revista vírus #7

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VÍRUS #7 — NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 A PARTIR DAS CIDADES CARLA LUÍS TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNTO AO RIO VILNELE E O RIO VILNELE TEM O DIREITO DE PASSAR POR TODA A GENTE RITA ÁVILA CACHADO HABITAÇÃO SOCIAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS FERNANDO CRUZ A DISNEYFICAÇÃO DA CIDADE JOÃO TEIXEIRA LOPES DA CULTURA COMO LOCOMOTIVA DA CIDADE-EMPRESA A UM CONCEITO ALTERNATIVO DE DEMOCRACIA CULTURAL JORGE CAMPOS REGRESSO AO REAL IMAGINADO + MÚSICA, CONTO E LEITURAS

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Nesta edição: Carla Luís - "Toda a gente tem o direito de viver junto ao rio Vilnele e o rio Vilnele tem o direito de passar por toda a gente" :: Rita Ávila Cachado - "Habitação social nas últimas décadas" :: Fernando Cruz - "A Disneyficação da cidade" :: João Teixeira Lopes - "Da cultura como locomotiva da cidade-empresa a um conceito alternativo de democracia cultural" :: Jorge Campos - "Regresso ao Real Imaginado" :: + música, conto e leituras

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VÍRUS#7 — NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009

A PARTIR DAS CIDADES

CARLA LUÍS TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNTO AO RIO VILNELE E O RIO VILNELE TEM O DIREITO DE PASSAR POR

TODA A GENTE

RITA ÁVILA CACHADO HABITAÇÃO SOCIAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS

FERNANDO CRUZ A DISNEYFICAÇÃO DA CIDADE

JOÃO TEIXEIRA LOPES DA CULTURA COMO LOCOMOTIVA DA CIDADE-EMPRESA

A UM CONCEITO ALTERNATIVO DE DEMOCRACIA CULTURAL

JORGE CAMPOS REGRESSO AO REAL IMAGINADO

+ MÚSICA, CONTO E LEITURAS

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [2] EDITORIAL

DEPOIS DE UM TEMPO ELEITORAL INTENSO, eis que regressa um novo número da Vírus. Dir-se-ia que é impróprio separar o tempo da reflexão e o tempo da acção, gerando divisões artificiais do trabalho político. Mas ainda não chegamos à altura em que, como Marx preconizava, poderemos pescar de manhã, fazer activis-mo à tarde e produzir teoria crítica pela noitinha. Este número da Vírus teria sido útil antes das autárquicas, mas os recursos são escassos.

Trata-se de propor uma reflexão sobre políticas pú-blicas e iconografias a partir das cidades. Para tal, impor-ta não confundir, por um lado, a cidade com o urbano e não esquecer, por outro, que o território é cada vez mais reticular, o que aumenta a importância dos estudos de caso, dadas as interdependências e os efeitos de conta-minação.

Rita Ávila propõe um olhar sobre as políticas de ha-bitação social no pós 25 de Abril, começando pelo SAAL

e chegando, provisoriamente, ao recente Plano Estra-tégico de Habitação, sem esquecer os erros do PER, ao provocar segregação espacial e social em bairros com ínfimas estruturas e uma altíssima densidade populacio-nal. Ao tentar resolver-se um problema, novos se criam, em espiral, exigindo mesmo, medidas e planos casuís-ticos de intervenção-remendo. Ora, sem a concertação entre actores, sem o envolvimento dos moradores e sem uma intervenção global, o direito ao local e à habitação transformam-se, perversamente, no usufruto da falta de qualidade de vida e da degradação urbana. A autora aler-ta, ainda, para os estigmas e estereótipos que, sem uma prática metódica de diagnóstico das situações, concebem os habitantes como uma massa homogénea de pobres, supostamente regidos pelos mesmos comportamentos e orientações de vida. Um pensamento pobre, afinal.

Fernando Cruz reflecte sobre um dos locais emble-máticos da cidade do Porto, o conjunto formado pela

Avenida dos Aliados, a Avenida da Liberdade e a Praça General Humberto Delgado, recentemente «requalifi-cadas» com uma intervenção urbanística de Siza Vieira e Souto Moura que teve como principal efeito modificar radicalmente as apropriações e usos daquele espaço pú-blico. A nova praça, austera, sem o jardim de outrora, apresenta-se como um desenho de tabula rasa que, in-dependentemente dos juízos estéticos, transfere para os «gestores e programadores do espaço», neste caso a autarquia, a responsabilidade de criar acontecimentos no espaço «seco». Ora, a estratégia tem sido…a ausência de estratégia, pela multiplicação caótica de eventos desco-nexos, mediáticos e espectaculares que trazem a lógica urbanística de Las Vegas à baixa do Porto.

João Teixeira Lopes, por seu lado, critica a ideologia do «criativo» patente no novo discurso do Planeamento Estratégico que usa a cultura e a animação cultural como isco para a (re)conquista dos espaços centrais da cidade

A PARTIR DAS CIDADES EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [3] EDITORIAL

pelos novos gentrificadores: artistas, intelectuais (que legitimam, pela aura da sua presença, enormes opera-ções imobiliárias) e empresas do «terciário avançado», as tais ditas «criativas» e/ou de «conteúdos», imateriais e simbólicas, a versão doce do novo capitalismo.

Carla Luís deambula, perdendo-se, pelos signos de várias cidades, usando a fotografia para criar um novo real, interligado com pequenos textos que indagam sen-tidos e despertam a viagem.

Fora deste «núcleo-duro» temático, Jorge Campos questiona o documentário para além do cinema, no cru-zamento entre arte, televisão e jornalismo, reivindican-do uma historicidade que situe politicamente o regresso ao real (não por acaso, o forte boom do documentário contemporâneo ocorreu pós 11 de Setembro), nessa ân-sia de «compreender o que está a acontecer», sem deixar de renunciar à análise e à interpretação – um real, então, imaginado na textura das relações sociais.

Pedro Eiras apresenta-nos mais um texto inédito, convite para que, nos seus personagens, encontremos essa mesma tensão entre o real e o imaginário.

De volta, pois, sem nunca termos verdadeiramente partido.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [4] CIDADES INVISÍVEIS

TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNTO AO RIO VILNELE E O RIO VILNELE TEM O DIREITO DE PASSAR POR TODA A GENTE

TEXTO E FOTOS DE CARLA LUÍSCIDA

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [5] CIDADES INVISÍVEIS

TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUN-to ao rio Vilnele e o rio Vilnele tem o direito de passar por toda a gente. É com esta frase que entramos em Vilnius e na República Uzupi, que se situa bem no seu coração.

A República Uzupi poderia ser definida de muitas formas. É uma espécie de freetown, à semelhança de Christiana, em Copenhaga. É também uma república, situada no centro de Vilnius, capital da Lituânia, com um rei, constituição – e muito sonho nas entrelinhas.

Por ela passa o rio, o tal que tem o direito de passar por toda a gente. É nesta cidade dentro da cidade que nos deparamos com uma obra de are urbana a cada es-quina. É o monumento a Frank Zappa, a máquina de lavar (que consiste num bloco de pedra) à beira rio, casas ocupadas, centros artísticos, todo o tipo de performan-ces à luz do dia.

Embora, para quem cruza o Báltico, Vilnius surja mais pobre do que a vizinha Riga, a República Uzupi dá-lhe uma outra vida urbana que Riga não tem.

Perguntamo-nos, então, de que são feitas as cidades. De muitas coisas, sem dúvida. Mas a arte urbana e as dinâmicas que a envolvem têm sem dúvida um papel muito importante.

TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNTO AO RIO VILNELE E O RIO VILNELE TEM O DIREITO DE PASSAR POR TODA A GENTE TEXTO E FOTOS DE CARLA LUÍS | FLICKR.COM/PHOTOS/AOUTRAVOZ/

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [6] CIDADES INVISÍVEIS

Olhemos para Bucareste, capital da Roménia. É um choque para o viajante, acabado de chegar. A cidade os-cila numa indefinição. Tem magníficos edifícios de arte nova, de fins do século dezanove, inícios do século vin-te. Estão num estado miserável, a cair, sujos e pretos, de fazer pena. Ao lado, os edifícios do socialismo real. Agora, os do capitalismo real. Não sabemos para onde olhar e tudo aquilo dá dó: a magnífica igreja ortodoxa com um arranha-céus envidraçado ao lado, o palacete a cair em ruínas, a torre enorme que se ergue por todo o lado. É uma cidade arquitectonicamente agressiva, à qual precisamos de nos habituar.

A arte urbana, no entanto, abunda. São grafitti na zona da universidade (nada de novo, pensar-se-ia), são murais cheios de cor por toda a cidade, são stencis de protesto contra a mulher do governador. A cada esquina há uma peça de arte urbana a descobrir e isso dá um novo colorido à cidade. Que há vida, que há movimen-to social, qualquer coisa a existir e ao mesmo tempo a protestar.

É COMO UMA JANELA QUE SE ABRE, PARA UMA OUTRA DIMENSÃO.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [7] CIDADES INVISÍVEIS

Mas qual a função da arte urbana? Pode a arte urba-na ter um museu?

A resposta é fácil: não só pode, como já tem. Mas como o próprio nome indica, é um museu muito par-ticular.

Existe em Lisboa, por exemplo. Que nome melhor do que “Museu do Efémero” (onde se responde já em parte à primeira pergunta)? É uma galeria ao ar livre – mas não é isso toda a cidade?

O Museu do Efémero é uma galeria sempre aberta, em constante mutação. Mas a acompanhar as caracte-rísticas mais clássicas dos museus, também ele tem um mapa e um audioguide.

Bata ir ao site, descarregar o mapa, descarregar as faixas e percorrer a cidade. Estão ambos divididos por zonas e através deles fica-se sem dúvida a conhecer me-lhor Lisboa. Nos sítios, nas ditas obras, lá está a tabela, com o nome da obra e indicação do autor.

Na época em que Banksi entra no museu (desta vez legalmente), aqui é o museu que vai às obras de arte.

Um dos seus pontos fortes é, por exemplo, na Rua de São Bento, junto à Assembleia da República. Quem des-ce a rua em direcção ao poder confronta-se também com esta forma de invasão criativa urbana. Pode ser que faça despertar um pouco quem todos os dias faz as leis...

GATO QUE COSTUMAVA DORMIR NA R. DE S. BENTO, LISBOA

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [8] CIDADES INVISÍVEIS

A arte urbana faz também parte das memórias emo-cionais de uma cidade. Há dias, quando se falava em elefantes cor-de-rosa, foi impossível não cruzar olha-res com um italiano e pensar de imediato na entrada do bairro de San Lorenzo, em Roma.

Uma cidade que surpreendeu pela abundância de street art foi Coimbra. Da última vez que lá estive toda a cidade parecia um manifesto. Não havia muro ou parede sem graffiti. Com mensagem política ou apenas imagi-nação, eles lá estavam - e faziam pensar.

Não acredito que alguém que vá para a universidade fique indiferente a um bando de pombos que esvoaçam das escadas. Impossível não esvoaçar com eles também, pelo menos em pensamento.

PÁSSAROS ESVOAÇANTES NUMA ESCADA DE COIMBRA

MÍTICOS ELEFANTES ROSA, ESPALHADOS PELO |BAIRRO

DE SAN LORENZO, EM ROMA.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [9] CIDADES INVISÍVEIS

A street art é muitas vezes corrosiva, agressiva com a passividade, incita à acção e não deixa ninguém indi-ferente.

APELOS AO VOTO NAS FÁBRICAS DEGRADADAS DE CACILHAS.

NO MÉXICO MUITOS MURAIS TÊM NÚMERO DE AUTORIZAÇÃO,

COMO QUALQUER OUTRO MEIO DE PROPAGANDA POLÍTICA E ELEITORAL.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [10] CIDADES INVISÍVEIS

Há mensagens que não percebemos muito bem a quem se destinam.

PARA DENTRO OU PARA FORA?

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [11] CIDADES INVISÍVEIS

Há arte urbana que nos assalta e surpreende no meio da rua, momentos de pura poesia.

BAILARINAS QUE DANÇAM, NO SILÊNCIO VAZIO DE VILNIUS.

ANJOS QUE POVOAM AS RUAS DE GALWAY, NA IRLANDA.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [12] CIDADES INVISÍVEIS

A arte urbana é assim. Espalha-se por qualquer lado, chega a saltar das valetas.

É sem dúvida um aviso útil à nossa sobrevivência.

HÁ QUEM ESPREITE, JUNTO À RIA DE AVEIRO.

AVISO RELEVANTE NAS RUAS DE VILNIUS, LITUÂNIA.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [13] CIDADES INVISÍVEIS

RITA ÁVILA CACHADO

CIDA

DES

INV

ISÍV

EIS HABITAÇÃO SOCIAL

NAS ÚLTIMAS DÉCADAS

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [14] CIDADES INVISÍVEIS

HABITAÇÃO SOCIAL NAS ÚLTIMAS DÉCADASRITA ÁVILA CACHADO | ANTROPÓLOGA CIES-ISCTE

“A PAZ, O PÃO, HABITAÇÃO, SAÚDE, EDUCA- ção”, direitos fundamentais e condições para a liberdade resumidos no forte verso da canção de Sérgio Godinho, repetido pelas últimas gerações de jovens portugueses, são essenciais para todos os cidadãos nos Estados-nação contemporâneos. A habitação, no meio do verso, fornece a imagem de virtude indispensável para o exercício da cidadania. Se na Europa, face à evidência de um grande número de cidades devastadas, a habitação social foi a pedra de toque do Estado do bem-estar no pós-guerra, em Portugal, as preocupações com a habitação ao nível das políticas sociais só vieram para as primeiras linhas dos programas políticos no início dos anos 90. O objec-tivo central da reflexão que se segue é contextualizar a política social de habitação social nas últimas déca-das1, dando especial atenção aos equívocos na aplicação prática de realojamentos e procurando mostrar que o passado recente traz novas possibilidades para aborda-gens políticas mais próximas das necessidades reais das pessoas a quem o artigo 65º da constituição portuguesa – o direito à habitação – continua bloqueado.

POLÍTICAS DE HABITAÇÃO PÓS-25 DE ABRIL – CONTORNOS SOCIAIS E POLÍTICOS

Logo depois do 25 de Abril, destacam-se as opera-ções SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), no espírito revolucionário de então, sem equivalente nas políticas de habitação que se lhe seguiram. As operações

SAAL, com prós e contras como era inevitável saben-do que foi uma política que procurou levar em conta as pessoas implicadas, levaram engenheiros, arquitectos e finalistas de arquitectura para um grande número de núcleos residenciais degradados, de génese ilegal, na tentativa de recuperar e reabilitar os espaços, mantendo por vezes a traça das casas já construídas, e legalizando os terrenos. Num documentário recente, chamado pre-cisamente “As Operações SAAL” (de João Dias, 2007, 90’), podem denotar-se as ambiguidades da aplicação de uma política de habitação revolucionária, mas sobressai uma pergunta, que fica no ar: porque não se fez nada assim depois? E realmente, o que aconteceu depois do SAAL?2

A partir de finais dos anos 1970, a construção clan-destina aumentou muito em toda a Área Metropolita-na de Lisboa (AML). Um dos factores que contribuiu para este crescimento foi um vazio da promoção legal da habitação, na sequência de um acordo entre o go-verno português e o FMI3, que provocou a suspensão do lançamento de novos empreendimentos do sector público e cooperativo (Ferreira, 1988: 60). As taxas de juro aumentaram exponencialmente e a aquisição de habitação própria, motivada entre 1974 e 1976, ficou comprometida. A construção civil fruto desta conjun-tura é sobretudo a construção de bairros clandestinos4, que permitia satisfazer as necessidades familiares face à ausência de alternativas (Paiva, 1985: 75).

