revista vírus #5

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VÍRUS #5 — JANEIRO/FEVEREIRO 2009 HUGO DIAS EPPUR SI MUOVE: TRABALHO E SINDICALISMO NO SÉCULO XXI MARIANA AIVECA EXPLORAÇÃO, SINDICALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS FERNANDO ROSAS 6 TESES SOBRE MEMÓRIA E HEGEMONIA, OU O RETORNO DA POLÍTICA LUIS FAZENDA PARTIDO, RAZÃO NECESSÁRIA MANUELA TAVARES, DEIDRÉ MATTHEE, MARIA JOSÉ MAGALHÃES, SALOMÉ COELHO FEMINISMO(S) E MARXISMO: UM CASAMENTO “MAL SUCEDIDO”? BRUNO MAIA MEDICINA E CAPITALISMO: ORIGENS COMUNS? JOSÉ SOEIRO “FUCK MAY 68. FIGHT NOW!” REFLEXÕES SOBRE A REVOLTA NA GRÉCIA CARLOS NELSON COUTINHO DEMOCRACIA: UM CONCEITO EM DISPUTA + MÚSICA CONTO

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Nesta edição: :: Hugo Dias - "Eppur si muove: Trabalho e sindicalismo no século XXI" :: Mariana Aiveca - "Exploração, Sindicalismo e Movimentos Sociais" :: Fernando Rosas - "Seis teses sobre memória e hegemonia, ou o retorno da política" :: Luís Fazenda - "Partido, razão necessária" :: Manuela Tavares, Deidré Matthee, Maria José Magalhães, Salomé Coelho - "Feminismo(s) e Marxismo: um casamento “mal sucedido”? Os novos desafios para uma corrente política de esquerda dos feminismos :: Bruno Maia - "Medicina e capitalismo: origens comuns?" :: José Soeiro - "'Fuck May 68. Fight Now!' Reflexões sobre a revolta na Grécia" :: Carlos Nelson Coutinho - "Democracia: um conceito em disputa" :: + Música e Conto.

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VÍRUS#5 — JANEIRO/FEVEREIRO 2009

HUGO DIAS EPPUR SI MUOVE: TRABALHO E SINDICALISMO NO SÉCULO XXI

MARIANA AIVECA EXPLORAÇÃO, SINDICALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS

FERNANDO ROSAS 6 TESES SOBRE MEMÓRIA E HEGEMONIA, OU O RETORNO DA POLÍTICA

LUIS FAZENDA PARTIDO, RAZÃO NECESSÁRIA

MANUELA TAVARES, DEIDRÉ MATTHEE, MARIA JOSÉ MAGALHÃES, SALOMÉ COELHO

FEMINISMO(S) E MARXISMO: UM CASAMENTO “MAL SUCEDIDO”?

BRUNO MAIA MEDICINA E CAPITALISMO: ORIGENS COMUNS?

JOSÉ SOEIRO “FUCK MAY 68. FIGHT NOW!” REFLEXÕES SOBRE A REVOLTA NA GRÉCIA

CARLOS NELSON COUTINHO DEMOCRACIA: UM CONCEITO EM DISPUTA

+ MÚSICA CONTO

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [2] EDITORIAL

MUITO ESPERARAM LEITORES E LEITORAS por este número. Circunstâncias, tempos e contratem-pos que ditam o movimento das nossas vidas… Em compensação, este quinto volume da Vírus é considera-velmente mais robusto, alimentando-se, em boa parte, de alguns dos contributos apresentados ao congresso internacional sobre marxismo promovido pela coope-rativa Cultra.

Creio não exagerar ao escrever que aqui encon-tramos um avançado “estado da arte” sobre o pensa-mento contemporâneo contra-hegemónico, baseado num marxismo plurifacetado, no oposto da crença e da doutrina e não excludente. Na verdade, apesar dos domínios de análise serem extremamente diversos (da medicina à forma do «partido»; dos discursos femi-nistas marxistas à revolta social e estudantil na Gré-cia; dos conflituais usos e conceitos de democracia às metamorfoses do movimento sindical…) e dos pontos

de vista revelaram, igualmente, entre si e dentro de si, uma assinalável pluralidade, é possível encontrar fios de ariadne que nos ajudam a reconstituir um quadro de inteligibilidade – sem esquecer, como Foucault nos alerta ao fazer uma leitura de Las Niñas de Velásquez – que importa encontrar linhas, cruzamentos, perspec-tivas, posições, hierarquias de visibilidade, jogos entre diversas camadas de sentido.

Neste quadro global, ressalta a importância dos processos históricos. Sem eles não perceberíamos, por exemplo, como nos demonstra o brasileiro Car-los Nelson Coutinho, que o conceito de democracia é plurissemântico e que, por detrás das interpretações e usos, existem visões da sociedade conflituais e em dis-puta. Se, inicialmente, vastas correntes do liberalismo reagiram contra a democracia, ela acaba por ser, em tempos de neo-liberalismo, reduzida a uma versão ide-ológica minimalista e procedimental, sem esquecermos

os investimentos e contra-investimentos que, desde o século XIX, permitiram alargamentos e retrocessos nos direitos de cidadania.

De facto, não existe terreno menos neutro que o da interpretação da história. Ao falar da necessidade de inscrição da memória nos combates presentes, Fernan-do Rosas realça, precisamente, o lado selectivo e dialéc-tico dos apagamentos e ressurgimentos da memória, locus de luta sobre as visões do mundo. Desconfiemos, pois, das ideologias que a si mesmo se negam, queren-do passar sob a manta da inelutável neutralidade ou da asséptica objectividade ou, ainda, da razoabilidade e sensatez de um caseiro senso comum. Trata-se, na verdade, de discursos que constroem os seus próprios espaços de enunciação e performance, criando e nome-ando as coisas e a realidade.

A medicina, por exemplo, mostra-o Bruno Maia, a coberto da sua panóplia tecnocientífica é indissociável

MOVIMENTO PERPÉTUOEDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [3] EDITORIAL

de um certo modo de relação com o corpo, moldado pelo que, em determinado segmento espácio-temporal, se considera legítimo. O corpo produtivo, particular-mente, carece de cuidados e de recuperações que man-tenham a sua utilidade, ao mesmo tempo que emerge como objecto de controlo e de disciplina da biopolítica (Foucault, uma vez mais).

Corpos sem sujeito, eis o que as teorias desconstru-cionistas de pendor pós-moderno e pós-estruturalista postulam, advogando contra a existência de colectivos feministas, numa exaltação ad infinitum do fragmentá-rio, do nómada, do subjectivo. Ora, sem deixarem de fazer pontes com estas correntes, nomeadamente pelo inestimável contributo de superarem uma essência pró-pria do eterno feminino, e por inspirarem, igualmente, as críticas às noções abstractas (e masculinas) de cidadania, esfera pública e sujeito, um conjunto de autoras (Ma-nuela Tavares, Deidre Matthee, Maria José Magalhães e Salomé Coelho) clamam por uma reabilitação de fe-minismos socialistas, capazes de cruzarem as esferas da produção, reprodução, sexualidade e socialização, como, aliás, Engels, mais do que Marx, havia insinuado, supe-rando a centralidade da dicotomia capital /trabalho e mostrando o entrelaçamento das formas de dominação, as quais requerem, em nome dos sofrimentos reais das mulheres reais, uma crítica quer às teorias da morte do colectivo e do próprio sujeito, quer às apropriações ne-oliberais do mainstream feminista, quer, ainda, ao apelo neoconservador do regresso ao lar, à maternidade e à natureza. Sujeitos feministas multifacetados e revela-dores de experiências múltiplas, eis a proposta para novas lutas e solidariedades que negam, em simultâneo, o colete-de-forças da homogeneização.

Sem pronto-a-vestir, os partidos socialistas esco-lherão formas à medida: dos tempos, das lutas, das circunstâncias, recuperando o carácter democrático e popular das assembleias, reconhecendo o direito à tendência e à liberdade de expressão, longe do es-partilho do «comunista-modelo» ou do ideal-tipo do «homem novo», próprios, como afirma Luís Fazenda, da disciplina militar imposta pela III Internacional e que, no entanto, ainda em vida, Lenine, em autocrítica, reconheceu como errada. Sem receitas organizativas ou arquétipos universais, a forma é sempre conteúdo. Ora, se falamos do socialismo e dos partidos socialistas como processos históricos mutáveis e abertos, de igual modo a sua organização remeterá mais para a geome-tria variável do que para a tirania do desenho único.

O mesmo se poderá dizer do movimento sindical: cada vez mais entrelaçados, em vastas áreas do globo, com movimentos sociais, passam, eles próprios, a ser encarados como movimentos sociais, em tudo opostos, como realça Mariana Aiveca, à concepção leninista de correia de transmissão, embora mantendo, de acordo com a autora, forte ligação ao proletariado, aqui enten-dido de forma ampla e não apenas como trabalhadores directamente produtivos. Hugo Dias, analisando tais metamorfoses, mostra como a agilidade é necessária para vencer a “crise do sindicalismo”, já que, a novas classes trabalhadoras, profundamente marcadas por ligações precárias, desqualificadas e intermitentes ao mercado de trabalho, correspondem novas formas de protesto. Em vez da vanguarda estruturada mas pesa-da, as tácticas e movimentos de alianças compósitas, próprias de um sindicalismo que aprendeu a olhar para o seu exterior.

Nos dias que correm, a revolta na Grécia, descrita e vivida in loco por José Soeiro desvenda a desconfiança da esquerda tradicional e institucional, a par da hos-tilidade dos sindicatos do sistema para com a geração 700 euros, a primeira, desde os «trinta gloriosos», a experimentar na pele a regressão nos modos de vida. As condições e recursos materiais de existência são, na crua verdade, mais parcos do que os dos seus pais. Ora, nessa encruzilhada e imaginando os futuros possíveis, qualquer rastilho, como o bárbaro assassinato pela po-lícia do adolescente Alexandros Grigoropoulos, leva os jovens às ruas. Curiosamente, foi a nova «cultura de apartamento» (tecnologias de informação interac-tivas, chats, sms, blogs…) que disseminou a palavra e a comunicação, levando à redescoberta das assembleias e dos espaços públicos urbanos como locais de enfren-tamento. Nas assembleias discutia-se e pensava-se, nas ruas lutava-se no momento em que todo o corpo fala e perturba o instituído. De uma assentada, amiúde na espiral da emoção, contestava-se a violência policial, o desemprego e a precariedade, as políticas de privatiza-ção dos serviços públicos.

***

Eis, pois, como importa analisar as tendências e regularidades mais fortes e cristalizadas, a par das emergências e metamorfoses. Fora dos sistemas fecha-dos, cada vez mais será possível atribuir sentidos ao socialismo. O tal que, enquanto movimento perpétuo, requer, na historicidade, novos conceitos e palavras. Sempre no plural, como as vidas.

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EPPUR SI MUOVE TRABALHO E SINDICALISMO NO SÉCULO XXI

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HUGO DIAS

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JÜRGEN HABERMAS DIZ-NOS QUE O CONCEITO de crise foi algo apropriado do léxico da medicina. Este, nesse contexto, pretende descrever a fase de um pro-cesso de enfermidade, em que não existe a certeza se o organismo possui forças ou não para recuperar a sua saúde. A este associa-se a ideia de um poder objectivo (externo) que provoca uma alteração do estado normal de saúde do organismo em causa; mas é também insepa-rável da percepção interna de quem padece desta. Uma crise arrebata ao sujeito uma parte da soberania que este normalmente possui. Acrescenta ainda que, quan-do concebemos algo como estando em crise, lhe atri-buímos tacitamente um sentido normativo – a solução desta transporta em si a libertação do sujeito afectado. (Habermas, 1973: 15)

O vocábulo da crise tem tido um uso recorrente nas mais diversas áreas dos sistemas societais. Esse epíte-to tem sido aplicado igualmente ao sindicalismo mercê das convulsões que vive(u), desde os anos 70, decorren-tes da “nova grande transformação” (Munck, 2002:1). Utilizando ainda a metáfora médica, esta “nova grande transformação” constituiria o elemento externo causa-dor da crise de que padece o nosso organismo.

O Estado normal de saúde é o período do capitalis-mo organizado (Lash, Urry, 1987; Offe, 1989) em que se assiste à constituição de sistemas de relações laborais tal como os conhecemos: reconhecimento da liberdade de representação dos trabalhadores, negociação tripar-tida, institucionalização dos conflitos de classe. Os tra-

balhadores nos países ocidentais saíram reforçados no pós-guerra. Os níveis de sindicalização subiram quanti-tativamente, bem como um reforço de confiança geral na capacidade da classe operária organizada de conduzir os destinos da sociedade em nome de um bem comum. Um novo compromisso entre Capital e Trabalho teria que substituir o laissez-faire do dogma económico: em troca de aumento dos salários reais associados à produtivida-de e do Estado-Providência, os sindicatos comprome-tiam-se com a paz social, e com um modo de regulação capaz de acomodar um crescimento longo e sustentado das economias capitalistas ocidentais.

O pano de fundo desta discussão é então a acentu-ação dos processos de globalização económica com a financeirização da economia, hipermobilidade do capi-tal, erosão da esfera de regulação nacional, quebra do compromisso político capital-trabalho e dos pilares da relação salarial Fordista e concomitante alteração no ambiente regulatório, o que gerou uma vulnerabiliza-ção generalizada dos trabalhadores, bem como das suas expressões organizadas – os sindicatos.

Uma das contradições existentes do período actual decorre exactamente do facto de a lógica de produção e de acumulação se ter transnacionalizado, enquanto que a lógica da regulação social se manteve enraizada na territorialidade do Estado-Nação. O crescimento das interacções transnacionais causou processos de erosão dos Estados-Nação. Por um lado, o Consenso do Esta-do Fraco (Santos, 2001) conduziu, na escala nacional, à

transferência de competências de regulação social para actores não estatais. Na escala global, a predominância da liberal governance. (Duffield, 2001) resulta que não se tenham desenvolvido mecanismos globais de regulação dos impactos da Globalização Económica. Face às trans-formações verificadas o sindicalismo manteve-se forte-mente ancorado à esfera de regulação do Estado-Nação e a uma praxis organizacional nacional.

A enumeração dos sintomas da crise não constitui igualmente novidade: perda do número de membros, di-minuição da densidade sindical, da actividade grevista e de outras expressões directas de militância sindical. Por outro lado, a desagregação e fragmentação das identida-des dos trabalhadores mercê de processos de crescente diferenciação, segmentação e flexibilização dos merca-dos de trabalho, da descentralização da produção ou da precarização da relação salarial; bem como a crescente ausência de lealdade e solidariedade dos trabalhadores aos sindicatos, como reflexo da emergência do indivi-dualismo contemporâneo que orienta os trabalhadores para interesses mais amplos e diversificados; tem con-duzido a uma crise de representatividade social – que se traduz na dificuldade que os sindicatos sentem em congregar trabalhadores para as suas acções de mobili-zação. (Costa, 2005)

Um outro aspecto importante prende-se igualmen-te com a centralidade política da classe trabalhadora, algo inquestionável durante o período anterior. Na sociedade pós-industrial de Alain Touraine (1969) ou

EPPUR SI MUOVE1: TRABALHO E SINDICALISMO NO SÉCULO XXI HUGO DIAS | SOCIÓLOGO

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informacional de Manuel Castells (1999) a classe tra-balhadora deixa de ter um papel importante enquanto sujeito-emancipador. A capacidade de mudança adviria sobretudo de movimentos identitários, não baseados em classe, decorrentes de novas clivagens surgidas nas sociedades capitalistas avançadas. Urge então colocar a interrogação. Existe uma saída para a crise do movi-mento sindical e de trabalhadores à escala mundial, ou está vaticinado à redução numérica e perda de relevân-cia política?

DECLÍNIO (IN)EVITÁVEL?Um outro ponto de partida para iniciar a resposta a esta questão, e que assumimos neste texto, é o de que se deve enquadrar esta análise numa moldura analítica histori-camente mais longa e geograficamente mais ampla do que normalmente se faz.

Segundo Beverly Silver (2005) foram adoptadas um conjunto de quatro soluções como parte integrante das estratégias capitalistas para a manutenção da lucrati-vidade e controlo sobre os trabalhadores. A primeira, chamada de solução espacial, reporta-se à deslocação sucessiva dos espaços produtivos para localizações ge-ográficas livres de organização sindical. A segunda, ou solução tecnológica/organizacional, corresponde à in-trodução de um conjunto de inovações a este nível que reduzisse a autonomia e controle da produção por parte dos trabalhadores. No entanto, em ambos os casos, estas mudanças lograram gerar novas classes trabalhadoras e novas formas de organização e protesto. Por um lado, a expansão do capital leva sempre consigo o conflito para os novos espaços produtivos; por outro, o processo de criação e decomposição da classe trabalhadora, transfere

a coluna vertebral do sindicalismo dos trabalhadores de ofício do séc XIX, para o operário-massa semi-qualifi-cado do séc XX.

Cumulativamente, verifica-se o que a autora designa como solução de produto, que consiste na transferência do capital para linhas de produtos e indústrias mais ino-vadoras como forma de lidar com a diminuição da taxa de lucro. Seguindo uma linha cronológica, a indústria do século XIX teria sido a têxtil enquanto que o sector típico do século XX foi decisivamente o automóvel.

Finalmente, a solução financeira. Com esta preten-de-se ilustrar a recorrência histórica da rápida transfe-rência do capital da actividade produtiva para o campo financeiro em momentos de crise de lucratividade, o que procura acentuar que a financeirização da econo-mia ocorrida a partir dos anos 70 não constitui uma singularidade histórica.

Em síntese, esta percepção da evolução da geografia histórica do capitalismo (Harvey, 1992: 307), com a sua dinâmica de criação e destruição de espaços produtivos e classes trabalhadoras, enfatiza a noção de que o traba-lho e os movimentos operários são feitos e refeitos em relação estrita com as dinâmicas espacio-temporais do capitalismo. Tal conduziu igualmente a uma oscilação periódica entre fases de (des)mercadorização do traba-lho.

Louçã (2008: 128-129), noutro registo, segue a tese de Hobsbawm da existência de períodos de maior con-centração da conflitualidade social. Partindo de uma pe-riodização histórica da evolução do capitalismo com base nos ciclos longos de Kondratiev, as fases de expansão deste caracterizam-se por uma maior força sindical que permite tendências de desmercadorização do trabalho.

Pelo contrário, em momentos de transição entre ciclos, o ajustamento ao novo paradigma – que, na terminologia neo-schumpeteriana se designa como - tecnoeconómico, gera um enfraquecimento do factor trabalho reforçando dinâmicas de remercadorização. Em ambos os momen-tos podem-se identificar lutas operárias, sendo no pri-meiro caso predominantemente ofensivas, enquanto que no segundo sobretudo defensivas.

Voltando a Silver, a resistência operária, tal como o Capital, oscila então num pêndulo polanyiano e marxia-no. A autora concretiza: “Agitações do tipo polanyiano são contra-ataques à expansão do mercado global auto-regulado, especialmente da parte das classes trabalhadoras que estão sendo desfeitas e dos trabalhadores que se beneficiavam de pactos sociais que são abandonados pelos de cima. Agitações do tipo marxiano significam lutas das novas classes trabalha-doras implementadas e fortalecidas sucessivamente como con-sequência não-intencional do desenvolvimento do capitalismo histórico, ainda que simultaneamente ao desaparecimento das antigas classes trabalhadoras.” (Silver, 2005: 35)

Se existe uma recorrência histórica, convém no entanto não cair em quaisquer tipo de determinismos. Mas parece evidente que uma primeira tarefa analítica consiste na desconstrução do acantonamento do factor Trabalho ao rótulo de localizado, estático, conservador e defensivo na sua acção, por oposição ao Capital, carac-terizado como global, dinâmico, criativo e ofensivo. A resposta por parte da classe trabalhadora e do sindica-lismo dependerá da sua própria acção e agência.

Se a dinâmica de desenvolvimento do capitalismo é desigual, a crise e renovação da acção sindical tam-bém o é. Decorrendo do que foi referido anteriormen-te, os novos territórios produtivos localizados fora dos

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OS DEBATES EM TORNO DA RENOVAÇÃO DO SINDICALISMO, MARCADOS POR UMA PLURALIDADE DE VISÕES E ORIENTAÇÕES

TEÓRICAS, SUGEREM UMA NOVA ESTRATÉGIA DE ACÇÃO QUE EXPANDA O SINDICALISMO PARA FORA DO SEU CAMPO

TRADICIONAL DE ACTUAÇÃO, I.E, RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E ESCALA NACIONAL.

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países centrais geraram movimentos sindicais novos e combativos. É plausível assumir que novas deslocações da produção terão como consequência a insurgência trabalhista nesses novos espaços. O grosso da crise é então característica dos países capitalistas avançados que assistiram as vagas sucessivas de soluções espaciais, tecnológicas, e de produto. Uma consequência notória foi a desestruturação da espinha dorsal do sindicalismo, sem que este se tenha conseguido expandir de forma bem sucedida para novos sectores económicos, localizados predominantemente em actividades da nova economia dos serviços.

A dimensão internacionalista esbarra ainda com uma acção sindical primordialmente direccionada para a es-fera nacional. O internacionalismo operário, concebido como comunidade de interesses organizado enquanto classe em torno dos sindicatos, superando as rivalidades do sistema inter-estatal, constituiu uma realidade episó-dica. De facto a vinculação do sindicalismo aos espaços nacionais decorreu da organização da esfera da regula-ção social no quadro do Estado-Nação, sucumbindo em alguns momentos importantes aos interesses das suas burguesias nacionais.

A globalização da produção trouxe visões optimistas de uma nova tendência para a criação de uma classe tra-balhadora mundial única e homogénea, experimentando as mesmas condições de vida e de trabalho. Subsistem no entanto diferenças importantes decorrentes da divisão Norte-Sul, inserção diferenciada dos países na economia mundial, regimes de regulação diversos, entre outros factores. “Tendo presente que a luta por melhores condições salariais num determinado pais pode significar a degradação da relação salarial ou mesmo o aumento do desemprego nou-

tro pais, é legitimo pensar que os discursos da solidariedade operária internacional podem ser geradores de contrariedades e de conflitos entre diferentes países e sectores do movimento operário internacional “ (Santos, Costa, 2004: 20-21)

Assim a promessa de um novo internacionalismo, num contexto de maior integração económica esbarra com alguns obstáculos. Boaventura de Sousa Santos e Hermes Costa identificam alguns destes. Para além dos resultantes das transformações estruturais referidas anteriormente, identificam outros factores inibidores da cooperação fora dos espaços estritamente nacionais, que se prendem com a (ainda) priorização da escala na-cional, limitações financeiras, escassa teorização sobre o tema resultante igualmente de poucas experiências concretas ao nível internacional, a in/existência de uma identidade sindical transnacional entre trabalhadores, a forte oposição/resistência patronal. (Santos, Costa, 2004: 21)

Os debates em torno da renovação do sindicalismo, marcados por uma pluralidade de visões e orientações teóricas, sugerem uma nova estratégia de acção que ex-panda o sindicalismo para fora do seu campo tradicional de actuação, i.e, relações de produção e escala nacional.

Trata-se afinal de recuperar alguns princípios que es-tiveram na génese do próprio sindicalismo: a luta pela inclusão dos trabalhadores como cidadãos de pleno di-reito e a solidariedade internacionalista. Mas existirá um novo tipo de sindicalismo para novos tempos?

UM NOVO TIPO DE SINDICALISMO?Uma das tipologias do sindicalismo mais utilizadas é a proposta clássica de Alain Touraine (1970), que dis-tingue entre sindicalismo de oposição, sindicalismo de controlo e sindicalismo de integração (associado ao po-der). Entre nós, a diferenciação entre sindicalismo de contestação e sindicalismo de negociação (Lima, 1991; Santos, 1995; Rosa 1998) segue no mesmo sentido, num momento em que a noção de sindicalismo de integração perdia relevância empírica com o desaparecimento dos regimes do leste europeu. Mais recentemente, Richard Hyman (2001), referindo-se ao sindicalismo europeu, enfatiza a sua pluralidade, assumindo uma multiplicida-de de formas organizacionais e orientações ideológicas. Esta variedade empírica procurou ser traduzida em ti-pologias ou modelos de análise que tivessem capacidade de a descrever. Assim o autor, cruzando as dimensões

A GLOBALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO TROUXE VISÕES OPTIMISTAS DE UMA

NOVA TENDÊNCIA PARA A CRIAÇÃO DE UMA CLASSE TRABALHADORA

MUNDIAL, ÚNICA E HOMOGÉNEA, EXPERIMENTANDO AS MESMAS

CONDIÇÕES DE VIDA E DE TRABALHO. SUBSISTEM NO ENTANTO

DIFERENÇAS IMPORTANTES DECORRENTES DA DIVISÃO NORTE-SUL.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [9] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

ideológica e de prática societária, caracteriza o sindi-calismo como um produto do triângulo mercado/so-ciedade/classe. Uma outra distinção útil para a nossa discussão é a que diferencia entre sindicalismo econó-mico e sindicalismo político. (Scipes, 1992a, Lambert e Webster, 1988).

Mais recentemente, a noção de Sindicalismo de Mo-vimento Social2 foi desenvolvida por académicos pro-gressistas num esforço de compreender o aparecimento de movimentos sindicais militantes, em diferentes regi-ões da economia capitalista mundial, com estratégias de acção semelhantes. Para ser mais concreto, estes movi-mentos emergem nos chamados países semi-periféricos, como a África do Sul e Brasil nos anos 70, Filipinas e Coreia do Sul nos anos 80. (Munck 2002; Lambert e Webster, 1988; Moody, 1997; Scipes, 1992a; Seidman, 1994, Waterman, 1993).

Embora tivesse sido utilizado inicialmente por Rob Lambert e Eddie Webster referindo-se ao contexto sul-africano, é pacifico afirmar que este foi mais coeren-temente enunciado por Peter Waterman, já em finais dos anos 80. Tal como muitos outros debates teóricos, a utilização do conceito revestiu-se de diversas interpre-tações bem como de formulações diferenciadas, embora não contraditórias.

Estes países de chamada industrialização tardia eram ainda conduzidos por governos ou regimes au-toritários. Assim, a emergência de uma forte organiza-ção do local de trabalho, produto directo da sua recente industrialização, evoluiu rapidamente de reivindicações centradas no chão-de-fábrica para outras envolvendo a sua comunidade de inserção. A criação de alianças for-tes entre o movimento sindical e grupos comunitários

rapidamente escalou para um confronto directo com o Estado numa tentativa de democratização dos diversos regimes políticos.

A obra de Kim Moody “Workers in a Lean World” popularizou de alguma forma o SMU. Dado o sucesso desse tipo de acção sindical em diversas partes do globo verificou-se uma tentativa de transplantar tal modus operandi para os países do Norte. Assim algumas obras e autores procuram identificar características deste perfil em diferentes sindicatos como os Canadian Auto Workers Union, no fim dos anos 90, ou na Campanha Justice for Janitors nos Estados Unidos. (Moody, 1997)

Waterman distingue claramente, no seio deste deba-te, entre dois tipos de abordagens. A primeira, divulgada por Lambert e Webster e popularizada por Moody, que define como se centrando no eixo classe/popular e a sua, que enquadra no referencial de classe/novos mo-vimentos sociais.

Retrospectivamente, a descrição das experiências do Brasil, Africa do Sul, Filipinas, entre outras enfatizava a capacidade da classe trabalhadora (fordista, mas também recente naqueles países) ter logrado se associar a outros sectores da sociedade, e, com essa aliança permanente, abordando temáticas internas e externas à fabrica, pro-dução e reprodução, economia e política, ter afrontado o despotismo patronal, intimamente relacionado com os regimes políticos estatais.

A crítica dirigida a Lambert e Webster, por Scipes por exemplo, é que a sua proposta assumia ainda uma concepção clássica do que é a classe trabalhadora. Deste modo, sem uma reconceptualização desta, uma política de alianças com a comunidade seria apenas a soma de dois sujeitos e não a criação de um nível superior de

entendimento e de acção. (Scipes, 1992a: 14) O autor critica ainda o facto de esta visão ignorar a pluralidade identitária da classe trabalhadora, limitando assim as suas lutas ao local de trabalho, distribuição e consumo não logrando (a classe trabalhadora) questionar a esfera produtiva da sociedade como um todo.

