revista vírus #11

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VÍRUS #11 — NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 SOCIALISMO 2010 TIAGO IVO CRUZ PENSAR O SOCIALISMO ANA BASTOS O PROBLEMA É A SOLUÇÃO: MODERNIDADE, CRISE AMBIENTAL E IMPLICAÇÕES SOCIAIS LUÍS FARINHA OCASO DA PRIMEIRA REPÚBLICA JOÃO RODRIGUES E NUNO TELES PARA LÁ DA ECONOMIA - 2012 JOSÉ GUILHERME GUSMÃO ESPÍRITOS, LETRAS E PRÁTICAS JOÃO SEMEDO E SOFIA CRISÓSTOMO SNS – NEM ROSA VELHO NEM LARANJA CHOQUE: A RESPOSTA DA ESQUERDA XOSÉ CARBALLIDO PRESAS BANCO PÚBLICO DE TERRAS JOÃO TEIXEIRA LOPES A RECEPÇÃO É A ARMA DO POVO? + CONTO DE PEDRO EIRAS

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Nesta edição: Tiago Ivo Cruz - "Pensar o Socialismo"; Ana Bastos - "O problema é a solução: modernidade, crise ambiental e implicações sociais"; Luís Farinha - "O caso da Primeira República"; João Rodrigues e Nuno Teles - Para lá da economia - 2012; José Guilherme Gusmão - "Espíritos, letras e práticas"; João Semedo e Sofia Crisóstomo - "SNS - Nem rosa velho nem laranja choque: a resposta da esquerda"; Xosé Carballido Presas - "Banco público de terras"; João Teixeira Lopes - "A Recepção é a arma do povo?"; Conto de Pedro Eiras - "A máquina de pensar"

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VÍRUS#11 — NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010

SOCIALISMO 2010

TIAGO IVO CRUZPENSAR O SOCIALISMO

ANA BASTOS O PROBLEMA É A SOLUÇÃO: MODERNIDADE,

CRISE AMBIENTAL E IMPLICAÇÕES SOCIAIS

LUÍS FARINHA OCASO DA PRIMEIRA REPÚBLICA

JOÃO RODRIGUES E NUNO TELES PARA LÁ DA ECONOMIA - 2012

JOSÉ GUILHERME GUSMÃO ESPÍRITOS, LETRAS E PRÁTICAS

JOÃO SEMEDO E SOFIA CRISÓSTOMO

SNS – NEM ROSA VELHO NEM LARANJA CHOQUE: A RESPOSTA DA ESQUERDA

XOSÉ CARBALLIDO PRESAS BANCO PÚBLICO DE TERRAS

JOÃO TEIXEIRA LOPES A RECEPÇÃO É A ARMA DO POVO?

+ CONTO DE PEDRO EIRAS

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [2] EDITORIAL

AO PUBLICAR OS TEXTOS QUE RESULTAM DE algumas das intervenções proferidas no socialismo 2010, realizado em Braga, no final de Agosto, por inicia-tiva do Bloco de Esquerda, lançamos alguns contributos para imaginar a mudança.

A construção de processos alternativos requer muita paciência: os resultados raramente são visíveis no curto e médio prazo e, por vezes, parecem esfumar-se nas boas intenções. A mudança, na verdade, não tem a direcção de uma seta nem se pode conceber como a distância mais curta entre dois pontos. Por outro lado, a difícil conver-são do pensamento em praxis transformadora convida os preguiçosos à desistência ou à repetição de um puzzle cuja resolução é invariavelmente a mesma.

Imaginar a mudança requer aprumo técnico, saber científico e forte entrosamento com a materialidade das práticas sociais que, em certa medida, estão sempre em situação de avanço face à teoria (mesmo quando esta se pretende vanguardista e até quando as práticas parecem assumir uma configuração regressiva).

Requer também a transcendência dos possíveis. Daí o ofício da imaginação: transpor para outras coordena-das os limites do que se pode pensar e fazer (e fazer-pen-sando e pensar-fazendo). Tantas vezes em contra-mão, perpassando contradições e tensões, avanços e recuos, como uma espécie de nomadismo que exige a coragem propriamente intelectual de propor traduções, de rejei-tar automatismos e de atravessar a complexidade com atenção e um certo deslumbramento.

Quando o fragmento se impõe, persistamos no afã de conceber a totalidade, mas sem deixar de magicar a diferença e a mutação que nela se relacionam.

Eis o propósito desta revista, o seu fio de Ariadne.

OBLÍQUA MUDANÇA EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [3] SOCIALISMO 2010

Reflectir, confrontar e discutir é a base sobre a qual uma ideia se desenvolve e ganha capacidade. Capacidade de mudar e de criar novas realidades e percepções para a economia, a sociedade, história e culturas.

Uma ideia deve ser entendida como uma entidade própria, que se procura expandir sempre, de forma ine-xorável, num jogo ininterrupto sofrendo as mutações que lhe permitirem sobreviver. Algumas ideias são par-ticularmente virulentas, outras passam despercebidas durante séculos, outras ainda exigem atenção, cuidado e reflexão pela potencialidade e possibilidades que delas podem surgir.

E é extraordinário o quão resilientes algumas ideias podem ser. Chegamos ao séc. XXI com uma crise fi-nanceira que abalou o sistema capitalista e a ideologia neo-liberal numa consumação profética do seus próprios instintos predadores e no entanto, sentenciada e rejei-tada por tantos, a própria ideia de capitalismo responde entrando em novo processo de mutação num movimen-to sem paralelo histórico. É bom lembrar que esta ideia sobreviveu já a duas guerras mundiais (e delas se ali-mentou), à industrialização e à financiarização mundial da economia.

Por causa dos seus méritos? Pelo contrário. Temos hoje provas dos seus limites, das falhas e das conse-quências da sua hegemonia. Os PECs, a delapidação dos salários, das reformas e das pensões, a precarização do trabalho, a criminalização dos pobres, tudo isto é o produto de uma ideia que faliu e ameaça lançar-nos na bancarrota completa.

Urgem alternativas. Uma extensa operação de pro-cura e mudança de paradigma para uma nova hegemonia cultural que recupera os ganhos do pós-guerra europeu e constrói novos caminhos na democratização da economia.

Socialismo é uma palavra usada e abusada, com expe-riências que não construíram respostas nem futuros, ou experiências que muitas vezes se acanharam de procu-rar aquilo que todos merecemos. Mas Socialismo pode e deve ser um sistema de ideias em potência, em desenvol-vimento e em confronto democrático. O seu potencial é tanto mais desenvolvido quanto mais pessoas as usarem, no dia-a-dia. Ideias feitas todas a gente as tem. Não é por acaso. O pensamento neo-liberal assim o obriga. Procu-rar alternativas significa por isso quebrar ideias feitas, quebrar a vertigem da crise e o domínio do centrão par-tidário. E esta procura ganha-se com sentido, objectivos claros e uma prática alternativa de ganhos concretos.

O Fórum Socialismo é por isso um momento de construção de ideias. Ideias que fazem falta porque são possíveis. Este ano na sua quarta edição, o Bloco de Es-querda convidou 45 oradores para apresentar e debater não só as questões centrais da actualidade mas também o que não está e devia estar presente no debate público. Organizado em Braga, na Escola Secundária Sá de Mi-randa, contou com 350 participantes.

Não sendo exequível apresentar uma edição exten-siva foram recolhidas as apresentações de sete oradores que sintetizam um pouco do pensamento produzido no fórum. Com base neste suporte de memória esperamos manter vivo o debate para a alternativa.

PENSAR O SOCIALISMO TIAGO IVO CRUZ | PROGRAMADOR CULTURAL

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [4] SOCIALISMO 2010

O PROBLEMA É A SOLUÇÃOMODERNIDADE, CRISE AMBIENTAL E IMPLICAÇÕES SOCIAIS

ANA BASTOSSOCI

ALI

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [5] SOCIALISMO 2010

A CRISE AMBIENTAL E AS CRISES SOCIAIS - O ULTIMATO DA NATUREZA

The universe is not required to be in perfect harmony with human ambition.

Carl Sagan

As preocupações ambientais, sob a forma de conser-vação da natureza ou de crítica à industrialização, exis-tem praticamente desde o início da revolução industrial. No entanto, ao longo do século XIX e boa parte do sé-culo XX, mantiveram-se restritas a algumas elites ou a movimentos políticos minoritários de cariz anarquista.

A publicação do livro “Silent Spring” de Rachel Car-son em 1962, onde esta denunciava os impactes do uso de pesticidas, marca um ponto de viragem - é a partir da década de 60 que explodem os movimentos ambientalis-tas de várias naturezas e que a ecologia é transportada para o discurso público e dos media. A preservação da biodiversidade, a poluição da atmosfera, da água e dos solos, o uso de fertilizantes e pesticidas químicos, a de-pleção das reservas energéticas, o consumo exponencial de recursos naturais finitos e o problema da explosão demográfica tornaram-se a base da crítica ao modelo de desenvolvimento da sociedade ocidental por parte

dos “ambientalistas”. É sobretudo na década de 80, com o problema do buraco do ozono devido às emissões de CFCs, que desperta a consciência de que estes proble-mas são globais e que as suas soluções também terão necessariamente de o ser. O aparente sucesso do Proto-colo de Montreal (para eliminar as emissões de CFCs) não se traduziu, no entanto, na mesma capacidade para lidar de forma eficaz com a maioria dos problemas am-bientais, apesar dos avanços que se deram nas últimas duas décadas. As alterações climáticas puseram a nú de forma dramática as fragilidades daquilo a que se chama a “comunidade internacional” no que toca à cooperação para resolver problemas comuns.

Desde finais da década de 80, havia suspeitas da comunidade científica acerca da influência humana no clima devido às emissões de Gases com Efeito de Es-tufa (GEE)1. O Terceiro Relatório do Painel Intergo-vernamental das Nações Unidas para as Alterações Cli-máticas (IPCC) sustentou que as alterações do sistema climático observadas ao longo do século XX - como o aumento da temperatura média do planeta, alterações dos regimes de pluviosidade, ou a diminuição do volume de gelo nos pólos – estavam relacionadas com o aumen-to da concentração de CO2 (e outros GEE) na atmosfera, resultante da actividade humana nos países industriali-zados. Devido ao aumento crescente das emissões glo-

bais destes gases e ao longo período de residência dos mesmos, o IPCC apelava ainda para a acção urgente e global no sentido de estabilizar a sua concentração, o mais rapidamente possível, para que a temperatura mé-dia global aumentasse até 2ºC em relação ao período pré-industrial. Este limite de 2ºC tem reunido consenso nas últimas duas décadas, o que corresponde à estabi-lização da concentração de CO2 na atmosfera em cerca de 450ppm.

A necessidade de uma diminuição rápida, senão ime-diata, das emissões de GEE prende-se sobretudo com a complexidade do sistema terrestre, já que é preciso ter em conta a sua inércia, os mecanismos de feedback posi-tivo ou negativo, e as múltiplas, complexas e dinâmicas interacções entre os seus diversos elementos. Como se pode observar pela Fig.1, só eliminando imediatamente as emissões de GEE poderíamos assegurar a estabili-zação da temperatura média global abaixo dos 2ºC em relação à correspondente ao período pré-industrial mas, ainda assim, superior.

O cientista James Hansen, um dos primeiros a tra-zer a público a discussão sobre as alterações climáticas, defende, no entanto, que a concentração de CO2 deve descer abaixo das 350ppm (actualmente encontra-se nas 385ppm). A constatação parte de uma análise probabi-lística do intervalo de concentrações para o qual o de-

O PROBLEMA É A SOLUÇÃO - MODERNIDADE, CRISE AMBIENTAL E IMPLICAÇÕES SOCIAIS. ANA BASTOS | ENGENHEIRA DO AMBIENTE

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [6] SOCIALISMO 2010

gelo da Antárctida é irreversível, e que se situa entre as 350 e as 550 ppm.2 Por esse motivo, e porque as conse-quências do aumento da concentração de GEE já podem ser observadas abaixo das 400ppm, Hansen defende que devemos procurar manter a concentração abaixo das 350ppm.3 Por outro lado, Meinshausen defende que em vez de se procurar definir um patamar de estabilização, se deve orientar a análise para a quantidade total de combustíveis fósseis que podermos consumir para ga-rantir segurança. Na mesma linha, Milles Allen estima que já ultrapassámos metade do total que poderemos emitir – cerca de um trilião de toneladas – e justifica que uma análise deste tipo facilita a acção política, dado que o limite total «(…) é como um orçamento. Uma vez usa-do, já não há nada mais para gastar.»4Há uma conclusão subjacente a qualquer uma destas perspectivas: é neces-sária uma inversão urgente na tendência das emissões de GEE - o phasing out terá de ocorrer num espaço de poucas décadas.

Com o problema das alterações climáticas, a resolu-ção da crise ambiental tornou-se prioritária e urgente.

O MUNDO NÃO É PLANO O mundo em que vivemos é um mundo altamente

polarizado. As desigualdades entre o centro – os países industrializados do “Norte” – e a periferia – os países “em desenvolvimento” do “Sul” – são de vários tipos e estão relacionadas.

A promessa da industrialização (dita desenvolvimen-to) em meados do século XX era a promessa do fim de uma série de graves problemas que afectavam os países do Sul: a erradicação da pobreza, melhorias drásticas na saúde das populações, o acesso generalizado à educação,

avanços tecnológicos, em suma, o aumento do “nível de vida” das populações dos países do Sul e a diminuição da sua dependência dos países do Norte. Se é verdade que o desarrollismo produziu melhorias nalguns países (sobretudo na América Latina), a verdade é que a ânsia da industrialização nem trouxe os resultados esperados, nem conseguiu aliviar a dependência dos países do Sul – pelo contrário acentuou-a após a crise do petróleo, com a estagnação da economia mundial e o peso dos empréstimos contraídos em nome do “desenvolvimen-to”. Trouxe ainda, em muitos destes países, problemas sociais e ambientais associados à sobre-exploração de recursos naturais, ao abandono da agricultura e à ex-plosão urbana.

Na década de 80, a “globalização” – entendida como a abertura dos mercados e a livre circulação de capi-tais – surge como a nova solução para os problemas do Sul. Thomas Friedman afirmava que a globalização e o avanço tecnológico tornaram o mundo “plano”, no sen-tido em que todos os países competem em igualdade de circunstâncias. Pelo contrário, no actual mundo globa-lizado, as assimetrias parecem estar a multiplicar-se e sobrepor-se e não a desvanecerem-se.

De facto, no que diz respeito à pobreza, as dispari-dades continuam a crescer: a população a viver abaixo do limiar da pobreza (menos de 2€ por dia) tem vindo a aumentar, situando-se actualmente perto dos 2,5 mil mi-lhões de pessoas5. Apesar de todas as campanhas de erra-dicação da pobreza, de ajuda humanitária aos países “em desenvolvimento”, do alívio total ou parcial da dívida externa, dos esforços de movimentos de Comércio Justo ou de promoção dos Direitos Humanos, entrámos no sé-culo XXI num mundo menos igualitário e mais injusto.

Como Boaventura Sousa Santos afirma, aquilo que se define como globalização corresponde à «globaliza-ção bem sucedida de determinado localismo»6, implicando sempre, em alguma medida, a imposição dos vencedores sobre os vencidos. O processo de globalização das últi-mas três décadas correspondeu à hegemonia de um de-terminado modelo político e económico, marcadamente ocidental, baseado no “Consenso de Washington”7 e cen-trado nos interesses do Norte.

A industrialização e o consumo crescentes compor-tam também graves problemas ambientais: desde a des-truição da biodiversidade, à desertificação, aos diversos tipos de poluição, ao consumo de recursos além da ca-pacidade de regeneração dos mesmos, da desflorestação às alterações climáticas. A crise ambiental não se limita a estas últimas (ao contrário do que pode parecer mais recentemente), mas corresponde à interligação e sobre-posição de todos os danos provocados pela actividade humana num mundo cada vez mais industrializado. São, portanto, os países industrializados os principais res-ponsáveis pela crise ambiental – o Norte, juntamente com algumas “potências emergentes”. Estes países têm ainda, nos últimos anos, exportando uma boa parte das consequências mais danosas – venda de lixo tóxico, des-locação das indústrias mais poluentes – para os países do Sul, onde a consciência ecológica das populações é inferior e a regulamentação menos apertada.

Se considerarmos as emissões totais de CO2 desde 1750, cerca de 60% foram realizadas pela Europa e pelos EUA, como se pode verificar pela Fig.2. O problema das emissões de GEE é que não é possível “exportar” as suas consequências já que estas são, inegavelmente, globais.

O Norte, apesar disso, tem ensaiado manobras de di-

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [7] SOCIALISMO 2010

versão para evitar mudanças estruturais efectivas e co-locar a responsabilidade da resolução do problema nos países do Sul, por exemplo através dos CDM, previstos no Protocolo de Quioto.8

Para as populações do Sul, as alterações climáticas representam o culminar de um processo que «priva os pobres dos seus direitos fundamentais à alimentação, solo e dos seus meios de subsistência.»9 Para perceber os motivos, é preciso considerar em primeiro lugar os principais impactes e consequências sociais das altera-ções climáticas e, em segundo, as respostas que têm sido dadas para a sua resolução.

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS – IMPACTES DESIGUAIS

Os principais efeitos das alterações do sistema cli-mático10 podem ser resumidos em:

— Aumento da temperatura média global; — Alterações dos regimes de pluviosidade; — Maior intensidade e frequência de fenómenos ex-

tremos como secas, cheias e ciclones; — Expansão da zona tropical; — Degelo dos pólos; — Aumento do nível médio das águas do mar. Estes efeitos não incidem da mesma forma sobre to-

das as zonas do globo, nem os seus impactes na activida-de humana são independentes da região que estivermos a considerar. As suas consequências dependerão sempre de uma combinação do tipo de alteração que afecta de-terminada zona, da densidade populacional, da depen-dência da população nos recursos naturais afectados bem como da sua capacidade para lidar com o problema e para se adaptar.

Num estudo realizado pela ONU e pela CARE, os dados sobre vulnerabilidade humana – a capacidade de os indivíduos, comunidades ou sociedades recuperarem ou adaptarem-se a riscos ambientais – foram cruza-dos com a probabilidade de incidência de cheias, secas e ciclones nessa região.11 Como se pode ver na Fig.3 a vulnerabilidade humana é particularmente elevada nas regiões do Sahel, do nordeste e centro africano; nas re-giões próximas do mar Cáspio; no sul, sudeste e nas ilhas asiáticas. Estes dados são cruzados com a inci-dência dos fenómenos extremos descritos, de forma a determinar áreas de elevado risco humanitário. Como se pode observar pela fig. 4, estas zonas concentram-se sobretudo em África (Sahel, nordeste e centro), no sul e sudeste asiáticos, nalgumas zonas da América Central e na região ocidental da América do Sul.

É preciso considerar ainda que muitas destas regiões são zonas de densidade populacional elevada e crescen-te, pelo que as populações afectadas pelos fenómenos ex-tremos poderão ser obrigadas a migrar, temporária ou definitivamente. Além disso, o relatório revela ainda que muitas das zonas mais afectadas pelas secas são zonas de tensão bélica. A seca é, dos três fenómenos, aquele que

mais poderá contribuir para a possibilidade de conflitos – pela redução da água disponível e pela diminuição dos recursos alimentares. A incidência de secas nestas zonas poderá aumentar as tensões de conflitos armados.

O IPCC aponta que as pequenas ilhas também de-verão sofrer graves consequências das alterações cli-máticas.12 As alterações dos regimes de pluviosidade poderão limitar o acesso a água. A subida do nível do mar aumentará a erosão costeira, o risco de inundações e poderá destruir determinadas infra-estruturas vitais para a actividade económica, nomeadamente o turismo; quando combinada com poluição, alterações na circula-ção oceânica e o aumento da temperatura, reduzirá con-sideravelmente a biodiversidade das zonas costeiras, di-minuindo o acesso a recursos que constituem a base das economias locais dessas ilhas. Nalgumas ilhas, a conju-gação de vários impactes poderá torná-las inabitáveis, o que levará à migração das suas populações. Na verdade, já há actualmente ilhas que se tornaram inabitáveis pelo aquecimento global: a população das ilhas Carteret, per-to da Nova Guiné, foi evacuada em Abril de 2009: devi-do à subida do nível do mar e ao aumento da salinidade da água, as suas culturas tornaram-se improdutivas.13

JÁ HÁ ACTUALMENTE ILHAS QUE SE TORNARAM INABITÁVEIS PELO

AQUECIMENTO GLOBAL: A POPULAÇÃO DAS ILHAS CARTERET,

PERTO DA NOVA GUINÉ, FOI EVACUADA EM ABRIL DE 2009: DEVIDO À SUBIDA

DO NÍVEL DO MAR E AO AUMENTO DA SALINIDADE DA ÁGUA, AS SUAS

CULTURAS TORNARAM-SE IMPRODUTIVAS.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [8] SOCIALISMO 2010

Anexos

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Ana Bastos nº35592

Figura 2 – Emissões de CO2 acumuladas desde 1750 até 2006.

Figura 1 - Simulação da resposta da temperatura em função da concentração de CO2 na atmosfera para diferentes cenários.

Anexos

20

Ana Bastos nº35592

Figura 2 – Emissões de CO2 acumuladas desde 1750 até 2006.

Figura 1 - Simulação da resposta da temperatura em função da concentração de CO2 na atmosfera para diferentes cenários.