Depois do SAAL, o contexto da habitação em Portu-

gal mudou drasticamente. As necessidades de habitação foram muito maiores do que até então. Os bairros de barracas aumentaram exponencialmente em tamanho e em número de habitantes no contexto das migrações dos países africanos ex-colonizados por Portugal. Mui-tos imigrantes sem capacidade económica assentaram em bairros de habitações precárias, onde, numa situação de ausência de loteamento formal, compraram casas ou terrenos a baixos custos aos primeiros ocupantes, refi-zeram ou construíram de raiz, e melhoraram a constru-ção ao longo dos anos conforme a disponibilidade para adquirir melhores materiais. Por isso, chamar bairros de barracas a conjuntos residenciais construídos em al-venaria e telhados de Lusalite pelos seus moradores é, a meu ver, exagerar a precaridade de muitos bairros que tinham na realidade condições de serem restruturados em lugar de serem demolidos.

Em meados dos anos 1980, o crescimento de bair-ros precários era notado por todos, muito embora esta percepção não tenha tido correspondência em termos de estudos que dessem conta da realidade dos bairros de barracas em Portugal. A importância desses estudos começou a ser notada já com o PER (Programa Espe-cial de Realojamento) em curso. No caso da AML, estes bairros cresceram, em grande parte, em zonas inicial-mente periféricas e tornando-se mais centrais, seguindo o processo de suburbanização da cidade de Lisboa (como é o caso do Areeiro, Chelas, Benfica, Lumiar). O número de bairros aumentou de forma extremamente visível.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [15] CIDADES INVISÍVEIS

No início dos anos 80 fala-se em 16585 famílias a viver em barracas na AML (Salgueiro, 1985: 63).

Entretanto, nasceram algumas cooperativas de habi-tação; os subúrbios das grandes cidades, sobretudo em Lisboa, viram crescer um sem número de complexos imobiliários, num processo conhecido de compromisso fiscal com as autarquias que só muito recentemente tem vindo a abrandar. Os paradigmas da habitação também mudaram; as exigências a nível habitacional por parte das famílias não eram compatíveis com casas pequenas em centros de cidade degradados, e muito menos em casas de bairros de barracas. Deste modo, as políticas de habitação que se seguiram foram atrás desse paradigma, afastando os moradores das cidades dos centros urba-nos e procurando satisfazer necessidades de espaço e de privacidade para os agregados familiares residentes em habitações precárias.

Antes do PER, algumas políticas de habitação de alcance limitado tiveram lugar em Portugal nos anos 80 do século XX, e que merecem atenção para a refle-xão sobre habitação no presente e no futuro. Apesar de limitadas nos objectivos e na sua consecução, e de te-rem tido poucos fundos, tiveram algumas mais-valias que vale a pena recordar. É o caso da Auto-construção e do Auto-acabamento. A auto-construção procurava aproveitar terrenos municipais; os técnicos ofereciam os projectos-tipo e os materiais; as pessoas tinham assim a possibilidade de construir as suas próprias casas. O Auto-acabamento consistia na construção da estrutura das casas por responsabilidade das autarquias e os mo-radores faziam os acabamentos. As principais limitações a estas políticas verificaram-se a nível da disponibilidade dos terrenos, mas o que importa reter é o envolvimento

dos agregados domésticos na construção ou no acaba-mento das casas e a percepção dos técnicos envolvidos de que o know how dos moradores poderia ser aprovei-tado num programa de realojamento da população. De facto, muitos dos moradores nos bairros de barracas fo-ram empregados por longos anos em várias áreas da construção civil, uma vantagem a priori para possíveis políticas de reconstrução e reabilitação de bairros.

Uma outra política de habitação, apesar de igual-mente limitada em termos de execução, merece refe-rência: o Plano de Intervenção a Médio Prazo (PIMP), que projectava o realojamento de famílias residentes em habitações precárias. Legislado em 1987 (DL 226/87 de 06/06/1987), deu origem à construção de 9698 fogos até 1993, ano da legislação do PER. Segundo Fonseca Ferreira, no PIMP a “(...) lógica quantitativa prevalece em relação à visão de conjunto do problema habitacio-nal. (...)” (Ferreira, 1988: 58), ilustrando a razão pela qual este programa falhou em grande parte.

O PER – PROMESSA POLÍTICA PARA ACABAR COM AS BARRACAS

No início de 1993 é lançado o Livro Branco da Habi-

tação, que refere como primeira característica da política de habitação a sua dimensão social. Nas propostas, fala-se da necessidade de construir 500 mil novas casas até ao ano 2000 e da criação de um parque social de aluguer alternativo às barracas e clandestinos (Ferreira, 1993: 52). Nos anos anteriores formara-se um consenso po-lítico alargado relativamente à necessidade de uma po-lítica habitacional e de uma intervenção estatal forte. O Estado procurou intervir com o objectivo de acabar com a exclusão social e contribuir dessa forma para a diminuição da incidência da pobreza. A pobreza surge então como mote político (Guerra, 1994: 13). Um sinal claro desta aposta política é, ainda antes do PER, o Pro-grama Nacional de Luta Contra a Pobreza (PNLCP), no seguimento do II Programa Europeu de Luta Contra a Pobreza (Capucha, 2004: 88) e iniciado em 19905. Este programa é, aliás, referido no próprio DL que enquadra o PER6. É assim que, sem estudos aprofundados sobre as condições sociais e económicas dos moradores dos bair-ros de barracas, pobreza e habitação precária ficaram ir-remediavelmente associadas, para o bem e para o mal...

No texto do decreto-lei do PER podemos encontrar três ideias fundamentais: (1) erradicar as barracas, (2)

A AUTO-CONSTRUÇÃO PROCURAVA APROVEITAR TERRENOS MUNICIPAIS;

OS TÉCNICOS OFERECIAM OS PROJECTOS-TIPO E OS MATERIAIS; AS PESSOAS

TINHAM ASSIM A POSSIBILIDADE DE CONSTRUIR AS SUAS PRÓPRIAS CASAS.

O AUTO-ACABAMENTO CONSISTIA NA CONSTRUÇÃO DA ESTRUTURA DAS

CASAS PELAS AUTARQUIAS E OS MORADORES FAZIAM OS ACABAMENTOS.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [16] CIDADES INVISÍVEIS

ALGUNS MUNICÍPIOS TERÃO ACOLHIDO O PER COMO UM PRESENTE ENVENENADO. MAIS DE 10 ANOS DEPOIS DO INÍCIO DA

APLICAÇÃO DO PER, TÉCNICOS MUNICIPAIS REFEREM QUE O ESTADO DESRESPONSABILIZOU-SE DE CERTA FORMA

DA HABITAÇÃO SOCIAL AO TER ACABADO COM A POSSIBILIDADE DE ENDIVIDAMENTO DAS CÂMARAS,

QUE ERA UMA DAS FORMAS DE DAR PROSSEGUIMENTO AOS PROCESSOS DE REALOJAMENTO.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [17] CIDADES INVISÍVEIS

envolver os municípios de forma vincada no processo, e (3) potenciar, com o realojamento, uma mudança no estilo de vida supostamente associado aos bairros de-gradados. Logo no início do texto que precede as alíneas do decreto encontramos uma frase chave para entender o fundamento argumentativo do decreto: “A erradicação das barracas, uma chaga ainda aberta no nosso tecido social, e consequente realojamento daqueles que nelas residem impõem a criação de condições que permitam a sua total extinção.” (DL 163/93 de 7 de Maio DR, I Sé-rie – A nº 106 07/05/1993: 2381). As barracas são vistas como uma chaga social, um problema que tardava a ser resolvido e que todos podiam constatar. A solução ex-plícita é a sua demolição total e respectivo realojamento das populações que habitam os bairros. Os artigos que compõem o decreto legislam sobre o envolvimento e responsabilidade dos municípios na execução do pro-grama. Alguns municípios terão acolhido o PER como um presente envenenado. Mais de 10 anos depois do início da aplicação do PER, técnicos municipais referem que o Estado desresponsabilizou-se de certa forma da habitação social ao ter acabado com a possibilidade de endividamento das Câmaras, que era uma das formas de dar prosseguimento aos processos de realojamen-to. Muito embora o compromisso das Câmaras tivesse já sido ensaiado noutras legislações (como no PIMP e mesmo durante o Programa das Casas Económicas du-rante o Estado Novo), é com o PER que esse compro-misso se torna mais substantivo.

Além do objectivo principal da erradicação das barracas e do meio principal para o fazer – o envolvi-mento activo dos municípios – o PER tem a finalidade da alteração dos estilos de vida das populações através

do realojamento. A alteração dos modos de vida surge como solução para a exclusão social a que as popula-ções estão sujeitas por habitarem nos bairros de bar-racas, seguindo a percepção política de então, veiculada no texto legislativo: “Complementarmente à resolução do problema habitacional, é oferecido aos municípios ou instituições particulares de solidariedade social um programa alargado de inserção social das comunidades envolvidas, visando a criação de condições a uma plena integração destas populações na comunidade e com-batendo os problemas de criminalidade, prostituição e toxicodependência, entre outros, a que a exclusão social motivada pela falta de condições habitacionais condig-nas as deixou votadas.” (idem). Esta vertente do texto legislativo do PER traz implícita uma estigmatização social dos bairros de barracas e que as condições de habi-tação degradadas favorecem comportamentos desvian-tes, empolando a importância da acção social sobre eles. Esta circunstância não é singular no caso português; ela manifesta-se em vários países da União Europeia, sobretudo em virtude do Quarto Programa de Bases da Comissão das Comunidades Europeias (1994) que elabora documentos sobre a falta de controlo de indi-víduos e grupos específicos socialmente excluídos ou discriminados.

Logo após a aprovação do decreto-lei que legisla o PER surgem críticas e avisos relativamente à sua apli-cação prática por parte da comunidade científica impli-cada, onde desempenharam papel de destaque os soció-logos da habitação, uma disciplina que dava nessa altura os primeiros passos. Neste âmbito, destaca-se uma im-portante publicação, um número da revista Sociedade e Território, sugestivamente intitulado As pessoas não são

coisas que se ponham em gavetas. As lições e prevenções para o PER de Fonseca Ferreira, que abre o volume, é um texto que dá um sinal claro dessa chamada de atenção para os possíveis erros em que o PER cairia. Ferreira va-ticina: “O PER tem à partida todos os ingredientes para o desastre: construção massiva, realojamentos concen-trados, populações de grande precariedade económica e com graves problemas sociais, serviço de administração burocratizados.” (Ferreira, 1994: 10).

No artigo seguinte, que dá o título à publicação, Isabel Guerra começa por chamar a atenção para o fracasso de experiências anteriores ao PER de realo-jamento densificado e para a crescente heterogeneidade cultural dos bairros (Guerra, 1994: 11). Os argumentos principais vão no sentido de apelar a “(…) uma estraté-gia de desenvolvimento social urbano da cidade (…)”, a um “(…) aprofundamento da concertação entre os parceiros (…)” e, enfim, por uma intervenção global (idem: 15-6). Os organizadores do volume convidam um especialista francês na matéria, Michel Bonetti, que escreve um artigo sobre a revalorização dos bairros sociais construídos nos subúrbios das grandes cidades francesas, com uma construção intensiva, que procurou reproduzir as unidades de habitação modernistas das cidades jardim de Le Corbusier, mas em zonas menos favorecidas, com piores materiais e com menos espaço territorial para executá-las. Bonetti (1994) retrata a realidade francesa em meados dos anos 90, e o seu ar-tigo funciona como uma advertência do que poderia acontecer se a construção de bairros na aplicação do PER fosse intensiva: adviriam problemas sociais com-plexos, com necessidades de programas específicos de desenvolvimento social.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [18] CIDADES INVISÍVEIS

O PER NA PRÁTICA Quaisquer políticas sociais podem ser analisadas e

criticadas através das suas propostas, mas a sua colo-cação em prática e a observação da sua execução traz-nos dados importantes para compreender melhor por dentro uma política de habitação como o PER. Segue-se um resumo, em termos gerais, do que foi este programa na prática. O PER foi executado a partir de protocolos celebrados entre as autarquias e o Instituto Nacional de Habitação. As famílias com direito a realojamento eram aquelas que já residiam nos bairros em 1993. Des-te modo, todas as pessoas que não conseguiram provar a sua residência anterior a 1993 viram o seu realojamen-to ser posto em causa. Muitos residentes no início dos anos 2000 tinham de facto chegado aos bairros depois de 1993, fruto de novas correntes migratórias, havendo por isso milhares de famílias não contempladas no PER e sem alternativa residencial, uma vez que não se elabo-raram novas legislações relativamente a possíveis realo-jamentos de famílias residentes em bairros de barracas. O PER foi, ao longo dos anos, actualizando a legisla-ção conforme as necessidades decorrentes da aplicação prática do programa7, mas sempre com a premissa de que os residentes tinham de habitar os bairros em data anterior a 1993.

Em termos gerais, a aplicação do PER parece ter ignorado os avisos dos técnicos especializados: muitos dos realojamentos fizeram-se longe dos centros urba-nos, acentuando a segregação espacial dos moradores, e em blocos residenciais de ocupação habitacional mas-siva, com poucas infra-estruturas de base, acentuando, por seu lado, a segregação social das famílias. Tal como aconteceu no caso francês, as autarquias e o Estado vi-

ram-se obrigados a activar programas específicos para minorar a segregação, através de associações e de pro-jectos em prol da ambicionada integração social, de que se destaca o Programa Escolhas.

Contudo, não se pode simplesmente acusar uma má aplicação do PER pelas autarquias. Estas tiveram algumas dificuldades contextuais que não devem ser esquecidas: (1) dispunham de poucos terrenos para os realojamentos; (2) os proprietários dos terrenos onde os bairros de barracas foram erigidos, face à legislação que previa a sua demolição, começaram a fazer exigências depois de deixarem ao abandono as suas terras ao longo das últimas décadas; (3) as autarquias tinham poucos técnicos especializados. A aplicação do PER provocou a confrontação dos técnicos com situações humanas e culturais muito diversas e havia uma grande falta de estudos sobre a realidade social das famílias que habita-vam os bairros tanto a nível cultural, como económico e social. Os bairros que tinham já alguma organização as-sociativa viram o programa ser aplicado de forma mais célere do que os bairros sem estruturas associativas, uma vez que estes últimos tinham a tarefa de mediação entre o bairro e a autarquia dificultada.

Do ponto de vista das famílias e dos técnicos respon-sáveis por cada núcleo residencial, a aplicação prática do PER consistiu na gestão dos seus processos familiares. Cada família tinha um dossier com documentação so-bre o seu caso, desde o registo na altura do recensea-mento, dizendo quantas pessoas residiam na habitação e condições da habitação, passando por actualizações relativamente a cada agregado. A documentação pedida procurava confirmar o estatuto de pobreza e de necessi-dade de realojamento, bem como se as mesmas pessoas continuavam ou não a residir na mesma casa até à altura do realojamento, por via de óbitos ou de mudança de casa, e se havia novos membros no agregado, fruto de casamento ou de nascimento.