Waterman subscreveria esta crítica, mas leva-a mais longe. A sua proposta visava ser, de alguma forma, uma elaboração teórica com base nas novas dinâmicas de luta social e de internacionalismo operário que emergiram nas décadas de 80 e 90. E como tal partia, à semelhan-ça de outros autores, das experiências do Brasil, Africa do Sul, Filipinas, entre outras. No entanto, mais do que identificar determinados sindicatos como modelos de SMU, o seu propósito era mais direccionado para a rea-lização de uma critica do sindicalismo realmente existente. Visava assim a promoção da discussão teórica e não o uso, que se generalizou, mais descritivo e positivo, senão mesmo celebratório deste conceito. (Waterman, 2004: 222)

Tal situação resultou numa dupla erosão do poten-cial crítico do conceito de sindicalismo de movimento social. Em termos empíricos, as organizações tomadas como referências modelo (como a COSATU3 na África do Sul, CUT4 no Brasil, KMU5 nas Filipinas) perderam grande parte das suas propriedades iniciais de SMU, não resistindo ao impacto da reestruturação neoliberal das relações laborais. A associação do conceito a tem-pos/lugares/casos concretos teria o efeito negativo de o condenar a uma inoperância enquanto instrumento de análise e de função critica.

Em termos teóricos, Waterman considera que o principal problema de muitos desses autores é o de

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [10] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

O SINDICALISMO MOVE-SE, POR VEZES NÃO TÃO RÁPIDO QUANTO O NECESSÁRIO, MAS MOVE-SE. O SINDICALISMO DE

MOVIMENTO SOCIAL, NÃO SENDO UM MODELO ACABADO QUE DIRECCIONE O SENTIDO DESSE MOVIMENTO, PODE CONSTITUIR

UMA REFERÊNCIA IMPORTANTE DE ANÁLISE E REFLEXÃO QUE RESTAURE A SOBERANIA PERDIDA RESULTANTE DA SUA CRISE

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [11] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

existir uma ainda evidente identificação com a chama-da classe trabalhadora (fordista) industrial/nacional. Este enfoque conduziria a um demasiado centramento na concepção clássica de vanguarda dos trabalhadores industriais fordistas, que conseguiam, por sua iniciativa federar o descontentamento social em alianças sindi-cais/populares. O entendimento do autor é outro. A sua formulação baseia-se fundamentalmente numa síntese da teoria socialista sobre os sindicatos com teorizações do campo dos novos movimentos sociais. (Waterman, 2004: 220-221)

Daqui decorrem dois aspectos da teoria de Water-man enfatizados por Scipes (1992b). Em primeiro lugar, a ideia de que concebe o SMU não só como um modelo diferente de sindicalismo, mas que resulta também de um diferente entendimento da classe trabalhadora e das suas formas de organização na luta pela transformação da sociedade. Segundo este prisma as lutas de trabalha-dores constituem uma entre outras lutas políticas legí-timas. Tal permitiria, por um lado, criar condições para a realização de alianças igualitárias entre todos aqueles que lutam pela mudança de relações desiguais de poder, e por outro ao não confinamento das lutas de trabalha-dores ao local de trabalho e nem à imagem heróica do trabalhador industrial do sector formal da economia.

Em segundo lugar, a necessidade de superar a con-cepção leninista sobre o sindicalismo enquanto limitado à esfera da reivindicação económica, e que atribui ao partido de vanguarda a esfera da luta política e de con-dução dos sindicatos no sentido de uma transformação societal mais ampla. Uma critica ao leninismo permitiria romper com a distinção binária entre o campo político e económico, bem como com a tutela hierárquica entre

partido e sindicato, fazendo este último recuperar a sua autonomia, democracia e uma vocação de intervenção que transcende essas dicotomias.

Assim, de entre as concepções surgidas, a noção de sindicalismo de movimento social parece lidar com as transformações ocorridas e com os desafios que se colocam ao sindicalismo. (Waterman, 1993; Moody, 1997; Munck, 2002) O alargamento do campo de ac-ção significa, por um lado, conceber a prática política de uma forma transescalar (dimensão “vertical”), con-siderando-os como espaços que não são mutuamente exclusivos, nem hierarquizáveis (Munck, 2002:160); e por outro lado, ao nível da agenda política (dimen-são “horizontal”), construindo campanhas dirigidas a sectores mais fragilizados da população trabalhadora, maior abertura a outras temáticas e aliança com novos sujeitos políticos e movimentos sociais. (Moody, 1997; Wever, 1998)

Duas notas finais. A ênfase dada na articulação com os Novos Movimentos Sociais (NMS) prende-se mais com o enriquecimento da teorização da renovação sin-dical e da abertura do seu campo de possibilidades, do que com um imperativo concreto de aliança em todos os contextos com movimentos sociais no terreno. Existem situações de facto, em que, face à debilidade dos NMS´s, a única força organizada presente são os sindicatos. Uma situação como essa não exclui no entanto a possi-bilidade de uma renovação da acção sindical orientada pelo SMU. Por fim, autores como Waterman procuram não confinar a sua teoria ao espaço industrial/nacional, atribuindo importância fulcral à dimensão transnacio-nal, para que o novo internacionalismo não seja uma soma entre SMU´s nacionais, nem fique preso a um

lugar ou um período em particular. (Waterman, 2004: 221-223)

O sindicalismo move-se, por vezes não tão rápido quanto o necessário, mas move-se. O sindicalismo de movimento social, não sendo um modelo acabado que direccione o sentido desse movimento, pode constituir uma referência importante de análise e reflexão que res-taure a soberania perdida resultante da sua crise. Subs-crevemos Hermes Costa quando afirma que “mais do que remeter para uma prática ou conjunto de práticas consolida-das, esta concepção como que sugere uma necessidade ampla de repensar a actividade sindical em geral. Nesse sentido, poderá mesmo ser vista como uma espécie de guia orientador para a renovação do sindicalismo, embora não colida com outras tipologias. Em todo o caso, distintamente das tipolo-gias anteriores, o sindicalismo de movimento social não ex-perimenta apenas a relação do sindicalismo consigo mesmo, mas sim com o “exterior” do próprio sindicalismo.” (Costa, 2005:63-64)

NOTAS1 - E, no entanto, move-se.

2 - Manteremos o acrónimo SMU resultante da desig-nação em inglês – Social Movement Unionism.

3 - Confederation of South African Trade Unions – Congresso de Sindicatos Sul-Africanos

4 - Central Única dos Trabalhadores

5 - Kilusang Mayo Uno – Movimento Primeiro de Maio.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [12] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [13] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

EXPLORAÇÃO, SINDICALISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS

DO

SSIE

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MARIANA AIVECA

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [14] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

EXPLORAÇÃO, SINDICALISMO E MOVIMENTOS SOCIAISMARIANA AIVECA | DEPUTADA DO BLOCO DE ESQUERDA

PARA O DESENVOLVIMENTO DA LUTA OR-ganizada dos trabalhadores é preciso enfrentar dois agudos problemas políticos: a consciência da condi-ção de classe e o avanço autónomo dos movimentos.Passa-se uma breve análise por cada uma delas.

A PRECARIEDADE E A ALIENAÇÃO NOS EXTREMOS DO LEQUE DE EXPLORAÇÃOO António foi um rapaz esforçado, ele compreendia o esforço dos pais para que estudasse naquela escola a 100 km de casa. Com os salários de 700 euros dos pais não se podia alargar muito, por isso, fazia quatro horas no call center da TMN. Acabado o curso lá se livrou ele da-quele trabalho a meio tempo. Agora, o António trabalha a tempo inteiro e já só está a 50 km; ganha 500 euros, trabalha no call center da Vodafone.

Pode parecer um estereótipo mas exemplos como este são na verdade milhares, muitos, muitos, milhares dos trabalhadores temporários aos contratados. Eles são apenas uma pequena parte de uma imensa mudança por que passou a classe trabalhadora. Vastas camadas de tra-balhadores, antes em emprego estável, foram enviadas para a precarização geral. Isto dá-nos o mote: Precários de todo o mundo, uni-vos! Parafraseando Marx, claro!

Mas não é só a precariedade que agudiza a explo-ração.

Olhemos as modernas empresas, como a Autoeuro-pa. Nela podemos observar as novas formas na explo-

ração do trabalho. Em primeiro lugar o trabalho é mais alienado, porque envolve o trabalhador na empresa, o ilude com a colaboração, com a adesão à camisola da empresa, com a sua ilusória parte nas decisões da em-presa. É por isso que, em empresas deste tipo, os traba-lhadores passam tempo em casa a pensar como resolver os problemas da equipa de trabalho de que fazem parte. Quando o capitalista conquista a mente do trabalhador, conquista o seu capital mais precioso.

É o protótipo do toyotismo, da empresa global, que subcontrata em qualquer parte do mundo, exportando trabalho e importando desemprego, reconfigurando a divisão internacional de trabalho. Coincidente com as necessidades subcontrata produção a outras empresas onde se ganha muito menos, onde se é muito mais pre-cário.

Vivemos o tempo do trabalho global, da precarieda-de global, do “exército de reserva” global, dos imigrantes que assaltam fronteiras na fuga às consequências do de-senvolvimento desigual do capitalismo.

Vivemos o tempo de um trabalho cada vez mais complexo, com cada vez maior incorporação de conhe-cimento (ou seja de trabalho acumulado), cada vez mais multifacetado, onde o trabalho directo ou indirecto para a feitura e a comercialização do produto se alargou, em muito rompendo as fronteiras clássicas da “classe ope-rária”.

A proletarização da generalidade da classe trabalha-dora é um processo muito avançado e essa generaliza-

ção ampliou-se na correspondência das novas formas da criação de valor, mas sempre aumentando a alienação dos trabalhadores e mesmo a desvalorização do trabalho social.

AS ILUSÓRIAS CLASSES MÉDIAS ESCONDEM PROLETARIADOHoje o proletário não é mais o sinónimo só do trabalha-dor manual, do metalúrgico ou só do operário do calça-do. Hoje o proletariado é tendencialmente precário. Ele está nos empregados que recebem misérias a trabalhar nos grandes escritórios, ele está nos milhares de jovens que saíram das universidades, que pela primeira vez na história têm mais escolaridade do que os pais mas são mais precários e ganham menos do que eles, ele está nas centenas de milhares de pessoas que trabalham para em-presas de empreiteiras e subcontratação, ele está nos mi-lhões de imigrantes que circulam no mundo, ele está nas caixas dos hipermercados, ele está nos inúmeros servi-ços que completam a produção e asseguram a circulação de bens e serviços, ele está na saúde e na educação que sustenta melhores condições para a reprodução da força de trabalho, ele está – cada vez mais – nos trabalhadores da função pública que prestem serviços sociais.

Tendo aumentado a dimensão, a instabilidade de vida, e importância do proletariado na produção de mais-valia e no funcionamento da sociedade, tendo aumentado a acumulação de propriedade, de meios de produção e concentração de poder à escala planetária,

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [15] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

aumentou significativamente a contradição entre o tra-balho e o capital, assim como a centralidade do trabalho daí resultante.

E se, por todo o planeta, o imperialismo reduziu o centro do poder a um conselho de administração de po-tências e monopólios, também globalizou a exploração, diluiu as nações e objectivamente internacionalizou os laços dos explorados. Isto parece evidente. Será que os trabalhadores o reconhecem dessa forma?

A CONDIÇÃO EXIGE CONSCIÊNCIASerá que a maioria dos trabalhadores tem consciência da sua condição de trabalhador ou de precário? É que uma coisa é a condição de precário e/ou proletário, outra coi-sa é a consciência de o ser.

A consciência de si é hoje uma imensa batalha a ga-nhar. A consciência de si, enquanto ser trabalhador, en-quanto ser produtor de mais-valia, e como tal, enquanto ser com identidade própria, enquanto ser com “uma nova dimensão” (…) para que, quando lhe seja perguntado, o operário que sempre dizia sim passe agora a dizer não.

A chantagem da ausência dos direitos é a chantagem da repressão social. Essa chantagem, esse medo, dificul-ta ainda mais aos trabalhadores a compreensão de que podem ser um sujeito político. Mas esse heterogéneo sujeito, sendo plural, pode ter acção própria, programa próprio, alternativa própria ao regime capitalista. Pode ter consciência de classe de si, para si.

E aí, podemos dizer que:“Uma esperança sincera / cresceu no seu coração / e dentro

da tarde mansa / agigantou-se a razão / de um homem pobre e esquecido / razão porém que fizera / em operário construí-do / o operário em construção” (Vinicius de Morais).

MOVIMENTOS… É NO PLURALOs sindicatos têm um papel histórico nas conquistas sociais e não perderam significado, apesar de um de-créscimo de sindicalização nas últimas décadas, são hoje ainda o principal esteio da luta laboral. A plataforma que sustentam pela Europa Social é uma articulação decisiva na fase actual da União Europeia.

As últimas grandes manifestações da CGTP, no nos-so país, mostram o alcance da resistência, sem dúvida, mas a nossa visão não pode ser exclusivista acerca do papel sindical.

O surgimento de movimentos, como os de precários, ou os dos professores, mostra uma realidade: existe um espaço político aberto apesar do enfraquecimento dos sindicatos. Estes, muitas vezes dormentes pela buro-cracia, conformados à representação dos trabalhadores efectivos em empresas tradicionais, reactivos num sin-dicalismo legalista, partidarizados mas despolitizados, ficaram mais débeis para enfrentar o forte ataque que o neoliberalismo, agora pela mão do PS, lhes desferiu.

O ataque aos sindicatos é um fortíssimo ataque ideológico. Visa, por esse meio, destruir a contratação colectiva. O governo sabe que destrói a capacidade so-lidária, e a quase inexistente consciência de classe, a tal consciência de si para si. Toda a relação entre explorado e explorador fica resumida a uma relação individual tor-nando o trabalhador alvo de todas as fragilidades.

A agenda anti-sindical do governo torpedeou pela direita toda a dita “tradição social-democrata” e preten-deu reduzir o espaço da organização sindical, ou seja, da organização económica dos trabalhadores. Isso é prejudicial para a esquerda, para a cidadania, para os trabalhadores em geral.

Mas a vida tem surpresas mesmo em países onde a consciência das massas está em atraso.

O caso dos professores merece um olhar particular.Tanta foi a pressão sobre os professores que estes

explodiram. O comité central não tinha decidido a re-volta – que chatice as massas não respeitaram a direc-ção do partido de vanguarda. Inúmeras manifestações começaram por todo o país, a energia brotava em im-pulsos de descontentamento – a agenda das vontades de revolta superou o calendário burocrático/sindical e obrigou este a rapidamente reajustar-se, e a procurar o predomínio na luta. A luta dos professores é bem o exemplo de que a correia de transmissão partido – sin-dicato – trabalhadores já gripou.

SINDICATOS E ONGS COM AUTONOMIAA pretensão de que a luta só se pode fazer por controlo do sindicato, que é controlado pelo partido, tem castrado energias de resposta dos trabalhadores, tem estiolado a resposta da classe. É um processo anti-democrático e, como tal, colide com os anseios e as agendas dos tra-balhadores ou das suas causas. Ora o que colide com a vida real não pode ser defensável. Problema tanto mais importante, quanto o momento de insuficiente partici-pação e cidadania em que vivemos.

A concepção de que os sindicatos são correias de transmissão do partido é, na verdade, anti-dialéctica e incorrecta. Lénine dizia que era impossível o partido dos operários dirigir sem “dispor de «transmissões» que liguem a vanguarda à massa da classe avançada e esta última à classe trabalhadora”. Esta era uma ideia política, datada. Não mais.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [16] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

A DISPUTA DA OPINIÃO FAVORÁVEL DA MAIORIA, DOS TRABALHADORES, NÃO DEPENDE DE CORREIAS

DE TRANSMISSÃO – DEPENDE DE RESPOSTAS E PROPOSTAS POLÍTICAS. MESMO NO CAPITALISMO E APESAR

DO CAPITALISMO A DISPUTA DA MAIORIA É UM PROCESSO POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO COM MILHÕES DE PESSOAS.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [17] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

Mas esta concepção dos sindicatos dogmatizou-se, universalizou-se e tornou-se um pilar das concepções ortodoxas. Entende-se, assim, que se o partido é dos trabalhadores e os sindicatos são dos trabalhadores, os sindicatos devem ser clones do partido.

O vazio ideológico sobre um programa socialista, que não seja coreano, é assim compensado com essa re-lação identitária básica. Assim é mais fácil compreender porque nas manifestações da CGTP alguns sectários nos gritam: “fora daqui que isto não é vosso”. Assim é mais fácil compreender porque se modificam estatutos em alguns sindicatos para que, só muito dificilmente, alguém consiga concorrer às eleições sindicais.

Então, e como é que os marxistas se devem posicio-nar, respeitando a autonomia dos sindicatos?

A disputa da opinião favorável da maioria, dos tra-balhadores, não depende de correias de transmissão – depende de respostas e propostas políticas. Mesmo no capitalismo e apesar do capitalismo a disputa da maioria é um processo político de comunicação com milhões de pessoas.

Ganhar a maioria depende do acerto da proposta e /ou posição política, da sua adequação à consciência das massas, dos seus efeitos sobre os adversários políticos – em particular sobre os seus pontos mais fracos.

Qual deve ser a atitude dos e das marxistas com os sindicatos, os movimentos e organizações sociais?

Em primeiro lugar, democratizar os sindicatos, não podem ter uma democracia menor que as comissões de trabalhadores.

Em segundo lugar, é preciso dizer que “os movimentos sociais extra-sindicais não são organizações da pequena bur-guesia radical e inconsequente”, como por vezes lhes chama

a ortodoxia. São movimentos que lutam por causas e es-sas causas são justas oposições ao capitalismo realmente existente e à sua ideologia neo-liberal. Objectivamente, estão no nosso campo. É sobre essa referência que os analisamos.

Esses impulsos de resistência devem ser encoraja-dos. A autonomia das suas agendas deve ser encorajada. A sua liberdade própria e a sua independência devem ser encorajadas. Mais autonomia dos movimentos é mais energia e mais cidadania. E quanto mais democráticos forem esses movimentos melhores condições terão de se renovarem e de reagirem ao desgaste da luta. A resis-tência precisa de democracia, autonomia e movimentos sociais muito mais fortes.

É também porque o marxismo só pode respeitar a autonomia e a democracia dos movimentos sociais, que as modernas organizações marxistas não necessitam de tendências orgânicas para controlar esses mesmos movimentos. Um partido de esquerda, moderno, não precisa e não deve querer ter um colectivo para o con-trolo dos movimentos – por isso não precisa de ter uma tendência sindical ou uma tendência por ONGs.

O respeito pela autonomia dos movimentos não inibe a crítica dos partidos aos movimentos ou vice-versa.

Os marxistas devem valorizar uma atitude mais po-litizada dos sindicatos e movimentos sociais.

Um sindicalismo mais politizado e menos partida-rizado, não recusa alianças com movimentos sociais e saberes científicos. É afinal o caminho para a fusão das ideias mais avançadas com o movimento e a luta social.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [18] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

O RETORNO DA POLÍTICA

DO

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FERNANDO ROSAS

SEIS TESES SOBRE MEMÓRIA E HEGEMONIA, OU

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [19] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

1. OS PROBLEMAS QUE AQUI DESEJO SINTETI-camente apresentar, respeitam à relação actual, isto é, nos debates hoje em curso, entre a luta pela Memória e o conceito de hegemonia que, para este efeito, pedi de empréstimo aos trabalhos de António Gramsci.

Na realidade, trava-se hoje na sociedade portuguesa, mas não só em Portugal, efectivamente em quase todas as sociedades do ocidente, um debate surdo mas cres-cente em torno da subsistência, da relevância ou dos conteúdos das memórias do século XX. E falo da Me-mória numa acepção mais vasta do que o discurso his-toriográfico, prévia em relação a ele, e necessariamente informante e estruturante dos seus conteúdos, sem com ele, no entanto, se confundir. Falo do património físico e documental, falo de representações, de testemunhos, de registos escritos, orais ou filmados, de vivências, daquilo com que se constroem os discursos sobre o passado, mas de que se alimentam as visões actuais.

2. Esse debate, - e creio que no momento presente já não há escapatória purista que permita fugir a isso -, é um aspecto essencial da luta pela hegemonia política e ideológica nas nossas sociedades. Ou seja, ao convocar-mos, ao inscrevermos a Memória nos debates de hoje, não estamos só a olhar para trás, isto é, não nos refugiamos no passado, não fugimos para a nostalgia, estamos ne-cessariamente, seja qual for o sentido mais ou menos assumido do exercício, a discutir os conteúdos civiliza-cionais, as representações societais, os conteúdos polí-

ticos e ideológicos que estruturam os discursos sobre o mundo de hoje e de amanhã. A luta pela inscrição da Memória, para retomar o conceito do filósofo José Gil, é, neste sentido, um combate pelo presente e pelo futuro que travamos aqui e agora. Um combate da cidadania, antes de ser um investimento académico da História ou das outras ciências sociais, se bem que a ele indiscuti-velmente ligado.

3. Assim sendo, a Memória não é uma “coisa” em si mes-ma, jazente inteiriça e passiva sob as poeiras do passado, na espera de que a tomem; não é um ente pairando uni-vocamente asséptico sobre os conflitos actuais e pas-sados ou sobre as paixões e as escolhas que eles expri-mem. Na realidade, os diferentes tipos de investimento em torno da Memória surgem-nos como um processo social complexo de construção das legitimidades que sustentam as formas de estar, de transformar ou de con-servar o mundo em que vivemos. Por isso, a Memória é sempre matéria-prima para arquitecturas de geometria variável. Ou seja, não há um só e “verdadeiro” discurso sobre a Memória, não há memórias objectivamente pu-ras, há memórias que conflituam, que se tentam anular, em última análise, quer se queira ou não, que tomam partido, pela intermediação de quem as convoca, face às grandes escolhas de cada situação, de cada conflito, de cada época. Numa época de crise como a actual – a se-gunda crise histórica dos sistemas liberais do ocidente, agudizada pelo recente colapso financeiro e económico

– essa politização do tratamento da Memória, esse “re-torno do político” como impregnante dos discursos das ciências sociais, torna-se mais evidente e inexorável.

4. É certo que falar de “retorno” do político é uma im-precisão que serve unicamente para enfatizar a verifica-ção do fenómeno. Se o discurso historiográfico pode ser visto como uma tentativa de racionalizar e dar sentido aos vários tipos de patrimónios da Memória com que trabalha, o certo é que essa busca nunca deixou de ser condicionada política e ideologicamente pelo ser social do seu autor. Como dizia George Duby, não há história objectiva. E eu penso que a pior forma de manipulação ideológica da História é a reivindicação da sua pseu-do-neutralidade ou da sua pretensa objectividade. Não sendo objectiva, a História deve ser metodologicamente séria e rigorosa. Essa é a fronteira epistemologicamente inultrapassável da disciplina. Quanto ao resto, ela acom-panha os fluxos e refluxos, as paixões e as reacções do seu tempo. O ciclo da manipulação pela pretensa des-politização imposta pelo pensamento único neoliberal está em crise com tudo o resto. Regressa uma progres-siva politização da sociedade de que a História vai ser o objecto privilegiado. E talvez se possa pensar que isso trará clarificação e responsabilização acrescidas. O que a meu ver é bom.

5. O mundo capitalista global e do neoliberalismo tem procurado preservar a sua hegemonia ameaçada, desig-

SEIS TESES SOBRE MEMÓRIA E HEGEMONIA, OU O RETORNO DA POLÍTICA FERNANDO ROSAS | HISTORIADOR DO INSTITUTO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA - IHC/FCSH/UNL

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [20] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

nadamente através de 3 tipos de esforços simultâneos de cerco, aniquilação ou manipulação da Memória.

O primeiro, talvez o mais generalizado, mais invi-sível e insidioso, e por isso mais eficaz processo, é o da criação pelas media e através de todas as formas de dis-curso dominante, de um ambiente de “presente contínuo” (E. Hobsbawn), de anulação da memória e da História, da criação de “espirais de silêncio” (Habermas) em tor-no de qualquer expressão relevante de cultura crítica e progressista. Pretende-se purificar e legitimar toda a casta de agressões e violações anti-sociais e antidemo-cráticas, através de uma absoluta anulação da memória dos processos históricos, dos conceitos e dos valores de potencial subversivo. O pensamento hegemónico totalizante constrói-se, assim, sobretudo de silêncios e omissões, de “verdades implícitas”, de decorrências do “senso comum” invisivelmente imposto.

Compreende-se a utilidade central deste apagão per-manente das memórias: é mais fácil impor as 10 ou 12 horas de trabalho aos operários da indústria automó-vel, se eles não souberem, se se lhes apagar a memória dos rios de sangue que correram para a classe operária europeia conquistar a jornada das 8 horas de trabalho. O mesmo se diga do direito à greve, da existência da contratação colectiva e dos sindicatos livres ou da ba-nalização da tortura. Ou seja: as tarefas da Memória são obviamente indissociáveis da sociedade que queremos como presente e futuro.

O segundo processo de ataque à Memória, é o revi-sionismo explícito dela e da História que suporta, o que torna particularmente transparente o projecto ideoló-gico que lhe subjaz.

Quando o dr. Rui Ramos e a extrema-direita mo-nárquica caricaturam a I República como um regime terrorista e caótico, num discurso primário decalcado da propaganda estadonovista, o que pretendem não é tanto tratar da I República, mas sim legitimar e banalizar a Ditadura Militar e o salazarismo que lhe teria sucedido como aurora redentora.

Mais uma vez o debate da Memória e a historio-grafia que o serve são inseparáveis dos imperativos e das escolhas de hoje, e convocam-se para os esclarecer e dar sentido.

O terceiro processo, como diria José Gil, é o da não inscrição silenciosa e insidiosa da Memória. Esse processo lento de esquecimento organizado, de demis-são cívica, de banalização da ditadura, de desculpabi-lização, essa inculcação mansa de um indiferentismo difuso, meio cobarde, meio ignorante, essa reabilitação torpe do salazarismo, da guerra colonial, das oligar-cas do fascismo, veiculada pelas televisões (a começar pela pública!), pelos comentadores políticos de direita que dominam o panorama comunicacional, pelos con-cursos só aparentemente imbecis, até por alguns livros escolares.

6. Penso que é fundamentalmente em torno destes 3 tipos de manipulações que se há-de travar a luta pala Memória, muito mais ampla do que o estrito labor da historiografia. Tenho para mim que os movimentos de reabilitação e defesa da Memória são sobretudo movimentos sociais, que colaboram com a investigação histórica, mas a ultrapassam como movimentos cívicos, como exem-plarmente nos ensina a grande luta pela reabilitação da Memória da República e dos que por ela tombaram no Estado espanhol. Penso que são movimentos plurais e não de partido ou de escola: a defesa da memória do anti-fascismo convive bem com o pluralismo dos discursos sobre a Memória e a História no quadro dessa recusa comum do apagamento e da manipulação. Ninguém é dono da Memória, nem da Resistência. Esse é um pa-trimónio da luta do povo português de que ninguém é interprete exclusivo ou privilegiado.

Para uma esquerda que vem de longe, os trilhos da Memória são a espinha dorsal da sua identidade. E essa consciência de si é o fulcro de todo o combate emanci-patório. Tenhamos, pois, Memória.

É MAIS FÁCIL IMPOR AS 10 OU 12 HORAS DE TRABALHO

AOS OPERÁRIOS DA INDÚSTRIA AUTOMÓVEL, SE ELES NÃO

SOUBEREM, SE SE LHES APAGAR A MEMÓRIA DOS RIOS DE SANGUE

QUE CORRERAM PARA A CLASSE OPERÁRIA EUROPEIA CONQUISTAR

A JORNADA DAS 8 HORAS DE TRABALHO.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [21] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

PARTIDO, RAZÃO NECESSÁRIA

DO

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LUÍS FAZENDA

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [22] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

A DISCUSSÃO CRÍTICA SOBRE A NATUREZA, papel e concepção, estrutura e funcionamento dos par-tidos anti-capitalistas é tão antiga quanto o marxismo. As experiências sindicais, cooperativas, mutualistas, enquanto organizações primeiras e primárias do movi-mento operário, já traziam o germe da necessidade da organização política.

