revista querubim letras ciências humanas ciências sociais ano

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO 2016 2016 2016 2016 REVISTA QUERUBIM Letras Ciências Humanas Ciências Sociais Ano 12 Número 28 Volume 2 ISSN 1809-3264 REVISTA QUERUBIM NITERÓI RIO DE JANEIRO 2016 N ITERÓI RJ

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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 12 Nº28 vol. 02 – 2016 ISSN 1809-3264

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

2016 2016

2016 2016

REVISTA QUERUBIM

Letras – Ciências Humanas – Ciências Sociais

Ano 12 Número 28 Volume 2

ISSN – 1809-3264

REVISTA QUERUBIM

NITERÓI – RIO DE JANEIRO

2016

N I T E R Ó I R J

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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 12 Nº28 vol. 02 – 2016 ISSN 1809-3264

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Revista Querubim 2016 – Ano 12 nº 28 – vol. 2 – 99 p. (fevereiro – 2016) Rio de Janeiro: Querubim, 2016 – 1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais Periódicos. I - Titulo: Revista Querubim Digital Conselho Científico Alessio Surian (Universidade de Padova - Italia) Darcilia Simoes (UERJ – Brasil) Evarina Deulofeu (Universidade de Havana – Cuba) Madalena Mendes (Universidade de Lisboa - Portugal) Vicente Manzano (Universidade de Sevilla – Espanha) Virginia Fontes (UFF – Brasil) Conselho Editorial Presidente e Editor Aroldo Magno de Oliveira Consultores Alice Akemi Yamasaki Andre Silva Martins Elanir França Carvalho Enéas Farias Tavares Guilherme Wyllie Janete Silva dos Santos João Carlos de Carvalho José Carlos de Freitas Jussara Bittencourt de Sá Luiza Helena Oliveira da Silva Marcos Pinheiro Barreto Mayara Ferreira de Farias Paolo Vittoria Ruth Luz dos Santos Silva Shirley Gomes de Souza Carreira Vanderlei Mendes de Oliveira Venício da Cunha Fernandes

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Sumário 01 Desenhos infantis entre o realismo de Dubois e a semiótica de Peirce – Francine Borges

Bordin 04

02 Representações de professores sobre o letramento digital – Giliard Dutra Brandão e Mariza Gabriela de Lacerda

13

03 Sobre o suicídio para e na igreja católica: do ato heroico ao condenável – Guilherme Nogueira Milner

21

04 Estudo da configuração do narrador em os papéis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho – Guilherme Nogueira Milner

30

05 A polissemia da linguagem:ponderações a partir de M. Pêcheux [1983] – Hélder Sousa Santos

33

06 A metalinguagem em Quarto Crescente, de Carmo Bernardes – Hilda Gomes Dutra Mag 39

07 Interdisciplinaridade e atitude interdisciplinar na formação de professores: refletindo a prática – Hilda Gomes Dutra Magalhães e Jean Carlos Rodrigues

44

08 O estágio curricular supervisionado em Educação Física e suas marcas docentes positivas e negativas – Hugo Norberto Krug, Victor Julierme Santos da Conceição, Cassiano Telles, Rodrigo Rosso Krug, Patric Paludett Flores e Marilia de Rosso Krug

51

09 Educação Física escolar inclusiva: dilemas e perspectivas – Hugo Norberto Krug, Victor Julierme Santos da Conceição, Cassiano Telles, Rodrigo Rosso Krug, Patric Paludett Flores e Marilia de Rosso Krug

58

10 A criança escrava: uma discussão acerca das ações da patroa em Negrinha, de Monteiro Lobato – Iedja Mayara Nunes da Silva e Silvio Nunes da Silva Júnior

65

11 Um estudo sobre as formas de tratamento na fala de remanescentes de Quilombolas – Jorge Luis Queiroz Carvalho, Maria Josiene Araújo de Oliveira, Samara Santana da Silva e Rosângela Alves dos Santos Bernardino

71

12 ESC OU ENTER considerações sobre o proinfo e inovações na prática docente – José Amilsom Rodrigues Vieira

80

13 Iniciação à docência e práticas inovadoras: (re) pensando a prática docente na formação inicial – Juliane Gomes de Sousa e Maria José de Pinho

87

14 Experiência de leitura e escrita literária – Laura Isabel dos Santos Vieira e Thaís Almeida F. de Souza

94

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DESENHOS INFANTIS ENTRE O REALISMO DE DUBOIS E A SEMIÓTICA DE PEIRCE.1

Francine Borges Bordin2 Resumo O presente artigo tem como objetivo compreender os desenhos infantis a partir de duas perspectivas: o realismo fotográfico e a semiótica. Sendo parte de um trabalho de pesquisa que buscou compreender as representações expressas nos desenhos infantis através de um olhar antropológico e semiótico, este artigo expressa uma parte do que foi o trabalho de pesquisa. Na intersecção dessas perspectivas, evidenciamos o caráter simbólico, icônico e indicial presente nos desenhos infantis. E concluímos com a importância que os desenhos tiveram para a pesquisa, pois através deles foi possível conhecer não apenas a proposta pedagógica da professora, mas também as representações de cada criança sobre temas diversos, através de atividades extraclasses. Palavras-chave: Desenhos, realismo, semiótica, antropologia. Abstract This article aims to understand children's drawings from two perspectives: photorealism and semiotics. Being part of a research project that sought to understand the representations expressed in children's drawings through an anthropological and semiotic look, this article expresses a part of the research work. At the intersection of these perspectives, we noted the symbolic, iconic and indicial characters present in children's drawings. We conclude with the importance that the drawings had to the research, because through them it was possible to know not only the teacher's pedagogical proposal, but also representations of each child on various topics, through activities outside the classroom. Keywords: Drawings, realism, semiotics, anthropology. Introdução:

Esse artigo busca revisar uma pequena parte da pesquisa realizada para concluir o curso de

Ciências Sociais na Universidade Federal de Pelotas. O estudo buscava compreender as representações expressas nos desenhos infantis, lançando um olhar antropológico e semiótico. Em algum momento foi realizada uma comparação dos desenhos infantis entre o realismo expresso por Philippe Dubois (1994) através de seus estudos sobre fotografia e entre a semiótica de Charles S. Peirce (2005).

Essa sobreposição buscou posicionar os desenhos infantis não apenas de acordo com uma

perspectiva, mas buscando um meio caminho entre os dois. É esse percurso que objetivamos trazer neste artigo, em um momento em que nosso trabalho de pesquisa continua centrado nos desenhos infantis, mas revisando perspectivas até então utilizadas e deslocando nosso olhar para a sociologia e o simbolismo dos desenhos, durante uma pesquisa do mestrado em educação. Realismo na fotografia versus semiótica:

De uma forma mais ancorada na realidade, Philippe Dubois (1994) desenvolve a questão

do realismo na fotografia, demonstrando seu percurso histórico a partir de três considerações:

1 Este artigo deriva do Trabalho de Conclusão de Curso de Ciências Sociais Hab. Bacharelado (2010), pela Universidade Federal de Pelotas. 2 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas. Especialista em Educação Infantil e Mestre em Educação. Ambos pela Universidade Federal de Pelotas.

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fotografia como espelho do real, fotografia como transformação do real e fotografia como traço de um real, sendo possível associar suas considerações à semiótica de Charles S. Peirce (2005). Veremos um pouco de suas idéias e de que forma elas contribuem na pesquisa com desenhos infantis.

A fotografia é, então, uma forma de representar. Diferentemente de outros tipos de

imagens, a fotografia carrega uma característica que lhe impede de mentir, ela representa o real captado por suas lentes, como uma imagem congelada e estática. Partindo de pressupostos como esses, Dubois (1994) caracteriza o primeiro percurso histórico da fotografia com a denominação de espelho do real.

Considerar a fotografia como espelho do real, traz a idéia de capacidade mimética que esta

possui. Nessa perspectiva, ela foi vista como a mais perfeita imitação da realidade, possuindo semelhança com seu referente e sendo considerada como uma imagem objetiva e automática, representativa da existência concreta. Pensou-se na fotografia como resultado neutro de um aparelho, sem a intervenção do sujeito que manipula o dispositivo. Com o avanço da fotografia no século XIX, ela foi considerada como um auxiliar da memória, uma conservação do passado, desconectada do sujeito que a fotografou, enquanto a pintura, por sua vez, foi liberada desse compromisso mimético com a realidade, que a Renascença lhe atribuíra. A arte e o imaginário são, então, percebidos como resultado da individualidade de cada sujeito pintor, enquanto à fotografia restou o compromisso de copiar o real.

Como uma forma de reação a essa concepção inicial, Dubois (1994) resgata outra tendência

surgida no século XX, que percebe a fotografia como transformação do real. Transformação porque seria capaz de codificar a realidade representada. Transformaria, porque a realidade transposta na foto seria um efeito revelador da verdade interior – não empírica. A imagem fotográfica passa a ser entendida, assim, como intrinsecamente dependente da codificação cultural.

Mas para Dubois (1994), independentemente da capacidade da fotografia mimetizar ou

transformar o real, ela é, antes de tudo, traço de um real, que entrou, inegavelmente, em contato direto com a câmera em determinado momento. Ao considerar que a fotografia pode revelar traços da realidade, o autor se distancia da primeira tendência enunciada, que enfatiza uma relação mimética com a mesma. Para ele, entre o real e a foto existe uma conexão física, sendo que seu sentido é exterior à imagem, na medida em que se cria uma dependência entre o objeto fotografado e a situação enunciada.

Percebe-se, portanto, a influência da semiótica peirceana (PEIRCE, 2005) nesta análise de

Dubois (1994). Considerar a fotografia como espelho do real, evidencia sua característica de imitação perfeita, o que equivale a percebê-la como um ícone (PEIRCE, 2005), com função de apresentar a semelhança entre a foto e seu referente. Por outro lado, enquanto transformação do real, a fotografia pode ser considerada como um símbolo (PEIRCE, 2005), porque se transformou num conjunto de códigos, que lhe conferem significado culturalmente. E, por último, Dubois (1994) defende um retorno ao referente: a fotografia como traço de um real, que indica seu referente ou sua conexão com o mesmo – o que implica em conceber a foto como um índice (PEIRCE, 2005). Por esses motivos, Dubois defende um caminho epistemológico contrário ao que se verificou historicamente: “A foto é em primeiro lugar índice. Só depois ela pode tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo).” (DUBOIS, 1994, pag. 53).

Mas de que forma podemos associar essas considerações epistemológicas sobre a fotografia

aos desenhos produzidos por crianças? Vamos seguir o mesmo percurso proposto por Dubois (1994), sem esquecer, no entanto, que praticamente nenhuma imagem considerada pode ser exclusivamente icônica, simbólica ou indicial, pois essas categorias se intersectam, se adicionam e se complexificam com o aprofundamento da análise.

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Assim, a priori, podemos considerar o caráter essencialmente simbólico dos desenhos infantis, na medida em que são codificados, relacionados com o imaginário (seja individual ou coletivo) e passam por um processo de interpretação e de transformação do real. Podemos perceber nesses desenhos as representações que o meio social impõe aos alunos e as transformações, representadas por eles, trazendo a característica da representação que as crianças fazem da sociedade, transformada por seu imaginário individual e coletivo (considerando principalmente a escola).

Esses desenhos não podem ser considerados um espelho do real, uma imitação perfeita da

realidade, pelo contrario. De acordo com Aumont (1993), os aspectos de rememoração e reconhecimento colaboram para nossa compreensão frente a uma imagem que possui apenas algumas constantes que nos ajudam a entendê-la. Isso não implica que esses desenhos não possam ser considerados ícones no sentido atribuído por Peirce (2003), são ícones porque apresentam informações e qualificam algum significado da realidade, seja ela objetiva ou subjetiva, nos termos da referência de Aumont (1993).

E por último, colocamos a presença de traços do real nesses desenhos, em termos de

índices semióticos, por eles apresentarem uma conexão física com os sujeitos que o produziram em termos dos gestos traçados por eles no papel.

A análise dos desenhos observados durante todo trabalho de pesquisa de campo, seguiu o

caminho do índice (para compreender sua relação com seu produtor), do ícone (para perceber as qualidades dessas representações da realidade) e por ultimo, do símbolo (para buscar os sentidos codificados dessas representações).

Ao final do trabalho de campo na sala de aula, propomos aos alunos uma atividade livre, a

ser desenvolvida facultativamente por eles em casa, sem a obrigação de entregarem o resultado, embora tenhamos salientado que aguardaríamos e agradeceríamos se devolvessem a atividade. A proposta era de que desenvolvessem desenhos livres, a partir de 12 temas centrais, propostos com o objetivo de colaborar na compreensão sobre cada um dos alunos. Podiam desenhar, colar, pintar, criar da forma que quisessem e, também, se possível, escrever alguma coisa explicando o que estavam fazendo. Apenas a metade da turma devolveu o trabalho proposto, sendo que destes, apenas alguns escreveram e um aluno só escreveu, sem realizar nenhum desenho, e os demais não escreveram, só desenharam e colaram imagens de revistas. Apesar disso, a proposta colaborou para que possuísse em mãos materiais produzidos sem intervenção da professora, e que deu subsidio para questionamentos junto aos alunos, para além daquelas propostas, possibilitando as análises feitas neste artigo.

Os temas estavam centrados em assuntos como família, indivíduo e escola. Buscando

compreender ou conhecer um pouco de suas realidades, veremos alguns desses desenhos do ponto de vista de seus significados semióticos (DUBOIS, 1994; PEIRCE, 2005).

Figura 1: Família, por Rosa.

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Figura 2: Casa por Rosa.

Quando tratamos sobre a família e a casa, todas as crianças que devolveram as atividades

propostas representaram em seus desenhos, a família em torno dos pais e irmãos, e a casa desenhada de uma forma que parecesse uma verdadeira imitação da realidade. A casa representada na figura 2 em muito se parece com seu referente material, a aluna cuidou de todos os detalhes, sejam as flores, a posição das janelas, a escada, o sobrado. E isto se manteve em todos os outros desenhos sobre a casa e a família.

Percebemos que quando propomos às crianças temas tão particulares como esses, elas

buscam representar seu referente mimeticamente, apesar das limitações técnicas para uma maior fidelidade com a realidade. Caracterizam seus desenhos a partir dos traços comuns ao referente real que foi desenhado, sendo possível perceber um viés icônico na representação do meio familiar em que vivem, ao mesmo tempo em que sugestionam hierarquias de valores pessoais que também evidenciam uma codificação da realidade. Esse tipo de desenho foi predominante entre os alunos, demonstrando o que, simbolicamente, representa para eles a família e a casa – estruturas que nem sempre condizem com o real, mas são consensuais no imaginário coletivo das crianças daquela turma.

Quando tratamos de temas que envolvem o indivíduo que produz, ou seja, suas

preferências e seus desejos, as representações foram diversas: desde desenhos de si próprios, passando por alguns depoimentos escritos, até desenhos de objetos significativos que cercam seus mundos. Enquanto nas figuras 1 e 2 foi possível perceber traços em comum que se manifestam nos desenhos dos alunos para expressar sentimentos e características relacionadas ao meio familiar, mesmo que fossem apenas manifestações e não indícios reais, na figura 3, 4, 5 e 6, em que as propostas eram sobre o indivíduo, o centro da atenção passa a ser as diferenças de representações.