Esta foi uma gestão complexa justamente devido à variedade cultural das populações, com necessidades específicas, dificultando a avaliação quanto a deverem ou não ser levadas em conta essas mesmas necessidades específicas. Além disso, a diversidade de casos humanos, com famílias estáveis ao longo dos anos (situação mais desejada para um realojamento burocraticamente facili-tado), famílias com grandes alterações ao longo dos anos devido a casamentos, nascimentos, separações, necessi-

A APLICAÇÃO DO PER PARECE TER IGNORADO OS AVISOS DOS TÉCNICOS

ESPECIALIZADOS: MUITOS DOS REALOJAMENTOS FIZERAM-SE LONGE

DOS CENTROS URBANOS, ACENTUANDO A SEGREGAÇÃO ESPACIAL DOS

MORADORES, E EM BLOCOS RESIDENCIAIS DE OCUPAÇÃO HABITACIONAL

MASSIVA, COM POUCAS INFRA-ESTRUTURAS DE BASE.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [19] CIDADES INVISÍVEIS

SÓ PERANTE A AMEAÇA DE DEMOLIÇÕES DOS EXECUTIVOS DA AMADORA MAIS RECENTES (PS) É QUE A REQUALIFICAÇÃO

DA COVA DA MOURA VOLTOU A SER PENSADA DE FORMA MAIS SISTEMÁTICA. A NÃO DESTRUIÇÃO DO BAIRRO

DEVE-SE, CONTUDO, A UMA FORTE VIDA SOCIAL E CULTURAL DO BAIRRO, QUE RESISTE APESAR DOS ESTIGMAS

QUE SE FORAM SEDIMENTANDO RELATIVAMENTE À SUA POPULAÇÃO.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [20] CIDADES INVISÍVEIS

dades culturais específicas ao nível da família como por exemplo a manutenção da coabitação com os pais ou so-gros ou, ao inverso, o desejo de beneficiar do contexto do programa de realojamento para adquirir uma habitação que facultasse a independência dos núcleos domésticos simples (pai, mãe e filhos). As variantes são quase infini-tas e as exigências legislativas do programa tanto davam azo, por parte dos responsáveis pela aplicação do progra-ma, a interpretações excessivas como a leituras presas ao texto legislativo, sem abertura aos casos particulares.

COVA DA MOURA – A EXCEPÇÃO À REGRA PER

Apesar de a maioria dos núcleos residenciais degra-dados nas franjas das grandes cidades terem sido equa-cionados para realojamentos no âmbito do PER, alguns bairros não foram inscritos neste programa. É o caso do mediático bairro da Cova da Moura, no concelho da Amadora. Os autarcas locais no princípio dos anos 90 acreditavam na requalificação gradual do bairro. Mas o processo revelou-se muito lento e, só perante a ameaça de demolições dos executivos da Amadora mais recentes (PS) é que a requalificação voltou a ser pensada de forma mais sistemática. A não destruição do bairro deve-se, contudo, a uma forte vida social e cultural do bairro, que resiste apesar dos estigmas que se foram sedimentando relativamente à sua população.

O bairro Cova da Moura acaba por ter um excesso de visibilidade que, actualmente, lhe é tão cara quanto vantajosa. A maioria dos moradores, com forte enraiza-mento no bairro, é favorável a projectos de reconversão. Em Outubro de 2006, o jornal Público anuncia para bre-ve um protocolo assinado entre a Câmara da Amadora

e o governo, com vista à reconversão do bairro. A ideia é começar por estudar as condições de habitabilidade (com o know how do Laboratório Nacional de Engenha-ria Civil), recensear com exactidão a população residen-te, e fazer a devida reconversão estrutural. O programa tinha previsto a sua conclusão em quatro anos, e insere-se na iniciativa do governo “Operações de Qualificação e Reinserção Urbana de Bairros Críticos”, coordenada pelo Ministério do Ambiente.

O programa de requalificação, um projecto que se adivinha com muitas qualidades, não teve a concordância de todo o executivo camarário, que cedo incentivou as po-lémicas em torno deste programa. O próprio presidente da Câmara, Joaquim Raposo, logo a seguir ao anúncio do protocolo, revelou não estar disposto a abdicar da gestão do ordenamento local previsto antes do programa de reconversão. As vozes em desacordo com o programa surgem, no entanto, de outros quadrantes – da parte da população, houve quem, pelo menos inicialmente, levantasse suspeitas em relação às boas intenções do programa. A descrença, afinal, não é surpreendente, uma vez que a população está habituada a que muitos dos pro-jectos para ali desenhados não passem de promessas.

O PLANO ESTRATÉGICO DE HABITAÇÃO COMO SOLUÇÃO ACTUAL

No início do ano passado, os realojamentos tinham ultrapassado a fasquia das 60 mil famílias, mas os estu-dos efectuados na área estimavam uma carência de 40 mil habitações para famílias a viver em condições precá-rias. Em meados de 2008 surge finalmente uma alterna-tiva. Nuno Portas, Augusto Mateus e Isabel Guerra, com

larga experiência na área da habitação, são os principais mentores do Plano Estratégico de Habitação (PEH). O Plano é apologista do fim dos bairros sociais, tendo em conta a sua obsolescência e propõe como alternativa es-sencial a dinamização do mercado de arrendamento e a reabilitação de fogos. A ideia chave é que o Estado deixe de ser interventor directo para passar a ser sobretudo regulador e fiscalizador. A adesão dos municípios a este Plano é o principal objectivo a curto prazo para pôr o PEH em prática. O arrendamento e a reabilitação estão no topo das prioridades. A bolsa de fogos daí decorrente terá, de acordo com o Plano, uma quota-parte dedicada à habitação a custos controlados, especialmente a pensar nas famílias que não foram contempladas no PER. Esta é a solução actualmente em debate e o grau de empenha-mento dos municípios relativamente à habitação num futuro próximo ditará a exequibilidade do PEH.

EM SÍNTESE O PER foi feito com base num censo de 1993. As

pessoas que imigraram para Portugal depois disso e fo-ram viver para os chamados bairros de barracas ficaram sem a possibilidade de serem realojadas. Acresce que não havia praticamente estudos sobre esses bairros e tomaram-se as pessoas e os bairros como muito pobres e sem infra-estruturas, e apenas se equacionou o realo-jamento e não a possibilidade de melhorar as condições de bairros que foram construídos pelas mãos dos seus habitantes, muitas vezes com um know how a nível de construção civil que mereceria ser levado em conta em todas as políticas de habitação social.

A falta de conhecimento sobre a realidade social das populações levou a muitos mal entendidos e a um con-

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [21] CIDADES INVISÍVEIS

trolo excessivo sobre as populações. Ou seja, no proces-so burocrático do realojamento, as pessoas foram con-troladas de forma que apenas aquelas que provassem o seu estatuto de pobreza podiam manter o seu direito ao realojamento. O que isto quer dizer é que se reproduziu uma ideia da cultura da pobreza associada aos bairros de barracas, um apriorismo que nem sempre tem cor-respondência e que acaba por alimentar a incorporação desse estatuto nas pessoas. Em suma, esta situação re-laciona-se com a ideia feita de que muita gente procura aproveitar-se dos subsídios e das políticas sociais e que não se esforçam para sair do seu ciclo vicioso.

Acabar com as barracas foi a promessa do PER e as palavras de ordem de sucessivos governos relativamen-te à habitação. Em consequência, milhares de pessoas esperaram por um realojamento em bairros sociais ain-da mais afastados da cidade do que os bairros degra-dados onde moravam e com menos qualidade de vida, levantando novos problemas sociais. Ao contrário do que seria de esperar tendo em conta a prévia experiên-cia europeia, repetiram-se assim os mesmos erros que noutros países europeus.

O Plano Estratégico de Habitação, proposta mais recente na área da habitação, vê, e com razão, o realoja-mento como resposta obsoleta para a habitação precária. As soluções passam, por isso, por realojar as famílias em casas recuperadas nos centros das cidades, por lega-lizar os terrenos onde vivem e reabilitar as habitações, dotando os bairros das infra-estruturas em falta e pelo fomento de um mercado de arrendamento a custos con-trolados. Apesar de restarem poucos núcleos residen-ciais nestas situações, não é tarde para os milhares de famílias que esperam pelo PER há mais de 15 anos.

Um dos problemas das políticas so-ciais, de habitação ou outras, prende-se com a visão sobre a pobreza das populações a quem se dirigem, sem conhecimento prévio da realidade socio-cultural em que vivem. Toma-se o todo pela parte. As pessoas que vivem sob algum grau de segregação – espacial, económica, social, ou todas juntas – apesar de os seus problemas deverem ser solucionados com a aju-da do Estado e do sector associativo e com a colaboração activa dos implica-dos, não são necessariamente pobres, nem necessariamente dependentes de ajudas. São actores sociais que desen-volvem as suas estratégias de adap-tação e de resistência às situações em que vivem, sejam essas estratégias mais ou menos afins das expectativas dos decisores.

Os estigmas sobre as populações inscritas no PER aumentaram com o senso comum de que as casas eram da-das às famílias, escamoteando que cada família pagaria uma renda de acordo com os seus orçamentos familiares. Recentemente, na sequência de pro-blemas sociais em alguns bairros das franjas de Lisboa, reproduziu-se a ideia de que muitas famílias pagariam uma renda irrisória pelas suas casas. Mais

uma vez, tomou-se o todo pela parte; as notícias veiculadas nos media não referem que a maior parte das famílias residentes em bairros sociais paga uma renda perto dos 100 euros (ainda que baixo, é um valor muito longe dos 10 euros de que se falava então).

Acresce que estas populações tendem a ser mais controladas do que as classes médias e altas a vários níveis, precisamente porque nalgum momento se lhes atribuiu um estatuto de pobreza de que devem ou sair ou manter através de provas prestadas nesse sentido. Toda uma burocra-cia associada, desde declarações de centros de emprego, passando por atestados médicos, declarações de IRS, actualização de documentação de identidade, entre outros, fazem parte das tarefas quotidianas das populações segregadas que devem confirmar, através deste tipo de do-cumentação, em vários momentos, as suas necessidades sociais.

Deste modo, permanecem as in-desejadas incomunicações entre ins-tituições e populações. De um lado, instituições que olham as populações como eternamente dependentes de auxílio estatal, do outro, populações que vão incorporando um estatuto de

pobreza do qual de facto é difícil sair não apenas devido a contingências conjunturais (como o desemprego, a dificuldade de acesso à habitação, etc.), mas também devido ao reforço burocrático de uma ideia de pobreza que recai sobre estas famílias. Em al-ternativa, é urgente (1) a igualdade no controlo fiscal e social das várias camadas sociais da população, e não apenas tendencialmente aos mais desfavorecidos como tem aconteci-do; (2) a avaliação, no terreno, e não com base em suposições baseadas em apriorismos obsoletos, das condições de vida e das expectativas das popu-lações (que nem sempre se coadunam com os paradigmas médios da socie-dade ocidental); (3) a defesa da aplica-ção da figura do mediador sobretudo nos locais onde o associativismo tem fraca incidência, no sentido de mino-rar a reprodução de estereótipos so-bre as populações; finalmente, (4) as políticas sociais de habitação devem equacionar devidamente a experi-ência dos movimentos sociais nos bairros precários e nos bairros so-ciais, uma vez que são estes técnicos e voluntários as pessoas que melhor poderão contribuir com novas pers-pectivas nestas áreas.

CULTURA DA POBREZA NÃO!

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [22] CIDADES INVISÍVEIS

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LegislaçãoDL 226/87 de 6 de Junho (PIMP)DL 163/93 de 7 de Maio (PER)DL 76/96 de 20 de Junho (PER-Famí-

lias)DL 135/2004 de 3 de Junho (PROHA-

BITA)Resolução do Conselho de Ministros nº

143/2005, Iniciativa Operações de Qualifica-ção e Reinserção Urbana de Bairros Críticos

1 As reflexões veiculadas neste artigo decorrem de interpretações realizadas previamente no contexto da elaboração de uma tese de doutoramento (publicada online aqui: https://repositorio.iscte.pt/handle/10071/1267). A investigação de terreno central incidiu sobre o proces-so de realojamento do bairro Quinta da Vitória, em Loures. O principal universo de estudo centrou-se na população hindu local, cuja conjuntura histórica, cultural e social se revelou extremamente interes-sante para pensar a aplicação de uma polí-tica social de habitação como é o PER.

2 Muito se escreveu sobre este progra-ma realizado sob o espírito revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril. Salientamos algumas referências importantes para per-ceber o SAAL, no seu conjunto. Um artigo do Arqº Nuno Portas, “O processo SAAL: entre o Estado e o poder local” (1986), que resume as principais linhas de força do pro-grama. V. também, sobre a arquitectura do SAAL, Bandeirinha (2007).

3 O objectivo deste acordo era desa-celerar o endividamento provocado pelo excesso de créditos contraídos nos anos anteriores.

4 Conhecidos também por Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGIs), cuja legalização e restruturação urbana ocupa uma boa parte das preocupações urbanís-ticas das autarquias.

5 O PNLCP é fruto da Resolução do Conselho de Ministros, de 20 de Março de 1990.

6 No DL 163/93 de 7 de Maio DR, I Série – A nº 106 07/05/1993: 2381 pode-mos ler: “A decisão agora tomada vem na sequência do Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza, lançado pelo Governo em 1991, através do qual estão em curso cerca de 100 projectos em todo o território nacional.”

7 As principais actualizações foram o PER-Famílias (DL 76/96 de 20 de Junho) e o PROHABITA (DL 135/2004 de 3 de Junho). O primeiro teve grande importân-cia na aplicação do PER na segunda me-tade da década de 90 e legisla o regime de concessão de comparticipações para apoio à aquisição ou reabilitação de fogos por fa-mílias abrangidas pelo PER; o segundo, é o programa de financiamento para acesso à habitação, que regula a concessão de fi-nanciamento para resolução de situações de grave carência.

REFERÊNCIAS NOTAS

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A DISNEYFICAÇÃO DA CIDADEFERNANDO CRUZ

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A DISNEYFICAÇÃO DA CIDADEFERNANDO CRUZ | INVESTIGADOR . INSTITUTO DE SOCIOLOGIA/FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

A CIDADEUma cidade pode ser definida como “uma colecti-

vidade social multifuncional, territorialmente delimi-tada”, podendo as suas formas históricas, geográficas, técnicas e sociais ser tão diferentes que o mesmo termo pode abranger “realidades sociais e ecológicas muito diferenciadas” (Castells, 2001). Esta compreende, funda-mentalmente, processos de produção, consumo e troca, cujas relações socioespaciais entre estes processos, de-terminam a existência de um processo de gestão ou polí-tico, que intervém sobre os primeiros (Castells, 2001). A cidade é, nas palavras de Firmino da Costa, um contexto de estudo, onde actores e processos sociais “produzem cidade e […] imagens da cidade” na análise do pró-prio processo social (Costa, 2003). Esta reconhece-se por conseguinte, como real e representacional, texto e contexto, ética e estética (Fortuna, 2001), potenciando a autonomia, o anonimato, a concorrência, a tolerância, a imprevisibilidade, a insegurança e desincentivando a participação social, de acordo com as características clássicas definidas por Wirth (2001).

Por conseguinte, os promotores e agentes turísticos, os designer e criativos, os profissionais da comunicação, os técnicos e os decisores políticos, bem como, as insti-tuições e entidades locais ou não, se assumam como os responsáveis pelas imagens que as cidades transmitem.

Daí que acontecimentos efémeros ou iniciativas mais duradouras, ou designações mais vinculativas possam ser instrumentalizadas por igual e convertidos em re-curso promocional das cidades (Fortuna, 2001), corren-do o risco da excessiva simplificação da sua identidade, transformar a cidade antiga e singular, numa cidade ge-nérica, sem história. Nestas, a sua principal característi-ca é a anomia, dada a atenção centrar-se, sobretudo nas auto-estradas em detrimento das alamedas e das praças (Koolhaas, 2006), lugares privilegiados de sociabilidade. A ausência do centro nas cidades genéricas (Koolhaas, 2006), transforma as identidades em “transitórias, plu-rais e auto-reflexivas” e aquelas em cidades narradas, ou cidades-espectáculo, hipertextuais ou hiper-reais, ao perder-se a distinção entre o real e o simulacro (Lopes, 2002).

ESPAÇOS URBANOSA reconstrução dos espaços urbanos e o processo

de gentrification ou enobrecimento urbano levaram por um lado, ao aparecimento de novos edifícios sob a forma de centros comerciais, hipermercados, museus, zonas ribeirinhas e parques temáticos e à reestruturação e por outro, ao enfraquecimento de relações de vizinhança dada a deslocação centrífuga das classes desfavorecidas e centrípeta das classes com maior poder económico.