UM PARTIDO, AINDA ANTES DE O PARTIDOContudo, com facilidade se depreende, que só após o apagamento teórico e o enfraquecimento do anarquis-mo, a questão de um partido (ainda não “o” partido) dos comunistas atravessou a agenda das realizações do mo-vimento. A concepção originária de partido é subordi-nada da visão do Estado de classe, da obrigatoriedade de substituir o poder da burguesia pelo poder do prole-tariado, na transição para a sociedade sem classes, onde teria lugar a extinção do Estado. É por isso que Marx e Engels, no Manifesto Comunista de 1848, indicam que o Partido Comunista teria a vantagem de ter uma visão do conjunto da luta de classes e dos seus objectivos finais, assim se libertando das perspectivas de menoridade face ao Estado, quer dos anarquistas, quer dos economicis-tas, “meros adeptos do melhoramento da questão social”. A primeira ideia de partido é ainda a de um “partido ideoló-gico, teórico” destinado à elevação da consciência política dos operários de vanguarda, no seio do partido operário mais geral. As organizações são variáveis e de coexis-

tência de correntes de pensamento, como se pode obser-var na trajectória da Liga dos Justos, da Liga Comunista e da 1ª Internacional. Ou, e com interesse da morfologia da luta de classes concreta, como Marx a visualizou no processo político francês de 1848 à Comuna de Paris, o papel dos operários de vanguarda na larga e heterogé-nea “frente” revolucionária. Um partido de interpretação e Programa. Como se sabe, os adeptos da Internacional eram minoritários na insurreição communard e mesmo estes não eram inteiramente “marxistas”. Atributos ori-ginais, e condição assumida, eram já a natureza de re-presentação do interesse da classe de proletariado e a característica de vanguarda dos seus prosélitos (ainda não exactamente militantes).

Na Liga Comunista percebe-se já a insistência numa “autoridade central”, sob o corpo multifacetado do movi-mento internacional, de facto europeu. Essa propensão foi acentuada na 1ª Internacional, da Europa e América do Norte: a necessidade de valorização geral das reso-luções dos congressos e da preservação das orientações do Conselho Geral da Internacional. Contudo, e apesar da imposição progressiva do “marxismo” como doutrina geral, não existia ainda uma disciplina por conformação ideológica, mesmo apesar das cisões na Internacional. As diferentes emanações da organização nos países se-guiram estruturações mais ou menos de tipo associativo, ou de círculos de individualidades.

Durante o activismo de Marx, a formação de uma pla-taforma política (sinal de passagem de uma “consciência

em si” para uma “consciência para si” do proletariado), assumindo o combate pelo estado e a “partidarização” do movimento, inseriu-se na dinâmica fragmentária das lu-tas proletárias. Marx tende à clarificação de programas, agiu como tendência de minoria e posteriormente como tendência de maioria, sem formatos que ultrapassassem modelos de género sindical. As indicações estatutárias, organizativas, são incipientes e destinam-se a contraba-lançar a espontaneidade virtual dos agregados, disper-sos por uma boa parte do hemisfério norte da revolução industrial. O que foi para além de um Partido de Pro-grama, o partido político, este recorreu à geometria va-riável. É já tardiamente que Marx, depois de soçobrada a 1ª Internacional, acompanha a formação de um partido operário alemão, a que lhe apontou o ecletismo do ideá-rio e a falta de rigor na análise do capitalismo, aderindo todavia à ideia de um partido de classe mais autónomo e de base nacional, de estruturação vertical nítida. Nascia, no que viria a ser o Partido Social-democrata Alemão, “o” partido irreconciliável com todos os outros, dando forma aos partidos modernos do proletariado.

O conceito de um partido internacional, de facto euro-peu, não era apenas produto da fraqueza, pouca instru-ção, confusão filosófica dos grupos ou secções nacionais. Tinha implícita a perspectiva de um ciclo de revoluções proletárias, mais democráticas ou mais socialistas, nos países capitalistas mais avançados, agindo por rastilhos sucessivos. Esse horizonte de “partido sem fronteiras”, afinal os operários não tinham pátria, perde-se com a

PARTIDO, RAZÃO NECESSÁRIALUIS FAZENDA | DEPUTADO DO BLOCO DE ESQUERDA

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instalação da II Internacional. Muito embora, a II In-ternacional olhasse o internacionalismo proletário do seu miradouro, e durante algum tempo a sua maioria in-terna pensasse numa passagem ao socialismo na Europa como queda da burguesia em dominó, essa dinâmica cla-ramente não se reencontrou. Aliás entrechoca-se, como se sabe, na guerra imperialista de 1914, com os partidos a tomar o lado dos seus respectivos governos.

Visto já do século XXI, esta primeira fase do agru-pamento partidário, não pode ser minimizada na sua importância. Certa historiografia, que foi oficial du-rante muitas décadas do último século, romantizou o heroísmo, o pioneirismo, a genialidade da proclamação do Manifesto, enquanto pormenoriza o artesanalismo e a debilidade organizativa. Tudo isso é história, mas é incompleta como lição. Repare-se que desde 1848 to-das as teorias de partido proletário, dispersas ou con-densadas, autorais ou de manual, sinalizam que “o par-tido” é instrumental, lendo-a até de forma diversa. Mas note-se que um partido em Marx nasce como razão, não como instituição. E não faltavam institucionalistas ao tempo, com as regras dos sindicatos e das caixas operárias.

Também não admiraria que os neófitos da Iª Interna-cional achassem interesse no alter-globalismo que por aí anda. É dos factos que a internacional se fez mais através do correio, do comboio ou do navio mercante, e hoje prepondera o avião e a Internet. Mais do que isso, sem dúvida, a diferença de épocas e de contexto político é até bem mais pronunciada. E embora, pese a ingenui-dade e a inconsequência de muitas proposições, com o retorno à mundialização – noutra escala de mundo – de causas anti-imperialistas, o alter-globalismo herda qual-

quer coisa dessa razão sem fronteiras, daquele espírito citado de que “um fantasma percorria toda a Europa”, tremeram os poderosos!

DOIS TIPOS DE PARTIDOMarx, em tempos de finados da Iª Internacional, simbo-licamente fixada em New York, pode ainda acompanhar os primórdios do Partido Social-democrata Alemão, no que se referia à crítica dos seus programas originais, de-masiado confusos sobre a análise do Estado. Com o seu falecimento, é Engels, que segue a evolução do partido referência da 2ª Internacional, rejubilando com os seus êxitos eleitorais. Embora sem triunfo, votações impo-nentes na Alemanha e em outros países da Europa Oci-dental, no continente, averbavam um importante avanço do movimento socialista. Engels deslumbra-se com as virtualidades do sufrágio universal, desmotiva-se do processo insurreccional. Está aqui o berço parlamen-tarista em vigor na 2ª Internacional. Embora com re-gras formais de disciplina da maioria, estes partidos consagram a autonomia dos seus deputados, os chefes sindicais gozavam de estatuto especial nas fileiras da or-ganização, os órgãos de imprensa eram com frequência desobedientes à linha geral.

A teoria de Bernstein (“o movimento é tudo, o objecti-vo é nada”), o ministerialismo em governos burgueses (França, Bélgica), acedendo ao reformismo do capitalis-mo sem necessidade de um levantamento revolucionário (a Comuna a prestações e, ovo de Colombo, com o voto popular) impuseram-se com a emergência do sufrágio universal masculino. Embora a onda fosse contrariada pelos herdeiros de Marx, com Kaustky à cabeça, essa era a onda do momento. A inexistência de quadros seme-

lhantes sob os impérios russo ou austro-húngaro trouxe clivagens profundas com os partidos de leste, aonde a necessidade reclamava revoluções contra as oligarquias e a burguesia próxima do poder. Grosso modo, os par-tidos ocidentais erigidos a partir do sindicalismo deixa-ram de ser os partidos das barricadas e assumiram-se como partidos do eleitoralismo. Para as alas esquerdas eram partidos sem disciplina operária, desprezando o colectivo.

Quando se dá a desintegração da 2ª Internacional, na iminência e durante a guerra imperialista de 14 – 18, ela deve-se ao envolvimento desses partidos ocidentais, ou pelo menos das suas maiorias, na participação militar ao lado dos seus Estados e das “suas” burguesias. Essa situação ficou para sempre como a traição histórica dos partidos do movimento operário europeu, esse dado é irrefutável.

Contudo, mesmo que Lénine, Rosa Luxemburgo e ou-tros tenham estabelecido uma relação causa-efeito en-tre reformismo, ministerialismo e social-imperialismo (socialistas com a guerra imperialista) ficou apagado o debate das estratégias de poder e organização. Após a revolução de Outubro, com a fundação da 3ª Interna-cional (Komintern 1919), com o partido bolchevique e muitas das fracções que abandonaram em muitos países os partidos amarelos (de conciliação de classes), foi aí assente uma diferenciação de fundo: a estratégia exclu-siva dos partidos operários é a preparação da revolução contra as democracias burguesas e, por maioria de ra-zão, também contra os estados burgueses autoritários. Nessa lógica, os partidos são fortemente centralizados, são considerados “destacamentos” da vanguarda e seguem de perto uma disciplina quase militar.

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EVENTUALMENTE, PARA QUEM VEM DA ANTIGUIDADE DA “GUERRA FRIA” IDEOLÓGICA, E, ATÉ HOJE POR HOJE, REIVINDICA

O “SOCIALISMO CHINÊS”, A QUESTÃO ESTÁ RESOLVIDA POR NATUREZA E O ASSUNTO NEM DÁ DORES DE CABEÇA,

MAS O FACTO É QUE AS DUAS VIAS DE SOCIALISMO QUE SE CONTRAPUSERAM FALHARAM AMBAS, ATÉ AGORA.

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Apesar do prestígio e da inspiração da 1ª revolução proletária vitoriosa e da instauração da URSS, apesar da catástrofe ensanguentada da 2ª Internacional, rapi-damente nos anos 20 os partidos social-democratas da Europa e Oeste, e também depois da guerra ao nazi-fas-cismo de 39 – 44, impuseram-se de novo como alter-nativas eleitorais nas democracias liberais burguesas. Pode dizer-se que até ao último quartel do séc. XX onde “venderam”, a expressão é rigorosa, a social-democracia pelo neo-liberalismo, tiveram, com altos e baixos em conjunturas deste ou daquele país, um ciclo de forte ex-pressão eleitoral e de reformismo de governo.

Não de menos, onde depois de 44 na Europa Ociden-tal, França e Itália, os partidos comunistas tiveram uma impressionante imponência eleitoral, eles próprios sob várias formas renderam-se ao postulado social-demo-crata da via eleitoral para o socialismo, embora se man-tivessem intransigentes quanto às “normas leninistas de organização” vigentes nos seus estatutos partidários.

Vale a pena reflectir, com alguma acuidade, neste as-pecto do ciclo social-democrata europeu, tão enterrado hoje como os partidos comunistas no poder, dado que o movimento comunista condenou essa reflexão desde sempre, fechou a sua crítica em categorias do tipo de traição aos interesses de classe, permitiu equívocos e ambiguidades, mas de facto nunca esclareceu o funda-mento do entusiasmo operário largamente maioritário pelo sufrágio universal masculino e feminino.

Eventualmente, para quem vem da antiguidade da “guerra fria” ideológica, e, até hoje por hoje, reivindica o “socialismo chinês”, a questão está resolvida por natureza e o assunto nem dá dores de cabeça, mas o facto é que as duas vias de socialismo que se contrapuseram falharam

ambas, até agora. Qualquer uma delas pode no futuro retomar o seu curso. O contacto com a intelectualidade recente faz perceber que é um assunto em aberto, não é singularmente história, mas pré-actualidade. E tanto mais desafiante quanto a saudade da social-democracia parece ter por ora maior apelo, e não apenas na Europa, de que o marxismo revolucionário. Circunstância que atrasa a recuperação do socialismo como horizonte ma-terial.

A estratégia comunista de conquista revolucionária do poder fixou os elementos do partido. O quadro de referência, para além de várias resoluções sobre o papel e a estrutura do partido, são as célebres 21 condições de adesão ao Komintern. Esse enquadramento, estabeleci-do em Julho de 1920 no 2º Congresso, com a participa-ção centralíssima de Lénine, dispunha no título 12: “Os partidos que pertencem à Internacional Comunista devem constituir-se na base do centralismo demo-crático. Na época actual, encarniçada, de guerra civil, o Partido Comunista não poderá cumprir a sua missão se não estiver organizado da forma mais centralizada, com uma disciplina de ferro semelhan-te à disciplina militar, se o seu órgão central não estiver reunido de amplo poderes, se não exercer uma actividade incontável apoiada pela confiança máxima dos seus militantes”. Bem como no seu título 13: “Nos países em que os Partidos Comunistas mi-litam legalmente devem depurar periodicamente as suas organizações, a fim de expulsar os elementos arrivistas e pequeno-burgueses”. Nos outros títulos, para além de regras de expulsão de centristas ou poten-ciais aliados dos social-democratas, estipulava-se a “sub-missão total” de órgãos de imprensa, núcleos comunistas

de sindicatos, grupos parlamentares ao comité central, e exigia-se a composição rigorosa de um “organismo clan-destino” do Partido.

Não constituía novidade, Lénine contestara a orga-nização social-democrata parlamentarista e este era o “partido de novo tipo”. Os princípios de organização, uni-versais, traduziam uma coerência absoluta.

Mas, nos anos de 21 e 22 foram projectadas várias sombras sobre este corpo organizativo, se não identi-tário pelo menos identificativo sobre o tipo de partido que chamava a si o poder do socialismo. E com sinais dramaticamente opostos. O 10º Congresso do parti-do bolchevique, em nome da unidade do partido sob a condição de cerco internacional, proibiu a existência de tendências ou fracções internas. E se não foi tão longe quanto Trotsky quanto à militarização dos sindicatos, deixou absolutamente clara a subordinação dos sin-dicatos ao partido. Lénine extraiu estas controversas conclusões das terríveis condições de sobrevivência do poder dos sovietes.

Repare-se como, em Novembro de 22, o mesmo Lé-nine expõe uma autocrítica ao 4º Congresso do komin-tern, em citação longa, porém obrigatória:

“Em 1921, no III Congresso votámos uma resolu-ção sobre a estrutura orgânica dos partidos comu-nistas, assim como sobre os métodos e o conteúdo do seu trabalho. O texto é excelente, mas essencial-mente russo, ou quase, na medida em que foi tirado das condições de vida russas (…) Tenho a impres-são que com aquela resolução cometemos um grave erro, fechando nós próprios o caminho para novos progressos. (…) Estou persuadido que devemos di-zer, a este respeito, não só aos russos, mas também

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aos camaradas estrangeiros, que o mais importante, no período que se segue é o estudo (…)”.

Lénine extraía também estas conclusões da prática dos partidos aderentes do Komintern: “Tudo o que se disse na resolução permanece letra morta. Ora, a menos que compreendamos este facto, não podemos avançar”.

Lénine percebia que a concepção e, sobretudo, a orga-nização do partido de vanguarda chocava com a cultura operária, sindical e assembleísta da Europa Ocidental do tempo. Daí o remoque que fazia no mesmo texto de que os emergentes fascistas italianos fariam melhor pela aprendizagem da experiência russa que a resolução do komintern.

Este tríptico de posições de Lénine, em três anos e perto da sua morte, no pós-Outubro, de escolha natu-ralmente subjectiva mas factual, mostra como o chefe da revolução socialista, como político e ideólogo, não des-curando as referências ao partido revolucionário, tinha uma flexibilidade rara operando sobre os contextos da luta de classes e do estádio da estratégia política.

O FORMATO KOMINTERNEssa qualidade de Lénine, de flexível organizador, que parece indesmentível, está bem longe de qualquer formatação dogmática de “O Partido” que lhe sucede-rá. Quando muitas gerações e milhões de comunistas aprenderam os fundamentos do partido pela literatu-ra de Stáline não podiam descortinar que, na essência, não havia um “modelo leninista” de partido nem que Lénine teve, de facto, isso sim uma teoria e prática evolutivas sobre as características da “vanguarda or-ganizada”.

Na luta revolucionária russa, em situação de czarismo absoluto e violento, Lénine não poderia conceber o par-tido operário como outra coisa se não uma organização estritamente centralizada, composta por revolucioná-rios profissionais, alimentada pelos círculos operários na periferia da organização. Trouxe como indicação mais abrangente, para além da Rússia, que o partido era a fusão do socialismo (a teoria, e o seu veículo, intelec-tuais engajados) e o movimento operário (combatentes da classe trazidos ao organismo e extraídos à fábrica). Trouxe como indicação mais geral também que o mili-tante não era um mero adepto, mas alguém submetido à disciplina de acção (é célebre a polémica com Martov sobre o artigo 1º dos Estatutos). É exacto que o rosto da revolução de Outubro defendeu a eleição dos órgãos superiores e do centro dirigente sempre que a semi-le-galidade o permitia, não deixando de utilizar a coopta-ção de dirigentes nos períodos de maior repressão e de desarticulação das estruturas e efectivos do partido.

Todavia o mesmo Lénine, acidentalmente bolchevi-que, palavra russa equivalente a maioritário, no 2º Con-gresso do Partido Social-Democrata Russo, em 1903, em Londres, esteve várias vezes em minoria, promoveu

fracção própria, aliou-se a fracções externas ao partido, cindiu duas vezes o partido, e antes e depois da revo-lução de 17 aliou-se e afastou-se de várias tendências. Mesmo a história do PC bolchevique, promovida por Stáline, relata esses factos, embora de forma sumida. A proibição da liberdade de tendência que no X Congres-so do Partido era uma medida conjuntural e cautelar, tornou-se pilar do Partido, e subitamente agravada pela fusão do Partido e do Estado, apesar dos alertas de fim de vida de V. Lénine.

A historiografia stalinista de que o partido de tipo novo se completou no 10º Congresso, e era inamovível, foi o canto final de uma certa ideia “democrática” do cen-tralismo democrático, e totalmente inapropriado a um país, pese a hostilidade e a agressão externa, onde era suposta uma democracia de tipo novo. Um estado de partido único, dotado de um centro único, de um chefe único, não responde mais à política mas à polícia políti-ca. Como aconteceu.

Lénine deixou uma teoria evolutiva de partido, cons-truído a partir da realidade. O “modelo leninista” de partido é um condensado de conveniências de Stáline e do Komintern, que o legaliza, com estatutos e tudo, no

A PROIBIÇÃO DA LIBERDADE DE TENDÊNCIA QUE NO

X CONGRESSO DO PARTIDO ERA UMA MEDIDA CONJUNTURAL

E CAUTELAR, TORNOU-SE PILAR DO PARTIDO, E SUBITAMENTE

AGRAVADA PELA FUSÃO DO PARTIDO E DO ESTADO, APESAR DOS

ALERTAS DE FIM DE VIDA DE V. LÉNINE.

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GERAÇÕES DE COMUNISTAS FORA DA URSS APRENDERAM A LER NOS ESTATUTOS OU TEXTOS DE INICIAÇÃO,

NOS DISCURSOS DOS DIRIGENTES, OS CHAMADOS CRITÉRIOS DE DIMITROV: FIRMEZA, DEDICAÇÃO, FIDELIDADE

E CAPACIDADE, CORRESPONDENTES A UMA MORAL DE CLASSE SUPERIOR; MAS O PARTIDO-INSTITUIÇÃO

DE REFERÊNCIA PASSOU A TER A POLÍCIA POLÍTICA COMO TRIBUNAL E VERDUGO DE OPINIÃO.

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5º e 6º Congressos. A exaltação do “comunista-modelo”, que vai a par com o “homem novo” do socialismo, marcou de sobremaneira a luta revolucionária mundial, impôs uma ética própria como artigo não escrito dos estatutos, mais a mais quando o ascenso do nazi-fascismo ocultou as purgas dos anos 30 em Moscovo, verdadeiro baptis-tério do partido-guia por decreto mundial.

Gerações de comunistas fora da URSS aprenderam a ler nos estatutos ou textos de iniciação, nos discursos dos dirigentes, os chamados critérios de Dimitrov: fir-meza, dedicação, fidelidade e capacidade, corresponden-tes a uma moral de classe superior; mas o partido-insti-tuição de referência passou a ter a polícia política como tribunal e verdugo de opinião. A partir dos anos 60 do séc. XX, a consciência desta contradição, apesar da con-denação do “estalinismo” no 20º Congresso do PCUS, em 56, foi uma espiral do horror dado que atingia a fi-nalidade e a propaganda dos partidos comunistas mas sem consequências no seu modo de funcionamento, na URSS, nos países do Pacto de Varsóvia, na China, ou nos países capitalistas.

As conquistas formidáveis do socialismo não justifica-vam os meios do novo Príncipe, porque alienavam o fu-turo. Calar os crimes e as distorções do regime em nome do socialismo só prepara a sepultura do socialismo.

Hoje, após o desabamento desses regimes, e apesar de caricaturas sobreviventes como a China ou a Coreia do Norte, temos a possibilidade, concedida pela história, de não ocultar a “indemocracia”, coisa bem mais grave do que a ditadura de corpos especiais, sem a vergonha de pensar favorecer o inimigo de classe.

O molde dos 5º e 6º Congresso do Komintern provo-cou o mimetismo mundial, aliás obrigatório. Em vão se

procura encontrar estatutos diferenciados de partido a partido, de país a país. Mesmo após a extinção do Ko-mintern, em 43, no final da guerra contra o nazi-fas-cismo, os estatutos irão permanecer com os seus traços característicos, ressalvadas particularidades nacionais acessórias.

Há um processo longo, feito de uma dura luta social de décadas, de adaptação e assimilação de formato. Trata-se não tanto da burocratização dos partidos, como fazem supor algumas críticas ingénuas, mas da sua institucio-nalização identitária como “família de classe”, uma obser-vação grosseira mas que dá a medida de muita sincera psicologia operária, e não só.

Extraordinariamente, sob a capa do mimetismo da forma que não é desprovida de regra efectiva, os par-tidos comunistas ensaiaram muitas variantes. Desde o partido chinês, aos diversificados partidos da Europa Oriental, ainda mais na América latina, ou até aos eu-rocomunistas ocidentais. É um profundo erro teórico tomar os partidos todos por igual, embora com a mesma matriz organizatória. A leitura dos processos desmen-te-o e essa visão responde mal às questões da recompo-sição das esquerdas pós-muro de Berlim.

O monolitismo foi sacralizado como resposta orga-nizativa. É ainda para muitos o sinónimo de unidade. Quaisquer proposições de que a unidade se atinge por um processo dialéctico, de escolha de argumentários, de apuramento de maiorias e respeito de minorias, é visto por este sectores com horror, como a antecâmara do li-quidacionismo. O eixo da crítica demo-liberal, burgue-sa, ao monolitismo é o reprovado “unanimismo”. É uma crítica superficial toldada pelo cretinismo parlamentar. A unanimidade ou a expressão de diferenças são resul-

tados naturais. Entenda-se que o monolitismo não é es-tático. A dinâmica monolítica alimenta-se do consenso. A procura do consenso pelo consenso, para não quebrar o partido-instituição, concebida a divergência como fra-queza de classe, o consenso que evita votações e produz legitimação do “trabalho e pensamento colectivo”, aí está o processo de reprodução do centralismo democrático. Quem quiser aplicar aos partidos comunistas, sob o ca-pitalismo entenda-se, a caricatura da “ditadura interna”, esbarra na incompreensão dos seus militantes porque não é essa a sua percepção. Aliás, proclamam indeter-minadamente a pretensa superioridade do seu método e ganham pontos quando o comparam com a fulaniza-ção extremada dos partidos do sistema. A questão é que privilegiando o colectivo ele tem limites, sob pena de estagnação política e teórica, de enquistamento, de per-manente autojustificação e da exclusão dos que desali-nharam, não sendo auto-consensuais por “voluntariado à força”. Veteranos dirigentes comunistas perceberam-no há muito tempo discordando da asserção incómoda de que “mais vale errar com o partido do que acertar fora dele”.

O consenso, em si, pode exprimir convergência, nada tem de errado. O método do obrigatório consenso é que tem pouco de Marx, ou de Lénine, ou de quaisquer das referências doutrinárias que alegam como inspiração.

A FORMATrazer a conceito a forma de (um) partido pode desper-tar a ironia. Muitos de lembram da troça de que foram alvo os comunistas italianos quando não sabiam nome-ar o seu partido. Ficou “a coisa”. Porém a forma não é uma indefinição de conteúdo nem uma secante às suas características.

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No tempo presente nem sequer os comunistas orto-doxos se atrevem a desenvolver a tese de um “modelo de socialismo”. Proclamaram a propósito, pragmatismo pró-chinês obriga, o fim dos modelos. E se, quer os pro-blemas da transição socialista, quer os problemas da es-truturação regional do socialismo são complexos e va-riáveis, por lógica material e social a instrumentalidade de (um) partido também o deveria ser. A variabilidade do fim deveria implicar a variabilidade dos meios. Não se trata de exacerbar o acidental em detrimento do essen-cial. Tal como historicamente os regimes burgueses tive-ram muitas variantes na economia, no poder e na cultu-ra, também o histórico socialista, socialista sublinhe-se, registará fisionomias diversas. Achar que (um) partido é chave para essa transição e ele não trazer por antecipa-ção o seu próprio modo de conceber o constitucionalis-mo socialista, eis a estranheza. Se o socialismo é mutável, não pode haver partidos pró-socialistas imutáveis.

Um certo grupo de partidos, ainda escassos, que com propriedade indefinida se chamam de “nova esquerda”, tentaram depois de Berlim 89 e Moscovo 91, reagru-par movimentos sob programa socialista, ecologista e feminista, demarcando-se simultaneamente dos for-matos social-democratas ou Komintern. Os resultados são férteis, porém a sua estabilização social só pode ainda ser considerada provisória. A maturação desses partidos provém de uma autocrítica dos fracassos da social-democracia e do comunismo, uns por défice de socialismo, outros por défice da democracia. Na conta da filosofia, ambos feridos na dogmatização dos seus conceitos que não resistiram à vaga liberal, essa mesma agora em declínio depois de ter ganho massas popula-res imensas.

Esses partidos vingam, não por acaso em democracias liberais estabilizadas como veremos, trazendo natural-mente uma babel de proveniências, de grupos e pessoas de todos os campos da esquerda. Necessariamente com um referente marxista, mas sem exclusividade de uma escola, uma instituição partido, ou simplesmente uma seita. A ideia de reagrupamento, para começar de novo em outras bases, não expõe o relativismo ideológico, an-tes pronuncia a consciência da falibilidade de ideologias feitas, cuja única prevenção só pode ser o pluralismo e as sínteses de referência que o processo político confirma.

Alguns traços característicos são já bem visíveis nes-sas “formas” de partido:

O respeito pelas decisões maioritárias não invalida a liberdade de tendências e o direito de expressão pública de opinião, exclui a disciplina de acção obrigatória dos seus membros, facilita a autonomia das organizações locais eleitas, aceita a iniciativa de base na realização de congressos ou debates gerais, impõe escolhas nominais com voto secreto. Exige, sem sanção, a solidariedade política dos eleitos nas instituições do regime. Respeita a autonomia das organizações sociais afastando-se de esquemas de pilotagem partidária.

Dito por oposição, os partidos da “nova esquerda” não têm nada a ver com o dirigismo dos bonzos social-de-mocratas, como lhes chamou Lénine, ou com a força centrífuga de qualquer “comité central”.

O que empurra esta forma de (um) partido é um im-pulso democrático muito forte. Contudo, importa saber os factores objectivos dessa determinação.

Está a aproximar-se do final da sua vida uma geração inteira que no continente europeu, a ocidente, não co-nheceu outra coisa que não fosse a democracia liberal. (Com)viver seis ou sete décadas num partido de filosofia próxima da centralização militar, na expectativa próxi-ma ou da fascização ou da revolução que não ocorrem, torna-se um fardo insuportável e antinatural. De ge-ração em geração cada vez mais insuportável. Mesmo os partidos centralizados não levam a sério a indicação leninista de combinar em permanência “o trabalho legal e ilegal” e de manter um aparelho clandestino.

Portugal e a Espanha, a braços com ditaduras fascis-tas até meados de 70, arrancam mais tarde para esse processo, mas os mesmos factores estão bem visíveis. Tentar reduzir a aversão a partidos centralizados a uma patologia de “individualismo pequeno-burguês” é uma ce-

A IDEIA DE REAGRUPAMENTO, PARA COMEÇAR DE NOVO EM OUTRAS

BASES, NÃO EXPÕE O RELATIVISMO IDEOLÓGICO, ANTES PRONUNCIA

A CONSCIÊNCIA DA FALIBILIDADE DE IDEOLOGIAS FEITAS, CUJA ÚNICA

PREVENÇÃO SÓ PODE SER O PLURALISMO E AS SÍNTESES DE REFERÊNCIA

QUE O PROCESSO POLÍTICO CONFIRMA.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [30] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

IDEOLOGIZAR AO EXTREMO, INTEMPORALIZAR AS QUESTÕES, E AINDA POR CIMA RETIRAR

CONCLUSÕES ORGANIZATIVAS ETERNAS, SÓ PODE POR DOGMATISMO CONDENAR AS VANGUARDAS,

QUE GERACIONALMENTE SE CRUZAM, À IMPOTÊNCIA, À ESTREITEZA E FINALMENTE À CAPITULAÇÃO POR DESGASTE.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [31] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

gueira sectária anti-operária. A maioria dos trabalha-dores não o aceita.