FIGURA 2 – EMISSÕES DE CO2

ACUMULADAS DESDE 1750

ATÉ 2006.

FIGURA 1 – SIMULAÇÃO DA RESPOSTA DA TEMPERATURA EM FUNÇÃO DA CONCENTRAÇÃO DE CO2 NA ATMOSFERA PARA DIFERENTES CENÁRIOS.

FIGURA 3 – VULNERABILIDADE HUMANA GLOBAL, BASEADA NUMA COMBINAÇÃO DE FACTORES NATURAIS, HUMANOS, SOCIAIS, ECONÓMICOS E FÍSICOS. AS ZONAS A AZUL ESCURO ESTARÃO MAIS VULNERÁVEIS SE SUJEITAS A FENÓMENOS EXTREMOS.

FIGURA 4 – ZONAS DE RISCO HUMANITÁRIO ELEVADO, COMBINANDO A VULNERABILIDADE HUMANA COM A INCIDÊNCIA DE CHEIAS, SECAS E CICLONES. A AMARELO ESTÃO AS ZONAS SUJEITAS A UM DOS RISCOS, A VERDE AS ZONAS SUJEITAS A DOIS E A AZUL ZONAS SUJEITAS AOS TRÊS.

Anexos

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Ana Bastos nº35592

Figura 4 – Zonas de risco humanitário elevado, combinando a vulnerabilidade humana com a incidência de cheias, secas e ciclones. A amarelo estão as zonas sujeitas a um dos riscos, a verde as zonas sujeitas a dois e a azul zonas sujeitas aos três.

Figura 3 – Vulnerabilidade humana global, baseada numa combinação de factores naturais, humanos, sociais, económicos e físicos. As zonas a azul escuro estarão mais vulneráveis se sujeitas a fenómenos extremos.

Anexos

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Ana Bastos nº35592

Figura 4 – Zonas de risco humanitário elevado, combinando a vulnerabilidade humana com a incidência de cheias, secas e ciclones. A amarelo estão as zonas sujeitas a um dos riscos, a verde as zonas sujeitas a dois e a azul zonas sujeitas aos três.

Figura 3 – Vulnerabilidade humana global, baseada numa combinação de factores naturais, humanos, sociais, económicos e físicos. As zonas a azul escuro estarão mais vulneráveis se sujeitas a fenómenos extremos.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [9] SOCIALISMO 2010

No que concerne aos sistemas costeiros, os impactes são semelhantes – erosão costeira, diminuição dos recursos marinhos – agravados pela pressão humana nestas regi-ões. No entanto, o IPCC reconhece que a adaptação nas zonas costeiras dos países “em desenvolvimento” será mais difícil do que nos países “desenvolvidos”.

Um dos impactes mais dramáticos das alterações cli-máticas é na agricultura, já que a agricultura é ainda a base de subsistência de uma grande parte da população mundial. A alteração dos padrões de pluviosidade, o au-mento da temperatura média e o aumento de fenómenos extremos afectam directamente a produtividade agríco-la de culturas de sequeiro e de regadio e, pela alteração da água disponível, afectam indirectamente as culturas de regadio. Na maioria das regiões consideradas, es-tas mudanças diminuem a produtividade agrícola, no entanto há regiões em que certas culturas podem ser ligeiramente mais produtivas – o trigo e o arroz sem irrigação, sobretudo nalgumas regiões dos países desen-volvidos. 14 A fig. 5 sintetiza os principais impactes na produção de recursos alimentares: as regiões que vêem reduções drásticas nas suas colheitas são a Ásia oriental e as ilhas do pacífico (milho, arroz e trigo com irriga-ção), o sul Asiático (todas as culturas com irrigação), a África subsariana (milho), o Médio Oriente e algumas zonas da América do Sul. A produção de gado também diminuirá em praticamente todo o globo, excepto no Norte da Europa, EUA e Canadá.

Quando se analisa o impacte que a redução da pro-dutividade agrícola e pecuária tem na alimentação das populações, verifica-se que, por todo o globo, a disponi-bilidade calórica diária será em 2050 não só inferior ao que seria sem alterações climáticas, mas inferior à do

ano 2000 (Fig.6). Verifica-se também que as populações dos países “desenvolvidos” continuarão a ter disponíveis acima das 3000kcal/dia, enquanto as dos países “em de-senvolvimento” viverão abaixo das 2500kcal/dia – na África Subsariana este valor desce mesmo abaixo das 2000kcal/dia.15

Por outro lado, com a redução da produtividade das culturas, os preços das mesmas tenderão a subir, o que agravará a situação de muitas destas populações, com o acesso a bens essenciais cada vez mais limitado.

É esperado um aumento considerável de problemas de saúde associados às alterações climáticas. De facto, actualmente estes problemas já se fazem sentir: estima-se que a saúde de 235 milhões de pessoas é afectada por consequências das alterações climáticas e 300000 mor-tes por ano estejam relacionadas com alterações no cli-ma.16 As alterações climáticas já alteraram a distribuição dos portadores de certas doenças infecciosas (malária, dengue e febre amarela, por exemplo) e de certas espé-cies de pólenes que provocam alergias e aumentaram o número de mortes devido a ondas de calor. Espera-se que nos próximos cinquenta anos, a saúde humana ve-nha a degradar-se ainda mais devido a estes fenómenos: aumento dos níveis de má nutrição, sobretudo infantil; alterações nos padrões de distribuição dos portadores de doenças infecciosas, o que aumentará o número de pessoas em risco de as contrair; agravamento das conse-quências de doenças como diarreia; aumento do número de mortes devido a fenómenos extremos e pelo aumento de problemas cardio-respiratórios. É expectável que nas latitudes mais a Norte haja uma redução do número de mortes devido a ondas de frio, no entanto o aumento do número de mortes devido a ondas de calor (sobretu-

do nos países “em desenvolvimento”) ultrapassará em grande medida esta redução.17 A mortalidade relaciona-da com as alterações climáticas tenderá a ser superior nas populações mais vulneráveis, com pior alimentação, condições sanitárias mais precárias e sistemas de saúde inexistentes ou insuficientes. Como se pode ver pela fig. 7, a mortalidade relacionada com as alterações climáti-cas incide sobretudo em África, no Médio Oriente e em toda a região sul da Ásia.

A actividade turística também deverá sofrer altera-ções: à medida que as regiões temperadas se tornam mais quentes, haverá uma tendência para o aumento do turismo interno na Europa, sobretudo nos períodos de Verão. Espera-se também uma diminuição do turismo nos “paraísos tropicais”, à medida que os fenómenos extremos aumentam em frequência e intensidade e que estes países de tornam menos seguros e menos “para-disíacos”. Pela diminuição da biodiversidade em muitas zonas do continente africano também se espera que o “turismo selvagem” sofra quebras. É de salientar que muitos dos países que sofrerão reduções na actividade turística são países profundamente dependentes desta – o turismo representa 39% do PIB das Bahamas, por exemplo.18

Todas estas alterações terão consequências geopo-líticas, relacionadas com a segurança alimentar e o con-trole de recursos, a par do acentuar dos movimentos migratórios, que poderão gerar mais conflitos e mais situações de crise humanitária. O degelo do Árctico, por exemplo, ao abrir a possibilidade de navegação e de ex-ploração de recursos minerais e de combustíveis fósseis, tem feito com que aquilo que era uma relação de coo-peração entre as diversas potências que o rodeiam para

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [10] SOCIALISMO 2010

investigação científica se esteja a tornar numa corrida pelo controle da região.

A conclusão que se pode tirar da análise dos impac-tes na actividade humana das alterações climáticas, é que estes afectam sobretudo – e de forma mais drástica – as populações dos países do Sul. Os problemas sociais e humanitários que já se fazem sentir nesta região do globo serão acentuados pelos efeitos das alterações cli-máticas, e agravados por uma série de novas consequên-cias sociais e económicas.

São sobretudo as comunidades do Sul que vivem ainda em regimes de subsistência, profundamente de-pendentes da actividade agrícola, que não têm acesso a serviços básicos de saúde, que não possuem electro-domésticos e que, provavelmente, nem sabem o que é o aquecimento global, que serão as suas principais ví-timas.

Tudo indica que serão também os países do Sul a assumir a responsabilidade de albergar os “refugiados do clima”, já que têm sido estes a conceder asilo à maioria dos refugiados – entre 1992 e 2001 86% dos refugiados provinha de países “em desenvolvimento”, ao mesmo tempo que estes países acolhiam 72% do total de refugia-dos.19 As medidas securitárias tomadas pela União Euro-peia e pelos EUA nos últimos anos não revelam qualquer desejo de inversão neste cenário, pelo contrário.

Os países do Norte terão capacidade para lidar com uma boa parte das consequências negativas e assegurar a adaptação das suas populações, além de que alguns dos efeitos das alterações climáticas trarão alguns benefí-cios (aparentes) para as populações das latitudes mais elevadas.

O modelo de desenvolvimento ocidental, baseado na

industrialização intensiva e numa economia capitalista colocou um duplo fardo sobre a maioria da população mundial: se a globalização acentuou as assimetrias eco-nómicas e sociais entre o Norte e o Sul, as consequências ambientais desse mesmo modelo afectam principalmen-te aqueles que são menos responsáveis por ele, e que mais sofrem com a sua hegemonia. A crise ambiental fecha o ciclo das desigualdades Norte/Sul, sendo ao mesmo tempo causa e consequência destas.

We sink or swim together. Climate change can be a threat to peace and stability.

There is no part of the globe that can be immune to the security threat.

Rajendra K. Pauchauri

É TEMPO DE PARAR DE FINGIR As alterações climáticas colocaram um desafio à hu-

manidade sob a forma de ultimato: depois de décadas e décadas do agravar dos problemas ambientais, da sua re-solução apenas parcial ou sem que estes fossem resolvi-dos de todo, ou rompemos com uma grande parte daquilo que têm sido as nossas concepções e práticas nas últimas

centenas de anos, ou é a nossa própria sobrevivência que está em risco. O pico do petróleo, somado a esta crise ambiental coloca um perigo adicional: à medida que a produção de petróleo diminui, é provável que aumente o uso de carvão, mais abundante, mas consideravelmente mais poluente. A resposta é, portanto, urgente.

Dado o carácter global dos problemas, as soluções terão necessariamente que ser globais no sentido mais abrangente possível: exigem não só uma solidariedade global em termos territoriais, mas também inter-gera-cionais. Considerando que a crise ambiental integra um ciclo que aumenta as desigualdades e se alimenta delas, é necessário que as soluções sejam ao mesmo tempo soluções que reduzam a probabilidade de infligirmos danos irreversíveis no sistema ecológico e que promo-vam a equidade e a justiça social globais. Impõem-se portanto, soluções estruturais, e não “correcções” que apenas adiam o inevitável ou que exportam os seus cus-tos para zonas do planeta já fragilizadas, como se tem feito até agora. Como diz Stiglitz, «o aquecimento global é um problema global e, no entanto, ninguém quer pagar para o resolver.» 20

CONSIDERANDO QUE A CRISE AMBIENTAL INTEGRA UM CICLO QUE

AUMENTA AS DESIGUALDADES E SE ALIMENTA DELAS, É NECESSÁRIO

QUE AS SOLUÇÕES SEJAM AO MESMO TEMPO SOLUÇÕES QUE REDUZAM

A PROBABILIDADE DE INFLIGIRMOS DANOS IRREVERSÍVEIS NO SISTEMA

ECOLÓGICO E QUE PROMOVAM A EQUIDADE E A JUSTIÇA SOCIAL GLOBAIS.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [11] SOCIALISMO 2010

Anexos

22

Ana Bastos nº35592

Figura 6 – Disponibilidade calórica diária em 2050 para diferentes regiões do globo para cenários sem alterações climáticas, com alterações climáticas (NCAR e CSIRO) e impacte da fertilização (CF).

Figura 5 – Variações na produção de recursos em 2050 devido às alterações climáticas: cereais, gado e silvicultura.

Anexos

22

Ana Bastos nº35592

Figura 6 – Disponibilidade calórica diária em 2050 para diferentes regiões do globo para cenários sem alterações climáticas, com alterações climáticas (NCAR e CSIRO) e impacte da fertilização (CF).

Figura 5 – Variações na produção de recursos em 2050 devido às alterações climáticas: cereais, gado e silvicultura.

FIGURA 5 – VARIAÇÕES NA PRODUÇÃO DE RECURSOS EM 2050 DEVIDO ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS: CEREAIS, GADO E SILVICULTURA

FIGURA 7 – MAPA DO MUNDO ADAPTADO À MORTALIDADE RELATIVA ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS (ÁREA MAIOR REPRESENTA MAIOR NÚMERO RELATIVO DE MORTES).

FIGURA 8 – EVOLUÇÃO DAS EMISSÕES DE CO2 NA UNIÃO EUROPEIA ATÉ 2006 (ROXO), DO PIB (VERMELHO), DO CONSUMO DE ENERGIA (AZUL) E DA INTENSIDADE ENERGÉTICA DA UE-15 (VERDE) E UE-27 (LARANJA).

FIGURA 6 – DISPONIBILIDADE CALÓRICA DIÁRIA EM 2050 PARA DIFERENTES REGIÕES DO GLOBO PARA CENÁRIOS SEM ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, COM ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS (NCAR E CSIRO) E IMPACTE DA FERTILIZAÇÃO (CF).

Anexos

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Ana Bastos nº35592

Figura 8 – Evolução das emissões de CO2 na União Europeia até 2006 (roxo), do PIB (vermelho), do consumo de energia (azul) e da intensidade energética da UE-15 (verde) e UE-27 (laranja).

Figura 7 – Mapa do mundo adaptado à mortalidade relativa às alterações climáticas (área maior representa maior número relativo de mortes).

Anexos

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Ana Bastos nº35592

Figura 8 – Evolução das emissões de CO2 na União Europeia até 2006 (roxo), do PIB (vermelho), do consumo de energia (azul) e da intensidade energética da UE-15 (verde) e UE-27 (laranja).

Figura 7 – Mapa do mundo adaptado à mortalidade relativa às alterações climáticas (área maior representa maior número relativo de mortes).

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [12] SOCIALISMO 2010

AS NÃO-SOLUÇÕES O Protocolo de Quioto foi encarado como a solução

possível para o controle das emissões de GEE, impon-do limites de emissões para 39 países industrializados (Anexo I) e prevendo vários mecanismos para reduzir as emissões nesses países: a criação de um sistema de comércio de licenças de emissão, a possibilidade de pro-jectos de cooperação entre os países do Anexo I para redução conjunta das emissões globais, JI – Joint Imple-mentation – e, como medida de promoção do desenvol-vimento sustentável, a criação dos CDM – Clean Deve-lopment Mechanisms.

Quioto revelou-se não só insuficiente na redução das emissões de GEE globais, como ainda promoveu, muitas vezes o seu aumento.

Em primeiro lugar, não contemplava países que, de-vido ao seu processo de industrialização intensiva re-cente, se tornaram grandes emissores de GEE, como a China, a Índia ou o Brasil. Em segundo lugar, o sistema de mercado apresenta inúmeras fragilidades: parte da assumpção duvidosa de que é possível (e legítimo) de-finir direitos de propriedade sobre a atmosfera; cria um sistema de compra e venda de “licenças” e “créditos” de emissão sujeito à especulação financeira, volátil e com-pletamente desligado da realidade; privilegia soluções baratas e de curto-prazo em vez de mudanças estrutu-rais. Como Vandana Shiva aponta «O carbono circula em Wall Street, não no ciclo do carbono.»21 Em terceiro lugar, os CDM, responsabilizados pelo “desenvolvimento lim-po”, na maioria das vezes nem promovem o “desenvol-vimento” real das comunidades locais, nem reduzem as emissões de GEE. A concessão de créditos em função do cenário “business-as-usual” dá azo a tentativas de fraude

ou de adulteração dos resultados, além de que há exem-plos de créditos concedidos incorrectamente a projectos com início muito antes de o Protocolo ter entrado em vigor, ou mesmo de situações em que créditos são atri-buídos a projectos, apenas porque estes queimam gás natural em vez de carvão, ou porque cumprem a legis-lação local.22 Além disso, muitos dos projectos prejudi-cam as comunidades locais, sendo impostos em nome do “desenvolvimento”: a produção de biocombustíveis em monocultura que degradam os solos e sobem o preço da alimentação ou o uso de territórios indígenas para reflo-restação, privando-os do seu direito legítimo ao terri-tório, recursos e auto-determinação e destruindo o seu património cultural.23 Em quarto lugar, Quioto faz com que qualquer projecto que “reduza” as emissões de GEE seja equivalente, quer este promova soluções estrutu-rais ou apenas de “end-of-pipe”, quer seja um projecto de energias renováveis, nuclear ou hidroeléctrico, ou de promoção da eficiência energética. A melhor prova do falhanço de Quioto é a constatação de que as emissões globais continuam a aumentar e que mesmo a Europa, onde o protocolo foi mais seriamente implementado, fa-lhou o cumprimento dos seus objectivos (fig. 8).

Também a eficiência energética, apontada como uma das principais soluções para o aquecimento global, cons-titui mais o adiar do problema e menos a sua resolução. A emissão de CO2 está profundamente relacionada com a actividade económica, sobretudo no que diz respeito à actividade industrial para satisfazer o consumo crescen-te de bens. Estima-se que a actividade económica global duplique a cada 17 anos, o que implica um aumento ex-ponencial do consumo de energia.24 Apesar de todas as medidas de melhoria da eficiência energética, há limites

físicos para lá dos quais é impossível aumentá-la. Isto significa que se nos concentrarmos apenas em medidas de eficiência energética sem actuar do lado do consumo, por um lado, e da produção limpa, por outro, estaremos apenas a adiar por alguns anos o problema.

A escolha das soluções não pode, igualmente, cen-trar-se apenas na questão das emissões de GEE: a crise ambiental vai além das alterações climáticas, toca todas as componentes do sistema terrestre, solos, oceanos, at-mosfera, biosfera, e como tal, não é equivalente optar pela produção de energia a partir de fontes renováveis, utilizar biocombustíveis ou recorrer à energia nuclear, apesar de ambas terem emissões nulas ou reduzidas.

As “soluções tecnológicas”, como a fertilização dos oceanos com ferro, a colocação de reflectores no céu ou a criação de árvores geneticamente modificadas para absorverem mais CO2 além de terem eficácia altamente duvidosa e impactes ambientais imprevisíveis, são a ten-tativa desesperada de quem não quer assumir que a crise ambiental é, em última análise, uma crise do uso que fa-zemos da tecnologia e da nossa relação com a natureza.

EXTERNALIDADES Desde o início da economia capitalista que a lógica

da acumulação crescente impôs a tentativa de reduzir ao máximo os custos dos inputs da actividade produti-va, bem como das suas consequências negativas. Wal-lerstein aponta: «O principal mecanismo através do qual os empregadores conseguiram, através dos séculos, evitar as despesas com inputs, foi transferindo os custos para outros»25, isto é, externalizar os custos.

A poluição é o exemplo mais óbvio das externalida-des ambientais – durante muito tempo, a maior parte

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [13] SOCIALISMO 2010

dos poluidores dos países industrializados não sofria qualquer sanção por despejar lixo tóxico em rios, ou por poluir a atmosfera. A partir do momento em que os governos destes países (sobretudo por pressões sociais) começaram criar legislação no sentido de internalizar os custos para o ambiente e para a saúde pública (como o princípio do poluidor-pagador, taxas, etc.), muitas das indústrias mais poluentes deslocaram-se para países com legislação menos apertada.

A maior parte dos recursos naturais também tem sido explorado como se fosse algo alheio à economia, os custos da sua renovação ou do seu esgotamento têm sido deixados às gerações futuras. A “prosperidade eco-nómica” ocidental dos últimos séculos baseou-se num autêntico saque de recursos naturais, sem qualquer preocupação com o equilíbrio dos ecossistemas ou das populações humanas que deles dependem, ou com as necessidades das gerações futuras.

A explosão da economia ocidental também teve, e ainda tem, como principal propulsor o acesso a energia barata – muitas vezes com recurso a meios desonestos ou mesmo da violência armada, dos quais a ocupação do Iraque pelos EUA desde 2003 é um dos exemplos recentes. O baixo preço da energia “fóssil” assenta no esquecimento de que consumirmos combustíveis fósseis milhões de vezes mais depressa do que o tempo que es-tes levam a regenerar-se, deveria ser considerado um custo e de que a queima de combustíveis fósseis para produção de energia tem custos ambientais e sociais elevadíssimos. O mesmo se pode dizer da energia de fissão nuclear, apresentada como a melhor solução para resolver o problema das emissões de GEE: no preço da energia nuclear não são contemplados os custos da de-

sintoxicação dos resíduos radioactivos (que leva milha-res de anos a processar-se), nem os impactes ambientais durante todo o tempo de vida de uma central (extracção do minério, preparação, transporte, construção, funcio-namento e do seu desmantelamento), nem os riscos para a saúde ou mesmo a vida humana e biológica no caso de acidentes.

A menos que a economia se subordine, como pare-ce natural, ao ambiente, continuaremos a viver numa realidade fingida, abastecidos por energia barata, con-sumindo cada vez mais recursos, a uma velocidade cada vez mais alucinante.