Um dos traços mais significativos da nova arquitectura é a sua função lúdica ao produzirem sensações de encan-tamento, desorientação ou espanto, por forma a reviver o passado ou a ficção (Featherstone, 2001). O espaço colectivo é cada vez menos um espaço público, sendo a sua gestão gradualmente entregue a entidades privadas (Lopes, 2000). Daí que, a nova arquitectura urbana per-mita uma compressão do espaço-tempo, onde os “novos” centros das cidades, materializados em centros comer-ciais, aparecem abstraídas do espaço e tempo exteriores. Ao mesmo tempo, este “urbanismo de fantasia” exclui todos os aspectos negativos da cidade como a sujidade, a toxicodependência, trânsito e pobreza (Lopes, 2000).

As cidades de densidade social e demográfica variá-vel implicam relacionamentos sociais recíprocos, simbo-licamente variados e em co-presença. Ora, o conceito de sociabilidade designa as relações sociais que se formam independentemente de quaisquer outras necessidades, interesses ou objectivos (Costa, 2003). Como refere Costa, a co-presença é um elemento constitutivo funda-mental das práticas sociais e das situações relacionais, quer em contextos privados, quer em espaços públicos (Costa, 2003). Simmel caracterizava as formas de socia-bilidade metropolitana, tendo em conta a intensificação e a multiplicação das relações sociais, acentuando o indi-vidualismo, a atitude blasé e as relações de estranhamen-

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [25] CIDADES INVISÍVEIS

to (Fortuna, 2001). Contudo, os contactos face a face são sobretudo regidos pela impessoalidade, superficialidade, sendo por isso, transitórios e segmentares. Estas re-lações, de acordo com Wirth, tendem a ser utilitárias, tendo em conta os objectivos a atingir (Fortuna, 2001). Ruas extremamente povoadas são encarada pela maio-ria das pessoas como locais de passagem e circulação, podendo contudo existir a divisão dos espaços em ter-mos de funções, etnias e culturas. A coexistência nestes espaços sem qualquer interacção parece ser a tónica do-minante (Lopes, 2002).

Segundo Innerarity, a relevância do espaço público depende da capacidade de organizar socialmente uma esfera de mediação de subjectividade, experiência, im-plicação e generalidade. Daí que considere que o público caracteriza aquilo que é de interesse geral e que apela a um espaço de acção onde os membros da comunidade possam desenvolver dialogicamente os seus assuntos relativos à comunidade em geral (Innerarity, 2006). To-davia, há que ter em conta, como o refere João Teixeira Lopes, que sofremos a influência de estruturas espácio-temporais, bem como, a compressão espaço-tempo em que cada cidadão participa. Deste modo, a intensidade e a descontextualização das relações sociais são, por isso, responsáveis pelo enfraquecimento da interacção face-a-face própria dos lugares antropológicos (Lopes, 2002).

DISNEY WORLDO Disney World deve-se à abstracção técnica e ar-

quitectural dos lugares, bem como, das emoções que estas invocam. Desde 1985, que é entendido como uma poderosa reorganização visual e espacial da cultura pú-blica. Os seus espaços dão visibilidade à memória social,

o que permite a identificação colectiva com o mercado. As dimensões e funções do Disney World permitem ser encarados como uma representação da cidade real, cons-truída para pessoas da classe média. Por outro lado, a esteticização da paisagem urbana foi construída com a exclusão do medo à cidade. Contudo, o mundo Disney é um espaço autónomo cuja entrada está limitada ao pagamento da mesma, afastando assim, os indesejáveis (espaço privado). A Disneylandia e o Disney World são dois dos mais significativos espaços criados no século XX que transcendem as identidades étnicas, de classe ou regionais para oferecer uma cultura pública nacional ao esteticizar as diferenças e ao controlar o medo. Re-presenta, por isso, uma narrativa da identidade social sobre o que as pessoas fazem ou deveriam fazer (Zukin, 2006).

As estratégias de organização do espaço do Disney World influenciaram o comércio da cidade de Nova Ior-que cujo primeiro objectivo consistiu na limpeza da área, do reforço da segurança com a imposição de barreiras ao acesso público e com a regulamentação do compor-tamento permitido nesses espaços; com a contratação de seguranças privados; bem como, a organização da movi-

mentação das pessoas nos espaços públicos e dos lugares onde as mesmas se podem sentar; com a influência sobre as normas de apresentação e o modo de vestir; com a adopção de vestuário próprio para os funcionários. Estas estratégias sociais criaram uma relação de confiança entre os estrangeiros (Zukin, 2006).

QUALIDADE E FESTIVILIZAÇÃOA actividade é mínima nos espaços urbanos de fraca

qualidade mas intensa nos espaços abertos e de boa qua-lidade. Por isso, no centro da cidade, as actividades são geralmente superficiais e a maioria dos contactos pas-sivos: ver e ouvir um grande número de pessoas desco-nhecidas. Esta oportunidade implica recolher um vasto conjunto de informação sobre o contexto social. A ex-periência de estar com outras pessoas implica a emissão e recepção de actividades abundantes e diversificadas ao contrário da experiência contemplativa de edifícios e monumentos. Por conseguinte, as cidades vivas implicam a interactividade entre as pessoas, resultando daí ex-periências ricas e estimulantes, ao contrário das cidades sem vida por muito que os edifícios sejam coloridos e diversificados (Gehl, 2006).

A DISNEYLANDIA E O DISNEY WORLD SÃO DOIS DOS MAIS

SIGNIFICATIVOS ESPAÇOS CRIADOS NO SÉCULO XX QUE TRANSCENDEM

AS IDENTIDADES ÉTNICAS, DE CLASSE OU REGIONAIS PARA OFERECER

UMA CULTURA PÚBLICA NACIONAL AO ESTETICIZAR AS DIFERENÇAS

E AO CONTROLAR O MEDO.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [26] CIDADES INVISÍVEIS

NA CIDADE DO PORTO PODEMOS MENCIONAR A TÍTULO DE EXEMPLO AS FESTAS DE S. JOÃO, A PASSAGEM DE ANO

COM FOGO DE ARTIFÍCIO NA AVENIDA DOS ALIADOS (2006 A 2008) OU O CARNAVAL ORGANIZADO NA CIDADE

NOS ANOS DE 2007 E 2008. A CIDADE ASSUME-SE ASSIM COMO CIDADE-ESPECTÁCULO, PALCO DE ENCENAÇÕES

PENSADAS E ORGANIZADAS PELO MUNICÍPIO OU EMPRESAS DELA DEPENDENTE

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [27] CIDADES INVISÍVEIS

Há, por isso, que recorrer em algumas cidades fru-to da desertificação dos centros urbanos à festiviliza-ção (Venturi apud Muñoz, 2008) dada a necessidade de grandes eventos para chamar pessoas a estes espaços urbanos. O recurso ao marketing acompanha ou se-gue o fenómeno de gentrificação dos referidos centros como condição da referida transformação urbana. Desse modo, a organização de eventos nos centros urbanos leva à concentração de centenas ou milhares de pessoas. Na cidade do Porto (fotos da página anterior) podemos mencionar a título de exemplo as festas de S. João, a passagem de ano com fogo de artifício na Avenida dos Aliados (2006 a 2008) ou o Carnaval organizado na ci-dade nos anos de 2007 e 2008. A cidade assume-se assim como cidade-espectáculo, palco de encenações pensadas e organizadas pelo município ou empresas dela dependen-te (Porto Lazer, EM).

“A Avenida dos Aliados vai transformar-se, mais uma vez este ano, num grande Salão de Baile. Depois da festa em 2007, que envolveu milhares de pessoas, a PortoLazer, juntamente com a Panmixia, vai voltar a apostar no Entrudo de outros tempos.O Carnaval da Invicta terá assim dois palcos para duas orquestras, com lustres pendurados no céu, di-versões à moda antiga, com bombos na rua, ranchos, máscaras, batalhas de flores, carrosséis, fotógrafos e sobretudo, com teatro musical, na continuação do grande folhetim “Maria do Bolhão”.” Porto Lazer (2008)

Contudo, a postura de quem se desloca ao centro da cidade é sobretudo a de observador ou espectador.

Individualmente ou com a família ou ainda com amigos, o objectivo é sobretudo assistir aos espectáculos. A pró-pria arquitectura da Avenida dos Aliados, na cidade do Porto, bem como, as próprias condições atmosféricas durante uma parte do ano não convidam à permanência no centro da cidade durante muito tempo. A Avenida está concebida sobretudo para grandes afluências de público, isto é, para “espectadores de pé”.

Junto à Câmara Municipal estão algumas mesas e cadeiras como se de uma esplanada de um café se tra-tasse… Por outro lado, as poucas árvores que se en-contram na mesma, bem como a ausência de sombra, protecções para a chuva ou outras infra-estruturas para crianças, não convidam as famílias a aí permanecerem muito tempo, excepto para tirarem fotos, numa atitude voyerista.

É paradigmática a organização do Carnaval de 2007 e 2008, onde predominou uma certa ambiência burguesa de finais do séc. XIX e princípios do séc. XX na indu-mentária do espectáculo apresentado. Os próprios edi-fícios e a Câmara Municipal fruto da dinâmica arquitec-tónica daquela época e que persistem no tempo, parecem pretender “agarrar” essa época, como locus distintivo das demais cidades. É como se se pretendesse criar um grande parque temático, onde a burguesia, o comércio e o vinho do Porto se perpetuassem no tempo.

NOTA CONCLUSIVACom a organização de eventos no centro urbano da

cidade do Porto, este constitui-se como um “palco”, onde os cidadãos – “espectadores” – têm de assumir um papel passivo no consumo da “peça” que se desenrola em es-

paços públicos – “cenário” – onde as questões relativas à prática da cidadania são esquecidas.

O Disney World idealiza o espaço público urbano ao promover estratégias competitivas em detrimento da civilização (Zukin, 2006). A aposta da imagem visual é a nosso ver bastante nítida na cidade do Porto e tal como no Disney World, a cultura visual, o controlo espacial e a gestão privada criam um novo tipo de espaço urbano.

Para concluir, parece-nos que o centro da cidade do Porto é sobretudo usufruído turisticamente, sendo essencialmente as ruas de comércio que aglutinam os cidadãos num espírito consumista e voyerista face à au-sência de população residente no mesmo centro urbano. Por outro lado, as estratégias seguidas não parecem ser consistentes por forma a levar à ocupação efectiva do referido espaço urbano dada a concepção do mesmo: amplo e a ausência de equipamentos permanentes que humanizem o referido espaço.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [28] CIDADES INVISÍVEIS

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [29] CIDADES INVISÍVEIS

DA CULTURA COMO LOCOMOTIVA DA CIDADE-EMPRESA A UM CONCEITO ALTERNATIVO DE DEMOCRACIA CULTURALJOÃO TEIXEIRA LOPES CI

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DA CULTURA COMO LOCOMOTIVA DA CIDADE-EMPRESA A UM CONCEITO ALTERNATIVO DE DEMOCRACIA CULTURALJOÃO TEIXEIRA LOPES | SOCIÓLOGO

CONSIDERAÇÕES INICIAISNum dos muitos blogues sobre o Porto pode ler-se

o seguinte post de Pedro Bismarck: “Um espaço infini-tamente desdobrável de ideias, de pessoas, de manifes-tações artísticas e poéticas, de layers variadas que se sobrepõem e cruzam. Uma cartografia infinita e sur-preendente de possibilidades, é isso a cidade, é isso o Porto”.

Impossível não fazer uma imediata associação a um texto célebre de Jonathan Raban, Soft City (Raban, 1974). Nele, o autor defende, precisamente, essa infinita gama de opções que se colocam ao urbanita contemporâneo, a um ponto tal que cidade e indivíduo se transformam em espelho mútuo: “Decida quem é e a cidade assumirá mais uma vez uma forma fixa em seu redor. Decida o que ela é e a sua própria identidade será revelada, como um mapa estabelecido por triangulação. As cidades, ao contrário das aldeias e das pequenas cidades, são plás-ticas por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, moldam-nos” (idem, pp. 9-10). Plasticidade ou plasticina: tudo é moldável, espécie de artesanato das identidades e cartografias. Por antítese, os constrangi-mentos não existem ou não se revelam e a sociedade, como num sonho de um demiurgo narcísico, adquire a sua forma e imagem.

Esta narrativa suave, de contornos pós-modernos,

arrisca-se, com matizes várias, a estabelecer-se como o discurso hegemónico dos actuais processos de trans-formação das grandes cidades (cidades globais ou cida-des região, em qualquer caso com projecção estratégica). Em certa medida, trata-se da última nova velha versão da pressão que o capitalismo de acumulação flexível exerce para a polarização e reinvenção permanente de hierarquias, fronteiras e distinções no sistema urbano globalizado.

NADA DE NOVO. E NO ENTANTO…O poder propriamente mágico das palavras e do dis-

curso consiste, em boa parte, na sua capacidade perfor-mativa de resolver os problemas, isto é, de criar os qua-dros de inteligibilidade dentro dos quais as respostas ganham sentido e são reconhecidas como tal. Na sombra, ou na mais pura inexistência, fenecem as realidades que a perspectiva da enunciação não permite alcançar. Na actualidade, vários são os nomes por que se designam os processos de transformação das cidades no âmbito da globalização de soma-zero (o que umas ganham, ou-tras perdem): regeneração, reconstrução, revitalização ou até renascença. Certos termos, no entanto, cada vez mais são evitados: higienização ou gentrificação. Nada de novo, por conseguinte, tampouco na excitação agora patente na versão criativa da competição pelo lugar das

cidades na divisão espacial do consumo (e apenas com-plementarmente na divisão espacial do trabalho, dada a centralidade de uma economia cultural dos bens simbó-licos assente na capacidade criativa/destrutiva do volá-til capitalismo tardio). Falamos, então, na consolidada vulgata urbanística, em cidades criativas; bairros criativos, economias criativas; indústrias criativas e, naturalmente, em classes criativas, numa certa redundância semiótica que banaliza/naturaliza a circulação destes conceitos na esfera pública.

Neil Smith (2002), em particular, salienta a centra-lidade deste discurso como gramática de uma prática urbanista (o “novo urbanismo” enquanto “novo globa-lismo”) que encara as cidades como os grandes labora-tórios do capitalismo contemporâneo. A própria noção de imagem de cidade liberta-se do quadro de enunciação em que Kevin Lynch a criou para significar a intensa imbricação e mútua conversão entre capital simbólico e capital económico, funcionando, de facto, como um produto sofisticado de marketing territorial.

Mas até aqui, como dizíamos, aparentemente nada de novo. Aparentemente, apenas, pois na verdade nunca como hoje as cidades funcionaram enquanto máquinas velozes de crescimento locomovidas pela esfera cultu-ral, num processo que modifica os próprios conceitos de cultura e de cidade, unindo, desse modo, como até

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então não acontecera, a economia política da cultura e a economia política do lugar.

De facto, seguindo Otília Arantes (2007), a cultura surge como uma espécie de «isca» capaz de atrair o in-vestimento privado, subordinando, mesmo, o interesse público e promovendo a especulação, nomeadamente a imobiliária. Trata-se, segundo a autora, de um “cultu-ralismo de mercado”, em que a centralidade da cultura é cada vez mais comandada pela consolidação da “cida-de-empresa-cultural”. Radicalizando a crítica, Arantes chega mesmo a considerar a animação cultural como um dispositivo de “convergência entre governantes, buro-cratas e urbanistas em torno de uma espécie de teorema padrão: que as cidades só se tornarão protagonistas pri-vilegiadas, como a Idade da Informação lhes promete, se e somente se, forem devidamente dotadas de um Plano Estratégico capaz de gerar respostas competitivas aos desafios da globalização (sempre na língua geral dos prospectos), e isto a cada oportunidade (ainda na língua dos negócios) de renovação urbana que porventura se apresente na forma de uma possível vantagem compara-tiva a ser criada” (Arantes, 2007: 13). Ora, Arantes en-contra vários paradoxos neste processo. Antes de mais, a reciclagem, pelo capitalismo tardio, da «ideologia do plano»; por outro lado, a íntima associação ao cultural turn que, surgido como movimento anti establishment nos campus universitários americanos (dando origem, em boa medida, ao que Daniel Bell apelidou de “contra-dições culturais do capitalismo”, que perdia a sua legiti-midade pela emergente hegemonia da nova esquerda e da cultura das ruas), cedo deu lugar a um passe-partout cultural (“everything Cézanne”) o qual, na verdade, cons-tituiria uma segunda fase desse cultural turn. A fase, en-

fim, em que «tudo é cultura» e onde o estético invade o quotidiano e a cidade, de forma a impor o image making: a cultura como imagem e representação, na senda de um capital volátil e intangível. Como resultado, o lugar exprime uma outra contradição “entre o valor de uso que (…) representa para os seus habitantes e o valor de troca com que ele se apresenta para aqueles interessados em extrair um benefício económico” (Idem: 26).

