda e de tudo”. Mas foquemos apenas no agora. Com muito amor, determinação e esforço, continuam os dias do I Could Kill For Dessert.S

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ecletismo

engenheiro

O

deumN

egro e filho de escrava, Teodoro Fernandes Sam-paio foi um engenheiro

por profissão e um apaixonado pela cultura brasileira. Lançou li-vros de cunho histórico e geográ-fico, deixando como legado uma vasta bibliografia sobre estes te-mas. Esse nome não soa estranho para os paulistas, já que, além de dois municípios homônimos, a Rua Teodoro Sampaio é famosa na zona oeste da capital.

A calçada sinuosa não atrapalha tanto na descida. No alto da rua, a visão assusta. Talvez sejam os car-ros, a muvuca acumulada em cada cantinho de comida ou em cada esquina. Quem sabe aquela tensão natural quando não conseguimos ver o fim de algo. “Se o começo é assim, como será mais para fren-te?”, devem pensar os novatos.

Temos de começar a jornada logo, e assim fazemos. A dificulda-de de se locomover em um espaço

tão apertado lembra uma descida íngreme de uma rocha. Sabe aque-les “trabalhos de campo” que fazí-amos na escola? Que a professora nos lembrava alguns dias antes para levarmos uma garrafinha de água e nosso mais confortável tê-nis? Era essa a sensação. O piso falho, muitas vezes maquiado por tentativas de conserto, revela a terra usada durante o processo de construção.

Vemos pessoas doentes, algu-mas usando até máscaras, que se-guem rumo ao grande hospital na esquina, espiando a longa descida. Médicos, enfermeiros e estudantes da área da saúde esbarram em seus futuros pacientes no trajeto até os locais de trabalho. Em um deter-minado ponto, as roupas brancas começam a contrastar com as pre-tas, e as maletas dão lugar a cases dos equipamentos musicais.

Em certo momento da descida, podemos ouvir um som amplifi-

A movimentada rua Teodoro Sampaio, na Zona

Oeste daeSão Paulo, vai de lojas de instrumentos a

itens de decoraçãoPor Marcela Attie e Rodolfo Vicentini

CIDADE

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cado, que, chegando mais perto, identificamos ser de uma guitarra. De um instante para o outro, surgem inúmeras lojas de instrumento, dos mais diversos preços e estilos. Os que gostam de folk, os que gostam de rock, os que gostam de jazz, os que gos-tam de country, os que gostam de bluegrass, estão todos felizes.

Diogo Ferreira adora mexer em seus longos cabelos lisos na altura do ombro. Divididos ao meio no topo da cabeça, a impres-são que passa é que Jesus voltou à Terra e virou metaleiro. “Meta-leiro não! Sou fã de rock e rock pesado, não venha me chamar de metaleiro”, vociferou o vende-dor da loja Mil Sons. “Metaleiro é tudo poser”, explicou baixinho Diogo, “quem manja de verdade o que é boa música não se chama assim”. Ainda olhando para os la-dos, como se tivesse escondendo algo muito valioso, ele nos olhou e disse com muito cuidado, “90% das pessoas aqui não tocam nada. Do que adianta tocar só um estilo musical?”.

A loja abarrotada de pseudo-músicos, músicos profissionais e iniciantes é realmente fascinan-te. Diversas guitarras e violões expostos na parede viram alvos dos olhares dos clientes admira-dos. Os instrumentos mais caros são vistos de longe. Eles brilham, atraem a atenção, parece que é óbvio o preço absurdo. E todo músico tem um pouco de sonha-dor, não? De longe observamos um garoto, de uns 12 anos, segu-rando na mão um violão na cai-xa. Mas toda a atenção dele esta-va voltada para um violão preto, cheio de adornos no longo braço

do instrumento, que formavam o nome “Johnny Cash”. A réplica do violão do cantor norte americano prende a criança, que nem pres-ta atenção na novidade em suas mãos. Quando o menino saiu de perto do ouro, fomos conferir o preço da peça: cinco mil e quatro-centos reais...