DÍVIDA EXTERNA VS. DÍVIDA ECOLÓGICA

O ano de 2000 foi o culminar de uma campanha in-ternacional, o Jubileu 2000, pelo cancelamento total da dívida externa dos países do Sul. Quando, em 1996, o Banco Mundial (BM) lançou a “Iniciativa pelos Países Pobres Altamente Endividados”, as expectativas de to-dos os que combatiam pela autonomização dos países do Sul foram goradas. Dos 41 países que se candidataram, considerou-se que 23 não conseguiam sustentar os seus

encargos com a dívida – estavam falidos – mas, apesar disso, em 2005, apenas 18 países tinham conseguido a redução parcial da sua dívida, depois de o G8 lhes ter concedido o seu “perdão”. Aquilo que se definiu como um nível de dívida “sustentável” estava na verdade mui-to acima daquilo que os países pobres podiam suportar: o valor da dívida continuou a aumentar e, actualmente, soma cerca de 1,5 triliões de dólares.26

As ajudas financeiras aos países mais pobres sob a forma de empréstimos têm sido acusadas de, ao contrá-rio do que parece, terem sido criadas para defender os interesses do Norte e alargar a sua hegemonia, man-tendo e aprofundando a dependência dos países do Sul. Na verdade, a concessão de “ajudas” por parte do Fun-do Monetário Internacional (FMI) ou pelo BM depen-dia do cumprimento de uma série de exigências que, invariavelmente, impunham um modelo industrialista de desenvolvimento e que eram baseadas no Consenso de Washington. Estas exigências, além de minarem as democracias dos países, em geral colocaram-nos em si-tuações ainda mais frágeis do que anteriormente.

As condições dos empréstimos aos países pobres, ao imporem certas políticas aos seus governos, limitam a

A MENOS QUE A ECONOMIA SE SUBORDINE, COMO PARECE NATURAL,

AO AMBIENTE, CONTINUAREMOS A VIVER NUMA REALIDADE

FINGIDA, ABASTECIDOS POR ENERGIA BARATA, CONSUMINDO

CADA VEZ MAIS RECURSOS, A UMA VELOCIDADE

CADA VEZ MAIS ALUCINANTE.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [14] SOCIALISMO 2010

A “PEGADA ECOLÓGICA” DE WILLIAM REES É UMA FORMA DE QUANTIFICAR A NOSSA

DÍVIDA ECOLÓGICA – A PARTIR DA ANÁLISE DA OCUPAÇÃO HUMANA DO PLANETA (EM HECTARES PER CAPITA)

PERMITE ANALISAR SE DETERMINADAS ACTIVIDADES CORRESPONDEM

A UMA OCUPAÇÃO SUSTENTÁVEL OU EXCESSIVA DO PLANETA.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [15] SOCIALISMO 2010

sua capacidade de acção e enfraquecem as instituições democráticas locais. A população vê os seus dirigentes democraticamente eleitos forçados a cumprir medidas ditadas por organizações externas comandadas pelos interesses dos países mais ricos. Como Stiglitz (que foi economista principal do BM) aponta a propósito da dívi-da dos países africanos: «A liberalização abria os mercados africanos às mercadorias dos países estrangeiros, mas os pa-íses africanos pouco tinham para vender ao exterior. A aber-tura do mercado de capitais não trouxe uma entrada súbita de capital; os investidores estavam mais interessados em retirar de África os seus abundantes recursos naturais.»27 As regras impostas levaram, assim, a uma degradação das econo-mias destes países, o que resultou em perdas de capital que vieram agravar as suas dívidas. Curiosamente, como Simms repara, o aumento da dívida dos países africanos entre 1980 e 1992 corresponde aproximadamente ao va-lor das perdas do comércio de bens essenciais, fruto dos acordos estabelecidos.

Assim, os governos destes países são forçados a ca-nalizar uma boa parte do orçamento para o pagamento de uma dívida injusta e que os prejudica, em vez de in-vestirem em saúde ou educação, por exemplo. No entan-to, há países com elevadíssimas dívidas que não sofrem quaisquer pressões para as pagar: o Reino Unido tem uma divida para com os EUA de 14,5 biliões de dólares e o resto da Europa cerca de 18,5 biliões de dólares, desde a 2ª Guerra Mundial.28

Um outro conceito de dívida tem vindo a ser for-mulado ao longo do século XX – o de dívida ecológi-ca. Este conceito pode ser resumido da seguinte forma: num planeta com recursos limitados, a cada um de nós cabe uma pequena parte da “capacidade ecológica” – re-

generação dos elementos, despoluição dos recursos que usamos, recuperação de ecossistemas, etc. – do planeta, quando utilizamos mais do que o que nos cabe, contra-ímos uma “dívida ecológica”. A “pegada ecológica” de William Rees é uma forma de quantificar a nossa dívida ecológica – a partir da análise da ocupação humana do planeta (em hectares per capita) permite analisar se de-terminadas actividades correspondem a uma ocupação sustentável ou excessiva do planeta. Como se pode ver pela fig. 9, a Europa (excepto os países nórdicos) e os Estados Unidos usam o planeta muito acima daquilo que é sustentável, estão portanto em «dívida para com o resto do planeta»29. É preciso salientar que esta dívida é fruto de um processo que se iniciou e que se alimen-tou da expropriação dos recursos à maioria dos países que têm uma ocupação muito reduzida do planeta. É preciso também não esquecer que, se os países do Nor-te puderam ter o “privilégio” de viver muito acima da capacidade do planeta, foi à custa do empobrecimento dos países do Sul.

Enquanto a dívida externa, mais do que uma obriga-ção de um Estado para com outros, tem constituído um instrumento injusto (senão mesmo imoral) de domina-ção do Norte sobre o Sul, a dívida ecológica permanece esquecida nos círculos de poder político e económico, do G8, ao FMI e BM. É tempo de reequilibrar a balança e começar a cobrar aquilo que é devido.

O PROBLEMA INSTITUCIONAL As regras do sistema mundial parecem estar vicia-

das: os países do Sul têm visto a sua dependência au-mentada e a sua autonomia limitada por regras inter-nacionais estabelecidas pelo Norte. Se é verdade que os

problemas globais exigem a cooperação à escala global, também parece ser verdade que as instituições existen-tes não têm sido adequadas para os resolver.

Desde a 2ª Guerra Mundial que se sentiu a neces-sidade da criação de instituições mundiais, fosse para assegurar a “estabilidade económica” – o FMI e o BM – ou para evitar novas guerras – a Organização das Na-ções Unidas (ONU). No entanto, estas instituições fo-ram criadas à medida dos interesses dos países do Norte com as chefias do FMI e o BM nomeadas pela Europa e pelos EUA, respectivamente, o número de votos no FMI definido pelo poder económico de cada país ou a defini-ção do direito de veto dos cinco membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU.

As instituições como o BM e o FMI (juntamente com a Organização Mundial do Comércio), como já foi apontado, foram responsáveis pela definição de regras de comércio internacional desequilibradas e pela impo-sição da desregulação dos mercados. Esta última lan-çou as bases daquilo que se tornou um dos traços mais distintivos da globalização: o surgimento de grandes empresas multinacionais cujo poder económico ultra-passa em larga medida muitos dos Estados mais pobres e que têm poder para influenciar as decisões políticas quer nos seus países de origem, quer noutros onde se estabelecem. A crescente importância das empresas multinacionais veio agravar ainda mais a situação dos países do Sul, dado que estas têm um grande poder na economia global e beneficiam – no quadro actual – si-multaneamente de mobilidade total, podendo escolher os países em que se instalam e abandoná-lo quando os seus interesses deixam de ser satisfeitos. Desta forma, a globalização da economia conduziu à perda do poder

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [16] SOCIALISMO 2010

dos Estados de regulação macro-económica e à erosão da soberania, não só dos países do Sul, mas igualmente dos países do Norte.

No que toca à resolução das questões ambientais globais, a acção dos Estados ainda é mais limitada: a interdependência de todos os Estados não permite ac-ções unilaterais e, além disso, os mecanismos utilizados internamente por cada Estado para lidar com problemas semelhantes não são facilmente transpostos para o pla-no internacional. A ONU tem assumido a seu cargo a tentativa de concertação de esforços à escala global so-bre diversos problemas: desde as questões humanitárias, ao desenvolvimento ou aos problemas ambientais. No entanto, como Castells afirma: «Os esforços para que os Estados actuem em regime de cooperação assumem muitas ve-zes a forma de espectáculos internacionais e retóricas solenes ao invés de conduzirem à implantação efectiva de programas de acção conjunta.»30

A Cimeira de Copenhaga em Dezembro de 2009 foi o corolário da afirmação anterior. As duas semanas da cimeira foram marcadas por um clima de suspeita, in-trigas, reuniões paralelas restritas a alguns membros, o aparecimento de um texto preparado de antemão pelas grandes potências para, alegadamente, ser usado em momento de impasse, e acusações de parte a parte so-bre a responsabilidade do falhanço da Cimeira. Segun-do Bernarditas de Castro Muller, coordenadora do G77 dos países “em desenvolvimento” e da China, o fracasso da Cimeira «(…) não se deveu a duas semanas de nego-ciações diplomáticas agitadas, mas foi o culminar de anos de tentativas de intimidação e suborno por parte dos países ricos para pressionar o mundo em desenvolvimento a aceitar um acordo que ia contra os seus interesses.»31 Estas pressões

não são originais e, nas Cimeiras, Convenções, Fóruns ou outros espaços de concertação internacional são, em geral, os interesses dos países “em desenvolvimento” que são deixados cair durante as negociações, em nome da viabilização dos acordos.

Copenhaga pode ter sido um fracasso, no entanto, a recusa por parte dos países “em desenvolvimento” em aceitar acordos criados para manter o estilo de vida do Norte à custa das populações do Sul, constituiu uma afirmação de que é necessário abandonar uma forma de governação mundial desequilibrada e pouco democráti-ca, ao mesmo tempo que revelou as fragilidades das ins-tituições existentes. À medida que ganham mais cons-ciência sobre todas as dimensões do problema, os países do Sul começam a questionar a legitimidade com que os países ricos e as “suas” instituições exercem autoridade sobre os mais pobres.

A exigência é simples: é urgente parar de fingir que é possível resolver a crise ambiental sem fazer uma pro-funda reflexão sobre o paradigma de desenvolvimento que nos conduz, a uma velocidade estonteante, até ao precipício.

A paradigm shift is emerging not from politics or ideology but from a deep fissure opening up between two great continental plates – on one hand the way the world

does business and, on the other, the limited tolerance of the earth’s environment.

Andrew Simms

CRISE AMBIENTAL OU A CRISE DA MODERNIDADE?

A promessa da modernidade A crise ambiental não é um fenómeno independente

do caminho que traçámos nas últimas centenas de anos – é consequência última dos modos de vida e de organi-zação social que se começaram a desenhar por volta do século XV e que se consolidaram ao longo dos séculos XVII e XVIII. A transição para a Modernidade foi um período de profundas rupturas, quer no que diz respeito à concepção do ser humano sobre si próprio, quer na sua relação com os outros seres humanos e com a natureza.

Diversos acontecimentos contribuíram para mol-dar a modernidade, enquanto projecto socio-cultural, naquilo que são os seus aspectos mais fundamentais: a invenção da imprensa de caracteres móveis por Gu-tenberg, o início das descobertas marítimas, a Reforma Protestante, a ascensão da burguesia, o desenvolvimen-to da Ciência Moderna, foram factores determinantes para a definição do ser humano como senhor de si pró-prio, criador do seu destino, orientado pelo livre uso da razão, liberto da dependência da natureza e capaz de a moldar de acordo com as suas necessidades.

Boaventura S. Santos define como dois pilares do projecto moderno a regulação – através dos princípios do Estado, do mercado e da comunidade – e a eman-

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [17] SOCIALISMO 2010

cipação – através da ciência e da técnica, da arte e da literatura, e da ética e do direito. Estes dois pilares da modernidade – regulação e emancipação – teriam como objectivo a racionalização global quer da vida indivi-dual, quer da vida colectiva.32 Este projecto implicou, necessariamente, a emergência de novas formas de or-ganização social que materializam e reúnem estes di-versos princípios. Giddens aponta quatro dimensões institucionais básicas da modernidade – a economia ca-pitalista, a vigilância, o industrialismo e o poder militar. Defende também que a modernidade é, por inerência, globalizante e indica três características das instituições modernas que estão na origem da globalização: a sepa-ração do espaço e do tempo, através do estabelecimento de referenciais absolutos e distintos; o alargamento dos mecanismos de descontextualização, através da retirada dos contextos e significações locais de certas activida-des sociais; a ruptura com a tradição e a tentativa de examinar e reformar as práticas sociais à luz do conhe-cimento que se produz sobre elas.33

A definição de referenciais de tempo e espaço ab-solutos permitiu por um lado, “unificar” o planeta em torno de representações abstractas, esvaziando-os de significado contextual e, por outro, foi essencial para o desenvolvimento dos processos industriais e para a uni-formização da organização social do tempo e do espaço (o horário de trabalho por turnos, por exemplo).

Os mecanismos de descontextualização permitiram reestruturar as relações sociais noutras dimensões do espaço-tempo transformando o «espaço de lugares» em «espaço de fluxos»34, onde as trocas se processam sem in-teracção social física. Exemplos de espaços de fluxos são os sistemas financeiros, de telecomunicações ou de in-

formação. A maioria dos processos que se dão no espaço de fluxos tem também carácter instantâneo, provocando portanto, o “colapso” do tempo.

O desenvolvimento do Estado-Nação constituiu um dos principais mecanismos de descontextualização, inserindo as relações sociais e económicas num espaço vasto e entendido como homogéneo, redefinindo e uni-ficando as diversas identidades sob a égide de uma nova identidade baseada na soberania territorial. O Estado-Nação foi determinante para a organização política mo-derna, tornando-se o grande centro do poder político e económico, e exercendo a sua hegemonia quer atra-vés da economia capitalista e da produção industrial, quer através do poder militar. No entanto, este processo hegemónico ocidental, na sua fase de maior expansão, tornou cada vez mais indistinguíveis os países de lugar para lugar e tem vindo a enfraquecer a soberania do Estado-Nação moderno devido à incapacidade do mes-mo para regular os «espaços de fluxos» no seio do seu território e pelo surgimento de problemas globais, que exigem uma regulação supranacional.

Chegados ao período de maior radicalização da modernidade, descobrimos que esta não se cumpriu em

todos os seus aspectos e que, cumprindo em excesso alguns deles, tornou impossível o cumprimento dos ou-tros.

A CRISE DA MODERNIDADE E A CRISE AMBIENTAL

A crise ambiental é fruto do cumprimento em ex-cesso de três dos aspectos da modernidade – do indus-trialismo, da primazia do mercado numa economia ca-pitalista e do desenvolvimento científico e tecnológico.

Por industrialismo entende-se a utilização de fontes inanimadas de energia para a produção de mercadorias que, associada à “crença” no progresso científico e tec-nológico, conduziu por um lado à disseminação de uma ideia de “desenvolvimento” baseado na industrialização intensiva e, por outro, à transformação da natureza de forma tão radical que acarreta consequências imprevi-síveis e impossíveis de controlar exclusivamente pela “técnica”.

A promessa de que o desenvolvimento científico e tecnológico, aliado à produção industrial, poderia satis-fazer todas as necessidades do ser humano e libertá-lo para que pudesse desenvolver em pleno as suas capaci-

A CRISE AMBIENTAL É FRUTO DO CUMPRIMENTO EM EXCESSO

DE TRÊS DOS ASPECTOS DA MODERNIDADE – DO INDUSTRIALISMO,

DA PRIMAZIA DO MERCADO NUMA ECONOMIA CAPITALISTA

E DO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO

E TECNOLÓGICO.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [18] SOCIALISMO 2010

Anexos

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Ana Bastos nº35592

Figura 10 – Relação entre a média de pessoas felizes e satisfeitas com a sua vida e o PIB per capita, análise por país.

Figura 9 – Dívida ecológica mundial:o vermelho corresponde a uma dívida muito elevada, o verde mais escuro a uma dívida negativa (ou um crédito). A área dos países foi alterada para corresponder ao consumo efectivo de recursos.

FIGURA 9 – DÍVIDA ECOLÓGICA MUNDIAL: O VERMELHO CORRESPONDE A UMA DÍVIDA MUITO ELEVADA, O VERDE MAIS ESCURO A UMA DÍVIDA NEGATIVA (OU UM CRÉDITO). A ÁREA DOS PAÍSES FOI ALTERADA PARA CORRESPONDER AO CONSUMO EFECTIVO DE RECURSOS

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [19] SOCIALISMO 2010

dades criativas e sociais, foi sendo adiada, à medida que se intensificavam os processos industriais, até que foi posta em causa a partir de meados do século XX.

Em primeiro lugar, o projecto de emancipação do ser humano não só não foi cumprido como, para uma grande parte da população mundial, foi invertido. A abstracção e mercadorização da força de trabalho, pon-to que une as dimensões industrialista e capitalista da modernidade, explica em parte esta inversão: o cres-cimento da desigualdade na distribuição dos recursos (apesar do crescimento da “riqueza” global) e a depen-dência no trabalho assalariado tornaram cada vez mais difícil satisfação das necessidades básicas e a maioria dos seres humanos cada vez menos livres.

Em segundo lugar, o desenvolvimento da tecnologia e a manipulação da natureza levantaram novas questões éticas que põem em causa a legitimidade do progresso científico e tecnológico ilimitado como, por exemplo, a possibilidade de manipulação genética de seres vivos. Em muitos casos, estas preocupações éticas/morais prendem-se com o receio do uso da tecnologia para o controlo social (dimensão da supervisão) ou o contro-lo dos meios de violência (dimensão do poder militar), por exemplo através da produção industrial de armas químicas ou biológicas. Ou ainda, no contexto da pri-mazia do mercado sobre as outras formas de regulação, coloca questões sobre a legitimidade de compra e venda de património biológico (genoma) ou da definição de propriedade intelectual sobre descobertas que poderiam ser usadas para o bem comum (fármacos, por exemplo).

Em terceiro lugar, a industrialização da agricultura – recorrendo ao uso de fertilizantes químicos, pesticidas, ao desvio de leitos dos rios para reservar a água para

culturas de regadio ou à produção de culturas genetica-mente modificadas – conduziu a alterações dramáticas no uso dos solos, à perda de biodiversidade, erosão dos solos e a desequilíbrios nos sistemas hídricos.

O surgimento de problemas ambientais que não têm “território”, como seja a poluição atmosférica, a erosão costeira ou a depleção dos recursos marinhos, questiona a capacidade do sistema de regulação política assente em soberanias territoriais para lidar de forma adequada com problemas de natureza transversal.

Por último, a emergência de problemas ambientais potencialmente irreversíveis, como o aquecimento glo-bal, ou o esgotamento dos recursos naturais, causado pela associação do industrialismo à exigência de acumu-lação crescente da economia capitalista, atingiu um es-tágio em que pode inviabilizar, por completo, o projecto de emancipação da humanidade.

Com a globalização surgiram novos actores sociais que «denunciam, com uma radicalidade sem preceden-tes, os excessos de regulação da modernidade»35 - os Novos Movimentos Sociais. A sua radicalidade assenta sobretudo numa ruptura com todas as formas de luta anteriores – os seus protagonistas não são classes so-ciais, são grupos sociais com identidades comuns; as suas formas organizativas baseiam-se na democracia participativa; a sua luta é mais a emancipação pessoal, social e cultural, do que a política; e actuam, em geral, paralelamente ao Estado, no âmbito da sociedade civil. Estes movimentos, apesar de actualmente se constitu-írem mais como identidades de resistência de que de projecto e de terem um carácter muito diverso, esbo-çam em conjunto a reivindicação de um novo paradig-ma baseado na cultura, democracia, qualidade de vida,

e direitos humanos, mais do que no “desenvolvimento” material e na riqueza.

Wallerstein defende que estamos a atravessar o pe-ríodo da crise do sistema-mundo moderno, iniciado no século XV e baseado na economia capitalista.

Na análise que faz dos sistemas-mundo, Wallerstein recorre às ciências da complexidade para explicar a sua dinâmica. Durante o seu funcionamento “regular”, um sistema encontra-se em equilíbrio dinâmico, mas tende a afastar-se dessa situação de equilíbrio e a aumentar progressivamente o grau de desordem. Quando o grau de desordem é demasiado elevado, o sistema colapsa, atravessando um período de transição onde se bifurca (em dois ou mais caminhos). No entanto, é impossível determinar antecipadamente que caminho seguirá para atingir uma nova situação de equilíbrio. As sucessivas crises financeiras e económicas, a crise ambiental, a cri-se da democracia são sinais do esgotamento do sistema moderno e a instabilidade e incerteza profunda que se tem vivido nas últimas décadas são características de um período de transição entre dois sistemas-mundo.36

Apesar de não conseguirmos prever que tipo de sis-tema pós-moderno surgirá nas próximas décadas, é pos-sível vislumbrar algumas das características básicas que poderá assumir. Wallerstein defende que a bifurcação se está a operar entre duas forças que operam em sentidos opostos – o «espírito de Davos» e o «espírito de Porto Alegre» - e que, nesse sentido, o sistema que substituirá o sistema-mundo moderno ou será mais polarizante e hierárquico (Davos), ou será mais democrático e iguali-tário (Porto Alegre).37 São as escolhas que fizermos que determinarão qual o caminho a seguir.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [20] SOCIALISMO 2010

We need to reinvent society, technology, and economy. We need to do it fast and we need to do it creatively. We can.