Nos países capitalistas desenvolvidos, e com estabili-dade democrática, há mutações sociais, graças à longa e secular luta dos trabalhadores, que alteraram aspectos centrais dos constitutivos organizativos do núcleo fun-damental do partido, do partido construído (o partido “constrói-se” sempre) do núcleo para a periferia. A fusão orgânica entre a teoria e o movimento, o enlace pro-fissional entre os intelectuais pequeno-burgueses e os operários, já não se realiza nas mesmas condições. O transporte da teoria, cultura e ciência não está confinada mais a um punhado de intelectuais, que por sua vez se multiplicaram e se proletarizaram, ou assalariaram em geral, havendo fontes de informação inesgotáveis, de consulta geral. Os operários de vanguarda têm hoje um manancial de instrução, num proletariado bem alargado onde impera trabalho complexo, com menores jornadas de trabalho, e mais tempo útil de militância.

Essa circunstância tende a desvalorizar o papel do funcionário e a colectivizar a participação política. Des-valoriza os “escolhidos” e promove os “eleitos”, até porque o funcionalismo político perde o papel sacrificial que tem na clandestinidade.

A indicação leninista desta “fusão orgânica”, imor-talizada no “Que Fazer”, tinha todo o sentido sob um regime torcionário, onde não havia o limite de 8h de trabalho, e o grau de instrução das massas trabalhado-ras roçava o analfabetismo. O princípio de que o movi-mento operário espontaneamente não gera uma teoria revolucionária sem contacto com a ciência mantêm-se com plena actualidade. A concretização prática pode ser diferenciada no tempo e no modo.

Sem dúvida que este processo de partido/movimento e de democratismo aberto, com os seus factores políticos e sociais de base, não existe de todo em largos pontos do mundo onde se instalaram regimes tirânicos, guerras civis, ditaduras recentes, ameaças a democracias precá-rias, convulsões sociais, situações revolucionárias, estas mormente na América Latina.

Seria uma estupidez preconizar a mesma forma de par-tido, independentemente da matriz ideológica, no cam-po geral da esquerda pró-socialista, para todo o planeta. Nessas situações, embora com evoluções na informação de base dos militantes, seria pecado à causa não esco-lher (o termo é acertado) formas de organização mais centralizadas e mais auto-defensivas, compreendendo que apesar de tudo, mesmo aí, o grau de intervenção democrática dos militantes é uma necessidade definida. Nessas circunstâncias, as bases de apoio dos partidos legitimam as suas formas de existência e luta.

Há uma gigantesca diferença entre aproveitar e per-ceber os condicionalismos objectivos da legalidade, e ser um partido do sistema. Exige prova de facto, se-guramente, nessas democracias estabilizadas. Ninguém ignora que a prova de facto é mais intuitiva e imediata em situações de ilegalidade, ou semi-legalidade. Mesmo nestes casos nada é absoluto, veja-se o partido comunis-ta das Filipinas, ou as conhecidas FARC, com compor-tamentos execráveis.

O movimento a favor do socialismo, se no seu conteú-do recupera a democracia, deve adoptar formas organi-zativas variáveis de acordo com as circunstâncias da luta política. Aliás, seguindo a inspiração dialéctica da prática de Marx, ou de Lénine e de tantos outros até à institucio-nalização partidária social-democrata ou comunista.

Os pseudo-radicais da revolução socialista virão logo dizer que é a perda da perspectiva da dita. Nada mais falso. O papel dos partidos é a divulgação de um pro-grama alternativo em confronto com as política do sis-tema, e em coerência radicalizando em processo geral a luta de classes. Os partidos não “fazem” revoluções, Lénine esclareceu esse ponto muitas vezes, preparam-se para elas, o que não é pouco. Quando e se por efeito de levantamentos populares ou no terreno da guerra, a maioria social se envolve na reivindicação de outro tipo de poder, os defensores do socialismo precisam de se (re)organizar para terem papel no período circunscrito em que a violência irrompe como parteira da história. Dizem os mesmo críticos que se os partidos se “acomo-dam” à democracia burguesa deixam passar as revolu-ções. O que é curioso é que, infelizmente, fortes e or-todoxos partidos comunistas também deixaram passar as revoluções. Para não ir mais atrás, vejam-se os casos da Indonésia e do Chile, com os massacres conhecidos, sempre por confiança a mais no “sistema”…

A dilemática reforma ou revolução tem sentido po-lítico mas não se pode retirá-la do contexto concreto da luta de classes, dos fluxos e refluxos do movimento alternativo, da relação de forças. Ideologizar ao extre-mo, intemporalizar as questões, e ainda por cima retirar conclusões organizativas eternas, só pode por dogma-tismo condenar as vanguardas, que geracionalmente se cruzam, à impotência, à estreiteza e finalmente à capi-tulação por desgaste.

AS VARIÁVEIS E AS CONSTANTESIncentivar a ideia de que superados os formatos so-cial-democratas ou comunistas deve haver uma forma

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variável, estrategicamente escolhida e evolutiva, para os partidos da esquerda socialista, não quer dizer que essa “forma” geral não tenha princípios de organização.

Acentuou-se neste texto a questão democrática por razões perceptíveis do antagonismo político que a his-tória nos legou. Mas outros princípios são essenciais. A referência ideológica socialista só pode ser plural. Não só porque o socialismo procura respostas novas sobre múltiplos problemas da economia e da cultura política, como a ideologia não é um quadro exclusivo de referen-tes políticos, abrange a interrogação da filosofia. Não por acaso a mundividência marxista é dominante. Mas não necessariamente excludente.

O debate ideológico deve poder fazer-se também no interior dos partidos ou eles estarão deslocados dos cen-tros do saber. Fases de reagrupamento como vivemos implicam maior diferenciação filosófica. Nada de novo no movimento socialista desde os seus primórdios. Mes-mo Lénine advertiu contra o absolutismo ideológico a propósito da religião, da arte, da cultura, da economia política.

Outro princípio essencial é o pró-classismo dos par-tidos. É ponto assente, ou a luta política seria um logro, que o movimento socialista represente aquilo que teori-camente se designou por proletariado, os trabalhadores que vendem a sua força de trabalho. Actualmente, já nem é polémico (vejam-se resoluções de muitos par-tidos comunistas) que o proletariado não se confina ao operariado industrial ou agrícola e abrange largas outras camadas de assalariados. O pró-classismo dos partidos é incindível da análise de classe(s) explora-das. Só por pedantismo se fala de “classes médias”, que vivem de salários reduzidos e que realizam valor ou

garantem condições de realização de valor na economia produtiva.

Princípio chave, não mais ignorável, o da igualdade de género, com muitas implicações no modo de fazer organizações.

São traços gerais, entre outros, de fundamentos de organização apenas para desmentir o criticismo incon-gruente de que defenderíamos o espontaneísmo, o mo-vimento pelo movimento, partidos “a la carte”…

Os detractores dos partidos da “nova esquerda” troçam do que apelidam da “moda do poliformismo”. Na verdade obscurecem a visão de que se trata de um avanço mar-xista, do partido de razão. Herdeiro do racionalismo, do materialismo e da dialéctica, aberto à vida. Sem preten-são doutrinal, universal, acumulando experiências para sínteses ulteriores de percurso.

O choque social que atravessa o mundo, sob a pala-vra doce da globalização, exige mais que nunca a “forma partido”, insubstituível por redes horizontais de acção ou por constelações de plataformas ocasionais.

Também mais do que nunca importa apurar no arti-go 1º dos Estatutos (descritivo dos militantes) que se espera que o membro, para além de apoiar o programa,

defender os estatutos (ou seja a organização), colaborar, contribuir materialmente, tem na forma-partido a sua assembleia classista. A consciência do assembleísmo é a consciência da força transformadora. Não, em geral, por directiva mas por razão e escolha de argumento.

O PRÓ-CLASSISMO DOS PARTIDOS É INCINDÍVEL DA ANÁLISE

DE CLASSE(S) EXPLORADAS. SÓ POR PEDANTISMO SE FALA

DE “CLASSES MÉDIAS”, QUE VIVEM DE SALÁRIOS REDUZIDOS

E QUE REALIZAM VALOR OU GARANTEM CONDIÇÕES

DE REALIZAÇÃO DE VALOR NA ECONOMIA PRODUTIVA.

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FEMINISMO(S) E MARXISMO: UM CASAMENTO “MAL SUCEDIDO”?OS NOVOS DESAFIOS PARA UMA CORRENTE POLÍTICA DE ESQUERDA DOS FEMINISMOS

DO

SSIE

R MANUELA TAVARES, DEIDRÉ MATTHEE, MARIA JOSÉ MAGALHÃES, SALOMÉ COELHO

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [34] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

FEMINISMO(S) E MARXISMO: UM CASAMENTO “MAL SUCEDIDO”?OS NOVOS DESAFIOS PARA UMA CORRENTE POLÍTICA DE ESQUERDA DOS FEMINISMOSMANUELA TAVARES1, DEIDRÉ MATTHEE2, MARIA JOSÉ MAGALHÃES3, SALOMÉ COELHO4

OS DEBATES DAS DÉCADAS DE 1970 E DE 1980 acerca de um “infeliz” casamento entre marxismo e femi-nismos (Eisenstein, 1979, Hartmann, 1981) acabam por se projectar na actualidade, perante os desafios colocados na (re)construção de uma corrente feminista de esquerda.

Não se pretende com esta comunicação reavivar todos esses debates, mas tão só extrair deles os princi-pais pontos de referência num quadro onde as críticas pós-estruturalistas e pós-modernas não podem ser ig-noradas. Apesar das críticas pós estruturalistas terem sido úteis (Foucault, Gramsci, Laclau, Mouffle) para expor alguns excessos do estruturalismo, verifica-se na actualidade um aligeiramento da importância da críti-ca social com origem na teoria marxista ou no próprio pensamento de Karl Marx.

A força analítica e a profundidade histórica das cate-gorias e ferramentas marxistas para a análise da opres-são das mulheres foram postas em causa pelo feminismo radical da década de setenta do século XX, com base numa questão crucial: a não valorização das relações de reprodução e, como consequência, das contradições de género na sociedade. Apesar de Marx e Engels te-rem afirmado que a reprodução, ou seja, a “produção de pessoas” era tão importante como a “produção de bens”, pelo que o modo de produção teria esta dupla dimensão, o certo é que este pensamento não foi desen-volvido. Deste modo, são as feministas socialistas mar-

xistas que procuram romper com um quadro estático da teoria marxista e enriquecer a análise sobre a opressão das mulheres.

Sheila Rowbotham (1972), Juliet Mitchell (1973) Zillah Eisenstein (1980), são algumas das mais desta-cadas feministas socialistas que atentas às críticas do feminismo radical procuram abrir campo para o feminis-mo socialista, introduzindo uma análise mais complexa da opressão das mulheres, tendo em conta factores como a produção, a reprodução, a sexualidade, a socialização (Mitchell, 1973). Combatem a visão estreita de que esta opressão teria apenas como base as relações de explora-ção capitalistas. A introdução do conceito de patriarcado pelas feministas da corrente radical é acolhido junto das marxistas, que aprofundam esta análise, no sentido do capitalismo e do patriarcado não surgirem como siste-mas autónomos, mas como dois sistemas de dominação que interagiam e se alimentavam mutuamente.

Segundo a corrente feminista socialista, a divisão sexual do trabalho é essencial para a reprodução do ca-pitalismo e para manter a subordinação das mulheres. Contudo, outros factores de dominação são considera-dos. As discriminações sobre as mulheres surgem não apenas na sua relação com o sistema económico, mas com o sistema de uma dominação masculina hegemó-nica. Não se trata de dar primazia ao género ou à classe social, mas entrelaçar estes eixos de dominação entre

si e com outros, considerados esquecidos pela própria corrente socialista-marxista do feminismo, a etnia e a orientação sexual.

Apesar dos esforços das feministas socialistas mar-xistas para fomentarem o tão desejado reencontro entre feminismos e marxismo, os estragos de um marxismo impregnado de dogmatismo fizeram-se sentir até aos tempos actuais.

Neste século, em relação aos feminismos, está coloca-do um duplo desafio ao marxismo: encontrar respostas teóricas que ficaram por dar às críticas feministas das décadas de 1970 e de 1980; enfrentar os novos desafios da crítica pós-moderna lançando as bases para uma cor-rente feminista de esquerda, capaz de ter pensamento e acção mobilizadora face à corrente neoliberal e ins-titucional do feminismo, que tem vindo a dominar na Europa. Neste quadro de globalização neoliberal, cabe às e aos marxistas de hoje criar condições para que a luta feminista dispute terreno ao neoliberalismo no pen-samento e na agenda política.

Esta comunicação irá procurar dar alguns contribu-tos neste sentido, focando os seguintes aspectos: con-tributos e limitações do marxismo; os estragos do dog-matismo; o peso da corrente neoliberal dos feminismos; ligações e tensões entre feminismo e pós-modernidade; os desafios actuais: a (re)construção de uma corrente política de esquerda dos feminismos.

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AS ORIGENS DO FEMINISMO: CONTRIBUTOS E LIMITAÇÕES DO MARXISMOAs origens históricas do feminismo situam-se na esquer-da, enquanto projecto da modernidade, embora eivado de contradições no assumir da cidadania das mulheres. Filho não desejado do iluminismo, o feminismo surgiu em sinal de protesto5, pelo facto do tempo dos direitos não ter sido ainda o tempo das mulheres para os princi-pais mentores da revolução francesa.

Os novos contributos para o feminismo surgem quase um século depois, por via dos socialistas utó-picos6, de mulheres como Jeanne Désirée, fundadora do jornal La Femme Libré, Claire Demar, Pauline Ro-land, Flora Tristan, Jeanne Deroin e de homens como J. Stuart Mill ou ainda de Louise Michel pelo seu papel na “Comuna de Paris”. Contudo, é no pensamento de Marx e de Engels que se estrutura a análise das raí-zes históricas da opressão das mulheres e se produ-zem as principais ferramentas teóricas para entender as relações de poder e a sua reprodução no processo de opressão e exploração das mulheres. Como foi sig-nificativo que, em 1884, Engels tivesse afirmado que com o desmoronamento do direito materno “a mulher se viu convertida em servidora, escrava da luxúria do homem e em simples instrumento de reprodução”. 7

Como foram importantes as posições de Auguste Be-bel, de Marx e de Engels contra as posições proudho-niana, que condenavam o trabalho das mulheres fora de casa, ou de Rosa Luxemburgo opondo-se ao Partido Operário Belga, que excluía as mulheres do sufrágio universal, ou ainda de Alexandra Kollontai, que de forma arrojada ultrapassou os limites consensuais do

pensamento marxista estabelecido, incorporando na sua análise factores mais alargados para a emancipa-ção das mulheres como a sexualidade e a revolução das mentalidades.

Desvalorizar o alcance histórico destes contributos não é apenas cegueira. É fazer do marxismo uma “bíblia” que tem de ser seguida independentemente da evolução dos tempos e das limitações marcadas pelos contextos de cada época histórica. Como afirma Barbara Marshall: “To speak of Marx is one thing; to speak of Marxism is quite another”,8 na medida em que a história do mar-xismo tem de ser pontuada por debates, clarificações, reinterpretações e reflexões críticas.

Não esperemos pois que Marx e Engels tivessem respostas para tudo. O que importa entender é a sua base fundamental de análise crítica, o método histórico, a abertura de perspectivas que tornariam possíveis no-vos desenvolvimentos do marxismo. Deste modo, consi-deramos como principais contributos do marxismo para o feminismo:

– A desnaturalização da opressão das mulheres, combatendo o determinismo biológico.

– Uma análise histórica das origens da opressão das mulheres, que embora limitada em alguns campos, abriu perspectivas para aprofundamentos futuros.

– A análise marxista permitiu entender a família como um fenómeno social em evolução e estabelecer a ligação entre mudanças estruturais nas relações familia-res e mudanças na divisão sexual do trabalho.9

– Para o feminismo é importante a ligação que o marxismo faz entre ideologia e interesses materiais e o seu papel na reprodução de formas específicas de rela-ções de poder na sociedade.

As limitações do marxismo na área do feminismo acentuaram-se com a dogmatização teórica, que colocou de lado, como anteriormente foi referido, os contributos das feministas socialistas-marxistas no aprofundamento da análise das raízes da opressão das mulheres e da se-xualidade como território de exercício de poder.

OS ESTRAGOS DO DOGMATISMO E OS CONTRIBUTOS DAS FEMINISTAS SOCIALISTAS PARA ALTERAR A VISÃO ESTÁTICA DO MARXISMOA dogmatização do marxismo trouxe estragos que leva-ram a um afastamento dos feminismos. Importa enten-der que limitações surgiram neste campo. Em primeiro lugar, uma visão limitada dos feminismos. O feminismo não foi entendido nas suas diversas correntes e foi mes-mo banido do vocabulário político marxista. Também o não reconhecimento do peso das contradições de género na sociedade teve como origem a ideia de que a con-tradição capital/trabalho absorvia todas as outras: de género, etnia, orientação sexual, o que provocou para além da perda de factores democráticos, a erosão da base social das primeiras experiências de socialismo.

Em segundo lugar, o pensamento esquemático em diversos aspectos. A ligação que se estabeleceu entre emancipação da mulher e propriedade privada, “A eman-cipação da mulher será fruto da eliminação da proprie-dade privada” – esta foi uma frase que ficou célebre, procurando traduzir a necessidade da alteração da base material da sociedade, para que se criassem condições para a emancipação das mulheres. O esquematismo nes-te pensamento produziu os seus efeitos na secundariza-ção da luta mais específica das mulheres.

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A VISÃO DOGMÁTICA DO MARXISMO NÃO VALORIZOU OS CONTRIBUTOS DAS FEMINISTAS SOCIALISTAS/MARXISTAS

QUE, NA DÉCADA DE 1970 E DE 1980, ALERTARAM PARA O FACTO DAS RELAÇÕES DE GÉNERO ASSUMIREM

UMA GRANDE IMPORTÂNCIA, NÃO SÓ NO CAPITALISMO COMO NO SOCIALISMO,

POIS A DOMINAÇÃO MASCULINA CONTINUAVA A FAZER-SE SENTIR NAS RELAÇÕES DE PODER.

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Também a simples “equação” mulher na produção = independência = emancipação foi encarada como uma questão quase imediata, que não ajudou ao aprofunda-mento teórico. Se “o primeiro passo para a emancipação da mulher é a sua integração no mercado de trabalho”, a vida tem provado que esse passo fica tolhido se não se tiverem em conta as duplas e triplas tarefas que ainda pesam sobre a vida das mulheres e as relações de domi-nação/subordinação que marcam as contradições de gé-nero. Estudos recentes como o de Cláudia Nogueira, afir-mam que “a crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho tem sido acompanhada por um significativo processo de precarização da força de trabalho feminina”. Acresce ainda, que “as suas tarefas reprodutivas conti-nuaram em grande medida inalteradas”. Tal permite observar que as mulheres trabalhadoras continuam a as-sumir funções produtivas e reprodutivas, o que significa a manutenção da dupla jornada de trabalho e “uma outra forma de precarização imposta pelo capital à mulher”.10

O marxismo também não levou até às últimas con-sequências a análise de Engels que permitia uma outra profundidade no estudo da relação sexual como um território de poder. “O ângulo classista não basta para ler e interpretar o código desta relação sexual...É que a fundamentação ideológica deste registo ultrapassa a re-alidade da classe e legitima-se directamente na ideologia sobre o feminino e o masculino, na polaridade, entendida de base biológica, da mulher como elemento passivo e do homem como activo”.11

Considerando que a alteração das relações de produ-ção constitui um factor essencial num caminho emanci-patório das mulheres, a visão dogmática do marxismo não valorizou os contributos das feministas socialis-

tas/marxistas que, na década de 1970 e de 1980, aler-taram para o facto das relações de género assumirem uma grande importância, não só no capitalismo como no socialismo, pois a dominação masculina continuava a fazer-se sentir nas relações de poder. Esta é de facto uma luta política e cultural a passar por medidas concretas sem tempo de espera para novas consciências sociais adquiridas ao longo dos anos.

Procurando responder a críticas da corrente radical do feminismo em relação ao marxismo, algumas feminis-tas socialistas/marxistas aprofundaram alguns aspectos do marxismo que foram ignorados pela corrente oficial. Perderam-se, desta forma, contributos teóricos que te-riam sido essenciais para o pensamento marxista numa perspectiva de evolução desta corrente política. Juliet Mitchell escreve em 1973 Woman’s Estate, reconhecen-do o patriarcado como um sistema de dominação mascu-lino relacionado com o sistema económico e as relações de produção. Sheila Rowbotham escreve em Women, Resistance and Revolution (1972) que é necessário ter em conta tanto as relações sociais de produção como as de reprodução em qualquer teoria revolucionária. Zillah Einsenstein considera que uma compreensão separada do capitalismo e do patriarcado não pode abarcar o pro-blema de opressão das mulheres. (Patriarcado capitalista e Feminismo Socialista – 1980).

O enfoque da opressão das mulheres é enriquecido pelo feminismo marxista que pegando na análise de En-gels de que o desmoronamento do direito materno tinha sido a primeira derrota do sexo feminino e de que “a mu-lher se viu convertida em servidora, escrava da luxúria do homem e em simples instrumento de reprodução”12, alargou o conceito de opressão das mulheres, não só

enquanto classe, mas enquanto mulheres subordinadas ao poder masculino.

Heidi Hartmann escreveu, em 1980, sobre um casa-mento mal sucedido entre marxismo e feminismo e da necessidade de uma reaproximação.13 Qualquer tentati-va de reencontro só poderá ser feita se o marxismo for encarado como uma ciência viva em constante evolução. Se souber dar novas respostas cortando com o dogma-tismo em que assentaram as primeiras experiências de socialismo incapazes de alterar a hierarquia de género perdendo, por este e outros motivos, o carácter emanci-pador anunciado.

O reencontro entre marxismo e feminismo passa por se entenderem os desafios hoje colocados, neste quadro de globalização, em que se alargam os espaços para o feminismo, com milhares de mulheres a ganharem cons-ciência da sua situação de subalternidade.

Segundo Maria José Magalhães, é necessário apro-fundar de que forma a subordinação das mulheres se articula com a exploração capitalista e a opressão das pessoas em função da “raça”, da “etnia” e da orientação sexual. “É isto que um feminismo liberal não consegue oferecer. Incapaz de compreender de que forma a posi-ção subordinada das mulheres se encaixa num conjunto de outras subordinações e opressões, o feminismo liberal impede um trabalho conjunto com outros movimentos sociais, fracturando alianças e obstaculizando acções em prol da transformação global da sociedade”.14

Existe uma profunda contradição entre o discurso neoliberal e de direita e o espaço para o feminismo que se tem vindo a criar na última década. Há que entender as contradições que estão colocadas a este nível, mesmo no seio das classes dominantes.

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A CORRENTE LIBERAL E INSTITUCIONAL DO FEMINISMO, O ADVENTO DO FEMINISMO DE DIREITA E A NECESSIDADE DE UMA CORRENTE POLÍTICA DE ESQUERDA DOS FEMINISMOSPelo contexto histórico vivido, o feminismo liberal as-sume, actualmente, contornos “neo-liberais”, que impe-dem a incorporação de factores de transformação social emancipatórios. Tomando como exemplo as antigas aspirações do feminismo liberal para que as mulheres se afirmassem profissionalmente e combatessem o seu estatuto de “donas de casa” (Betty Friedan, 1963), as-siste-se na actualidade a um “empurrar” das mulheres para o trabalho a tempo parcial, para que exista “um equilíbrio entre vida profissional e familiar”. As discri-minações salariais das mulheres em relação aos homens, apesar das leis que proíbem tal situação, têm como origem a concepção de que o trabalho da mulher fora de casa assume sempre um conteúdo suplementar no “ganha-pão” da família, assim como a crescente gende-rização segmentada do mercado de trabalho representa uma das falências do feminismo liberal ao considerar que medidas legislativas sobre igualdade seriam o ga-rante dessa mesma igualdade.

Deste modo, a ideia de que a igualdade formal atri-bui as condições necessárias e suficientes para que as mulheres possam alcançar os seus direitos constitui um pano de fundo de toda a actuação desta corrente do feminismo, embora se registem algumas “nuances” perante a falência de tal pressuposto.

Para Chantal Mouffe, “as feministas liberais têm vindo a lutar por um largo conjunto de novos direitos

para as tornar iguais cidadãs, mas sem transformar o modelo liberal da política e da cidadania”. (MOUFFE, 1992:373).

A ideia de que, estando consignados nas leis os direi-tos, as mulheres poderiam, por elas próprias, através da sua autodeterminação alcançar poder e sucesso come-çou a fazer percurso teórico. Naomi Wolf defendia, em 1993, no seu livro “Fire with Fire”, o “poder feminista”. Este consistia na recusa da vitimação da mulher e na realização dos seus objectivos de vida com sucesso, na base de um caminho individual de autonomia e “self-de-termination”.

O discurso neoliberal surge, assim, na lógica indivi-dual dos percursos de cada mulher. Para que servem as lutas feministas se cada mulher pode, por mérito pró-prio, atingir a igualdade e o sucesso? Uma cultura de competitividade individual ganha peso, esquecendo-se as circunstâncias sociais, que podem restringir as opor-tunidades de cada mulher. A igualdade de oportunida-des existe porque o quadro legislativo consigna direitos, mas não quer dizer que as leis sejam aplicadas. Contudo, as “discriminações positivas” são encaradas como me-didas proteccionistas e paternalistas das mulheres, com base em afirmações como a de Margaret Thatcher: “Eu tive sucesso por mérito próprio; as mulheres não deve-riam esperar por especiais favores ou tratamento”. A materialização dos direitos é considerada uma questão de evolução das mentalidades. Desvaloriza-se o papel do Estado na criação de condições sociais. A socióloga Nancy Fraser considera que uma das falhas da retórica liberal é proclamar uma igualdade sem procurar iguali-zar as condições sociais através de um paradigma redis-tributivo (FRASER, 1999).

O feminismo liberal nos tempos actuais acaba por estabelecer pontes com o neoliberalismo, tomando como realidade as mulheres brancas da classe média e igno-rando as enormes desigualdades sociais existentes entre as mulheres de diferentes classes sociais e “raças”.

Também a configuração contemporânea da “cida-dania feminina”, assente em pressupostos liberais, tem vindo a ser alvo da crítica feminista, como refere Diana Coole ao considerar que as mulheres foram posiciona-das como “cidadãs”, perante um conjunto de contradi-ções: a sua inserção na história nos termos masculinos ou a da identificação com esse mesmo poder (COOLE, 1995:225). Uma concepção liberal abstracta de “cida-dão” como uma linguagem universal neutra mascara as diferenças existentes e reproduz um discurso baseado numa masculinidade hegemónica de onde as mulheres são excluídas. Não se trata de uma linguagem de in-clusão, mas sim de exclusão. Carole Pateman (1997), considera que as mulheres foram excluídas do espaço público e do projecto de cidadania, apesar de serem “emancipadas” em termos de retórica oficial.

Segundo a socióloga Madeleine Arnot:“As formas de cidadania existentes fundamentam-se

na exclusão das mulheres do poder e na falta de reco-nhecimento das diferenças na vida política. Estes ideais abstractos de cidadania parecem não considerar as ex-periências vividas pelas mulheres (...). Ao mesmo tempo, argumentamos que é necessário ser-se prudente na atri-buição de demasiada esperança a um projecto de cidada-nia baseado num conjunto de «liberdades» ilusórias, que se reformula repetidamente no quadro político liberal (ou no mais recente, neo-liberal), que não cumpriu a promessa de conferir a todas as mulheres, independen-

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SEGUNDO A INVESTIGADORA SONIA ALVAREZ, COMEÇOU A EXISTIR, A PARTIR DA CONFERÊNCIA DE PEQUIM,

UMA “ABSORÇÃO” POR PARTE DAS INSTITUIÇÕES GOVERNAMENTAIS DOS ELEMENTOS DO DISCURSO FEMINISTA.

