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REVISTA REDAÇÃO PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 14/04/2013 ————————————————————————————————————————————— 1 12 Cliques da vigilância (JOÃO ANTÔNIO DE MORAES) Se a internet e a tecnologia trazem facilidades e informações, a falta de privacidade parece tema irreversível. Gostos e preferências são desvendados em um clique e os dados, sem consentimento, serão utilizados para oferecer serviços UM CLIQUE e estamos na página inicial do perfil de Paulo no Facebook. Outro clique e temos acesso às informações de que Paulo é casado, gosta de futebol, fez uma viagem recentemente, tem duas irmãs - Marina e Mariana -, um sobrinho de 1 ano e 5 meses chamado Pedro, que costuma assistir determinados seriados de TV, escuta músicas de Tom Jobim e Caetano Veloso, entre outras particularidades. Mais um clique e é possível saber que Paulo acabou de sair de casa para jantar com sua esposa em um restaurante localizado no bairro da Mooca em São Paulo. Com três cliques (e, em determinados casos, até menos) é possível traçar um quadro das preferências de Paulo, dos lugares que costuma frequentar, as relações pessoais que mantém, de seus hábitos financeiros e, até mesmo, saber o local em que está naquele exato momento. Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos destacar que diretores de supermercados sabem o que um determinado indivíduo consome, o mesmo acontecendo com os dirigentes de bancos, que têm todos os dados de suas movimentações financeiras ou das companhias telefônicas, que têm a gravação de suas conversas. Empresas vinculadas a leitores de textos digitais têm acesso a hábitos de leitura - podendo, assim, direcionar propagandas de acordo com o perfil de interesse do usuário. Câmeras de vigilância registram informações sobre os indivíduos, em grande parte das vezes sem seu consentimento. GPSs armazenam os percursos percorridos pelos indivíduos. Identificadores biométricos registram a entrada e saída dos indivíduos de determinado local. Computadores, câmeras de vigilância, cartões de crédito, smartphones, GPSs, identificadores biométricos, chips de identificação, entre outras tecnologias informacionais, estão constituindo uma "sociedade da vigilância". Essa expressão caracteriza a sensação de observação gerada pela presença de tecnologias na sociedade, as quais possuem um grande potencial de coleta e armazenamento de informação. Conforme os exemplos citados, na "era da informação" temos acesso a esses dados pessoais sem dificuldade. A facilidade de acesso a este tipo de informação coloca em discussão o tópico da privacidade. O PRINCIPAL mecanismo que representa as tecnologias informacionais é o Facebook. E o Brasil lidera o avanço do uso dessa rede social em todo o mundo, com crescimento de 146% no total de usuários em 2012. Em junho último, o país chegou a 54 milhões de usuários ou 5,6% do total da rede no mundo. Os dados são da Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador norte- americano.

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Page 1: REVISTA REDAÇÃO 12 PROFESSOR: Lucas Rocha … · localizado no bairro da Mooca em São Paulo. Com três cliques (e, em determinados casos, até menos) é possível traçar um quadro

REVISTA REDAÇÃO

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 14/04/2013

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12

Cliques da vigilância (JOÃO ANTÔNIO DE MORAES)

Se a internet e a tecnologia trazem facilidades e informações, a falta de privacidade parece tema irreversível. Gostos e preferências são desvendados em um clique e os dados, sem consentimento, serão utilizados para oferecer serviços

UM CLIQUE e estamos na página inicial do perfil de Paulo no Facebook. Outro clique e temos acesso às informações de que Paulo é casado, gosta de futebol, fez uma viagem recentemente, tem duas irmãs - Marina e Mariana -, um sobrinho de 1 ano e 5 meses chamado Pedro, que costuma assistir determinados seriados de TV, escuta músicas de Tom Jobim e Caetano Veloso, entre outras particularidades. Mais um clique e é possível saber que Paulo acabou de sair de casa para jantar com sua esposa em um restaurante localizado no bairro da Mooca em São Paulo. Com três cliques (e, em determinados casos, até menos) é possível traçar um quadro das preferências de Paulo, dos lugares que costuma frequentar, as relações pessoais que mantém, de seus hábitos financeiros e, até mesmo, saber o local em que está naquele exato momento.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos destacar que diretores de supermercados sabem o que um determinado indivíduo consome, o mesmo acontecendo com os dirigentes de bancos, que têm todos os dados de suas movimentações financeiras ou das companhias telefônicas, que têm a gravação de suas conversas. Empresas vinculadas a leitores de textos digitais têm acesso a hábitos de leitura - podendo, assim, direcionar propagandas de acordo com o perfil de interesse do usuário. Câmeras de vigilância registram informações sobre os indivíduos, em grande parte das vezes sem seu consentimento. GPSs armazenam os percursos percorridos pelos indivíduos. Identificadores biométricos registram a entrada e saída dos indivíduos de determinado local.

Computadores, câmeras de vigilância, cartões de crédito, smartphones, GPSs, identificadores biométricos, chips de identificação, entre outras tecnologias informacionais, estão constituindo uma "sociedade da vigilância". Essa expressão caracteriza a sensação de observação gerada pela presença de tecnologias na sociedade, as quais possuem um grande potencial de coleta e armazenamento de informação. Conforme os exemplos citados, na "era da informação" temos acesso a esses dados pessoais sem dificuldade. A facilidade de acesso a este tipo de informação coloca em discussão o tópico da privacidade.

O PRINCIPAL mecanismo que representa as tecnologias informacionais é o Facebook. E o Brasil lidera o avanço do uso dessa rede social em todo o mundo, com crescimento de 146% no total de usuários

em 2012. Em junho último, o país chegou a 54 milhões de usuários ou 5,6% do total da rede no

mundo. Os dados são da Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador norte-americano.

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O Facebook é considerado, hoje, uma das principais ferramentas para se conseguir acesso a informações pessoais e que posteriormente serão utilizadas para oferecer serviços

A privacidade é caracterizada no escopo dos estudos tradicionais (Samuel Dennis Warren [1852-1910] e Louis Dembitz Brandeis [1856-1941], 1890; Ferdinand David Schoeman, 1984; Judith Wagner DeCew, 2006, entre outros) como a informação pessoal que é passível de acesso apenas ao próprio indivíduo ou a quem ele considere confiável. Nesse cenário, o tópico da privacidade constitui um problema, por exemplo, quando informações pessoais são acessadas e/ou divulgadas sem o consentimento do indivíduo a quem se referem, via fotografia, jornal ou TV - uma vez que estes são meios pelos quais as informações pessoais podem ser tornadas públicas sem autorização deste.

O domínio digital

A máxima que prega que quem domina a informação detém o poder está mais atual do que nunca em tempos de tecnologia digital. Atualmente, é quase imperceptível e ilimitado o controle que as empresas exercem sobre os indivíduos. Muitas adquirem mais conhecimento a respeito da vida das pessoas do que elas próprias imaginam. Em função dos mecanismos tecnológicos, cada dia se torna mais fácil invadir a individualidade dos cidadãos, pois, afinal, em todas as atividades deixamos pistas digitais. Há exemplos diversos e relacionados às mais corriqueiras atividades. As empresas que têm acesso às movimentações de cartões de crédito não encontram dificuldades em descobrir quais os lugares frequentados pelas pessoas, passando por restaurantes, bares, lojas, cinemas ou jogos de futebol. Há casos que chegam a requintes de detalhes. Por serem altamente reveladoras, as redes sociais também são monitoradas. Alguns sites, como o Google e o YouTube, têm acesso gratuito, pois, a partir deles, é possível elaborar estatísticas em relação às expectativas de consumo, o que é fundamental para o mercado. Para conseguir isso, eles utilizam uma técnica bastante eficiente, pois sob o manto de uma aparente vocação de utilidade pública acabam produzindo e atualizando, em tempo real, imensos bancos de dados, que, posteriormente, funcionam como uma eficiente forma de controle.

Veja o texto de nosso colunista João Teixeira sobre o assunto na página do Facebook, intitulado "Leviatã Digital":www.facebook.com/RevistaFilosofiaCienciaEVida

O surgimento das tecnologias informacionais, principalmente a internet, aumentou a dificuldade de discutir o tópico da privacidade. Com a internet, os indivíduos que na época da TV eram apenas receptores de informação passaram a ser produtores de informação, disseminando-a por meio das tecnologias, que possibilitam que as informações - dentre elas as que se referem a algo pessoal dos indivíduos - ganhem amplitude global rapidamente. Diante do contexto indicado, há espaço para a privacidade na "era da informação"? Em 1964, o escritor americano Louis Kronenberger (1904-1980), em seu livro The cart and the horse, considerou que com o surgimento da TV a privacidade tinha tomado seu golpe final. Com as tecnologias informacionais, Kronenberger ficaria ainda mais certo de seu veredicto. A privacidade teria chegado a seu fim?

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Diferentemente de Kronenberger, consideramos que a privacidade ainda não tomou seu golpe final. Contudo, a noção de privacidade tradicional parece não se encaixar no que é admitido como privado atualmente pelos indivíduos. Entendemos que a noção tradicional de privacidade, enquanto "vida privada", íntima, pertencente apenas ao sujeito e acessível somente a ele/a ou a quem ele/a considere confiável, está se alterando. Essa alteração ocorreria, por exemplo, em virtude de interações interpessoais realizadas por meio de interfaces digitais. Nesse contexto, a noção de privacidade tradicional parece não ser adequada para a compreensão do limite daquilo que é admitido como privado. Em tais interações, realizadas, principalmente, no âmbito das redes sociais na internet, as pessoas se expõem sem que essa exposição seja acompanhada de um sentimento de invasão de sua privacidade.

COMPUTADORES,

CÂMERAS DE VIGILÂNCIA, CARTÕES DE CRÉDITO, SMARTPHONES, GPSS, CHIPS DE IDENTIFICAÇÃO, ENTRE

OUTRAS TECNOLOGIAS, CONSTITUEM UMA "SOCIEDADE DA VIGILÂNCIA"

Assim, uma primeira dificuldade na análise da privacidade na "era da informação" consiste em analisar a privacidade em um contexto no qual as informações concebidas no passado pelo senso comum como privadas se tornam explícitas e acessíveis em ambientes virtuais. Nesse sentido, como considera Luciano Floridi (2006a), as tecnologias informacionais estariam redesenhando os limites do que é considerado privado pelos indivíduos. Mas como delimitar as fronteiras entre público/privado? Dentre as principais dificuldades para tal delimitação seria a falta de um limite fixo, como diz Rafael Capurro (2005, p. 40): "[...] alguma coisa que atualmente parece uma violação da privacidade pode ser amanhã considerada como uma situação normal. Por exemplo, a série de TV Big Brother era questionada, do ponto de vista moral, como uma ameaça à privacidade - quando de fato, muito das vezes, é apenas entediante".

Os supermercados sabem qual produto o cliente consome, podendo direcionar propagandas de acordo com o perfil de interesse do usuário

As câmaras de vigilância, ao mesmo tempo que prestam um serviço no que se refere à segurança dos indivíduos, acaba assumindo um caráter negativo da

privacidade

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A tecnologia do smartphone também ajuda a constituir a chamada "sociedade da vigilância", que se caracteriza pela sensação de estar sendo observado

Apesar da di culdade de identi car o

que é considerado como privado pelos indivíduos, julgamos que tal demarcação poderia ser obtida por meio da análise a partir da perspectiva dos sistemas complexos (João Antonio de Moraes, 2012; Maria Eunice Quilici Gonzalez e João Antonio de Moraes, 2013).

De acordo com Moraes (2012, p. 85), à luz da perspectiva dos sistemas complexos, a privacidade passa a ser analisada, enquanto convencionalmente constituída, a partir das propriedades que são significativas aos indivíduos inseridos em certos grupos, diferindo conforme o contexto. Além disso, a localização do indivíduo se faz relevante em virtude do seu modo de conduta, tanto no mundo "real" quanto na rede, que reflete o meio em que está inserido. Nesse sentido, a análise da privacidade seria estabelecida em função das características pessoais, culturais,

profissionais, entre outras, relacionadas com aquelas presentes em outros indivíduos pertencentes ao mesmo grupo ou sistema, sendo tais características dignas de serem protegidas.

Por exemplo, enquanto para um determinado grupo de indivíduos (principalmente adolescentes e aqueles que têm maior proximidade com o uso de tecnologias informacionais) o acesso à informação por outros indivíduos (mesmo desconhecidos) acerca do local em que está, do filme que vai assistir, do ingresso do jogo de futebol que acaba de comprar, do início ou fim de relacionamento, não constitui uma invasão a suas privacidades, para outros o simples uso da biometria em uma biblioteca, por registrar determinados hábitos e preferências, pode causar uma sensação de invasão de privacidade.