DOS MODERNOS À «TERCEIRA GERAÇÃO» DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO

As reformas «clássicas» urbanísticas, ditas frequen-temente «modernas» encaravam a cidade como tabula rasa e, nas suas diferentes versões (funcionalistas, mo-dernistas em sentido estrito, racionalistas), progressis-tas ou conservadoras, encarnavam na e pela cidade um ideal de Homem Novo. O seu início pode encontrar-se no afã de higienização e embelezamento da cidade indus-trial do século XIX. O Barão de Haussmann transfor-mou Paris, sob a égide do Estado Imperial, numa urbe de ruas abertas e largas (“longas e alinhadas fileiras de ruas”, no dizer de Benjamin) e de prédios altos e impo-

nentes, destruindo massivamente a habitação popular e mesmo parte considerável do que hoje seria indubita-velmente classificado como património. A produção da cidade nova, dos boulevards e arcadas, implicava tanto de criação como de destruição (o próprio Barão, lembra Benjamim, classificava-se de «artista da demolição»). Simplificar, medir, organizar cientificamente, prever – eis as palavras de ordem.

As alterações que este modelo acarretou para a vida quotidiana estão bem presente nos textos de Simmel (1997) sobre a atitude blasé enquanto defesa face à inten-sidade e heterogeneidade de estímulos que a metrópole provoca, assim como na postura do flanêur de Baudelaire, analisada com deliciosa ambivalência por Walter Benja-min (1997), enquanto alguém que, em atitude de rebeldia e boémia, procura refúgio na multidão, desligando-se da acção política e tornando-se uma criatura a-social. Não por acaso, refere Benjamin, a “única comunhão sexual que [Baudelaire] concretizou na sua vida foi com uma prostituta” (Idem: 74). Na verdade, esta é a cidade em que ricos e pobres hão de respirar o mesmo ar…Nas arcadas, privilegiados e destituídos apropriam-se di-ferentemente de um mesmo espaço, gerando leituras e

A PRODUÇÃO DA CIDADE NOVA, DOS BOULEVARDS E ARCADAS,

IMPLICAVA TANTO DE CRIAÇÃO COMO DE DESTRUIÇÃO (O PRÓPRIO

BARÃO, LEMBRA BENJAMIM, CLASSIFICAVA-SE DE «ARTISTA DA

DEMOLIÇÃO»). SIMPLIFICAR, MEDIR, ORGANIZAR CIENTIFICAMENTE,

PREVER – EIS AS PALAVRAS DE ORDEM.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [32] CIDADES INVISÍVEIS

A TERCEIRA GERAÇÃO URBANÍSTICA CORRESPONDE, GROSSO MODO, À ERA DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO E DO

RENASCIMENTO URBANO ASSENTE NA REGENERAÇÃO CULTURAL GERIDA PELOS NOVOS “EMPREENDEDORES”. ESTES

RENUNCIAM À AMBIÇÃO DE TOTALIDADE DO URBANISMO ANTERIOR E DEFINEM, POR ASSIM DIZER, UMA ZONA DE VISIBILIDADE

QUE DEMARCA O QUE TEM INTERESSE (E MERECE INVESTIMENTO), DO INEXISTENTE EM TERMOS DE VANTAGENS COMPARATIVAS.

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práticas justapostas, mas incompatíveis (heterotopias?). A cidade metamorfoseia-se em mercadoria que entorpe-ce as massas que miram as ornamentações do edificado e o apelo das vitrinas. Em Benjamin, agudiza-se o pathos da percepção da crise dos ideais emancipatórios.

Este modelo de pendor racionalista gerou uma am-bivalência sobre a imagem da cidade e do espaço público. De um lado, como refere Teresa Caldeira (2003: 303), “o perigo das multidões, anomia, individualismo excessivo, congestionamento” e “ocasionais apropriações violen-tas”; de outro, a abertura, a acessibilidade, a demarcação entre o público e o privado, o jogo entre desvendar-se e ocultar-se, a relativa abertura à “alteridade não assimi-lada” (Young in Caldeira, 2003: 304).

No entanto, existe uma ficção de contrato social próprio de uma comunidade aberta que nunca existiu. Os modernistas, como Le Corbusier e Niemeyer, decla-ram «morte às ruas», retirando os transeuntes do que julgavam ser o anonimato das artérias e praças, colocan-do a ênfase num plano integrado controlado pelas au-toridades públicas, capaz de seccionar a cidade em áreas funcionais diferenciadas mas interligadas num grande todo que funcionaria, ele sim, como um imenso espaço público moderno, racionalista, universal e homogéneo onde se esbateriam as diferenças sociais visíveis à escala da rua. Todavia, como refere Caldeira, “ao destruir a rua como espaço para a vida pública, o planejamento moder-nista também minou a diversidade urbana e a possibili-dade de coexistência de diferenças. O tipo de espaço que ele cria promove não a igualdade (…) mas apenas uma desigualdade mais explícita (Idem: 311).

Entretanto, o fim do modernismo anuncia-se por um lado, com o contextualismo (anos 60 e 70) e a sua

ênfase no sentido do lugar, na preservação da memória e na revitalização como reabilitação, intervindo “em migalhas” e reanimando a vida dos bairros, sem vio-lentar os moradores (Arantes, 2007: 44), e, por outro, com o pós-modernismo do urbanismo high tech, da arquitectura de ficção, do pastiche e do palimpsesto. O libertário cultural, como refere Otília Arantes, an-siava por se desembaraçar das amarras racionalistas e da “monotonia funcional do Modernismo”, come-çando por exercer uma crítica cerrada ao economi-cismo, resgatando a importância dos bens simbólicos na e da cidade para, num segundo momento, se erigir como membro da “classe criativa”, resvalando para uma certa indeterminação de posicionamento social e de intervenção política que Benjamin já assinalara na boémia parisiense da viragem do século XIX para o século XX. A cidade suave encontra, pois, alicerces, numa espécie de 3ª via em que políticos e académicos de esquerda reinventam o jogo político libertando-o da grelha classista e apostando, doravante, em dimen-sões transversais e pós-materialistas como a qualidade de vida, a estética e o ambiente, terrenos férteis para a fabricação e difusão simbólica e para a generalização da cultura como o ar que se respira nas cidades com-petitivas e modernas.

A terceira geração urbanística corresponde, grosso modo, à era do planeamento estratégico e do renasci-mento urbano assente na regeneração cultural gerida pelos novos “empreendedores”. Estes renunciam à am-bição de totalidade do urbanismo anterior e definem, por assim dizer, uma zona de visibilidade que demarca o que tem interesse (e merece investimento), do inexis-tente em termos de vantagens comparativas. Trata-se,

na verdade, de uma abordagem de concentração selec-tiva de recursos que gerará, concomitantemente, níveis desiguais de produção do espaço no interior de cada cidade, doravante esquartejada. É o caso de Londres e das Docklands, de Paris e das «Grandes Obras» do con-sulado Mitérrand/Lang, de Barcelona e Berlim como montras experimentais da arquitectura contemporâ-nea, do Fisherman’s Wharf de São Francisco, do Inner Harbor de Baltimore, do Quincy Market e da Water-front de Boston, de Lisboa e da Expo98, das empresas de reabilitação urbana ligadas a eventos desportivos ou às Capitais Europeias da Cultura… Castells define, da seguinte forma, o planeamento estratégico:

“A flexibilidade, globalização e complexidade da nova economia do mundo exigem o desenvolvimento do planeamento estratégico, apto a introduzir uma me-todologia coerente e adaptativa face à multiplicidade de sentidos e sinais da nova estrutura de produção e administração” (Castells cit. in Vainer, 2007:76).

Em suma, esta modalidade de intervenção urbanís-tica visa reduzir a complexidade trazida pela globaliza-ção, orientando a competição entre territórios urbanos através da designação do que possui relevância estratégi-ca. E quem define os subjacentes critérios de relevância? Os especialistas, como Castells ou Jorba, no sub-modelo catalão, em aliança com os detentores de capital, os po-líticos e os novos intermediários culturais – os mágicos contemporâneos, operadores da transmutação da cidade em mercadoria pela política cultural; os vendedores da cidade (urban imagineers), através da mercadotecnia ur-bana (Borja e Forn, 1996) em que os eventos culturais se assemelham, crescentemente, a «produtos» e «resul-tados» de vastas operações «criativas», através do pres-

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suposto, raramente explicitado, de que vender a imagem de cidade equivale a vender a própria cidade.

DO «PATRIOTISMO DE CIDADE» À CULTURA COMO CONSENSO

Assim, nas novas valências da cultura, eis que emer-ge como uma espécie de guião ou fio condutor do pla-neamento estratégico, desdobrando-se, não apenas en-quanto marcador do que tem ou não interesse do ponto de vista da imagem de cidade e da atracção de investi-mento, mas, igualmente, enquanto revelador da orien-tação dos fluxos e da estrutura reticular do território (impondo, por exemplo, novas hierarquias nos factores locativos e na relação entre usos do espaço e classes so-ciais). Mais ainda, a cultura tece as mediações e os nós que entrelaçam o campo artístico, o campo cultural, o campo político e o campo económico, produzindo inter-secções e consensos.

No modelo catalão de planeamento estratégico esta função surge com particular incidência. À cidade-mercadoria e à cidade-empresa junta-se a cidade como pátria, tapando as brechas abertas pelas resistências populares e novos movimentos sociais. Este «patriotis-mo cívico» ou «patriotismo de cidade», defendido por Borja, Castells e Forn, entre outros, visa alimentar a produção de identidades em torno de «obras e serviços visíveis, tanto os que têm um carácter monumental e simbólico, como os dirigidos a melhorar a qualidade dos espaços públicos e o bem-estar da população” (Castells e Borja cit. in Vainer, 2007: 94). Ou, como Forn e Foxà referem, de modo bem explícito, trata-se de produzir um cimento simbólico-ideológico assente na “consci-ência ou patriotismo de cidade – eis o elemento-chave

para o estabelecimento, em bases permanentes, da co-operação público-privada e para a posterior difusão do pensamento estratégico entre os agentes económicos e sociais da cidade” (Borja e Foxà, cit. in Vainer, 2007: 95). A produção de processos e dispositivos de identificação e projecção identitária é, não raras vezes, feita em nome do cosmopolitismo, embora siga, na verdade, os velhos preceitos do nacionalismo mais blindado. Mesmo uma difundida e vaga apologia dos espaços públicos, geral-mente povoados por grandes emblemas arquitectónicos, monumentais e artísticos, assenta na recuperação da velha concepção de cidade como centro e representação do poder. Em relação àquilo que é considerado cidade, tudo o resto se define como «periferia», «subúrbio», territórios residuais e desinteressantes. Ora, o espaço público é originalmente pensado como arena agonís-tica, terreno de confronto e interpelação, locus de for-mação dialógica da opinião pública. O patriotismo de cidade usa, pois, a cultura como máquina efabulatória de um encontro imaginário de todos perante algo que os transcende e hipnotiza, anulando a política da diferença: grandes eventos, «bairros culturais», «cidades da arte», megaequipamentos, complexos museológicos, etc.

EFEITOS NÃO PRETENDIDOS DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO

Muitos dos balanços entretanto elaborados a propó-sito do impacto do planeamento estratégico na revita-lização de cidades e regiões sugere um possível esgota-mento do modelo, apesar de inegáveis efeitos directos (no emprego e nas receitas), indirectos (turismo, trans-portes, restauração, edição, informação, etc.) e ainda in-duzidos (competências, redes, imagem - Costa, 2007). Na verdade, a armadilha existia, desde o início, como paradoxo: se tudo é passível de encantamento nada se diferencia; se tudo é cultura, nada é cultura; se tudo é Cézanne, nada é Cézanne. A enorme sede de protagonis-mo urbano na competição entre cidades levou, de facto, a uma cartilha de intervenções, legitimada por uma “re-tórica do criativo” ou da pancriatividade. A animação, a patrimonialização, a espectacularização, a ludificação, a esteticização ou a gentrificação geraram-se através de simulacros de simulacros, originando, no final, uma constrangedora homogeneidade e um quase receituário com fraco enraizamento e especificidade territorial, re-velando uma propensão para a queda no mainstream e no franchising cultural (tipo Guggenheim). O investimento

A ENORME SEDE DE PROTAGONISMO URBANO NA COMPETIÇÃO ENTRE CIDADES

LEVOU A UMA CARTILHA DE INTERVENÇÕES, LEGITIMADA POR UMA “RETÓRICA

DO CRIATIVO” OU DA PANCRIATIVIDADE. A ANIMAÇÃO, A PATRIMONIALIZAÇÃO,

A ESPECTACULARIZAÇÃO, A LUDIFICAÇÃO, A ESTETICIZAÇÃO OU A

GENTRIFICAÇÃO GERARAM-SE ATRAVÉS DE SIMULACROS DE SIMULACROS,

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no simbólico, por outro lado, descurou as dimensões materiais. Ao invés da coesão e integração sociais, a des-continuidade sócio-espacial aumentou nas grandes ur-bes, provocando ambientes de desconfiança, hostilidade e mesmo agressividade entre distintos grupos e classes sociais. Cresce, aliás, a tendência para a construção do que Caldeira (2003) apelida de espaços públicos não mo-dernos e não democráticos: enclaves, casas, ruas e praças muradas, condomínios fechados, etc. No dizer de Carlos Vainer, as esferas políticas locais atrofiaram-se e a city procurou substituir a polis. A World-class-city, acrescen-taria, substituiu a diversidade e a interculturalidade (que nada devem à lógica descendente e paternalista da «tolerância» snob das “classes criativas”).

Por outro lado, ao fazer-se uma economia da diversi-dade de situações de partida e da diversidade de metodo-logias institucionais e organizacionais (Costa, 2007), o pensamento criativo revela-se enquanto pensamento pobre, guiado, na verdade, por um pensamento único sobre a via-bilidade das cidades.

Mesmo ao nível do sector cultural, avanços signi-ficativos na esfera da oferta (equipamentos e infraes-truturas, competências dos recursos humanos, alguns desenhos organizacionais e institucionais inovadores, certas dinâmicas sustentadas e sistemáticas de políti-cas públicas) não encontram eco do lado da procura, mantendo-se, no essencial, a mesma composição dos públicos assíduos e fidelizados.