Figura 3: Eu, por Helena.

Na figura 3, temos uma ênfase nas características físicas da personagem, mesmo que essas

características não constituam elementos invariantes na imagem (AUMONT, 1993), capazes de

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possibilitar o reconhecimento inconteste da pessoa representada e de quem o produziu. Pensando no poder de representação dos símbolos de Peirce (2005), percebemos que esta forma genérica de representar a si próprio ou uma criança em geral é encontrada em todo tipo de desenho infantil, seja de crianças menores, seja de alunos de quinta série. São estruturas que circulam no imaginário coletivo, consentidas pela sociedade em que vivem, por professores e educadores escolares, para a representação de crianças. Mesmo que tenham seus objetivos didáticos, elas costumam não destacar aspectos característicos individuais, diversamente do que encontramos nesse desenho.

Ao contrário de todos os outros alunos, o produtor da figura 4, apenas escreveu sobre

todos os temas propostos, o que possibilitou ao aluno expressar a sua subjetividade de uma maneira mais objetiva.

Figura 4: Eu, por Bruno.

Este aluno descreveu seus traços característicos, através de designações indiciais e icônicas,

mas também de recursos simbólicos, destacando elementos que podem ser compreendidos por quem lê, enquanto características que podem ser associadas a qualquer pessoa.

A figura 5 e 6 tratam das preferências de quem as produziu. Foram escolhidos esses dois

desenhos, por serem opiniões que se destacam entre os alunos. Todos tem se envolvido no mundo virtual, representado pelo computador na figura 5. Alguns alunos são membros do Orkut, uma rede social de grande acesso no Brasil, mesmo não possuindo computadores com acesso a internet em casa, pois acessam a internet de Lan Houses presente nos bairros onde residem.

Figura 5: Minhas preferências, por Fátima.

A figura 6 traz elementos diários sobre a rotina dos alunos, como estudar, brincar e ajudar

nos afazeres domésticos. O que se destaca nessas representações é a busca da semelhança com a realidade. A relação entre os vários referentes representados permite identificar um amplo sistema de significados característicos da cultura em que estão inseridos, dentro da qual não são meros agentes passivos, mas possuem certo grau de protagonismo.

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Figura 6: Minhas preferências, por Giovana.

E o último tema proposto, a escola. Os elementos trazidos pelos alunos partiram de

diversos ângulos. Observamos imagens que representam a escola, imagens e textos que representam as aulas e textos sobre os colegas.

Figura 7: Minha escola, por Rosa.

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Figura 8: As aulas, por Olívia.

As figuras 7 e 8 podem ser vistas como representações icônicas, carregadas de significados

simbólicos. A imagem que representa a escola – figura 7, procura destacar a aparência física externa da escola, sem reproduzir proporção, mas sim a cor, a referência ao nome da escola escrito acima da porta e a existência de uma árvore ao seu lado. São destacados da realidade objetiva os referentes que, na perspectiva do autor, tem maior valor simbólico na identificação deste lugar. A figura 8 traz um mapa da estrutura interna da sala de aula no momento da aula de artes. Pelo fato de a imagem ser escaneada e ter suas proporções reduzidas, fica difícil enxergar, mas é possível identificar as mesas e cadeiras ordenadas e, logo à frente, o quadro negro. Nas mesas está escrito o nome de cada aluno de acordo com a posição que ocupam na sala de aula. E no quadro está escrito: “Fazer um desenho com 3 cm de margem e depois 2 cm. Pinte de AMARELO, AZUL E VERMELHO”. A partir dessas características, podemos compreender o mapa da sala de aula como uma representação icônica da realidade. Apesar de não preservar traços proporcionais e nem cores, leva o observador da imagem a compreender a organização da sala de aula e a detectar a orientação descrita no quadro, como uma das rotinas presente na aula de artes.

A figura 9 traz outra representação sobre a aula, associada a um texto demonstrando as

relações de violência dentro da escola.

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Figura 9: As aulas, por Rosa.

No desenho, enquanto um menino é agredido por outro menino portando uma faca, há

também um terceiro menino torcendo pela briga. Quando questionada sobre esta cena, a aluna comentou que já presenciou muitas dessas situações, e que isso era muito comum dentro e fora da escola. “Agora até que tá calmo”, comentou. Esse desenho serve como uma prova empírica da realidade violenta das escolas em geral, que tem sido retratada nos jornais. O significado que esta imagem adquire, em termos semióticos, leva a concluir que esta situação se tornou uma representação simbólica relevante para todos que estão, de alguma forma, ligados à educação, assim como para a sociedade em geral.

Na figura 10 estão representadas sob a forma textual, a agitação e as conversas entre os

alunos durante as aulas.

Figura 10: Meus colegas, por Bruno.

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Estes elementos também fazem parte da rotina das aulas. E na mesma proporção que o significado da figura 9, é um elemento presente em todas as escolas e salas de aula. O que deve ser discutido é a agitação em demasia, a conversa excessiva e os gritos entre os alunos, que atrapalham no aprendizado. Considerações finais:

Essas imagens indicam que, apesar da estrutura organizacional da sala de aula, também

existem problemas disciplinares comuns a qualquer turma. Os signos indiciais e icônicos podem ser percebidos quando apreciamos estas imagens, com seus elementos representativos, tornando-se símbolos, por serem representações gerais reconhecidas entre a turma pesquisada. Todos esses elementos expressos pelos alunos através de seus desenhos e textos, também foram observados ao longo da pesquisa. Eles expressam o contexto real em que estes alunos estão inseridos e foram representados nos desenhos, questionamentos e observações realizadas durante as aulas, revelando aspectos significativos da cultura escolar e infantil pesquisada, pois guardam relações com seu referente e com suas experiências pessoais em relação a ele.

Apesar de estas propostas terem surgido quase ao final do trabalho de pesquisa e ao final

do trabalho escrito, elas colaboraram para afirmar idéias surgidas a partir de nossas interpretações, e para oportunizar que os alunos pudessem expressar um pouco mais suas opiniões. Esses foram apenas alguns dos desenhos, selecionados entre vários por conterem elementos comuns, que contribuíram para refletir sobre a totalidade escolar, familiar e individual desses alunos, pois traziam um pedaço das culturas dessas crianças que puderam ser apreendidas com suas culturas escolares. Referências: AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993. DUBOIS, Phillipe. Da verossimilhança ao índice. Pequena retrospectiva histórica sobre a questão do realismo na fotografia. In: _____. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1994. p.24-56. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2005. Enviado 30/12/2015 Avaliado em 10/02/2016

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REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORES SOBRE O LETRAMENTO DIGITAL

Giliard Dutra Brandão3 Mariza Gabriela de Lacerda4

Resumo Este artigo tem por objetivo identificar, apresentar e discutir representações sociais de professores de Língua Portuguesa sobre o letramento digital. Para isso, foram utilizados pressupostos teóricos dos Estudos Culturais, da Psicologia Social e, a fim de legitimar as discussões a respeito do letramento digital, serão tecidas perspectivas teóricas de autoras brasileiras. A pesquisa tem caráter qualitativo e interpretativista. Foram utilizados os métodos da Associação Livre de Palavras, Triagens Hierarquizadas Sucessivas e Análise de Conteúdo. Os resultados apontam para representações em relação à importância da escola como agente de letramento e sobre novos modos de ler na tela. Palavras-chave: representação social; letramento digital; professor. Abstract This paper aims to identify, present and discuss social representations of Portuguese teachers about digital literacy. For this, were used theoretical assumptions of Cultural Studies, Social Psychology and in order to legitimize the discussions about digital literacy, theoretical perspectives of Brazilian authors. The research is qualitative and has interpretative character. The methods of Free Association of Words, Successive Hierarchical Trials and Content Analysis were used. The results point to representations about the matter of school as literacy agent and about new ways of reading on screen. Keywords: social representation; digital literacy; teacher. Representação social: breve percurso

A pesquisa com a linguagem é condição imprescindível para que se entendam os processos sociais simbólicos de caráter dialógico, ideológico e interacional. Através da linguagem e, por meio dela, o mundo é representado, concebido e as experiências partilhadas. As representações sociais, doravante RS, constituem uma realidade social, conforme postula Moscovici (2007). Esta realidade tem como características a dinamicidade e heterogeneidade, uma vez que pode ser vislumbrada por diferentes óticas pelo sujeito, por um grupo social, em que se organizam as percepções sobre o mundo. Não obstante, essa realidade é complexa e toma proporções, às vezes, não tácitas, haja vista possíveis cargas de subjetividades.

Esse caráter heterogêneo faz de cada sujeito um ser singular e esta peculiaridade concorre

para a sua construção identitária. Ainda, a identidade não se restringe ao plano individual, mas transita para o coletivo, vice e versa, em um continuum. A linguagem, neste caso, é representada pelo discurso, (re) velado, meio pelo qual o sujeito se mostra, por fim legitima a sua existência. Assim, os pressupostos das representações sociais defendem que cada grupo cria sua visão de realidade, a partir de crenças e experiências. Com isso, são construídas identidades aproximadas, quando o pensamento é coletivo, e a forma com o sujeito lidar com essa representação marca sua singularidade.

3 Mestre em Estudos de Linguagens – CEFET-MG Professor Pesquisador II do Curso de Letras EaD – UFLA/UAB 4 Mestre em Estudos de Linguagens – CEFET-MG Professora de Língua Portuguesa e Inglesa

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Para Goffman (1967) citado por Paiva e Soares (2010), é esse processo discursivo adotado pelo sujeito que o coloca em cenas interacionais. Em relação à linha discursiva, o cientista social define-a como o conjunto de atos verbais, sendo as formas de agir de acordo com as variadas esferas sociais, ou seja, em consonância à situação de comunicação, o que resultado em comportamentos esperados dentre arcabouços interacionais. Sendo assim, essa dinâmica revela que o sujeito se adéqua ao ambiente social, logo não há uma identidade fixa e a construção social é plástica, atualizada e ressignificada.

A respeito dessa discussão, Hall (2006) argumenta que o sujeito pós-moderno não está

preso à determinada identidade, mesmo que possua singularidades. As várias identidades se manifestam em detrimento de uma exigência social, visto que os comportamentos seguem padrões preestabelecidos, de acordo com o contexto social, histórico e cultural. Portanto, instaura que os sujeitos exercem papéis sociais diversos.

Para Moscovici (1978, p. 67), “as representações sociais estão organizadas de maneiras

muito diversificadas segundo as classes, as culturas ou os grupos e constituem tantos universos de opiniões quantas classes, culturas ou grupos existentes”. Tais perspectivas legitimam este artigo que visa, ao final, compreender as representações sociais de professores de língua portuguesa sobre o letramento digital. Ainda,

as representações são conjuntos dinâmicos, seu status é de uma produção de comportamentos e de relações com o meio ambiente de uma ação que modifica aqueles e estas, e não de uma reprodução desses comportamentos ou dessas relações, de uma reação a um dado estímulo exterior. (MOSCOVICI, 1978, p.50)

A partir deste cenário, as opiniões são reportadas em situações reais e concretas do ponto

de vista discursivo. Dessa forma, as representações são mostradas, reveladas e desveladas na relação dos sujeitos com os diversos objetos sociais. Para esta pesquisa, o objeto social é o letramento digital, o qual integra continuamente o espaço escolar. Letramento digital: algumas considerações As novas tecnologias surgem oferecendo uma gama de possibilidades de mediação, em que uma nova textualidade rompe com o paradigma da linearidade do livro impresso, proporcionando ao leitor interatividade a partir de hiperlinks. Diante disso, propõem modelos de relações “entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto e até mesmo, mais amplamente falando, entre o ser humano e o conhecimento” (SOARES, 2002, p. 151). Ainda, na perspectiva de Soares, letramento digital deve ser compreendido como o “estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel” (2002, p. 151). O letramento digital exige práticas de leitura e escrita distintas das formas tradicionais de letramento e alfabetização. Para ser considerado um letrado digital é preciso reconhecer mudanças nas maneiras de utilizar os aspectos linguísticos – signos, códigos, linguagens verbal e não verbal -, também, imagens e desenhos, tomando como pressuposto que as formas de leitura e escrita realizadas no livro impresso são diferentes ao compararmos aos textos digitais, os quais são apresentados em tela digital. Alguns estudos, conforme será discutido ao longo deste artigo, apontam o espaço escolar como um agente de letramento digital, mas evidenciam que para “letrar” digitalmente independe de escolas. No entanto, nesta pesquisa, a escola foi citada como um espaço social importante para se trabalhar com práticas que envolvam, efetivamente, as tecnologias digitais como componente curricular. Isso revela que as novas abordagens pedagógicas e o uso de novos dispositivos impactam positivamente no desenvolvimento de habilidades para a formação dos alunos. Assim

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sendo, o letramento digital é discutido, também, pelo viés do manuseio das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), seja pelo domínio de práticas sociais de leitura, seja no processo de escrita e interação com os vários gêneros digitais nos mais diferentes contextos. Logo, a influência das tecnologias permeia um universo macro, que envolve sistemas simbólicos da política pública para o acesso às redes e tecnologias, da informação, da comunicação, da educação etc. Nesta guisa, a reflexão sobre competências críticas a respeito dos usos dessas novas possibilidades de comunicação e produção de conhecimento é condição essencial para a formação crítica e cidadã dos alunos. Portanto, a escola se destaca como um locus propício para o desenvolvimento da consciência do uso adequado dos novos dispositivos eletrônicos. Percurso metodológico Para identificar, apresentar e discutir as/sobre representações sociais de professores de língua portuguesa, egressos de uma instituição privada, na cidade de Belo Horizonte, acerca do letramento digital, tornou-se necessário organizar os procedimentos metodológicos que revelassem as manifestações desses por meio do discurso. A pesquisa tem caráter qualitativo e interpretativista, porque busca o entendimento de significados atribuídos pelos sujeitos em torno de um objeto, que é o letramento digital (ALVES-MAZZOTI, 1994). Participaram desta pesquisa dez professores de língua portuguesa, os quais são licenciados e bacharéis. Destes, seis possuem, também, licenciatura em língua espanhola. No entanto, todos atuam como professores de língua portuguesa. A escolha dos sujeitos da pesquisa se deu por verificar que nenhum teve em sua grade curricular acadêmica disciplina específica de letramento digital. O tempo de docência dos professores varia entre 1 mês a 5 anos. Primeiramente, a coleta de dados foi realizada por chat, a fim de coletar dados pela técnica da Associação Livre de Palavras (ALP), segundo Abric (1994). Esta técnica possui caráter projetista, porque as associações surgem no discurso dos professores em detrimento ao termo indutivo. Para indução, foi utilizada a expressão “letramento digital”. Portanto, a ALP consistiu, nesta pesquisa, na ação de elencar as seis primeiras palavras que surgiram na mente dos professores quando se dizia a expressão indutiva. Para a teórica da ALP, esta dinâmica proporciona ao pesquisador o trabalho com as representações sociais. Com o objetivo de garantir a confiabilidade das respostas, ou seja, sem haver consultas em sites de buscas, solicitei que respondessem sem avaliar se os termos que pensaram estavam corretos ou não. Assim, estabeleceu-se entre pesquisador e informantes uma relação de confiança, sem a qual torna-se complexa a feitura de pesquisa científica. A credibilidade da pesquisa é o produto dos procedimentos do pesquisador, a seriedade, a ética e o comprometimento dos sujeitos informantes. Dessa maneira, Alves-Mazzoti & Gewandsznajder (1999) explicitam que a importância do contexto nas pesquisas qualitativas emerge, a priori, de um período exploratório. Foram coletadas sessenta palavras no primeiro momento. Deste quantitativo, foram selecionadas pelo método das Triagens Hierarquizadas Sucessivas (THS), cunhada, também, por Abric (1994), dezesseis palavras que prevaleceram, as quais estão organizadas, no quadro, a seguir. QUADRO 1