INTERAÇÃO

A partir da inserção das tecnologias informacionais na vida cotidiana, os indivíduos interagem entre si, independentemente das distâncias físicas, formando redes de relações, nas quais estão presentes concepções do que é significativo e, por essa razão, digno de ser protegido. Constituem- se, então, inter-relações nos planos indivíduo-indivíduo, indivíduo-grupo, grupo-grupo; sendo que tais planos denotam uma localidade, na qual se constitui a noção de privacidade e sobre a qual tal noção retroage (por exemplo, culturalmente) de modo a condicionar as concepções e ações dos indivíduos. Nesse sentido, a análise dos limites do "contexto" no qual a privacidade é admitida extrapola as relações físicas (corpóreas) entre indivíduos, incluindo, também, as redes de relações constituídas em âmbitos virtuais.

TÓPICO DA PRIVACIDADE CONSTITUI UM PROBLEMA, POR EXEMPLO, QUANDO

INFORMAÇÕES PESSOAIS SÃO ACESSADAS E/OU DIVULGADAS SEM O CONSENTIMENTO DO INDIVÍDUO

O AVANÇO das invasões de privacidade no universo digital e o consequente crescimento das infrações nessa área fizeram a Câmara Federal aprovar os projetos de lei nº 2.793/11 e 84/99, que tornam crimes algumas condutas na internet. os PLs definem mais rigor na punição para

esses crimes, com penas de reclusão de um até cinco anos.

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Buscamos apresentar um método de análise a partir do qual poderíamos identificar os limites do que é considerado privado pelos indivíduos e, assim, defender a possibilidade de analisar a privacidade no contexto da "era da informação". Porém, tal defesa se torna cada dia mais difícil em virtude da inserção desenfreada de tecnologias informacionais na vida cotidiana, que estariam contribuindo para a constituição de uma sociedade "100% transparente". Um aspecto intrigante dessas tecnologias é sua inserção visando que o indivíduo não atente para sua presença. São elas:

- recursos visuais (câmeras de vídeo);

- identificadores biométricos (reconhecimento de voz, digital, íris);

- rastreadores de veículo (GPS, Sem Parar);

- grampos eletrônicos (grampo telefônico);

- tarjetas de identificação por radiofrequência - RFID (presentes em crachás, passaporte, cartão de crédito etc.);

- espiões digitais (presente no Kindle, por exemplo).

As informações sobre os hábitos pessoais dos indivíduos, que antigamente podiam ser obtidas a partir do acesso ao seu lixo residencial, atualmente podem ser adquiridas de maneira rápida e confiável por meio dos dispositivos elencados. Entendemos que a familiaridade e a aceitação tácita das tecnologias informacionais pelos indivíduos, em sua vida cotidiana, contribuem para a adesão de uma transparência das informações sobre seus hábitos. Conforme destacado por Capurro (2005, p. 42), em sua visão crítica acerca da inserção das tecnologias na vida cotidiana dos indivíduos, a noção de privacidade adotada pelo senso comum estaria sendo substituída por uma de transparência: "Seja transparente! Então, você será um bom cidadão". Como equacionar a relação transparência/privacidade, dado que a transparência seria em prol da segurança pública?

SEGURANÇA

O entendimento de que a transparência dos cidadãos para o Estado contribuiria para a manutenção da segurança pública pode envolver um caráter negativo da privacidade. Nesse contexto, proteger informação pessoal equivaleria a não contribuir para a segurança coletiva. Idealmente, a transparência das informações sobre os indivíduos para o Estado poderia, sim, contribuir para a conservação da

segurança pública, uma vez que não haveria segredos, facilitando a previsão de futuras ações moralmente inaceitáveis. Além disso, o livre acesso às informações dos indivíduos poderia produzir relações pessoais "sinceras".

ENTENDEMOS QUE A NOÇÃO TRADICIONAL DE PRIVACIDADE E INTIMIDADE, ENQUANTO "VIDA

PRIVADA", PERTENCENTE APENAS AO SUJEITO E ACESSÍVEL SOMENTE A ELE, ESTÁ SE ALTERANDO

Contudo, entendemos que, mais do que pontos positivos, a transparência dos indivíduos poderia trazer consequências negativas para a dinâmica da sociedade. O possível acesso às informações pessoais poderia gerar uma sensação de vigilância constante, interferindo na espontaneidade de suas ações. Tal acesso poderia, também, constituir um clima de hostilidade entre grupos que possuem interesses distintos, interesses esses que estariam disponíveis para conhecimento. Por exemplo, se atualmente, com o pouco acesso à informação, grupos de torcidas rivais conseguem organizar encontros para confronto, a transparência de informações sobre certo tipo de preferências ampliaria o potencial de ocorrências desse tipo de situação.

O escritor norte-americano Louis Kronenberger, ainda em 1964, afirmou que o surgimento da

televisão seria responsável pelo fim da privacidade

Quando surgiu, a série de TV Big Brother era questionada e criticada, do ponto de vista moral, como uma ameaça à privacidade. No entanto, hoje é vista apenas como um

programa entediante

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Apesar dos exemplos dados se referirem a um estágio ideal de transparência de informação pessoal quase-total, julgamos que, sem uma reflexão crítica acerca dos avanços da inserção de tecnologias informacionais na sociedade, sua constituição não é impossível. Simon Garfinkel (2009, p. 69), por exemplo, destaca a tentativa do governo americano de desenvolver um dossiê digital dos indivíduos, a partir da reunião de bancos de dados que contêm grande quantidade de informações sobre todos os cidadãos.

Esse projeto ficou conhecido como "fusão de dados". Apesar do autor considerar que esse projeto está longe de ser implantado, entendemos que ele seria um caminho para tal transparência: "[...] se um sistema de fusão de dados não funciona como desejado pode ser que seus algoritmos sejam falhos. Mas o problema, também, pode ser escassez de dados.

Da mesma forma, se o sistema está funcionando bem, injetar mais dados poderá fazer com que funcione melhor. Em outras palavras, as pessoas que desenvolvem e usam esses sistemas estão, naturalmente, inclinadas a querer uma entrada cada vez maior de dados, independentemente da eficiência do sistema.

Assim, os projetos de fusão de dados têm uma tendência intrínseca de invasão. Em seu artigo de 1994, Clarke concluiu que as trocas "entre o interesse do Estado no controle social e o interesse dos cidadãos individuais na liberdade de interferência não razoável são constantemente resolvidas em prol do Estado".

A tecnologia, como dimensão da vida humana

As atividades humanas estão ficando, a cada dia, mais dependentes da tecnologia e, portanto, susceptíveis às suas vulnerabilidades e seus efeitos. a Filosofia ajuda a reconhecer a tecnologia como dimensão da vida humana e, não apenas, como um evento histórico. o controle exercido pelas ferramentas proporcionadas pelos avanços no setor vem sendo alvo de análises de inúmeros filósofos. Alguns estudiosos desenvolvem um paralelo deste domínio com o livro Leviatã, escrito por thomas Hobbes (1588-1679). a obra defende a existência de um governo absoluto, central e forte, que, efetivamente, toma conta de tudo. Hoje, a internet pode ser considerada o Leviatã Digital, uma vez que exerce total controle sobre nossos atos. Martin Heiddeger (1888-1976), por sua vez, analisa a questão da tecnologia, afirmando o caráter técnico que domina o mundo moderno. ele alerta para o fato de que o homem se apropria dela e, ao se apropriar, esquece de si e se torna pobre em pensamento, perdendo suas raízes. o nosso tempo, segundo Heidegger, representa o fim do paradigma que, se por um aspecto, é positivo no que se refere aos benefícios tecnológicos, por outro é pobre em relação ao valor das coisas. Andrew Feenberg considera a tecnologia como a "estrutura material" da Modernidade. Mas ela, ainda de acordo com Feenberg, não é apenas um instrumento neutro, pois enseja valores antidemocráticos originários da sua vinculação com o Capitalismo, que observa o mundo em termos de controle. Para Feenberg, os valores e interesses das classes dominantes estão representados no desenho tecnológico. a tecnologia não constitui uma entidade autônoma. a conquista da natureza que ela traduz não é "metafísica" (como afirma Heidegger), mas começa com a dominação social.

Tendo em vista a concepção do projeto de "fusão de dados", a tendência a uma sociedade "transparente" seria inevitável? Em outras palavras, retomando a questão inicialmente colocada, o fim da privacidade seria apenas uma questão de tempo? Essa questão ainda se coloca, mas as evidências indicam que sim. Por ser evidente, faz-se relevante indagar: podemos e/ou queremos fazer algo para evitar esse fim?

Quem é mais próximo da tecnologia não acha invasão de privacidade alguém ter acesso a informações do tipo qual filme ele

vai assistir

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Mesmo com a dificuldade promovida pela inserção das tecnologias informacionais na ação humana, entendemos que, se iniciada uma reflexão acerca dos impactos de tal inserção, ainda seria possível conservar a privacidade, mesmo no âmbito virtual. Nesse contexto, o papel do filósofo é de grande importância, pois é necessária uma reflexão crítica das consequências morais e políticas de tais tecnologias na ação dos indivíduos. Este tipo de reflexão ainda está se iniciando no Brasil, mas, atualmente, tem sido um dos principais objetos de estudos da Filosofia da Informação e da Ética Informacional fora do país (e.g.: Capurro, 2005; 2006; Floridi, 2006a, 2006b).

A discussão acerca da privacidade no contexto da "era da informação" é constituída mais por questões do que respostas. Isso em virtude do caráter de novidade que as tecnologias aplicaram a este assunto e, também, da constante alteração que as normas que regem os assuntos ligados à privacidade têm sofrido. É preciso, então, revisitar este assunto constantemente. Além disso, discussões acerca da privacidade no âmbito virtual e da interação entre indivíduos/ tecnologias informacionais deveriam ser assuntos-chave na agenda filosófica dos novos rumos que a Filosofia tem seguido na "era da informação".

REFERÊNCIAS

CAPURRO, r. Privacy. an intercultural perspective. In: Ethics and Information Technology, v. 7, p. 37-43, 2005. ______. Towards an ontological foundation of Information ethics. In: Ethics and Information Technology, v. 8, n. 4, p. 175-186, 2006. DeCEW, J. (2006). Privacy. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/privacy/> acesso em: 27 ago. 2012. GARFINKEL, S. L. Informações do mundo unificadas. In: Scientific American Brasil, n.77, p. 64-69, 2008. FLORIDI, L. The ontological interpretation of informational privacy. In: Ethics and Information Technology, v. 00, p. 1-16, 2006a. ______. (2006b). Four challenges for a theory of information privacy. Disponível em: <http://www.philosophyofinformation.net/publications/pdf/fcfatoip.pdf>. acesso em: 1 ago. 2011. GONZALEZ, M. e. Q.; MoraeS, J. a.Complexidade e privacidade informacional: um estudo na perspectiva sistêmica. In: GONZALEZ, M. e. Q.; ANDRADE, r. C. S.; PELLEGRINI, a. M. (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. (Coleção CLE). Campinas: Unicamp, (no prelo) C. S.; PELLEGRINI, a. M. (orgs.). Autoorganização: estudos interdisciplinares. (Coleção CLE, v. 00). Campinas: Unicamp, p. 00-00, 2013. KRONENBERGER, L. The cart and the horse. new York: alfred a. Knopf, 1964. LEWIN, r. Complexidade: a vida no limite do caos. rio de Janeiro: rocco, 1994. MAINZER, K. Thinking in complexity: the complex dynamics of matter, mind, and mankind. nova York: Springer, 1997. MoraeS, J. a. Implicações éticas da "virada informacional na Filosofia". Unesp, 2012 (dissertação de mestrado). MorIn, e. Ciência com consciência. rio de Janeiro: Bertrand russel, 2005. SCHoeMan, F. (ed.). Philosophical dimensions of privacy: an anthology. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.z

JOÃO ANTÔNIO DE MORAES é doutorando em Filosofia pelo CLE-UNICAMP, Campinas-SP. Mestre e Graduado em Filosofia pela

Universidade Estadual Paulista Júlia de Mesquita Filho (UNESP) , Marília E-mail: [email protected]. Revista FILOSOFIA, Abril de 2013.

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O autismo ético do Jornalismo (CLÓVIS DE BARROS FILHO)

NO CAMPO do Jornalismo há um mecanismo de autopreservação marcado pelo constante exercício de uma dupla classificação das ações da imprensa. O Jornalismo é pródigo em autocríticas e indicações de procedimentos, na mesma medida em que se protege de ataques e críticas externas - filosóficas, sociológicas, jurídicas, políticas etc. O exercício da autocrítica garante a impressão de "autonomia", de independência e do livre procedimento dos jornalistas, afastando do debate as reais condições de sua prática de trabalho - assédio de políticos, patrocinadores e dos donos dos meios de comunicação onde trabalham.

A análise das principais críticas que os jornalistas fazem do Jornalismo revela uma surpreendente unidade temática: a escolha das notícias, dos argumentos utilizados e das técnicas de investigação dos "fatos". Em outras palavras, a crítica dos jornalistas ao Jornalismo se apresenta como um mecanismo de legitimação dos procedimentos adotados pelos dominantes da mídia, e serve como comparação na análise de condutas classificadas como desviantes por destoarem da orientação técnica e política que convém a imprensa.