AINDA A ANIMAÇÃO CULTURALApesar de, no essencial, me identificar com as aná-

lises de Harvey, Arantes, Vainer e Caldeira, creio que importa superar algum reducionismo de cariz ideológi-

co, patente, em particular, em Arantes. A crítica radical que desenvolve contra a animação cultural deveria, na verdade, dirigir-se às suas modalidades colonizadas e domesticadas. Jaume Trilla (2004), por exemplo, realça a intensa conflitualidade teórica que anima a anima-ção…Paradigmas tecnocratas conflituam com paradig-mas interpretativos e fenomenológicos e com modelos sócio-críticos. Estes últimos, assentes em pedagogias dialógicas, reflexivas e críticas recusam a instrumenta-lização da cultura para usos de legitimação dos poderes instituídos (usos que Arantes denuncia, ao considerar que a cultura acaba por ser um mecanismo de encena-ção da própria ideologia que anima os políticos que a produzem). Por outro lado, existe um vasto manancial, já avaliado e validado, de experiências emancipadoras levadas a cabo dentro do paradigma da democracia cul-tural (ou de que apelidei de políticas culturais de terceira geração – Lopes, 2003 e 2007), entendida como:

i) Em primeiro lugar, uma clara negação de qualquer conceito de cultura como “ornamento de espírito, sinal de distinção social, modo de supremacia dos iniciados sobre os demais, dotado de linguagens reservadas e de ritos particulares que excluem aqueles que os ignoram” (Crevoisier, 1979: 12); negação peremptória, enfim, dos usos hierarquizados e hierarquizantes, classificatórios e estigmatizantes da cultura como violência simbólica ou forma de infligir sofrimento, infelicidade e humilhação a outros sujeitos sociais;

ii) Em segundo lugar, uma opção: a democracia cul-tural entronca num direito à cultura, simultaneamente individual e colectivo, devedor de uma concepção de serviço público centrado na própria ideia de liberdade: só há democracia cultural na dignificação social, política e

ontológica de todas as linguagens e formas de expres-são cultural e na abertura de repertórios e de campos de possíveis, condição sine qua non para a expressão e escolha livres. Tal não significa abdicar de critérios de qualidade, mas sim ter como subjacente o questiona-mento do carácter universal desses critérios, bem como a explicitação da sua construção intersubjectiva, provi-sória e, necessariamente, conflitual.

iii) Em terceiro lugar, a democracia cultural apon-ta para uma incidência transversal: na criação de bens e obras culturais, na sua distribuição e recepção. Uma concepção de democracia cultural assente apenas na fa-miliarização, pela via da recepção, a todos os códigos e modos de expressão (numa acepção ideal-típica), seria uma versão diminuída e ineficaz. José Madureira Pinto (1994), num artigo tornado clássico, afirma claramen-te intenções de democratização do campo da produção cultural: “propiciar a segmentos populacionais vastos, sobretudo das camadas populares, o contacto com as formas culturais mais exigentes em termos dos instru-mentos estético-cognitivos necessários à sua descodifi-cação e fruição (alargamento de públicos), procurando, de forma tão sistemática quanto possível, que a recepção da obra se prolongue em aproximação empática ao acto criador (participação) e que esta última promova a pra-zo uma intervenção autónoma e auto-enriquecedora ao nível da criação (democratização da esfera da produção cultural)

iv) Em quarto lugar, importa colocar a formação de públicos no centro da democracia cultural. Este conceito implica a destruição sistemática do conceito mítico de público, no singular, espécie de comunidade imaginada ao serviço de uma colectividade de práticas rituais, no-

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ESTA PROPOSTA DE DEMOCRACIA CULTURAL É INCOMPATÍVEL COM A NOÇÃO DE UTENTE, CONSUMIDOR OU VISITANTE.

IMPÕE-SE, POR ISSO, UMA SOCIOLOGIA DOS USOS E DOS MODOS DE RELAÇÃO COM A CULTURA, PARA DESOCULTAR A

DIVERSIDADE NA MIRÍFICA FICÇÃO DE IGUALDADE PATENTE NA CONCEPÇÃO SINGULARIZADA E HOMOGÉNEA

DE PÚBLICO – UMA ESPÉCIE DE SUSPENSÃO MÁGICA DAS DESIGUALDADES SOCIAIS.

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meadamente alicerçada na integração e coesão sociais sob o manto diáfano da ideologia dominante. De igual modo, esta proposta de democracia cultural é incom-patível com a noção de utente, consumidor ou visitante. Impõe-se, por isso, uma sociologia dos usos e dos modos de relação com a cultura, para desocultar a diversidade na mirífica ficção de igualdade patente na concepção singularizada e homogénea de público – uma espécie de suspensão mágica das desigualdades sociais.

v) Em quinto lugar, a defesa da socialização institu-cional na formação de públicos obriga à invenção de uma nova profissionalidade, em particular no que se refere às funções de interpretação (nomenclatura anglo-saxóni-ca) ou de mediação (classificação francófona). Esta nova profissionalidade, enquanto processo dinâmico de co-municação entre as instituições e os seus públicos, longe de ser meramente um sector pericial, especializado e acantonado nos organigramas das instituições deve fa-zer valer a sua transversalidade, disseminando-se pelas competências das várias categorias de intermediários culturais (conservadores, gestores, administradores, curadores, comissários, programadores, animadores, mediadores...). Trata-se, afinal, não só de facilitar a fa-miliarização com a obra de arte através de uma nova cultura organizacional, mas de plasmar o respeito pelas apropriações e usos dos espaços e equipamentos cultu-rais, nomeadamente através das múltiplas interpreta-ções e pontos de vista que a relação com as obras suscita e que na base do ofício de público.

Desta forma, é possível, assim o creio, superar o patamar de uma crítica certeira e oportuna, mas com laivos de reducionismo e fatalismo, em direcção a uma institucionalização da cultura e dos modos de relação com a cultura relativamente autónoma face a usos ins-trumentais, subalternos e extrínsecos, recuperando quer o perfil intelectual, reflexivo e crítico dos novos inter-mediários culturais, quer uma certa dádiva e gratuitidade na instauração de espaços públicos urbanos modernos e democráticos.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [39] CONTRATEMPOSCONT

RAT

EMPO

S REGRESSO AO REAL IMAGINADO

JORGE CAMPOS

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A PESQUISA INSTITUCIONAL SOBRE O DOCU- mentário tem vindo a alargar o escopo dos seus inte-resses, ou retomando caminhos já prosseguidos, mas depois abandonados, ou encetando outros não confina-dos apenas ao universo do cinema. Este interesse reno-vado e transversal produz efeitos a vários níveis, seja aprofundando ou encarando sob novas perspectivas os aspectos mais conhecidos e amplamente tratados pelas teorias do cinema, seja investigando modalidades nar-rativas emergentes do campo dos media, de modo a es-tabelecer uma rede de relações na qual é ainda possível identificar questões apenas sumariamente agendadas ou precariamente resolvidas. Para tanto, reclama-se a função moderadora da historicidade, a qual permite avançar gradualmente na identificação dos diferen-tes modos de documentários, no pressuposto de que a lógica das imagens e a ordem do cinema, mesmo se encaradas numa perspectiva integrada de sistemas de significação, jamais poderão estar ausentes. Questio-nando as corruptelas da televisão e construindo ar-gumentos sobre o mundo histórico o documentário, cuja diversidade permite veicular livremente visões do mundo ancoradas em compromissos de ordem éti-ca, informativa e estética, surge, nesse contexto, como garantia do real imaginado em função do qual ganha corpo a possibilidade de organizar a memória pros-pectivamente.

HISTORICIDADEPatrício Guzmán, autor de filmes como A Batalha do

Chile (1973) e Salvador Allende (2004), disse um dia que o documentário é o álbum de família de um povo. Essa ex-pressão, pela carga simbólica nela investida, justificaria só por si uma descriminação positiva: tomado à letra, o álbum de família promove a identidade de quem somos e, ao fazê-lo, estabelece pontes para uma visão actualizada da História. Numa época em que a lógica mediática resi-de no efémero, o documentário surge como um poderoso instrumento de preservação da memória ou, se prefe-rirmos, como um lugar de reencontro dos homens com a sua condição e a sua circunstância. Todo o século XX pode, aliás, ser dado a conhecer através do documentário e todo o presente pode ser imaginado, reinterpretado ou simplesmente reconhecido através dele porque nele reside o potencial de utopia que, permitindo a revelação, gera conhecimento. Daí o interesse renovado em tor-no das suas múltiplas manifestações, sobretudo agora, quando devido a uma crise global cujo epicentro econó-mico-financeiro está iniludivelmente ligado às indústrias da evasão, ganha força, no plano simbólico, a reclamação de um regresso ao real.

O entendimento deste regresso ao real – num con-texto em que o discurso televisivo ideologicamente do-minante vacila e se mostra, de um modo geral, incapaz de dar resposta aos problemas do nosso tempo – exige a presença da historicidade articulada com a abordagem

sumária de uma antinomia central da teoria do docu-mentário que é aquela que releva do campo da arte, por um lado, e da esfera da reportagem, por outro. Seguindo este método, o qual não dispensa algumas derivas tidas por esclarecedoras, o documentário será sempre enten-dido enquanto argumento sobre o mundo histórico. E, como tal, parafraseando Chris Marker, ficará claro que, hoje mais do que nunca, para ser um lugar habitável, o mundo precisa de ser imaginado.

Para se entender este postulado devemos salientar, em primeiro lugar, que o confronto com a historicidade, ou seja situar o documentário no seu tempo, permite elucidar o movimento pendular em torno da retórica e da poética uma vez que recolhendo subsídios de cada época nos é permitido desenhar um quadro dinâmico a partir do qual melhor possa entender-se a relação com a actualidade, território, aliás, comum à reportagem, o que está longe de ser uma questão menor. Com efeito, os paradigmas do mundo das notícias sempre contribuíram para redefinir o quadro de expectativas dos receptores na sua relação simbólica com o real. Invocando Jean Thé-venot, André Bazin, por exemplo, ao referir-se à génese do documentário fala do “filme de grande reportagem” e acrescenta como elemento importante dos critérios de verosimilhança o facto de a partir do final da II Guerra Mundial, com a disseminação dos media, o público exigir acreditar no que vê, uma vez que “a sua confiança é con-trolada por outros meios de informação: a rádio, o livro e

REGRESSO AO REAL IMAGINADO JORGE CAMPOS | DOCUMENTARISTA, PROFESSOR DA ESMAE

E.P. THOMPSON

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a imprensa (Bazin: 1992)”. Esse processo, evidentemen-te, acentuou-se com a chegada da televisão.

Em segundo lugar é necessário admitir que do ponto de vista teórico há sempre a possibilidade de abordar a antinomia arte/ reportagem em função de dois enfoques distintos. Falando de arte, falamos de Cinema. Falando de reportagem, falamos de Jornalismo. Porém, quando hoje se fala do documentário, a cada passo nos defronta-mos com uma rede de relações que rompe com as tenta-tivas de sistematização exclusivamente centradas num ou noutro enfoque. Vejamos a seguinte deriva. Se, por absurdo, o cinema tivesse acabado antes do advento do som, tudo seria mais simples uma vez que a arte do ci-nema tinha atingido a plenitude com a conquista de uma linguagem exclusivamente visual e, por extensão, com a afirmação de um pensamento puramente visual. Assim não sucedeu. A partir do advento do som, a palavra, no dizer de René Clair, ameaçou o cinema de se transformar num gramofone com imagens. Cedo algo de semelhante se verificou em newsreels como March of Time influen-ciando figuras tutelares do documentário como John Grierson que em diferentes ocasiões disse uma coisa e o seu contrário. Tanto falou no tratamento criativo da actualidade quanto afirmou que, desde o início, o movi-mento documentarista foi essencialmente anti-estético. Disse mais: a ideia de documentário, tal como ele tinha sido levado a pensá-la, não era o produto de nenhuma escola de cinema, mas do pensamento da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago nos anos 20 do século passado. Por aqui logo se entende o valor instrumental da historicidade, pelo que todo o documen-tarista deveria ter noção quer da História do documentá-rio quer do debate teórico dela indissociável.

Como se sabe, o uso da palavra documentário para qualificar um determinado tipo de filme é atribuído a John Grierson que, em 1926, se referiu a Moana (1926) de Robert Flaherty como tendo valor documental. Ha-vendo indícios de Edward S. Curtis ter aludido ao filme documentário muito antes, por volta de 1915, quando fez The Land of the War Canoes (1914), o qual, aliás, antecipa muitos dos procedimentos posteriores de Flaherty em Nanook of the North (1922), a verdade é que foi a famosa expressão tratamento criativo da actualidade utilizada por Grierson, em 1927, que daí em diante enquadrou os pri-meiros debates sobre o documentário.

O cinema documental, contudo, é anterior a essa for-mulação e aparece amiúde associado a intuitos informa-tivos e de propaganda como no caso de Dziga Vertov, o responsável pelos jornais cinematográficos soviéticos após a revolução bolchevique. As suas teses do Cine-Olho deram corpo a narrativas que associam o registo da actu-alidade a uma experimentação da qual alguns números de Kino-Pravda constituem exemplos. Mas, Kino-Pravda o que é? Cinema? Jornalismo? Na verdade, o Cine-Olho é tanto uma teoria como uma prática e assenta no pressu-posto de que o cinema permite ver “outra coisa”, ou seja, é encarado como uma possibilidade de intervenção sobre o real de modo a interromper a naturalidade do fluxo das suas aparências e a revelar-lhe os movimentos de fundo. Kino-Pravda, sendo um jornal, obedecia a esses mesmos propósitos. O Homem da Câmara de Filmar (1929) é o pináculo dessa utopia radical.

E o que é Nanook of the North? Enquanto filme his-tórico-naturalista oferece ao espectador a ilusão de estar perante os acontecimentos narrados, os quais passam a habitar o seu imaginário como prova de verdade. Cons-

truído a partir de proposições lógicas, Nanook induz uma leitura única da história que conta, a qual resulta, naturalmente, de um ponto de vista correspondente à representação individual de um modo de ver. Flaherty, o mais improvável dos repórteres, visto que nele tudo é encenação, ainda assim faz “reportagem”, na medida em que reportar é dar conta de algo ou de alguém, neste caso da vida de Nanook, enquanto símbolo da vida dos esquimós,

METAMORFOSES DO REAL – ARTE E REPORTAGEM

Em qualquer dos casos coloca-se, naturalmente, o problema da narrativa. Toda a narrativa é construção, e toda a construção é encenação. O documentário, exi-gindo a organização dos seus signos, é uma construção. Tratar-se-á, ainda assim, de uma construção diferente daquela que serve a reportagem e, sobretudo a ficção, com a qual, aliás, o documentário divide áreas de luz e sombra. Por exemplo, o documentário também dispõe de cenários. Serão cenários naturais dispensando, portanto, a complexidade de elaboração associada ao cinema de estúdio, mas nem por isso deixam de ser cenários e de cumprir uma função enquanto tal. O documentário, em princípio, prescinde de actores profissionais recolhendo da autenticidade das suas personagens uma das suas ra-zões de ser. Mas, tudo se complica quando nos interroga-mos sobre o que é o actor e nos deparamos com compor-tamentos da vida real, os quais, devido à presença de uma câmara, adquirem evidências ou promovem ocultações que de outro modo não se manifestariam. Os exemplos poderiam prosseguir porventura indeterminadamente – um sinal da vitalidade do documentário de cinema.

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TAMBÉM O DOCUMENTÁRIO INTERPRETA E COMENTA O REAL. QUANDO PAUL ROTHA AFIRMA QUE ELE DEVE REFLECTIR

SOBRE OS PROBLEMAS DO PRESENTE, NO FUNDO, ESTÁ A DIZER ISSO MESMO. PODER-SE-IA, PORTANTO,

SUSCITAR A QUESTÃO DE SABER ATÉ QUE PONTO É LEGÍTIMO AO DOCUMENTÁRIO RECORRER

NO TODO OU EM PARTE À ORDEM REGULADORA PRESCRITA PELO JORNALISMO.

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Seguindo esta linha de argumentação, num discurso habitualmente conotado com expressões como verdade, realidade e objectividade todos os paradoxos são possíveis. Da fase da pesquisa à ética da rodagem, da técnica da entrevista à estética da montagem, qualquer que seja o domínio sob observação, é sempre inevitável deparar com um conjunto complexo de operações a partir do qual se opera a metamorfose do real em realidade.