Há lojas de todos os preços na Teodoro Sampaio. Gibson e Fender são encontradas nas mais caras, cujos vendedores fazem de tudo para mostrar que sete mil reais podem ser divi-didos em dezenas de vezes no cartão de crédito. Algumas lojas não passam de uma portinhola, onde os instrumentos ficam co-lados uns nos outros, atulhados naquele espaço minúsculo.

Continuando a descer a es-treita rua, a música perde espa-ço para as lojas de móveis e ar-tigos de decoração, que surgem imponentes em grandes estabe-lecimentos que nem lembram aquelas pequenas portas de al-guns números acima. O clima da rua muda, já apresentando mais áreas verdes e algumas residên-cias, principalmente chegando ao cruzamento com a Avenida Henrique Schaumann.

Os sofás, armários, escrivani-nhas, camas e todos os tipos ima-gináveis de mobílias substituem as guitarras, violões, saxofones

e baterias. “O bom da Teodoro é que se encontra de tudo, dos mais baratos aos mais caros”, ex-plica a decoradora Cátia Arruda, uma cliente da loja Ilustre. “Aqui, acho peças tanto para casas dos Jardins quanto para Itaquera (ri-sos). O bom é que você pode pe-chinchar, já que há muita compe-tição entre as lojas, o que sempre satisfaz o cliente”. Cátia trabalha com decoração há doze anos e sempre percorreu os caminhos da Teodoro, “Ah! Arrumei a casa da minha irmã aqui mesmo. Es-colhi tudo para ela quando se casou. Acho que sempre tive um olho clínico para o bom gosto”.

Descendo mais alguns me-tros, a visão muda novamen-te. Agora as lojas com roupas populares tomam conta. Com cinquenta reais é possível fazer a festa em qualquer canto. Cal-ças jeans, blusinhas e sandálias alegram o público feminino, que para a cada vitrine para espiar as novidades da moda e os preços baixos.

A jornada chega ao fim no Largo da Batata. A estação de metrô Faria Lima é o último ponto do nosso trabalho. Um dos aspectos mais incômodos da nossa “viagem” foi o trânsi-to. A poluição sonora causada pelo tráfego constante de carros e ônibus é um tanto quanto per-turbadora, principalmente pela calçada apertada, que fica rente à faixa dos coletivos. Sem contar com alguns motoristas que pa-ram em lugares inapropriados para ir a alguma loja ou descar-regar mercadorias, causando confusões que tumultuam ainda mais o cenário já caótico.

“O bom da Teodoro é que se encontra de tudo, dos mais

baratos aos mais caros”

A rua Teodoro Sampaio ainda estava em formação na metade do século XX

Nos dias atuais, a antes pacata rua foi tomada por inúmeros veículos e lojas

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Dom Quixote é brasileiroPor Amanda Lemos, Geovana Mantovani e Natália Sena

“Às vezes eu sou meio Dom Quixote. Quan-

do Sancho Pança fala para seu mestre ‘meu senhor, aquilo é um moinho, não é um dragão’, o fidalgo responde ‘é que você tem que ter a sensibilidade para perceber’. Eu também não me conformo com o real”. Nascido em São Paulo, em 1948, João Medina Fernandes, conhecido apenas como Medina, é filho de emigrantes espanhóis. Ape-sar de nascer no Brás, cresceu e passou parte de sua vida na Pe-nha, ambos bairros de imigran-tes europeus, onde estudou em colégio público de qualidade. Seus pais eram semianalfabe-tos e trabalhavam como ope-rários. Com três graduações na Universidade de São Paulo, trabalha atualmente como pro-fessor de história no curso pré-vestibular do Anglo, em Osas-co. Além disso, é voluntário em

sua comunidade em Itaquera. Medina é um velinho pe-

queno, com um bigode branco-amarelado devido ao tanto que fuma. Ao longo da entrevista deve ter fumado, pelo menos, 10 cigarros. Era sala dos pro-fessores do cursinho e ele não se importava de fumar lá, pois é o que todos fazem. Primeiro pediu licença, se não nos inco-modava. Até nos ofereceu um cigarro.