Condição expressa de ação no Jornalismo, os procedimentos de pesquisa e de escrita se manifestam na aparente inexistência de referências literárias e jornalísticas alternativas, escondendo, assim, as estruturas ideológicas que compõem seu trabalho. Difundida pelos próprios jornalistas para assegurar sua existência enquanto profissão, a crítica da profissão, por seus principais representantes, é garantia de independência e existência. A crítica à profissão é um procedimento adquirido na medida em que a sociedade trava conhecimento com as condições específicas de produção e prática do Jornalismo. Os alunos que entram no primeiro ano de Comunicação, com habilitação em Jornalismo, mostram uma espécie de "encanto" com a profissão, oriundo, ainda, de sua vinculação a universos sociais, nos quais o prestígio do "homem letrado", segundo uma longa e complicada tradição, ainda é alto.

À medida que se familiarizam com os procedimentos jornalísticos, praticando reportagem, edição e texto desde os primeiros meses de faculdade, o processo se inverte. O aprendizado da prática acompanha a crítica da prática, respeitando-se os cânones do convencionado "bom Jornalismo". A apresentação da norma atual como absoluta retira a dimensão histórica, portanto material, de sua produção, privilegiando a impressão de atemporalidade das regras da prática e, portanto, sua posição além de qualquer crítica. As modificações históricas, na prática correta da profissão, mostram os elementos arbitrários presentes na concepção do que era, em cada momento, o melhor desempenho possível da profissão. As regras atuais, portanto, devem ser localizadas, histórica e socialmente, como construções específicas de um momento particular. A história, a cada momento, se torna regra na definição de novas regras do jogo, em oposição às antigas, e sua constante incorporação pelos participantes do campo.

Existe um evidente paradoxo entre a autonomia crítica do jornalista em relação à própria atividade e sua concomitante adequação aos mesmos mecanismos que critica. Esse efeito de legitimação é relacionado, todo o tempo, com o discurso dos dominantes do campo jornalístico. Dessa forma, o que está em jogo é muito mais do que a propagação de um modelo de Jornalismo. Cada corrente pretende alcançar a dominação tendencial na mídia, destituindo os concorrentes de sua razão de ser. Isto é, que seu capital profissional é menor, falível, portanto inútil.

O estabelecimento das práticas cotidianas da profissão de comunicador é um complexo fenômeno, influenciado por fatores diversos de ação - regulados por uma conjunção de fatores, que escapa tanto ao seu desejo quanto ao seu contexto político e econômico. As notícias não são estabelecidas por critérios objetivos e mensuráveis, passíveis de articulação por parte do profissional. Ao contrário, a maior parte das ações se apresenta ao sujeito como a consequência óbvia de uma ação anterior, ignorando o arbítrio existente na adoção de uma escolha. Esse fenômeno resulta da interação entre o espaço ocupado pelo indivíduo em um determinado campo e os seus costumes aprendidos durante sua experiência de trabalho.

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Também na produção da notícia, o erro frente aos costumes é um mau encontro, uma inadequação entre a formação pessoal e moral do jornalista não engajado e as condições sociais objetivas estabelecidas pelo campo jornalístico. Afinal, a simples inadequação entre as formas de se produzir a notícia pode levar os jornalistas veteranos a condenar eticamente os jornalistas novatos ou subversivos.

Não há espaço para a criatividade, como na Publicidade e Propaganda, nem para inovações no estilo de apresentar a mensagem, como na Literatura. Os valores éticos do Jornalismo no Brasil estão encerrados em si mesmo - imersos nos próprios vícios ordinários do trabalho e fechados em seus mundinhos para críticas de outras instituições sociais, igualmente relevantes. Não há espaço para críticas, nem para mudanças. Com o fim da necessidade do diploma de Jornalismo há esperança de mudanças de condutas e valores significativos em um futuro próximo.

CLÓVIS DE BARROS FILHO é professor de Ética da ECA/USP e conferencista do Espaço Ética. www.espacoetica.com.br. Revista FILOSOFIA, Abril de 2013.

A importação de médicos (EDITORIAL O ESTADO DE SÃO PAULO)

Em conversa informal com jornalistas nos intervalos da reunião de cúpula dos Brics, em Nova Délhi, a presidente Dilma Rousseff anunciou que o governo alterará as regras de homologação de diplomas de médicos formados no exterior, com o objetivo de aumentar a oferta de profissionais no mercado e reduzir a disparidade da qualidade dos serviços de saúde entre os Estados.

Pelas regras em vigor, a homologação dos diplomas é feita por meio de um exame nacional. Composto por provas objetivas, discursivas e práticas, ele exige conhecimentos básicos. Antes, a homologação era feita de forma independente por universidades públicas e cada uma utilizava critérios próprios.

"Tem de ampliar o número de médicos. Temos um dos menores números de médicos per capita (1,6/1.000 habitantes). A população reclama de falta de médico e de atendimento. O que ela quer é um médico na hora em que precisa e que tenha pronto atendimento", disse Dilma. Segundo ela, as novas regras estão sendo examinadas pelo Ministério da Saúde e pela Casa Civil e o governo ainda não decidiu se elas serão introduzidas por meio de decreto presidencial ou por outro instrumento legal.

As associações médicas criticaram a iniciativa e anunciaram que tentarão barrar, nos tribunais, a proposta do governo para facilitar a entrada de médicos estrangeiros no País. Segundo os conselhos profissionais, a maioria dos médicos estrangeiros que querem trabalhar no Brasil carece de preparo, por ter estudado em faculdades de medicina de segunda linha em países como Bolívia, Peru, Argentina, Colômbia, Equador e Cuba. Dos 677 profissionais que se submeteram às provas teóricas e práticas exigidas para revalidação de diploma, em 2011, 88% foram reprovados. Em 2010, de 628 candidatos foram aprovados 2.

"A contratação de um médico despreparado melhora as estatísticas, mas não melhora a saúde da população", diz o presidente da Associação Paulista de Medicina, Florisval Meinão. "Desde o descobrimento do Brasil não temos políticas de longo prazo. Abrir a porteira para aumentar o número de médicos de uma hora para outra é uma aposta de política de curto prazo. E é uma aposta errada, porque importar médicos não resolve o problema", afirma o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Aloísio Miranda.

Assim como o CFM, os 27 conselhos regionais de medicina também alegam que, se faltam médicos nas regiões mais pobres, o problema se deve à remuneração insuficiente. "Precisamos de uma carreira de Estado, como a de promotor de Justiça, juiz e militar. O mercado de trabalho na área de saúde pública é ruim. Onde o mercado não conseguiu colocar o médico, o Estado tem que entrar e prover", diz Aloísio Miranda. "Estudos mostram que não há falta de profissionais, mas uma distribuição desigual. Vamos oferecer um profissional mal preparado só porque a população vive em áreas afastadas?", afirma o presidente do CFM, Roberto D'Ávila.

Os números dão razão às entidades médicas. Segundo o levantamento Demografia Médica no Brasil, divulgado pelo CFM em 2011, o Brasil tem 371.788 médicos - o equivalente a 19,2% dos médicos das três Américas. O País está atrás apenas da China (1,9 milhão), EUA (793 mil), Índia (640 mil) e Rússia (614 mil). O Estado de São Paulo tem 106.536 profissionais, seguido pelo Rio de Janeiro, com 57.175, e Minas Gerais, com 38.680.

Já Roraima tem apenas 596 médicos; o Amapá, 643; e o Acre, 755. Segundo os conselhos e as associações médicas, isso se deve ao fato de que os médicos se estabelecem onde a remuneração é alta e nas cidades onde fizeram residência. Por ter maior número de serviços de saúde, hospitais de ponta, clínicas especializadas e laboratórios com equipamentos de última geração, essas cidades oferecem mais oportunidades profissionais e melhores condições de trabalho.

Em vez de impor novas regras de forma unilateral, para facilitar a entrada de médicos estrangeiros no Brasil, o governo deve criar mecanismos que viabilizem o exercício da medicina nas regiões mais pobres do País.

EDITORIAL. Texto originalmente publicado na pág. A3 do jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, Abril de 2013 e reproduzido pelo

Portal do Cremesp.

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Muito além do nosso eu (CARLOS SÃO PAULO)

Cientista brasileiro, Miguel Nicolelis constrói uma analogia entre o

comportamento social do movimento "Diretas Já" e os princípios

neurofisiológicos adotados por ele

MIGUEL Nicolelis, brasileiro, está entre os 20 maiores cientistas do mundo. Ao tentar explicar para o leitor mais leigo o funcionamento do cérebro a partir de experimentos com ratos, macacos e microeletrodos, também empregou diversas metáforas na obstinação de dar a todos uma compreensão do que está sendo descrito – o que caracteriza a linguagem literária. O livro Muito além do nosso Eu começa com a narrativa do movimento brasileiro chamado Diretas Já.

Muito além do nosso Eu

Autor: Miguel Nicolelis Editora: Companhia das Letras Número de páginas: 552

Ele constrói uma analogia entre o comportamento social daquela multidão e os princípios neurofisiológicos por ele adotados e estudados. Cita que esse movimento só vingou porque não foi só de uma pessoa bradando contra a ditadura. Uma flagrante comparação entre o comportamento da ―sociedade dos neurônios‖ e a sociedade dos humanos. Dessa forma, mostrou a diferença entre a atuação de um único neurônio e uma massa crítica deles. Será que existem alguns neurônios que, como Nicolelis, façam o papel do ―Espírito do Tempo‖? Esse é um termo que ficou conhecido quando Hegel, filósofo alemão, descreveu o momento na história da humanidade em que o conjunto de todo o conhecimento humano, acumulado ao longo dos tempos, se apresenta por meio de um ou mais desses humanos. Foi dessa forma que ele fez a diferença entre duas correntes de neurocientistas: a dos ―localizacionistas‖ e a dos ―distribucionistas‖. Os ―localizacionistas‖ acreditam que o cérebro tem áreas especializadas em certas funções mentais. Para Nicolelis, eles são herdeiros da Frenologia, uma pseudociência que buscava prever habilidades psicológicas a partir das assimetrias cranianas. Os ―distribucionistas‖, como ele, consideram que o cérebro trabalha como um todo

integrado de processamentos paralelos distribuídos em populações de neurônios como unidade funcional. Semelhante à Psicologia de Jung, que coloca o homem dentro de um contexto maior, que é a sua civilização e os seus símbolos pessoais e de sua família, norte das atitudes de cada indivíduo.

Para a Neurociência de Nicolelis, o senso e a imagem corporal do Eu são criações fluidas e plásticas, que podem mudar a cada instante. Ele estudou crianças vítimas de má-formação congênita, sem membros, e verificou que elas continuavam a sentir braços e pernas fantasmas, desde a infância. Isso mostrou a ele que o cérebro humano é capaz de gerar um modelo muito bem definido do corpo e do senso do Eu, mesmo na ausência de sinais somáticos derivados de componentes corporais.

O AUTOR DIZ QUE O MOVIMENTO DIRETAS JÁ VINGOU PORQUE NÃO FOI SÓ DE UMA PESSOA BRADANDO CONTRA A DITADURA. UMA FLAGRANTE COMPARAÇÃO ENTRE O COMPORTAMENTO DA “SOCIEDADE DOS NEURÔNIOS” E A

SOCIEDADE DOS HUMANOS

Assimilamos até ferramentas artificiais como verdadeiras extensões contínuas de nossos corpos biológicos. Temos um cérebro capaz de simular, além de um mapa de nossos corpos, também uma representação do próprio mundo, uma de nossas habilidades mais valiosas. Para um bom violinista, por exemplo, o cérebro precisa incorporar o violino como extensão

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dos seus braços. Pelo fato de o cérebro assimilar tudo que lhe é familiar, a dor do amor é mais do que real. perder o objeto de nossa afeição é como amputar uma parte do senso do Eu.

Compartilhamos nossas vidas como um verdadeiro amálgama de corpo e seres que estão na ativa e, dinamicamente, mantidos no espaço neuronal do cérebro de cada um de nós. por isso, a fantasia do fim do mundo, como um desejo de morte solidária e democrática, é compensatória para esse medo da finitude, que é lembrado quando um ano se finda. Pois, quando alguém morre e outros ficam, os que ficam sofrem as dores cruciantes da saudade. Essa fantasia faz essa dor não acontecer, já que todos partiriam juntos.

As pesquisas de Nicolelis se orientam para criar uma interface entre o cérebro e as máquinas. Abreviou com as iniciais iCM. Nos mostra que máquinas podem ―ler pensamentos‖ e traduzi-los em comandos computacionais, fazendo com que um primata, em um laboratório, controle um robô do outro lado do mundo. fala de um futuro próximo em que o homem poderá conduzir seu veículo e comunicar-se com outras pessoas por meio dos seus pensamentos. pessoas portadoras de paraplegia teriam condições de se movimentar novamente graças a um exoesqueleto sob o comando do pensamento, ajustado ao corpo como se fosse um traje.

A humanidade vai muito além de um controle da consciência em que a vontade atua modificando estruturas mecânicas. Somos cada um o todo, onde o outro é um pedaço de si e, por isso, amar a si mesmo é também amar o outro. Quando será que desvendaremos os mistérios do sempre egocêntrico cérebro humano?