Informação Computador Interatividade Leitura

Acessibilidade Comunicação Escola Virtualidade

Aprendizagem Internet Escrita Inclusão

Atualidade Compartilhamento Globalização Hipertexto

A partir dessa organização, apoiando-se na ALP e na THS, partiu-se para o segundo momento da coleta de dados. Foi elaborado um questionário, enviado para o e-mail dos

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professores, em que os solicitou a marcação das oito palavras mais expressivas e/ou importantes sobre o letramento digital, tomando como referência as dezesseis palavras expostas no quadro 1. Após a escolha das oito palavras, os professores tiveram de escolher quatro. Posteriormente, eles escolheram duas e, finalmente, elegeram apenas uma palavra, a qual, na concepção deles, representa ou favorece a representação do termo indutor, quando se pensa em letramento digital. Os dez professores participaram dos dois momentos da coleta de dados. A coleta de dados online foi uma questão proposta pelos professores, porque alguns relataram não possuírem disponibilidade para deslocamentos, haja vista trabalharem em duas ou mais escolas. As representações sociais dos professores sobre o letramento digital Ao analisar os dados coletados, provenientes dos discursos dos professores sobre o letramento digital, foi possível categorizá-los em três dimensões: i) escola com enfoque globalizador e espaço inclusivo; ii) paradigmas da comunicação: informacional e relacional e iii) leitura, hipertexto e letramento digital. Estas dimensões foram definidas de acordo com os pressupostos da Análise de Conteúdo, postulados por Bardin (1977), com vistas às categorização semântica. O quadro 2, a seguir, evidencia as quatro palavras mais expressivas para os professores, estes tratados aqui como P1, P2, P3...P10. QUADRO 2

Categoria i

P1: informação, aprendizagem, inclusão e leitura. P2: acessibilidade, globalização, inclusão e leitura. P3: acessibilidade, escola, inclusão e leitura. P4: aprendizagem, comunicação, inclusão e leitura.

Categoria ii

P5: aprendizagem, interatividade, escrita e leitura. P6: informação, interatividade, leitura e internet. P7: informação, interatividade, compartilhamento e virtualidade.

Categoria iii

P8: aprendizagem, informação, interatividade e hipertexto. P9: acessibilidade, leitura, inclusão e escrita. P10: interatividade, leitura, escrita .

O aparelho escolar como agente de letramento: enfoque globalizador e a inclusão

Dos dez professores, duas professoras apontaram para a necessidade de inclusão dos sujeitos no “mundo novo”, ou seja, globalizador, em que os avanços minimizam os espaços proximais das práticas sociais realizadas em ambientes digitais.

A professora “P1” que escolheu a palavra inclusão como a mais importante quando se diz

em letramento digital, trabalhou com alunos da EJA recursos digitais como componentes de aprendizagem. Ela argumenta que essa é a realidade da maioria das pessoas e levar isso para a sala de aula proporcionou aos alunos a sensação de capacidade, porque se sentiram parte efetiva da sociedade globalizada. Sobre essa prática, Zabala (2002, p. 34-35) explica que

a finalidade do sistema educativo é o desenvolvimento de todas as capacidades da pessoa para dar resposta aos problemas que a vida em sociedade coloca, os conteúdos escolares devem ser selecionados com critérios que respondam a tais exigências, o que comporta uma organização que depende mais da potencialidade explicativa de contextos globais do que aqui vem determinada por modelos parcializados em disciplina.

Nessa perspectiva, o autor reafirma que o enfoque globalizador é a maneira como os

conteúdos são organizados, buscando ensinar com objetos fundamentais para que os alunos entendam e compreendam a realidade e possam intervir nela.

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A outra professora, P2, escolheu a palavra globalização como a mais importante entre as

que estavam na lista. Para ela, discutir sobre novas tecnologias e suas facetas é entender que a globalização interferiu e interfere na dinâmica universal, seja com a facilitação de novos dispositivos tecnológicos ou do uso que fazemos deles. Ainda, afirma que pensar em tecnologia é refletir “sobre o âmbito educacional”, visto que os alunos mudaram posturas dentro da sala de aula e os professores necessitam de acompanhar tais mudanças comportamentais por ter expressividade em suas práticas pedagógicas.

Cabe ressaltar que as duas professoras inserem no bojo do letramento digital a

necessidade de entender a dinâmica social contemporânea, a fim de legitimar a importância das tecnologias na vida cotidiana. Sobretudo, por considerarem que o sujeito que não se relaciona não domina ou não entende a relevância das ferramentas digitais para as práticas sociais, torna-se um sujeito excluído à dinâmica social.

Para P3, a escola foi a palavra escolhida como a mais importante quando se pensa em

letramento digital. A professora explica que “ […] a escola é muito importante para que os professores ensinem os alunos sobre o uso adequado das ferramentas digitais. Vejo que muitas escolas têm laboratório de informática, mas os alunos não encontram estrutura pedagógica organizada”. Isso revela um problema atual, haja vista que há problemas estruturais, quando a escola não se dispõe de espaço para práticas de informática ou, quando o tem, não há professores capacitados para atuar com os alunos neste espaço.

A respeito da relação da escola com o letramento digital, Kleiman explica que:

Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes (1995, p. 20).

P4 define a palavra aprendizagem como a mais relevante. Apesar de na explicação não

citar sobre o ambiente escolar, ela esclarece a autonomia em resposta ao ambiente, em diversas situações de comunicação e a palavra escola parece entre as oito mais relevantes.

Com base nessas primeiras representações, torna-se possível inferir que os processos de

aprendizagens estão imbricados aos fenômenos tecnológicos. Quanto à aprendizagem, ela necessariamente não precisa ser escolarizada, porque o desenvolvimento de habilidades concernentes ao letramento digital não se restringe ao ensino regular.

Paradigmas da comunicação: do informacional ao relacional Os processos comunicacionais passaram por mudanças teóricas e metodológicas, partindo do paradigma informacional para o relacional. O primeiro vislumbrava um movimento que visava a emissão da mensagem do emissor ao receptor, representado em muitos livros por uma seta unilateral. No entanto, o paradigma relacional concebe emissor e receptor como interlocutores, os quais se envolvem em uma cena comunicativa bilateral, haja vista a perspectiva da interação, em que há troca linguageira, seja relevada, discursivizada ou sinalizada pelo próprio silêncio, o qual, também, pode ser considerado uma resposta.

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Martín-Barbero defende que

[…] acredito que a mudança começou com a produção de cultura, assim como eu, que comecei afirmando o lugar dos meios, nos estudos dos processos de comunicação, de uma forma que os meios não fossem o ator da comunicação, mas sim um dos atores, muito importante, mas que estavam entrelaçados a outros atores também importantes. De algum modo, tivemos que mudar um pouco a noção de comunicação, para não falar unicamente da transmissão da informação, para entender que comunicação era uma missa, um grupo aos domingos numa igreja. Mesmo que não haja emissor, receptor, canal (2000, p. 157).

Em relação à P5, a interatividade foi eleita a mais relevante, considerando-se o letramento digital. Segundo ela, interatividade representa “pessoas trocando informações, conhecimentos e até mesmo tirando dúvidas”. Com essa representação é possível pensar nas redes sociais, na função dos endereços eletrônicos e, quando ela acrescenta o fato de poder “tirar dúvidas”, vale pensar em pesquisas escolares ou em instituições que promovem cursos a distância. Neste caso, P5 direciona o letramento digital na perspectiva do uso que se faz das ferramentas digitais disponíveis socialmente. A troca de informações remete ao paradigma relacional, em que há interlocuções entre os sujeitos envolvidos na situação de comunicação. A palavra informação foi escolhida pelas professoras P6 e P7, mas como componente imprescindível para a construção de conhecimentos. Para P6, a informação favorece o conhecimento de diversas possibilidades comunicacionais e quando a habilidade é apurada, ou seja, trabalhada nas práticas de leitura e escrita, contribui para uma comunicação “espontânea”, eficaz e adequada às diversas esferas sociais. Já P7, foi categórica e disse que não há conhecimento sem informação, entretanto não teceu comentários sobre o processo de construção do conhecimento, isto é, de que maneira este se dá. Barros (1997), ao abordar as tendências contemporâneas das pesquisas em comunicação, utiliza os estudos teórico-práticos de Martin-Barbero e o cita:

[…] a comunicação se tornou para nós questão de mediações mais do que meios, questão de cultura e, portanto, não só de conhecimentos mas de reconhecimento. Um reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico para rever o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos. Porém num segundo momento, tal reconhecimento está se transformando, justamente para que aquele deslocamento não fique em mera reação ou passageira mudança teórica, em reconhecimento da história: reapropriação histórica do tempo da modernidade latino-americana e seu descompasso encontrando uma brecha no embuste lógico com que a homogeneização capitalista parece esgotar a realidade do atual (p. 16)

Essas discussões remontam a concepção de comunicação, uma vez que a situa como componente cultural, o qual está engendrado na instância da recepção. Por anos, muitos estudos se centraram no sujeito emissor, entretanto a maneira como o receptor recebe as mensagens não foi cenário de pesquisas científicas, haja vista a sua complexidade metodológica. Por exemplo: como estudar a instância de recepção de anúncios divinatórios? Apenas a busca pelas pessoas que acreditam e creditam no que leem nos anúncios e procuram, de fato, o que as videntes prometem seria suficiente? E a outra questão mais complexa: quais critérios teórico e metodológicos serão utilizados para a análise dos dados. São indagações imprescindíveis e iniciais para que o sujeito pesquisador que se compromete a pesquisar acerca da instância de recepção precisará de pensar, com o objetivo de cumprir com o rigor científico esperado para o contexto acadêmico. Letramento digital: leitura hipertextual A leitura figura entre as palavras mais citadas na coleta de dados, conforme consta nos quadros 1 e 2. Para P8, o hipertexto é a palavra mais relevante, por ser um recurso “importante

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devido à leitura e navegação no sítio virtual. Consiste no desencadear do processo de leitura e escrita na tela. Sendo assim, de grande valia no letramento digital”. Esta concepção ancora aos pressupostos de Soares (2002), quando disserta sobre o processo de leitura na tela

[…] o momento atual oferece uma oportunidade extremamente favorável para refiná-lo e torná-lo mais claro e preciso. […] a introdução, na sociedade, de novas e incipientes modalidades de práticas de leitura e de escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web), a Internet […] (p. 146)

O professor P9 escolhe a leitura como a mais importante. Para ele, “a leitura é a base para qualquer atividade do mundo letrado, deve-se se apropriar das diversas estratégias de leitura para buscar o letramento nas mais diversas áreas do conhecimento”. Aqui, nesta justificativa, P9 aponta para o multiletramento, porque expande a ideia de letramento, uma vez que considera outras áreas ou ações cotidianas, além do digital. É possível inferir que sem a leitura não há inserção efetiva no mundo letrado, mas Soares explica que o letramento independe da escola, entretanto esta pode ser potencializadora do letramento e de reflexões acerca das práticas sociais. Segundo Rojo:

[…] 'multiletramento', aqui, significa que compreender e produzir textos não se restringe ao trato do verbal oral e escrito, mas à capacidade de colocar-se em relação às diversas modalidades de linguagens – oral, escrita, imagem, imagem em movimento, gráficos, infográficos etc. - para delas tirar sentido (2004, p.31).

A professora que revelou ter trabalhado mais com o letramento foi a P10. Segundo ela, o

seu trabalho focou as séries iniciais e com alguns gêneros textuais inseridos em meios digitais como e-mail, scrap, preenchimento de fichas e petições online, hipertexto etc. Foram aulas animadas e os alunos se interessaram muito pela dinâmica, sobretudo com o trabalho com blogs. P10 escolheu a palavra leitura como a mais relevante, e argumenta que ela é basilar para se trabalhar com o computador e foi uma das dificuldades que ela percebeu na prática. Na avaliação da leitura dos alunos, a professora percebeu entraves acerca da significação dos novos paradigmas da leitura. Sobre isso, Ribeiro (2008) argumenta que “não parece haver nada de tão novo na leitura do hipertexto, ao menos em relação à ativação de habilidades de leitura” (p. 182). A respeito destas habilidades, as avaliações externas revelam que um número expressivo de alunos não alcançaram, ainda, as habilidades de leitura esperada para a faixa etária, portanto é um problema que professores, escolas, secretarias de educação e familiares precisam se unir para solucionar.

Considerações finais

Esta breve pesquisa revela que as representações são variadas, mas que nas escolhas de algumas palavras estão presentes em quase todos os discursos dos sujeitos as palavras leitura, escrita, interatividade, inclusão e acessibilidade. O hipertexto, também, aparece, porém, com confluência com os processos de leitura, ou seja, na relação da crença do sujeito com a leitura hipertextual. Lévy (1999, p. 56) explica que o hipertexto é “um texto móvel, caleidoscópio, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor”. Portanto, é um movimento de leitura diferente daquele que os alunos aprenderam na fase inicial, considerando-se a aprendizagem da leitura por crianças. Atualmente, há uma percepção de novas práticas de leitura com o crescimento do uso de tablets e celulares, no entanto muitos jovens, ainda, preferem os jogos e não a leitura. Por isso, a escola pode ser um agente de letramento digital potencializador de novas práticas de leitura e escrita não apenas nos espaços escolares, mas com feitura de propostas de atividades a serem realizadas fora da escola, com o intuito de promover novas relações conforme Soares nos apontou. Referências ALVES-MAZZOTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações a Educação. EM ABERTO. Brasília. v. 14, n. 61, p. 60-77, jan-mar. 1994.

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SOBRE O SUICÍDIO PARA E NA IGREJA CATÓLICA: DO ATO HEROICO AO CONDENÁVEL

Guilherme Nogueira Milner5 Resumo Este trabalho vai pensar o suicídio na Igreja Católica, passando desde os primeiros cristãos, onde a morte voluntária era aceitavel, até a condenação do ato por Santo Agostinho em A Cidade de Deus. Verificamos que se a bíblia não vai tecer nenhum comentário negativo sobre a morte voluntária nos casos citados; e o suicídio será apoio dos primeiros cristãos e dos donatistas na roma pagã, posteriormente, entretanto, vai ser um costume condenado pelos Concílios de Órleans, Braga e Toledo. Palavras-Chave: Suicídio, Igreja, sociedade Abstract This paper will think about the suicide in the Catholic Church, from the first christians era, where the voluntary death was aceptable, to the convinction of this act by Saint Augustine in The City of God. It is possible to verify that if the Bible does not comment in a negative way about voluntary death in any of the cited cases; and the suicide will be the support for the first chistians and donatists in Pagan Rome, later, otherwise, will be a habit condemned by the Orleans, Braga and Toledo councils. Keywords: suicide, church, society

Where did we come from? Why are we here? Where do we go when we die?