ESTA FASE TERIA COINCIDIDO COM UMA MAIOR PROFISSIONALIZAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES

NÃO GOVERNAMENTAIS LIGADAS À DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [40] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

temente da sua posição social, um estatuto de cidadania plena” (ARNOT, 2003:36-37).

A investigadora feminista Íris Marion Young coloca também em causa uma cidadania universal que dilua as diferenças, pois tal concepção prejudica os grupos mais desfavorecidos. Defende uma cidadania diferenciada, que permita alcançar, de forma universal, a igualdade e a justiça. Defende ainda um conjunto de mecanismos, que permitam a representação com voz dos diversos grupos excluídos, entre os quais as mulheres (YOUNG, 1996).

A política virada para o “empowerment” de cada mulher, para que por si só, possa alcançar ascendência económica, social e política, desde que seja assertiva, empreendedora e competente tem vindo a ganhar peso. Também a competitividade entre as mulheres da mesma base social é vista como um factor de empoderamento, utilizando inclusivé os modelos masculinos de ascen-dência ao poder. A ideia de que o acesso das mulheres ao poder político é, por si só, um factor transformador da sociedade é outra das ideias que se mantém nesta corrente. Também as estratégias colectivas se resumem, muitas vezes, no “lobby” junto do poder político.

A tendência crescente para a institucionalização das acções, atribuindo menor papel à acção associativa das mulheres tem vindo a ganhar peso, numa perspectiva de “feminismo institucional” bem patente nos planos go-vernamentais para a igualdade, que, em Portugal, têm deixado cada vez menor espaço para a actuação das as-sociações e ONGs de defesa dos direitos das mulheres.

Segundo a investigadora Sonia Alvarez, começou a existir, a partir da Conferência de Pequim, uma “absor-ção” por parte das instituições governamentais dos ele-mentos do discurso feminista. Esta fase teria coincidido

com uma maior profissionalização das organizações não governamentais ligadas à defesa dos direitos das mulhe-res. Também a historiadora Mary Nash considera que a incorporação do vocabulário feminista na agenda dos governos de certos países tem sido entendida como uma manifestação de força do feminismo, mas que na prática se trata de uma apropriação do feminismo pelo Estado e pelas instituições. (NASH, 1996:12)

A “absorção” do discurso feminista pelo Estado dá-se de uma forma selectiva, segundo Sónia Alvarez, ao analisar os feminismos latino-americanos. Ao fazer a absorção, o Estado acaba por alterar a “demanda”, ou seja, as reivindicações feministas são “re-significadas”. (ALVAREZ, 1998) Segundo Cecília MacDowell Santos, no seu estudo sobre as delegacias de polícia de mulheres em S. Paulo e o movimento feminista, o discurso femi-nista sobre a violência alterou-se no sentido da terapêu-tica médica, de uma substituição do discurso da “identi-dade ou consciência feminista” pelo do empoderamento ou “capacitação de género”, ao que veio associar-se o conceito de “violência de género” em substituição do de “violência sobre as mulheres”.15 Contudo, para as duas autoras, a questão para as feministas não é que as suas reivindicações sejam ou não incorporadas pelo Estado, mas um questionamento constante da forma como são construídas as políticas governamentais baseadas no género.

O feminismo institucional está “preso” às políticas institucionais para a igualdade sem uma base feminista de questionamento. As formas de activismo mais co-mum nesta corrente são as que se ligam a grupos de pressão junto do poder político ou de instituições nacio-nais ou internacionais, no sentido de terem esferas de

representatividade junto do poder. Não existe por parte desta corrente a necessidade de uma “agenda feminista própria”.

A necessidade da re (construção) de uma corrente política de esquerda do feminismo surge como forma de retirar espaço ao feminismo liberal e institucional dominante na Europa, como pelo advento de uma cor-rente feminista de direita que ganha alguns contornos preocupantes.

Quando Susan Faludi publicou, no início dos anos noventa, o seu livro, Backlash16, ela criticava as ideias então divulgadas na sociedade norte-americana de que as mulheres tinham alcançado a igualdade de direitos, tinham conseguido aceder a brilhantes carreiras pro-fissionais e a lugares no poder económico e político, sem que, contudo, fossem, por isso, mais felizes. Estu-dos de diversas universidades afirmavam que o mito da independência feminista tinha caído, pois as mulheres tinham-se transformado em “seres amargurados, ca-rentes de amor, desumanizadas pelas próprias carrei-ras profissionais e inseguras quanto ao seu verdadeiro sexo”. (FALUDI, 1993:13)

Este balanço pessimista sobre a luta feminista das décadas de 1960 e 1970 associava-se ao furor dos políti-cos da Nova Direita na condenação da independência das mulheres e às manifestações dos movimentos anti-esco-lha contra o aborto, chegando mesmo a lançar bombas incendiárias sobre as clínicas que o praticavam.

Numa entrevista ao jornal “Sunday Times”, em 1995, Susan Faludi declarava:

“Nos anos 80 os adversários das feministas tinham como princípio “a cenoura e o baton”. Hoje, não conhe-cem mais do que o baton. Vão desde os métodos brutais

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de intimidação e de violência dos grupos anti-aborto, até à diabolização da teoria e da prática feminista, passando pelo desmantelamento da rede de apoio social, que atin-gem em especial as mulheres”.

Alguns dos pressupostos desta ofensiva contra o fe-minismo servem hoje de base a um feminismo neo-con-servador ou de direita, que tem vindo a ganhar terreno não só nos Estados Unidos como em alguns países eu-ropeus.

A economista alemã Eva Herman é autora de um “tratado” de 262 páginas contra o feminismo, no seu li-vro: O Princípio de Eva onde afirma: “Fomos facilmente seduzidas pelas oportunidades de carreira, quando de facto é mais salutar o mundo saudável e colorido das crianças e a atmosfera do lar, em vez de um local de trabalho frio e nalguns casos solitário”. Eva Herman e Christa Muller são protagonistas de uma campanha na Alemanha para reivindicar mais ajuda para as donas de casa de modo a que as mulheres troquem o seu emprego pelo cuidado da casa e da família.17

A deputada norueguesa do partido democrata-cris-tão Janne Haaland Matláry publicou, no início do ano 2000, o livro Para um Novo Feminismo,18 onde acusa o “velho feminismo” das décadas de 1970 e 1980 de ter desprezado a família e a maternidade e da falta de uma visão antropológica baseada no reconhecimento da di-ferença entre os sexos, negando a autenticidade dessa diferença.

“As mulheres nunca conseguirão ser felizes enquanto não compreenderem quão profundamente a maternida-de define a sua feminilidade. (...) O verdadeiro radica-lismo da emancipação consiste na liberdade de sermos verdadeiramente nós mesmas, de sermos mulheres «em

termos femininos». (...) Precisamos de um novo feminis-mo que terá de partir do princípio de que a maioria das mulheres é mãe ou deseja sê-lo, de que as mulheres são diferentes dos homens e têm qualidades diferentes das deles e de que uma igualdade que respeite esta diferença implica que devemos deixar de ter a obrigação de imitar os homens”.19

Em Portugal, algumas posições anti-feministas as-sumidas por mulheres que estavam contra a despenali-zação do aborto confundem-se com as ideias deste femi-nismo neo-conservador de direita. Algumas das ideias difundidas baseiam-se, tal como aconteceu nos Estados Unidos, nas fracas taxas de natalidade, na sobrecarga de trabalho para as mulheres que assumem uma actividade profissional, na falta de acompanhamento às crianças, no aumento da esterilidade, nas depressões e no maior uso de anti-depressivos, na necessidade de maior protecção à família como portadora de valores essenciais para o funcionamento da sociedade.

Janne Haaland Matláry refere que na Noruega exis-te um número cada vez maior de mulheres a dedicar-se à família: “Devemos igualmente interrogar-nos se o trabalho político é mais importante do que cuidar dos nossos próprios filhos. Muitas mulheres dão-se conta que só elas podem ser as mães dos seus filhos, ao passo que os lugares políticos podem ser ocupados por muitas outras pessoas. (...) Aquilo que conta em termos huma-nos é a pequena sociedade familiar”.20

As mulheres são desta forma valorizadas em função da maternidade e do cuidado com a família, embora não exista uma postura clara contra o trabalho das mulhe-res fora de casa ou contra a sua participação política. A mesma autora, no epílogo do seu livro afirma:

“Parti do princípio de que homens e mulheres são diferentes por natureza e que têm, portanto, diferentes qualidades e talentos com os quais podem contribuir para a vida social e política. (...) Não tenho dúvida de que as mulheres são, em muitos aspectos, o chamado «sexo forte». Mas isto apenas significa que, para serem fortes, as mulheres devem ser elas mesmas, já que são fortes por natureza. Qualquer imitação do homem faz com que a mulher deixe de ser autêntica, originando neuroses e frustrações em vez de força. As mulheres mudarão o mundo, sempre o fizeram. (...) É este o tempo de pôr mãos à obra”.

Apela-se à “natureza” da mulher em nome da sua afirmação. Embora sem peso significativo em Portugal os contornos desta corrente feminista de direita não dei-xam de estar presentes.

LIGAÇÕES E TENSÕES ENTRE FEMINISMO E PÓS-MODERNIDADEAs implicações no feminismo das perpectivas da pós-modernidade centram-se nas seguintes questões: a desconstrução do “sujeito mulher”; a recusa da grande narrativa da opressão da mulher, da ordem patriarcal e do fim da opressão; o reconhecimento da diversidade das necessidades e experiências das mulheres; o aban-dono da noção de situações únicas e universais; a crítica ao essencialismo; o abandono do conceito de patriarcado como totalizador, ahistórico e essencialista.

As relações entre o feminismo, a teoria pós-estrutu-ralista e a teoria pós-moderna21 não têm sido fáceis, na medida em que existem posições diferentes entre as fe-ministas, quanto à aplicação destas teorias ao feminismo. Para a feminista Chris Weedon nem todas as formas de

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AS CRÍTICAS FEMINISTAS MAIS RADICAIS À PÓS-MODERNIDADE SURGEM BASEADAS NA ARGUMENTAÇÃO

DE QUE O PENSAMENTO “PÓS-MODERNO” É APOLÍTICO, AHISTÓRICO, IRRESPONSÁVEL E CONTRADITÓRIO”

E QUE PROCURA DESTRUIR O MOVIMENTO FEMINISTA, NA MEDIDA EM QUE NEGA A SUA ACÇÃO COLECTIVA.

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pós-estruturalismo22 são produtivas para o feminismo. Contudo, o feminismo e o pós-estruturalismo partilham uma preocupação com a subjectividade: “O movimento feminista (da década de 1970) começou com a política do pessoal, desafiando o indivíduo unificado do libera-lismo aparentemente despenalizado e sugerindo que, na sua cegueira em relação ao género, o humanismo liberal mascarava as estruturas de privilégio e dominação mas-culinas”. (WEEDON, 1989:41)

Para algumas feministas, o pensamento pós-moder-no ao descontruir o sujeito “mulher” e a ideia de um mo-vimento feminista baseado na “retórica” de uma solida-riedade feminista sustentada nos interesses das mulhe-res brancas da classe média, introduziu a dimensão da fragmentação e da diferença, essenciais para que outras dimensões do feminismo surgissem como, por exemplo, o “feminismo negro”. A feminista negra Heidi Mirza argumentou mesmo que o pensamento pós-moderno “permitiu a celebração da diferença, o reconhecimento da diversidade, a presença de múltiplas e variáveis sub-jectividades”. (MIRZA, 1997:19)

Existem também perspectivas feministas que esta-belecem a semelhança do discurso pós-moderno com algumas ideias do feminismo radical da década de 1970, em especial na identificação da cultura e da linguagem como fontes de poder e resistência, expressas na obra de Kate Millet: Sexual Politics ou, ainda, com as noções de Foucault sobre a resistência dos grupos marginali-zados.23

Segundo a investigadora Conceição Nogueira, “a afinidade entre o feminismo contemporâneo e a teoria pós-moderna parece residir no facto de partilharem um profundo cepticismo sobre as reivindicações universais,

acerca da existência, da natureza e do poder da razão, do progresso, da ciência, de um self único e unificador. Nomes como os de Jane Flax, Donna Haraway, Nancy Fraser, Linda Nicholson, Sandra Harding, Susan Bordo, Nancy Hartsock ou Christine Di Stefano são, segun-do Conceição Nogueira, “importantes referências para o pós-modernismo, umas pela defesa e esperança que nele depositam, outras pelo seu posicionamento crítico”. (NOGUEIRA, 2001 a:158-159)

As críticas feministas mais radicais à pós-moder-nidade surgem baseadas na argumentação de que o pensamento “pós-moderno” é apolítico, ahistórico, irresponsável e contraditório” e que procura destruir o movimento feminista, na medida em que nega a sua acção colectiva. É um facto que a negação da possibilida-de das mulheres se identificarem como “grupo” impede que a dominação sobre as mulheres seja vista como uma questão estrutural, dificultando as formas colectivas de resistência e transformação.

Para a filósofa feminista Célia Amorós “a ligação entre feminismo e a pós-modernidade constitui uma ligação perigosa”:

“A Modernidade não teve que esperar pelo pós-mo-dernismo para gerar as suas próprias autocríticas e ge-rar um feminismo criticamente moderno. Os teóricos pós-modernos que se têm dedicado à desconstrução do sujeito, apenas têm desconstruído a versão inverosímil do sujeito da modernidade. A morte do sujeito ou a sua desconstrução não é compatível com os objectivos do feminismo. (...) O feminismo aposta numa sociedade de sujeitos verosímeis, liberta da hierarquia que oprime os géneros e que propicie melhores condições para a reali-zação da prática dos sujeitos. (...) O feminismo pressupõe

um sujeito mínimo para ser possível a sua aposta num projecto de sociedade onde possa surgir um sujeito má-ximo, entendido com um grande nível de autonomia e capacidade crítico-reflexiva”. (AMORÓS, 1997:24-26)

Ainda, segundo Célia Amorós, a questão do sujeito é de uma importância crucial para o feminismo e por isso muitas feministas não validam o certificado de disfunção que deriva do diagnóstico pós-moderno: “Não se quer com isto dizer que os mortos que a pós-modernidade mata gozem de muita boa saúde, mas que os sintomas em que se basearam para os dar como falecidos são com-plexos, ambíguos e susceptíveis de outras interpretações (...) Cabe perguntar perante tudo isto, como faz a teórica feminista Françoise Collin, parafraseando Hemingway: «Por quem dobram os sinos? Que ganha o feminismo com estes funerais?» (...) Há quem queira bailar sobre a sua tumba, porque a libertação «autêntica» das mulhe-res passa pela morte do mito da emancipação do sujeito da modernidade.” (AMORÓS, 1997: 320-321)

Para Virgínia Ferreira, a desconstrução pós-estru-turalista do sujeito traz sérias implicações.

“O desafio representado por este novo sujeito des-centrado para o feminismo é duplo: por um lado, deixa de contar com um referente, em nome do qual pode rei-vindicar e lutar pela mudança social; mas, por outro, não pode auto-dissolver-se, uma vez que as mulheres «re-ais» foram e continuam a ser oprimidas, sendo objecto de práticas de violência e discriminação que «existem» independentemente da sua articulação discursiva, e os meios e modos dessa opressão devem continuar a ser analisados, pelo que há que encontrar uma forma não essencialista de definir as mulheres como «colectivo so-cial» que não postule uma identidade estável e coerente

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de «mulher». A não ser assim, resta a perspectiva do individualismo liberal que não deixa outras alternativas senão culpabilizar as vítimas pela opressão de que são objecto, acusando-as de não fazerem as escolhas acerta-das e conducentes ao sucesso social (...)”.24

Segundo Íris Young “negar a realidade das mulhe-res como um colectivo reforça o privilégio daqueles que beneficiam da sua opressão mantendo-as divididas” (YOUNG, 1997:18). Por isso, esta investigadora propõe substituir o conceito de “grupo” pelo de “série”. Deste modo, as mulheres não pertencem a um grupo que as-sume uma identidade e um projecto comum, mas a uma “série”, que pressupõe um colectivo onde cada mulher pode ter as suas próprias experiências e características e que se “unem” ou encontram para partilhar expectativas de transformação social. Pertencer a uma série não im-plica, desta forma, uma identidade comum mas apenas uma factualidade social e histórica.

Para Maria José Magalhães (2004A), um dos perigos das teorias pós-modernas é o da erosão de uma análise global da sociedade, que nos permita compreender as raízes estruturais e históricas da subordinação e opres-são que enfrentamos em cada momento e em cada ter-ritório. Contudo, valerá a pena reflectir sobre alguns contributos das teorias pós-modernas para o feminismo, apesar dos riscos que se colocam na acção transforma-dora e emancipatória.

“Uma teoria feminista, hoje, para ser verdadeira-mente emancipatória não pode ser universalista. Não pode pretender que todas as mulheres se identifiquem nas mesmas categorias de análise como se estas pudes-sem cobrir a diversidade das situações e experiências. As feministas negras, as lésbicas, as das sociedades e cultu-

ras não ocidentais têm criticado o carácter muitas vezes branco, heterossexual e colonizador de muitas análises da opressão e subordinação das mulheres. Daí que seja necessário substituir as noções unitárias de “mulher” e de “identidade de género feminino” por concepções plu-rais e complexamente construídas de identidade social, vendo o género como uma das questões relevantes, entre muitas outras como a classe, a “raça”, etnia, orientação sexual, idade, capacidade, religião”. (MAGALHÃES, 2004a:14)

Deste modo, a teoria pós-moderna deve assentar em múltiplas categorias, imbuídas de temporalidades não universalistas. “Os métodos devem ser mais compara-tivos, atentos às mudanças e aos contrastes, em vez de procurarem leis; devem evitar o conforto metafísico de um único método feminista ou de uma epistemologia feminista”. (NOGUEIRA, 2001b:54)

É um facto que a crítica pós-moderna levanta ainda outros questionamentos: será que o pós-modernismo ao propor o abandono de todas as generalizações não conduz a uma política individualista? Será que o sujeito pós-moderno fragmentado não é uma nova encarnação do sujeito masculino com origem no iluminismo? Como sobrevive o activismo feminista a esta derrocada do edi-fício teórico, que tem sustentado a prática feminista?

Muitas outras interrogações têm sido colocadas por investigadoras feministas como Nancy Fraser, Susan Bordo, Christine Di Stefano ou Nancy Hartstock, entre outras. Contudo, as desconfianças não eliminam os de-safios que estão colocados à teoria feminista. Por isso, Nancy Fraser e Linda Nicholson não colocam de lado a crítica pós-moderna, antes retiram dela o que pode ser importante para o feminismo: a crítica ao essencialismo

e a necessidade do pluralismo e da diversidade. Todavia, consideram que o pós-modernismo pode estar embuído de androcentrismo, de fraquezas no criticismo social e de alguma “ingenuidade política”. Pensam, por isso, que será possível combinar o poder social crítico do feminis-mo para analisar o sexismo, com uma certa incredibili-dade face às “metanarrativas”. Mas, as mesmas autoras apontam a importância de manter uma análise histó-rica da situação da opressão, porque o sexismo existe e as relações de poder entre mulheres e homens não se reduzem a um aspecto da vida social. Deste modo, “a teorização deve ser explicitamente histórica, atenta às especificidades culturais das diferentes sociedades e períodos, e aos grupos dentro dessas mesmas socieda-des, isto é, que localize e situe as categorias dentro de campos históricos, e evite o perigo de generalizações falsas”. (NOGUEIRA, 2001 a:164)

A emergência de um novo sujeito feminista estará, de facto, colocada? Um sujeito feminista multifacetado em termos de classe social, etnia, idade, orientações se-xuais, culturas e estilos de vida? Segundo a investiga-dora Rosi Braidotti,

“Há necessidade de recodificar ou renomear o sujeito feminista, não mais como um sujeito soberano, hierár-quico e segregador, mas antes como uma entidade múl-tipla, aberta e em sintonia. (...) Uma nova natureza está a surgir enfatizando a natureza específica e corporizada do sujeito feminista em detrimento de essencialismos biológicos ou psicológicos. (...) Pensar construtivamente sobre a mudança no pensamento feminista contempo-râneo requer uma visão do sujeito não como unidade, mas como um ser multifacetado com posições ainda não codificadas, mas fascinantes”. 25

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O FEMINISMO SOCIALISTA-MARXISTA PRECISA DE ACTUALIZAÇÃO TEÓRICA E DE ENTENDER OS CONTRIBUTOS QUE RECEBEU

DA CORRENTE RADICAL DO FEMINISMO E, AINDA, QUE O “FEMINISMO LIBERAL” ALARGOU O SEU ESPAÇO, COMO REFLEXO

DA PRÓPRIA “INSTITUCIONALIZAÇÃO” DO FEMINISMO E DO AVANÇO DAS IDEIAS NEO-LIBERAIS NO MUNDO ACTUAL.

ESTE ESPAÇO TEM DE SER DISPUTADO POR UMA NOVA CORRENTE POLÍTICA DE ESQUERDA DOS FEMINISMOS.

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Será que a desconstrução das identidades, torna impossível a luta feminista? Para Chantal Mouffe, esta desconstrução deve ser entendida como condição neces-sária para a compreensão da diversidade das relações sociais, sendo que tal abordagem é importante para as lutas feministas e para todas as lutas contemporâneas. Não se trata, segundo esta autora, de uma total disper-são das posições do sujeito, mas de uma articulação, es-tabelecendo uma “cadeia de equivalências entre as diver-sas lutas num projecto de democracia radical e plural”. (MOUFFE, 1996:104-105)

Deste modo, as teorias feministas na actualidade po-dem situar-se entre o pensamento moderno e pós-mo-derno, num processo de reformulação, que implica um diálogo, não isento de contradições, entre diversas correntes teóricas. O desenvolvimento das teorias fe-ministas podem responder a estes novos desafios e aos contextos de um mundo globalizado, onde crescem as desigualdades e as discriminações de género, de classe, de “etnia” ou raça, de formas de viver as sexualidades, as famílias ou o amor. A complexidade da teoria femi-nista nos tempos actuais não deve ser entendida como uma paralisia política só porque, por vezes, não é pos-sível estabelecer prioridades ou porque as situações de mudança estão mais entrelaçadas. Pelo contrário, tal deve ser entendido como uma potencialidade, na me-dida em que as feministas não precisam de chegar a um entendimento “universal”, podendo ficar envolvidas em formas de acção mais pontuais e integrar também as suas acções nas agendas políticas de outros movimen-tos sociais.

O marxismo terá também de enfrentar os desafios que se colocam neste campo.

O feminismo socialista-marxista precisa de actuali-zação teórica e de entender os contributos que recebeu da corrente radical do feminismo e, ainda, que o “femi-nismo liberal” alargou o seu espaço, como reflexo da própria “institucionalização” do feminismo e do avanço das ideias neo-liberais no mundo actual. Este espaço tem de ser disputado por uma nova corrente política de esquerda dos feminismos.

A RE(CONSTRUÇÃO) DE UMA CORRENTE POLÍTICA DE ESQUERDA DOS FEMINISMOSO Congresso Feminista 2008, que se realizou em Lis-boa no último mês de Julho, constituiu a expressão de diversas correntes do feminismo, cujos contornos ainda são bastante nebulosos, numa perspectiva de uma recon-figuração de correntes que se impõe nos tempos actuais. Procurou mostrar a diversidade de ideias e a afirmação de que os feminismos têm espaço na sociedade portu-guesa. Procurou, ainda mostrar a necessidade da cons-trução de agendas feministas próprias, que em ligação com as de outros movimentos sociais se autonomizem do discurso institucional dos feminismos.

Contudo, a ausência de uma corrente política de es-querda dos feminismos fez-se sentir em termos de pen-samento e de acção. Este é um grande desafio que está colocado ao marxismo de hoje e às forças de esquerda que têm tido uma prática consequente nesta área como é o caso do Bloco de Esquerda.

O contraponto ao pensamento e discurso neoliberal coloca-se na afirmação da identidade política dos femi-nismos. Na criação de uma forte corrente política de esquerda dos feminismos que faça frente ao discurso ne-oliberal e que possa reforçar sem tutelas o movimento feminista e outros movimentos sociais?

Cinco ideias base podem ser avançadas para debates futuros:

- Aprofundar as características de dominação do capitalismo com as questões do sexismo, racismo e ho-mofobia como formas de controlar as nossas vidas e os nossos corpos.

- Fomentar uma maior visão holística das reivindi-cações feministas com os grandes problemas do mundo actual como a crise financeira, a precarização do traba-lho, a guerra e a militarização, a degradação ambiental do planeta, a pobreza, a crise alimentar.

CONTUDO, A AUSÊNCIA DE UMA CORRENTE POLÍTICA DE ESQUERDA DOS

FEMINISMOS FEZ-SE SENTIR EM TERMOS DE PENSAMENTO E DE ACÇÃO.

ESTE É UM GRANDE DESAFIO QUE ESTÁ COLOCADO AO MARXISMO

DE HOJE E ÀS FORÇAS DE ESQUERDA QUE TÊM TIDO UMA PRÁTICA

CONSEQUENTE NESTA ÁREA COMO É O CASO DO BLOCO DE ESQUERDA.

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- Reforçar a análise e a intervenção junto das mu-lheres das classes trabalhadoras e dos grupos sociais mais desfavorecidos: das mulheres negras, imigrantes, ciganas, numa perspectiva de entrelaçamento de outras formas de opressão com o pensamento feminista.

- Estabelecer uma maior ligação internacionista com os movimentos feministas, não só com a Marcha Mun-dial de Mulheres, como com outras redes feministas europeias.

- Enfrentar no quadro teórico o discurso pós-mo-derno sobre os feminismos estabelecendo pontes com os movimentos que se apoiam nessa base de pensamento.

Espera-se encontrar no campo de um marxismo aberto ao tempo presente e às grandes transformações no mundo, um espaço para estes e outros debates que possibilitem o (re) encontro possível e necessário entre feminismo e marxismo.

NOTAS1 – Manuela Tavares é Mestre em Estudos sobre

as Mulheres e doutoranda na mesma área na Univer-sidade Aberta de Lisboa, e integra a Mesa Nacional do Bloco de Esquerda.

2 – Deidré Matthee é Mestre em Psicologia, dou-toranda em Estudos Feministas na Universidade de Coimbra.

3 – Maria José Magalhães é Doutorada em Ciências da Educação pela FPCE da Universidade do Porto.

4 – Salomé Coelho é Doutoranda em Estudos Fe-ministas pela Universidade de Coimbra

5 – Olympe de Gouges ao escrever a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791) e Mary Wollstone-craft com o seu texto Vindication of the Rights of Women

(1792) são as principais vozes de protesto no contexto da revolução francesa às quais se junta Condorcet com o escrito Admissão das Mulheres ao direito de Cidadania .

6 – Charles Fourier (1772-1837); Saint-Simon (1760-1825).

7 – ENGELS, Friedrich, A origem da propriedade da família e do estado”, Lisboa Presença, 1980, p. 76.

8 – MARSHALL, Barbara (1994), Engendering Modernity – Feminism, Social Theory and Social Change, Cambridge, Polity Press, Cambridge, p.66.

9 – “A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos. ENGELS, F., op.cit., p.

10 – NOGUEIRA, Cláudia Mazzei (2004), A femini-zação no mundo do trabalho, S. Paulo, Autores associados, pp. 41-42.

11 – NEVES, Helena, “Sexualidade e poder”, in A Comuna, nº 4, Março 2004, pp. 24-31.

12 – ENGELS, Friedrich, A origem da propriedade, da família e do estado, Lisboa, Presença, 1980. p. 76)

13 – HARTMANN, Heidi, “Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más progressiva entre marxismo y feminismo”, in Zona Abierta, nº 24,1980, pp.85-113.

14 – MAGALHÃES, Maria José, ”Uma reflexão so-bre feminismo e pós-modernismo, numa perspectiva de emancipação”, in Comuna nº 4, Março de 2004.

15 – SANTOS, Cecília MacDowell (2004), “En-gen-dering the police: Women’s Police Stations and Femi-nism in São Paulo”, in Latina American Research Review, vol. 39, nº 3, October, 2004.

16 – “Backlash” é o título de um filme rodado em Hollywood em 1947 em que um homem acusa a sua es-

posa de um assassinato que ele próprio tinha cometido. O “backlash” ou reacção contra os direitos das mulheres também acusa as feministas de todos os delitos que a própria reacção cometeu.