Sucede algo de semelhante no campo do jornalismo. Se por real entendermos a vida em estado bruto, digamos assim, tal qual se passa à nossa volta, por realidade en-tenderemos um particular entendimento desse real em função dos códigos interpretativos pertencentes a uma determinada linguagem. É, pois, a linguagem que permi-te operar essa metamorfose. E é nesse sentido, também, que os acontecimentos deixam de pertencer ao domínio do real para entrarem no domínio da realidade, a partir do momento, portanto, em que se transformam em no-tícias. As notícias, pertencendo ao universo dos signos e dos valores simbólicos, contribuem para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Como tal, essa imagem é uma realidade construída e não, como pretendem os defensores da objectividade pura, nem um espelho do mundo, nem uma janela para o mundo. Diz Gomis que “nem o espelho nem a janela, enquanto me-táforas, têm em linha de conta a mediação da linguagem que é fundamental para o entendimento dos meios de comunicação (Gomis: 1991)”. Explicar como funciona o jornalismo será, então, explicar como se forma o presen-te de uma sociedade.

Esse presente interpretado em nome dos critérios jornalísticos é, todavia, difuso e comporta construções informativas a vários níveis. Num primeiro momento,

as notícias cumprem uma função de actualização de conhecimentos de modo a dotar os destinatários de in-formações úteis ao seu relacionamento imediato com o mundo. Esse conhecimento, porém, só ganha uma res-sonância prospectiva a partir do momento em que se amplia e dá lugar à reflexão e à interpretação através do recurso a outros géneros jornalísticos. É o caso, por exemplo, do comentário, o qual, mais do que a notícia permite configurar a dinâmica da actualidade, projec-tando-a para além do presente imediato. Na verdade, o presente é o que se comenta e as notícias são tanto mais notícias quanto mais perduram, ou seja, quanto mais são comentadas.

Também o documentário interpreta e comenta o real. Quando Paul Rotha afirma que ele deve reflectir sobre os problemas do presente, no fundo, está a dizer isso mesmo. Poder-se-ia, portanto, suscitar a questão de saber até que ponto é legítimo ao documentário recorrer no todo ou em parte à ordem reguladora prescrita pelo jornalismo. Grierson, ao fazer a distinção de duas cate-gorias de filmes vinculados ao real, a superior e a inferior, de algum modo parece rejeitar essa possibilidade. Para ele o documentário é exclusivo da primeira categoria visto que os filmes incluídos na categoria inferior “não dramatizam, limitando-se à mera descrição ou exposi-ção de factos”. Contudo, o mesmo Grierson que aqui se coloca do lado da poética não enjeitou ser consultor em Londres de March of Time e produziu, durante a guerra, no Canadá, World in Action, um jornal de actualidades ci-nematográficas. Aliás, parte da produção do movimento documentarista britânico foi essencialmente jornalística e tal aconteceu tanto por razões de ordem tecnológica quanto de ordem política e de propaganda.

Será então indiferente que as coisas se passem de uma maneira ou de outra? Muito pelo contrário. Vivendo em permanente confronto com a historicidade o documentá-rio pode ser encarado como uma série de transformações. À semelhança das notícias contribui para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Tal como o comentário e a crónica adquire um valor monumental para o futuro mas, na medida em que pode ser utiliza-do recorrentemente e autoriza leituras das quais não se ausenta, antes se afirma, o prazer do texto, eleva-se a um outro patamar requerente da imaginação criadora indis-sociável da capacidade de construir argumentos sobre o mundo histórico e, como tal, exigindo a singularidade do ponto de vista. São esses os documentários que per-mitem ler o mundo justamente porque nos dão a ver um real imaginado. Podemos concordar ou discordar. Mas sabemos ao que vamos porque no contrato celebrado entre autor e destinatário há uma cláusula de segurança segundo a qual a verdade transportada para o ecrã é a verdade do autor. A nossa será outra, ou não. Assim é o documentário de cinema: Être et Avoir de Philibert, Nuit et Brouillard de Resnais, Basic Training de Wiseman, Le Joli Mais de Marker, Vacances du Cinéaste de Van Der Keuken, Cabra Marcado para Morrer de Coutinho, Les Plages de Agnés de Varda, Phillips Radio de Joris Ivens, Porto da Minha Infância de Oliveira, Diary for Timothy de Jennings e tantos, tantos outros, todos eles porta-dores de um olhar fundador simultaneamente agente de mudança criativa e garante de uma memória sem a qual o homem prescinde do entendimento do presente e mergulha na deriva de um quotidiano sem futuro.

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TELEVISÃOO corpo a corpo com o real inscreve-se, no entanto,

num campo discursivo mais vasto sobre o qual é igual-mente necessário reflectir posto que resulta de múltiplas declinações. Voltemos então à televisão e à controvérsia em seu redor. Há quem, como Mander, discuta a possi-bilidade de haver vida inteligente na televisão, como há quem, como Popper e Condry, a considere como uma ameaça para a democracia. Há inúmeros textos relevan-do os aspectos manipulatórios do discurso televisivo, estabelecendo-se, nomeadamente, uma antinomia entre a razão e a emoção, sendo esta última encarada como in-dutora de fenómenos de hipnose, entorpecimento e fas-cinação. Muitos desses textos partem até de premissas e querelas aparentemente desligadas da matéria que nos ocupa, mas acabam por condicionar a sua abordagem. Por exemplo, o contraditório eventualmente existente entre a Imprensa e a Televisão. A racionalidade estaria no lugar da palavra escrita e do pensamento lógico a ela associado; a emoção, a sensação e a irracionalidade no lugar das imagens electrónicas.

Terrível anátema, prognóstico sombrio: a sociedade da imagem, alertaram os pessimistas, incorre no risco de promover um novo totalitarismo. McLuhan desva-lorizou a questão sublinhando a incompatibilidade do pensamento linear da Galáxia de Gutenberg com a nova ordem sensorial da Galáxia de Marconi: é como olhar o mundo pelo retrovisor, disse ele. Em contrapartida, Um-berto Eco, reflectindo sobre a cultura de massas, adver-tiu que o futuro da democracia passava pela capacidade de transformar a linguagem da imagem num estímulo à reflexão e não num convite à hipnose. Uma controvérsia de contornos semelhantes ocorre muitas vezes quando

se opõe cinema e televisão: a razão, a revelação, a arte, do lado do cinema; a confusão, a vulgaridade, o lixo, do lado da televisão. Quem não se lembra do célebre aforismo de Godard: o cinema é a memória, a televisão o esquecimento. Perguntar-se-á: mas que cinema e que televisão? Não iremos por aí, mas vamos por partes.

A televisão teve um impacto indiscutível sobre o docu-mentário a ponto de no Reino Unido estudos académicos terem identificado dezenas de tipos de “documentários de televisão”, cujo denominador comum seria a existência de um qualquer vínculo ao real. A favor desta proliferação surgiram argumentos relevando a bondade de soluções que teriam permitido encontrar um ponto de equilíbrio face à controvérsia da identificação das narrativas, de modo a promover, dentro de parâmetros aceitáveis, a convivência e transversalidade dos diferentes modos de significar. Contra esta leitura optimista e, porventura, não inteiramente desinteressada, poder-se-ia invocar o facto de muitas dessas abordagens pouco ou nada terem em comum com a tradição do filme documentário, nem se-quer da tradição do melhor documentário jornalístico de televisão, resultando simplesmente de meras estratégias casuísticas dos operadores competindo por audiências.

Em todo o caso, parece evidente que a televisão, pelo seu imediatismo e alegadamente devido à sua natureza, encontrou no jornalismo a expressão aparentemente mais ajustada ao seu modo peculiar de dar a ver o mundo. Por essa razão, as rotinas produtivas da informação te-levisiva, em particular da reportagem, afirmaram-se de um modo gradual como elementos legitimadores de um efeito de apropriação do filme documentário, impondo formatos, condicionando o tempo e o modo de dizer e remetendo para a palavra o lugar central de instância re-guladora do sentido. Prevalecendo o enunciado do texto sobre a lógica das imagens, abriu-se espaço ao oposto do olhar documentário fundado sobre o primado do sistema de significação da imagem cinematográfica.

Explicitar e compreender este tipo de contaminação exige uma nota adicional e um ou outro comentário. Por via de regra, a reportagem é previsível: texto off, entre-vista, repórter em campo assinalando a sua “presença no local”. Em muitos casos, a mediação jornalística é mini-mal e insere-se numa perspectiva de go between, embora este jornalista mensageiro, tendo capacidade de repre-sentação, possa alcançar notoriedade e tornar-se uma espécie de oráculo seja do que for como, ironicamente,

UMA CONTROVÉRSIA DE CONTORNOS SEMELHANTES OCORRE MUITAS

VEZES QUANDO SE OPÕE CINEMA E TELEVISÃO: A RAZÃO, A REVELAÇÃO, A

ARTE, DO LADO DO CINEMA; A CONFUSÃO, A VULGARIDADE, O LIXO,

DO LADO DA TELEVISÃO. QUEM NÃO SE LEMBRA DO CÉLEBRE AFORISMO

DE GODARD: O CINEMA É A MEMÓRIA, A TELEVISÃO O ESQUECIMENTO.

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DEPOIS DE FAZER REFERÊNCIA ÀS SOMAS ASTRONÓMICAS CONSEGUIDAS NA BILHETEIRA PELOS FILMES DE MICHAEL MOORE

BOWLING FOR COLUMBINE E FAHRENHEIT 9/11 – ESTE ÚLTIMO FEZ 120 MILHÕES DE DÓLARES, SÓ NOS ESTADOS UNIDOS,

DURANTE O PRIMEIRO MÊS DE EXIBIÇÃO –, MCENTEER LEMBRA QUE OITO DOS DEZ DOCUMENTÁRIOS MAIS RENTÁVEIS

DE SEMPRE NOS ESTADOS UNIDOS FORAM REALIZADOS A PARTIR DO ANO 2002

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demonstrou Alain Woodrow. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com informa-ções variadas passando ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço saturado de signos, a reportagem tende a tratar os assuntos, por mais sérios que sejam, como fait divers. E fá-lo sem especial preocupação de or-dem sígnica ou sintagmática. De acordo com Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência num medium popular como a televisão obriga o jornalismo a servir dois donos: “info” and “tainment”.

Naturalmente, mesmo na televisão comercial ge-neralista, há gradações no modo como se encara este fenómeno. A fórmula existe mas não quer dizer que seja igualmente aplicada em todas as estações. Tão pouco se pode concluir que os formatos híbridos da televisão sejam necessariamente negativos do ponto de vista do alargamento da esfera pública. E quanto aos canais es-pecializados de notícias, de que a CNN foi pioneira, há até um conjunto de prescrições que a globalização veio legitimar e que basicamente consiste em apresentar as notícias dramaticamente sem, todavia, as transformar em drama, expor os assuntos de forma acessível e com-preensível, mas sem exceder a duração de 30 minutos e, tendo embora consciência de que todos os shows de notícias se assemelham, procurar introduzir marcas de diferenciação.

Só que essas diferenças são ténues e dificilmente ha-verá abertura para sobressaltos criativos eventualmente perturbadores da percepção dos destinatários habituais. A fonte da confusão muito disseminada entre reporta-gem e documentário passa exactamente por aí, porque se criou um dispositivo estereotipado e rarefeito de repre-sentar o mundo através de uma linguagem relativamente

arbitrária, ancorada num hibridismo formal oportunista que reclama para si, como elemento de legitimação, a objectividade jornalística. Por isso, para os pragmáticos programadores de televisão os documentários com auto-ria são quase sempre considerados disfuncionais e, como tal, o melhor é produzir algo de vagamente semelhante sob a responsabilidade de produtores supostamente es-pecialistas no conhecimento e gosto do público ou de jornalistas com notoriedade, também eles, supostamente especialistas em garantir audiências. Ou seja, os docu-mentários devem encarados como programas.

Provavelmente, caso essa tendência dos programa-dores fosse contrariada, abrir-se-ia o caminho a uma maior e mais interessante variedade de leituras sobre o mundo histórico o que, no caso da televisão de serviço público poderia corresponder a uma nova hipótese legiti-madora: a diversificação, permitindo o acesso do público a representações do real à margem dos estereótipos in-formativos dominantes, seria um passo em frente no do-mínio do conhecimento dos mecanismos da construção da realidade com benefício para o exercício da cidadania. Tal, porém, com excepção de experiências interessantes na televisão segmentada, dificilmente acontecerá. A tele-visão não serve para oferecer programas ao público, mas para oferecer público aos anunciantes. Quem o disse foi Berlusconi.

Por estas e outras razões os documentários de tele-visão – ao contrário do filme documentário sobre o qual há trabalho teórico relevante – continuam a ser objectos mal identificado, ambíguos e até, eventualmente, suspei-tos. É difícil estabelecer-lhes os contornos e problemá-tico atribuir-lhes um estatuto de credibilidade em nome da regularidade de uma produção que faz da audiência

o seu referencial estruturador. No estádio actual do seu relacionamento com o real o actual modelo de televisão parece, pois, ter chegado a um ponto limite: o mundo é cada vez mais a televisão e a televisão a espuma dos dias.

Dizia o jornalista e documentarista Danny Schechter sobre os serviços informativos das principais networks americanas: the more you see, the less you know. Outros, como Chomsky, simplesmente compararam os gran-des conglomerados de media a gigantescas centrais de propaganda. E para James McEnteer o efeito Fox News sobre as grandes corporações produtoras de notícias de televisão na cobertura da guerra do Iraque acabou por desacreditar o sistema no seu conjunto e abrir as portas para uma entrada em cena com um vigor sem precedentes do documentário político. Depois de fazer referência às somas astronómicas conseguidas na bi-lheteira pelos filmes de Michael Moore Bowling for Co-lumbine e Fahrenheit 9/11 – este último fez 120 milhões de dólares, só nos Estados Unidos, durante o primeiro mês de exibição –, McEnteer lembra que oito dos dez documentários mais rentáveis de sempre nos Estados Unidos foram realizados a partir do ano 2002, e avança a seguinte explicação:

“Há na América uma grande necessidade de compre-ender o que, na realidade, está a acontecer. Estes filmes vêm dar resposta a essa necessidade. E essa necessida-de é tanto mais sentida quanto maior se tornou a con-centração da propriedade dos media noticiosos, com as consequências daí decorrentes em termos corporativos e de trivialização das notícias com o afunilamento do espectro informativo. Em vez de inovação e investigação, há repetição e imitação (McEnteer: 2006)”.

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UM ARGUMENTO SOBRE O MUNDO HISTÓRICO.

Na sua vertente mais elaborada, ou seja a da filiação cinematográfica, o documentário assenta no reconhe-cimento de um conjunto de valores de referência cujas premissas podem ser assim resumidas de acordo com o pensamento de Miriam Bratu Hansen:

“O cinema foi o mais singular e expansivo horizon-te discursivo no qual os efeitos da modernidade foram reflectidos, rejeitados ou negados, transformados ou ne-gociados. Foi um dos mais claros sintomas da crise pela qual a modernidade se deu a ver, tansformando-se, ao mesmo tempo, num verdadeiro discurso social, através do qual uma grande variedade de grupos humanos se procurou ajustar ao impacto traumático da moderniza-ção (Grilo: 2006)”.

Esta formulação remete para o álbum de família de Patrício Guzmán. Obviamente, ao filme documentário também não são estranhas as noções de verdade e ob-jectividade, uma e outra fazendo parte do contrato que se estabelece não apenas com o espectador, mas tam-bém no complexo processo de negociação envolvendo o cineasta, as suas personagens e uma multiplicidade de instituições. Neste caso, porém, ao exprimir o seu ponto de vista o autor não prescinde de pôr em cena situações e personagens em função da subjectividade decorren-te do seu modo peculiar de ler o mundo, naturalmen-te, escorado em compromissos que são, também, tanto de natureza ética quanto estética. O documentarista constrói a narrativa que entende dever construir e não narrativas pensadas exclusivamente para responder de forma mais ou menos casuística àquilo que se supõe ser o gosto da audiência. Ao proceder desse modo está, de

resto, a mostrar o respeito que ao público é devido. Ele diz: eu penso isto, mas deixa implicitamente uma outra pergunta: e vocês?