Vandana Shiva

O MUNDO COMO UMA ILHAO biólogo Jared Diamond, procurou analisar as

razões do sucesso ou do fracasso de várias sociedades ao longo da história. Embora não seja o único factor, a relação da sociedade com o ambiente revelou-se de-terminante, nomeadamente a capacidade da sociedade se desenvolver explorando os seus recursos de forma sustentável e assumindo formas de organização que as-seguravam um equilíbrio entre a actividade humana e o ambiente. Os melhores exemplos de sucesso – as comu-nidades das ilhas da Nova Guiné e de Tikopia e o Japão durante a era Tokugawa – apesar de grandes diferenças a nível do clima, da geografia, da cultura, partilhavam uma característica comum: eram comunidades insulares que viviam praticamente isoladas em relação a outras sociedades. As soluções adoptadas, como a contenção do crescimento populacional, a exploração limitada dos recursos naturais, a redução do desperdício no uso do espaço ou a organização da vida social em função dos limites ambientais não impediram essas sociedades de florescer social e culturalmente e de atingirem níveis de complexidade social relativamente elevados.

A globalização aproximou cada vez mais as diversas regiões do planeta e aumentou profundamente as rela-ções de inter-relação e inter-dependência entre todas as comunidades do mundo. Os problemas mais sérios com que nos confrontamos são essencialmente globais e exigem não só a solidariedade entre os mais ricos e os

mais pobres, mas também a solidariedade, introduzida pela irreversibilidade potencial da crise ambiental, para com as gerações futuras. A globalização tornou o mun-do num sistema único e isolado, à semelhança de uma ilha. As soluções que adoptarmos terão necessariamente que ter em conta que «(…) não há nenhum outra ilha/planeta a que possamos recorrer para ajuda, nem para onde possamos exportar os nossos problemas. Em vez disso, temos de aprender, como eles [Tikopianos e Japoneses Tokugawa] aprenderam, a viver de acordo com o nosso meio.» 38

A urgência de aprendermos a viver dentro do nosso meio, reconhecendo os seus limites e a nossa capacidade limitada para o transformar, implica uma ruptura com al-guns dos pilares em que assentou a globalização moder-na. Implica em primeiro lugar encontrar novas formas de organização social que incorporem a noção dos limites da acção humana. Implica também a “recontextualização” das actividades sociais, conferindo-lhes de novo sentido, nomeadamente através de novas/antigas concepções de tempo, de espaço e de cidadania. Implica, por último, uma concepção radicalmente diferente de “ser humano”. Ao mesmo tempo, a análise da natureza e da socieda-de deixam de poder estar espartilhadas em “disciplinas” perfeitamente definidas e estanques – a vida numa “ilha” exige a compreensão holística da profunda e complexa inter-relação entre todas as dimensões do sistema.

DO HOMEM-MÁQUINA À ESPÉCIE HUMANA

O paradigma científico moderno operou uma mu-dança profunda naquilo que era a concepção do ser hu-mano sobre si próprio, sobre a natureza e sobre a sua relação com ela.

A visão mecanicista da natureza tornou-a apenas espaço e movimento, um mecanismo cujos elementos se podem estudar em separado e relacionados através de leis absolutas, passiva, e cujos segredos podem ser to-talmente desvendados. Da mesma forma, conhecendo-se as regras que regem a “máquina humana” seria possível descrever e prever o seu comportamento em função de leis gerais.

O determinismo mecanicista tinha por objectivo a dominação e o controlo: a compreensão do mundo e das suas leis tornaria o ser humano capaz de dominar e transformar a natureza de acordo com as suas necessi-dades e desejos. A construção de máquinas que repro-duzem as actividades humanas ou o uso da técnica para reproduzir a natureza aumentaram drasticamente a ca-pacidade humana para transformar quer o meio, quer a si próprio. As consequências deste paradigma já foram abordadas anteriormente.

A vida num ecossistema isolado exige uma pers-pectiva radicalmente diferente quer sobre a relação ser humano-natureza, quer sobre os objectivos do conheci-mento e do desenvolvimento.

Em biologia, o termo desenvolvimento refere-se ao processo evolutivo dos sistemas, modificando o meio fí-sico (sendo ao mesmo tempo condicionado por ele) de forma a atingir estados de equilíbrio onde se atingem elevados conteúdos de informação (máximo de biomas-sa) com o mínimo de consumo de energia e onde se man-tém a relação simbiótica entre os organismos.39

O ser humano moderno é o único ser vivo que que-bra constantemente as regras do ecossistema em que se insere, conseguindo através da tecnologia vencer os limites naturais, por exemplo no que diz respeito ao

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [21] SOCIALISMO 2010

crescimento da população ou na quantidade de energia e recursos utilizada. A tecnologia tem-lhe permitido viver muito acima daquilo que é a “capacidade de sustentação” do sistema terrestre, cujas consequências se têm vindo a avolumar e que atingem, neste momento, proporções perigosas.

É fundamental o retorno a uma concepção de ser humano como parte integrante da natureza que lhe é distinta, mas não descontínua. Isto não implica aban-donar a ciência e a técnica e retornar à dependência de uma natureza incompreensível e incontrolável, mas an-tes a emergência de uma nova identidade: a identidade de espécie humana cuja actividade, nas suas dimensões económica, cultural e social, integra e é condicionada pelo sistema natural.

A nossa noção de desenvolvimento, mais do que se traduzir em crescimento constante – da população, da exploração e consumo de recursos, da ocupação do es-paço e da transformação da natureza – deverá assumir os nossos limites e a nossa condição de ser vivo entre os demais, devendo por isso corresponder à capacidade de florescer social e culturalmente, com fluxos de mas-sa e energia dentro da capacidade de sustentação dos ecossistemas.

O conhecimento das regras que condicionam a nos-sa actividade deverão, mais do que procurar moldar a natureza segundo as nossas ambições, conhecer «(…) as condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local.»40

VIVER DE ACORDO COM OS NOSSOS MEIOS

A concepção de ser humano enquanto espécie impli-ca que a forma com que nos organizamos socialmente seja pensada de forma holística e não compartimentada entre aquilo que se definiu como as diversas “esferas” da vida social. A economia, que nas últimas décadas se constituiu como uma esfera separada da sociedade e que a subordinou às suas “regras”, deverá passar a estar ao serviço de uma sociedade que vive e se organiza dentro dos seus limites naturais.

Herman Daly defende que à medida que a economia se aproxima da escala do planeta, esta terá de se adaptar ao seu funcionamento físico (e não o contrário). O sis-tema terrestre é aproximadamente um sistema estacio-nário, o que significa que se comporta da mesma forma ao longo do tempo (podendo ou não estar em equilíbrio dinâmico). Sendo um subsistema aberto do sistema ter-restre, também a economia deverá atingir um estado estacionário, já que não é possível fisicamente, manter o seu crescimento ad infinitum. Daly recorre assim à ideia da economia de estado estacionário, já proposta no sécu-lo XIX por John Stuart Mill. Uma economia de estado

estacionário não é planeada para se expandir, pelo que as características que a definem são consideravelmente diferentes da economia “clássica”: população constante, a maximização dos stocks de recursos e manutenção dos fluxos abaixo das capacidades de assimilação e regene-ração dos ecossistemas. 41

Estas três características básicas da economia de estado estacionário têm consequências profundas. Em primeiro lugar implicam o controlo do crescimento populacional para manter a população num nível em que a pressão que esta exerce sobre o ecossistema seja sustentável – este limite da população é atingido, natu-ralmente, pelas espécies em ecossistemas em equilíbrio – igualando e reduzindo as taxas de natalidade e mor-talidade e aumentando a esperança média de vida. Em segundo lugar, exigem o aumento da durabilidade dos bens e do tempo de vida dos produtos, aliado à redução do consumo e do desperdício para níveis que permitam a regeneração dos stocks naturais e a assimilação do lixo pela natureza. Por último, numa economia em estado estacionário, a única forma de reduzir a pobreza é redis-tribuir os recursos de forma mais igualitária e reduzir o fosso entre os mais ricos e os mais pobres.

A NOSSA NOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO, MAIS DO QUE SE TRADUZIR

EM CRESCIMENTO CONSTANTE – DA POPULAÇÃO, DA EXPLORAÇÃO

E CONSUMO DE RECURSOS, DA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO E DA

TRANSFORMAÇÃO DA NATUREZA – DEVERÁ ASSUMIR OS NOSSOS

LIMITES E A NOSSA CONDIÇÃO DE SER VIVO ENTRE OS DEMAIS.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [22] SOCIALISMO 2010

Anexos

24

Ana Bastos nº35592

Figura 10 – Relação entre a média de pessoas felizes e satisfeitas com a sua vida e o PIB per capita, análise por país.

Figura 9 – Dívida ecológica mundial:o vermelho corresponde a uma dívida muito elevada, o verde mais escuro a uma dívida negativa (ou um crédito). A área dos países foi alterada para corresponder ao consumo efectivo de recursos.

FIGURA 10 – RELAÇÃO ENTRE A MÉDIA DE PESSOAS FELIZES E SATISFEITAS COM A SUA VIDA E O PIB PER CAPITA, ANÁLISE POR PAÍS.

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A questão que se coloca é se será possível atingir vi-das satisfatórias numa economia de estado estacionário, dado que nas últimas centenas de anos se associou o au-mento do bem-estar ao crescimento da riqueza material – mais precisamente ao aumento do PIB. Nas últimas décadas, esta perspectiva de “desenvolvimento” baseada no aumento do PIB tem vindo a ser posta em causa e tem-se assistido à definição de dezenas de novos índices que procuram definir e quantificar a “qualidade de vida”. Na verdade, quando se analisa a sensação de satisfação das populações em função do PIB per capita do seu país, chega-se à conclusão que a relação não é linear, como se pode ver pela Fig.10. O aumento da riqueza parece con-tribuir de forma muito mais acentuada para a felicidade quando se trata de populações muito pobres do que para as populações das “sociedades de afluência”. Assim, a felicidade parece estar relacionada com a riqueza até se atingir a satisfação das necessidades básicas e assegurar um certo nível de conforto material, ponto a partir do qual a felicidade parece estar mais relacionada com os estilos de vida que se adopta do que com a afluência material.42 Por outro lado, o PIB enviesa a análise sobre o crescimento económico de um país, já que contabiliza fluxos (produção, consumo ou despesa) e não entra em conta com os stocks nem com as consequências (am-bientais ou sociais) desses fluxos.

A economia de estado estacionário corresponde as-sim, àquilo que Giddens define como um sistema pós-escassez dado que, como este aponta: «(…) com excepção das necessidades básicas da existência física, a “escassez” reporta-se a necessidades socialmente definidas e a estilos de vida específicos.»43

A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO-TEMPO

Como já foi referido anteriormente, a separação en-tre espaço e tempo e a sua descontextualização, foi uma das características em que assentou a sociedade moder-na globalizada.

A sustentabilidade da vida no planeta é um proble-ma que diz respeito não só à sociedade presente mas também às futuras. O desenvolvimento harmonioso da espécie humana não está apenas nas mãos dos indivídu-os, está nas relações que estes estabelecem com a natu-reza e nas condições que criam para o desenvolvimento das gerações seguintes. É preciso, portanto, voltar a dar sentido ao tempo e ao espaço em que nos movemos.

Do tempo cronológico, mecanizado, abstracto do pe-ríodo industrial, ou do tempo instantâneo da sociedade da informação global, passa-se ao «tempo glacial» em que a relação entre seres humanos e entre estes e a natureza é um processo evolutivo, com raízes no passado e que se projecta num futuro. A (re)integração holística do ser humano no sistema planetário obriga-nos a planear a nossa vida e as nossas formas de organização como uma forma de solidariedade entre gerações que «reúne um egoísmo saudável e um pensamento sistémico dentro de uma perspectiva evolucionista».44

A integração holística no sistema terrestre e a tem-poralidade alargada exige também uma nova relação com o espaço, pensando a forma de produção de energia e de bens não em termos de “exploração” mas em ter-mos de relação sinérgica com o meio natural. É neces-sário limitar o recurso a processos unidireccionais: pelo contrário a produção e a extracção de recursos naturais deverão ser integradas nos ciclos dos sistemas naturais

e “cooperantes” com os processos que mantêm os ecos-sistemas vivos.

A produção de energia com recurso a energias re-nováveis, mais do que ser uma alternativa entre outras, é a única que integra esta temporalidade dado que é potencialmente “eterna”. As fontes de energia renová-vel são também as fontes privilegiadas numa economia de estado estacionário, já que tiram partido dos fluxos naturais de energia (em vez de acelerar alguns fluxos) e permitem a redistribuição do acesso à energia necessá-ria para atingir qualidade de vida – são globais e demo-cráticas, além de poderem ser dimensionadas de acordo com as características físicas e necessidades específicas de cada local. A microgeração a partir de energias re-nováveis permitirá a minimização do impacte negativo humano no planeta, descentralizando-o e reduzindo a sua escala, ao mesmo tempo que permite a redução da dependência energética das comunidades, promovendo a sua emancipação.

As formas de organização espacial e de produção de recursos deverão também assumir esta temporalidade e procurar tirar partido dos processos naturais, mais do que os alterar irreversivelmente. A permacultura, um conceito desenvolvido por Bill Mollison e David Holm-gren na década de 70, pode ser definida como a cultura desenhada para ser permanente – não num sentido está-tico, mas pelo contrário, num sentido altamente dinâmi-co que utiliza aquilo que são as características e os pro-cessos físicos e biológicos de um dado local para planear a organização social e a produção de recursos, reduzindo a dependência dos processos industriais. A permacultu-ra, apelidada de «design for living»45 parte da observação integrada do sistema natural e social. As suas diversas

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [24] SOCIALISMO 2010

componentes e respectivos inputs, outputs, caracterís-ticas principais e o modo como interagem, bem como a cultura local e as práticas ancestrais, são analisadas de forma a potenciar as sinergias entre os diversos cons-tituintes do sistema, reduzindo o consumo de energia, minimizando a necessidade de intervenção humana e a produção de desperdícios. Esta prática é compatível com os espaços urbanos, permitindo a produção alimentar descentralizada em meio urbano e promovendo novas formas de vida e de organização das cidades, mais sus-tentáveis, mais diversas e criativas e em harmonia com o meio natural.

«O problema é a solução»46, uma das ideias chave da permacultura, significa que mesmo os factores que se apontam à partida como problemas podem ter utilida-de e são o ponto de partida para soluções criativas e diversas.

Esta noção corresponde a uma ideia de utilidade do conhecimento e da técnica profundamente diferente da ideia moderna: a ciência não está ao serviço da domina-ção da natureza e o conhecimento das regras que gerem os processos naturais serve para que sejamos, criativa-mente e em conjunto com a natureza, cocriadores da vida e da diversidade ecológica, social e cultural.

A vida num planeta isolado reivindica assim a reu-nião do espaço e do tempo bem como sua recontextu-alização, conferindo-lhes sentidos múltiplos, mas com um sentido global que é o de assegurar a sobrevivência humana, partilhando recursos e cooperando na defini-ção de modos de vida que sejam ambiental e socialmente sustentáveis, no presente e no futuro.

COMUNIDADE LOCAL, CIDADANIA GLOBAL

A recontextualização do espaço e do tempo confere-lhes sentidos que são necessariamente locais, criando identidades comunitárias – de vizinhança, regionais, culturais, etc. – que vivem em harmonia com o ambien-te local e que o projectam no futuro. A diversidade de formas de organização e de modos de vida deverá cor-responder à forma como cada sociedade resolve criati-vamente os problemas que se lhe colocam e se adapta às características específicas de cada local.

Como indica Castells: «(…) essa identidade sociobio-lógica pode ser facilmente sobreposta a tradições históricas e multifacetadas, idiomas e símbolos culturais, mas dificilmente poderá coexistir com a identidade do Estado nacionalista.»47

Se a soberania do Estado-Nação já vinha sendo diminu-ída pela globalização, a emergência de novas identida-des e o retorno ao “local”, por um lado, e a necessidade de articular a acção globalmente, por outro, questio-nam seriamente o Estado-Nação moderno. Enquanto o Estado-Nação confere identidade e cidadania exclu-sivamente segundo um critério territorial e uniformiza a estrutura social, as instituições emergentes deverão

distinguir identidade(s) e cidadania, por um lado, e per-mitir uma definição das mesmas segundo critérios mais fluidos.

Estas comunidades são definidas mais por temas ou projectos comuns do que pela unidade territorial, podendo ser, ao mesmo tempo locais e articuladas glo-balmente. Por outro lado, o facto de terem, em certa medida vinculação territorial, isso não implica que se-jam comunidades encerradas nas suas fronteiras. Pelo contrário, o território deve ser a base de convivência de identidades múltiplas e diversas, inclusivas e permeá-veis que coordenam a sua actividade segundo formas de organização variáveis e democráticas. Do mesmo modo, o conceito de cidadania não tem de ser necessariamente individual e nacional, podendo ser individual ou colec-tivo e, ao mesmo tempo, local, nacional ou global, dada a necessidade de interligar simultaneamente o local e o global de forma complexa.

A institucionalização da participação democrática tem por isso de ocorrer a várias escalas e integrar diver-sas estruturas. O Estado (no sentido de governação) de-verá assumir uma função de negociação e coordenação entre as várias organizações sociais e, mantendo uma

«O PROBLEMA É A SOLUÇÃO», UMA DAS IDEIAS CHAVE

DA PERMACULTURA, SIGNIFICA QUE MESMO OS FACTORES

QUE SE APONTAM À PARTIDA COMO PROBLEMAS PODEM TER

UTILIDADE E SÃO O PONTO DE PARTIDA

PARA SOLUÇÕES CRIATIVAS E DIVERSAS.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [25] SOCIALISMO 2010

certa dose de centralidade, deverá promover a criação de estruturas organizativas locais, descentralizadas em menor escala. Da soberania excludente e total, assente na territorialidade, passa-se para uma «soberania reci-procamente permeável» em que o Estado negoceia quer internamente, quer com outros Estados, a redução da sua soberania na medida em que isso permita a resolu-ção de problemas que não podem ser resolvidos à escala estatal.

A organização social deverá assim ser plural e di-versa, como o é a organização dos sistemas ambientais, e estar ao serviço daquilo que deverá ser o “desenvol-vimento” o florescer da cultura, o aprofundamento das relações sociais, o exercício pleno da liberdade, e a au-to-realização dos seres humanos, em harmonia com o meio natural em que vivemos. No fundo a tão almejada emancipação humana.

Se o paradigma social e cultural que conduziu a glo-balização hegemónica nos colocou problemas de escala e seriedade nunca antes imaginados, também nos trou-xe a consciência de que fazemos parte de um sistema vivo, com múltiplas escalas, e profundamente complexo. Mais do que ignorar que a crise ambiental é fruto do paradigma da modernidade, devemos reflectir sobre as fragilidades (ou os excessos) do processo que nos trou-xe até tão perto do desastre. Só aceitando o problema poderemos responder ao desafio de forma criativa e que assegure a sustentabilidade e a qualidade da vida huma-na no planeta. «O problema é a solução.»

NOTAS

1 Apesar do trabalho desenvolvido por Arrhenius e Tyndal no sé-culo XIX, que já nessa altura concluiam que o aumento da concen-tração de CO2 na atmosfera devido à actividade industrial condu-ziria a um aumento da temperatura global pelo acentuar do efeito de estufa.