17 – “Campanha de antifeminismo aparece na Ale-manha”, in Diário Notícias, 25 de Junho de 2007, p. 10.

18 – MATLÁRY, Janne Haaland (2002), Para um Novo Feminismo, Lisboa, Principia.

19 – Ibidem. p. 13.20 – Ibidem. p. 3421 – Consciência de uma nova época, cuja caracte-

rização sumária assenta em determinados actos de dis-função: a morte do “sujeito”, a morte da “razão”, o fim da “história”, a morte da “totalidade”. Uma das obras pioneiras neste pensamento é a de Jean-François Lyo-tard: la Condition Postmoderne (Paris, 1979). São também importantes as obras de Jacques Derrida (1976) e Mi-chel Foucault (1979).

22 – Enquanto teoria do poder e do significado so-cial, o pensamento pós-estruturalista desenvolveu-se em oposição ao marxismo. Os escritos de Marx marcaram uma ruptura essencial com os pressupostos do liberalis-mo, a posição dominante não só sobre a economia políti-ca como sobre a consciência e linguagem. O marxismo descentrou a soberania da consciência humanista racio-nal da filosofia e da economia política liberais, tornan-do a consciência um produto das relações sociais, uma consciência histórica e culturalmente específica. Desta forma, todas as sociedades de classes produzem um le-que de formas de consciência em conflito, pelo que as formas de pensamento representam interesses de classe muito em torno do conflito entre trabalho e capital. Para as feministas pós-estruturalistas não basta a análise das

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estruturas da sociedade e das posições que aí se ocupam, mas também uma teoria de relação entre linguagem, subjectividade, organização social e poder.

23 – Muitas feministas olharam para a teoria de Mi-chel Foucault como um recurso importante, que influen-ciou discursos alternativos como os das feministas des-construtivistas francesas Héléne Cixous, Luce Irigaray e Júlia Kristeva. Contudo, a teoria de Foucault não está isenta de contradições o que tem levado ao interesse de muitas académicas feministas na análise crítica da sua obra: Nancy Fraser (1989); J. Butler (1990); L. Nichol-son (1990); R. Braidotti (1991).

24 – FERREIRA, Virgínia (2003), Relações Sociais de Sexo e Segregação do Emprego: uma análise da feminiza-ção dos escritórios em Portugal, Dissertação de Doutora-mento em Sociologia, orientação do Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra.

25 – BRAIDOTTI, Rosi (2002), “A diferença sexu-al como um projecto político nómada”, in MACEDO, Ana Gabriela, org., Género, Identidade e Desejo - antolo-gia crítica do feminismo contemporâneo, Lisboa, Cotovia, pp.143-160.

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MEDICINA E CAPITALISMO: ORIGENS COMUNS?

BRUNO MAIA

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VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [51] DOSSIER CONGRESSO KARL MARX

MEDICINA E CAPITALISMO: ORIGENS COMUNS?BRUNO MAIA | MÉDICO

Historicamente a medicina sofreu revés e mudanças de paradigma ao longo dos séculos. Mas nenhuma época histórica produziu mudanças tão aceleradas na prestação de cuidados de saúde como o período da revolução industrial. Compreender muitos dos alicerces que sustentam a prática médica nos nossos dias obriga-nos a olhar para os finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX e percebermos que a relação da medicina com o mercado e dos sistemas de saúde europeus com os estados capitalistas actuais têm origens tão longínquas, quanto longínquo é o ascenço da burguesia a classe dominante e o aparecimento da industrialização e da economia de mercado. A produção científica biomédica esteve desde a sua fundação ligada às necessidades da classe dominante e os sistemas de saúde que surgiram na Europa, foram edificados pelo estado burguês e colocados numa fase inicial sob o seu controlo. Qual é a relação entre o nascimento da medicina científica, o desenvolvimento de uma medicina comunitária e o capitalismo? De que forma pode o corpo físico do operário conjugar estas três realidades?

O SÉC. XVIII (MAIS PROPRIAMENTE FINAIS no séc. XVIII, primeira metade do séc. XIX) marca o ascenso do domínio da classe burguesa. A economia de mercado é o motor da industrialização e da urbani-zação das vidas. Nesta mesma época nasce a medicina científica - com o aparecimento da anatomia patológi-ca e, mais tarde, com o conhecimento dos processos celulares e das características da degenerescência e traumatismo dos tecidos vivos, o organismo passa a estar no centro da investigação e esta a determinar os mecanismos da doença e da cura.

Até ao séc. XVIII dominava a assistência aos po-bres – a assistência na doença estava incluída num conjunto alargado de cuidados, que incluíam preocu-pações com o vestuário, a habitação, com as crianças abandonadas,... – a medicina não se individualizava da caridade, o “pobre” era o sujeito central na prestação de cuidados de saúde.

É no início do séc. XVIII que se observa um processo de desmantelamento desta assistência po-livalente. Isto acontece à medida que o mercado e a burguesia se vão tornando dominantes – a caridade não integra os circuitos rentáveis de produção, logo não é utilitária. Ao mesmo tempo assiste-se a um processo de “dessacralização utilitária” do pobre – o pobre passa a ser visto do ponto de vista da utilida-de. Classificam-se os bons e os maus pobres, isto é, aqueles que podem ser utilizados enquanto força de trabalho e não o fazem, passam a ser alvo de crítica

ideológica pela sociedade (são os “malandros”), numa tentativa de os excluir.

Paralelamente, o indivíduo doente deixa de ser o único sujeito na medicina para passar a ser também o estado de saúde da população em geral – o Estado pas-sa a legitimar uma medicina centrada no controlo dos parâmetros gerais de saúde e nas grandes campanhas de higienização e salubridade – surgem os primeiros conceitos que fundam mais tarde a saúde pública. A primeira razão desta passagem e a que tem leitura mais fácil, é a necessidade que a classe dominante tem em preservar, manter, conservar a força de trabalho, ele-mento central no modo de produção capitalista. Mas há outras razões. Os efeitos da acumulação capitalista produzem crescimento demográfico e este crescimento, na perspectiva da burguesia, necessita de ser analisado, controlado e integrado no aparelho de produção. É a partir daqui que a “população” passa a ser sujeito de investimento e aparecem as tecnologias da população como instrumento de controlo, isto é, as estimativas demográficas, as pirâmides etárias, as taxas de natali-dade e de mortalidade.

É nesta transformação que o corpo do indivíduo e o corpo da sociedade, isto é, os corpos físicos, passam a ser analisados do ponto de vista do seu potencial produtivo e da sua adequação ao modo de produção capitalista. A criança passa a ser também sujeito de preocupação. O crescimento e a saúde das crianças tornam a família não só um lugar de transmissão de heranças e de sobrevi-

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vência económica mas também um lugar onde os pro-genitores devem prestar cuidados de saúde às crianças. Por outro lado, o nascimento da psicopatologia e, mais tarde da psiquiatria, radica grande parte do seu cam-po de intervenção na família. São os indivíduos, cujas vidas não se submetem às regras da família patriarcal, que passam a ser considerados doentes. Homossexuais, prostitutas, a mulher infiel, a criança que se masturba são algumas das figuras que são alvo deste investimento médico e a justificação da patologia é a inadequação à vida familiar. A família assume um papel importante, enquanto agente central de medicalização da sociedade, assumindo a responsabilidade moral e económica pelas crianças. O elemento família é o que permite conjugar uma ética privada de protecção na saúde com o controlo público da higiene da sociedade.

Esta medicina das populações não é, contudo, aves-sa à medicina científica que se está a desenvolver nesta época. Aliás, a medicina das populações, hoje designa-da saúde pública, dá a conhecer à medicina científica as necessidades do Estado em termos de estado de saúde-doença da população, para que esta planifique a sua investigação. Ao mesmo tempo, é o conhecimento produzido na investigação que permite ao estado selec-cionar a tecnologia e os dados que considera úteis ao modo de produção. A investigação torna-se assim, em certa medida, dependente das necessidades do poder vigente.

A medicina é, nesta fase, uma instância de con-trolo social – a necessidade de controlo das gran-des epidemias, do controlo da taxa de morbilidade e do aumento da esperança média de vida, dotaram a medicina da capacidade de intervir na sociedade

com medidas autoritárias sobre o funcionamento do tecido social. O controlo do espaço urbano assume particular importância – os esgotos, a evacuação das águas, os cemitérios, os matadouros,... são pela pri-meira vez reconhecidos como potenciais locais de contaminação e passam a ser alvo de regulamentação. O médico assume para além do papel de técnico de saúde, o papel de “perito”, de “consultor” na definição de políticas de saúde, entrando assim na estrutura de poder administrativo. Para além disso, assume o papel de “doutrinador” dos indivíduos sobre regras fundamentais de higiene que este deve cumprir, sob a pena da repressão.

A medicina passa a dominar um tipo de saber cujo objectivo é o da prevenção da doença e promoção da saúde e cuja incidência não se baseia apenas na cura mas também diz respeito ao comportamento colectivo – à alimentação, à sexualidade, à fecundidade e a toda uma série de medidas higienistas que pretendem con-dicionar e regulamentar, institucionalmente, o com-portamento dos indivíduos. O corpo dos indivíduos passa pela regulamentação, na medida em que é espaço de exercício de poder. A medicina é a estratégia para

essa regulação. E esta é a conclusão de Foucault: o corpo é uma realidade bio-política e a medicina é a sua estratégia.

Do mesmo modo que a tecnologia biomédica cres-ce, a oferta de cuidados aumenta, o que se traduz na criação de novas necessidades. A família da classe ex-plorada urbana passa a desenvolver uma relação de proximidade com o hospital e a integrar os cuidados de saúde na sua rotina. Estas novas necessidades criam também dependência face ao estado e aos poderes hospitalares. Dessacralizou-se a doença e passa-se a perspectivá-la como estado passageiro, resolúvel pela medicina. O corpo físico do operário, a sua saúde estão agora dependentes da assistência médica – sem ela o indivíduo não é mais útil.

O modo de produção capitalista exige um corpo físico de operários saudáveis, assim como uma socie-dade capitalista exige uma medicina capaz de conhecer os problemas de saúde de uma população e de propor formas de os resolver. O corpo do operário é investido por uma medicina em desenvolvimento que é um ins-trumento útil aos estados burgueses para controlar a capacidade física da sua força de trabalho.

AS NOVAS NECESSIDADES CRIAM TAMBÉM DEPENDÊNCIA FACE AO ESTADO

E AOS PODERES HOSPITALARES. DESSACRALIZOU-SE A DOENÇA E PASSA-SE

A PERSPECTIVÁ-LA COMO ESTADO PASSAGEIRO, RESOLÚVEL PELA MEDICINA.

O CORPO FÍSICO DO OPERÁRIO, A SUA SAÚDE ESTÃO AGORA DEPENDENTES

DA ASSISTÊNCIA MÉDICA – SEM ELA O INDIVÍDUO NÃO É MAIS ÚTIL.

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REVOLTA NA GRÉCIA

JOSÉ SOEIRO ALT

ERFI

LIA

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“FUCK MAY 68. FIGHT NOW!” REFLEXÕES SOBRE A REVOLTA NA GRÉCIAJOSÉ SOEIRO | SOCIÓLOGO

O ESPECTRO DA REVOLTAA recepção pública, em Portugal, sobre o que está a acontecer na Grécia desde Dezembro de 2008 foi mar-cada ora pela evocação de outros momentos históricos de sublevação nas sociedades capitalistas ocidentais (ocupando o Maio de 68 o lugar de referência simbólica de um certo imaginário colectivo), ora pela especulação sobre a possibilidade daquele tipo de expressão contes-tatária se estender a outros países, pela semelhança de condições sociais vividas hoje pela juventude europeia. Essa evocação, quantas vezes marcada por um certo saudosismo paternalista, parece fazer pouco sentido: a revolta grega é uma revolta de agora e de aqui e acon-tece num tempo histórico radicalmente diferente. E a especulação sobre o eventual efeito de contaminação dos eventos na Grécia significou, para a generalidade do senso comum mediático, a insinuação de um “perigo” e de um “medo” – o temor de que uma tensão semelhante pudesse irromper no nosso país.

A imagem mais frequente da revolta grega foi a das barricadas, dos conflitos de rua e de uma espécie de “guerrilha urbana” entre jovens e polícia: carros a ar-der e montras partidas são sempre imagens facilmente estetizáveis, quer para as celebrar, quer para acenar o fantasma da “desordem” que evite falar das razões pro-fundas do descontentamento e da violência social e poli-cial na origem dos protestos. Muitos jornais trataram a questão em termos dos “distúrbios causados” ou da crise

política e do descontentamento face ao sistema parti-dário, muitas vezes centrando-se mais na “fraqueza” da política grega em construir um “Estado moderno” do que na sua força e eficácia na aplicação das políticas que fazem hoje a hegemonia neoliberal. O jornal britânico The Guardian de 8 de Dezembro, diagnosticava, através do seu título, uma “Democracia grega em ruínas”1 e o fran-cês Le Monde de 10 de Dezembro dava ao seu editorial o eloquente título “A Grécia sem Estado”, alertando para “os desequilíbrios de uma sociedade que passou em poucos anos dos Balcãs para a Europa” (expressão que, como se percebe, traça nos Balcãs as fronteiras entre o europeu e o “incivilizado”) e que não teve tempo de atingir o “Es-tado de Direito Moderno”2 (cf Kouvelákis, 2008). Por cá, o jornal Público de 14 de Dezembro avisava que o “Crescimento dos precários pode levar a mais tensões sociais” e introduzia um artigo sobre o tema da seguinte forma: “perante a violência das imagens televisivas dos combates de rua entre as autoridades e os jovens na Grécia a pergunta é inevitável: será que tal estádio de tensão social pode ocorrer em Portugal?”.

Com a juventude grega na rua, o poder assustou-se. Isso é sempre bom sinal. Mas para compreender a revol-ta grega, talvez valha a pena tentar reflectir sobre o que ela manifesta e sobre a realidade que lhe está latente, sobre o que ela revela e sobre o que ela nos ensina, para lá de qualquer impulso mais ou menos fácil de “impor-tar” o que quer que seja.

“PARA OS BANCOS DINHEIRO... PARA A JUVENTUDE BALAS!”O acontecimento que despoletou a revolta na Grécia foi o assassinato, pelos “Corpos Especiais” da polícia, do jovem estudante de 15 anos Alexandros Grigoropoulos. Este acontecimento suscitou reacções imediatas de dois tipos: grandes manifestações de jovens e motins violen-tos nas ruas. Ambas as formas de protesto tiveram três características comuns: foram organizadas de forma re-lativamente espontânea, no próprio dia 6 de Dezembro; foram de carácter nacional, tendo acontecido em várias cidades gregas e não apenas em Atenas; e tiveram um fortíssimo pendor anti-autoritário e de contestação da repressão policial, visível através das palavras de ordem dominantes (“Polícias, porcos, assassinos!”, “Cada policia devia estar no fundo do mar”, “Para os Bancos dinheiro, para a juventude balas!”) e através da importância de actos de violência de rua organizados e protagonizados não apenas pelos grupos que tradicionalmente recorrem a essa forma de protesto, mas também por uma parte considerável de jovens, muitos dos quais estudantes do ensino secundário, que estavam pela primeira vez a participar em acções desse género e que chegavam pela primeira vez à luta social.

Para se compreender o impacto desta acção policial, é preciso salientar as características da vítima – um ado-lescente branco, estudante – e o local onde ela aconteceu – o bairro de Exarchia, em Atenas, onde se localiza uma

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das escolas do Politécnico (a mesma que viu os tanques entrarem pelo edifício e reprimirem o movimento estu-dantil contra a ditadura no início da década de 1970) e que é um lugar onde se concentram, nomeadamente à noite, muitos jovens e activistas políticos e culturais da esquerda e onde a polícia é uma presença permanente (com identificações, acções de intimidação, entre outras). Assim, o denominador comum da revolta foi a reacção contra a polícia e o seu comportamento, representado simbolicamente no assassinato de um jovem de 15 anos, que nem sequer pôde ser apresentado pelas autoridades como resultado de qualquer auto-defesa em relação a um ataque com arma de fogo ou outra.

A aparente simpatia popular com o protesto – tão diferente da reacção social aos motins das periferias de Paris em 2005 – explica a atitude relativamente de-fensiva do Governo da direita (Nea Dimokratia), po-liticamente isolado. O seu isolamento explica-se pro-vavelmente pela crise social profunda que a sociedade grega atravessa, pelo descrédito do sistema político da alternância e pelos escândalos acumulados do poder (es-cândalos de corrupção, mas também os escândalos dos incêndios que devastaram a Grécia no Verão de 2007). Mas explica-se ainda pela existência, na sociedade gre-ga, de um sentimento anti-autoritário e crítico da polícia que é transversal em termos de grupos sociais e etários: em grande medida, a polícia é ainda hoje associada à ditadura dos coronéis e a arbitrariedade da actuação das forças policiais foi reforçada com uma série de leis anti-terroristas aprovadas por ocasião dos Jogos Olím-picos realizados em Atenas em 2004. Estas leis criaram o Serviço de “Guarda Especial”, que, ao contrário de outros corpos policiais, requer uma formação de apenas

3 meses, quando os restantes corpos exigem uma pre-paração de 4 anos de formação na Academia de Polícia. Inicialmente, estes corpos não tinham direito a posse de arma, mas posteriormente aos Jogos Olímpicos, uma nova lei concedeu-lhes essa possibilidade e atribuiu-lhes novas funções, designadamente no controlo e repressão de protestos de rua e na realização de patrulhas. Foi exactamente um agente destes Serviços Especiais que matou Alexandros Grigoropoulos.

Além disso, repetem-se na sociedade grega casos de imigrantes que morrem às mãos das forças policiais, em circunstâncias raramente conhecidas e investigadas, ha-vendo um sentimento, pelo menos entre os jovens e os activistas da esquerda e dos direitos humanos, de impu-nidade generalizada em relação a estes casos. Também os relatórios da Amnistia Internacional vêm apontando a Grécia como um dos países em que se regista uma maior violência policial e têm denunciado a existência de falhas graves no sistema de responsabilização da po-lícia3.

Uma revolta que, pelo menos na sua fase inicial, as-sume este carácter relativamente transversal e cruza diferentes reivindicações, não tendo exigências muito precisas, mas exprimindo um sentimento geral de in-dignação face à injustiça e de questionamento do mo-nopólio da violência legítima pelo Estado (factor essen-cial da sua autoridade) e da forma como ele é exercido, pôde criar alianças entre vários sectores sociais e fazer confluir nos mesmos protestos diferentes razões para o descontentamento. Além disso, a politização em que passam a estar envolvidos milhares de jovens, nomea-damente por via das assembleias nas escolas, fez com que se fossem integrando nas convocatórias das mani-

festações acontecimentos que foram tendo lugar após o próprio início do movimento, designadamente o ataque a uma sindicalista, Konstantina Kouneva (ocorrido na madrugada de 23 de Dezembro de 2008), e a morte de um jovem imigrante, Husein Zahidul (a 3 de Janeiro de 2009), em frente à esquadra da polícia, bem como que convergissem nos protestos sectores descontentes face às políticas do governo e ao próprio sistema de repre-sentação política grego e às suas instituições.

Esta revolta, sendo da juventude e dos estudantes de liceu em particular, não foi apenas dos jovens. Ela só pôde acontecer, também, porque existe ainda uma capacidade de expressão, na arena extra-institucional, de importantes sectores da sociedade grega, nomeada-mente jovens e trabalhadores, por via do movimento estudantil e sindical. O facto de, passados quatro dias sobre o assassinato de Alexis e numa fase de grande tur-bulência, confrontos violentos de jovens contra a polícia e forte mobilização de rua, ter acontecido uma greve geral, a 10 de Dezembro, não é um pormenor. Esta gre-ve, que estava convocada bem antes de toda a revolta começar, manteve-se apesar das pressões para que fosse desconvocada, e foi mais um sinal do descontentamento social existente e da forma como se fundiram, nas ruas, razões e protestos.

UMA REVOLTA GERACIONAL?O pano de fundo desta revolta não é difícil de compreen-der. Em alguns aspectos, a realidade social grega não é tão diferente da portuguesa. O avanço das contra-refor-mas neoliberais vai fazendo os seus estragos: a Grécia tem uma das repartições de riqueza mais polarizadas da Europa, uma alta taxa de pobreza assalariada (cerca de

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PARA QUE HAJA MOVIMENTO SOCIAL, NÃO BASTA UM SENTIMENTO DE INDIGNAÇÃO: É PRECISO IMPUTAR

RESPONSABILIDADES, DAR UM SENTIDO À REVOLTA E CRIAR UM DISCURSO QUE A NOMEIE. ESSE DISCURSO,

ESSE SENTIDO E A IDENTIFICAÇÃO DO INIMIGO SÃO O QUE FAZEM O CONFLITO POLÍTICO EM MOMENTOS

DE AGITAÇÃO – E SÃO TAMBÉM ELES QUE DETERMINAM MUITAS VEZES O FUTURO DOS ACONTECIMENTOS.

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14%) e uma economia que se vem desequilibrando em favor dos sectores capitalistas, em particular financeiros. A distribuição de rendimento entre capital e trabalho é hoje de 56% para 44%, (quando na década de 1980 o trabalho tinha a componente maioritária nessa dis-tribuição) e o rendimento dos 20% mais ricos é actual-mente seis vezes superior ao rendimento dos 20% mais pobres. Os jovens são dos sectores mais afectados pela precariedade e pelo desemprego: a taxa de desemprego entre os jovens era de 21,4% no segundo semestre de 2008 e 70% dos que têm trabalho recebe menos do que 750 euros por mês. A revolta grega ganhou contornos de uma “revolta geracional” também por isto: a condição juvenil é hoje, naquele país como no nosso, marcada pela precariedade laboral – cujas consequências extravasam muito a esfera do trabalho para invadirem todo o mundo da vida.

Não é que a precariedade só afecte os jovens: sabe-mos como ela cruza gerações e se repercute de forma diferenciada consoante as classes sociais de origem e as qualificações. No entanto, o que há de novo nesta revolta é um ressentimento geral de uma geração que parece não conseguir projectar o seu futuro para lá da preca-riedade, que vê a sua emancipação adiada sem limite e que, com todas as suas diferenças e desigualdades, re-conhece essa condição comum. A “geração 700 euros” grega pode ser hoje localizada em quase todo o lado: não apenas nos tradicionais sectores dos jovens imigrantes e das classes populares, mas também nos jovens das classes médias urbanas e nos diplomados. 5 a 7 anos depois da sua graduação, os jovens gregos diplomados têm maioritariamente empregos precários. 20% dos jo-vens tem contratos temporários e outros 20% trabalham

como isolados, com reduzidos direitos sociais. Muitos trabalham em áreas totalmente diferentes das dos seus estudos e em tarefas para as quais estão sobrequalifi-cados. Cerca de 300 mil trabalham em estágios pagos pela União Europeia, auferindo um salário mensal de 470 euros e não contando o tempo de estágio para os descontos da segurança social e para a carreira contri-butiva. Foi uma parte significativa desta geração que esteve nas ruas, que encheu as assembleias, que ocupou escolas, empresas e sindicatos.

É por isso também, pela realidade objectiva das condições materiais, que as comparações com o Maio francês são necessariamente forçadas. Ao contrário dos jovens de 68, os gregos de hoje têm pouco que ver com os baby-boomers dos “Trinta Gloriosos”, que viviam em pleno período de consolidação do Estado-providência e de crescimento económico. Trata-se, pelo contrário, de uma geração cujo futuro se projecta a partir de um presente onde nada parece garantido e onde a crença no progresso contínuo das condições de vida está muito fortemente abalada. É por isso também que, reinventan-do a luta e as suas modalidades, tal como se fez em todos os momentos de maior criatividade transgressiva, a re-volta grega não parece ter nada de “pós-materialista”: as questões da violência e da brutalidade do aparelho repressivo do Estado, as questões da educação pública, bem como as questões materiais do trabalho adquirem assim toda a centralidade. E os vários agentes envolvi-dos no movimento (coordenações estudantis, organiza-ções da esquerda radical, anarquistas) parecem ter tido um sucesso relativo na transformação de uma enorme onda de indignação contra um assassinato numa revolta contra todas as balas (desemprego, a privatização dos

serviços públicos ou a precariedade) que vêem pondo em causa a vida da juventude naquele país.

A interpretação de uma revolta é sempre menos complexa do que a realidade. Além disso, é sempre uma construção imperfeita e uma disputa política. Para que haja movimento social, não basta um sentimento de in-dignação: é preciso imputar responsabilidades, dar um sentido à revolta e criar um discurso que a nomeie. Esse discurso, esse sentido e a identificação do inimigo são o que fazem o conflito político em momentos de agitação – e são também eles que determinam muitas vezes o futuro dos acontecimentos.

O que parece cruzar-se na Grécia é um ressentimento geracional face às dificuldades do futuro e um sentimen-to de profunda repulsa e ilegitmidade da acção policial criminosa contra Alexis. A tradução política deste cru-zamento não é imediatamente evidente: ela pode ficar-se pela contestação do monopólio de violência legítima do Estado, pela rejeição do seu aparelho repressivo ou pela rejeição, tanto mais inconsequente quanto mais difusa, do próprio poder de Estado ou pode avançar para uma ofensiva que arranque ao poder mudanças concretas e que altere a relação de forças na sociedade grega. Nisto, como em tudo o que é humano, nenhum determinismo nos permite adivinhar o futuro: a imprevisibilidade é o que abre o caminho à acção e à proposta.

METAMORFOSES NO TRABALHO: DOIS EXEMPLOS PARA REFLECTIRO facto da precariedade laboral ser um dos temas cen-trais quando se fala da revolta grega representa, em si mesmo, uma novidade e coloca várias questões interes-santes. Elas remetem para as transformações ocorridas

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na organização da produção nas últimas décadas, para a inexistência ou relativa escassez de formas de organi-zação e de representação dos trabalhadores precários, dado as formas existentes – nomeadamente os sindi-catos – terem tido dificuldade em recriar novas moda-lidades para integrar estas franjas de trabalhadores e exprimirem os seus interesses e, ainda, para a centra-lidade que as questões do trabalho assumem hoje nos movimentos juvenis.

As transformações do capitalismo trouxeram mu-danças profundas e acrescidas dificuldades aos movi-mentos que o combatem. É por isso que a tão propalada “crise do trabalho” é não apenas uma crise das formas tradicionais de organização da produção, mas também uma crise do contrato social da era fordista e uma cri-se das formas de representação dos trabalhadores que herdámos do século passado. As transformações no trabalho e no emprego, a difusão das tecnologias de informação e comunicação, os novos modelos de pro-dução, a concorrência internacional entre empresas, a financeirização da economia e o desmantelamento do Estado-Providência colocam sérios desafios aos siste-mas de relações laborais tradicionais.

Pelo que nos pudemos aperceber, o que se passa na Grécia é significativo. A confederação sindical única está hegemonizada pelo PASOK e é marcada por uma fortíssima lógica de conciliação e de proximidade com o poder. Os novos precários, nomeadamente dos sectores pós-fordistas, têm dificuldade em encontrar represen-tação nas organizações sindicais. Muitos dos sindica-tos encontram grandes dificuldades em integrar estas questões. E em amplos sectores, a precarização significa o regresso a realidades laborais que se pensavam ultra-

passadas pela história: exploração para lá dos limites le-gais existentes, trabalho à jorna, ausência de contratos, informalização completa, acção sindical clandestina, etc. O caso de Konstantina Kouneva e a ocupação do sindi-cato de jornalistas, a que pudemos assistir em Atenas, revelam estas contradições e são bons exemplos para a reflexão.

Desde 2001, na sequência de uma lei aprovada no parlamento, tem-se assistido à generalização do outsour-cing dos serviços de limpeza nos sectores públicos e pri-vados (e, nalguns casos, alguns dos sectores públicos en-tretanto privatizados), nomeadamente nos poderosos e importantes sectores dos transportes, na companhia de electricidade ou nos bancos. A disputa pelos contratos milionários que estão em jogo faz com que as empresas de limpeza subcontratadas compitam pelos custos mais baixos, o que significa também a redução máxima das despesas com os trabalhadores (através de part-times, de salários baixos, do não cumprimento do direito do trabalho, da exploração de mão-de-obra imigrante...). Estas empresas de limpeza empregam sobretudo mu-lheres, com uma percentagem muito significativa de imigrantes, algumas das quais, alegadamente, imigran-

tes clandestinas, logo, sem direitos sociais nem repre-sentação. Uma destas empresas chama-se OIKOMET e tem alguns dos contratos mais importantes – por exem-plo, com os principais bancos, com a rede de autocarros e comboios ou com a companhia de electricidade, sendo dirigida por Nikitas Oikonomakis, membro conhecido do PASOK. Era para essa empresa que Konstantina Kouneva trabalhava.