CARLOS SÃO PAULO é médico e psicoterapeuta Junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. www.ijba.com.br. Revista PSIQUE, Abril de 2013.

Os intelectuais e o poder (SÉRGIO SANANDAJ MATTOS)

"O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e como tal constituída historicamente" ¹

NA CONSERVAÇÃO da ordem social, na representação de ideias, opiniões, visões de mundo, na formação de novas mentalidades, na crítica e oposição ao sistema de poder, enfim, a questão das relações entre os intelectuais e a política, mais precisamente o poder, jamais deixou de estar no centro dos debates e atenções. Neste artigo, como seu título sugere, breve análise e interpretação sobre os intelectuais e o poder, um tema histórico que suscita paixões e polêmicas. No livro Microfísica do poder, de Michel Foucault, encontramos o título ―Os intelectuais e o poder‖ para um debate entre o próprio Michel Foucault e outro intelectual francês, Gilles Deleuze. Revisitemos Foucault, cuja arqueologia do saber recoloca em evidencia as articulações entre o saber e o poder. Fala-se, hoje, no Brasil em certa judicialização da política. Convém lembrar nessa controversa discussão a concepção não juridica do poder, de Foucault, cuja premissa básica é de que ―(...) as relações de poder não se passam fundamentalmente nem no nível do direito nem no nível da violência‖. Nesse aspecto, como lembra a análise de Roberto Machado, ―nem são basicamente contratuais nem unicamente repressivas‖ (MACHADO, 1984, p. XV). Dessa forma, o modelo jurídico que faz da lei a manifestação essencial do poder, pressupondo o indivíduo como sujeito de direitos naturais ou poderes primitivos, deve ser abandonado para que se consiga fazer uma análise concreta das relações de poder (FOUCAULT, 1984, p. 62). Michel Foucault (1926-1984), um dos pensadores mais influentes, nos remete a pensar os intelectuais e o poder. Em Foucault não existe uma teoria geral do poder. Não existe o poder de forma estática, unitária e global. O poder não é um objeto natural, é

uma prática social, segundo Foucault. O debate do que seja intelectual é algo bastante controverso. Intelectuais têm sido vulgarmente designados por aqueles que pensam. Mas pensar é próprio do homem e o que separa um intelectual e um não intelectual é um tipo de logicidade de pensamento, coerência sistemática, formas de explicar o mundo, hoje. O mundo mudou. A relação entre o intelectual e massas mudou. E, teorias construídas como caminho da emancipação do homem, mesmo repaginadas, são bastante discutidas. É de se esperar, então, que o papel do intelectual, homem livre, movido por ideias e sonhos, tenha mudado.

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“A obra de Michel Foucault exemplica a Sociologia na promoção da desnaturalização e do estranhamento no estudo dos fenômenos sociais”¹

Um outro autor, Norberto Bobbio, no livro Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens na sociedade contemporânea, lembra que ―(...) os intelectuais sempre existiram, pois sempre existiu em todas as sociedades, ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos mediante o uso da palavra‖ (BOBBIO, 1997, p. 11).

A concepção do que seja intelectual se apresenta como algo bastante discutível no campo das ideias. Há inúmeras tipificações de intelectuais, como expressam autores como Norberto Bobbio, Michel Foucault, Gramsci, entre outros. Contudo, vale notar alguns reconhecidos tipos de intelectuais, como o intelectual revolucionário, o intelectual puro, o intelectual engajado de Sartre, o intelectual orgânico de Gramsci, o intelectual que cumpre uma função organizadora na sociedade, entre outros. É bastante sugestiva a interpretação na obra de Bobbio que diz: ―(...) da profunda relação entre o saber e a ação transformadora, aproximação com a sociedade, constante observação crítica em relação à compreensão da realidade, algumas tipologias sobre as possíveis relações entre intelectuais e poder indicam (1) os próprios intelectuais estão no poder (jacobinos, bolcheviques), (2) os intelectuais exercem sua influência sobre o poder, estando fora dele, elaborando propostas, (3) os intelectuais exercem a função de legitimar o poder constituído, (4) os intelectuais críticos do poder por vocação, os antagonistas do poder, seja qual for a forma assumida pelo poder, porque o poder sob qualquer forma é instrumento de opressão, de não liberdade (segundo tipologia de L. A. Coser no livro Men of ideas, de 1995. In: BOBBIO, N. ―Os intelectuais e o poder. Dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea‖. Tradução Marco Aurélio Nogueira. SP: Editora Unesp, 1997, p. 112).

Foucault não tem uma concepção global e geral do poder. Ao invés de uma teoria, Foucault propõe uma ―analítica do poder‖, pois o conceito de poder desenvolvido por Foucault é bastante distinto das ideias e teorias clássicas: ―(...) ele é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se possui. Ele se exerce, se disputa (MACHADO, 1984, p. XV). As análises genealógicas do poder de Foucault evidenciam a existência de formas de exercício de poder diferentes do Estado. Essas análises produziram um importante deslocamento com relação à ciência política que limitava ao Estado o fundamental de sua investigação. Em Foucault não existe uma teoria geral do poder. Não existe o poder de forma unitária e global. O poder não é um objeto natural, é uma prática social, segundo Foucault. O que Foucault chama de ―microfísica do poder‖ significa tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua.

Em ―Os intelectuais e o poder‖, conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, na obra Microfísica do poder, Michel Foucault faz toda uma análise sobre o papel do intelectual. O intelectual tradicional é bastante criticado e este se caracterizava por sua posição burguesa. De modo oposto, o intelectual marxista, rejeitado, maldito, reduzido à miséria. O intelectual com seu discurso, suas verdades, faz parte do sistema de poder. O discurso é também uma forma de poder. É uma prática que revela as formas de politização (FOUCAULT, 1984, p. 69-78).

Foucault mostra as várias formas de politização e como se conduzem. Segundo o próprio Foucault as massas não necessitam dos intelectuais. Elas possuem um saber próprio. Chama a atenção em sua visão crítica que os intelectuais fazem parte do sistema de poder, e isso dada à ideia de agentes de ―consciência‖. O próprio discurso faz parte do sistema, e a análise teórica de Foucault revela que o discurso é uma forma de poder, no sentido de uma força capaz de sujeitar as pessoas e de canalizar emoções e razões. É a partir deste modo que o conhecimento se reveste na análise de Foucault em objeto de poder. Acresça-se, ainda, o fato de que alguns intelectuais se apresentam como agentes de conscientização, como se a massa fosse incapaz de compreender e de ter seu próprio conhecimento. Chama Foucault atenção para o fato de que as massas não precisam mais dos intelectuais. Elas possuem uma autonomia e um saber próprio. Não precisam de algo que as violenta e ao mesmo tempo as aliena.

Para o autor de Microfísica do poder, todas as formas de repressão, que são múltiplas, se totalizam facilmente do ponto de vista do poder, mas as pessoas só percebem as realidades próximas, tais como escola, comissariado, prisão etc. O que é poder?, se indaga Foucault. Uma coisa enigmática, visível e invisível ao mesmo tempo. Para Foucault existe toda uma análise tradicional dos aparelhos do Estado. Sabe-se quem explora, mas quem exerce o poder? E onde exerce o poder? O certo é que, como afirma Foucault, o poder é difuso, mas há todo um investimento de desejo de poder. E cita, como exemplo, os investimentos revolucionários que se dão em nome de uma classe.

Os investimentos modelam e fazem com que o poder exista e difunda-se. Os que têm interesse de exercer não exercem. Surge assim um outro aspecto bastante interessante na análise de Foucault, que é a relação entre o poder e o interesse. Toda a concepção intelectual de pensamento é a sujeição de uma parte da sociedade, seja por parte de obediência e dispor de poder de uma classe. Qualquer pensamento deve questionar o poder a partir de uma concepção jurídica (lei). É pensar como lei. O sujeito que obedece. Para Foucault todo o poder se define pela obediência. Toda a dominação pelo seu efeito. Desse modo, Foucault caracteriza a forma que se expressa o poder de obediência. E, isto em se pensando com Marx, a classe dominante se torna mais eficaz quando tiver mais consenso.

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O sujeito sujeitado, o que obedece pelo consenso ou pela revolução. Seja na perspectiva liberal ou marxista, sempre teremos uma relação de poder a partir da obediência. Daí, que tanto numa perspectiva como noutra, o que resulta é que toda dominação é um efeito de obediência. Se dominação é poder de obediência, como frisa Foucault, então por que ele é facilmente aceito? Porque somente exercendo parte de si mesmo é que o poder é tolerado.

Do ponto de vista marxista privilegia-se o operariado. Marx separa dominantes e dominados. Dicotomiza o poder. ―O que eu encontro na realidade é muito mais do que na teoria; ou a teoria se esgotou‖. A história do poder jurídico é por ideias de expressão jurídica até chegarmos à sofisticação da razão, passando por T. Hobbes, Locke etc. Marx através da razão procura identificar o futuro.

A questão das relações entre os intelectuais e a política, mais precisamente o poder, jamais deixou de estar no centro dos debates e atenções

Essa ideia da razão é uma ideia apolínea. Busca o aperfeiçoamento. É uma razão de Apolo, da perfeição, limpeza, razão. Mas Foucault introduz aquele que saiu derrotado em uma das verdades. Que a subversão da razão introduz uma ideia dionisíaca de libertinagem, festas etc. Introduz a necessidade de poder de outra forma, sem privilegiar uma classe. Sua análise começa pelos que querem o poder e os que não querem. Para Foucault o poder traça o limite à liberdade. Mas a proposta de Foucault é estudar a liberdade através do poder. O exercício do poder desde a Idade Média se formula através do direito, da fórmula juridicopolítica, que é o código que prescreve o que pensar, se desenvolvendo e aperfeiçoando sobre as instituições.

O direito de exercer o poder é do privilegiado. Não são todos, segundo Marx. É o direito de quem está no poder. Segundo Foucault, querer entender o poder é preciso entender a ideia do direito. Não é teoria, propõe a analítica do poder. Pensar o poder, sem o rei. Pensar o poder, sem o Estado. Enquanto os liberais começam a discutir o poder através do Estado, Foucault começa de baixo. Para Foucault o Estado é a forma terminal do poder. Foucault não pensa o poder na linha domina e é dominado.

Mas Foucault não está preocupado sobre uma verdade, já que propõe e faz toda uma reflexão sobre o poder. Quando mais avança o pensamento, a ciência, a sociedade se sujeita. Se não construo uma liberdade social, devo construir uma liberdade individual, que também passa por relações de poder.

Poder para Foucault são estratégias cujo esboço geral se cristalizam quando toma corpo na elaboração das leis e do Estado (que é o esboço das estratégias estatais). E poder são estratégias, diz Foucault. A concepção poder-estratégias resulta em dizer que não está no Estado, provem da família, do Estado, das instituições e de todos os lugares porque provem de todos os lugares. Assim, Foucault rejeita e desmonta a concepção política jurídica que dá ênfase ao poder no Estado. O poder perpassa. O poder é o nome dado a uma situação estratégica numa determinada sociedade. Por isso diz Foucault que a política não é uma trégua e sim a guerra promulgada por outros meios. De modo que a relação poder-política corresponde a dizer que o poder é estratégias (provem de vários lugares), perpassa as diversas situações, e a política a guerra prolongada por outros meios. As relações de poder não são superestruturais em Foucault, mas possuem lá o papel de produtor. O poder vem de baixo, não havendo oposição binária dominadores e dominados porque as grandes dominações são poder hegemônico pela intensidade de todos os afrontamentos.

INTENCIONALIDADE

As relações de poder são intencionais e não subjetivas, diz Foucault. E, ―todo o poder implica em resistências‖. A resistência está na relação do poder. Está em seu bojo. Não existem o local do poder nem o local das resistências. Resistir em Foucault significa plural. Implica dizer resistências. Nem o maior de todos os totalitaristas irá conseguir acabar com as resistências. É o interlocutor irredutível.

Foucault: “As relações de poder não se passam fundamentalmente nem no nível do direito nem no nível da

violência”

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A crítica e a analítica de Foucault resultam em substituir o poder enquanto forma jurídica e política em aparelhos e unidades individuais. Foucault propõe o poder como sendo uma rede de relações que atravessam instituições e aparelhos sem se localizarem nele. Já resistências atravessam as estratificações e as liberdades individuais. Em suma, Foucault propõe substituir o poder enquanto forma jurídica porque este é o aparelho. Propõe passar por algumas regras para entender as estratégias do poder. As regras que propõe Foucault são: imanência, variações contínuas duplas, conhecimento e a da polivalência. Ainda, a respeito do poder, mostra Foucault que o poder disciplinador está em toda a sociedade. O panóptico é o controle total sobre a sociedade. O poder panóptico instaurou-se nos espaços sociais. Caracterizando-se, portanto, em novas formas de controle, observação, vigília. O grande olho está em toda a sociedade. O panóptico está dentro de cada um. O poder panóptico se desenvolveu porque se desenvolveu a era do bio-poder. Só é vivo quem produz. O Estado do bem-estar é o Estado de guerra. Se mata porque se morre de fome. E se morre pelos aparelhos repressivos. O poder disciplinador orienta a sociedade. Em troca da subsistência eu aniquilo com a sua vontade. O grande problema para Foucault é na sociedade moderna a luta contra o poder disciplinador. É a liberdade. Enfim, ―(...) caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar‖ (A. Machado, poeta espanhol).