What lies beyond And what lay before? Is anything certain in life?

(Dream Theater – The Spirit Carries On) Introdução

Segundo Conche, no discurso comum do que pensamos sobre a morte, existem três coisas que sabemos de maneira absolutamente certa: a primeira, é que morremos; a segunda, é que não sabemos o que isso significa e, por fim, a terceira, que nenhum homem jamais o saberá (2000, p. 136). “Nós não deixamos de pensar na morte senão deixando de pensar”. Podemos, entretanto, pensar na morte como sendo, simplesmente, o fim da vida humana. Fim da vida que, lembra Elias (2001), pode ser mitologizado pela ideia de uma pós-vida em outro lugar: no reino de Hades, a terra dos mortos da mitologia grega; no Valhalla ou no Fólkvangr, lugares para onde iam os guerreiros mortos em combate, na cultura nórdica, onde aguardavam para lutar ao lado de Odin ou de Freya; no Inferno ou no Paraíso, conceitos já fortemente presentes no imaginário da cultura ocidental.

De acordo com Durkheim, “entre as diversas espécies de mortes, há as que apresentam a característica particular de serem feito da própria vítima, de resultarem de um ato cujo paciente é o autor; e, por outro lado, é certo que essa mesma característica se encontra na própria base da ideia que comumente se tem do suicídio” (2000, p.11). Durkheim, então, chega na primeira definição de suicídio: “chama-se suicídio toda morte que resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo, realizado pela própria vítima”. Entretanto, como vai lembrar o próprio autor:

5 Mestrando em Literatura - UFF

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Mas essa definição é incompleta; não faz a distinção entre duas espécieis de mortes muito diferentes. Não poderíamos incluir na mesma classe e tratar da mesma maneira a morte do alucinado que se joga de uma janela alta por acreditar que ela se encontra no mesmo nível do chão e a do homem, são de espírito, que se atinge sabendo o que está fazendo. (2000, p.12)

Assim sendo, nas páginas seguintes de O Suicídio, Durkheim vai analisar a incompletude dessa informação para dizer, pois, definitivamente: “chama-se suicídio todo o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado. A tentativa é o ato assim definido mas interrompido antes que dele resulte a morte” (2000, p.14).

Para Rodrigues, “todo suicídio é uma tentativa mais ou menos institucionalizada, segundo as culturas, de solucionar situações contraditórias, que estas culturas oferecem a seus membros”. O autor, então, continua: “recurso tipicamente humano, que não se pode encontrar nem entre os animais, nem entre os homens destituídos de toda forma de consciência, nem entre as crianças muito novas, o suicídio está está constantemente disponível aos seres humanos: contrapoder, a desafiar o poder” (1983, p.109).

Para cada cultura, as suas contradições e seus métodos de solução pelo suicídio: em Tikopia, o marido se mata eventualmente se sua mulher se recusar a permanecer no domicílio conjugal; a mulher pode se matar em caso de infidelidade, uma mulher solteira grávida se seu amante se recusar a desposá-la. […] No Ocidente capitalista, por dívidas ou por conservação da honra. No Japão, os aristocratas praticavam o seppuku, espécie de harakiri que aprendiam desde a infância, cujo gesto sabiam realizar com extraordinária precisão; os subalternos tinham a cabeça cortada por um auxiliar de suicídio (Hatamoto) e, nas camadas médias da nobreza, o indivíduo se abria o ventre com um punhal e seu melhor amigo o decapitava. As mulheres não tinham direito ao seppuku: abriam a jugular com um pequeno punhal que seus pais lhes presenteavam por ocasião do casamento. Nos Estados Unidos, as armas de fogo são preferidas pelos homens, os venenos pelas mulheres; na França, os homens preferem se enforcar e as mulheres se afogar. Em todo suicídio existe uma dimensão de poder: ele é sempre contra algo, contra alguém, por alguma coisa. (1983, p.109-110)

Pode-se, assim, verificar que o suicídio está presente nas mais distintas sociedades e classes

sociais ao longo dos séculos. Vindo de atitudes que podem ser louváveis dentro da sua sociedade: como no caso dos esquimós que se matam pela sobrevivência do grupo (o que Durkheim vai chamar de suicídio altruísta) e como no caso dos japoneses que se suicidavam para restaurar a honra do nome da família; ou condenáveis: como é considerado o ato para a Igreja Católica atualmente, que chega a negar honras fúnebres e, séculos atrás, negava enterro em solo dito sagrado, destinando a alma do suicida para o inferno. O Suicídio na Bíblia John Constatine, protagonista da famosa história em quadrinhos do selo Vertigo, chamada Hellblazer, que em 2005 inspirou o filme Constantine, tem, segundo ele próprio, sua alma destinada ao inferno por uma tentativa de suicídio. Em diálogo com Angela, personagem irmã da suicida Isabel, diz: “Sou um suicida, Angela, quando eu morrer as regras só permitem que eu vá para um lugar”. Em outra cena, Angela ainda dialoga com o padre na esperança de conseguir um enterro católico para a irmã, mas o mesmo se recusa dizendo que “o suicídio é um pecado mortal”, mais uma vez, confirmando a posição atual da Igreja Católica no assunto. Um terceiro diálogo no filme, sobre suicídio, acontece entre Constantine e Angela, sobre a morte de Isabel: “Se ela se matasse sua alma iria direto para o inferno. Lá ela seria desmembrada eternamente, em brutal agonia”, diz

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Constantine. Apesar de estar em acordo com ideia do suicídio da doutrina cristã, esses julgamentos não se apresentam na bíblia, como será aqui mostrado.

No antigo testamento registra-se quatro suicidas. São eles: Sansão, Saul, Abimelec e Aquitofel. Em Juízes (16:1-36)6, Sansão é importunado por Dalila para contar o segredo de sua força, para, assim, entregar o herói aos filisteus. Eventualmente, ele cede:

E descobriu-lhe todo o seu coração, e disse-lhe: Nunca passou navalha pela minha cabeça, porque sou nazireu de Deus desde o ventre de minha mãe; se viesse a ser rapado, ir-se-ia de mim a minha força, e me enfraqueceria, e seria como qualquer outro homem. Vendo, pois, Dalila que já lhe descobrira todo o seu coração, mandou chamar os príncipes dos filisteus, dizendo: Subi esta vez, porque agora me descobriu ele todo o seu coração. E os príncipes dos filisteus subiram a ter com ela, trazendo com eles o dinheiro. Então ela o fez dormir sobre os seus joelhos, e chamou a um homem, e rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça; e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a sua força. E disse ela: Os filisteus vêm sobre ti, Sansão. E despertou ele do seu sono, e disse: Sairei ainda esta vez como dantes, e me sacudirei. Porque ele não sabia que já o Senhor se tinha retirado dele. Então os filisteus pegaram nele, e arrancaram-lhe os olhos, e fizeram-no descer a Gaza, e amarraram-no com duas cadeias de bronze, e girava ele um moinho no cárcere. E o cabelo da sua cabeça começou a crescer, como quando foi rapado. Então os príncipes dos filisteus se ajuntaram para oferecer um grande sacrifício ao seu deus Dagom, e para se alegrarem, e diziam: Nosso deus nos entregou nas mãos a Sansão, nosso inimigo. Semelhantemente, vendo-o o povo, louvava ao seu deus; porque dizia: Nosso deus nos entregou nas mãos o nosso inimigo, e ao que destruía a nossa terra, e ao que multiplicava os nossos mortos. E sucedeu que, alegrando-se-lhes o coração, disseram: Chamai a Sansão, para que brinque diante de nós. E chamaram a Sansão do cárcere, que brincava diante deles, e fizeram-no estar em pé entre as colunas. Então disse Sansão ao moço que o tinha pela mão: Guia-me para que apalpe as colunas em que se sustém a casa, para que me encoste a elas. Ora estava a casa cheia de homens e mulheres; e também ali estavam todos os príncipes dos filisteus; e sobre o telhado havia uns três mil homens e mulheres, que estavam vendo Sansão brincar. Então Sansão clamou ao SENHOR, e disse: Senhor DEUS, peço-te que te lembres de mim, e fortalece-me agora só esta vez, ó Deus, para que de uma vez me vingue dos filisteus, pelos meus dois olhos. Abraçou-se, pois, Sansão com as duas colunas do meio, em que se sustinha a casa, e arrimou-se sobre elas, com a sua mão direita numa, e com a sua esquerda na outra. E disse Sansão: Morra eu com os filisteus. E inclinou-se com força, e a casa caiu sobre os príncipes e sobre todo o povo que nela havia; e foram mais os mortos que matou na sua morte do que os que matara em sua vida. Então seus irmãos desceram, e toda a casa de seu pai, e tomaram-no, e subiram com ele, e sepultaram-no entre Zorá e Estaol, no sepulcro de Manoá, seu pai. Ele julgou a Israel vinte anos. (Juízes 16:15-31)

Como pode-se ver, no caso de Sansão e também nos casos de Saul, Abimelec e Aquitofel, como lembra Alvarez (1998), o suicídio de nenhum deles recebe comentários desfavoráveis. Existe uma “dificuldade sentida pela Igreja para racionalizar sua condenação ao suicídio, já que nem o Antigo nem o Novo Testamento o proíbem diretamente […]. A ideia do suicídio como crime aparece na doutrina cristã tardiamente e como uma reflexão posterior. É só no século VI d.C. que a Igreja finalmente estabelece leis contra o suicídio, e o único registro bíblico que contava para sustentar seu argumento era uma interpretação especial do sexto mandamento: 'Não matarás'”. Sobre isso fala Santo Agostinho no capítulo “Não existe autoridade alguma que, seja qual for o caso, conceda ao cristão o direito de matar-se voluntariamente”:

Não é sem motivo que em parte alguma, nos livros sagrados e canônicos, se poderia encontrar que, mesmo em relação à imortalidade, para prevenir ou conjurar algum mal,

6 Cito a bíblia utilizando o site Bíblia Online, que pode ser acessado pelo link: https://www.bibliaonline.com.br/acf/jz/16 último acesso: 24/01/16

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tenha Deus ordenado ou permitido que alguém se matasse. Proibição, isso sim, devemos ler na lei que nos diz: Não matarás, sem acrescentar: o próximo, como acontece com a proibição de falso testemunho: não levantarás falso testemunho contra o próximo. Entretanto, o falso testemunho contra si mesmo devemos acreditá-lo isento de crime, se o amor ao próximo está contido na regra do amor a si mesmo? Com efeito, está escrito: Amarás o próximo como a ti mesmo. Se, por conseguinte, ninguém é menos culpado por falso testemunho contra si mesmo do que contra o irmão, embora a lei, por falar apenas do próximo, pareça não se estender a proibição ao falso testemunho levantado a si mesmo, razão mais forte existe para pensar que ao homem não é permitido matar, pois a injunção aboluta: Não matarás não excetua pessoa alguma, mesmo quem a recebe. […] Não matarás pessoa alguma nem mesmo a ti. Com efeito, quem se mata não é matador de homem? (1990, p.50-51)

No capítulo que segue, “Homicídios não considerados criminosos”, ao defender o próprio Sansão, Santo Agostinho, entretanto, cai em contradição dando para a “autoridade divina” ordem temporária e particular para se matar alguém:

A mesma autoridade divina estabeleceu, porém, certas exceções à proibição de matar alguém. Algumas vezes, seja como lei geral, seja por ordem temporária e particular, Deus ordena o homicídio. Ora, não é moralmente homicida quem deve à autoridade o encargo de matar, pois não passa de instrumento, como a espada com que fere. Desse modo, não infringiu o preceito quem, por ordem de Deus, fez guerra ou, no exercício do poder público e segundo as leis, quer dizer, segundo a vontade da razão mais justa, puniu de morte criminosos; assim também não acusam Abraão de crueldade, mas gabam-lhe a piedade, quando, assassino por obediência, quer matar o filho. E há razão para perguntar se é de reconhecer-se ordem divina na morte da filha de Jefté, ao correr ao encontro do pai, que fizera voto de imolar a Deus o primeiro ser com que deparasse ao retornar do combate e da vitória. Se perdoam a Sansão o haver-se sepultado com os inimigos sob as ruínas do templo de Dagon, é que obedecia à ordem interior do Espírito que por seu intermédio fazia milagres. Exceto as referidas exceções, em que o homicídio é ordenado por lei geral e justa ou por ordem expressa de Deus, fonte de toda justiça, quem mata o irmão ou a si mesmo é réu do crime de homicídio. (1990, p51-52)

Se Abraão e Sansão, segundo Santo Agostinho, estariam perdoados, “Lucrécia, que se matou por haverem-na estuprado”, título do Capítulo XIX, não terá a mesma sorte:

Que castigo nossa severa justiça não reserva ao assassino? Mas o assassino é Lucrécia, tão elogiada Lucrécia. Foi ela quem derramou o sangue da casta e infortunada Lucrécia. Agora, dai a sentença. Não podeis fazê-lo. Sua ausência subtraiu-a a vosso julgamento. Então, por que os elogios prodigados à matadora da virtuosa mulher? Poderíeis defendê-la perante os juízes do inferno, tais como vossos poetas os representam? Não está Lucrécia no lugar para que descem os infortunados que com as próprias mãos arrancaram de si vida inocente e por desamor à luz atiraram para longe a alma? Não deseja voltar à vida? O destino é inflexível e as águas paradas no pântano sinistro retêm-na para sempre. Talvez não se encontre lá, pois, matando-se, não cedeu ao desespero do pudor, mas à secreta censura da consciência. Com efeito, quem sabe (só Lucrécia pode sabê-lo) se, vítima de violência irresistível, todavia acabou consentindo no prazer e depois, atormentada pelo remorso, quis expiar com o próprio sangue a falta cometida? Contudo, não devia matar-se, se lhe era possível sacrificar a falsos deuses por sincero arrependimento. Mas se não é assim, se não é verdade que de ambos apenas um praticou adultério, se ambos são culpados, um de violência declarada, o outro de consentimento secreto, não foi nenhuma Lucrécia inocente que ela matou e seus agutos defensores podem afirmar que não está nos infernos com os infortunados que pelas próprias mãos arrancaram de si vida inocente. Surge, agora, inevitável dilema: posto de lado o homicídio, prova-se o adultério; absolvida do adultério, é homicida confessa. Não há como escapar a estes extremos: se cometeu adultério, por que os elogios, se casta, por que a morte? (1990, p.49)

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A contradição é evidente: “não existe autoridade alguma que, seja qual for o caso, conceda

ao cristão o direito de matar-se voluntariamente”, diz primeiro, depois, alguns homicídios não são considerados criminosos por terem sido incentivados pela autoridade divina. Já Lucrécia, coitada, então, precisa ser condenada por ter sido a senhora do seu próprio destino; como muitos outros suicidas também serão.