2 Hansen, J. et al.; “Target Atmospheric CO2: Where Should Hu-manity Aim?”; 2009

3 Hansen, J. et al.; Open Atmos. Sci. J. 2; p. 217–231; 2008

4 Monastersky, Nature 458; p. 1091-1094; 2009

5 Dados do site oficial da ONU.

6 Santos, B. S.; Por uma concepção multicultural de direitos huma-nos; Revista Crítica de Ciências Sociais; p 14; 1997

7 Santos, B. S; Globalizations; Theory Culture Society; p. 393-399; 2006

8 Lohmann, Larry; Carbon trading; Development dialogue; 2006

9 Shiva, V.; Soil not oil; Zed Books; p. 6; 2008

10IPCC; Climate Change 2007: The Physical Science Basis.Contribu-tion of Working Group I to the Fourth Assessment Report of the Inter-governmental Panel on Climate Change; Cambridge Univ. Press; 2007

11 Ehrhart, C.; Thow, A.; Blois, M.; “Humanitarian Implications of Climate Change:Mapping Emerging Trends and Risk Hotspots”; CARE Int.; 2009

12 Mimura, N. et al.; “Small Islands”, Climate Change 2007:Impacts, Adaptation and Vulnerability. Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change;Cambridge Univ. Press; 2007

13 Monbiot, G.; Climate change displacement has begun – but hardly anyone has noticed; The Guardian; 8/05/2009

14 Easterling, W.E.,et al.;“Food, fibre and forest products” Climate Change 2007: Impacts, Adaptations and vulnerability, Contribution of Working Group II to the Fourth Assessment Report of the Intergovern-mental Panel on Climate Change; Cambridge University Press; 2007

15 Nelson, G. C. et al.; Climate Change: impact on agriculture and costs of adaptation; International Food Policy Research Institute; 2009

20 Stiglitz, J. E.; Tornar a globalização eficaz; Ed. Asa; p. 226; 2006

21 Shiva, V.; Soil not oil; Zed Books; p. 21; 2008

22 Lohmann, Larry; Carbon trading; Development dialogue; 2006

23 Ibidem.

24 Simms, A.; Ecological debt; Pluto Press; 2009

25 Wallerstein, I.; After developmentalism and globalization, what?; Cornell University; 2004

26 Stiglitz, J. E.; Tornar a globalização eficaz; Ed. Asa; 2006

27 Stiglitz, J. E.; Tornar a globalização eficaz; Ed. Asa; p. 71; 2006

28 Hanlon, J.; We’ve been here before; Jubilee 2000 coalition; 1998

29 The Latin American and Caribbean Commission on Develop-ment and Environment; Our common agenda; UNCED; 1992

30 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gul-benkian; 2007

31 Muller, B. C.; Pressure on poor at Copenhagen led to failure, not diplomatic wrangling; The Guardian; 23/12/2009

32 Santos, B.S.; Pela mão de Alice. O social e o político na pós-moder-nidade; Edições Afrontamento; 1994

33 Giddens, A.; as consequências da modernidade; Celta Ed.; 2005

34 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gul-benkian; 2007

35 Santos, B.S.; Pela mão de Alice. O social e o político na pós-moder-nidade; Edições Afrontamento; p. 222; 1994

36 Wallerstein, I.; Globalization or the age of transition?; Internatio-nal Sociology, Vol 15(2): p. 251–267; Junho 2000

37 Wallerstein, I.; After developmentalism and globalization, what?; Cornell University; 2004

38 Diamond, J.; Collapse; Penguin Books; p. 521; 2005

39 Odum, E.; Fundamentos de ecologia; Fundação Calouste Gul-benkian; 2004

40 Santos, B. S; Um discurso sobre as ciências; Ed. Afrontamento;p.48; 2003

41 Daly, H.; A steady-state economy; Sustainable Development Co-mission, UK; 2008

42 Inglehart, R; Modernization and post modernization; Princeton University Press; 1997

43 Giddens, A.; as consequências da modernidade; Celta Ed.; p. 117; 2005

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [26] SOCIALISMO 2010

44 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gul-benkian; p.221; 2007

45 Atkinsson, A.; Permaculture is more than a new way of gardening - it’s a sustainable way to live on planet Earth: an Interview with Bill Mollison; Making it happen; 1991

46 Mollison, B.; Permaculture designers manual; Tagari, 1988

47 Castells, Manuel; O poder da identidade; Fundação Calouste Gul-benkian; p.222; 2007

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [27] SOCIALISMO 2010

OCASO DA PRIMEIRA

REPÚBLICA (1924-1933)

LUÍS FARINHA

SOCI

ALI

SMO

201

0

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [28] SOCIALISMO 2010

OCASO DA PRIMEIRA REPÚBLICA - (1924-1933)LUÍS FARINHA | HISTORIADOR

“O meu propósito é ir contra a acção nefasta de todos os políticos e dos partidos e de pôr fim a uma ditadura de

políticos irresponsáveis.”General Gomes da Costa, comandante das forças militares

que derrubaram a República, em 28 de Maio de 1926

EM FINAIS DE 1925, O PODER POLÍTICO LE- galmente constituído (Parlamento, Governo e Presiden-te da República) mostrou-se incapaz de corresponder aos anseios de mudança e, muito menos, de pôr freio à fronda anticonstitucional e conspirativa que se havia constituído a partir de 1923.

Durante cerca de uma década (1923-1933), o país experimentou um clima de confronto institucional fora do comum, com eclosão de inúmeras intentonas milita-res e, depois do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926, de uma guerra civil larvar e intermitente, opondo a direita antiliberal e anticonstitucional aos sectores republica-nos democráticos e liberais que resistiam à destruição do regime constitucional implantado em 1910. No final desse período, António de Oliveira Salazar (e os salaza-ristas) haviam conseguido federar as direitas antilibe-rais e antidemocráticas e implantado um regime corpo-rativo, só nominalmente republicano. Do novo regime em construção tinham desaparecido os partidos políti-cos, os sindicatos livres, a liberdade de imprensa e a luta de classes manifestava-se de forma controlada, sujeita

ao freio brutal de uma força conjugada das polícias po-líticas, dos tribunais especiais, com apoio declarado dos sectores da tropa que mantinham a Ditadura Militar.

Instigadora de uma participação na Primeira Gran-de Guerra (por razões de estratégia colonial e de reco-nhecimento internacional do novo regime), a Primeira República não conseguiu superar – como acontecera em praticamente toda a Europa -, os “anos loucos” que se seguiram ao primeiro conflito mundial. Uma inflação galopante, acompanhada pela desvalorização dramáti-ca do escudo e por uma crise de subsistências a que as epidemias (do tifo e da pneumónica) acrescentavam um toque de tragédia, fizeram dos anos do pós-guerra um período de difícil governabilidade, em regime de con-fronto partidário e constitucional. Pouco preparados para a mudança, os partidos republicanos ensaiaram todas as soluções constitucionais, reformaram-se por cisão ou por fusão em novas formações partidárias, re-novaram as lideranças, mas não conseguiram encontrar respostas adequadas para a complexa situação política do momento. Descontente com a “desordem” existente, a direita constitucional (agrupada no Partido Naciona-lista em 1923) foi-se circunscrevendo a um campo pra-ticamente insignificante: a maioria das forças de direita passou a competir fora do jogo democrático: alarmou o país com a imprensa que adquiriu e foi mudando edi-torialmente (à medida dos seus interesses), aliciou os

militares vindos da Guerra (muito descontentes) para o golpismo militar e preparou-se para tomar o poder pela força das armas. Do ponto de vista institucional, a situação política continuava hegemonizada pelo Partido Democrático que, na ânsia de secar todas as tendências à sua esquerda, as mantinha sob a sua alçada ou as der-rotava no Parlamento à primeira oportunidade, como aconteceu com os governos de Álvaro de Castro (1924) ou de José Domingues dos Santos (1925): “reinava”, mas não governava. Com esta política sectária, não só se per-dia o partido como se afundava a República.

Em 28 de Maio de 1926, dois grandes blocos se juntaram para subverter a situação constitucional por golpe militar. Um, de cariz liberal e democrático, que pensava poder regenerar o regime através da implanta-ção de uma “ditadura temporária” e a formação de um “governo extrapartidário de competências”, sem a obs-trução do Parlamento. Passado algum tempo, defendia este bloco – liderado militarmente pelo comandante Mendes Cabeçadas e com o apoio político da União Li-beral Republicana de Cunha Leal -, o País regressaria à normalidade constitucional, na base de um sistema político reequilibrado em torno de dois grandes blocos políticos, um à esquerda e outro à direita, os dois dis-postos a disputar o poder através do jogo democrático. Um outro bloco, antiliberal e antidemocrático, ansiava por uma ditadura definitiva, ou antes, pela constitucio-

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nalização de um Governo ditatorial, como aqueles que a Europa ia conhecendo, da Espanha à Polónia, passando pelo caso mais sui generis da Itália mussoliniana. Este bloco era apoiado pela direita anticonstitucional – al-guma dela antirepublicana -, com grande sustentação na numerosa “tenentada” aquartelada e já sem a incum-bência da Guerra, nos pequenos grupos de extrema-direita com simpatias fascistas e, muito especialmente, na reacção católica e conservadora das antigas classes afastadas do poder pela República em 1910. Elegeram um nome de prestígio para os comandar numa marcha militar de Braga a Lisboa – o general Gomes da Costa, um nome prestigiado do comando militar do país -, mas, na verdade, apenas a “farda” que escondia por detrás os verdadeiros detentores do poder e que tinham dado a conhecer o seu pensamento antiliberal na Revolta de 18 de Abril de 1925: Sinel de Cordes, Filomeno da Câmara, Raul Esteves, Óscar Carmona. Todos militares dispos-tos a hipotecar a República pluripartidária, as liberdades públicas e o regime em nome de uma “nova ordem”.

A República não estava ainda definitivamente per-dida, porque, logo em Julho, a esquerda republicana se organizou para resistir e para desalojar pela força os ditadores. Durante mais de uma década, o Reviralho fez sair à rua quatro grandes revoltas, algumas, como a de 3-7 de Fevereiro de 1927, no Porto e em Lisboa, movi-mentando milhares de homens e armas, numa guerra civil, larvar e intermitente, de vida ou morte.

Em resposta a esta resistência, a Ditadura Militar armou-se de medidas excepcionais – Tribunais Mili-tares Especiais, polícias políticas, censura, deportação e exílio de milhares de republicanos -, e ao fim de um quinqénio, substituira as instituições liberais e instalara

uma nova elite política em todas as instâncias do poder. Não sem luta e resistência, a primeira experiência de

modernização e democratização do país ficaria adiada por quase meio século, até 25 de Abril de 1974.

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PARA LÁ DA ECONOMIA - 2012JOÃO RODRIGUES E NUNO TELESSO

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PARA LÁ DA ECONOMIA - 2012POR JOÃO RODRIGUES E NUNO TELES | ECONOMISTAS E CO-AUTORES DO BLOGUE LADRÕES DE BICICLETAS

MUITOS ECONOMISTAS FALAM COMO SE TI-vessem tido acesso à profecia que proclama o fim do mundo em 2012; profecia que se concretiza num cinema perto do leitor, cortesia de Hollywood. A radiografia da cena intelectual portuguesa, feita pelo filósofo João Cardoso Rosas, aplica-se-lhes na perfeição: «Para nós o tempo tem um sentido, ou seja, decorre entre um qualquer alfa e um ómega final. Se, em certos momentos de optimismo social, o ómega é vivido como utopia, noutros é experienciado como apocalipse»2.

O apocalipse económico está mais na moda, mas curiosamente este é anunciado pelas mesmas vozes, as que quase monopolizam o debate público, que até ao iní-cio da grande crise do capitalismo neoliberal, em 2007, tinham participado activamente na grande utopia de mercado que nos levou até ao actual desastre económico português e internacional: um processo de integração económica marcado, entre outras coisas, pela liberaliza-ção financeira, por políticas públicas que fragilizaram o mundo do trabalho e por uma desatenção às necessida-des dos sectores industriais.

REDUZIR OS SALÁRIOS?A análise dos economistas-2012 tem sido focada

numa mão cheia de dados macroeconómicos sobre a eco-nomia portuguesa. A par da obsessão com o «peso» do Estado, a falta de competitividade externa da economia

portuguesa é um dos temas recorrentes entre a opinião publicada. Se a falta de competitividade é um facto, as análises convergem na atribuição desta aos crescentes custos laborais. Os salários em Portugal, ainda que dos mais baixos a nível europeu, seriam demasiado elevados. Neste ponto, o economista Vítor Bento, novo conselhei-ro de Estado nomeado por Cavaco Silva, destacou-se pela proposta de corte salarial generalizado de forma a promover as exportações nacionais. No seu livro, Vítor Bento compara a evolução dos custos unitários de trabalho nominais entre 1999 e 2007 na zona euro: Portugal aparece como um dos países onde estes cus-tos mais cresceram desde a adesão ao euro, a par da Espanha e da Grécia e atrás da Irlanda3. No entanto, as diferentes taxas de inflação não são levadas em conta. Se o fossem, através do cálculo dos custos unitários do trabalho reais, observaríamos um decréscimo durante o mesmo período. O que esta diferença nos mostra é que, desde então, a repartição do rendimento entre capital e trabalho foi favorável ao primeiro, sinónimo do aumento da desigualdade, uma das mais altas da Europa. A causa dos diferenciais nos custos de trabalho não está, pois, no dinamismo da evolução salarial face aos restantes custos, mas sim na subida generalizada dos preços acima da média europeia.

Por outro lado, importa perceber quais os efeitos da prescrição do corte salarial e do mais eloquente con-

gelamento do salário mínimo. Se a receita aponta para cortes generalizados nos salários nominais, o objectivo consiste na redução dos salários mais baixos, já que são estes os predominantes nos sectores que se pretende dinamizar, as indústrias exportadoras nacionais (por exemplo, os têxteis e o calçado). O elevado número de trabalhadores pobres engrossaria, o consumo interno (variável mais resistente no actual contexto de reces-são) cairia e a crónica ineficiência de alguns dos secto-res industriais sairia premiada. Acresce ainda que nada garante uma saída da crise pelas exportações num con-texto em que a generalidade dos países siga por este caminho de cortes salariais generalizados e de conten-ção da procura interna, estratégia aliás facilitada pelo presente aumento do desemprego, poderoso mecanismo disciplinador das classes trabalhadoras. O que parece ter racionalidade (duvidosa) para cada país – promover as suas exportações por via da compressão dos custos relativos do trabalho e conter o consumo interno – gera um resultado global irracional sob a forma de um mer-cado interno europeu desequilibrado e contraído por um défice permanente de procura.

Através de uma análise estatística superficial e de prescrições simplistas, ignoram-se assim as raízes do problema. Se, de facto, Portugal perdeu competitividade externa nos últimos anos, tal deve-se, não às reivindi-cações dos trabalhadores, mas sim a uma entrada defi-

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ciente na moeda única, o euro: a chamada convergência nominal, no quadro da aceleração liberal da integração europeia, contribuiu para uma duradoura sobreaprecia-ção da nossa moeda, que se prolongou com o euro. Esta opção enfraqueceu a competitividade do sector de bens transaccionáveis para exportação num período crucial e canalizou muito do esforço empresarial para o sector de bens não-transaccionáveis, como foi o caso da construção.

Os países da zona euro têm a mesma política mone-tária, mas diferentes realidades económicas. Nos anos que precederam o euro assistiu-se a uma convergência das diferentes taxas de inflação, devido aos critérios de adesão. No entanto, a partir da criação da moeda única as taxas de inflação começaram a divergir nos países aderentes. Esta insustentável miopia resultou de um entendimento estreito, partilhado pelos economistas convencionais, da exclusiva determinação da taxa de inflação pela política monetária do Banco Central Eu-ropeu (BCE). O resultado foi a degradação da estrutura de custos das economias com maiores taxas de inflação em relação às restantes.

A moeda única foi instituída sem a necessária coor-denação no campo das restantes políticas de integração económica, simbolizada num orçamento comunitário residual, que não permite uma política europeia de re-distribuição e de investimento contracíclico, na ausência de políticas fiscais, salariais e sociais convergentes e na impossibilidade de emissão de dívida pública europeia, o que seria o corolário lógico de um processo de inte-gração monetária. A exigência de uma reconfiguração da política económica europeia tem, pois, que estar nos programas de quem pretende ultrapassar a crise no nos-so país.

OS SUPERÁVITES DE UNS SÃO OS DÉFICES DE OUTROS…

Outro dos problemas recorrentemente invocados pelos economistas-2012 e pelos partidos da direita, o crescente endividamento externo associado a um défice da balança corrente, encontra as suas causas estruturais nos mesmos mecanismos atrás mencionados. Se, por um lado, o acesso ao crédito nos mercados financeiros foi facilitado pela adesão à moeda única, por outro, os cres-centes diferenciais de custos na zona euro, aliados a uma estratégia do capital nacional – facilitada por políticas públicas erradas, de captura de sectores não expostos à concorrência externa (construção civil, distribuição, saúde, etc.) –, contribuíram para um galopante défice externo, traduzido em endividamento crescente. Con-tudo, se o endividamento é o resultado do comporta-mento dos agentes privados nacionais que data de há vários anos, o discurso dominante, numa mistificação que confunde amiúde endividamento externo com dí-vida pública, aponta os recentes esforços resultantes da crise internacional, traduzidos no aumento do défice orçamental (e logo da dívida pública) como responsável pelos nossos problemas.

Nesta tarefa política de transformação das conse-quências em causas, os economistas-2012 são auxiliados pelas inenarráveis agências de notação internacionais. Depois de terem ajudado a preparar a crise financeira com as suas avaliações laxistas dos títulos baseados no crédito imobiliário, cortam a notação da dívida pública emitida pelos governos, tornando mais difícil e oneroso o financiamento público e a saída da crise. O seu ne-cessário desmantelamento e substituição por agências públicas internacionais de avaliação é bloqueado: fazem

parte das estruturas de constrangimento criadas por décadas de hegemonia neoliberal e que se destinam a enviesar as políticas públicas.

Mais uma vez a prescrição, proposta por estas agên-cias e repetida pelos economistas-2012, é o corte cego da despesa pública sem que se perceba claramente como seria reduzido o endividamento externo. Ou melhor, existe um único mecanismo credível neste processo: o efeito depressivo na restante economia, afectando todos os agentes económicos, de um corte da despesa e do investimento públicos. O endividamento exter-no, entendido como constrangimento futuro do nosso crescimento, seria paradoxalmente resolvido através da contracção presente do produto nacional. Dada os duradouros efeitos negativos na capacidade produtiva nacional de tal contracção, a destruição seria muito pou-co criadora.

A resposta à fraca competitividade nacional, na ori-gem dos nossos problemas mais estruturais, só pode ser elaborada através de uma efectiva reconversão indus-trial, focada nos bens transaccionáveis (exportáveis), prosseguida através de política públicas de protecção comercial e de incentivo aos sectores tecnologicamente mais avançados, apoiadas num acesso a preços contro-lados a bens essenciais às indústrias que queremos pro-mover (crédito, energia, serviços públicos). Por outro lado, e seguindo a preciosa indicação do economista Ja-mes Galbraith, é preciso sublinhar que regras laborais exigentes, que reforcem os standards laborais, os contra-poderes sindicais e a negociação colectiva centralizada, ou regras ambientais avançadas, que impeçam a trans-ferência de custos sociais para a comunidade, são armas de reconversão industrial que beneficiam os sectores

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mais produtivos e competitivos4. Este resultado requer necessariamente a requalificação e valorização do factor trabalho, traduzida em melhores salários.

Neste esforço, a União Europeia poderia desempe-nhar um papel decisivo. É urgente a criação de arran-jos institucionais europeus que reduzam as assimetrias entre as diferentes economias e corrijam a existência crónica de brutais excedentes externos de certos países, como a Alemanha, face aos países cronicamente defici-tários. Caso contrário, não só a moeda única, como tam-bém o próprio projecto europeu, estarão condenados ao fracasso.

As políticas necessárias exigem mudanças profundas que vão muito para lá do que foi aprovado no Tratado de Lisboa: da modificação do estatutos do BCE, por forma a que leve em linha de conta o emprego e a necessidade de uma política cambial competitiva, à possibilidade de se instituírem mecanismos de controlo de capitais e de protecção comercial entre a União Europeia e outros espaços, sobretudo aqueles que não respeitem regras mínimas em matéria de regulação financeira, ambiental e laboral, até à suspensão das regras da concorrência para que economias menos avançadas e muito depen-dentes, como a portuguesa, possam praticar uma politi-ca industrial digna desse nome.

DO INVESTIMENTO À FISCALIDADE, HÁ TANTO PARA FAZER

A maior crise económica desde a Grande Depressão dos anos 30 é, para os economistas-2012, um mero cho-que exógeno na economia portuguesa, destinado a ser ultrapassado mais cedo do que tarde. Este não seria um problema da economia portuguesa, mas sim das grandes

economias mundiais. Tal atitude não mostra só miopia quanto à gravidade da actual crise, como traduz a in-capacidade destes economistas de analisar as causas da crise e as formas de a ultrapassar. No caso português, a atenção é exclusivamente dedicada aos problemas que vêm de trás, nomeadamente à estagnação económica da última década, e para os quais estes economistas contri-buíram decisivamente com as suas prescrições de flexi-bilização, ou seja, de criação de condições para fazer com que sejam os trabalhadores e a comunidade a ajustarem-se às supostas necessidades da economia.

É certo que a estratégia de recuperação da eco-nomia portuguesa deve ter em atenção os problemas estruturais. No entanto, o papel da presente crise não pode ser menorizado. Se o colapso do sistema financeiro global parece ter sido evitado, a recuperação da econo-mia global está longe de ser uma realidade. As fontes de um crescimento económico sustentável e durável estão longe de ser identificadas. O Estado deve, pois, paralelamente à reconstrução de um sistema financeiro realmente útil à economia, assegurar que as políticas fiscal e monetária expansionistas continuem a desem-penhar o seu papel de dinamização da economia e do

emprego. Como assinalava a economista Christina Ro-mer, actual líder do Council of Economic Advisors da administração de Barack Obama, uma reversão destas políticas públicas pode resultar num prolongamento da recessão, tal como aconteceu em 1937 nos Estados Uni-dos. Então animada pela recuperação do crescimento económico, a Reserva Federal promoveu uma política de restrição da expansão monetária junto do sistema bancário de forma a controlar potenciais aumentos da taxa de inflação. Contudo, a memória da depressão ainda estava fresca e os bancos reagiram, aumentando as suas reservas voluntárias e reduzindo o crédito. O resultado foi o prolongamento da Grande Depressão.

As estratégias de dinamização da economia através do investimento público são, por isso, responsabilidade de todos os países. Portugal não pode furtar-se. No en-tanto, a direcção do investimento e as suas formas de financiamento devem ser adaptadas à realidade nacio-nal. O esforço do Estado deve dirigir-se à promoção dos sectores potencialmente mais competitivos da economia internacional. Assim, as promessas de uma reconversão «verde» da economia apresentam-se como uma formi-dável oportunidade para, não só desenvolver uma eco-

É CERTO QUE A ESTRATÉGIA DE RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA PORTUGUESA

DEVE TER EM ATENÇÃO OS PROBLEMAS ESTRUTURAIS. NO ENTANTO,

O PAPEL DA PRESENTE CRISE NÃO PODE SER MENORIZADO. SE O COLAPSO DO

SISTEMA FINANCEIRO GLOBAL PARECE TER SIDO EVITADO, A RECUPERAÇÃO

DA ECONOMIA GLOBAL ESTÁ LONGE DE SER UMA REALIDADE.

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nomia livre de carbono, como também reduzir o nosso défice energético e, sobretudo, criar sectores industriais exportadores, tecnologicamente avançados.