* Foucault » No ensaio Microfísica do poder, seu autor Michel Foucault assinala ―(...) o poder não é um objeto natural, mas uma prática social historicamente constituída‖. * Microfísica do poder » Leitura indispensável à compreensão do fenômeno poder, esta obra organizada por Roberto Machado,

lósofo e professor, especialista em Nietzsche, Deleuze e Foucault, expõe a questão do poder, um dos desa os formulados pelas análises de Foucault.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, N. Os intelectuais e o poder. Dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 1ª ed. SP: Editora Unesp, 1997. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 4ª ed. RJ: Edições Graal, 1984. ___________ Os intelectuais e o poder – conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In: Foucault, Michel. Microfísica do poder. 4ª ed. RJ: Edições Graal, 1984. LEBRUN, G. O que é poder? Coleção Primeiros Passos, nº 24, SP: Editora Brasiliense/Abril Cultural, 1984. MACHADO, R. Por uma genealogia do poder. In: Foucault, Michel. Microfisica do poder, p.vii-xxiii. RJ: Edições Graal, 1984. NOGUEIRA, M. A. Potência, limites e seduções do poder. SP: Editora da Unesp, 2008.

SÉRGIO SANANDAJ MATTOS é sociólogo, professor e ex-diretor da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (Asesp).

É coautor do livro Sociólogos & Sociologia. Histórias das suas entidades no Brasil e no mundo. E-mail: [email protected]. Revista FILOSOFIA, Abril de 2013.

Algumas razões para se deprimir (LUIZ FELIPE PONDÉ)

DIANTE da questão de Hamlet, "ser ou não ser, eis a questão", a resposta talvez seja "não ser". Deprimir-se ou resistir? Dias assim, melhor dormir. Mas, como a vida continua, insistimos. Um tratado de "Crítica da Razão Deprimida" deveria começar pela descrença na democracia.

Como crer na democracia quando sabemos que a popularidade de nossa presidente é alta? Se o pastor Feliciano não tem o perfil para o cargo, tampouco ela o tem. Lembramos então do que dizia o líder inglês durante a Segunda Guerra, Winston Churchill: "Quando falo com os eleitores, duvido da democracia". Por quê? Como "o povo" pode continuar crendo na economia quando ela já dá sinais de queda há algum tempo? Claro, quem entre aqueles que vivem graças a bolsas famílias pode entender que uma mentalidade entre o varguismo e o comunismo (como a da nossa presidente e a do restante do PT, que continua na sua marcha para transformar o país num país comunista) não pode fazer nada pela economia do país? E, mais, que, se a economia vai para o saco, as bolsas também vão?

Claro, o problema é que na democracia dependemos da maioria, e esta é quase sempre estúpida. Sei que muitos não concordam com essa ideia e, mais do que isso, entendem que há algo de "sagrado" na sabedoria do povo. Mas, sei também que quem afirma isso, conhecendo um pouco de história, o faz por má-fé, ou simplesmente, por mais má-fé ainda. Temo que esteja sendo redundante, mas a redundância é uma vantagem evolutiva em meio às obviedades contemporâneas. Outra coisa que me faz suspeitar de que os deprimidos têm razão me ocorre quando ouvimos gente supostamente inteligente falar coisas como "a comunidade internacional decidiu X". O que vem a ser isso mesmo? Onde ela se encontra? Na ONU? Esta estatal internacional mais corrupta do que a república da banana? A ONU é uma mistura de circo com mensalão. Um cabide de emprego para países de Terceiro Mundo.

Como crer em quem crê numa "comunidade internacional"? A "comunidade internacional" só funciona quando tem interesses comerciais em jogo. E olhe lá. Qualquer decisão da "comunidade internacional" no âmbito moral (como, por exemplo, a partir de hoje estão proibidas a fome, a tortura, a violência contra os mais fracos) é tão séria quanto a declaração de que Papai Noel deve existir porque, do contrário, estamos indo contra o direito à fantasia infantil. Imagino que os neandertais que são contrários à publicidade infantil concordariam com uma ideia boba como essa.

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Mas, é claro, toda vez que alguém diz acreditar na "comunidade internacional" não o faz por ingenuidade, mas, sim, porque este alguém ganha algo com isso, mesmo que seja apenas fama de bonzinho. E a decisão britânica de criar um órgão do governo para censurar a mídia? Claro, dirão os mesmos que acreditam na "comunidade internacional" que a mídia deve ser "impedida" de circular ideias preconceituosas e ideologicamente perversas. O caso britânico -resultado da baixaria de alguns "funcionários excessivos" determinados de um jornal específico- não justifica a criação deste órgão fascista para controlar a mídia.

Deduzir a necessidade de controle da mídia do fato de alguns jornalistas terem colocado escutas na vida de cidadãos é como decidir colocar câmeras em todas as salas de aula porque existe risco de abusos por parte de professores e alunos. O grande erro histórico foi não perceber que a vocação fascista não era um traço só de Mussolini e Hitler, mas sim de todas as propostas de que a política e a educação sejam irmãs gêmeas, ou, dito de outra forma, de que a "política deva fazer moral".

Esta ideia é típica da tradição política contemporânea baseada na premissa de que a política deve "construir um homem melhor". Neste sentido, a esquerda é absolutamente fascista e, como ela venceu na cultura, na educação e nas ciências humanas como um todo, não há esperanças. É impressionante como "os bonzinhos" de uns dias para cá foram tomados por um amor meloso pelas suas empregadas domésticas. Seria isso uma forma de atestar pureza racial (desculpe, moral) para a burocracia fascista de nossos dias?

LUIZ FELIPE PONDÉ, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela

Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

Formaturas espetaculares (ROSELY SAYÃO)

O CONSUMO e, consequentemente, a publicidade, intensificaram-se muito nas últimas décadas. Anos atrás, a publicidade veiculada nas mídias era bem diferente.

O núcleo principal de quase todas elas eram as características dos produtos anunciados, que eram bem enaltecidas. As peças publicitárias tentavam convencer o consumidor de que o produto que vendiam era especial e, por isso, deveria ser o escolhido entre tantos produtos similares. Outro foco era a marca, que funcionava mais ou menos como um indicador de qualidade.

Além disso, o público-alvo dos anúncios eram os adultos. Eles eram considerados os consumidores por excelência porque detinham o poder de decisão de compra. Hoje, muitas vezes assistimos a um comercial e ao final dele não lembramos bem qual foi o produto anunciado. É que o foco das peças atuais não é o produto, e sim o estilo de vida prometido a quem o comprar. Se você comprar o carro tal, terá êxito na vida etc. Essa foi uma mudança e tanto, porque hoje todos consomem determinados estilos de vida.

Outra mudança radical foi o público-alvo da publicidade: saiu o adulto e entrou o jovem. Ou o adulto travestido de jovens. É que, mesmo sem ter poder aquisitivo, são o jovem e a criança que quase sempre decidem o que os pais devem comprar. Na era do consumo, os jovens têm consumido de tudo e em exagero. O alcance da publicidade é maior do que o dos objetos anunciados. E os pais têm aceitado tal situação, mesmo quando consideram exagerado. E meu exemplo de hoje a esse respeito são festas de formatura do ensino médio.

Li uma reportagem informando que festas desse tipo chegam a custar o valor equivalente ao de um apartamento. Quando li a notícia, fui checar com conhecidos, com formandos e na internet. Há festas para quase todos os bolsos e há, sim, festas que custam uma pequena fortuna, cujo valor relativo os jovens não têm condições de avaliar.

Eles não estão interessados em celebração, despedidas etc. Estão querendo mais é o tal estilo de vida que vem sendo anunciado por quase todas as peças publicitárias. Nossa pergunta deve ser: "Por que bancamos essas atitudes deles?". Será por querermos a mesma coisa?

ROSELY SAYÃO, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

Mulheres infelizes (CONTARDO CALLIGARIS)

FRANÇOIS Mauriac publicou "Thérèse Desqueyroux" (Cosac Naify) em 1927; o romance foi um sucesso e, provavelmente, valeu ao seu autor o prêmio Nobel. A história é levada para o cinema (pela segunda vez) por Claude Miller, com o título, no Brasil, de "Therese D." (para que ninguém se atrapalhe com a pronúncia).

Tolstói publicou "Anna Karenina" (Itatiaia) entre 1873 e 77. O romance é levado para o cinema (pela sexta vez) por Joe Wright, com o título original. Gustave Flaubert publicou "Madame Bovary" (Penguin Companhia e outras editoras) em 1857. O romance foi levado oito vezes para o cinema. No Rio e em São Paulo, ainda é possível assistir a "Anna Karenina", de Joe Wright, e a "Therese D.", de Claude Miller, no mesmo cinema.

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Depois disso, recomendo se enfiar na cama com uma cópia de "Madame Bovary" e ler até o amanhecer. Ou, então, na mesma cama, assistir a um DVD de "Madame Bovary" na versão de Vincente Minnelli (1949 --inesquecível Jennifer Jones perdida em devaneios) ou na de Claude Chabrol (1991). Receio que a versão de Jean Renoir, de 1933, tenha envelhecido, mas que cada um escolha. É sábio juntar as três histórias? Em termos; se você for um homem casado, prudência: afinal, trata-se de três mulheres infelizes com o marido, que é provedor, fiel, gentil e insosso. Para mim, a modernidade poderia (ou deveria) começar, exemplarmente, com essas três histórias de insatisfação feminina, ou seja, com a descoberta de que as mulheres têm sonhos e devaneios que vão além de um marido devoto, de uma família e de uma vida ao abrigo da necessidade - em outras palavras, com a descoberta de que existe um desejo feminino.

Claro, talvez alguns homens prefiram pensar que o desejo feminino seja apenas uma necessidade do capitalismo moderno. As mulheres insatisfeitas seriam as consumidoras deslumbradas, perdidas pelos grandes magazines, das quais a sociedade de consumo precisa. É o que deixa esperar "O Paraíso das Damas", de Emile Zola, de 1882-83, (Estação Liberdade). Mas o desejo feminino é mais do que isso, e sua aparição implica uma séria crise masculina. No fundo, trata-se de uma descoberta só: as mulheres têm desejos, e os homens não fazem suas companheiras tão felizes quanto eles imaginam ter feito a felicidade de suas mães (repito: IMAGINAM). Não é por acaso, aliás, que, nos três romances, a maternidade não faz a felicidade das mães. A descoberta do desejo feminino acompanha a descoberta da inadequação e da insuficiência dos homens, como maridos e também como filhos.

Para Anna Karenina e para Emma Bovary, outros homens do que seus maridos se tornam desejáveis. Mas são todos medíocres (Vronsky como Rodolphe, como Léon). Tanto Anna quanto Emma são julgadas por seus narradores. As duas acabam mal, e talvez essa punição final de mulheres e mães "indignas" tornasse os romances aceitáveis (embora os dois tenham escandalizado seus contemporâneos). Thérèse é mais moderna. À diferença de Emma, ela é uma verdadeira leitora, não uma vítima de romances melados; por isso mesmo, ela não conhece a raiz de sua insatisfação com a vida que lhe cabe. Como a gente, Thérèse não sabe o que quer. E ela não sonha propriamente com outro homem: ela é mais profundamente infiel e traidora do marido, pois ela sonha com algo maior do que um amante, ela quer algo que ela não saberia dizer sem citar "Os Frutos da Terra", de Gide, ela quer uma outra intensidade da vida.

SPOILER: pule este breve parágrafo se você não conhece a história. No fim do romance (e do filme), Thérèse não será punida pela infidelidade de seu desejo, ao contrário, ela parece se transformar na nova mulher do século 20, livre e urbana. Mauriac era cristão e tradicionalista. Em 1935, ele não se aguentou e escreveu a continuação de "Thérèse Desqueyroux", "La Fin de la Nuit" (o fim da noite), em que Thérèse acaba pior do que suas antecessoras, Emma e Anna.

O jovem Sartre defendeu Thérèse, acusando Mauriac de julgar, perseguir e condenar a própria personagem que ele tinha criado, ou seja, de não respeitar a liberdade de Thérèse Desqueyroux, sua adorável criatura. Concordo com Sartre. Fato curioso, tanto "Anna Karenina" quanto "Therese D." foram maltratados por críticos que respeito. Os dois filmes têm méritos diferentes ("Anna Karenina", em particular, é genial no conceito e na arte), mas talvez eles tenham mesmo um "defeito" comum: contam histórias que não acalentam os ouvidos masculinos.

CONTARDO CALLIGARIS, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New

School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

O seu estilo de vida já foi projetado (DAVID CAIN)

ESTOU volta ao mundo do trabalho. Acabei em um trampo de engenharia com salário bem legal, e a vida parece que finalmente está voltando ao normal depois de nove meses viajando. Por eu viver um estilo de vida bastante diferente enquanto estive fora, esta súbita transição à existência de trabalho ―das 9-às-5― tornou claro algo sobre ela que eu nunca tinha percebido.