Indo para o Novo Testamento, e, lembrando, novamente, do perdão do ato de Sansão por Santo Agostinho, Judas Iscariotes, aquele que traiu Jesus, tem seu enforcamento narrado no evangelho de Mateus, o primeiro livro do Novo Testamento, desta forma:

Então Judas, o que o traíra, vendo que fora condenado, trouxe, arrependido, as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos, Dizendo: Pequei, traindo o sangue inocente. Eles, porém, disseram: Que nos importa? Isso é contigo. E ele, atirando para o templo as moedas de prata, retirou-se e foi-se enforcar. E os príncipes dos sacerdotes, tomando as moedas de prata, disseram: Não é lícito colocá-las no cofre das ofertas, porque são preço de sangue. (Mateus 27:3-6)7

Novamente, nenhum julgamento é feito por São Mateus sobre o suicídio. Entretanto, o mesmo vai ser condenado, novamente, por Santo Agostinho:

Se a ninguém é permitido matar, por sua própria autoridade, nem mesmo criminoso, pois nenhuma lei concede semelhante direito a quem quer que seja, toda pessoa que se mata é homicida, mais culpado, matando-se, quanto menos o é na causa por que se condena a morrer. Com efeito, se o crime de Judas nos é justamente odioso e a Verdade afirma haver-lhe o desespero acrescido e não expiado o parricídio, pois seu abominável arrependimento, incrédulo à misericórdia de Deus, lhe fechou todas as vias de salutar penitência, não deve a pessoa abster-se ainda mais do assassínio de si mesma quando a consciência nada tem que expiar de maneira assim cruel? Judas mata-se; entretanto, não é da morte de Jesus Cristo apenas, mas também da sua que morre culpado; por causa de seu crime, mas do segundo crime, é que se mata.

Torna-se visível que a condenação do suicídio por Santo Agostinho não tem como parâmetro a Bíblia, mas, como observou Rousseau, ele vai tirar seus argumentos contra a morte voluntária do Fédon, de Platão. “Os argumentos de Agostinho foram instigados pela suicidomania que era, acima de qualquer outra coisa, a marca distintiva dos primeiros cristãos. […] O cristianismo se fundava na crença de que todo corpo humano é veículo de uma alma imortal que será julgada não neste mundo, mas no além. E, como toda alma é imortal, todas as vidas são igualmente valiosas. Como a vida em si é um presente de Deus, rejeitá-la é o mesmo que rejeitá-Lo – o que equivale a comprar uma passagem só de ida para a danação eterna (ALVAREZ, 1999, p.65). Dito isso, entende-se que a condenação cristã do suicídio fundamenta-se nesse respeito pela vida e pela alma, então, também será condenado o infanticídio e o aborto, nessas mesmas premissas. Os primeiros cristãos e a Igreja atualmente Rodrigues (1983, p.108) vai trabalhar a ideia de que “a Igreja Católica sempre fez do suicídio um pecado grave: Judas, segundo ensinava a doutrina tradicional, é o único homem que se sabe seguramente no Inferno, não por ter traído Cristo, mas por se ter suicidado. Na Idade Média, ela permitia a mutilação do corpo do suicida, a confiscação de ses bens em favor do senhor, a privação de sepultura em terra consagrada e a recusa de preces em sua intenção”. Entretanto, só no século VI d.C. que os bispos - incitados por Santo Agostinho – vão estabelecer as leis e entrar em ação contra os suicidas e, em particular, contra a suicidomania que rondava os primeiros cristãos nos tempos em que estes eram perseguidos na Roma pagã.

7 Como lido em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/27 último acesso: 24/01/16

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Muitos autores vão defender que quanto mais sofisticada e racional uma sociedade se torna,

mais ela se distancia de medos supersticiosos e mais facilmente ela tolera o suicídio. Os escritos estoicos estão cheios de exortações ao suicídio, o texto mais famoso é o de Sêneca (ALVAREZ, 1999, p.74):

Homem tolo, de que lamentas e de que tens medo? Para onde quer que olhes existe um fim para os males. Vês aquele precipício escancarado? Ele leva à liberdade. Vês aquele oceano, aquele rio, aquele poço? A liberdade mora dentro deles. Vês aquela pobre árvore mirrada e seca? De cada galho seu pende a liberdade. Teu pescoço, tua garganta, teu coração, todos oferecem tantos meios para fugir da escravidão. […] Indagas o caminho para a liberdade? Tu o encontrarás em cada veia de teu corpo.

“Sêneca vai acabar pondo em prática os seus preceitos: mata-se com uma punhalada para

escapar da vingança de Nero, que um dia já fora seu pupilo. A mulher de Sêneca, Paulina, não menos estoica, tentou morrer junto com ele matando-se da mesma forma, mas foi salva (1999, p.74). Alvarez, então, vai pensar sobre os primeiros cristãos:

Talvez esse tenha sido o motivo por que a serenidade estoica tenha sido assimilada com tanta facilidade pela histeria religiosa dos primeiros cristãos. O suicídio racional era uma espécie de corolário aristocrático da sede de sangue das classes populares. O cristianismo, que nasceu como uma religião para os pobres e rejeitados, aproveitou-se dessa sede de sangue, combinou-a com o hábito do suicídio, e transformou a ambos numa sede de martírio. Os romanos podem ter lançado cristãos aos leões por puro passatempo, mas não estavam preparados para o fato de os cristãos encararem esses animais como instrumentos de glória e salvação. […] A perseguição aos primeiros cristãos foi menos uma perseguição religiosa e política do que uma perversão que eles próprios buscavam. Para os sofisticados magistrados romanos, a obstinação cristã era principalmente um embaraço: como quando os cristãos se recusavam a fazer as reverências simbólicas à religião oficial que salvariam suas vidas ou, se isso falhasse, recusavam-se a tirar proveito do conveniente intervalo entre o julgamento e a execução para fugir. O embaraço se transformava em irritação quando esses protomártires, aprendizes de táticos revolucionários à frente de seu tempo, respondiam à clemência com provocações. […] O glorioso batalhão de mártires chegou a somar milhares de homens, mulheres e crianças, que eram decapitados, queimados vivos, arremessados do alto de penhascos, tostados em grelhas e cortados em pedaços – todos mais ou menos gratuitamente, por sua livre e espontânea vontade, como atos de deliberada provocação. O martírio foi uma forma romana de perseguição na mesma medida em que foi uma invenção cristã. (Alvarez, 1999, p. 77-78)

O suicídio, então, que séculos depois seria motivo de repúdio pelos bispos, era uma “saída válida” para os primeiros cristãos em Roma. Estes se apropriaram também das atitudes romanas perante a morte e o suicídio e demonstravam a mesma indiferença pela morte. “Vista a partir do paraíso cristão, a vida em si era na melhor das hipóteses, um mal: quanto mais plena a vida, maior a tentação de pecar. A morte, portanto, era um alívio aguardado ou perseguido com impaciência” (1999, p.78). Conta-se ainda a história de alguns padres, como Tertuliano, que proibia o seu rebanho de até escapar da perseguição, prometendo a vingança lá do Paraíso contra os que derramaram sangue cristão.

É nesse cenário que os donatistas vão aparecer, entre os séculos IV e V d.C., e que vão inspirar Santo Agostinho a comentar: “Suicidar-se por respeito ao martírio é o passatempo diário desse grupo”. Segundo Alvarez, (1999, p. 80), Agostinho também tinha consciência do ensinamento cristão: se o suicídio fosse aceito como uma maneira de evitar o pecado, ele então se tornaria o passo lógico para todos os recém-batizados. Tal sofisma, combinado à suicidomania dos mártires, levou Agostinho a forjar argumentos para provar que o suicídio era “uma detestável e condenável perversão”, um pecado mortal maior do que qualquer outro que se pudesse cometer entre o

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batismo e a morte divinamente ordenada, abrindo o espaço da condenação com que o suicídio é pensado e tratado hoje dentro da Igreja Católica. Assim, em 533d.C., o Concílio de Orléans proibiu que se prestassem honras fúnebres a todo aquele que se matasse quando sob a acusação de ter cometido algum crime. Em 562, o Concílio de Braga vai proibir que seja prestado honras fúnebres a todo e qualquer suicida, independentemente da sua posição social, motivo ou método. Por fim, em 693, o Concílio de Toledo determinou que até mesmo aquele que não tivesse sucesso na sua tentativa de suicídio fosse excomungado.

Vê-se, então, o caminho: do ato aceitável e heroico, dos primeiros cristãos, ao condenável e perturbador. Condenação essa que ainda é muito forte dentro da igreja, como visto em matéria na revista Catolicismo8, revista de cultura e atualidades, quando perguntam ao cônego José Luiz Villac:

Em minha família tivemos um ente querido que cometeu suicídio, era irmão de minha esposa, e no seu velório o Padre se recusou a rezar por sua alma. Eu e minha família ficamos extremamente chocados. Gostaria de saber se o senhor poderia me explicar a atitude do Padre. Se foi uma atitude isolada ou se é sempre assim. Podemos mandar rezar Missas em intenção da alma de meu cunhado?

Sua resposta, em muitos parágrafos, que transcrevo integralmente aqui por acreditar na importância dela, negava o ato, em duras palavras, como já era de se esperar:

Nada justifica o suicídio porque, por mais árduas que sejam as condições de existência de uma pessoa, o homem foi feito para enfrentar durante a vida situações adversas, às vezes duríssimas. E Deus nunca recusa ao homem os auxílios de que precisa para cumprir seus deveres familiares, profissionais e sociais e para superar todas as provações.[...]O desespero do suicida é uma negação pecaminosa da misericordiosa paternidade de Deus e da promessa infalível de Jesus Cristo. O suicídio é um pecado escandaloso, que atenta contra os direitos de Deus, supremo e único Senhor da vida e da morte. É um pecado que agride brutalmente o convívio familiar e social, privando os familiares e os amigos da presença de um ente querido, e muitas vezes de um sustentáculo material, afetivo e espiritual. É um pecado gravíssimo que precipita a alma diretamente no inferno. Por esta razão, as leis da Santa Igreja (cânones 1184/5) vedam conceder exéquias eclesiásticas aos “pecadores manifestos” — como é o caso dos suicidas — “a não ser que antes da morte tivessem dado algum sinal de arrependimento”. O ítem 3º do cânon 1184 introduz a precisão de que a privação das exéquias eclesiásticas deve ser aplicada aos “pecadores manifestos, aos quais não se possam conceder exéquias eclesiásticas sem escândalo público dos fiéis” O sacerdote, ao recusar-se a rezar pela alma da pessoa que cometeu o suicídio, presumivelmente examinou a situação concreta para, conforme diz o ítem acima referido, evitar o “escândalo público dos fiéis”. Compreende-se, pois, a atitude assumida por ele. Convém ainda acrescentar que não basta a mera suposição de que talvez, nos últimos instantes (entre o ato suicida e a morte efetiva), pela infinita misericórdia de Deus, ter-se-á arrependido de seu ato tresloucado e obtido o perdão. É preciso que haja algum testemunho fidedigno de que o suicida, antes de expirar, tenha por exemplo beijado devotamente um crucifixo ou alguma imagem ou objeto piedoso, tenha batido no peito dando mostras de arrependimento de seu pecado, tenha pedido que lhe levassem um sacerdote, ainda que este não tivesse chegado a tempo etc. Sem estes sinais, o sacerdote não pode dar-lhe “sepultura eclesiástica”, ou seja, rezar publicamente pelo defunto, encomendar-lhe a alma, benzer sua sepultura etc., nem celebrar as Missas de exéquias. De qualquer modo, como resta a possibilidade de Deus ter concedido in extremis ao suicida a graça do perfeito arrependimento, sem que ele o tenha podido manifestar publicamente, é permitido rezar privadamente pelo defunto, e mesmo encomendar

8 http://catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=123&mes=novembro2001 último acesso: 25/01/2015

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Missas em sua intenção, desde que estas sejam celebradas privadamente e assistidas só pelos familiares e amigos mais íntimos, sem comunicar ao ato nenhum caráter social (como anúncios em jornal, por exemplo). Infelizmente, essas sábias e razoáveis disposições eclesiásticas, que antigamente eram bem conhecidas dos fiéis, hoje não mais o são, o que explica que o consulente e sua família tenham ficado extremamente chocados com a atitude do sacerdote. Em vista disso, teria sido conveniente, talvez, que ele desse uma explicação à família. A triste realidade de nossos dias é que vivemos numa sociedade que se distanciou de Deus. Noções como a da extrema seriedade da vida, na qual devemos, pela honestidade de nossos atos, ganhar o Céu, e portanto evitar qualquer transgressão dos Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja, não fazem mais parte das cogitações habituais de um número enorme de nossos contemporâneos. Restam apenas alguns fiapos de tradições cristãs, como a de rezar pelos defuntos no velório, chamar um Padre para que encomende a sua alma etc. E ainda é forçoso reconhecer que mesmo esses fiapos estão desaparecendo. Contudo, a reação do consulente e de sua família, de ficarem chocados com a recusa do sacerdote de rezar publicamente pelo suicida, compreende-se em função do desejo de obter para ele a salvação. Que eles rezem, pois, pelo seu ente querido, pois Deus, em sua infinita misericórdia, na previsão dessas orações, pode ter dado ao defunto a graça do arrependimento in extremis. Até lá pode chegar a misericórdia divina!

Essa postura extremamente firme, crítica e, também, retrógrada, apesar de considerá-las como “sábias e razoáveis disposições eclesiásticas”, contra o suicídio, que já começa com: “Nada justifica o suicídio porque, por mais árduas que sejam as condições de existência de uma pessoa, o homem foi feito para enfrentar durante a vida situações adversas, às vezes duríssimas.”, felizmente, não vai ser adotada por outra página da Igreja Católica, a Canção Nova9. Em artigo de nome “Um suicida está condenado?”, o autor já introduz o assunto em tom mais cordial e compreensivo, apesar de ainda colocar o ato como pecado mortal e condenável:

Antigamente se pensava que sim, embora a Igreja nunca tenha ensinado isso oficialmente; pois ela nunca disse o nome de um condenado. Hoje, com a ajuda da psicologia e psiquiatria, sabemos que a culpa do suicida pode ser muito diminuída devido a seu estado de alma. […] O Catecismo da Igreja Católica ensina que: §2280 Cada um é responsável por sua vida diante de Deus que lha deu e que dela é sempre o único e soberano Senhor. Devemos receber a vida com reconhecimento e preservá-la para sua honra e a salvação de nossas almas. Somos os administradores e não os proprietários da vida que Deus nos confiou. Não podemos dispor dela. §2281 O suicídio contradiz a inclinação natural do ser humano a conservar e perpetuar a própria vida. É gravemente contrário ao justo amor de si mesmo. Ofende igualmente o amor do próximo porque rompe injustamente os vínculos de solidariedade com as sociedades familiar, nacional e humana, às quais nos ligam muitas obrigações. O suicídio é contrário ao amor do Deus vivo. Mas o Catecismo lembra também que a culpa da pessoa suicida pode ser muito diminuída: §2282 Se for cometido com a intenção de servir de exemplo, principalmente para os jovens, o suicídio adquire ainda a gravidade de um escândalo. A cooperação voluntária ao suicídio é contrário à lei moral. Distúrbios psíquicos graves, a angústia ou o medo grave da provação, do sofrimento ou da tortura podem diminuir a responsabilidade do suicida. Portanto, ninguém deve pensar que a pessoa que se suicidou esteja condenada por Deus; os caminhos de Sua misericórdia são desconhecidos de nós. O Catecismo manda rezar por aqueles que se suicidaram: §2283 Não se deve desesperar da salvação das pessoas que se mataram. Deus pode, por caminhos que só ele conhece, dar-lhes ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida.