Esta mudança também passa por transformações de fundo no regime fiscal e nas instituições que enqua-dram as relações laborais e por maior solidez política à medida que aumentar o seu grau de coordenação à escala europeia. Só assim se bloqueará a chantagem da fuga dos capitais e se ganhará autonomia para fazer o que tem de ser feito: do aumento da progressividade do sistema fiscal à taxação das transacções financeiras e dos consumos conspícuos e ambientalmente insusten-táveis, passando pelo reforço da determinação, em sede de concertação social, das normas salariais, por forma a gerar uma distribuição mais igualitária dos rendimentos antes de impostos. As reformas necessárias requerem assim imaginação institucional, capacidade de forjar co-ligações políticas amplas e princípios realistas, ou seja, princípios compatíveis com o melhor conhecimento dis-ponível. Para isso temos de superar a economia-2012 e as suas insustentáveis oscilações entre a utopia e o apocalipse.

NOTAS1 - Jornal i, 3 de Dezembro de 2009. 2 - Vítor Bento, Perceber a crise para encontrar o caminho, Bnomics, Lisboa, 2009. 3 - James Galbraith, The Predator State, Free Press, Nova Iorque, 2008.4 - The Economist, Londres, 18 de Junho de 2009.

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ESPÍRITOS, LETRAS E PRÁTICASJOSÉ GUSMÃOSO

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ESPÍRITOS, LETRAS E PRÁTICASPOR JOSÉ GUILHERME GUSMÃO | ECONOMISTA

O DEBATE SOBRE FISCALIDADE É CENTRAL EM toda a política económica. As fronteiras políticas são fre-quentemente traçadas em torno do peso da despesa ou da carga fiscal. Nada poderia ser mais enganador. Assim como na despesa as grandes fracturas vêem-se nas áreas para as quais a despesa é dirigida, na política fiscal o ter-reno das escolhas políticas é o da distribuição do esforço pelos vários tipos de rendimento e classes sociais.

É por isso que o discurso neoliberal sobre o peso da carga fiscal em Portugal por comparação com outros pa-íses da Europa, para além de ser pura e simplesmente falso, está ideologicamente viciado, porque a estatística escolhida ignora as desigualdades existentes na distribui-ção dessa carga. Uma política mais exigente nos resulta-dos tem de ser mais exigente na análise.

A DESIGUALDADE NA LEIO sistema fiscal português é dos que menos rendi-

mento redistribui e isso acontece no país mais desigual da Europa a 15. Este facto deve-se ao peso relativo dos vários impostos na nossa receita e às características desses impostos. A maior parte da receita fiscal é obtida através de impostos indirectos, regressivos, como o IVA, cujo peso tem aumentado. A sua regressividade radica no facto de as pessoas com menores rendimentos gastarem, proporcionalmente mais, do seu rendimento em consu-

mo. Em 2007, o peso dos impostos indirectos foi de 57%, mais de metade. O único elemento de progressividade no sistema está no IRS, que corresponde no mesmo ano a 23% da receita fiscal (ver quadro 1).

E mesmo o IRS, é na realidade, já hoje, um imposto semi -dual. São várias as categorias de rendimento sujei-tas a taxas especiais fora do englobamento e, portanto fora da tributação progressiva. É também por isso que 70% dos rendimentos que são cobrados em sede de IRS provêm de contribuintes cuja principal fonte de rendi-mento é o trabalho.

Estas taxas especiais foram sendo introduzidas e são muito difíceis de eliminar porque essa é a prática genera-lizada nos países desenvolvidos.

A estes buracos na progressividade do IRS, acresce a situação inexplicável e indefensável da isenção das mais-valias mobiliárias quando os activos forem detidos por mais de um ano, uma das disposições mais desprovidas de sentido económico da nossa legislação. Aqui, aliás, não existe nenhum argumento internacional. A prática na esmagadora maioria dos países da OCDE é a tributação e, em alguns casos, através de englobamento ou com taxas extremamente pesadas.

A DESIGUALDADE FORA DA LEIMas o maior cancro da fiscalidade em Portugal é a

fraude e evasão fiscal. Os números são impressionantes.

Estes números têm diminuído e deve salientar-se que foi feito trabalho nesta área. Mas Portugal continua a ser um dos países com maiores índices de fraude fiscal da Europa e esse facto tem consequências ao nível da recei-ta fiscal, redistribuição de rendimentos, políticas sociais, para além de provocar uma degradação da chamada mo-ralidade fiscal e um sentimento generalizado de injustiça impunidade.

Até porque a fraude e a evasão fiscais, tal como a car-ga fiscal, também se distribuem de forma desigual. Os rendimentos do trabalho são tributados com muito maior eficácia. Mas também o combate à fraude incide de for-ma desequilibrada. Nos últimos anos foram aprovadas medidas de tributação mínima e mecanismos de combate à fraude que produziram efeitos significativos junto de micro e pequenas empresas. Esses mecanismos, como o Pagamento por Conta, produziram resultados e, com alguns ajustamentos, devem ser mantidos e protegidos do populismo fiscal que começa a dominar algum debate político.

Mas a eficácia e acutilância contrasta com o constan-te adiamento de medidas que combatam a grande frau-de fiscal. Algum progresso tem sido feito aqui, mas com um enorme atraso em relação a outras áreas. À cabeça dessas medidas, está a derrogação do sigilo bancário. A nossa legislação é particularmente tímida em relação à prática na União Europeia e nada justifica que a situação

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actual permaneça. A esta medida têm de ser associadas, no plano nacional e internacional, iniciativas corajosos contra os maiores buracos negros fiscais e judiciais no planeta.

OS PARAÍSOS FISCAISExiste hoje um razoável consenso, pelo menos no

discurso, sobre os prejuízos causados pela existência de paraísos fiscais. No entanto, as medidas necessárias con-tinuam paralisadas à espera do consenso na comunidade internacional. Em Portugal, o discurso é o de que não tem sentido encerrar o off-shore da Madeira se a decisão não for multi-lateral. O argumento é o de que Portugal seria prejudicado se encerrasse unilateralmente mas é necessário demonstrar primeiro que a existência de um off-shore na Madeira trouxe benefícios para o país, o que até agora ninguém conseguiu.

SIMPLICIDADEMas há outros factores que determinam o carácter

desigual do nosso sistema fiscal. A forma fragmentada como a legislação portuguesa tem evoluído, nomeada-mente o primado das alterações avulsas sobre uma re-forma fiscal corajosa e estruturante gerou um labirinto de regimes especiais, excepções, deduções, isenções, taxas especiais e toda a espécie de regras e excepções que são, não apenas o paraíso do planeador fiscal, como (e pelos mesmos motivos) um factor de opacidade nas relações entre Estado e contribuintes e um nível acrescido de desigualdade. Um sistema complexo é um sistema em que as diferentes capacidades de leitura, compreensão e aproveitamento das possibilidades legais constituem um terreno em que os excluídos são mais excluídos e em que

os privilegiados encontram o terreno mais favorável. É por isso que a simplificação do sistema fiscal é,

tendencialmente, uma política de igualdade, sobretudo quando incide sobre mecanismos e particularidades que exigem um conhecimento do sistema por parte do contri-buinte. Um sistema fiscal mais simples promove a igual-dade de duas formas diferentes: (1) torna mais acessíveis a todos os direitos, deveres e oportunidades que estão definidos no quadro da lei e (2) torna mais transparentes (e contestáveis) as escolhas de política fiscal, aumentan-do a pressão social para a introdução de mecanismos de promoção da igualdade.

A ESTRATÉGIA MANHOSA DAS DEDUÇÕES

Um dos exemplos mais perversos da opacidade do sistema fiscal é o das deduções fiscais, nomeadamente nas áreas sociais. A generalização e agravamento desta prática constitui uma forma particularmente insidiosa de rentismo e transformou- se (em conjunto com as parce-rias publico-privado) no grande cavalo de Tróia da pri-vatização de funções sociais do Estado. Esta política é insidiosa porque o financiamento dos sistemas privados se faz indirectamente, através do apoio (ainda que parcial) aos utentes. Este desvio de receita fiscal do Estado para o financiamento de serviços privados nas áreas sociais põe em marcha um ciclo vicioso (ver quadro 2).

A perda de receita degrada a qualidade e dificulta o acesso aos serviços públicos, empurrando os utentes com mais meios para o recurso cada vez mais frequente ao sector privado. Essa deslocação diminui a exigência dos sectores mais influentes da sociedade em relação aos serviços públicos e aumenta a pressão social para o alar-

gamento dos benefícios aos serviços privados. E assim por diante (ver quadro 3).

Estas deduções são muito utilizadas pelos que têm maiores rendimentos, não apenas porque têm um melhor conhecimento da legislação ou podem contratar ajuda profissional, mas também e muito simplesmente porque têm tectos mais elevados para essas deduções. É por isso que uma das mais difíceis mas mais necessárias exigên-cias para uma política fiscal à esquerda é a da canalização de toda a receita fiscal para funções sociais para os ser-viços públicos.

Isso não quer dizer, obviamente, que não façam sen-tido outras deduções que introduzem incentivos ao dein-vestimento, à criação de emprego ou ao investimento no interior. A verdade, no entanto, é que muitas das políti-cas fiscais de apoio ao crescimento se têm baseado mais em cortes cegos e indiscriminados na fiscalidade sobre as empresas ou em medidas com pouca precisão na de-limitação dos destinatários e que acabam por promover mais o planeamento fiscal das empresas do que as acti-vidades que visavam apoiar (ver Nuno Teles, “Areia para os Olhos” no Ladrões de Bicicletas, 16/11/2009). Uma boa política industrial exige uma mistura equilibrada de incentivos fiscais e programas públicos de apoio às em-presas. A via fiscal tem sido muitas vezes a resposta pre-guiçosa de uma direita desconfiada em relação ao Estado.

HARMONIZAÇÃO Referi no início que o argumento central do discurso

neoliberal sobre fiscalidade era o peso da carga fiscal, aliada à competitividade fiscal no contexto de uma eco-nomia globalizada. O problema com este argumento é que a lógica da competitividade fiscal gera uma corrida

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Espíritos,  letras  e  prá/cas

O  debate  sobre  fiscalidade  é  central  em  toda  a  polí/ca  económica.  As  fronteiras  polí/cas  são  frequentemente  traçadas  em  torno  do  peso  da  despesa  ou  da  carga  fiscal.  Nada  poderia  ser  mais  enganador.  Assim  como  na  despesa  as  grandes  fracturas  vêem-­‐se  nas  áreas  para  as  quais  a  despesa  é  dirigida,  na  polí/ca  fiscal  o  terreno  das  escolhas  polí/cas  é  o  da  distribuição  do  esforço  pelos  vários  /pos  de  rendimento  e  classes  sociais.

É  por  isso  que  o  discurso  neoliberal  sobre  o  peso  da  carga  fiscal  em  Portugal  por  comparação  com  outros  países  da  Europa,  para  além  de  ser  pura  e  simplesmente  falso,  está  ideologicamente  viciado,  porque  a  estaHs/ca  escolhida  ignora  as  desigualdades  existentes  na  distribuição  dessa  carga.  Uma  polí/ca  mais  exigente  nos  resultados  tem  de  ser  mais  exigente  na  análise.

A  desigualdade  na  lei

O  sistema  fiscal  português  é  dos  que  menos  rendimento  redistribui  e  isso  acontece  no  país  mais  desigual  da  Europa  a  15.  Este  facto  deve-­‐se  ao  peso  rela/vo  dos  vários  impostos  na  nossa  receita  e  às  caracterís/cas  desses  impostos.  A  maior  parte  da  receita  fiscal  é  ob/da  através  de  impostos  indirectos,  regressivos,  como  o  IVA,  cujo  peso  tem  aumentado.  A  sua  regressividade  radica  no  facto  de  as  pessoas  com  menores  rendimentos  gastarem,  proporcionalmente  mais,  do  seu  rendimento  em  consumo.    Em  2007,  o  peso  dos  impostos  indirectos  foi  de  57%,  mais  de  metade  O  único  elemento  de  progressividade  no  sistema  está  no  IRS,  que  corresponde  no  mesmo  ano  a  23%  da  receita  fiscal.

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E  mesmo  o  IRS,  é  na  realidade,  já  hoje,  um  imposto  semi-­‐dual.  São  várias  as  categorias  de  rendimento  sujeitas  a  taxas  especiais  fora  do  englobamento  e,  portanto  fora  da  tributação  

QUADRO 1: EVOLUÇÃO DAS RECEITAS FISCAIS E CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURANÇA SOCIAL (% DO PIB)

QUADRO 2: ABATIMENTOS E DEDUÇÕES À COLECTA EM IRS (MILHÕES DE EUROS)

QUADRO 3: PERCENTAGEM DE DESPESA RECUPERADA PELOS AGREGADOS, ORDENADOS POR DECIS DE RENDIMENTO LÍQUIDO EQUIVALENTE

avulsas  sobre  uma  reforma  fiscal  corajosa  e  estruturante  gerou  um  labirinto  de  regimes  especiais,  excepções,  deduções,  isenções,  taxas  especiais  e  toda  a  espécie  de  regras  e  excepções  que  são,  não  apenas  o  paraíso  do  planeador  fiscal,  como  (e  pelos  mesmos  mo/vos)  um  factor  de  opacidade  nas  relações  entre  Estado  e  contribuintes  e  um  nível  acrescido  de  desigualdade.  Um  sistema  complexo  é  um  sistema  em  que  as  diferentes  capacidades  de  leitura,  compreensão  e  aproveitamento  das  possibilidades  legais  cons/tuem  um  terreno  em  que  os  excluídos  são  mais  excluídos  e  em  que  os  privilegiados  encontram  o  terreno  mais  favorável.

É  por  isso  que  a  simplificação  do  sistema  fiscal  é,  tendencialmente,  uma  polí/ca  de  igualdade,  sobretudo  quando  incide  sobre  mecanismos  e  par/cularidades  que  exigem  um  conhecimento  do  sistema  por  parte  do  contribuinte.  Um  sistema  fiscal  mais  simples  promove  a  igualdade  de  duas  formas  diferentes:  (1)  torna  mais  acessíveis  a  todos  os  direitos,  deveres  e  oportunidades  que  estão  definidos  no  quadro  da  lei  e  (2)  torna  mais  transparentes  (e  contestáveis)  as  escolhas  de  polí/ca  fiscal,  aumentando  a  pressão  social  para  a  introdução  de  mecanismos  de  promoção  da  igualdade.

A  estratégia  manhosa  das  deduções

Um  dos  exemplos  mais  perversos  da  opacidade  do  sistema  fiscal  é  o  das  deduções  fiscais,  nomeadamente  nas  áreas  sociais.  A  generalização  e  agravamento  desta  prá/ca  cons/tui  uma  forma  par/cularmente  insidiosa  de  ren/smo  e  transformou-­‐se  (em  conjunto  com  as  parcerias  publico-­‐privado)  no  grande  cavalo  de  Tróia  da  priva/zação  de  funções  sociais  do  Estado.  Esta  polí/ca  é  insidiosa  porque  o  financiamento  dos  sistemas  privados  se  faz  indirectamente,  através  do  apoio  (ainda  que  parcial)  aos  utentes.  Este  desvio  de  receita  fiscal  do  Estado  para  o  financiamento  de  serviços  privados  nas  áreas  sociais  põe  em  marcha  um  ciclo  vicioso.  

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3.1.2 Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) !

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A  perda  de  receita  degrada  a  qualidade  e  dificulta  o  acesso  aos  serviços  públicos,  empurrando  os  utentes  com  mais  meios  para  o  recurso  cada  vez  mais  frequente  ao  sector  privado.  Essa  deslocação  diminui  a  exigência  dos  sectores  mais  influentes  da  sociedade  em  relação  aos  serviços  públicos  e  aumenta  a  pressão  social  para  o  alargamento  dos  beneZcios  aos  serviços  privados.  E  assim  por  diante.  

Benefícios fiscais em Portugal: Quem é mais beneficiado ? Pág. 3

Eugénio Rosa – Economista – Mais estudos estão disponíveis em www.eugeniorosa@com

QUADRO II – LUCROS DA BANCA E IMPOSTOS PAGOS NO PERIODO 2005-2008 Milhões de euros

RUBRICAS 2005 2006 2007 2008 2005-08 Resultados (lucros) antes de Impostos 1.947 3.004 3.143 2.494 10.588 Impostos sobre Lucros 227 582 457 318 1.584 TAXA EFECTIVA DE IMPOSTO SOBRE LUCROS 11,7% 19,4% 14,5% 12,8% 15,0% Imposto taxa legal 27,5% (IRC + Derrama) 535 826 864 686 2.912 RECEITA FISCAL PERDIDA 308 244 407 368 1.328

FONTE – Associação Portuguesa de Bancos – Boletim Informativo – Nº 39, 41 e 43

Assim, no período 2005-2008, ou seja, com este governo, os bancos representados pela Associação Portuguesa de Bancos tiveram 10.588 milhões de euros de lucros. Deste volume de lucros a banca só pagou 1.584 milhões de euros de impostos sobre lucros, o que corresponde a uma taxa efectiva média de apenas 15%. Se a banca tivesse pago a taxa legal (25% de IRC mais 2,5% de Derrama) ela teria pago neste período 2.912 milhões de euros, ou seja , mais 1.328 milhões de euros do que pagou. Sócrates, o PS e toda a direita sempre se opuseram a que fosse fixada uma taxa efectiva mínima de imposto sobre os lucros que não poderia ser reduzida através da utilização de benefícios fiscais como actualmente sucede. Estes dados sobre a banca assim como a posição destes partidos dão bem uma ideia de quais são as classes sociais mais beneficiadas com o sistema de benefícios que existe em Portugal, e que interesses defendem aqueles partidos.

QUEM É MAIS BENEFICIADO COM AS DEDUÇÃO DE 30% DAS DESPESAS DE SAUDE NO IRS

Um dos pontos em que o confronto no debate entre Sócrates e Francisco Louçã foi maior foi na dedução das despesas de saúde no IRS. E interessa também analisar esta questão com objectividade, o que não foi feito durante o debate. Para situar o problema vai-se utilizar dados divulgados num estudo oficial feito sobre o financiamento do SNS elaborado por uma comissão nomeada por Correia Campos e Teixeira dos Santos, ministros do governo de Sócrates. O quadro seguinte foi transcrito da pág. 121 do Relatório Final da Comissão para a Sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde constituída por Despacho Conjunto do Ministro de Estado e das Finanças e do Ministro da Saúde em 13 de Março de 2006.

QUADRO III

De acordo com a Comissão encarregada de estudar a sustentabilidade do SNS nomeada pelos ministros das Finanças e da Saúde do governo de Sócrates , os 10% mais ricos da população recuperam 27% das suas despesas com saúde, enquanto os 10% mais pobres recuperam apenas Estas  deduções  são  muito  u/lizadas  pelos  que  têm  maiores  rendimentos,  não  apenas  porque  têm  um  melhor  conhecimento  da  legislação  ou  podem  contratar  ajuda  profissional,  mas  também  e  muito  simplesmente  porque  têm  tectos  mais  elevados  para  essas  deduções.  É  por  isso  que  uma  das  mais  diZceis  mas  mais  necessárias  exigências  para  uma  polí/ca  fiscal  à  esquerda  é  a  da  canalização  de  toda  a  receita  fiscal  para  funções  sociais  para  os  serviços  públicos.

Isso  não  quer  dizer,  obviamente,  que  não  façam  sen/do  outras  deduções  que  introduzem  incen/vos  ao  reinves/mento,  à  criação  de  emprego  ou  ao  inves/mento  no  interior  .  A  verdade,  no  entanto,  é  que  muitas  das  polí/cas  fiscais  de  apoio  ao  crescimento  se  têm  baseado  mais  em  cortes  cegos  e  indiscriminados  na  fiscalidade  sobre  as  empresas  ou  em  medidas  com  pouca  precisão  na  delimitação  dos  des/natários  e  que  acabam  por  promover  mais  o  planeamento  fiscal  das  empresas  do  que  as  ac/vidades  que  visavam  apoiar  (ver  Nuno  Teles,  “Areia  para  os  Olhos”  no  Ladrões  de  Bicicletas,  16/11/2009).    Uma  boa  polí/ca  industrial  exige  uma  mistura  equilibrada  de  incen/vos  fiscais  e  programas  públicos  de  apoio  às  empresas.  A  via  fiscal  tem  sido  muitas  vezes  a  resposta  preguiçosa  de  uma  direita  desconfiada  em  relação  ao  Estado.

Harmonização

Referi  no  início  que  o  argumento  central  do  discurso  neoliberal  sobre  fiscalidade  era  o  peso  da  carga  fiscal,  aliada  à  compe//vidade  fiscal  no  contexto  de  uma  economia  globalizada.  O  problema  com  este  argumento  é  que  a  lógica  da  compe//vidade  fiscal  gera  uma  corrida  para  o  fundo.  O  regime  compe//vo  por  excelência  é  o  regime  de  tributação  zero  (dos  rendimentos  de  capitais,  mais  móveis,  bem  entendido).  Mas  o  argumento  também  tem  um  problema  para  a  esquerda.  É  que  a  compe//vidade  fiscal  existe.  Mesmo  que  a  sua  importância  seja  grosseiramente  exagerada  quando  se  fala,  por  exemplo,  de  Inves/mento  Directo  Estrangeiro.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [39] SOCIALISMO 2010

para o fundo. O regime competitivo por excelência é o regime de tributação zero (dos rendimentos de capitais, mais móveis, bem entendido). Mas o argumento também tem um problema para a esquerda. É que a competiti-vidade fiscal existe. Mesmo que a sua importância seja grosseiramente exagerada quando se fala, por exemplo, de Investimento Directo Estrangeiro.