O senhor de 66 anos gosta de recordar seus tempos de infân-cia, dizendo-se um “moleque de rua”. Nesse ambiente haviam diversas manifestações folcló-ricas, festas, futebol, e um espí-rito de comunidade. Ao mesmo tempo relembra a falta de água encanada e luz elétrica, o êxodo rural e a mudança da mão de obra (europeia para a nordesti-na) e diz que foi “uma infância difícil mas cheia de sonho”.

“Meus avós eram anarquistas, anarco

sindicalistas que tiveram uma história

bonita de greves, clubes de cultura”

Seus familiares eram anar-quistas e desde pequeno teve contato com diversos movi-mentos sociais de seu bairro. “O meu nome real é anarquista: João Germinaldo Medina. Esse Germinaldo é em homenagem ao Emile Zolá. Minha prima chamava Harmonia. Meus avós eram anarquistas, anarco sindi-calistas que tiveram uma histó-ria bonita de greves, clubes de cultura”. Foi ai que começou a desenvolver seu lado militante. “Para você tomar uma postura mais crítica frente as coisas e se indignar com a desigualdade”.

O ensino superior foi uma vi-tória para sua família. Viviam em condições precárias e uma graduação não constava nos planos da época. Para ele e seu irmão foi a superação de um obstáculo social ao ingressarem na USP, sendo que era desde então uma universidade elitis

PERFIL

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“Queria estudar para não ser só um

professor, mas também um agitador”

ta. “Eu fui fazer Ciências So-ciais, depois fiz História e mais tarde Pedagogia. Meu irmão fez Grego e chegou a dar aula na USP”.Quando adolescente, durante os anos 60, seu sonho era fazer a revolução. Diz que a influên-cia da comunidade europeia em que vivia, dotada de tendências anarquistas, o levou a fazer Ci-ências Sociais: “Queria estudar para não ser só um professor, mas também um agitador”.

Lembra que tinha uma atmos-fera otimista no país, que “era o tempo do populismo, do nacio-nalismo, era um país heroico, tínhamos uma cultura crítica: a bossa-nova, a música de pro-testo e o cinema novo. Havia um nível de politização cres-cente na América Latina da mi-nha juventude”. Relembra com carinho que, enquanto a moda era Roberto Carlos, sua paixão era o samba canção, principal-mente Nelson Gonçalves. Ao

mesmo tempo, “curtia os Beatles, fugia do nacionalismo tacanho da esquerda, de coisas como a Mar-cha Contra a Guitarra Elétrica”. A memória que desperta seu lado mais sentimental é a dos bailes que freqüentava: “eu adorava os bailinhos: dançava muito bolero, rock’n’roll, música caipira; era bastante eclético, nunca me limi-tei a nada”.

O Golpe Militar em 64 não foi uma época fácil para os militan-tes da época. “Foi uma surpresa para todos, ninguém esperava isso acontecer; tiveram muitos amigos meus que fugiram com medo do que podia acontecer”. Três anos mais tarde, quando entrou no en-sino superior, sua vida de militân-cia se intensificou; “Fui do movi-mento secundarista, depois entrei na USP e me envolvi com a UNE; participei também da organização clandestina revolucionária PCR. Fui professor concursado do Esta-do de Sociologia durante os anos 80 e entrei para o sindicato dos professores. Sempre dei aula em

escolas públicas, degeneradas, participando das grandes gre-ves. Uma época gostosa.” Parti-cipou da CUT, mas relembra que gostava de agitar os protestos: “eu era da segurança; não gosto de agressão, mas sempre me dei-xo levar pela emoção, fui muito provocador”. O evento que mais lhe marcou foi uma neutraliza-ção a saques que coordenou na época do fim da ditadura, quan-do ocorreu uma grave recessão e saques a lojas e supermercados se tornaram epidêmicos.