Desde o momento em que o emprego foi oferecido a mim, eu fiquei notavelmente mais descuidado com o meu dinheiro. Não burro, só pensando um pouco menos na hora de puxar a carteira. Pequeno exemplo: estava comprando cafés caros de novo, apesar deles não serem minimamente tão bons quanto os excepcionais cafés brancos comuns da Nova Zelândia, e de eu não poder apreciá-los no pátio ensolarado de um café. Quando estava viajando, estas compras eram menos descuidadas, e eu as aproveitava melhor. Não estou falando de compras grandes e extravagantes. Estou falando de gastos casuais, promíscuos, de pequena escala, em coisas que não acrescentam muito na minha vida. E olha que eu só vou receber daqui a duas semanas.

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Em retrospecto, eu acho que sempre fiz nas épocas em que estive bem empregado — gastar alegremente nas épocas de ―vacas gordas―. Ter passado nove meses vivendo como um mochileiro sem renda, eu não consigo não ficar mais atento a este fenômeno, agora que vejo ele acontecendo. Eu acho que faço isso porque sinto ter readquirido uma certa estatura agora que sou novamente um profissional amplamente remunerado, o que parece me dar direito a um certo nível de esbanjamento. Há uma curiosa sensação de poder quando você coloca no balcão duas notas de 50 sem um traço de pensamento crítico. É gostoso poder exercer o poder do dinheiro quando você sabe que ele vai ―crescer de novo― bem rápido na sua horta.

O que eu estou fazendo não é nada diferente. Todo mundo parece fazer isso. De fato, eu acredito que apenas retornei à mentalidade consumidora normal depois de passar algum tempo longe dela. Uma das descobertas mais surpreendentes que fiz durante a minha viagem foi que eu gasto muito menos por mês viajando por países estrangeiros (incluindo países mais caros do que o Canadá, onde moro) do que eu gastava quando tinha moradia e trabalho fixos. Eu tinha muito mais tempo livre, estava visitando alguns dos lugares mais bonitos do mundo, conhecendo gente nova a torto e a direito, estava calmo, em paz e tendo momentos inesquecíveis, e de alguma forma isso me custava muito menos do que o meu humilde estilo de vida e trabalho 9-às-5 em uma das cidades menos caras do Canadá. Parece que o meu dinheiro rendia muito mais quando eu estava viajando. Por quê?

Uma cultura de desnecessários

Aqui no ocidente, uma cultura de gastos desnecessários foi propositalmente cultivada e mantida em público pelos grandes negócios. Empresas de todos os tipos de setores apostam alto na tendência do público de ser descuidado com o seu dinheiro. Elas tentam encorajar o hábito público de cometer gastos casuais ou desnecessários da forma que puderem.

No documentário The Corporation, uma psicóloga de marketing discutiu um dos métodos que ela usava para aumentar as vendas. A equipe dela conduziu um estudo sobre o efeito que os pedidos insistentes das crianças tinham sobre a probabilidade dos pais comprarem um brinquedo para elas. Descobriram que 20% a 40% das compras de brinquedos não teriam ocorrido se as crianças não tivessem enchido o saco dos pais. Uma a cada quatro visitas a parques de diversão não teria acontecido. Eles usaram estes estudos para direcionar o marketing dos seus produtos diretamente às crianças, incentivando-as a insistir aos seus pais que comprem.

Esta campanha de marketing sozinha representa milhões de dólares gastos graças a uma demanda que foi completamente fabricada. ―Você pode manipular os seus clientes a querer, e portanto comprar, os seus produtos. É um jogo.― —Lucy Hughes Este é somente um pequeno exemplo de algo que vem acontecendo há muito, muito tempo. As grandes empresas não ganharam seus milhões promovendo honestamente as qualidades dos seus produtos, elas ganharam ao criar uma cultura de centenas de milhões de pessoas que compram bem mais do que precisam e tentam afastar insatisfação com dinheiro.

Nós compramos coisas para nos alegrar, para não ter a sensação de ficar para trás em relação aos nossos semelhantes, para concretizar a visão infantil do que a nossa vida adulta seria, para comunicar o nosso status ao mundo, e por diversas outras razões psicológicas que têm muito pouco a ver com o fato do produto ser útil ou não. Quanta tralha você tem em casa e que não usa há mais de um ano?

O real motivo da jornada de trabalho de oito horas

A ferramenta definitiva das empresas para sustentar esse tipo de cultura é desenvolver as 40 horas de trabalho por semana como o estilo de vida normal. Com essas condições de trabalho, as pessoas precisam ―viver― à noite e nos fins de semana. Esta configuração nos deixa naturalmente mais propensos a gastar muito com entretenimento e conveniências, já que o nosso tempo livre é tão escasso. Faz poucos dias que eu voltei ao trabalho, e já percebi que as atividades mais integrais estão rapidamente sumindo da minha vida: caminhar, me exercitar, ler, meditar e escrever. A similaridade evidente entre estas atividades é que elas custam muito pouco ou nenhum dinheiro, mas exigem tempo. Pausa contemplativa durante o dia? Não Subitamente, eu tenho bem

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mais dinheiro e bem menos tempo, o que significa que eu tenho muito mais em comum com o trabalhador norte-americano típico do que tinha há poucos meses. Enquanto estava fora, eu não pensaria duas vezes antes de decidir passar o dia explorando um parque nacional ou parar por algumas horas para ler um livro na praia. Agora esse tipo de coisa está fora de questão. Fazer qualquer uma dessas coisas me tomaria um dia inteirinho do meu precioso fim de semana!

A última coisa que eu quero fazer quando chego em casa é me exercitar. Também é a última coisa que eu quero fazer depois do jantar ou antes de dormir ou assim que eu acordo, e esses seriam os únicos momentos possíveis para fazer isso num dia de semana. Esse parece ser um problema simples com uma solução simples: trabalhar menos para ter mais tempo livre. Eu já provei para mim mesmo que posso ter um estilo de vida que me preenche com menos dinheiro do que eu ganho hoje. Infelizmente, isso é praticamente impossível na minha indústria, e em muitas outras. Ou você trabalha as suas oito horas por dia, ou não trabalha. Meus clientes e colaboradores estão todos firmemente fixados na cultura do horário de trabalho padrão, então não é praticável pedir para que ninguém me peça nada depois do almoço, mesmo que eu conseguisse milagrosamente convencer o meu próprio empregador a me dar esse horário.

O dia de trabalho de oito horas foi desenvolvido durante a revolução industrial na Europa do século 19, como uma trégua para os trabalhadores de fábricas que estavam sendo explorados com jornadas de trabalho de 14 ou até 16 horas por dia. Com o avanço de tecnologias e métodos, os trabalhadores de todas as indústrias se tornaram capazes de produzir muito mais valor em menos tempo. Seria de se imaginar que isso nos levaria a uma diminuição das horas trabalhadas. Mas o dia de trabalho com oito horas é muito lucrativo para grandes empresas, não graças à quantidade de trabalho realizada nessas oito horas (o trabalhador médio de escritório trabalha de fato por menos de três dessas oito horas), mas porque faz com as pessoas se tornem mais propensas a comprar. Fazer com que as pessoas tenham pouco tempo livre significa que elas vão pagar bem mais por conveniência, gratificação e qualquer outro alívio que possam comprar. Faz com que elas continuem assistindo televisão, e os seus comerciais. As mantém pouco ambiciosas fora do trabalho.

Fomos conduzidos a uma cultura projetada para nos deixar cansados, famintos por indulgência, dispostos a pagar muito por conveniência e entretenimento e, mais importante, vagamente insatisfeitos com as nossas vidas, a ponto de continuar querendo coisas que não temos. Nós compramos tanto porque sempre parece que tem alguma coisa faltando na nossa vida. As economias ocidentais, particularmente a dos Estados Unidos, foram meticulosamente construídas com os preceitos da gratificação, vício e gasto desnecessário. Nós gastamos para nos alegrar, para nos recompensar, para comemorar, para resolver problemas, para aumentar nosso status e para afastar o tédio. Você consegue imaginar o que aconteceria se todos os americanos parassem de comprar tantas paradas desnecessárias que não trazem muito valor duradouro para as suas vidas?

A economia entraria em colapso e nunca se recuperaria

Todos os problemas de conhecimento público da América, incluindo obesidade, depressão, poluição e corrupção, são o preço a se pagar pela criação e sustentação de uma economia de trilhões de dólares. Para a economia estar ―saudável―, as pessoas não podem estar. Pessoas saudáveis e felizes não sentem que precisam de muita coisa que já não tenham, e isso significa que elas não compram um monte de porcarias, não precisam de tanto entretenimento e acabam não assistindo a tantos comerciais.

A cultura da jornada de trabalho de oito horas é a

ferramenta mais poderosa para manter as pessoas neste mesmo estado de insatisfação na qual a resposta para qualquer problema é comprar alguma coisa. Talvez você já tenha ouvido falar da Lei de Parkinson. Ela é geralmente usada em referência ao uso do tempo: quanto mais tempo você tem para fazer algo, mais tempo você vai levar para fazer aquilo. É incrível quanta coisa você consegue fazer em 20 minutos se 20 minutos é todo o tempo que você tem. Se você tem toda a tarde, provavelmente vai demorar bem mais para fazer a mesma coisa.

A maioria de nós trata o dinheiro da mesma forma. Quanto mais a gente ganha, mais a gente gasta. Não é que subitamente a gente precise comprar mais só porque estamos ganhando mais, é só que a gente pode, então a gente faz.

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De fato, é muito difícil para nós não aumentar o nosso padrão de vida (ou ao menos o ritmo de gastos) a cada vez que recebemos um aumento. Eu não acho que seja necessário afastar-se de todo esse sistema feio e ir viver na floresta fingindo ser um surdo-mudo, como Holden Caulfield fantasiava. Mas com certeza seria bom que a gente percebesse o que o grande comércio realmente deseja que nós sejamos. Eles vêm trabalho por décadas para criar milhões de consumidores ideais, e eles conseguiram. A não ser que você seja uma verdadeira anomalia, o seu estilo de vida foi previamente projetado.

O consumidor perfeito está insatisfeito (mas esperançoso), desinteressado em desenvolvimento pessoal sério, altamente habituado à televisão, trabalhando em período integral, ganhando minimamente bem, abusando em seu tempo livre e, de alguma forma, apenas se virando com o que tem. Acabei de te descrever? Duas semanas atrás eu teria dito não, esse cara de jeito nenhum sou eu, mas se todas as minhas semanas passarem a ser como a última… eu posso estar me enganando.

Nota do editor: Este texto foi originalmente publicado no Raptitude.com e traduzido por nós com autorização do autor.

DAVID CAIN escreve no Raptitude, um blog que oferece um olhar sobre a experiência humana. Site PAPO DE HOMEM:

http://papodehomem.com.br/, Abril de 2013.

Como avaliar a gestão na saúde pública (SILVANO RAIA)

NO CENÁRIO atual de crescimento e progresso, é difícil entender a qualidade do atendimento oferecido pela rede pública de saúde no Brasil. Há décadas, repetem-se críticas procedentes que explicam a constante má avaliação do setor.

Surpreendentemente, essa questão não tem merecido uma discussão consistente por parte da população em geral, ao contrário do que acontece com outras questões polêmicas.

Os técnicos apontam falta de recursos e má gestão como as causas mais prováveis. De fato, destinamos à saúde um percentual de nosso PIB muito menor do que outros países, tendo sido infrutíferas as várias tentativas para aumentá-lo.

Já quanto à importância da gestão, a avaliação não é tão fácil. Entretanto, a procura de uma solução depende do conhecimento de alguns dados. São eles: o quanto uma boa gestão melhoraria o aproveitamento dos recursos atuais; qual é o acréscimo de recursos necessário por habitante/ano para atender adequadamente todos os acessos; como capacitar gestores para melhor aproveitar os recursos disponíveis.

Cria-se, assim, espaço para uma pesquisa capaz de definir claramente essas variáveis, cuja execução no momento é facilitada por alguns fatos circunstanciais. Nesta gestão, o Ministério da Saúde se aproximou da academia, que tem sido pioneira no emprego de metodologia científica experimental que aceita apenas resultados baseados em evidências.

Comparam-se dois grupos semelhantes denominados grupo de estudo e grupo controle. No primeiro, aplica-se o novo método que se deseja estudar e, no segundo, o método tradicional. Se,

após o período programado, houver diferença estatisticamente significante entre os resultados obtidos em cada um deles, a diferença pode ser atribuída ao método empregado no grupo de estudo.

Uma pesquisa, com duração de dois anos, poderia empregar a seguinte sistemática. No primeiro ano, o grupo de estudo seria constituído pela população de um Estado ou região bem definida (1,5 a 2 milhões de habitantes). Na área definida, a gestão e a regulação dos leitos SUS (públicos e privados) seria feita por profissionais com reconhecida experiência, sem aporte de recursos adicionais. O grupo controle seria constituído pelo resultado histórico da mesma região no período de um ano imediatamente anterior ao início do estudo.