Esta mulher, imigrante búlgara, doutorada em História, a viver com a mãe e a filha que dependiam dela, trabalhadora de limpeza nos comboios de Ate-nas, foi uma das fundadoras do sindicato das mulheres de limpeza e das empregadas domesticas de Ática, do qual era a sua porta-voz e principal dirigente. Esse sindicato, com cerca de 1700 membros, tem frequen-temente de actuar sob clandestinidade, tais são as condições de exploração por parte dos patrões, mas também de medo generalizado entre as trabalhadoras. Alvo de permanentes ameaças por parte dos patrões, a mais recente luta de Kouneva foi relativa ao subsídio de férias. Na verdade, os patrões estavam a obrigar as trabalhadoras a assinar recibos declarando terem rece-bido este complemento que lhes era devido, mas estas

A CONFEDERAÇÃO SINDICAL ÚNICA ESTÁ HEGEMONIZADA PELO PASOK

E É MARCADA POR UMA FORTÍSSIMA LÓGICA DE CONCILIAÇÃO E DE

PROXIMIDADE COM O PODER. OS NOVOS PRECÁRIOS, NOMEADAMENTE

DOS SECTORES PÓS-FORDISTAS, TÊM DIFICULDADE EM ENCONTRAR

REPRESENTAÇÃO NAS ORGANIZAÇÕES SINDICAIS.

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A SYRIZA FOI A ÚNICA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA COM REPRESENTAÇÃO PARLAMENTAR

QUE SE ASSOCIOU CLARAMENTE À REVOLTA, CENTRANDO O SEU DISCURSO NA CONDIÇÃO GENERALIZADA

DE PRECARIEDADE E AVANÇANDO COM PROPOSTAS PARA O DESARMAMENTO DA POLÍCIA E A EXTINÇÃO

DOS CORPOS POLICIAIS, A REFORMA EDUCATIVA, POLÍTICAS DE EMPREGO, ETC.

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não o recebiam de facto. Konstantina organizou então acções de denúncia e de luta contra os empregadores, exigindo a totalidade do subsídio a que tinham direito. Na madrugada do dia 22 para o dia 23 de Dezembro, foi atacada à porta de sua casa, no bairro popular de Pe-tralona, por dois homens que lhe atiraram ácido sulfú-rico para a cara e para os ombros e, tendo ela começado a gritar, lhe atiraram ácido para dentro da garganta. Konstantina continua ainda hoje hospitalizada, tendo perdido já a visão de um olho, sendo provável que perca a do outro também e havendo poucas perspectivas de que recupere as cordas vocais. Este caso não é apenas impressionante pela dimensão da violência patronal na sociedade grega. É um exemplo brutal da dificul-dade de organização dos trabalhadores resultantes do processo de desregulação laboral, da desconcentração das empresas e da subproletarização do trabalho. E é também um exemplo, ao mesmo tempo, da desigualda-de da relação de forças e das alianças que se forjaram. Se é verdade que a confederação sindical única, com ligações relevantes ao PASOK (que se encontrava no poder quando a lei que permite estas subcontratações foi aprovada), lamentou o sucedido mas não organizou nenhuma solidariedade activa para com a organização de Kouneva, o caso tornou-se, em contrapartida, um símbolo maior da revolta grega: assembleias de escola, sectores anarquistas, organizações de mulheres da es-querda radical, fizeram manifestações de solidariedade para com Konstantina e o edifício do ISAP (comboios e eléctricos de Atenas e Pireu), onde ela trabalhava, foi ocupado no dia 27 de Dezembro. A manifestação de dia 9 de Janeiro, convocada pelos estudantes, incluía no seu apelo a solidariedade para com a sindicalista e, a 22 de

Janeiro, uma nova manifestação por Konstantina jun-tou seis mil pessoas em Atenas.

Um outro exemplo foi a ocupação, a que assistimos no dia 10 de Janeiro, do sindicato dos jornalistas. Ela revela, provavelmente, alguns elementos importantes do que está a acontecer no mundo do trabalho, mas tam-bém das características da revolta grega. Desde logo, denuncia a existência de contingentes importantes das tradicionais profissões intelectuais e científicas que es-tão em claro processo de precarização: baixos salários, estágios profissionais não remunerados, contratos a termo certo ou falso trabalho independente caracteri-zam hoje a profissão de jornalista um pouco por toda a Europa. Além disso, revela que muitos destes traba-lhadores, grande parte deles jovens e qualificados, não encontram inserção possível nas formas tradicionais de organização e vínculo sindical – e isso afasta-os das pró-prias organizações de representação profissional do seu sector. Por último, revela também a extensão que tem a revolta juvenil grega, pelas suas modalidades de acção colectiva eminentemente transgressivas e pela politiza-ção das suas reivindicações: jovens jornalistas precários decidiram ocupar o sindicato, sob o lema “Não tememos os despedimentos, os patrões devem temer as greves selvagens”, e nos seus panfletos liam-se três grandes motivações para a acção: o direito a informar e relatar os acontecimentos sem a censura dos patrões dos media e dos editores, a solidariedade com Konstantina Kouneva e o combate à precariedade laboral instalada no sector.

O MOVIMENTO ESTUDANTIL E AS FORÇAS POLÍTICAS FACE À REVOLTA Torna-se também impossível perceber a revolta grega sem ter em conta acontecimentos do passado recente, nomeadamente ao nível do movimento estudantil. Só assim evitamos uma leitura espontaneísta do próprio movimento, que ignore que, mesmo com acontecimen-tos muito específicos como o assassinato de um jovem, a interpretação das raízes e das condições para um fe-nómeno de mobilização como o que acontece na Grécia tem de levar em linha de conta as estruturas e as for-ças organizadas que permitiram uma certa sustentação orgânica da revolta. O movimento estudantil é essa âncora maior, até porque a maior parte das acções são preparadas no espaço das escolas e das universidades e convocadas por assembleias aí reunidas.

O movimento estudantil na Grécia organiza-se atra-vés de correntes políticas estudantis, que têm continui-dade e que, na maior parte dos casos, empreendem ac-ções e disputam as direcções estudantis em cada escola (para as quais a eleição se faz de modo proporcional). Regra geral, estas correntes são muito politizadas e, muitas vezes, têm fortes ligações a partidos políticos ou organizações políticas não exclusivamente estudantis. Estas correntes têm uma força muito diferenciada de escola para escola e, ao nível eleitoral, há uma hegemo-nia da direita política e da social-democracia4, havendo contudo uma força organizada muito forte da esquer-da radical, que é superior, nas assembleias e nos mo-vimentos, à sua força eleitoral dentro das escolas. Nas assembleias a que pudemos assistir, as primeiras após as férias de Natal, as correntes da esquerda comunista,

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da esquerda radical e os anarquistas eram claramente maioritárias, tendo sido as suas resoluções aprovadas pela maioria dos presentes.

É evidente que é impossível compreender a revolta da juventude a partir da caracterização destas correntes: o que define uma revolta enquanto processo de envol-vimento e mobilização de muitos milhares de pessoas é precisamente o facto de não estar organizada nem corresponder aos espaços pré-existentes de enquadra-mento da acção política. Além disso, deve ser tido em conta o papel dos múltiplos grupos anarquistas que, não disputando eleitoralmente as direcções estudantis, têm uma implantação significativa em algumas escolas e no movimento social mais radicalizado, para além de ani-marem uma série de publicações periódicas e de terem um conjunto importante de centros sociais e de espaços de socialização e de actividade cultural e política, par-ticularmente concentrados no bairro de Exarchia, no caso da cidade de Atenas. Ainda assim, a continuidade do trabalho político das correntes estudantis e a sua ca-pacidade de organização e mobilização parecem ser fac-tores que têm de ser tidos em conta para compreender a capacidade de resistência e de prolongamento de um protesto social durante mais de um mês, a politização que se vive nas escolas e a capacidade de convocação de inúmeras acções por parte dos estudantes e das suas assembleias.

Além disso, o movimento estudantil teve um mo-mento particularmente forte em 2007, com as pri-meiras ocupações simultâneas da maioria das escolas do ensino superior e com uma acção suficientemente enérgica para fazer recuar uma proposta de revisão constitucional que previa a abertura do sistema edu-

cativo grego às universidades privadas – a revisão do artigo 16º. Com efeito, apesar das tentativas de reforma legislativa pretenderem aplicar na Grécia mecanismos como as prescrições, a profissionalização da gestão fi-nanceira das universidades e a alteração da lei do asilo que impede a polícia de entrar nas faculdades sem a autorização dos directores, nenhuma destas medidas avançou verdadeiramente, por se ter confrontado com uma fortíssima resistência organizada dos estudantes, o que faz com que na Grécia não existam propinas, os livros obrigatórios sejam gratuitos e não existam pres-crições, ainda que as famílias continuem a assumir uma parte significativa das despesas com os estudantes. Esta realidade cria também condições mais propícias ao ac-tivismo estudantil. Nos países – como Portugal – em que o processo de liberalização está mais avançado do que na Grécia, a pressão dos encargos financeiros e da concentração nas actividades lectivas e na obtenção do diploma são um obstáculo fortíssimo ao envolvimento político nas escolas.

Por outro lado, as correntes políticas da sociedade grega também jogam aqui um papel e o seu posicio-namento face à revolta pode ajudar a compreender a forma como ela foi encarada pelos actores institucio-nais. O partido da direita, que está no Governo (Nea Dimokratia) denunciou o assassinato de Alexis, mas insistiu na ideia de que ele era um “acto isolado”, esca-moteando as responsabilidades políticas na situação e a violência generalizada da polícia grega e acusando a Syriza (coligação da esquerda radical) de incentivar a violência dos revoltosos. O PASOK (social-democracia) também acusou o crime da polícia, mas explorou o caso a partir da “ineficácia” da resposta governamental à

instabilidade e à contenção da violência dos protestos, atirando-se também à Syriza por estar relacionada com “os black block” (!). A extrema-direita (LAOS) tentou fazer equivaler o assassinato do adolescente com o ataque feito a um agente policial, acusando a esquer-da radical de dar “cobertura política a anarquistas e terroristas”. O Partido Comunista Grego (KKE) teve, no início, uma reacção hostil aos protestos, demarcan-do-se sempre dos “provocadores”, referindo-se a um “plano orquestrado para desestabilizar a sociedade grega”, acusando a Syriza de querer “agradar os ou-vidos dos anarquistas” (a mesma expressão utilizada pelo presidente do LAOS) e organizando manifesta-ções autónomas (só do KKE), rejeitando participar, por exemplo, na manif convocada pelas assembleias de estudantes para 9 de Janeiro, dia em que organizou uma manifestação própria sobre a questão da Palestina (quando havia, no dia 10, uma manifestação convocada por várias organizações contra o massacre em Gaza). A Syriza, por seu turno, foi a única organização polí-tica com representação parlamentar que se associou claramente à revolta, centrando o seu discurso na con-dição generalizada de precariedade e avançando com propostas para o desarmamento da polícia e a extinção dos corpos policiais, a reforma educativa, políticas de emprego, etc.

Sendo difícil de medir a influência real das pers-pectivas da esquerda radical e do anarquismo na ju-ventude grega, o que é possível afirmar é que esses campos políticos foram aqueles que quiseram assumir a partir de dentro do movimento, uma expressão política do mesmo.

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A UTILIZAÇÃO INTENSA DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO TAMBÉM SIGNIFICOU UMA CAPACIDADE

DE ORGANIZAR PROTESTOS RAPIDAMENTE E DE ESTILHAÇAR AS FORMAS MAIS CENTRALIZADAS E BUROCRÁTICAS DE LUTA:

BLOGS, REDES SOCIAIS ONLINE, SMS, FACEBOOK, ENTRE OUTROS INSTRUMENTOS, FORAM ARMAS IMPORTANTES NESTA REVOLTA.

ESSA APRENDIZAGEM TERÁ TAMBÉM CONSEQUÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO DA LUTA POLÍTICA FUTURA.

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O DESAFIO QUE OS GREGOS NOS LANÇAMO que se passa na Grécia pode ter muitas leituras: a dificuldade de uma revolta como esta é que não tem uma tradução política evidente nem as formas tradicionais de expressão do conflito social. É sem dúvida uma re-volta contra a violência policial, que trouxe para a rua o ressentimento de uma geração que parece condenada à precariedade e cujos problemas não parecem ter eco nas instituições que existem, sejam as do Estado, sejam as que historicamente representaram os interesses dos “de baixo”. Mas o que se passa na Grécia não é só isso. É um enorme processo de envolvimento e de politização da juventude que é, em si mesmo, transformador. E é, provavelmente, o mais violento confronto da sociedade grega com o neoliberalismo e a sua realidade feroz, em que a solução apresentada para a crise é a mercanti-lização dos direitos, o aumento das desigualdades e a precarização generalizada.

Por outro lado, independemente da sua evolução, esta revolta deixará marcas importantes em toda uma geração política cuja cultura de luta não mais poderá ser alheia a esta experiência. Com repertórios de ac-ção colectiva claramente transgressivos, recorrendo à violência ou não, as ocupações de escolas, de empresas e de sindicatos, as barricadas de rua, as acções perfor-mativas, os enfrentamentos violentos com a polícia, a discussão política nas assembleias, além das tradicionais manifestações, são de certeza uma aprendizagem que fica para o futuro. A utilização intensa das tecnologias de informação e comunicação também significou uma capacidade de organizar protestos rapidamente e de estilhaçar as formas mais centralizadas e burocráticas de luta: blogs, redes sociais online, sms, Facebook, entre

outros instrumentos, foram armas importantes nesta revolta. Essa aprendizagem terá também consequências na organização da luta política futura.

Como qualquer processo de transformação social, a avaliação da revolta grega e do seu impacto confronta-se sempre com temporalidades diferentes: a das transfor-mações estruturais, a da transformação das conjunturas e a do curto tempo dos acontecimentos. Se da última é mais fácil falar, as outras duas dependerão em grande medida da evolução do processo.

De qualquer das formas, em cada acção e em cada exemplo, o que vimos na Grécia rasga as fronteiras do possível e faz-nos sentir que a realidade pode ser dife-rente do que existe. Ou seja, reenvia-nos para a nossa condição de actores e de protagonistas da própria histó-ria. Na Grécia, onde as dificuldades da condição juvenil não são afinal tão diferentes das nossas, os jovens deci-diram que não iriam ficar calados. E isso não é só uma enorme lição. É também um desafio que nos lançam.

NOTAS1 – http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2008/dec/08/greece

2 – http://www.lemonde.fr/cgi-bin/ACHATS/acheter.

cgi?offre=ARCHIVES&type_item=ART_ARCH_30J&objet_id=

1061688&clef=ARC-TRK-D_01

3 – Pode ler-se, a propósito dos acontecimentos na Gré-cia do passado mês de Dezembro, a seguinte declaração: “A Amnistia Internacional tem apelado repetidamente ao go-verno grego para que interrompa esta cadeia de impunidade com a instituição de mecanismos independentes para averi-guar alegações de violação de direitos humanos e conduta ilegal por parte das forças de segurança gregas, bem como rever o policiamento de manifestações. O apelo vai também no sentido de conseguir a ratificação do Protocolo Opcional da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes” (in http://www.amnis-tia-internacional.pt/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=644)4 – Vale a pena traçar um retrato breve das forças em presença. Assim, as principais organizações são a DAP, corrente de direita com ligação ao partido Nea Di-mokratia, com cerca de 40% da representação estudan-til ao nível nacional; o grupo PASP, ligado ao PASOK, partido social-democrata grego, com cerca de 26% dessa representação; o PKS, corrente estudantil do Partido Comunista Grego (KKE), com cerca de 15% ao nível nacional nas eleições para as direcções estudantis; a EAAK, corrente que agrupa várias forças e estudantes da esquerda anti-capitalista, com cerca de 7,5%; a Ar.En (Aristeri Enotita), com cerca de 3% e que agrupa estu-dantes da esquerda radical e que tem um vínculo politi-co à coligação da esquerda radical SYRIZA; e, por fim, um conjunto de organizações da extrema-esquerda que, juntas, têm cerca entre 0,5 e 1% em termos eleitorais.

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [64] CONTRATEMPOSCONT

RAT

EMPO

SDEMOCRACIA

CARLOS NELSON COUTINHO

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NO MUNDO ACTUAL, BOA PARTE DA BATALHA das ideias que se trava entre as diferentes forças sociais centra-se na tentativa de definir o que é democracia, já que essa forma de regime político é hoje reivindi-cada por praticamente todas as correntes ideológicas, da direita à esquerda. Ora, nem sempre foi assim. Há algumas décadas atrás, o pensamento explicitamente de direita — desde o catolicismo ultramontano até os diferentes fascismos — combatia abertamente a demo-cracia; até mesmo o liberalismo, em boa parte de sua história, apresentou-se explicitamente como alternati-va à democracia. Esta situação se alterou a partir da segunda metade do século XX. Por um lado, o fascismo praticamente desapareceu como força actuante no cená-rio político mundial; e, por outro, sobretudo a partir dos anos 1930, o liberalismo assumiu a democracia e passou a defendê-la, ainda que não sem antes minimizá-la, em-pobrecendo suas determinações, concebendo-a de modo claramente redutor. Assim, pelo menos nominalmente, hoje todos são democratas.

Nesse sentido, devemos ter muita cautela, hoje, quando usamos a palavra “democracia”. Um brilhante pensador francês do século XVII, La Rochefoucauld, tem uma bela definição de hipocrisia: “Hipocrisia é ho-menagem que o vício presta à virtude”1. Ou seja, o fato de que todos hoje se digam “democratas” não significa que acreditem efectivamente na democracia, mas sim que se generalizou o reconhecimento de que a demo-

cracia é uma virtude. A hipocrisia consiste em que, com extrema frequência, essa palavra — ainda que dita com ênfase — não significa absolutamente o que a história da humanidade e o pensamento político entenderam e entendem por democracia.

O liberalismo, como corrente representativa da ascensão histórica da burguesia como nova classe so-cial e de sua consolidação como classe dominante, nem sempre se apresentou como democrático. Os primeiros pensadores liberais do século XVII — como John Locke, por exemplo, que pode ser considerado o pai do libera-lismo — não discutiam a questão democrática porque ela ainda não se apresentara na época histórica em que eles viveram. Ou seja, a tarefa que então se colocava às forças do progresso era o fim do Estado absolutista, a consolidação de uma ordem burguesa com uma supe-restrutura política de natureza liberal, na qual o poder fosse limitado pelos direitos individuais considerados como direitos naturais.

Pode-se assim dizer que, pelo menos até a Revolução Francesa, o liberalismo se situa à esquerda do espectro político. Talvez fosse ainda mais correto dizer: até o sur-gimento de Jean-Jacques Rousseau, o qual, em meados do século XVIII, não só elaborou uma crítica radical da sociedade existente e apontou os limites ideológicos contidos no liberalismo (como se pode ver no Discurso so-bre a desigualdade), mas também formulou a proposta de uma sociedade alternativa, profundamente democrática

e popular (o que ele faz em O contrato social)2. As ideias elaboradas por Rousseau orientaram a acção de impor-tantes sujeitos políticos durante a Revolução Francesa. Refiro-me em particular aos jacobinos, revolucionários radicais liderados por Robespierre e Saint-Just, expres-são política e ideológica do “povo miúdo”; mas tais ideias encontraram também desdobramentos nos primeiros pensadores comunistas, como Grachus Babeuf, que li-derou a chamada Conjuração dos Iguais, ocorrida no final do século XVIII e que foi duramente reprimida (Babeuf foi condenado à morte) por um governo que se dizia liberal. O surgimento do movimento socialista, no tumultuado início do século XIX — com a transforma-ção em actor político não só do povo em geral, como na época da Revolução Francesa, mas agora, em particu-lar, do proletariado —, obriga ainda mais o pensamento liberal a confrontar-se com o que poderíamos chamar de afirmação da democracia moderna, que se expressa precisamente neste progressivo ingresso das camadas populares na arena política.

No primeiro momento, é fácil perceber que o libera-lismo reage criticamente contra a democracia. Recordo um pensador liberal, que combateu o absolutismo na França: Benjamin Constant. Ele escreveu, em 1819, um interessante texto3, no qual afirma que a liberda-de teorizada por Rousseau e praticada pelos jacobinos seria a liberdade do mundo antigo, ou seja, a liberdade de participar na formação do governo, o que implica a

DEMOCRACIA: UM CONCEITO EM DISPUTA CARLOS NELSON COUTINHO | PROFESSOR NA ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, DIRIGENTE DO PSOL

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criação de uma esfera pública da qual todos participam, onde todos são cidadãos plenos. Em suma, onde todos são, ao mesmo tempo, governantes e governados. Essa forma de liberdade, afirma Constant, não é a que carac-teriza os tempos modernos. A liberdade moderna, ao contrário, consistiria em fruir na esfera privada os bens que os indivíduos obtêm graças a seus méritos pessoais; para tanto, os indivíduos “livres” nomeiam “represen-tantes” que se ocupam do governo e, desse modo, são tanto mais livres quanto menos participam da esfera pública. Expressa-se aqui, com toda clareza, a distinção não entre a liberdade antiga e a liberdade dos modernos, como queria Constant, mas sim entre a liberdade demo-crática e a liberdade liberal: apresentar essa distinção como se se tratasse de um fato histórico é o habilidoso modo pelo qual o liberal francês evita dizer claramente que é contra a democracia: para Constant, a democracia seria um regime do passado (repetindo assim o que já dissera Montesquieu), algo anacrónico e, portanto, não mais válido na modernidade, no tempo da liberdade pri-vada, da liberdade entendida como direito de usufruir na esfera privada os bens que os indivíduos constroem também privadamente. Não deixa de ser um modo bas-tante inteligente de se posicionar contra a actualidade da proposta democrática, tal como esta se manifestara na obra de Rousseau e na acção dos jacobinos.

Ao longo do século XIX, há alguns pensadores li-berais — um deles é o francês Alexis de Tocqueville — que já demonstram ter compreendido que a demo-cracia é algo irreversível precisamente no mundo mo-derno. Tocqueville afirma que a igualdade de condições, o facto de que os indivíduos sejam equalizados em suas condições materiais de vida e se sintam como iguais, é

uma tendência inarrestável — ele fala até em “desígnio divino” —, isto é, algo que já não é possível impedir que ocorra4. Mas essa tendência igualitária, diz ainda Tocqueville, leva também necessariamente à fragmen-tação social, à perda de consciência cívica e, finalmente, em consequência disso, ao despotismo. Quando todos são equalizados, quando desaparecem os “corpos inter-mediários” e todos se sentem como iguais, cria-se uma “tirania da maioria”, que esmaga a liberdade individual. Haveria assim uma contradição entre a igualdade e a liberdade. Ou seja: para o liberal Tocqueville, a demo-cracia é inevitável, mas é algo em si negativo. Para ele, o modo de impedir a transformação da democracia em despotismo é fortalecer as liberdades formais, os direitos privados; é também desenvolver o associativismo nos moldes em que ele o via na sociedade norte-americana do seu tempo, já que o associativismo impediria a emer-gência do poder despótico.

Não vou me deter aqui na análise das reflexões de Tocqueville, que é certamente um brilhante pensador, apesar de suas posições conservadoras. O que importa observar é que ele vê a democracia como um fenómeno irreversível no mundo moderno, mas contra o qual é preciso inventar remédios, criando controles que a im-peçam de se transformar em “tirania da maioria”. Não hesitaria em dizer: Tocqueville teme a “tirania da maio-ria” porque a maioria é popular e, consequentemente, para ele, isso levaria ao despotismo. O fortalecimento do liberalismo é visto como um remédio contra os ma-les da democracia. De resto, ao contrário de Constant, Tocqueville já se confronta com a ala mais radical da democracia, ou seja, com o socialismo — que se mani-festa, sobretudo no contexto da revolução francesa de

1848, como uma alternativa real ao poder da burguesia —, e o condena duramente enquanto expressão máxi-ma do despotismo implícito na tendência igualitária da democracia.

Na passagem do século XIX para o XX, um outro pensador liberal, o elitista italiano Gaetano Mosca, ino-va em relação a Tocqueville: Mosca já não teme a “tira-nia da maioria”, uma vez que, em sua opinião, as maio-rias jamais existem como sujeitos políticos. A política é feita sempre por elites, por minorias, pelo que ele chama de “classes dirigentes”. Assim, a ideia democrática de uma soberania popular não passaria para ele de uma “fórmula política”; ou seja, traduzindo em linguagem marxista, “soberania popular” seria apenas uma ideolo-gia que a elite dirigente usa para se legitimar, dizendo agir em nome do povo. Seria algo similar à ideia do di-reito divino dos reis, que seria a “fórmula política” com a qual a monarquia buscava se justificar. Então, a demo-cracia — a soberania popular — não passaria, segundo Mosca, de um mito, de uma “fórmula política” que as elites modernas usam para se legitimar no poder5. Mas cabe lembrar que, apesar do seu elitismo e consequen-te conservadorismo, Mosca é um pensador liberal, na medida em que defende uma Constituição (um sistema de “defesas jurídicas”) e a presença de um parlamento. Contudo, não se deve também esquecer que, para ele, a “defesa jurídica” é apenas um modo de proteger as elites umas contra as outras; e que o Parlamento é visto como algo positivo não porque seja expressão da soberania popular, mas por ser o local onde as elites dirigentes podem se renovar através da cooptação de novos mem-bros. Embora adversário resoluto do sufrágio universal, Mosca também não aderiu ao fascismo.

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O SUFRÁGIO PLENAMENTE UNIVERSAL FOI CONQUISTADO NA INGLATERRA, SIMULTANEAMENTE PARA TODOS OS VARÕES

E PARA AS MULHERES, SOMENTE EM 1918. PARA SERMOS JUSTOS, CABE TAMBÉM LEMBRAR QUE O DIREITO DAS MULHERES

AO VOTO É UMA CONQUISTA NÃO SÓ DOS TRABALHADORES (E SOBRETUDO DAS TRABALHADORAS!),

MAS PARTICULARMENTE DO MOVIMENTO FEMINISTA, DAS CHAMADAS “SUFRAGETES”.

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Então, até certo momento, o princípio da hipocrisia de La Rochefoucauld não era aplicado pelos liberais: eles não hesitavam em se afirmar contrários à democracia. Pelo menos até Mosca, o liberalismo negava abertamen-te os postulados democráticos básicos, tais como a sobe-rania popular, o sufrágio universal, etc.; apresentava-se não como um complemento, mas como uma alternativa à democracia. E, na realidade dos fatos, os primeiros regi-mes liberais, por serem regimes de participação restrita, eram efectivamente regimes oligárquicos, elitistas. Com a chamada Gloriosa Revolução de 1688, instaura-se na Grã-Bretanha uma monarquia constitucional, o primei-ro regime liberal a se implantar no mundo. Tal regime logo se tornou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, um paradigma para o pensamento e a prática liberais em todo o mundo. Na monarquia constitucional inglesa, o poder se assentava num parlamento eleito, mas o direi-to ao sufrágio era extremamente restrito; votava um número muito pequeno de pessoas, ou seja, somente os varões que dispunham de propriedades ou pagavam um determinado montante de impostos. Este modelo de su-frágio restrito vigorou em todos os regimes liberais até o início do século XX.

A limitação do direito ao voto não tinha lugar apenas na prática: era também um momento importante da te-oria liberal. Benjamin Constant, por exemplo, já nosso conhecido, dizia muito claramente: só deve votar e ser votado o proprietário, já que, sendo ele dono de uma parte da nação, seria o único a se interessar efectiva-mente pelo seu bem-estar. Quem mora de aluguer sabe que não pode ir à reunião de condomínio e nela votar; só pode ir o proprietário, o qual, segundo as regras do condomínio, é quem tem interesse na manutenção do

imóvel. O filósofo alemão Immanuel Kant, brilhante pensador liberal, também dizia algo do género: para ele, só deve ter direito de voto quem tem independência de juízo6. Ora, as mulheres não têm esta independência porque dependem ou dos maridos ou dos pais; tampouco a têm os trabalhadores assalariados, porque dependem do patrão. Então, Kant excluía do direito a votar e ser votado algo em torno de 90% da humanidade.