Sua militância durante o go-verno militar foi marcada por várias detenções pela polícia quando estudante universitário. Por participar de manifestações, chegou a ficar até dois dias pre-so, mas nunca chegou a ser pro-cessado. Sua atual mulher, pelo contrário, ficou três anos presa. “Quando tinha 17, na época que participei do movimento secun-darista, eu e meus companheiros organizamos uma manifestação no Largo da Concórdia, na parte brava da ditadura. Compramos 15 macacos, colocamos neles bandeiras dos Estados Unidos e soltamos lá. Acabou fomos pre-sos. No interrogatório neguei até o fim, eu era boca dura”, contou rindo.

Seu primeiro casamento foi com Maria Célia. Se conheceram quando ambos ainda não haviam

ingressado na faculdade, em um movimento político na igreja liderado por Padre Jesus, “um cara progressista, expulso de Cuba por causa da Revolução”. E continua: “Eu era católico, co-nheci ela nesse movimento, aos domingos íamos a missa. Nos apaixonamos muito, ela foi fazer medicina e depois de formados fomos juntos fazer trabalhos de campo no Vale da Ribeira, onde Lamarca esteve fazendo guerri-lha. Era uma área muito pobre; ela como médica prestava assis-tência às várias mulheres que abortavam de formas brutais, enquanto eu ia como professor e ainda dirigia um ônibus-hos-pital.”

Na década de 80, duran-te a fundação do PT, não deixou de participar. “Eu já tinha participado do movi-mento sindical dos profes-sores quando outros grupos sindicalistas e a CONCLAT

começaram a organizar as primeiras assembleias que formariam o partido”. Sem-pre foi o segundo quadro do PT, afirmando que sua natu-reza era agitar greves, fazer suas ações nas ruas e não numa organização. Acabou sendo vice-presidente do di-retório do Jabaquara, onde organizou muitas greves de professores, operários, etc.

Sempre reservado, Medina é um senhor que não consegue desligar sua carreira de profes-sor do seu dia-a-dia. Em cada fala, relaciona sua história com contextos políticos e econômi-cos. Gosta de se perder em seus pensamentos e tomar posição sobre tudo, fazendo questão de não esquecer quem foi no pas-sado. “Eu sempre fui um agita-dor e nunca deixarei de ser”. Por fim, para, fuma um pouco seu cigarro e conclui: “eu nunca dei-xarei de ser o Dom Quixote”.

Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes)

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744 horas de sexta-feira

Ouvi dizer que dezembro é a sexta-feira do ano. E isso é uma grande verdade. Todos nós vive-mos esperando os finais de semana, os finais de

ano ou alguma coisa qualquer que feche os ciclos. A angústia – a minha, a sua, a nossa – é que precisa-mos renovar o velho pelo novo, bater a porta e sair pela janela, jogar fora o que já não serve mais para enfim, soltar um respiro calmo. E se despedir de mais um ano é como afirmar para si mesmo que o que se passou em 2014, já não cabe mais na vida de 2015. E a vida de 2015 parece linda. Em um futuro próximo, que cabe em apenas um segundo entre 23:59h de 31 de dezembro à 00:00h do dia 1º de janeiro, todo mundo terá mais saúde, dinheiro, amigos, amor e o principal, mais uma chance para acreditar que tudo vai dar certo. E não seria bom se vivêssemos em uma eterna sensação de esperança? Aquela espe-rança que bate no meio do trabalho às 17h de qual-quer sexta-feira depois de uma semana aonde tudo deu errado. Aquela esperança de acordar e ver no celular que já é sexta e por isso, pelo menos por essas 24 horas, reclamações estão fora do ro-teiro. Aquela esperança de se permitir ter um dia maravilhoso e até mesmo sair da dieta, afinal, sexta é sexta. E por isso que dezembro é a sexta do ano: muita festa, comilança, família, amigos e confraternização estão no roteiro de qualquer dezembro clichê – e ser clichê nunca pareceu tão bom.

Giulianna Iodice

CRÔNICA

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