No segundo ano, seria adotada a mesma sistemática, mas com uma diferença. No grupo de estudo, além da nova gestão, haveria um aporte de recursos adicionais suficientes para atendimento adequado de todos os acessos. O grupo controle seria constituído pelos resultados do grupo de estudo do primeiro ano da pesquisa. Adicionalmente, o grupo gestor escolhido assumiria o compromisso de, durante a pesquisa, capacitar profissionais nativos para que pudessem assumir a gestão após o período de dois anos.

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A divulgação e a discussão do conceito da pesquisa desde já e, mais tarde, dos seus resultados, determinarão um maior contato da população com a essência do problema. Isso facilitaria a iniciativa atual do Movimento Nacional em Defesa da Saúde, que inclui as entidades mais importantes do setor.

Elas estão coletando 1,4 milhão de assinaturas necessárias para embasar um projeto de lei popular que determina o repasse efetivo para a saúde de 10% das receitas correntes brutas da União. Representaria um acréscimo por ano de aproximadamente R$ 35 bilhões aos R$ 92 bilhões repassados atualmente.

É legítimo prever que ações desse tipo determinem maior pressão popular sobre os órgãos decisórios em relação à saúde pública, o que tem ocorrido para outras questões como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a criminalização do racismo e da homofobia.

SILVANO RAIA é professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,

Abril de 2013.

Infelicianeidade (FREI BETTO)

VOCÁBULOS nascem de expressões populares. Assim como nomes próprios trazem significados que deitam raízes em suas respectivas etimologias. Feliciano é nome de origem latina, derivado de felix, feliz. Nem sempre, contudo, uma pessoa chamada Modesto deixa de ser arrogante e conheço uma Anabela que é de uma feiura de fazer dó.

Estamos todos nós, defensores dos direitos humanos, às voltas com um pepino federal. Nossos servidores na Câmara dos Deputados, aqueles cujos altos salários são pagos pelo nosso bolso, cometeram o equívoco de eleger o deputado e pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias. O pastor deputado, filiado ao PSC-SP, escreveu em seu Twitter: "Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato". Em outra mensagem, postou: "Entre meus inimigos na net (sic) estão satanistas, homoafetivos, macumbeiros...".

Em processo aberto no Supremo Tribunal Federal, Feliciano é acusado de induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião --crime sujeito à prisão de um a três anos, além de multa. Em sua defesa, Feliciano afirma: "Citando a Bíblia (...) africanos descendem de Cão (sic) (ou Cam), filho de Noé. E, como cristãos, cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições". Que deus é esse que amaldiçoa seus próprios filhos? Essa suposta teologia vigorou no Brasil colonial para justificar a escravidão. O Deus de Jesus ama incondicionalmente a todos. Ainda que O rejeitemos, Ele não deixa de nos amar, conforme atestam a relação do profeta Oseias e sua mulher, Gomer, e a parábola do Filho Pródigo.

Todo fundamentalismo cristão é ancorado na interpretação literal da Bíblia, que deriva da ignorância exegética e teológica. Os criacionistas, por exemplo, acreditam que existiram um senhor chamado Adão e uma senhora chamada Eva, dos quais somos descendentes (embora não expliquem como, pois tiveram dois filhos homens, Caim e Abel...). Ora, Adão em hebraico é terra, e Eva, vida. O autor bíblico quis acentuar que a vida, dom maior de Deus, brota da terra. Ter Feliciano como presidente de uma comissão tão importante --por culpa de legendas como PMDB, PSDB e PT-- é uma infelicidade. Não condiz com o nome do deputado que, na roda do samba que está obrigado a dançar, insiste no refrão: "Daqui não saio, daqui ninguém me tira".

O deputado é um pastor evangélico. Sua conduta deveria, no mínimo, coincidir com os valores pregados por Jesus, que jamais discriminou alguém. Jesus condenou o preconceito dos discípulos à mulher sírio-fenícia; atendeu solícito o apelo do centurião romano (um pagão!) interessado na cura de seu servo; deixou que uma mulher de má reputação lhe lavasse os pés com os próprios cabelos, e ainda recriminou os que se escandalizaram ao presenciar a cena; e não emitiu uma única frase moralista à samaritana adepta da rotatividade conjugal, pois estava no sexto homem! Ao contrário, a ela Jesus se revelou como o Messias.

É direito intrínseco de todo ser humano, e também da democracia, cada um pensar pela própria cabeça. Nada contra o pastor Feliciano, na contramão do Evangelho, abominar negros e odiar homossexuais e adeptos da macumba. Desde que não transforme seu preconceito em atitude discriminatória, e seu mandato em retrocesso às conquistas que a sociedade brasileira alcança na área dos direitos humanos.

Estamos todos nós indignados frente ao impasse armado pelo jogo político rasteiro da Câmara dos Deputados. Eis uma verdadeira situação de infelicianeidade, com a qual não podemos nos conformar.

CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, 68, o Frei Betto, frade dominicano, é autor de "Aldeia do Silêncio" (Rocco). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

É preciso endurecer a punição do menor infrator? Sim

Até quando o ECA vai proteger os infratores? (ARI FRIEDENBACH)

A CAPITAL paulista hoje é reflexo do que acontece na maioria das cidades do país: o medo tomou conta da população. Em pesquisa divulgada pela Rede Nossa São Paulo em janeiro deste ano, a insegurança foi citada por 91% da

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população como a principal preocupação. Conheço o problema da violência de perto. Em 2003, perdi uma filha de 16 anos, cruelmente assassinada por um menor com a mesma idade que a dela. O número de crimes cometidos por adolescentes vem crescendo ano a ano. Muito se fala sobre o assunto, mas nada de concreto foi feito.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, do PSDB, mostrou indignação com novos casos como a série de assaltos realizada pela gangue de Heliópolis formada por crianças de 9 a 14 anos e o assassinato do jovem Victor Hugo Deppman, no Belenzinho, cometido por um menor reincidente de então 17 anos, 11 meses e 27 dias. Alckmin anunciou que encaminhará ao Congresso Nacional um projeto de lei que torna o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) mais duro em relação a adolescentes envolvidos em casos de violência grave e reincidência.

Não defendo a redução da maioridade penal. Defendê-la aos 16 anos é caminhar na contramão da maioria das nações. Analisando a legislação penal de 57 países, a pesquisa "Crime Trends", realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), constatou que apenas 17% adotam idade menor a 18 anos como definição legal de adulto. A Alemanha, que tinha baixado a idade penal, fez retornar a maioridade para 18 anos e criou uma sistemática diferenciada para o tratamento de infratores entre 18 e 21 anos. O Japão, ao se surpreender com um súbito aumento de criminalidade entre seus jovens, ampliou a maioridade penal para 20 anos, por entender que é com educação que se previne a violência.

Há dez anos, desde o assassinato da Liana, venho defendendo que os jovens devem ser responsabilizados e punidos por seus atos. Hoje, segundo estudos psicológicos e discussões comportamentais das quais fiz parte, a conclusão é que crianças de 12 anos são perfeitamente conscientes de suas atitudes e consequências. A lei existe para ser cumprida, e os infratores a partir dessa idade - considerada a mínima passível de internação, segundo o ECA - devem ser encaminhados à Fundação Casa.

Deveriam ser oferecidas medidas socioeducativas e acompanhamento psicológico, de forma a recuperar o menor. Isso não acontece hoje, e frequentemente os jovens se tornam reincidentes. A responsabilização após a prática de um crime deve começar pelo exame do jovem por uma junta psiquiátrica. Ela avaliará se ele tem consciência do ato praticado. Se tiver, o juiz, por meio de uma alteração legal e não constitucional, deve ter a possibilidade de emancipar esse menor para que ele seja julgado, iniciando o cumprimento da pena numa unidade prisional da Fundação Casa. Assim que completar a maioridade, deverá passar para o sistema prisional comum.

Não vejo o ECA de forma negativa. Ele veio colocar a criança e o adolescente como preocupação central da sociedade. Orientou a criação de políticas públicas em todas as esferas de governo. E estabeleceu o fim da aplicação de punições para adolescentes, tratados com medidas de proteção em caso de desvio de conduta.

Mas isso foi há 23 anos. Está na hora de uma revisão para atualizar alguns pontos, especialmente no que diz respeito aos crimes graves. Quanto antes esses adolescentes e crianças entenderem que seus atos são intoleráveis, mais rápido eles poderão deixar o caminho do crime e se reintegrar à sociedade.

ARI FRIEDENBACH, 52, advogado, é vereador pelo PPS de São Paulo. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

É preciso endurecer a punição do menor infrator? Não

Uma resposta adequada (PIERPAOLO CRUZ BOTTINI)

A TRÁGICA morte de um jovem nesta semana deu ensejo a inúmeras manifestações pelo endurecimento da lei em relação a adolescentes infratores. É compreensível a revolta com a violência, e correta a exigência para que autoridades fixem diretrizes de política criminal adequadas para impedir ocorrências similares.

No entanto, não parece que a proposta em discussão seja a mais adequada para a redução da criminalidade. Em primeiro lugar, porque não existem dados que mostrem ser a aplicação da "pena de adultos" útil para reduzir o número de jovens infratores.

Estatísticas do Ministério da Justiça revelam que são cerca de 140 mil os presos de 18 a 24 anos, sendo esta a faixa de idade com maior representação nos presídios brasileiros. Ou seja, a aplicação do direito penal normal não impediu ações violentas por parte desses jovens. Ao contrário, os dados demonstram que a prática de crimes é maior nesta faixa do que entre aqueles que contam com 16 a 18 anos.

Por outro lado, devemos deixar de lado o mito de que as medidas para adolescentes são brandas. Para eles, a lei prevê privação de liberdade por até três anos nos casos mais graves, sem os benefícios da progressão automática de regime existentes para os adultos. Pode-se achar pouco, mas vale lembrar que, em regra, adultos cumprem três anos de completa segregação somente em casos de condenações à pena igual ou superior a 18 anos.

Em suma, há situações em que as medidas aplicadas aos jovens são até mais duras do que a pena destinada aos maiores de idade. Então, por que não unificar as medidas para adultos e menores infratores, ainda mais diante da constatação de que adolescentes têm plena consciência do significado de seus atos? A resposta não parece complexa. É incontestável que jovens de 16 a 18 anos tem capacidade de reconhecer a gravidade de um homicídio ou de um roubo. Mas a questão aqui não é saber se tal capacidade existe ou não, mas identificar qual a resposta mais adequada que o Estado deve dar aos menores praticantes desses atos.

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Será a política mais racional reunir tais adolescentes aos adultos condenados nas mesmas penitenciárias? Será realmente a solução para o fim da criminalidade desses garotos submetê-los ao mesmo sistema fracassado construído para "ressocializar" os maiores de idade, que apresenta índices de reincidência de 70%? Ou será mais consistente uma reforma séria nas medidas socioeducativas, garantindo-se que o adolescente sofra uma reprimenda pelo ato, mas também que receba uma atenção voltada à sua formação, com cursos de capacitação e uma política de ressocialização específica para alguém em desenvolvimento?

Evidente que o adolescente infrator deve sofrer consequências, e ninguém prega a complacência com seus atos. Mas a solução é organizar a resposta estatal de maneira eficiente, fortalecendo sua capacidade de habilitar o infrator para a vida social, com a internação em unidades menores e próximas à família. Aumentar a dispendiosa e inútil vala comum do presídio para adultos somente jogará mais água no moinho da reincidência e, consequentemente, aumentará a violência a médio prazo.

Enfim, responsabilizar o sistema penal pelos trágicos acontecimentos recentes é politicamente fácil, mas não resolve o problema. Para usar expressão resgatada por Ruy Castro em coluna na Folha (sexta-feira), trata-se de uma falsa boa ideia, de aparência encantadora, mas de efeitos pífios, senão contraproducentes.

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI, 36, é advogado e professor de direito penal da USP. Foi membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e secretário de Reforma do Judiciário do mesmo órgão. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO,

Abril de 2013.

Os bons e os puros (ROSE MERCATELLI)

Eles desafiaram o poderio da Igreja Católica ao criar o catarismo. Por causa da intolerância religiosa, muitos foram massacrados ou queimados na fogueira

O Castelo de Carcassone, no sul da França, foi um dos grandes refúgios do povo cátaro no século 13

QUEM visita a região de Languedoc-Roussilon, no sul da França, não se cansa de admirar a paisagem cercada de rochas e videiras, as mais antigas da Europa, que orgulha seus habitantes. Incrustadas na estrada sinuosa que corta a região, o viajante encontrará ruínas de castelos em Cobiéres e Ariége que, entre os séculos 11 e 12, serviram de refúgio ao povo cátaro.

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Em cidadezinhas como Montaillou, Arques, Peyrepertuse, Quéribus, Aguilar e Minerve, os moradores do Languedoc também não escondem sua admiração pela cultura cátara. Esse orgulho é visível nas pequenas livrarias com uma infinidade de livros sobre o modo de vida e a doutrina daqueles que se autodenominavam "os bons homens" e "as boas mulheres", fundadores de um cristianismo alternativo que, entre outras coisas, não admitia se submeter à soberania papal e também não aceitava os dogmas da Igreja Católica, como a crença na Santíssima Trindade, por exemplo.