Vemos, então, uma postura mais compreensiva com o suicida no tom do segundo texto que leva em consideração distúrbios psíquicos para diminuir a culpa do ato, algo que não se vê no

9 http://formacao.cancaonova.com/igreja/doutrina/um-suicida-esta-condenado/ último acesso: 25/01/15

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primeiro; e nem sendo minimamente citado. É de muito interesse colocar os dois para análise pois verifica-se que mesmo em textos contemporâneos católicos o suicídio será tratado de forma levemente distinta. Um deles, inclusive, aceitando os avanços científicos no campo da psicologia e psiquiatria que ajuda a tirar o suicídio do campo moral para o eixo científico. Dessa forma, aceitando algo que Durkheim se encarregou de fazer no século XIX, com a publicação de O Suicídio, em que coloca a morte voluntária no domínio da ciência social e não mais trabalhando-o em questões de moralidade. A proibição do suicídio, dando-o como um pecado e condenando o pecador para a eterna danação, por Santo Agostinho e pelos outros bispos da Igreja, então, veio para resolver um problema que foi criado dentro de sua própria história com os suicídios dos primeiros cristãos em Roma e com a história de martírio dos donatistas. Com a influência da Igreja na sociedade (e ainda na sociedade contemporânea), essa condenação da morte voluntária, que é vista como um crime contra si próprio, um pecado, vai extrapolar os limites dos templos e igrejas para ser perpetuado no senso comum da sociedade e influenciar leis sobre o assunto. Não é incomum, inclusive, encontrar entre os não adeptos de nenhuma religião que pensam no ato como um absurdo; sem levar em conta e nem respeitar o direito individual que leva até essa escolha. Essa proibição, ao menos, tem a serventia de, supostamente, diminuir o número de casos. Segundo Feijó (1998, p.38), as pessoas religiosamente orientadas tem menor incidência de suicídio. Dukheim (2000), enfim, vai então pensar no suicídio anômico que ocorre quando quando se a sociedade era incapaz de controlar e regular o comportamento dos indivíduos. O declínio das crenças religiosas bem como, também, o excessivo abrandamento dos códigos profissionais e conjugal, eram manifestações dessa anomia. Referências Bibliográficas: AGOSTINHO, Sto. A Cidade de Deus (Contra os pagãos). Petrópolis: Editora Vozes, 1990. ALVAREZ, A. O Deus Selvagem – um estudo do suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 CONCHE, Marcel. Orientação Filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DIAS, Maria Luiza. Suicídio – Testemunhos de Adeus. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997. DURKHEIM, E. O suicídio – Estudo de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ELIAS, Nobert. A Solidão dos Moribundos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. FEIJÓ, Marcelo. Suicídio – Entre a Razão e a Loucura. São Paulo: Lemos editorial. 1998. RODRIGUES, José Carlos. O Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983. STENGEL, Erwin. Suicídio e Tentativa de Suicídio. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1980. VENEU, Marcos Guedes. Ou não ser – uma introdução à história do suicídio no ocidente. Brasília: Editora UNB, 1993. Enviado em 30/12/2015 Avaliado em 10/02/2016

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ESTUDO DA CONFIGURAÇÃO DO NARRADOR EM OS PAPÉIS DO INGLÊS, DE RUY DUARTE DE CARVALHO

Guilherme Nogueira Milner10 Resumo Aqui será analisado a configuração do narrador em Os Papeis do Inglês, livro do antropólogo e romancista angolano que recria a estória de um Inglês que em 1923 se suicidou no Kwando, segundo uma crónica do período colonial português na África, de Henrique Galvão. Palavras-Chave: Narrador, Literatura Africana, Teoria de Literatura Abstract On these pages, it’s intended to analise the narrator’s configuration in “Os Papeis do Inglês” (The English Papers, free translated) a book written by the Angolan anthropolist and novelist, who recreates a story of and English man in 1923 that commited suicide in Kwando, according to a cronicle released by Henrique Galvão, during the Portuguese colonial period in Africa. Keywords: Narrator, African Literature, Literary theory. Introdução Este trabalho apresenta os resultados da pesquisa de iniciação científica que foi desenvolvida entre agosto de 2014 e abril de 2015. O projeto de pesquisa inicialmente previa o estudo da questão teórica do foco narrativo, associado à das relações entre literatura e antropologia, bem como, também, à questão do sujeito ficcional. O objetivo principal, entretanto, era elaborar uma análise interpretativa do romance Os papéis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, e previa-se também o estudo de outras obras do escritor angolano, de modo a situar o romance num contexto mais amplo. Aqui, objetivamos apresentar o nosso trabalho de leitura e debate que gerou os resultados parciais neste demonstrado. A Configuração do Narrador em Os Papéis do Inglês Desde o princípio, algo que acredito que deu o tom do nosso trabalho foi justamente encontrado logo na primeira troca de olhar com o romancista e antropólogo português, que verifiquei enquanto estava buscando Os Papéis do Inglês no site da Companhia das Letras11. Diz o autor:

Eu falo daquilo que sei, daquilo que experimentei, o que revela evidentemente a minha origem de classe, a minha formação. Não pode deixar de ser assim, nem eu quereria que fosse de outra maneira.

Nessa passagem, o autor deixa claro a influência da sua formação nos seus romances, deixando-nos diante de um romancista que pode ser trabalhado à luz de Geertz, nas questões da escrita etnográfica, do “estar lá”, ainda que romanceado. Influência esta que poderá ser muito bem estudada com “As águas do Capembáua”, bem como, também, Os papéis do Inglês. Entretanto, a primeira questão que ficamos de pensar para a obra de Ruy Duarte de Carvalho foi, justamente, a configuração do narrador.

10 Mestrando em Literatura - UFF 11 http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12122 Último Acesso: 03/10/2015

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Assim sendo, na obra Os papéis do Inglês, escrito por Ruy Duarte entre 1999-2000 e, segundo afirma o autor na contracapa do livro, como “uma narrativa breve e feita agora da invenção completa da estória de um Inglês que em 1923 se suicidou no Kwando depois de ter morto tudo à sua volta segundo uma sucinta crónica de Henrique Galvão”, importa-nos perceber as nuances do narrador, ou seja, como este é apresentado dentro do romance. Primeiramente, é necessário verificar a percepção desse narrador como um ser “incompleto” que vai progredir na história conforme são lhes revelados fatos. Pode-se incluir também que, mesmo que o narrador tenha o conhecimento de todos os fatos e esteja simplesmente contando esta história para outro personagem ou para o leitor, a impressão do leitor sobre o narrador será a de que ele conta, descobre e inventa a história conforme as pistas vão surgindo e sendo por ele recebidas. Aqui, apoiado nos textos críticos sobre a questão da narrativa e olhando-a de acordo com Jonathan Culler, Teoria Literária – Uma Introdução, podemos encontrar recursos necessários para pensar estas características do narrador encontradas em Os Papéis de Inglês. Conforme Culler (1991):

Quando a narração em terceira pessoa focaliza acontecimentos através de um personagem específico, ela pode empregar variações semelhantes, relatando como as coisas pareceram ao personagem na época ou como são percebidas mais tarde. A escolha da focalização temporal faz uma diferença enorme nos efeitos de uma narrativa. As histórias de detetive, por exemplo, relatam apenas o que o focalizador sabia em cada momento da investigação, guardando o conhecimento do resultado para o clímax.

Nesta passagem, também podemos analisar que é visível a aproximação do narrador de Os

Papéis de Inglês com um típico narrador detetivesco que vai relatar os acontecimentos conforme as pistas surgem, dando a impressão de um conhecimento parcial da história, que está se revelando e que vai sendo, então, revelada para o leitor. Um segundo ponto de importância que foi levantado durante nossas discussões refere-se à intervenção do autor no romance e das diferenças de estratégia no contar versus mostrar. Todorov trabalha a questão dizendo que “todos os romances contam a história de sua própria criação, a sua própria história” e, junto disso, Macedo (1999, p.82) vai colocar que “essa história implícita necessariamente inclui a história do autor que a está escrevendo e, portanto, mesmo se disfarçadamente, a revelar a sua subjetividade no que escreve: o parecer não fazê-lo é apenas uma estratégia literária”. Contudo, “evidencia-se que mesmo o autor não-interveniente continua a intervir no seu texto através da organização estrutural que lhe confere, que continua a manifestar a sua subjetividade através da objetividade aparente dos fatos que escolheu como significativos, e que continua a comentá-los através do modo como os justapõe” (idem, p. 82). Ainda sobre isso, Luiz Costa Lima (1981) relembra as ideias de que a entidade empírica que atende pela designação de autor manifestaria seus traços singulares em qualquer que fosse a obra realizada, qualquer que fosse o gênero. A autoria contudo permaneceria coerente a seu perfil: a linguagem adotada não perturbaria a identidade da fonte. Ideia esta que faz remeter bastante à formação de Ruy Duarte de Carvalho como antropólogo e a forma que isso aparece em seus escritos como, por exemplo, em “As águas do Capembáua”, verifica-se que estamos diante de texto literário que denuncia a política colonial portuguesa e a maneira como afeta a organização social dos pastores kuvale. Por outro lado, em Os papéis do Inglês, pode-se conferir uma certa aproximação com o domínio da ficção como não se vê em em “As águas do Capembáua” e recorrendo à autoficção visto que o narrador é o próprio escritor-antropólogo, tornado personagem para, assim, gerar uma narrativa bem fragmentada que vai consistir de passagens de diários pessoais, diário de campo, apontamentos de leitura, anotações para uma ficção, roteiro cinematográfico, aulas e seminários de antropologia, contudo, sem deixar de mostrar o problema das relações coloniais na África. Nestes fragmentos de relatos de viagem do narrador-personagem, entradas de diário, roteiro e anotações do próprio que vão servir para criar a narrativa da busca quase que obsessiva por encontrar os tais “papéis do inglês”, ou seja, os papéis do Perkings, personagem do período colonial português de um evento narrado por Henrique Galvão na crônica “O branco que odiava as

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brancas”, que integra o volume Em terra de pretos, 1929. O assassinato cometido por Perkings ao atirar contra um caçador grego e seu posterior surto de violência em sua fazenda, “de ter morto tudo à sua volta”, seguido de suicídio faz com que o narrador-personagem de Os papéis do inglês tente recontar uma nova versão para esta história que deixa diversos buracos e lacunas para serem preenchidas e, segundo ele, apesar de extrapolar as informações e gerar uma versão provavelmente fictícia da história, ela pode ser possivelmente mais verdadeira. Desta forma, entramos na discussão do contar uma história e mostrar uma história. Como já foi dito aqui, mesmo que não seja da intenção do autor intervir na narrativa, ele vai acabar fazendo ao escolher a estrutura da história e os fatos que ele julga ser relevantes para serem contados, enquanto deixa outros de fora e, repetindo, “o parecer não fazê-lo é apenas uma estratégia literária”. Verifica-se essa oposição na transmissão apropriada da estória do autor para o leitor entre mostrar e contar, que, segundo Friedman (2002), gera uma série de questões, como:

1) quem fala ao leitor? (autor na primeira ou terceira pessoa, personagem na primeira ou ostensivamente ninguém?); 2) De que posição (ângulo) em relação à estória ele a conta? (de cima, da periferia, do centro, frontalmente ou alternando?); 3) Que canais de informação o narrador usa para transmitir a estória ao leitor? (palavras, pensamentos, percepções, e sentimentos do autor; ou palavras e ações do personagem; ou pensamentos, percepções e sentimentos do personagem: através de qual - ou de qual combinação - destas três possibilidades as informações sobre estados mentais, cenário, situação e personagem vêm; e 4) A que distância ele coloca o leitor da estória? (próximo, distante ou alternando? E, ademais, já que nossa principal distinção é entre "contar" e "mostrar", a sequência de nossas respostas deveria proceder gradualmente de um extremo a outro: da informação à inferência, da exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da ideia à margem.

Assim, Friedman coloca em questão o sumário narrativo (contar) versus cena imediata (mostrar) e "a principal diferença entre narrativa e cena segue o modelo geral-particular: o sumário narrativo é uma apresentação ou relato generalizado de uma série de eventos cobrindo alguma extensão de tempo e uma variedade de locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge tão logo os detalhes específicos, contínuos e sucessivos de tempo, espaço, ação, personagem e diálogo começa, a aparecer. Pode-se verificar, então, em os Papeis do Inglês, dado o caráter fragmentário da história e como ela é passada para o leitor, um tipo de narrador intruso onisciente na medida em que ele conhece toda história e trata de (re)contá-la, mas, ao mesmo tempo, um conhecimento que vai ser passado de forma gradual e fragmentada para o leitor. Verifica-se, então, que o romance tem “dois livros” em que predomina o contar e o intermezzo em que predomina o mostrar, este último não deixando de lado a formação em antropologia do autor. Referências Bibliográficas CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papéis do inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica – antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002. COSTA LIMA, Luiz. Representação social e mimesis. Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1981. CULLER, Jonathan. “Narrativa”. In Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999; trad. Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. FRIEDMAN, Norman. “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico”. In Revista USP. São Paulo, CCS-SP, nº153, março/maio 2002; trad. Fábio Fonseca de Mello, pp. 166 a 182. GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. MACEDO, Helder. Almeida Garret e as Ambiguidades do Romantismo. SCRIPTA, Belo Horizonte, v.3, n.5, p.80-88, 2º sem. 1999. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo, Perspectiva; Brasília, 2003. ________. “As categorias da narrativa literária”. In Análise estrutural da narrativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

Enviado em 30/12/2015 Avaliado em 10/02/2016

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A POLISSEMIA DA LINGUAGEM:PONDERAÇÕES A PARTIR DE M. PÊCHEUX [1983]

Hélder Sousa Santos12 Resumo Propomo-nos, com o presente ensaio, compreender princípios teórico-metodológicos (re)pensados por M. Pêcheux (1997) em “As três épocas da Análise do discurso” (AD1, AD2, AD3) (PÊCHEUX, 1997). Dali, produzimos nossa interpretação, de sorte destacar pontos pressupostos pelo autor para o tratamento teórico-analítico de fatos de linguagem, em particular, para fatos que dizem do tema polissemia e suas problematizações — algumas — dentro do quadro epistemológico da AD1, 2 e 3. Em tese, o que assistimos em cada uma dessas épocas da AD são reelaborações constantes de um projeto científico-reflexivo, pautado primordialmente na produção do objeto teórico discurso. Palavras-chave: AD. M. Pêcheux. Polissemia. Três Épocas. Abstract We propose, in this paper, understand theoretical and methodological principles (re)designed by M. Pêcheux (1997) in "The three seasons of discourse analysis" (AD1, AD2, AD3) (PÊCHEUX, 1997). From there, we produce our interpretation, so highlight points assumptions by the author to the theoretical and analytical treatment of language facts, in particular, to facts about polysemy and its problematizations - some - within the epistemological framework of AD1, 2 and 3. In theory, what we witnessed in each of these AD times are constant reworkings of a scientific-reflective, based primarily in the production of theoretical discourse object. Keywords: AD. M. Pêcheux. Polysemy. Three Periods.