Os mecanismos de significação e de construção da narrativa obedecem, naturalmente, a um movimento pendular que oscila em busca da forma mais justa, sen-do por isso objecto de constantes mudanças de rumo ditadas quer pela contingência e pelos imprevistos da rodagem, quer no processo de montagem onde ocorre uma espécie de revisitação do olhar a partir da qual a estrutura ganha autonomia a ponto de em boa medida se determinar a si própria, impondo determinadas so-luções. Como diria um grande pintor português, Nadir Afonso, num filme que fiz sobre ele, as formas tornam- se exigentes. Nesse sentido, a excelência do discurso será um critério superior de exigência. Os argumentos sobre o mundo histórico estão, portanto, sujeitos à intervenção permanente da imaginação criadora. Não são textos re-digidos para depois serem meramente ilustrados como sucede na reportagem televisiva.

Em suma, o enorme potencial do filme documentário (e também do filme de não-ficção, para utilizar uma ex-pressão de Plantinga) como forma de negociar valores, veicular informação e dar-nos a conhecer o mundo his-tórico faz dele, assumidamente,

“(...) um veículo de verdades e enganos, de registo e manipulação, de equilíbrios e ideias e pré-concebidas, de arte e técnica mecânica, de retórica e informação ime-diata. Os filmes de não-ficção são representações com-plexas com uma infinita diversidade e multiplicidade de usos. Tal é a sua complexidade retórica e pragmática que para nos aproximarmos deles não basta uma abordagem meramente teórica: a sua compreensão exige a atitude

crítica e o recurso à história (Plantinga: 1997)”.Concluindo, aceitar a inevitabilidade das contradi-

ções é um primeiro passo para pensar o documentário em profundidade, o que implica não fechar a porta a lógicas de enunciação criativas sustentadas por gramáticas par-ticulares e em especial pela ordem do cinema. Por isso, neste pujante regresso ao real no início do século XXI é de elementar prudência mais a abertura à diversidade do que a defesa de pontos de vista sistematicamente rei-terados numa atitude de resistência. Será esta a posição mais exigente e, também, a mais difícil, porque se obriga a questionar, por um lado, aquilo que na tradição do cine-ma cristalizou em dogma – uma história que ficará para outra altura – e, por outro, a combater a contaminação sem regras nem princípios de dispositivos televisivos cujos resultados estão à vista e se rejeitam.

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [49] RAPSÓDIARA

PSÓ

DIA

MÚSICA SANDY GAGEIRO ENTREVISTA YANN FALQUET , DOS GENTICORUM CONTO «O DUPLO» POR PEDRO EIRAS

REVISTA 20 ANOS DEPOIS DO MURO, POR MIGUEL CARDINA

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [50] RAPSÓDIA

Os concertos do grupo Genticorum são mais como uma longa conversa com o público. Com a ajuda da música que trans-portam conhecemos melhor a região do Quebeque e as pessoas que a construíram. Yann Falquet é o guitarrista do grupo e dispôs-se a explicar-nos o que são as chanson à répondre.

Decidiram enveredar por este género porque gosta-vam ou porque vos corre na família?Interpretamos a canção franco-canadiana tradicional. A maior parte do repertório é constituído por chanson à répondre “canções de resposta”, o vocalista canta e o resto da banda repete ou quem estiver na cozinha no momento! É uma música muito participativa. Há também um vasto repertório de lamentos que normalmente é cantado a solo. Todas estas canções vêm dos franceses que se fi-xaram no Quebeque há 400 anos…a coisa mais fácil de transportares contigo de sítio para sítio – realmente - é um conjunto de canções que duram a viagem e muito para além disso! Quanto a mim, comecei tarde neste universo. Eu era apenas músico, mas o Pascal e o Alex começa-ram ainda crianças. Eu descobri na adolescência e adorei. Apercebi-me que para ser um músico mais completo ti-nha que cantar também…especialmente na música tra-dicional. Com a música tradicional do Quebeque não tens que ser cantor para interpretar, podes sempre responder, treinar as letras, mesmo que sejas envergonhado não faz mal. Um dia se fores muito corajoso podes encontrar uma canção para interpretar e os outros responder.

Recebem algum tipo de apoio institucional para a vossa música?Temos um apoio estatal do Quebeque e do Canada dirigido à música tradicional... temos muita sorte. Ajuda-nos espe-cialmente quando temos que tocar muito longe de casa.

É uma canção que luta para sobreviver? Neste momento não, está numa boa situação. Houve um revivalismo da música tradicional do Quebeque nos anos setenta, com bandas como La Bottine Souriante– identi-ficados com o movimento independentista quebequoise – que trouxe um renovado interesse pela identidade da-quela região e isso popularizou muito os novos grupos. O interesse decresceu nos anos oitenta com os sinteti-zadores modernos - que agora nos parecem velhos - …e houve o referendo pela independência que não passou e isso desmoralizou. A segunda vaga de interesse já surge nos anos noventa mas sem referência política, apenas pela música e está mais sedimentada agora do que nunca.

O Quebeque tornou-se também entretanto um pólo de interesse da música pop…- Sim, com os Arcade Fire…

- É difícil concorrer com a pop…- Ás vezes pergunto-me se é importante dar o salto para esse tipo de popularidade. A música que fazemos não é para agradar a todos, não segue nenhuma moda é como é…está lá há tantos anos. E esperamos que as pessoas gostem porque há muito de sólido e de genuíno nesta música que a faz sobreviver tanto tempo.

CANTA QUE EU RESPONDO SANDY GAGEIRO ENTREVISTA YANN FALQUET DOS GENTICORUM

GENTICORUM

DISCOGRAFIA:

La Bibournoise 2008

Malins Plaisirs 2005

Le Galarneau 2002

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [51] RAPSÓDIA

(a partir da história do navio Argos, recordada por Roland Barthes)

Um dia, apareceu uma pequena mancha no rosto do conde.

– Tendes aí uma pequena mancha – disseram o du-que, o barão e o marquês – mancha, aliás, deveras mui graciosa.

Graciosa ou não, o barão decidiu ir ao médico, não fosse o diabo tecê-las.

– É uma pequena mancha sem importância, senhor conde, mas eu aconselhava a operaçãozinha cirúrgica. Mais vale prevenir.

– Com certeza, senhor doutor.– Aliás, já que fazemos esta pequena intervenção,

podíamos aproveitar para outros pequenos acertos. – Quais acertos, senhor doutor?– Coisa pouca, senhor conde. Acertávamos um pouco

o nariz, por exemplo. Uma coisa de nada. Só um pouco-chinho assim...

E o médico apertava o nariz do conde.– Aliás – continuou – também víamos esta imperfei-

çãozinha nas sobrancelhas. E aqui nos cantos da boca. Estas rugas.

– Acho boa ideia, senhor doutor. Tudo duma só vez, não é?

– Tudo duma só vez. Até lhe tratava do couro cabe-ludo, está a ver estas entradas? E os dentes, como estão os seus dentes?

– Não andam famosos...

– Temos de ver isso. E dávamos um jeito aos múscu-los. Os chumaços naturais do corpo, hum?

– Pode ser...– Diga-me, o senhor conde não teve umas crises de

fígado, aqui há uns tempos? – Nem me lembre, senhor doutor!– Podíamos pensar num transplante. Um fígado no-

vinho, que acha? E também víamos os rins e os pulmões. Com uma transfusãozinha, só para renovar o sangue, também é preciso. Acha bem?

– Para dizer a verdade, o que me custa mais é as dores nas costas.

– Pode-se ver uma prótese. Um transplantezinho de coluna vertebral, se calhar. Como vai o coração do senhor conde?

– Assim, assim, senhor doutor.– Então arranja-se também um coração. Ouça, o

mais simples é fazer uma coisa holística, global. Os ór-gãos todos, o pack completo, sim? Vísceras novas, san-gue novo, pele nova, tudo. Corpo novo. É mais simples e fica mais barato.

– Senhor doutor, e o cérebro?– Que tem o cérebro?– Também vou receber um transplante do cérebro?– E que mal tem receber um cérebro novo? Sabe que

há uma certa mania de sobrevalorizar o cérebro. São coisas da moda.

– Estou nas suas mãos, senhor doutor. Tenho plena confiança.

– Assine aqui, senhor conde. É só uma formalidade.– Com certeza. Mas tenho uma pergunta.– Sim?– Os meus órgãos, senhor doutor, o que vai fazer

com os meus órgãos?– É simples, senhor conde. Com os seus órgãos,

construo uma pessoa igual ao senhor conde. Não é o senhor conde, claro. Afinal, não passará de um conjunto de órgãos ligados uns aos outros, com um coração da irrigar os tecidos, e um cérebro a dominar a marcha e a fala... o costume. Será exactamente igual ao senhor conde, a pensar os pensamentos do senhor conde – mas não será o senhor conde. Valeu?

A operação foi um sucesso, e o conde sentiu-se mara-vilhoso no seu novo corpo: atlético, flexível, viril.

Simplesmente, deste então, o conde atravessa as multidões, atento, inquieto, à espera de reconhecer alguém. Alguém que não é ele, claro, mas apenas um amontoado dos seus órgãos, animado pelo seu antigo coração, pensando os seus velhos pensamentos. Quando encontrar essa pessoa, há-de reconhecê-la por uma pe-quena mancha no rosto. O conde atravessa as multidões, desesperado, à procura de um rosto.

O DUPLO PEDRO EIRAS

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [52] RAPSÓDIA

EM NOVEMBRO DE 1989, APÓS UM ÊXODO IN-tenso de alemães de leste para oeste e um conjunto cres-cente de manifestações populares, começou a ser derru-bado o muro que dividia a Alemanha em duas. A queda do muro simbolizou a derrota histórica do socialismo soviético, mas a transição não foi simples e indolor. Basta ver Goodbye Lenin, de Wolfgang Becker, para se perceber como a voragem da mudança levou a modos impressionantes de recusa e desnorte, que o filme ilustra magnificamente no episódio do telejornal forjado. Pese embora todo o esforço da reunificação, a antiga cortina mantém-se ainda hoje esvoaçante, ora na taxa de de-semprego duas vezes maior no leste, ora nas diferenças culturais que persistem mesmo entre os mais jovens, ora em pormenores deliciosos como os distintos semáforos em Berlim – uns bonecos com chapéu ou sem chapéu –, que evocam nessa diferença a perturbante memória recente da cidade.O número deste mês da revista L’Histoire traz-nos um dossier que ajuda a compreender e a situar essa cicatriz de betão de 155 quilómetros de comprimento e 28 anos, 2 meses e 27 dias de vida. Edgar Wolfrum alinha «sete questões sobre um muro», explicando o contexto em que foi erguido e as razões da sua queda. Étienne Fran-çois, por sua vez, esclarece numa entrevista algumas das especificidades da ex-RDA. Ao mesmo tempo que considera que a organização política dessa «ditadura pe-dagógica» – como lhe chama mais à frente Emmanuel Droit – permanece ainda hoje visível, François nota que «é porque a RDA está efectivamente morta que pode existir o luxo da nostalgia».

Para além da reflexão colectiva de alguns historiadores sobre a Europa e a Alemanha pós-muro, destaque-se ainda um texto de Guillaume Mouralis sobre a vaga de processos e condenações de responsáveis da RDA na década de noventa, bem como o interessante artigo de Droit dedicado ao «comunismo no quotidiano». Na verdade, um óptimo aperitivo a anteceder a leitura de O Mundo Perdido do Comunismo. Uma História Oral da Vida Quotidiana do Outro Lado da Cortina de Ferro, de Peter Molloy, acabado de lançar pela Bertrand, e que procura narrar os diferentes quotidianos na Alemanha Oriental, Checoslováquia e Roménia.O livro é uma espécie de guião elaborado por Molloy para uma série homónima da BBC e, logo nas primeiras páginas, o autor esclarece a intenção de mostrar – mais do que a repressão, a vigilância policial ou o activismo dos dissidentes – o modo como as pessoas viveram vidas «perfeitamente normais», cuja recordação nos aparece hoje frequentemente tingida pela nostalgia. Isto é claro nas palavras da actriz Corinna Harfouch: «não reconhe-ço o meu país nas descrições que dele faz a imprensa e os meios de comunicação social. Não tivemos só Outono e Inverno. Também tivemos Primavera e Verão. A vida não girava apenas em torno da Stasi.»Um outro entrevistado, o médico Kurt Starke, observa que os jovens e as jovens de leste tinham uma vida sexu-al mais satisfatória do que os seus e as suas congéneres do outro lado do muro. Os estudos que efectuou com-provam mais altas taxas de orgasmo na RDA e mostram que dois terços das mulheres jovens do país o atingiam «quase sempre» durante uma relação sexual. Um certo

liberalismo no que concerne ao corpo – patente na prá-tica elevada do nudismo e num ambiente familiar mais aberto – tomou forma a partir de finais dos anos sessen-ta, e terá sido marcante, na opinião de Starke, para o que ocorreu em 1989-1990.Mas o socialismo de Estado imposto na RDA foi tam-bém um foco de ruína moral. Se na União Soviética se estima que tenha existido um agente do KGB por cada seis mil pessoas, na Alemanha de Leste, incluindo todos os informadores a tempo parcial, existiu aproximada-mente um informador por cada seis pessoas. Talvez

VINTE ANOS DEPOIS DO MURO MIGUEL CARDINA

REVISTA L’HISTOIRE ED. 346, OUT. 2009

PUBLICADO NO BLOGUE CAMINHOS DA MEMÓRIA HTTP://CAMINHOSDAMEMORIA.WORDPRESS.COM/

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [53] RAPSÓDIA

nunca nenhuma sociedade se tenha vigiado tanto a si própria. Como conclui Molloy, «o facto de muitos cola-borarem com a Stasi, fosse qual fosse o nível de coacção, é um dos motivos por que fazer as pazes com o passado tem sido tão difícil para muitos cidadãos da RDA.» O autor entrevista mesmo uma dissidente que soubera depois da queda do muro que fora espiada pelo marido desde adolescente e elementos de uma banda punk cujo baixista servia de informador da Stasi.Por outro lado, e uma vez que se entendia que a clas-se operária havia tomado o poder no país, qualquer demonstração de revolta era vista como uma forma mais ou menos directa de auxiliar o inimigo capitalista. Quando, a 17 de Junho de 1953, cerca de meio milhão de trabalhadores entraram em greve exigindo melhores salários, a demissão do governo e eleições livres, tanques russos invadiram Berlim Oriental e dispararam a matar sobre os manifestantes. Também a fuga foi uma forma de contestação do regime: até à construção do muro, três milhões de pessoas haviam desertado do lado orien-tal e muitos outros conseguiram fazê-lo já depois de 1961. Cerca de duas centenas de pessoas foram mortas a tentar transpor a barreira de betão, perante guardas que tinham ordens para disparar.Foi precisamente a possibilidade e o desejo de viajar – a par da fúria contra as eleições fraudulentas e a fraca prestação económica – que levaram à queda do regime. Às sete da tarde de dia 9 de Novembro de 1989, Gün-ter Schabowski anunciou em conferência de imprensa a entrada em vigor de um decreto que possibilitava viajar para o Ocidente. Questionado sobre quando entraria em

vigor, Schabowski respondeu «imediatamente», sem se aperceber das consequências da palavra. Duas horas de-pois, os postos fronteiriços estavam inundados de gente disposta a abandonar o país. Seis horas mais tarde, o muro começava a cair..

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VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [54] FICHA TÉCNICA

REVISTA VÍRUS #7NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009

DIRECÇÃO JOÃO TEIXEIRA LOPES

EDIÇÃO GRÁFICA LUÍS BRANCO

CONSELHO EDITORIAL ANA DRAGO

ANDREA PENICHE JORGE COSTA

JOSÉ SOEIROMANUEL DENIZ SILVA

MARIANA AVELÃSNUNO TELES

PEDRO SALESRITA SILVA

RUI BORGES

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO CARLA LUÍS

FERNANDO CRUZJORGE CAMPOS

MIGUEL CARDINAPEDRO EIRAS

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