Em primeiro lugar, não basta argumentar que, em te-oria, tudo o resto permanecendo constante, as empresas preferem investir em países com regimes fiscais favorá-veis. É preciso demonstrar que as empresas valorizam regimes fiscais favoráveis mais do que valorizam boas infra -estruturas, energia barata ou serviços públicos de qualidade. De qualquer forma, convém que a esquerda não ignore o argumento e pense as implicações que a globalização tem na fiscalidade.

A principal dessas implicações é a da necessidade de harmonização fiscal no espaço europeu. Essa necessidade é contraditória com as tentações soberanistas e exige a formulação de um caderno de encargos para um conjunto de mínimos fiscais à escala europeia.

CONCLUSÕESEm resumo, e como se fala de agenda, tentaria definir

três grandes prioridades:

1. Coragem contra a fraudeNão há segredos hoje sobre quem mais foge à tribu-

tação e quais os instrumentos que utilizam. Todos esses instrumentos estão ao alcance dos poderes públicos. Está na hora de os mobilizar.

2. Redistribuir e SimplificarDuas prioridades a buscar em conjunto. Existe hoje

um discurso de “simplificação” que é dirigido contra a já tão frágil vocação distributiva do nosso sistema fiscal. A simplificação que interessa é a que combate a evasão e aproxima todos os cidadãos da plena consciência e exer-cício dos seus direitos e deveres.

3. Coordenar políticas fiscais no plano internacionalEsta é a mais difícil para a esquerda porque a divide

e há bons argumentos dos dois lados. Se a resposta da competitividade e da corrida para o fundo só tem boa resposta na harmonização fiscal, é verdade que a pressão cidadã tão necessária continua a estar muito longe das instituições que a podem implementar. Mesmo assim, não vejo como é que a esquerda poderá obter as vitórias mais significativas sem enfrentar esse desafio.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [40] SOCIALISMO 2010

SNS – NEM ROSA VELHO NEM LARANJA CHOQUE

A RESPOSTA DA ESQUERDAJOÃO SEMEDO E SOFIA CRISÓSTOMO

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [41] SOCIALISMO 2010

SNS – NEM ROSA VELHO NEM LARANJA CHOQUE: A RESPOSTA DA ESQUERDAJOÃO SEMEDO E SOFIA CRISÓSTOMO | MÉDICO E ASSESSORA PARLAMENTAR PARA A ÁREA DA SAÚDE

BASTARAM TRÊS MESES PARA PEDRO PASSOS Coelho deixar cair o tendencialmente gratuito como característica fundamental do SNS e aderir a uma das mais antigas e liberais pretensões da direita portuguesa: mercantilizar o direito à saúde e transformar a saúde num grande negócio.

Em Abril, por ocasião do congresso que o elegeu para líder do PSD, Pedro Passos Coelho expressava as-sim a sua visão sobre os princípios que deviam orientar a política de saúde: “Do princípio da Igualdade, resultam os princípios: da universalidade de acesso; do seu carác-ter geral e solidário; da especial preocupação com os mais pobres e os mais idosos; e do ser tendencialmente gratuito.”

Em Julho, apenas três meses depois, os princípios de Pedro Passos Coelho passaram a ser outros: a revi-são constitucional desejada pelo PSD acaba com o SNS tendencialmente gratuito, proclamando que “em caso algum, o acesso pode ser recusado por insuficiência de meios económicos”, assim sossegando os sentimentos misericordiosos de um partido que, de social-democrata, só lhe resta mesmo o nome, tal a deriva liberal que se apoderou dos seus principais dirigentes.

O primeiro ponto que é necessário esclarecer é o objectivo exacto do PSD, o que está escondido nas entrelinhas da proposta de Pedro Passos Coelho e nas intervenções contraditórias de diversos dirigentes do

PSD, cada qual dizendo uma coisa diferente, como se não quisessem que percebêssemos as suas intenções e as consequências que teriam no acesso dos cidadãos ao SNS e na garantia constitucional do direito à saúde.

Para Luís Meneses, jovem deputado e dirigente do PSD, tudo se resume a diferenciar o valor das taxas moderadoras: “O PSD pretende com isto que cada um comparticipe nas despesas de saúde em função das suas possibilidades, dos seus rendimentos. Vamos exempli-ficar: por que razão é que dois cidadãos com rendimen-tos substancialmente diferentes, um funcionário fabril a ganhar o salário mínimo e um empresário com ren-dimentos avultados, hão-de pagar o mesmo valor de taxa moderadora por um serviço de saúde, seja ele qual for?”[DN, 20.07.10]. Ingenuidade ou engodo?

Bacelar Gouveia, também ele deputado e dirigente do PSD, encarrega-se de “traduzir” Luís Meneses: “Cor-rige-se a injustiça de obrigar aqueles que recorrem aos serviços não públicos a terem de pagar duas vezes, po-dendo assim livremente escolher.” [Público, 21.07.10]. Tanta franqueza tem uma virtude: fica a perceber-se o que pretende o PSD.

Pedro Passos Coelho quer os portugueses a pagar os cuidados de saúde directamente no momento da pres-tação e não através dos impostos, como acontece actu-almente. E se pagam, devem poder escolher o prestador que desejam - público ou privado. Mas, se pagam quando

usam os serviços de saúde, públicos ou privados, então devem reduzir o imposto que o estado lhes cobra: “E ao assumirem a sua co-responsabilidade nas despesas de saúde, os cidadãos devem beneficiados com desagrava-mentos fiscais. Ou, preferencialmente, deve existir uma redução efectiva da carga fiscal de modo a que os cida-dãos e as famílias disponham de um nível de rendimento que lhes permita efectuar estas e outras escolhas sem existir um sentimento implícito de injustiça no modo como os impostos são utilizados pela sociedade.” [“Mu-dar” de Pedro Passos Coelho, página 204, ed. Quetzal]

A redução da receita fiscal do estado comprometeria o financiamento do SNS pelo orçamento e a curtíssi-mo prazo o SNS deixaria de ser sustentável tanto na sua dimensão actual como na versão minimalista que o projecto do PSD prevê par uso exclusivo dos cidadãos sem recursos próprios para custear as suas despesas de saúde. As regras da “boa gestão e da rentabilização do património” não demorariam muito tempo a transferir a propriedade da rede pública de serviços de saúde para os grupos privados que hoje operam e dominam o mer-cado da saúde (BES Saúde, HPP/CGD, grupo Mello), adequando a sua capacidade de resposta a uma procura incomensuravelmente maior. Rapidamente a prestação seria universalmente privada, com o estado a cumprir a sua função assistencialista: uma espécie de grande mi-sericórdia nacional para o século XXI, cuja “obra” seria

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [42] SOCIALISMO 2010

comparticipar ou subsidiar os encargos com a saúde dos indigentes.

Em síntese, o que Pedro Passos Coelho visiona é a privatização do SNS e a substituição do direito à saú-de pela fórmula “quem quer saúde, pague-a”, através de dois sistemas de saúde: um, de primeira, para quem pode pagar e outro, de segunda, para pobres e excluídos.

Se alguma vez viesse a ser assim, não seria apenas a perda ou degenerescência do SNS que lamentaríamos mas sim a erosão do contrato social estabelecido entre os portugueses e que se materializa na solidariedade de todos contribuirmos para a saúde de todos, de acordo com o rendimento de cada um e em função das suas necessidades de saúde. Seria um brutal retrocesso no modelo social em que vivemos.

Não deixa de ser caricato ouvir Pedro Passos Coelho invocar os problemas da sustentabilidade financeira do SNS para justificar e defender um projecto cuja princi-pal consequência seria, precisamente, inviabilizar finan-ceiramente o SNS.

Não é previsível nem realista admitir que o cresci-mento da despesa em saúde possa ser interrompido ou invertido. Mas isso não significa que, ao contrário das profecias de muitos, o SNS não seja financeiramente sustentável. Uma análise mais pormenorizada à despe-sa e à sua evolução demonstra-o, contrariando mitos e certezas que, precipitada e intencionalmente, se foram afirmando.

Não pode deixar de ser dito que a receita fiscal tam-bém é condição de sustentabilidade da despesa social do estado. O problema está do lado da despesa, mas tam-bém do lado da receita. Sobretudo da receita fiscal per-dida (evasão e fraude fiscal, dívida fiscal por executar,

tributação da banca e sociedades financeiras, transferên-cias para sociedades offshore). Se fosse outra a realidade fiscal portuguesa, certamente que seriam bem diferentes os termos do debate sobre as despesas sociais do estado.

Mas olhemos e concentremo-nos na despesa em saú-de, na pública e na privada. Sem esquecer – até pela sua elevada expressão, a transferência de fundos públicos para os prestadores privados.

Apesar de a despesa pública em saúde ser muitas ve-zes anunciada como sendo exorbitante e estando fora de controlo, a verdade nua e crua dos números mostra uma realidade bem diferente. Não só continuamos a ter, entre os países da UE 15, a mais baixa despesa públi-ca em saúde per capita, quando ajustada pela paridade do poder de compra (Gráfico 1), como o crescimento real da despesa tem apresentado níveis de crescimento sucessivamente mais baixos, tendo mesmo atingido em 2006 um crescimento real negativo, comparativamente com o período homólogo (Gráfico 2).

Por outro lado, Portugal é dos países onde uma maior proporção (quase 30%) da despesa total em saúde

é assumida por fontes de financiamento privadas (Grá-fico 3), sobretudos as famílias (Tabela 1), que têm visto aumentar sucessivamente os seus encargos directos com a saúde (Gráfico 4). Curiosamente, os seguros privados de saúde que, em 2006, já abrangiam 1,725 milhões de pessoas seguras (quase 1/5 da população Portuguesa), foram responsáveis, no mesmo ano, pelo financiamento de apenas 2,4% da despesa corrente total, o que con-firma a complementaridade dos seguros em relação ao SNS, os quais não constituem, na prática, uma alterna-tiva ao sistema público de saúde.

Quanto aos grandes grupos privados, estes conti-nuam a encarar a saúde como uma área com enorme potencial de crescimento, o que se reflecte nos avultados investimentos que têm feito para aumentar a sua capaci-dade enquanto prestadores de cuidados de saúde. Isto na expectativa que o Estado venha a financiar ainda mais os cuidados de saúde prestados por privados. Tal não deixa de constituir um paradoxo curioso. Aqueles que mais defendem a iniciativa privada procuram a todo o custo maximizar os seus investimentos, nomeadamen-

TABELA 1 – FINANCIAMENTO DA DESPESA CORRENTE EM SAÚDE EM PORTUGAL

FONTE: INE. CONTA SATÉLITE DA SAÚDE 2006.

Despesa pública Despesa privada57,5 % SNS 23,9% famílias7,1% subsistemas públicos 2,4% seguros privados5,7% outros serviços públicos 1,9% subsistemas privados0,9% fundos da segurança social 0,6% outrosTotal: 71,2% Total: 28,8%

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [43] SOCIALISMO 2010

GRÁFICO 1 – DESPESA PÚBLICA EM SAÚDE PER CAPITA (AJUSTADA PELA PPC, USD, 2007)

GRÁFICO 3 – DESPESA PRIVADA EM SAÚDE (% DA DESPESA TOTAL, 2007) GRÁFICO 4 – EVOLUÇÃO DA DESPESA PRIVADA EM SAÚDE (MILHARES DE €)

FONTE: WHO GLOBAL HEALTH OBSERVATORY.

FONTE: WHO GLOBAL HEALTH OBSERVATORY. FONTE: PORDATA

GRÁFICO 2 – CRESCIMENTO REAL DA DESPESA PÚBLICA EM SAÚDE PER CAPITA (%)

FONTE: OECD HEALTH DATA

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45

LuxemburgoDinamarca

HolandaReino Unido

SuéciaIrlandaFrança

AlemanhaItália

ÁustriaFinlândia

BélgicaEspanhaPortugal

Grécia

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [44] SOCIALISMO 2010

te, através de contratos de Parcerias Público Privadas (PPP) e de convenções com a ADSE ou no âmbito do SIGIC.

Até 2013, os gastos do Estado com as PPP aumen-tarão mais de 300% face ao valor registado em 2009 (Gráfico 5), sem contar com as adendas aos contratos, expediente a que o Estado se tem sido obrigado a re-correr, sempre que as entidades gestoras alegam que determinada prestação de cuidados não está incluída no contrato inicial. Aconteceu assim em Cascais e agora também mais recentemente em Braga.

Em 2009, os quatro maiores grupos privados de saú-de facturaram 694 milhões de euros, o que representa um crescimento de 42,5% comparativamente com o ano anterior. Para 2010, esperam atingir os 950 milhões de euros de facturação.

Por outro lado, os dados disponíveis mostram que o Estado já financia mais de metade da prestação priva-da, incluindo medicamentos, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros cuidados de saúde.

Apregoando um custo por acto inferior ao cobrado pelo SNS aos subsistemas, os privados escondem que, não havendo um controlo do volume total de actos a realizar, a indução da procura surge naturalmente numa tentativa de maximização do lucro, tal como explicado em qualquer manual de economia.

Em 2007, o Ministério das Finanças celebrou um acordo com o Hospital da Luz para assistência dos be-neficiários da ADSE. Em 2008, novo acordo com um grande grupo privado, desta vez o grupo HPP, que abrangeu mais três instituições: Hospital dos Lusíadas, HPP Centro e Hospital Privado da Boavista.

Do lado da despesa paga, enquanto as transferên-

cias da ADSE para o SNS diminuíram 33,6 milhões de euros, a despesa da ADSE com prestadores no regime convencionado e com encargos no regime livre aumen-tou, no seu conjunto, 40,5 milhões de euros. No regime convencionado, o maior crescimento da despesa esteve associado ao internamento e ambulatório em hospitais e clínicas privadas, aos actos médicos (sobretudo de me-dicina, onde se destacam os exames do foro cardíaco e gastrointestinal) e às cirurgias (Tabela 2).

Os mais de 1,3 milhões de beneficiários da ADSE constituem assim para os privados um grande manan-cial de receita, apresentando uma vantagem inigualável, comparativamente com os seguros privados de saúde, o facto de a ADSE não estabelecer limites máximos para o custo total por tratamento completo, nem para a des-pesa anual por beneficiário.

Do exposto resulta claro que a sustentabilidade fi-nanceira do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não passa pelo predomínio dos privados na prestação de cuidados de saúde, nem pela contratação mais generalizada de seguros privados. No entanto, a garantia da sustentabi-lidade do SNS passa pelo fim das PPP e pela preferência do SNS na prestação de cuidados aos beneficiários dos

subsistemas públicos. Só através da aposta continuada num SNS geral, universal e de qualidade podemos con-tinuar a promover e assegurar uma maior equidade no acesso e no financiamento dos cuidados de saúde, a ma-ximização do estado de saúde da população, um maior controlo do crescimento da procura e um menor risco de insustentabilidade financeira.

Contrariando os que alegam que apenas através de uma maior intervenção dos privados na saúde se poderá atingir a eficiência necessária para garantir a susten-tabilidade do sistema, escondendo nesse chavão a tão desejada maximização do lucro mesmo que o custo a pagar seja a diminuição do acesso por parte da genera-lidade dos cidadãos ou o aumento dos co-pagamentos, a reforma em curso do sistema de saúde americano, por iniciativa do Presidente Obama, veio pôr a nu e de for-ma inegável todas as fragilidades das propostas liberais para a privatização da saúde.

O sistema de saúde americano em que 15% da popu-lação não tem qualquer seguro de saúde e em que 75% dos seguros de saúde estão ligados à entidade emprega-dora3,4 e que, portanto, qualquer pessoa que fique sem emprego deixa de beneficiar do seguro, tem a maior des-

A GARANTIA DA SUSTENTABILIDADE DO SNS PASSA PELO FIM DAS PPP E PELA

PREFERÊNCIA DO SNS NA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS AOS BENEFICIÁRIOS

DOS SUBSISTEMAS PÚBLICOS. SÓ ASSIM PODEMOS CONTINUAR

A PROMOVER E ASSEGURAR UMA MAIOR EQUIDADE NO ACESSO

E NO FINANCIAMENTO DOS CUIDADOS DE SAÚDE

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [45] SOCIALISMO 2010

GRÁFICO 5 – DESPESA PÚBLICA COM PPP NA ÁREA DA SAÚDE (MILHÕES DE €)

GRÁFICO 6 – ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA TOTAL (ANOS, 2008) GRÁFICO 7 – ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA SEM DOENÇA (ANOS, 2008)

TABELA 2 – DESPESA PAGA PELA ADSE NO REGIME CONVENCIONADO (MILHÕES DE €)

FONTE: ORÇAMENTO DO ESTADO PARA 2010

FONTE: WHO – GLOBAL HEALTH OBSERVATORY. FONTE: WHO – GLOBAL HEALTH OBSERVATORY.

FONTE: ADSE. RELATÓRIO DE ACTIVIDADES 2009.

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2009 2010 2011 2012 2013

Despesa 2007 2009 Variação

Internamento e ambulatório

Instituições Oficiais 1,88 1,52 -19%Misericórdias e IPSS 14,82 19,31 +30%Privados 43,75 73,82 +69%

Actos médicosConsultas de clínica geral 1,64 1,74 +6%Consultas de especialidade 8,49 9,55 +12%Actos de medicina 1,30 2,02 +55%

Actos cirúrgicos Cirurgias 3,24 4,02 +24%

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pesa total em saúde per capita e, desconhecido de muitos, é o terceiro país com maior despesa pública em saúde per capita, a seguir ao Luxemburgo e à Noruega5. E a tão elevada despesa nem sequer correspondem os melhores indicadores de saúde. Por exemplo, tanto ao nível da esperança média de vida (Gráfico 6 e Gráfico 7), como da taxa de mortalidade infantil (Gráfico 8), os EUA têm um desempenho inferior a qualquer um dos países da EU 15, Canadá, Austrália ou Japão. Por estas e outras razões, os EUA foram classificados pela Organização Mundial de saúde em 37.º lugar no ranking dos sistemas de saúde (2000).

Ou seja, a redução do papel do Estado ao mínimo, tanto na regulação e supervisão, como na prestação de cuidados de saúde, e a sua substituição nesta função pe-los privados, revela-se ineficaz para atingir a tão propa-lada eficiência, com que se pretende justificar a privati-zação da saúde em Portugal, com prejuízo do estado de saúde das populações.

NOTAS1 INE. Conta Satélite da Saúde 2004 in Nogueira da Silva, S. (2010). Os seguros de saúde privados no contexto do Sis-tema de Saúde Português. Lisboa: Associação Portuguesa de Seguradores.2 ADSE. Relatório de Actividades 2009.3 Mills R.J., Bhandari S. (2003). Health Insurance Coverage in the United States. 4 Katz M.B. (2001). The Price of Citizenship. Redefining the American Welfare State. New York: Metropolitan Books.5 WHO Global Health Observatory.

GRÁFICO 8 – ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA (ANOS)

FONTE: WHO – GLOBAL HEALTH OBSERVATORY.

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BANCO PÚBLICO DE TERRASXOSÉ CARBALLIDO PRESAS

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A ESTRUTURA PARCELARIAAssim como acontece na Galiza, a estrutura parce-

lária de Portugal é caracterizada por um elevado grau de fragmentação, dividindo a Superficie Agrária Útil (labradíos, prados e pastagens) em milhares de peque-nas parcelas. Assim, muitas explorações possuem um grande número de parcelas dispersas que obriga a des-locamentos contínuos. Uma grande parte da superfície rural está em regime de propriedade privada, em muitos casos, os titulares não são os gestores da terra e há mui-tas parcelas sem nenhum tipo de gestão.

Entre as causas da fragmentação podemos destacar: Estratégias e costumes hereditários do sistema agrário tradicional, a vinculação afectiva à origem familiar, os modelos de assentamento (dispersão de núcleos), a falta de ordenação territorial, a consideração da terra como bem raiz e valor refúgio e mesmo a insuficiente adap-tação das estruturas às mudanças experimentadas pelo sector nas últimas décadas.

Esta situação afecta de forma directa as explora-ções: Diminuição no número de explorações das úl-timas décadas sem levar emparelhado a transferência de Superfície Agrária Útil (SAU) para as que se man-têm, e grande parte das terras de vocação agrária sem

nenhum tipo de gestão, com um deficiente aproveita-mento ou em estado de abandono. Como consequência podemos destacar a falta de unidades produtivas viá-veis e o dimensionamento da exploração inadequado. Isto provoca dificuldade de inovação e melhorias tec-nológicas, incremento dos custos de produção, menor eficiência do factor trabalho, diminuição das rendas da família no rural, mínimo relevo geracional, êxodo rural, envelhecimento da população rural, abandono e perda da paisagem tradicional, redução da diversidade ecológica, risco de incêndios e degradação dos solos e aquíferos. INTERVENÇÃO PÚBLICA PARA A MOBILIZAÇÃO DE TERRAS

Nenhum país pode deixar a produção de alimentos exclusivamente em mãos de terceiros, e há que ter em conta a função social do direito de propriedade. Os go-vernos devem intervir para a ordenação territorial de uso da terra, conservar a Superfície Agrária Útil (Por-tugal perdeu mais de 500.000 hectares de SAU nos últi-mos 20 anos), melhorar a situação estrutural das explo-rações, buscar a viabilidade e competitividade do sector, estabelecer critérios de eqüidade e acesso democrático aos recursos, e intervir na melhora do funcionamento

do mercado de terras. Ten por tanto possibilidades de intervenção nos mecanismos de mobilidade: Acesso à propriedade (compra) ou acesso ao uso pelas explora-ções (arrendamentos).