A AD francesa: uma síntese de suas três épocas (AD1, AD2 e AD3)13

Como forma de nos situar ante o quadro teórico-metodológico da AD francesa, ante as mudanças e revisões de premissas produzidas ali, apresentamos, abaixo, um ensaio de seu desenvolvimento epistemológico. Respaldamo-nos, para tanto, basicamente, no texto “A análise de discurso: três épocas” (PECHEUX, 1983), texto final de “Por uma análise automática do discurso” — obra organizada por Gadet & Hak (1997/ [1983]). Há, veremos dali, questionamentos do autor (sínteses) acerca da construção teórica (a teoria do discurso) e metodológica (o dispositivo de análise) fundantes à prática de Análise do discurso. Isso se deu porque o objeto discurso, dirá Pêcheux (2011, cf., p. 105), é feito de relações possíveis, fatos variados, quer seja: a ambiguidade, a polissemia, a paráfrase, a elipse, a sequencialidade.

No segmento a seguir, trazemos, então, compreensões sustentadas pelo autor no texto “A análise de discurso: três épocas” (1997).

12 Professor de Língua Portuguesa, Literatura e Redação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG). E-mail: [email protected]

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AD1: a primeira época da AD

Designada por Pêcheux de “Exploração metodológica da noção de ‘maquinaria discursivo-

estrutural’”14, a primeira época da AD (1966-1969) esteve pautada sob duas posições teóricas básicas. Uma delas concebe a produção discursiva enquanto “máquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos: os sujeitos acreditam que ‘utilizam’ seus discursos quando na verdade são seus ‘servos’ assujeitados, seus ‘suportes’” (PÊCHEUX, 1997, p. 311); a outra, por sua vez, toma o conceito de língua natural como fato que “(...) constitui a base invariante sobre a qual se desdobra uma multiplicidade heterogênea de processos discursivos justapostos” (PÊCHEUX, ib.).

Com efeito, foi a partir das posições em questão, invariáveis da AD1 à AD3, que Pêcheux

(p. 311) formulou uma recusa primeira, a recusa à tese do inatismo15. Isso se deu porque a ideia althusseriana de sujeito efeito da interpelação ideológica (ALTHUSSER, 1987), o sujeito que se constitui-institui enquanto posição (e não enquanto uma origem do que diz), foi levada a cabo por ele. Tal recusa, importa pontuar, rompe com a concepção idealista de linguagem, com a concepção que, até então, tomava o sujeito como fonte de sentidos. Ora, o sujeito, conforme compreendido em Althusser (1987), é uma construção, e esta se produz no e pelo discurso (uma posição), via regras de formações discursivas e ideológicas que, de diferentes modos, afetam-no.

Metodologicamente, as proposições que fundamentaram a AD1 demandam dois gestos (descritivo-interpretativos) sucessivos, a saber:

1º) Reunir um conjunto de traços discursivos empíricos (“corpus de sequências discursivas”) fazendo a hipótese de que a produção desses traços foi, efetivamente, dominada por uma, e apenas uma, máquina discursiva (por exemplo um mito, uma ideologia, uma episteme); 2º) Construir, a partir desse conjunto de traços e através de procedimentos linguisticamente regulados, o espaço da distribuição combinatória das variações empíricas desses traços (...) (PÊCHEUX, 1997, p. 312).

Nesse passo, a primeira fase da AD caracterizou-se, pois, como

um procedimento por etapa, com ordem fixa, restrita teórica e metodologicamente a um começo e fim predeterminados, e trabalhando num espaço em que as ‘máquinas’ discursivas constituem unidades justapostas. A existência do outro está subordinada ao primado do mesmo: o outro da alteridade discursiva “empírica” é reduzido seja ao mesmo, seja ao resíduo, pois ele é o fundamento combinatório da identidade de um mesmo processo discursivo; o outro alteridade ‘estrutural’ só é, de fato, uma diferença incomensurável entre ‘máquinas’ (cada uma idêntica a si mesma e fechada sobre si mesma), quer dizer, uma diferença entre mesmos (PÊCHEUX, 1997, p. 313; itálicos são do autor).

Dito em outras palavras, a abordagem discursiva AD1 compreende o discurso como efeito

produzido a partir de condições de produção estáveis, homogêneas. As maquinarias discursivas, no caso, seriam justapostas, fechadas em si, com começo e fim determinados — sem um exterior —, cabendo ao analista de discurso descrever, por meio de palavras-pivô (campos semânticos), entidades discursivamente estáveis. Entidades essas, cumpre esclarecer, que estariam estabelecendo o controle da interpretação, através de deslizamentos parafrásticos engendrados (Cf., PÊCHEUX, 1997, p. 313).

14 Expressão utilizada posteriormente pelo autor ao caracterizar seu projeto de análise automática do discurso como sistema conceitual produzido para a compreensão dos processos discursivos em uma dada conjuntura política e ideológica (Cf., PÊCHEUX, 1997). 15 Tem a ver com a ideia de uma metalíngua universal inscrita no espírito humano, supostamente. Ademais, a tese do inatismo sustenta a existência de um sujeito intencional, o sujeito da psicologia, “senhor de si”.

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No tocante ao fato polissemia, por exemplo, abrindo aqui um espaço de discussões nossa,

observamos que não poderia ser subsumido pelas descrições da AD1. Ora, o objeto teórico discurso, nessa época, é explicado como livre de ambiguidades, uma estrutura resistindo ao “inexplicável” e, porquanto, à polissemia da linguagem, a diferença constitutiva das/entre máquinas discursivas, é atribuída característica de resíduo. Este, o resíduo (o inexplicável?), argumentam os trabalhos da AD1, “não abalaria o primado do mesmo”, o da paráfrase discursiva, já que se trata de uma “diferença” — “apenas entre máquinas” — redutível ao “mesmo” (Cf., PÊCHEUX, ib.). Aqui, cumpre ressaltar que, enquanto desvio, variação supostos na linguagem, a polissemia poderia ser abordada como um dos elementos “intrínsecos ao funcionamento geral da língua” (PÊCHEUX, 2011, p. 107), e não do discurso.

A primeira época da AD, por conseguinte, descartou de suas lucubrações aquilo que é parte dos funcionamentos discursivos: a polissemia. Ali, o foco outrora descrito foi o explicável, ou seja, aquilo que remete à estrutura linguística. A possibilidade de produzir compreensões para o resíduo inexplicável, questionando-o, nesse caso, a partir do estatuto conferido ao descritível, o sedimentado — enfrentando a tensão explicável e “inexplicável” — não tocou as teses da AD1. Estas, resumindo, fixaram seu olhar unicamente na função pressuposta para o “mesmo” no discurso. Com isso, vê-se que, à teoria do discurso da AD1 faltou problematizar outra coisa, ainda futura nas elaborações de Pêcheux: o acontecimento. Ora, grosso modo, pelo prisma de questões da AD3, compreende-se que acontecimento afeta a estrutura da língua, deixando, por isso, “brechas” para que o analista de discurso descreva e interprete fatos da constituição, formulação e circulação do sentido produzido sócio e historicamente. AD2: a segunda época da AD

A segunda época da AD (1970-1975), tematizada por Pêcheux de “A teoria do discurso”, colocou em evidência discussões-outras. Tais discussões decorrem de mutações teóricas promovidas pelo autor ao perceber que há relações entre maquinarias discursivas. Ora, não demorou muito tempo para que o projeto pecheutiano, pautado na construção teórica do objeto discurso, realizasse retoques e reelaborações no que outrora desenvolvera: a AAD1. A época da AD1, elucidada na subseção acima, tomava os discursos como produtos, sequências de enunciados fechados sobre si mesmo, sem relacioná-los, pois, às suas condições de produção, à exterioridade que lhes constitui.

Nesse passo, Pêcheux, afetado pelo conceito teórico de “formação discursiva”16 (FD), do filósofo Foucault, assume que era preciso explodir a maquinaria discursivo-estrutural. Isto porque não temos como reduzir enunciados a objetos linguísticos, expurgando dali a história, a espessura material do discurso. Desarte, a exterioridade constitui o dizer; ela afeta a regularidade discursiva, instaurando sentidos-outros, sentidos prováveis à FD (o “estabilizado”). No tocante à questão da FD, Pêcheux afirma não se tratar de um espaço estrutural fechado. Ao contrário, uma FD “está em relação paradoxal com seu exterior” (PÊCHEUX, 1997, p. 314), podendo este exterior ser

16 Cumpre lembrar que uma FD, nos termos de Foucault (2007 [1969], p. 43), “é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma época dada, e para uma área social, econômica e geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa”. Tal noção foi abandonada pelo projeto científico de AD, sendo “substituída” por outra, a de memória discursiva. Ora, ao formular a categoria sujeito, a maquinaria discursiva construída por Pêcheux para tratar dos processos discursivos fez da noção de FD um todo homogêneo, inviabilizando, com isso, a produção de compreensões sobre heterogeneidade constitutiva do discurso. Nesse ponto, lembramos também, a noção de FD teve de ser deixada de lado, pois, entre outros motivos, conduzia analistas de discurso às derivas taxonômicas, como se fosse possível pensar a significação através de regularidades referenciais, isto é, regularidades já determinadas pela formação ideológica de que “unicamente” seria parte.

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apreendido discursivamente por meio de um saber pré-construído17. Por isso, todo discurso é atravessado pela incompletude, e esta, importa frisar, se expressa por condições de produção nunca estáveis.

Com efeito, foram das questões anteriores que Pêcheux propôs o conceito de interdiscurso. O interdiscurso, a memória do dizer (memória discursiva), permitiu o projeto pecheutiano da AD2 avançar suas compreensões, sobretudo, em direção à proposição seguinte: “O discurso é constituído de exterioridade” (Cf., PÊCHEUX, 1995). A FD, em contrapartida, espaço onde tudo pode se passar por “evidente”, traz a marca do outro discursivo, o “inexplicável”. E este, lembramos, emerge como parte do “mesmo”, o que corrobora a determinação do sentido pela FD.

Ainda sobre a noção de FD subsumida pela AD2, é importante enfatizar que, para fundamentar a proposta da existência do interdiscurso, Pêcheux (1995) retomou a tese

authusseriana da interpelação, propondo, dali, a existência de dois esquecimentos18 indicados, assim, por: esquecimento n.1 e esquecimento n.2.

Em se tratando do esquecimento n.1, Pêcheux (1995) diz que o sujeito, preso em uma realidade discursiva ilusória, ignora sua relação com o interdiscurso, pondo-se, em decorrência, enquanto “origem do dizer”, “fonte de sentidos”. Esse ato, o do “sujeito-origem” tem a ver, justifica o autor, com modo como é produzida uma sequência discursiva, ou seja, no interior de formações discursivas e ideológicas outras (“estáveis”). Com isso, produz-se no sujeito a ilusão de “indivíduo anterior ao discurso”, “princípio controlador de sentidos”, o que na verdade não o é. O que esse sujeito pode (na e pela língua) fazer (e faz) é colocar em (dis)curso elementos da constituição do dizer, o já-dito, relações-outras.

Atento, pois, às decorrências do esquecimento n.1, Pêcheux (1995) pontua, ainda, agora pelo que concebe por esquecimento n.2, que o sujeito, tocado pela “transparência” de sentidos da linguagem, assume para si sentidos da “origem” suposta; estes como “legítimos”. “No final das contas” [dirá o sujeito] “são esses os sentidos, os do ‘autor-origem’, e não outros!” (PÊCHEUX, 1995, p. 314). Por sua vez, o esquecimento n.2 apaga a espessura material do sentido, ratificando novamente o “acesso” do sujeito à unidade imajada para a significação.

A AD2, enfim, no que toca seus procedimentos metodológicos, se comparados aos da AD1, apresenta-nos poucas inovações. Ali, “(...) o deslocamento é sobretudo sensível no nível da construção dos corpora discursivos, que permitem trabalhar sistematicamente suas influências internas desiguais, ultrapassando o nível da justaposição contrastada” (PÊCHEUX, 1997, p. 315). Esse momento de reformulação (o da AD1 para a AD2), exceto em função de questões trazidas a partir da noção foucaultiana de FD e suas extensões, o interdiscurso, continua, por conseguinte, fiel à perspectiva segundo a qual o sujeito do discurso é plenamente assujeitado à maquinaria da FD com que se identifica.

Manteve-se, grosso modo, na AD2, em função de procedimentos elaborados para construção de corpora e do lugar metodológico atribuído à paráfrase, o primado do “mesmo”, o homogêneo. Uma posição radical acerca do “outro” constitutivo do “mesmo” foi tomada, enfim, na AD3. Vejamo-la.

17 Conceito formulado por Henry (1992) como ponto de apreensão de efeitos do interdiscurso no intradiscurso, no fio do dizer. 18 Como nos esclarece Teixeira (2005, p. 48), “o termo esquecimento não designa perda de alguma coisa que se tenha tido um dia. Trata-se do acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito, ou seja, o sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina”.

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AD3: a terceira época da AD

A terceira época da AD (1976-1979; 1980-1983), caracterizada de “desconstrução das maquinarias discursivas”, assume radicalmente a tese do primado do outro sobre o mesmo; tese que levou o refinamento da noção de interdiscurso formulada na AD2.

Nesse mo(vi)mento, o da AD3, motivado pelo trabalho de interrogação-negação-desconstrução de noções expostas à AD, Pêcheux propõe questões novas para sua teoria do discurso; haja vista a ideia de romper com a maquinaria discursiva fechada, a da AD1 e AD2, não ser, então, uma decisão fortuita. Pêcheux não demorou muito para perceber que a noção de FD, tomada como homogênea, na AD2, trabalha (e é trabalhada por) mais de uma FD, sendo, por isso, heterogênea em sua própria constituição.

Manter, com efeito, a ideia de homogeneidade referida à noção de condições de produção do discurso era negar que o discurso não fosse heterogêneo. Também, na AD3, rompe-se com a ideia de uma sintaxe neutra, linear. Tal rompimento fez repensar, radicalmente, a noção de enunciação, agora, concebida sob a perspectiva do outro, deixando-se, em outras palavras, de apostar aí em razões “do” sujeito idealista, a “fonte” de sentidos, o dizível. As apostas, diríamos, passam ao inexplicável, isto é, o outro (sentido) constitutivo do “mesmo”, a heterogeneidade da linguagem.

Em termos de procedimentos de análise, a terceira fase ocupou-se do exame de “encadeamentos intradiscursivos”, “interfrásticos” (Cf., PÊCHEUX, 1997). Isso deu à AD possibilidades de compreender duas questões-novas assumidas pela teoria do discurso, quais sejam: a questão da estrutura e a do acontecimento. Ambas permitiram à AD3 elaborar estudos sobre pontos de vista e sobre lugares enunciativos, intradiscursivamente, os quais mostram diferentes trajetos sociais de sentidos constituindo sujeitos de linguagem. Por isso, importa pontuar, a linguagem é “estrutura e acontecimento” (PÊCHEUX, 1990). Ela é estrutura, pois, ali, a língua trabalha, sistematicamente, a significação; e acontecimento, pois é constituída ainda por redes de memória discursivas, que tanto podem produzir deslizamentos de sentidos (estes já sedimentados socialmente), quanto deslocamentos.