O sufrágio universal é hoje um instituto que todos consideram condição básica de qualquer regime demo-crático; dificilmente alguém teria ainda a coragem de defender, pelo menos publicamente, que as mulheres e os trabalhadores assalariados não devem votar. Mas cabe lembrar que o sufrágio universal é uma conquista da classe trabalhadora. O primeiro movimento operário de massa, o movimento cartista, que surgiu na Inglaterra na primeira metade do século XIX, tinha duas palavras de ordem. A primeira delas era a limitação legal da jor-nada de trabalho. Naquele tempo, trabalhava-se — nos limites impostos pela resistência biológica — o quanto o patrão quisesse. A luta por essa limitação foi longa, mas finalmente promulgou-se uma lei na Inglaterra, nos anos 60 do século XIX, que fixou limites para a jornada de trabalho; leis semelhantes se generalizaram nos de-mais países, até que, já no século XX, os trabalhadores conquistaram a jornada de oito horas. A segunda pala-vra de ordem do cartismo era o sufrágio universal que, curiosamente, demorou mais tempo para ser obtido. O sufrágio plenamente universal foi conquistado na Ingla-terra, simultaneamente para todos os varões e para as mulheres, somente em 1918. Para sermos justos, cabe também lembrar que o direito das mulheres ao voto é uma conquista não só dos trabalhadores (e sobretudo

das trabalhadoras!), mas particularmente do movimento feminista, das chamadas “sufragetes”.

Poderia dar outros exemplos de direitos políticos e sociais que foram também negados, durante muito tempo, pelos regimes liberais, em nome da liberdade de mercado. Recordemos, por exemplo, os direitos de organização sindical e de greve. Logo após a Revolução Francesa, em nome do combate às velhas corporações medievais de artes e ofícios, foi promulgada uma lei, co-nhecida como lei Le Chapelier, que proibia que os tra-balhadores em geral se organizassem; se isto extinguia as anacrónicas corporações artesanais, que impediam a liberdade profissional, também significava na prática a interdição dos sindicatos dos trabalhadores assalariados. O argumento era que a organização dos trabalhadores, ao permitir a negociação colectiva do preço da força de trabalho, entraria em choque com as famigeradas “leis do mercado”, o que não deixa de ser verdade: se cada assalariado negociasse individualmente com o patrão, receberia certamente ainda menos do que recebe se esti-ver organizado num sindicato. Na França, por exemplo, o direito de organização e de greve só foi reconhecido aos trabalhadores nos anos 70 do século XIX, pouco depois — o que não é absolutamente casual! — da Co-muna de Paris.

Portanto, foram sendo progressivamente impostos aos regimes liberais — ou, mais precisamente, à clas-se burguesa — determinados direitos de cidadania, sobretudo de cidadania política, que não faziam parte do ideário liberal até inícios do século XX, mas que tal ideário foi sendo progressivamente forçado a assimilar. Tais direitos, ao contrário, são parte integrante do ide-ário democrático, o qual tem como pressuposto e meta a

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socialização da participação política, ou seja, em última instância, a plena soberania popular7. Como resultado dessa assimilação de novos direitos, imposta pela luta dos subalternos, boa parte dos Estados existentes no mundo de hoje assumiu a forma de regimes liberal-demo-cráticos, na medida em que incorporaram alguns direitos — como o sufrágio universal, a livre organização não só sindical mas partidária, etc. —, que resultam de de-mandas não originariamente liberais, mas de natureza democrática. Com isso, o liberalismo viu-se diante de uma tarefa não só teórica como prática, que consistia no seguinte: como controlar esse avanço democrático e submetê-lo à lógica da reprodução capitalista?

Chamo a atenção para o fato de que, na visão do filósofo marxista Georg Lukács, a democracia deve ser entendida não como algo estático, mas como um processo8. Por isso, ele julga ser sempre mais adequado falar em “democratização”. Publiquei em 1979 um ensaio, mui-to discutido na época, chamado A democracia como va-lor universal. Este título reproduz uma expressão de Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista Italiano, expressão que usei — naquele mo-mento de simultâneo combate contra a ditadura e con-tra o dogmatismo “marxista-leninista” — como ban-deira de luta. Não teria nada a modificar hoje no que está dito naquele velho ensaio, escrito há mais de vinte anos atrás: mas certamente poria um outro título, ou seja, A democratização como valor universal, já que o que tem valor universal não são as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos histó-ricos — formas essas sempre modificáveis, sempre re-nováveis, sempre passíveis de aprofundamento —, mas o que tem valor universal é esse processo de democratização,

que se expressa essencialmente numa crescente socialização da participação política9.

A partir do último terço do século XIX e, sobretudo, ao longo do século XX, pode-se notar que um número crescente de pessoas passa a participar da vida política. Nos regimes liberais de sufrágio restrito, com sindica-tos e partidos de oposição ao sistema postos fora da lei, ocorre uma baixa participação política. Temos, de um lado, a classe dominante organizada no Estado — o qual, na época, Marx e Engels chamaram de “comité que administra os negócios comuns da classe burgue-sa”10 —, e, de outro, pequenos grupos clandestinos ou semiclandestinos, clubes revolucionários de inspiração jacobina, que expressavam a posição das classes traba-lhadoras em oposição frontal ao Estado11. Enquanto isso, a grande massa da população não tinha nenhuma participação política, nem mesmo eleitoral. É por isso que surge entre os socialistas deste período — como, por exemplo, no revolucionário francês Auguste Blan-qui — a ideia de que a revolução proletária deve ser feita por uma minoria revolucionária que age em nome do povo. Em contraposição e esta situação claramen-te oligárquica, o processo de democratização a que me referi caracteriza-se por uma ampliação crescente da participação popular, ou, como os marxistas italianos a chamam, pela crescente socialização da política.

Mas esse processo de progressiva democratização, de socialização da política, choca-se com a apropriação privada dos mecanismos de poder. Temos aqui uma contradição: o fato de que haja um número cada vez maior de pessoas participando politicamente de modo organizado, constituindo-se como sujeitos colectivos, choca-se com a permanência de um Estado apropria-

do restritamente por um pequeno grupo de pessoas, ou seja, apenas pelos membros da classe economicamente dominante ou por seus representantes. Essa contradição só pode ser superada — superação que é precisamente o processo de democratização — na medida em que a socialização da participação política se expresse numa crescente socialização do poder, o que significa que a ple-na realização da democracia implica a superação da ordem social capitalista, da apropriação privada do Estado, e a consequente construção de uma nova ordem social, de uma ordem social socialista. Ou seja: de uma ordem onde não haja apenas a socialização dos meios de pro-dução, como os “clássicos” do marxismo insistiram, mas também a socialização do poder. Dizendo isso, volto um pouco atrás, chamando a atenção para o seguinte: esse processo de democratização, que Tocqueville viu como algo irrefreável, choca-se com a lógica do capital. Não se trata de um choque que ocorra num momento concreto, num dia-D e numa hora-H, mas de algo tendencial: o processo de ampliação de democracia implica choques permanentes com a lógica privatista do capital.

Coloca-se assim uma questão: como o capital e seus representantes enfrentaram esse processo objectivo de democratização, que é um processo, digamos, “esponta-neamente” subversivo? Com muita frequência, como se sabe, simplesmente recorrendo à ditadura aberta. Não se pode explicar o fascismo na Itália, o nazismo na Ale-manha, a série de ditaduras militares que conhecemos na América Latina nos anos 1970 e 1980, se tais regimes não forem entendidos como reacção da classe burguesa (que abandona nesse momento qualquer veleidade libe-ral) a essa crescente democratização, tendencialmente anticapitalista. Mas há algumas outras respostas mais

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subtis, uma das quais é, precisamente, a tentativa de assimilar elementos isolados da democracia e pô-los a serviço da perpetuação da ordem capitalista.

Neste sentido, chamo a atenção para uma tendência muito marcada, que se inicia já em meados do século XIX e atravessa todo o século XX, ou seja, para a cres-cente tendência do Estado burguês no sentido de se converter num Estado bonapartista. O bonapartismo não se mani-festa necessariamente por meio de um Estado aberta-mente ditatorial; o que o caracteriza é a presença de formas personalizadas de poder, expressas na figura de um líder carismático que diz representar os interesses do povo e/ou que se apresenta como um árbitro entre as classes sociais. Ocorre que, depois da conquista do sufrágio universal, é por meio deste instituto de origem democrática que o líder carismático busca sua legitima-ção. Trata-se de um processo muito bem analisado pelo filósofo italiano Domenico Losurdo12. Por meio desta tendência bonapartista, o sufrágio universal deixa de ser uma arma potencial de emancipação da classe trabalha-dora e se converte num instrumento de legitimação de chefes carismáticos que, dizendo falar em nome do povo, na verdade representam os interesses de quem pretende conservar a ordem capitalista. Losurdo caracteriza essa utilização bonapartista do sufrágio universal como um processo de “des-emancipação”.

E aqui recordo que um notável sociólogo burguês moderadamente liberal, Max Weber, propôs em 1919 — no momento em que a Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, buscava se reconstruir como república através de uma Constituinte — um dispositivo constitu-cional pelo qual o Presidente da República, mesmo num regime parlamentarista, deveria ser eleito por sufrágio

universal e direto. Na concepção de Weber, isso pos-sibilitaria o que ele chamou de “democracia cesarista”, na qual um chefe carismático, com poderes autoritários, supostamente capaz de se situar acima dos conflitos de classe e de se apresentar como representante de toda a nação, inclusive frente ao Parlamento, obteria sua legi-timação precisamente através do sufrágio universal, do voto popular13. Embora Weber a designasse como “de-mocracia cesarista”, parece-me mais correto chamá-la de “ditadura legitimada pelo sufrágio universal”. Não é difícil perceber que este “tipo ideal” weberiano tor-nou-se a realidade efectiva de muitas das “democracias” ocidentais do século XX; basta lembrar, por exemplo, o emblemático caso de Charles De Gaulle na França. Esta modalidade de bonapartismo — que Losurdo chamou de “bonapartismo soft”, para distingui-lo do autorita-rismo aberto — é um dos modos práticos pelos quais a burguesia tenta esvaziar o potencial revolucionário do sufrágio universal.

Outro pensador liberal que procurou responder teo-ricamente a esse desafio da democracia foi o austro-ame-ricano Joseph A. Schumpeter, conhecido sobretudo pe-los seus trabalhos económicos. Schumpeter foi um dos primeiros pensadores liberais a valorizar positivamente a expressão “democracia”, mas tentando pô-la — por meio de uma sua definição minimalista — ao serviço da conservação da ordem existente. Assim como Mos-ca, Schumpeter diz que não se formam maiorias, que a política é feita por elites; o povo, para ele, não consegue juntar razão e interesse, ou seja, é incapaz de definir racionalmente o seu real interesse e, por isto, seu voto é sempre manipulado pelas próprias elites14. Em outras palavras: o povo não sabe votar, não sabe escolher bem

os seus representantes, não sabe traduzir os seus in-teresses em proposições racionais. Mas pouco importa se o voto popular é racional ou não: para Scumpeter, se diferentes elites se submeterem a eleições periódicas e competitivas, estaremos numa democracia.

Essa redução drástica do significado de “democracia” inicia-se com Schumpeter, mas prossegue com Giovanni Sartori, Robert Dahl, Norberto Bobbio e muitos outros pensadores liberais contemporâneos, conservadores ou progressistas. Democracia passa a ser, assim, o cumpri-mento de alguns procedimentos formais — as famosas regras do jogo —, sendo o principal deles a existência de eleições periódicas, nas quais o povo (de resto, se-gundo estes liberais, sem muita consciência do que está fazendo) escolhe entre elites. Não é casual que se tenha chegado mesmo a uma chamada “teoria económica da democracia”, segundo a qual a disputa política segue as mesmas leis do mercado. Quando leio Schumpeter e seus epígonos, sempre me vem à memória a ironia que Rousseau, em O Contrato social, publicado em 1762, dirigia contra os ingleses: os ingleses pensam que são livres, dizia ele, mas são livres apenas um dia a cada quatro ou cinco anos, ou seja, no dia em que votam para o Parlamento.

E por que Rousseau diz isso? Porque ele tinha uma concepção de democracia radicalmente diversa daquela predominante no pensamento liberal contemporâneo. Para o autor de O contrato social, democracia significa participação de todos na formação do poder. Só é legí-tima uma lei quando aprovada pela assembleia popular; o povo soberano não delega sua soberania a represen-tantes, mas apenas comissiona, ou seja, nomeia funcio-nários que executam sua vontade. O governo, segundo

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [71] CONTRATEMPOS

NÃO HÁ EFECTIVA IGUALDADE POLÍTICA SE NÃO HÁ IGUALDADE SUBSTANTIVA,

UMA IGUALDADE QUE PASSA NECESSARIAMENTE PELA ESFERA ECONÓMICA. E NÃO É PRECISO

SER MARXISTA OU SOCIALISTA PARA DIZER ISSO: ROUSSEAU JÁ O DIZIA EM PLENO SÉCULO XVIII

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [72] CONTRATEMPOS

o pensador genebrino, não tem nenhuma soberania, mas é formado precisamente por comissários do povo, sendo este o verdadeiro e único soberano. Jean-Jacques, portanto, não aceita o instituto da representação (ca-racteristicamente liberal), mas defende uma democra-cia directa, com plena participação popular. A definição schumpeteriana da democracia como escolha periódica de elites por meio do voto seria tratada por Rousseau com a mesma ironia com que tratou o regime liberal inglês do seu tempo.

Além disso, essa nova versão minimalista ou “pro-cedimental” da democracia despoja-a completamente de qualquer dimensão económica e social. Estaríamos diante de um regime democrático sempre que certos procedimentos fossem observados: eleições periódicas disputadas por mais de uma elite, um parlamento fun-cionando (ainda que com escassos poderes diante da ditadura cesarista do Executivo), etc. É evidente que Rousseau também não aceitaria essa definição puramen-te formal. Para ele, a igualdade não se limita ao direito formal de participar do tal “mercado político”; a igual-dade tem uma base material, sem a qual o cidadão não poderá participar igualitariamente da construção do que ele chama de “vontade geral”, motor da soberania popular15. Rousseau dizia que, numa sociedade legítima, ninguém pode ser tão pobre que seja obrigado a se ven-der: ele estava assim claramente condenando o trabalho assalariado, ou seja, dizendo que a democracia que ele pregava era incompatível com o principal instituto do modo de produção capitalista. No pensador genebrino, portanto, democracia é incompatível com capitalismo. É verdade que Rousseau é anticapitalista do ponto de vista de uma economia de artesãos e de pequenos proprietá-

rios rurais, isto é, de um modo de produção mercantil simples, que o capitalismo de seu tempo estava inexora-velmente destruindo. Jean-Jacques não é socialista; seu anticapitalismo é romântico e passadista, mas certamen-te ele está nos indicando aqui alguma coisa de extrema actualidade, a saber, que não há democracia efectiva onde existe excessiva desigualdade material entre os cidadãos.

Ademais, essa desigualdade material impede que haja até mesmo uma democracia política efectiva. Dou alguns exemplos. Todos sabemos que numa eleição, do ponto de vista formal, cada um de nós tem um voto e o dono de uma rede de televisão também tem um voto. Sabemos que o voto, por exemplo, de um Roberto Marinho, depo-sitado na urna, vale tanto quanto o nosso. Mas ele tem o poder de conquistar milhões de votos através da ma-nipulação feita pelos meios de comunicação que domina como proprietário privado. Isso transforma a suposta igualdade formal entre nós apenas numa aparência. Ou-tro exemplo: todos temos formalmente o direito de ir e vir. Sem dúvida, se tirarmos o passaporte na Polícia Fe-deral e comprarmos uma passagem na Varig ou na Air France, poderemos ir a Paris e voltar. Todos temos este direito formal, mas sabemos muito bem que nem todos podem exercê-lo. Há os que não podem ir nem do Méier à Gávea porque não têm dinheiro para pagar o ônibus. Com isso, estou querendo dizer que a democracia — se a entendermos no sentido forte da palavra, isto é, no sentido da igualdade material, da participação colectiva de todos na apropriação dos bens coletivamente criados, etc. — tem também uma dimensão social e económica. Não há efectiva igualdade política se não há igualdade substantiva, uma igualdade que passa necessariamente pela esfera económica. E não é preciso ser marxista ou

socialista para dizer isso: Rousseau já o dizia em pleno século XVIII16.

Portanto, a disputa ideológica moderna não tem tanto como objecto a oposição explícita entre democracia e antide-mocracia, como ocorria até meados do século XX, mas sim a oposição entre diferentes conceitos de democracia. Com efeito, como já observei antes, nenhum actor político significativo se posiciona hoje abertamente, nem no Bra-sil nem no mundo — salvo, talvez, em alguns regimes fundamentalistas islâmicos —, contra a democracia. Por conseguinte, quando nos dispomos hoje a examinar uma situação concreta para avaliá-la como democrática ou não, temos de saber previamente qual conceito de de-mocracia estamos utilizando. Não podemos nos limitar, para fazer tal avaliação, apenas ao nível dos procedi-mentos formais. Se nos mantivermos neste nível, quase todos os Estados hoje existentes são Estados de direito e, portanto, segundo os “procedimentalistas”, democrá-ticos. Stáline, por exemplo, fez promulgar na ex-União Soviética, em 1934, uma Constituição formalmente de-mocrática (ele até dizia se tratar da Constituição mais democrática do mundo!), que assegurava aos cidadãos soviéticos os direitos de opinião, de voto, de ir e vir, etc. — e nós sabemos o que ocorria na realidade, ou seja, o terrorismo brutal de uma ditadura despótica.

Portanto, não basta estatuir regras do jogo. Temos aqui, certamente, uma condição necessária, mas que está longe de ser suficiente para que exista efectivamen-te uma democracia. Para isso, é preciso, por um lado, que tais regras sejam efectivamente democráticas, ou seja, que contemplem a presença não só de formas de representação, mas também de institutos de democracia directa, participativa; e, por outro, que existam também

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [73] CONTRATEMPOS

as condições jurídicas e económico-sociais para que tais regras sejam efectivamente cumpridas. Temos então que a definição minimalista de democracia é uma mera ide-ologia, cujo objectivo principal é esvaziar a democracia do carácter subversivo e anticapitalista que, tanto teórica como praticamente, caracterizou-a desde sua origem.

NOTAS:1 - La Rochefoucauld, Máximas e reflexões, Rio de Janei-ro, Imago, 1994, p. 48. 2 - Tratei mais amplamente do pensamento político do filósofo genebrino em meu ensaio “Crítica e utopia em Rousseau”, em Lua Nova, São Paulo, Cedec, no 38, 1996, p. 5-30. Há várias edições brasileiras do Discurso so-bre a desigualdade e de O contrato social, as principais obras políticas de Rousseau. 3 - B. Constant, “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, in Filosofia política, no 2, Porto Alegre, L&PM, 1985, p. 9-25.4 - Para uma útil antologia dos escritos do pensador francês, cf. A. de Tocqueville, Igualdade social e liberdade política, São Paulo, Nerman, 1988. 5 - Um resumo das idéias políticas do autor italiano está em G. Mosca, História das doutrinas políticas, Rio de Ja-neiro, Zahar, 1975, p. 306-317. 6 - I. Kant, Doutrina do direito, São Paulo, Ícone, 1993, p. 144. 7 - Tratei mais amplamente desta conquista progressi-va da cidadania em meu ensaio “Notas sobre cidadania e modernidade”, em C. N. Coutinho, Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo, São Paulo, Cortez, 2000, p. 49-69. 8 - G. Lukács, L’uomo e la democrazia, Roma, Lucarini, 1987, p. 25.

9 - Cf. C. N. Coutinho, A democracia como valor universal e outros escritos [1979], Rio de Janeiro, Salamandra, 1984, p. 17-48; e Id., Contra a corrente, São Paulo, Cortez, 2000, p. 125-150. 10 - K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunis-ta, in Vários Autores, O Manifesto Comunista 150 anos depois, Rio de Janeiro-São Paulo, Contraponto-Perseu Abramo, 1998, p. 10.11 - É precisamente o caso da Liga dos Comunistas, para a qual Marx e Engels escreveram o seu famoso Manifesto.12 - D. Losurdo, Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadência do sufrágio universal, Rio de Janeiro-São Paulo, Editora UFRJ-Editora Unesp, 2004. 13 - Cf. David Beetham, Max Weber y la teoría política moderna, Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1979, p. 360-385.14 - J. A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democra-cia, Rio de Janeiro, Zahar, 1984, p. 313-375.15 - Recentemente, num programa de televisão, um im-portante cientista político brasileiro — politicamente progressista, mas vinculado teoricamente às concepções “procedimentais” de democracia — afirmou que nosso país vive hoje num regime plenamente democrático. E, diante da observação da entrevistadora de que continua-vam a existir entre nós fortes desigualdades econômicas e sociais, o cientista não vacilou em sua resposta: “Mas o problema da igualdade real nada tem a ver com a de-mocracia”!16 - Não trato aqui da posição dos marxistas em face da democracia por já tê-lo feito, ainda que muito sumaria-mente, em C. N. Coutinho, “Os marxistas e a ‘questão democrática’”, in Id., Marxismo e política, São Paulo,

Cortez, 1996, p. 71-89. Quanto aos fundadores, reco-mendo com ênfase o livro de Jacques Texier, Revolução e democracia em Marx e Engels, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2005.

* Este texto retoma, com alterações de estilo, a primeira parte de “Democracia na batalha das ideias e nas lutas políticas do Brasil de hoje”, publicado em Osmar Fávero e Giovanni Semeraro (orgs.), Democracia e construção do público no pensamento educacional brasileiro, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 11-39. Trata-se da transcrição da confe-rência de abertura por mim pronunciada no seminário homónimo realizado de 14 a 17 de maio de 2001, em Ni-terói, na Faculdade de Educação da Universidade Fede-ral Fluminense. Nesta nova forma, reapresentei o texto no colóquio “Justiça, virtude e democracia”, coordenado por Daniel Tourinho Peres e promovido pelo Mestrado de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 9-11 de Novembro de 2005.

Versão original disponível aqui::http://www.socialismo.org.br/ portal/filosofia/155-artigo/ 699-democracia-um-conceito-em-disputa

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [74] RAPSÓDIARA

PSÓ

DIA

JUDEE SILL POR SANDY GAGEIRO | «CONCURSO», DE PEDRO EIRAS

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [75] RAPSÓDIA

MUITOS DIRÃO QUE NÃO É CRITÉRIO PARA sugerir aqui um disco ou um autor, mas que se dane. Nada tenho contra sentimentalismos. Um amigo de longa data, a viver actualmente em Inglaterra, atra-vessava há uns anos uma fase de enorme inadaptação e, claro, de grande tristeza e ao trocarmos, um dia, ideias e descobertas discográficas surge o nome de Judee Sill. «Não consigo parar de chorar», dizia-me. «Não é só a voz, é a composição e a aquela orques-tração…», acrescentava. «Vais adorar», rematava. Pronto, para começar trocámos ficheiros e depois lancei-me na procura de informação biográfica. En-cheu-me de melancolia.

Filha de dinheiro velho de Hollywood, o pai morre ainda Judee é criança e perde o irmão pouco depois. Foi condenado pelos acontecimentos a uma vida de frustração e inconformismo emocional que ela transposta para a música. Toca em pequenos ca-fés e bares, apenas por desporto. Corriam os anos 60, o consumo de drogas começa muito cedo e quando empreende uma longa viagem pelos Estados Unidos intensifica-se, especialmente o uso de heroína. Uma renda que lhe exige 150 dólares por dia. É presa e durante os três meses de encarceramento larga o ví-cio. De regresso a Los Angeles conhece o produtor David Geffen, que no momento se encontrava a criar a Asylum Records. As letras intimistas – místicas, até – e as melodias etéreas e profundas captam a atenção de Geffen que lança a autora com a nova etiqueta. Entram em campo orquestrações de Bob Harris, que também tira maior proveito da voz limpa e profunda

fazendo sobreposições várias. O primeiro single, «Je-sus Was a Cross Over» é imediatamente louvado pela crítica e inicia uma digressão em conjunto com Nash e David Crosby. Mas apesar do airplay na rádio, não consegue chamar a atenção do público. O segundo e último álbum «Heart Food» também recebe o entu-siasmo da especialidade mas falha comercialmente. Em 1979 morre de overdose com 35 anos. O músico, produtor e arranjista, Jim O’ Rourke, apaixonado que é por orquestrações, remisturou um conjunto de ma-terial póstumo Dreams come true e encontramos re-novado interesse nesta cantora através dos recentes – e muito populares - Fleet Foxes, que criaram uma versão de Crayon Angeles. Procurem, para começar, My Man on Love e Enchanted Sky Machine.

DISCOGRAFIA:Judee Sill, Asylum, 1971

Heart Food, Asylum, 1973 Dreams Come True, Water, 2005

Judee Sill, Rhino Handmade, 2005 Abracadabra: the asylum years, Rhino, 2006

Live in London: The BBC recordings 1972-1973, Trobadour, 2007

«DA LAMA NASCE O LOTUS» SANDY GAGEIRO

JUDEE SILL,

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [76] RAPSÓDIA

O DUQUE, O BARÃO, O CONDE E O MARQUÊS, para se desenfadarem numa chuvosa tarde de Novembro, decidiram fazer um concursozinho caseiro. O duque e o ba-rão apresentariam projectos de centros comerciais; o con-de e o marquês seriam o júri; o melhor projecto ganharia.

O duque apresentou a sua proposta: o centro comer-cial seria equipado com sensores inteligentes, ligados a um computador central que recolheria os ensinamentos dos maiores investigadores de antropologia, sociologia, psicologia, teoria dos jogos, psicanálise aplicada, rela-tividade e moda. O computador e os sensores “leriam” o estatuto dos eventuais clientes do centro comercial. Mediante a roupa, o modo de andar, o compromisso en-tre arrojo e timidez, tiques subliminares e outros subtis critérios, os candidatos a clientes seriam avaliados numa escala de admissibilidade. Assim, para “não abandalhar o comércio”, na colorida expressão do duque, as portas do centro comercial abrir-se-iam consoante a estirpe do cliente eventual. Um comprador refinado encontraria as portas abertas de par em par; perante um comprador médio, as portas abrir-se-iam apenas pela metade; os clientes pouco endinheirados, por seu turno, teriam de passar por uma fenda severa entre as portas de vidro, aprendendo que se devem esforçar mais se querem ser aceites na sociedade. Quanto aos indigentes, “peço des-culpa pela palavra”, comentou o duque, encontrariam as portas irreversivelmente fechadas.

O conde e o marquês aplaudiram muito a proposta do duque.

O marquês foi breve. Disse apenas que faria um cen-tro comercial em tudo igual ao do seu velho amigo, mas

com uma pequena diferença: todos, dos endinheirados aos indigentes, dos que levam notas nas carteiras aos que preferem o cómodo sistema de crédito, encontra-riam as portas abertas de par em par.

O marquês ganhou por unanimidade.

CONCURSO PEDRO EIRAS

VÍRUS JANEIRO/FEVEREIRO 2009 [77] FICHA TÉCNICA

REVISTA VÍRUS #5 JANEIRO/FEVEREIRO 2009

DIRECÇÃO JOÃO TEIXEIRA LOPES

EDIÇÃO GRÁFICA LUÍS BRANCO

CONSELHO EDITORIAL ANA DRAGO

ANDREA PENICHE JORGE COSTA

JOSÉ SOEIROMANUEL DENIZ SILVA

MARIANA AVELÃSNUNO TELES

PEDRO SALESRITA SILVA

RUI BORGES

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO BRUNO MAIA

CARLOS NELSON COUTINHODEIDRÉ MATTHEE

FERNANDO ROSAS JOSÉ SOEIRO

HUGO DIASLUIS FAZENDA

MANUELA TAVARESMARIA JOSÉ MAGALHÃES

MARIANA AIVECAPEDRO EIRAS

SALOMÉ COELHOSANDY GAGEIRO

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SC_008_13M MOKAMBO (ALIAS LETNEO)

PRAVDA FREEDOM TOAST

REPUTED VIRTUES OF SOCIALISM MURAL MR G’S TRAVELS

4112243KVE FREEDOM TOAST

365 51 DEVASTAR

FEMINIST FIST EVA THE WEAVER

- +LYN

FEMINIST FOREVER @ IWD (2008) LOOKING4POETRY

DIAAÇÃOGLOBALSP2008-07 LUNA.ROSA

22ND FEBRUARY 2008 / DAY 53 (418) MRS MAGIC

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