Simão de Montfort

Nas palavras da Igreja Romana do século 12, o catarismo não passava de um movimento herético por não acolher qualquer tipo de domínio religioso ou político, da Santa Madre Igreja. Esta, em contrapartida, não tolerava qualquer interpretação espiritual que não seguisse à risca as instruções vindas de Roma. Por tudo isso, a luta contra os cátaros durou quase oito décadas (de 1167 a 1244), até que sua doutrina deixasse de ser uma ameaça ao poderio da Igreja Católica Apostólica Romana.

O início do movimento

Os cátaros formaram a sociedade secreta mais popular da Idade Média. Os adeptos do movimento eram pacíficos e muito estimados pela população do Languedoc, tendo muitos nobres entre seus seguidores. E não foi à toa

que a doutrina cátara foi bem aceita na região. Na Idade Média, a próspera Languedoc era um centro de diversidade cultural onde conviviam em paz normandos, catalães, judeus e sicilianos. Exercido por cidadãos livres que abasteciam os feudos com seus produtos agrícolas, ferramentas, armas e um sem-número de manufaturados, a força do comércio na região também limitava os poderes da nobreza intimamente ligada ao clero. O início do catarismo é impreciso. Alguns historiadores acreditam que o movimento religioso nasceu em Constantinopla e foi trazido para a Europa Ocidental depois da 2a Cruzada, por volta de 1147 e 1149. Outros pesquisadores sugerem que as primeiras ideias de um movimento religioso (que ainda não tinha um nome oficial) começaram antes, por volta de 1022, quando dois monges foram injustamente queimados vivos, acusados de satanismo. O bispo de Toulouse, a maior cidade de Languedoc, foi contra a execução. Mas o que a autoridade eclesiástica escondia dos poderosos da Igreja é que ele se reunia secretamente com outros clérigos para discutir suas ideias pouco ortodoxas e as insatisfações com o catolicismo praticado na época. O grupo acreditava, por exemplo, que Deus era um espírito puro e que a criação do mundo não tinha nada de divino, mas era, sim, o resultado de uma obra perversa, criada pelas forças do mal.

As ideias dos primeiros cátaros que aspiravam a volta do cristianismo primitivo começaram a se espalhar pela Europa. A nova crença arregimentou adeptos na Catalunha (Espanha), na Alemanha, na Inglaterra e na Itália. Seguidores da doutrina cátara recebiam diferentes nomes de acordo com seu país de origem. Dessa maneira, na Itália, eram conhecidos como patarinos, na Alemanha, como ketzers, na Bulgária, como bogomils. Porém, foi na região do Languedoc que os cátaros floresceram e viveram em paz por várias décadas.

Castelo de Saint-Félix de Caraman

Rompimento oficial

O movimento, entretanto, levou mais de 150 anos para se afastar definitivamente da

Igreja oficial. No século 12, mais precisamente em 1167, cátaros franceses se reuniram em uma assembleia no Castelo de Saint-Félix de Caraman, para oficializar o abandono do credo católico em quatro paróquias da região do Languedoc,

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Toulouse, Carcassone, Albi e Agen, abraçando as novas diretrizes do catarismo. Por causa das paróquias de Albi e Agen, o movimento também foi chamado de albigense. Nessa mesma assembleia, foram nomeados os bispos de cada região e fixados os limites de cada diocese. Segundo uma das versões históricas, o termo cátaro viria do grego katharoi, que significa "os puros". Mas a palavra entrou para o vocabulário medieval por volta de 1160, graças a um pregador católico da Renânia chamado Eckbert de Schönau que abominava a nova doutrina. Segundo Alain de Lille, um teólogo francês do século 13, sua origem estaria na palavra catus ("gato" em latim), pois os seguidores da seita, de acordo com Eckbert de Schönau, "faziam coisas ignóbeis em suas reuniões, como beijar o traseiro de gatos".

A luta do bem contra o mal

Os novos fiéis não davam a mínima atenção para as palavras de Eckbert e continuaram em frente, espalhando sua doutrina e conquistando adeptos. O catarismo foi uma religião influenciada pelo maniqueísmo, doutrina filosófica, fundada pelo profeta persa Mani. O princípio básico da filosofia maniqueísta é a divisão do mundo entre Bom (ou Deus) e o Mal (ou Diabo). Dessa forma, toda matéria é intrinsecamente má e tudo o que é espiritual "nasce" naturalmente bom. Conforme as ideias do profeta, a fusão dos dois elementos primordiais, os reinos da luz e das trevas, teriam originado o mundo material. Por sua vez, os cátaros, seguidores do princípio da dualidade, também acreditavam que a criação do mundo e do ser humano era obra do Diabo e que a salvação estava em encontrar o reino da luz.

O cristianismo em sua origem

O catarismo também baseou seus fundamentos no Sermão da Montanha, um longo discurso proferido por Jesus, no qual o próprio Cristo ensinou aos seus seguidores lições de conduta e de moral, ditando os princípios que normatizam e orientam a vida cristã, aquela que conduzirá o homem à sua verdadeira liberdade. O Sermão da Montanha é considerado pelos estudiosos da religião cristã um resumo dos ensinamentos de Jesus a respeito do Reino de Deus, de como o homem pode ter acesso a ele e qual será a sua transformação quando chegar lá. De acordo com a doutrina cátara, Cristo não foi um mensageiro de Deus que veio para ensinar o caminho da salvação. Sua morte não significa a redenção, como prega a Igreja Romana, mas representa a vitória do mal que jamais poderia ser vencido pela crucificação de Cristo. O sofrimento e a morte de Cristo serviram para alimentar ainda mais as forças das trevas. Eles também não acreditavam na cruz nem na eucaristia. A salvação, segundo eles, só era alcançada por quem seguisse ao pé da letra os preceitos do Sermão da Montanha, pois a Igreja Católica Romana era, sim, um reduto de anticristos.

Vida pura e casta

Eles abdicavam de suas posses materiais e procuravam levar uma vida pura, afastando-se o quanto podiam do mundo material, o qual consideravam corrupto. Seus padres se vestiam com hábitos negros e rejeitavam os sacramentos, como o

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batismo, a eucaristia e o matrimônio. E não se incomodavam com o sexo fora do casamento. "A castidade devia ser priorizada, mas se não fosse possível mantê-la, melhor seria manter encontros casuais do que oficializar o mal por meio do casamento, um sacramento não aceito por eles", escreve a historiadora Maria Nazareth de Barros, autora de Deus Reconhecerá os Seus: A História Secreta dos Cátaros. Em consequência dos seus princípios de pureza e castidade, os cátaros também repudiavam a maternidade. Qualquer mãe, frente à impossibilidade de gerar entes espirituais e perfeitos, ao dar origem apenas a humanos imperfeitos, estaria produzindo ainda mais matéria impura e fonte do mal. Entretanto, apesar de o casamento e a procriação fossem tidos como obras maléficas eram também considerados, ao mesmo tempo, uma benção, pois evitava uma degeneração maior entre seus seguidores por dois motivos. Primeiro porque, segundo a lei bíblica, é melhor casar do que abrasar. Depois, como eles acreditavam na reencarnação, o nascimento era visto pela doutrina cátara como uma possibilidade de resgate pelas imperfeições geradas em outras vidas.

"Matem todos. Deus reconhecerá os seus". Esta foi a ordem do Abade Arnaldo Amauri, durante o cerco em Bélziers, França. Durante o massacre, os cruzados mataram mais de 20 mil pessoas, entre cátaros e católicos

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A morte como salvação

A salvação para o catarismo era a libertação da alma de seu corpo material impuro. Por isso, os cátaros viam com bons olhos o suicídio. De acordo com Nachman Falbel, professor titular de História Medieval da USP, além do suicídio por envenenamento ou salto em um precipício, ou ainda a pneumonia voluntariamente contraída, era comum procurar a morte pela fome.

Eram considerados bons homens depois de receberem oconsolamentum, um ritual que simbolicamente representava sua morte para o mundo material e corrupto. Os que eram apenas simpatizantes da doutrina, mas que não tinham nenhum compromisso formal com o movimento, só recebiam oconsolamentum nos momentos que antecediam sua morte. Os altos sacerdotes cátaros eram denominados perfeitos. Eles andavam sempre em dupla, pregando entre o povo o Amor universal e ajudando a população carente. Por todos esses ensinamentos e diferenças entre o pensamento cátaro e o catolicismo oficial, a Igreja Romana via cada vez mais a nova doutrina como uma perigosa heresia a ser debelada.

Cruzada Albigense

Mas não apenas por causa da doutrina herética que a Igreja Católica queria fazer desaparecer os cátaros da face da Terra. Por trás, existia também o interesse econômico da Igreja, na medida em que os dízimos de inúmeras paróquias, principalmente as do Languedoc, não chegavam mais a Roma. No século 12, o papado tentou segurar o movimento, promovendo a reconversão de seus antigos fiéis, perdidos para o catarismo. Não resolveu. A Igreja, então, endureceu quando o papa Inocêncio III assumiu em 1198 e suspendeu os direitos eclesiásticos de diversos bispos do sul da França. Em 1208, o representante da Igreja Pierre de Castelnau excomungou um nobre e, em represália, foi assassinado. O conde de Toulouse, Raimundo VI, foi o acusado de ser mandante do assassinato. O acontecimento acirrou os ânimos dos católicos que passaram a usar a violência para acabar com os seguidores da nova doutrina. Inocêncio III tentou conter o abuso de seus fiéis escrevendo bulas e reduzindo o luxo do Vaticano, severamente criticado pelos antigos católicos convertidos ao catarismo. Para angariar aliados, apoiou a fundação de ordens mendicantes, como a dos franciscanos (de São Francisco de Assis e os dominicanos (de São Domingos de Gusmão).

Os cátaros que resistiram às Cruzadas finalmente foram exterminados pela Inquisição em Ariège, na metade do século 13

Reconhecimento divino

Ainda por cima, Inocêncio III autorizou uma Cruzada, comanda pelo rei da França, Felipe II que, com outros nobres de Toulouse, iniciaram a carnificina que durou de 1209 a 1244. Na primeira fase da Cruzada, em julho de 1209, um exército de cerca de 30 mil homens, incluindo cavaleiros e infantes, desceu do norte da Europa para o Languedoc. No primeiro cerco em Béziers, que durou dois meses, os cruzados invadiram a cidade e aniquilaram quase toda a população, deixando para trás 20 mil mortos, entre eles muitas mulheres e crianças, sem se importarem se eram cátaros ou católicos. Quando um oficial perguntou ao representante do papa, o Abade Arnaldo Amauri, como ele conseguiria distinguir os hereges dos crentes

consolamentum é um ritual que simbolicamente representava sua morte para o mundo material e e

corrupto corrupto

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verdadeiros, a resposta foi: "Matem-nos todos. Deus reconhecerá os seus." Na guerra que se seguiu, todo o território foi pilhado, as colheitas destruídas, as cidades e vilarejos arrasados. O extermínio ocorreu numa extensão tão vasta que alguns historiadores consideram esse caso como o primeiro genocídio da história da Europa moderna.

Diante da fúria dos cruzados, uma a uma, as cidades de Languedoc foram caindo em poder dos franceses do norte e da Igreja sob a alegação de serem focos de atuação de cátaros. Carcassonne, depois de duas semanas sitiada, foi destinada a Simão de Montfort, o novo chefe militar da guerra santa. Na verdade, nos anos seguintes, a cruzada se transformou em um alto negócio para o nobre. Mais do que aniquilar os cátaros, seu alvo eram as terras e as joias da nobreza do Languedoc, não importa se apoiassem ou não os hereges.

As duas últimas fases

Em 1224, com o apoio do papa Honório III (Inocêncio III faleceu em 1216), começou a segunda fase da Cruzada Albigense quando o então rei da França, Luís VIII, liderando os barões do norte francês, empreendeu uma nova investida que durou cerca de três anos com muitas conquistas até chegar a Avignon, onde terminou o cerco contra os hereges. Apesar de terem o apoio de pequenos condados, os cátaros não conseguiram resistir ao genocídio das Cruzadas, mas elas não conseguiram erradicar o catarismo de forma definitiva. Foi a Inquisição, a instituição que realmente conseguiu exterminar definitivamente o catarismo. Quarta-feira, 16 de março de 1244, aos pés de um penhasco da região de Ariège (Midi-Pyrenees), nos Pirineus franceses, 225 homens e mulheres cátaros foram queimados em uma grande fogueira nos arredores da fortaleza de Montségur. Entrincheirados a 1.200 metros de altitude, os seguidores do catarismo foram capturados após dez meses de cerco, tinhamse recusado a abjurar a sua fé.

Saiba +

The Corruption of Angels, de Mark Gregory Pegg, Princeton University Press, 2001. Deus Reconhecerá os Seus: A História Secreta dos Cátaros, de Maria Nazareth Alvim de Barros,

Rocco, 2007

ROSE MERCATELLI é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista LEITURAS DA HISTÓRIA, Abril de 2013.