A mobilização por COMPRA presenta certas difi-culdades: A terra, como património em situação de cri-se, ten as veces preços inassumibles, e economicamente inviáveis, e também há uma reduzida capacidade finan-ceira pelo tamanho das explorações. Por outro lado, tambem há dificuldades para mobilização por ARREN-DAMENTO: Temor à perda da titularidade do capital territorial, risco de demoras no pagamento e falta de pagamento, e mesmo prevenção do proprietario diante do deterioro do património arrendado. UM BANCO PÚBLICO DE TERRAS ?

O governo posse intervir criando um banco que faça as gestões necessárias para mobilizar as terras mediante ARRENDAMENTOS. Um banco onde possamos ins-crever as nossas quintas permitindo que sejam arren-dadas. Um banco onde os agricultores possam solicitar quintas em aluguer para ampliar a sua base territorial.

Este Banco deve ser público, co respaldo do governo, para que possa estabelecer determinadas garantías: Ga-rantia de devolução ao proprietário acabado o período

BANCO PÚBLICO DE TERRASXOSÉ CARBALLIDO PRESAS | MEMBRO DO CONSELHO NACIONAL DO BLOCO NACIONALISTA GALEGO E DA COMISSÃO DE POLÍTICA AGRÁRIA DO BNG. EX-DIRECTOR GERAL DE ESTRUTURAS E INFRA-ESTRUTURAS AGRÁRIAS DO GOVERNO GALEGO

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [49] SOCIALISMO 2010

de arrendamento, garantia de cobro do preço estabe-lecido e garantia de devolução das terras em normal estado de uso.

No caso da Galiza, criou uma sociedade gestora do Banco de Terras, de carácter público, o BANTEGAL, que absorve o peso do marco contratual, existindo sem-pre dois contratos: Proprietário -Bantegal por um lado e Bantegal - Agricultor pelo outro. Os aspectos princi-pais são o tempo de cessão (entre 5 anos mínimo e 30 anos máximo) e a renda, para o que se estabelecem uns preços de referência. Quando o proprietário incorpo-ra um prédio ao Banco de Terras, autoriza ao Bantegal a cedê-lo a terceiros por um prazo máximo de 5 anos (excepto consentimento expresso de prazo diferente) O Bantegal assume os custos de garantia associados

à transacção: Garante o cumprimento dos prazos, fa-zendo-se responsável pelas relaciones contratuais. As-segura a cobrança da renda por parte do proprietário independentemente do cumprimento do pago por par-te do arrendatário. Faz-se responsável subsidiário dos possíveis danos causados no prédio, assegurando para o proprietário a recuperação da quinta em condições equi-paráveis no ponto da sua incorporação ao Banco.

CONSERVAÇÃO DA SUPERFÍCIE AGRÁRIA ÚTIL

De forma paralela, o governo deve estabelecer me-canismos tendentes à conservação da SAU com actua-ções sobre as quintas incultas ou abandonadas, mediante procedimentos sancionadores quando estas situações

possam causar prejuízos a terceiros. Ao mesmo tempo, possa estabelecer benefícios tributários com o objecti-vo de proteger e conservar a SAU, com uma isenção às quintas trabalhadas e aquelas que estejam incorporadas ao Banco Público de Terras, incentivando que aqueles proprietários que por uma ou outra causa não estejam a trabalhar as quintas, ao menos ponham estes prédios à disposição das explorações que necessitem alargar a sua base territorial.

O governo tem portanto possibilidades de interven-ção. Não pode permanecer inactivo, e deve tomar me-didas que permitam a ampliação da base territorial das explorações agrárias, de modo que se convertam num factor de riqueza colectiva.

responsável  subsidiário  dos  possíveis  danos  causados  no  prédio,  assegurando  para  o  proprietário  arecuperação  da  quinta  em  condições  equiparáveis  no  ponto  da  sua  incorporação  ao  Banco.

Conservação  da  Superficie  Agrária  ÚMl

De  forma  paralela,  o  governo  deve  estabelecer  mecanismos  tendentes  à  conservação  da  SAU  comactuações   sobre   as   quintas   incultas   ou   abandonadas,   mediante   procedimentos   sancionadoresquando  estas  situações  possam  causar  prejuízos  a  terceiros.  Ao  mesmo  tempo,  possa  estabelecerbeneScios  tributários  com  o  objec9vo  de  proteger  e  conservar  a  SAU,  com  uma  isenção  às  quintastrabalhadas  e  aquelas  que  estejam   incorporadas  ao  Banco  Público  de  Terras,   incen9vando  queaqueles  proprietários  que  por  uma  ou  outra  causa  não  estejam  a  trabalhar  as  quintas,  ao  menosponham  estes  prédios  à  disposição  das  explorações  que  necessitem  alargar  a  sua  base  territorial.

O  governo  tem  portanto  possibilidades  de  intervenção.  Não  pode  permanecer  inac9vo,  e  deve  tomarmedidas  que  permitam  a  ampliação  da  base  territorial  das  explorações  agrárias,  de  modo  que  seconvertam  num  factor  de  riqueza  colec9va.

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A RECEPÇÃO É A ARMA DO POVO?

JOÃO TEIXEIRA LOPES

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [51] SOCIALISMO 2010

A RECEPÇÃO É UMA «ARMA»? EM CONCRETO, é a arma simbólica dos oprimidos? A questão ganha particular sentido num contexto de proliferação das práticas culturais doméstico-receptivas (apesar de esta categoria englobar uma série de actividades que vão das apropriações mais passivas dos media tradicionais às emergentes práticas amadoras propiciadas pela pa-nóplia de novos media, passando pela apropriação sem produção de cariz convivial e crítico).

Além do mais, não raras vezes se falou, em par-ticular nos estudos empíricos dos cultural studies, na interpretação como uma espécie de ferramenta de contradominação dos pobres, particularmente quando destituídos de capital escolar e simbólico. Tratava-se, até um certo ponto, de superar uma gama de caracteri-zações de pólo negativo em que as culturas populares, seguindo um certo legitimismo radical, surgiam inva-riavelmente, em determinadas pesquisas sociológicas, como estando eternamente «aquém», numa espécie de essência ou fixismo de subalternidade (o que denunciava implícitos evolucionistas e etnocêntricos, por referência a um ponto avançado de um arbitrário cultural cultiva-do) ou sepultadas na terra do «não»: não cultivados, não legitimados, não letrados. Ou, finalmente, brotando na quintessência de algum inconsciente do pensamento es-

trutural que actualizava formas primitivas na alegórica interpretação de dicotomias ou pares binários, classifi-cando tais práticas como a «cultura de baixo».

Ainda assim, convém explicitá-lo, pretendo falar neste artigo mais de «recepção» do que de «interpre-tação». Ambas, é certo, recolocam o «leitor» (falaremos aqui de «autor», «leitor» e «texto» em amplo sentido e não no estrito código do campo da leitura) numa posi-ção activa de quem acciona apropriações, usos, «artes», modos de relação. Mas a recepção cultural engloba a interpretação como um acto de um processo estético mais vasto que inclui também a percepção e toda uma cadeia dialógica de construção, difusão e reconstrução dos textos e da própria praxis social.

A recepção estética em particular, tal como Hans Robert Jauss propõe, concilia a história literária com a história propriamente dita, a hermenêutica, a fenomeno-logia e a sociologia. Desde logo, porque se é impossível deduzir o processo criativo/receptivo de um fétichismo do económico ou de um formalismo imanente (que le-varia a uma análise puramente interna das obras) ou mesmo de um estruturalismo que se reduz à constatação da actualização de invariantes sociais, importa resgatar a recepção enquanto experiência, como o momento em que, de alguma forma, tornamos nosso o horizonte de

expectativa da obra e do seu autor. A arte só alcança a sua dimensão histórica quando

considera o jogo potencialmente infinito de perguntas e respostas; problemas e soluções; inquietações e propos-tas que enlaça autor e receptor, produzindo uma mu-dança no “horizonte da vida quotidiana” (Jauss, 1993) deste último (ou daquele, quando também é receptor – os papéis são frequentemente intermutáveis), ligando, ainda, ética e estética, texto, arte e comportamento. Jogo em que ambos acreditam e investem, credibilizando-o.

Por outro lado, não se compadece a análise socio-lógica da arte com um sociologismo objectivador que, colocando as obras em estreita homologia com o espaço da criação e da recepção, esquece o desvio e o hiato fre-quentes entre os textos, os autores e os seus públicos, bem como as correspondentes descoincidências entre posições e propriedades disposicionais que resultam da inserção no espaço social. Como explicar – questão que atormentou Marx – que tantas obras perdurem, nos seus efeitos sociais, bem para além das condições ma-teriais do seu modo de produção e dos contextos origi-nais de recepção, ultrapassando, de igual modo, numa multiplicidade de usos e de apropriações, estritas bar-reiras classistas, quando encaradas enquanto a variável determinante por excelência? Ou, como questiona ainda

A RECEPÇÃO É A ARMA DO POVO?POR JOÃO TEIXEIRA LOPES | SOCIÓLOGO

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [52] SOCIALISMO 2010

Madureira Pinto, ao aventurar-se pelos terrenos da psi-cologia da percepção: “a criação artístico-cultural, uma espécie de invasão benévola de luz num mundo de luz, propõe aos seus públicos fronteiras novas, jamais esta-bilizadas, entre campo visual e mundo visual (…) talvez seja, em parte, por isso (….) que as artes e as culturas se coloquem mais do lado da transformação do que da re-produção social” (Pinto, 2004: 28). Se a recepção estéti-ca permite mudanças de horizonte que ultrapassam um campo social de possíveis definido de forma sociologista, então uma vez mais se justifica considerar tal indução sociologista como inimiga da complexidade da análise propriamente sociológica. Se a arte é criadora de realida-de, analisemos, então, os efeitos que daí advêm no cam-po político, no exercício das funções comunicativas das esferas públicas profanas e nas práticas sócio-culturais.

Para tentar avançar um pouco na discussão do com-plexo processo de recepção estética, proponho o seguin-te esquema analítico (ver página seguinte)

Como se perceberá, estabelece-se, antes de mais, uma relação institucionalmente enquadrada entre autor, obra e leitor. A recepção não é imune ao conjunto de liames e regras sociais mais ou menos sedimentados onde se actualizam estruturas de recursos e oportunidades, bem como relações de poder e enjeux diversos que condicio-nam a dupla produção do agente e da estrutura. Nos tempos que correm, as inserções institucionais podem mesmo sobrepor-se (basta pensar nos níveis territoriais diversos – e por vezes cumulativos – em que se movem as actividades culturais e artísticas – do local ao translo-cal ou na crescente multiplicação, especialização e diver-sificação dos art worlds). As instituições, bem entendido, não são entidades metafísicas, arquitecturas distantes,

ou ainda molduras decorativas. Elas agem, no seu senti-do próprio e relativamente autónomo.

A recepção não é imune, igualmente, à materialidade da obra enquanto objecto (os objectos socializam e despertam ou inibem esquemas de acção), nem tampouco ao poder diferentemente interactivo dos meios e suportes (sistemas complexos de mediação com os seus sentidos e efeitos pró-prios) em que encarnam os textos (Hennion, 1993).

Os agentes sociais, por seu lado, movem-se entre constrangimentos estruturais que não se resumem, como já mencionámos, à origem e pertença social (defi-nida, aliás, neste esquema, de forma multidimensional, seguindo as pisadas de Weber e Bourdieu – englobando componentes de diferenciação económica, política, so-cial, cultural e simbólica, em permanente interacção), incluindo o género, a etnia, a orientação sexual e não esquecendo o lado dinâmico dos percursos e trajectó-rias (cruzando, uma vez mais, na diacronia, instituições, agentes de socialização, espaços, actividades e ciclos de vida), bem como o vector estratégico dos projectos, ins-tância de monitorização reflexiva da própria acção e, ainda, em modo mais pragmático, a rede de papéis so-ciais que fundam identidades crescentemente trabalhá-veis, embora longe da maleabilidade mole da plasticina. O projecto une-se à memória mas também à metamor-fose, como aponta Gilberto Velho, enquanto adaptação activa do self aos mundos da vida que fazem do nosso quotidiano um trânsito não esquizofrénico (como pre-tenderiam certas versões do pós-modernismo identi-tário), antes permanentemente negociado e exercitado como um dos factores constituintes da condição social contemporânea (somos diferentes, em distintas cenas, sem deixarmos de ser o mesmo)

Agentes plurais, em suma, inseridos em múltiplas pertenças e esferas de actividade, constituídos e cons-tituintes de disposições diversas, com génese e força diferenciada, umas mais fortes, algumas activadas, ou-tras em vigília, inibição ou mesmo regressão. Agentes plurais, ainda, face aos contextos de interacção (qua-dros de interacção como lhes chama António Firmino da Costa (2004), salientando os seus parâmetros físicos e humanos, estruturais e culturais, institucionais e pro-priamente interaccionais). Agentes plurais, finalmente, pela actualização de disposições estéticas em mutação e de índole múltipla (cognitiva, sensorial, emocional, mental, sensorial). Daí a referência – em que Madureira Pinto tantas vezes insiste – de que a recepção é sempre um encontro entre dois corpos socializados – que não deixam, por isso, de ser corpos, portanto intersubjecti-vos, interhabitus em dupla contingência, corpo a corpo comunicados e comunicantes (as disposições estéticas inscrevem-se no corpo, mas este, longe de ser uma tabula rasa activando-as e transformando-as).

Assim, o horizonte de expectativa, conceito propos-to por Jauss (e que Popper e Gadamer também utilizam), leva-nos a pensar na possibilidade de uma fusão entre o sistema de referências de autor e de leitor – a altura em que a obra actua pela compreensão a partir de um espaço-tempo presente que não ignora, todavia, toda a história da relação entre aquela obra e outras; as cadeias sucessivas de anteriores recepções; as relações e analo-gias entre as obras e os processos de constituição dos géneros artísticos e também o grau de identificação ou contraste com os esquemas da experiência quotidiana (como Diz Proust, em À Procura do Tempo Perdido, “os meus leitores são os leitores deles mesmos”).

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [53] SOCIALISMO 2010

CULTURAL RECEPTION

“Inst i tut ions” – Set o f establ i shed soc ia l re lat ions across space-t ime[depending on broader soc iet ies and soc ia l conf igurat ions]

Horizon of expectation fusion vs separation Horizon of expectation

Social Class

Gender

GenderEthnicity

….+

Pathway+

Project (s)+

Social Role

Sender Receiver“Author” TEXT “Reader”

Past PresentQuestions AnswersProblems Solutions

code/Medium/ Canalsocialized bodies in

[INTERACTIONSETTINGS]

Social Class

GenderEthnicity

….+

Pathway+

Project (s)+

Social Role

Aestheticalreferencesystem

+Life

experiencescapital

Aestheticalreferencesystem

+Life

experiencescapital

Total  CapitalEconomicalCulturalSocialPoli2cal

Symbolical

Total  CapitalEconomicalCulturalSocialPoli2cal

Symbolical

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [54] SOCIALISMO 2010

A obra, como realça Teresa Cruz (1993), existe na sua virtualidade, apelando à execução e à performance. De igual modo as estruturas, relembra Giddens (2003), possuem uma existência virtual, concretizando-se (ins-tantaneizando-se) na sua activação rotineira (nos seus hábitos).

Não esquecemos, contudo, os frequentes e inquietan-tes casos de despossessão cultural e de desentendimen-tos perceptivos. Como avaliar, por conseguinte, do pon-to de vista da teoria da recepção e da escola da recepção estética, modos de relação com a obra concebidos como iconoclasmo perceptivo, iconoclasmo radical, familia-ridade esquiva ou equívoca, conformismo divergente ou confirmativo, mutismos vários de significados plurais (Conde, 2004)?

Surgem-me três atitudes possíveis perante tais situa-ções, aliás recorrentes. Uma delas consiste em encontrar argumentos para reforçar a insuficiência instrumental da recepção cultural e estética enquanto arma de reposi-ção da pluralidade simbólica das formas de estruturação e representação do mundo.

A segunda, procura razões de legitimação da refle-xividade pericial do campo artístico, defendendo, pela autonomia do velho preceito da arte pela arte (oposto à arte para a vida ou à arte para o povo), condições de cria-ção e experimentação desligadas das interferências dos processos de recepção.

Outra, a que perfilho, opta por consubstanciar em políticas públicas democráticas (sem conteúdos de violência simbólica) as condições de superação da ver-gonha, inibição e desentendimentos culturais. A des-coincidência entre horizontes de expectativa, longe de constituir fatalidade insuperável, é parte integrante da

história. Na verdade, não existem «não-públicos». É-se sempre público em alguma esfera de actividade ou mun-do da vida. Daí a proposta de reconhecimento de uma pluralidade de esferas públicas profanas pelas quais va-mos circulando (Calhoun, 1993).

Reconhecer a pluralidade dos públicos e a própria diferenciação interna de cada público conduz-nos à de-sessencialização de alegorias etnologizadas como a de «povo» ou «massas» e permite compreender que os fe-nómenos de dissonância cultural e desentendimento re-ceptivo se encontram em vastas franjas do espaço social. Entre outros motivos, por questões que se prendem com a falta de criação (a montante) ou de activação (a jusan-te) de disposições que não se esgotam na mera relação erudita com a obra, antes reivindicam modos de enten-dimento de apropriações vernaculares enraizadas nas experiências de vida. Ou pela míngua de «detonadores» institucionais (e entramos já no domínio das políticas pú-blicas e da necessária implementação de um reformismo democrático de que também fala Madureira Pinto – as «reformas» institucionais não têm fatalmente de signi-ficar retrocessos quase civilizacionais). Ou pela ausência de comunidades interpretativas onde se trabalhe em con-junto, de forma convivial, a relação com as obras, cons-truindo intersubjectivamente sentidos partilhados. Ou, ainda, pelo défice de dessacralização da relação com os próprios objectos (livros, quadros, partituras, esculturas, instalações…). Porque, entendamo-nos, as disposições estéticas não podem ser definidas como a prioris kantia-nos. Elas são, antes de mais, gramáticas de conexão entre o passado e o presente das experiências de vida.

O pressuposto do grau zero de poder do «cultural dope» ou do sonâmbulo social destrói a própria pos-

sibilidade de análise sociológica. Desconheço teórica e empiricamente a existência de não-públicos. Pelo con-trário, deparo-me frequentemente com públicos à espera de vez.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [55] SOCIALISMO 2010

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [56] SOCIALISMO 2010RA

PSÓ

DIA CONTO «A MÁQUINA DE PENSAR», POR PEDRO EIRAS

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [57] RAPSÓDIA

A MÁQUINA DE PENSAR PEDRO EIRAS

QUANDO O CRIADO TROUXE A CORRESPON-dência, o Duque deu um saltinho de alegria. Numa caixa de papelão, entre plásticos e esferovites, chegara final-mente a máquina de pensar.

– Estupendo, estupendo! – disse o Duque, com aque-le nervosismo infantil que tão bem o caracterizava, e que dava um picante especial às conversas de salão.

A máquina de pensar vinha numa caixa enorme, que incluía sete caixas menores. Cada uma destas caixas, por seu turno, trazia várias peças maiores encaixadas em formas de esferovite, e peças menores envoltas em plás-tico com bolsinhas de ar.

Com imenso gozo, o Duque tirou da caixa maior os bocados da máquina; e não sem contemplar o design de cada peça, porque a verdade deve ser verdadeira, mas convém que seja também um pouco bela, e portanto ge-rada por uma bela máquina (do mesmo modo que uma criança bela deve ser filha de belos pais, pensou o Du-que). Ora: como era bela e aerodinâmica a máquina de pensar!

Tirou, peça a peça: as bases de dados das Ideias pla-tónicas, os grandes discos de conceitos de Ramon Llull, a estrutura maior da máquina de Leibniz, fragmentos de Novalis, peças descontinuadas de Turing. Tudo devida-mente revisto e anotado, como assegurava uma etiqueta na caixa maior, por Umberto Eco.

Quando o chão de madeira do salão ficou atulhado

de peças, o Duque notou que faltavam as instruções de montagem. Mandou o criado ligar para o fornecedor; e o fornecedor respondeu que a caixa estava completa, e que nunca trazia instruções de montagem.

Ainda hoje o Duque anda a tentar construir a má-quina. Mas não consegue. Os criados espreitam-no, cada serão, frustrado e melancólico, a rebentar as bolhinhas de ar nas bolsas de plástico.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010 [58] FICHA TÉCNICA

REVISTA VÍRUS #11NOVEMBRO/DEZEMBRO 2010

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FOTOS NESTA EDIÇÃO:SOCIALISMO 2010 PAULETE MATOS

SOCIALISMO 2010 PAULETE MATOS

FAST FLOEING ROBW

ET IN ARCADIA EGO DIMITRIS PLANTZOS

A SWINE OF A RECESSION VETUSTENSE PHOTOROGUE

MONEY LAUNDERING MRPBODY33

CONTRA AS POLÍTICAS DE SAÚDE PAULETE MATOS

1288-O REXO-ALLARIZ (OURENSE) JL.CERNADAS

47:365 MR. BUSINESSMAN IS HAPPY IAN MURCHISON

A VOGUE ON A FLOWER THOMAS HAWK