Ademais, a AD3 buscou compreender a noção de sujeito clivado, isto é, o sujeito dividido/heterogêneo, assujeitado pelo inconsciente e pela ideologia. No tocante a isso, é mister ressaltar que tal busca deu a Pêcheux possibilidades de entender melhor (e)feitos da constituição do

sujeito e do sentido na linguagem (via noção lacaniana de Real19, estritamente). Ou seja, sujeito e sentido são constituídos sócio e historicamente, são movimentos, imprevisibilidades. O Real, categoria da língua e da história, impõe limites àquela, ao mesmo tempo em que determina a essa sentidos possíveis de construir (sentidos que não podem ser quaisquer um), dado que, nas palavras de Milner (1987), “tudo não se diz”.

Em suma, diríamos que a terceira fase (AD3) redefine uma política-outra para a AD francesa: novos movimentos de inflexões, de reformulações... (Cf., MALDIDIER, 2011). Isso se deu porque o sistema conceitual e procedimental constituídos pela AD1 e 2 foi questionado pelo próprio Pêcheux — a propósito, lembremos que a paráfrase, fato linguístico-discursivo, objeto de análises das AD1 e 2, passa a ser compreendida não mais pelo seu efeito esperado de “mesmo”,

19 Cumpre destacar que a noção de Real, formulada pelo psicanalista Jacques Lacan, permitiu Pêcheux

fundamentar sua “teoria não-subjetiva da subjetividade”, a teoria que se opôs à perspectiva idealista de sujeito

autônomo, o sujeito suposto “controlador” e “origem” de “seu” dizer. Tal noção (a de Real), frisamos,

precisa ser notada na relação com a de Simbólico e a de Imaginário. Em resumo, o Real é o que resta de

inominável (é inacessível ao sujeito); o Simbólico é o que distingue aquilo que existe (está para a linguagem) e

o Imaginário é o que permite o Um, o “mesmo”.

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mas pela relação como o outro, o outro que é constitutivo do dizível. Essa visada nova retirou a AD da repetição a que estava fadada a cair. No entanto, relembramos, foi preciso notar o discurso como estrutura, uma ordem construída em vista de dada estabilidade referencial, e acontecimento, uma organização — esta última é marcada por instabilidades referenciais decorrentes do encontro possível entre uma memória (um saber já-dito) e uma atualidade. Na AD3, então, a ideia de chegar a uma definição exata para o que seja o discurso é desfeita: trata-se de uma busca da ordem do impossível, sustenta Maldidier (2011). Por isso, questões relativas à construção de corpora discursivos precisam se pautar melhor pela percepção seguinte: Todo discurso, em sua especificidade material, permite-nos, sob formas diferentes do dizível, descrever e interpretar fatos da constituição, formulação e circulação de sentidos na sociedade (PÊCHEUX, 1990); face, acrescentamos, a relação-fusão indissociável entre língua, história e sujeito. Referências FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. HENRY, P. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. PÊCHEUX, M. A Análise do Discurso: três épocas. In: GADET, F e HAK, T (Org.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Pêcheux. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. MALDIDIER, D. A inquietude do discurso. Um trajeto na história da Análise do discurso: o trabalho de Michel Pêcheux. In Piovezani, C.; Sargentini, V. (Orgs.). Legados de Michel Pêncheux. São Paulo: Contexto, 2011. TEIXEIRA, M. Análise de discurso e psicanálise: Elementos para uma abordagem do sentido no discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. Enviado em 30/12/2015 Avaliado em 10/02/2016

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A METALINGUAGEM EM QUARTO CRESCENTE, DE CARMO BERNARDES

Hilda Gomes Dutra Magalhães20 Resumo Nosso objetivo neste artigo consiste em evidenciar a presença da metalinguagem no livro Quarto crescente, de Carmo Bernardes. Utilizando como suporte teórico o conceito de metalinguagem apresentado por Jakobson, pudemos perceber que as passagens metalinguísticas no texto servem não apenas para apresentar como se processa a autoria, mas também para aguçar o interesse do leitor em permanecer na leitura. Palavras-chave: Literatura, metalinguagem, produtividade textual. Summary Our aim of this article is to highlight the presence of the metalanguage in the book Quarto Crescente, by Carmo Bernardes. Using as theoretical support the concept of metalanguage presented by Jakobson, we realize that the metalinguistic passages in the text serve not only to enlighten the reader about the about your writing process but also to whet the reader's interest in staying in reading. Keywords: Literature, metalanguage, textual productivity.

A obra do autor goiano Carmo Bernardes é marcada essencialmente pelas imagens regionais, servindo, em muitos casos, como documento fiel dos usos e costumes da gente do interior de Goiás. Esta característica tem conferido ao escritor páginas de relevância nas antologias da literatura goiana.

Entretanto outras vertentes não menos importantes caracterizam a sua obra, como, por exemplo, a alta dose de poeticidade observada, em especial, na narrativa de quadros infantis e, no caso específico de Quarto crescente21, objeto deste estudo, a metalinguagem, que orienta o leitor no entendimento do texto.

A metalinguagem é, na visão de Jakobson (1993), um dos fatores constitutivos da comunicação verbal e se caracteriza pela preocupação do emissor com o código, convenções linguísticas ou formais utilizadas no texto. Na literatura, a metalinguagem se verifica nos momentos em que o narrador ou personagem se dispõe a discutir o próprio texto.

Já para (1974), o conceito de metalinguagem se reveste de um sentido mais amplo. Segundo a autora, a metalinguagem é inerente à obra literária, que resulta de um permanente cruzamento de textos. Sob este aspecto, a literatura é metalinguística por natureza, considerando que toda obra traz em si resquícios de outros textos, através de vários processos intertextuais manifestados em epígrafes, citações, alusões, paródias e paráfrases.

Analisando os dois conceitos, Valente (1997) nos explica que não há como estabelecer uma relação de igualdade entre eles, já que, para Kristeva (1974), metalinguagem tem o sentido de intertextualidade. Para o teórico, “a intertextualidade é um dos traços da metalinguagem” (VALENTE, 1997, p. 122), o que é também compartilhado por Chalhub (2002, p. 52), para quem “A intertextualidade é uma forma de metalinguagem, onde se toma como referência uma linguagem anterior”. Enriquecendo a discussão, Perrone (1988) alerta-nos para o fato de existirem

20 Doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ, com pós-doutorado na Universidade de Paris III e EHESS/França. Profa. da UFT, e-mail: [email protected]. 21 BERNARDES, C. 1986. As citações dessa obra serão identificadas pela sigla QC, seguida da paginação.

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intertextualidade externa e interna. Na primeira, o texto resgatado é diferente do texto do autor; na segunda, o texto resgata o próprio texto em construção e tanto Perrone (1988) quanto Conforte (2009) afirmam que metalinguagem e intertextualidade podem até se equivaler quando se tratar de uma intertextualidade interna, mas no caso da intertextualidade externa, tratam-se de dois fenômenos que não podem ser confundidos.

Em palavras mais simples, a metalinguagem, na teoria de Kristeva, acha-se embutida na

obra, é indissociável a ela, sendo imprescindível ao literário. Já na teoria de Jakobson, ela só existe na medida em que a literatura se dispõe a refletir sobre si própria, momento em que a arte literária e o processo da escrita entram como tema, como assunto.

Colocada em pauta essa distinção, consideraremos nesta análise como base teórica o conceito de metalinguagem proposto por Jakobson, objetivando evidenciar a presença da disposição metalinguística em seu romance Quarto crescente. De fato, o romance Quarto crescente, um livro de memórias, nos apresenta não apenas descrições que nos mostram o mato grosso goiano no início do século, mas também uma visão teóricoliterária que nos ajuda a entender melhor o processo de criação do autor.

Com efeito, observa-se em toda a obra uma disposição metalinguística que, por entre o desenrolar das ações, ora esclarece a postura do narrador ante os fatos narrados, ora tece reflexões sobre a arte literária. Na verdade, o narrador que narra as ações é, ao mesmo tempo, o crítico que se debruça sobre a obra e nos ajuda a compreendê-la. Graças a esta postura metalingüística do narrador, podemos, já nas primeiras páginas do livro, saber que tipo de estrutura sustenta o texto:

este relato é descompromissado. Arrastará sem método, sem tempo cronológico, gaguejado, gangorrado. Se lá vou mastigando relembranças de meio século recuado e se cruzar na minha mente um fato dos dias presentes a que eu queira dar importância, e me der a sapituca de pular pra cá, pulo sem o menor constrangimento. Recuso-me a andar dentro de um beco com a técnica me afivelando tapa na cara, feito burro de carroça. Se as lembranças me acodem tumultuadas, tumultuadas vou largando-as, tranquilamente. (QC, 28-29)

Com estas palavras, já sabemos ter nas mãos não um romance nos moldes tradicionais, em

que a linearidade delimita os personagens e as ações, mas um texto, usando as palavras do narrador, “sem tempo cronológico”, “gangorrado”. Esta postura moderna torna o livro palpitante e, embora tenhamos páginas puramente descritivas, a narrativa não nos cansa e sempre nos parece nova, pois temos um desfile de pequenos episódios, muitos dos quais pitorescos, que se interpõem de acordo com o fluxo da memória do narrador personagem. É entre um episódio e outro que nos saltam à vista pérolas metalinguísticas, como se lê abaixo:

Escrever é assim: não estando com disposição, os casos a contar comichando por dentro querendo sair, aquela influência doida de levar adiante a obra começada, não convém mexer no que não presta. Feito com o corpo mole e sem convicção nada há para sair tão ruim como seja escrever. Parece que a preguiça, a moleza do corpo, o entojo que a pessoa sente em contar um caso com má vontade afetam quem vai ler, assim como uma doença contagiosa. (QC, 113)

No fragmento lido, temos basicamente a exposição de duas teorias: uma diz respeito à

produtividade da obra e a outra, à recepção estética. No primeiro caso, o narrador nos informa que a inspiração, “aquela influência de levar adiante a obra começada” e a paixão, “os casos a contar comichando por dentro”, são ingredientes fundamentais na arte escrita. À paixão e à inspiração, que conduzem o escritor a uma espécie de desejo febril de escrever, o autor opõe a “moleza do corpo” e a “má vontade” como sendo responsáveis pelo fracasso de uma obra.

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A segunda teoria discute a recepção estética, mais propriamente os efeitos do texto literário sobre o leitor, comparando a obra feita com preguiça e má vontade a uma doença contagiosa (“entojo”) que afeta quem vai ler.

A literatura, para o narrador-crítico é, portanto, algo que requer inspiração e disposição, mas não só isso: a literatura é, sobretudo, algo que precisa ser bem feito. É o que lemos a seguir:

Meu pai falava que serviço algum feito com má vontade, com preguiça, de corpo mole sai prestando – feito com má vontade e mal principiado. É como trançar couro, ou fazer crochê, os primeiros pontos saem errados pode começar tudo de novo, se teimar, chega a um ponto que embaraça tudo, não tem por onde seguir. Engraçado, ele nunca escreveu e, talvez, se lhe dissessem que escrever é serviço, ele duvidasse, achasse que isto é inzona; como é que no seu julgamento acertava tanto? Nos serviços dele, mexer com madeira pesada, rolar toras no engenho de serra, fazer casas de esteio nas fazendas e carros de bois, a coisa era assim. Mal principiada, saía mal acabada. E feita com má vontade, então, é que não prestava mesmo, de jeito nenhum. Chego a ficar pasmo de ver que no meu serviço, tão adverso do dele, isto é a coisa mais acertada que há. (QC, 112-113)

O narrador, no fragmento acima, além de afirmar que a literatura exige cuidado na

colocação de cada palavra no lugar certo, compara-a a trabalhos bastante concretos e pesados, como “mexer em madeira pesada, rolar toras no engenho de serra, fazer casas de esteio nas fazendas e carros de bois”. Afirma o narrador que também nesses serviços, como na literatura, o segredo é começar bem e, principalmente, com boa vontade, porque, como afirma o narrador: “feita com má vontade, então, é que não prestava mesmo, de jeito algum.”

Temos na aproximação das atividades do marceneiro e do escritor elementos que nos levam à teoria estética dos gregos, para os quais a teckne é uma espécie de poiesis, de arte, com o conhecimento das razões e finalidades daquilo que produz. Em palavras mais simples, era considerada arte toda atividade manual que produzia bens utilitários, como a mesa, a cadeira, a casa, etc.

No decorrer dos séculos, esta espécie de arte foi deixando de ser considerada como tal. O trecho lido, de Carmo Bernardes, recupera essa discussão, colocando os dois tipos de atividades no mesmo patamar, no momento em que as reconhece como trabalho e afirma serem a inspiração e a paixão fatores fundamentais para o sucesso, tanto numa atividade quanto na outra.

Outra discussão presente na obra é a que se refere ao processo de criação, como algo não sistemático e sistematizado. A este respeito, afirma o narrador:

...escrevo até que vai ficando penoso (...), pego a sentir que a prosa começa a perder o suco, saindo desenxabida; aí, vejo que convém parar, esperar a vontade vir de novo. Agora, passo meses desacorçoado, os papéis largados por uma banda, vou cuidar de outra coisa, costumam sumir laudas, que nunca mais dou conta de reconstituir. É como botar roupa para coarar, demorando muito, sapeca, pode até suceder casos de muitos descaminhos. Por isto é que passo essas temporadas parado com isto aqui; é esperando palpite, o assunto madurar, crescer por dentro, eu ter necessidade urgente para botá-lo para fora; Aí, dou outra arrancada, vou levando até esmorecer de novo. (QC, 112-113)

No trecho acima, o narrador contrapõe a arte da palavra ao produto massificado, realizado

em série, em tempo ou lugar predeterminado. A literatura, ao contrário, exige um período próprio para maturação que, no caso de Carmo Bernardes, se realiza por “temporadas”, fluxos, arrancos (“Aí, dou outra arrancada... até esmorecer de novo”), intervalados por meses (“passo meses desacorçoado”). Percebe-se também certo desleixo com o texto em criação (“costumam sumir

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laudas que nunca mais dou conta de reconstituir”), e a ideia que acaba perdurando no leitor é a de que escrever, para Bernardes, é um exercício de difícil execução.

A essa dificuldade, relacionada ao enfrentamento da falta de vontade, soma-se mais um ingrediente, o trabalho:

Às vezes, eu passo muito tempo com estes apontamentos interrompidos, depois é que volto. E, quando é assim, custa-me achar a ponta da meada, o jeito de recomeçar. Só depois de muito pelejar, de dar muitas investidas perdidas, começo: “assim não é”, tento de outra forma, não dá, vai indo é que, com vagar, vou entrando na trilha, sigo relatando as lembranças que desencavo dos soturnos da memória. (QC, 112)

As longas interrupções distanciam tanto o autor do texto em construção, que a sua

retomada da escrita é, em si, um processo muito trabalhoso, pois o autor precisa “recomeçar”. Os vocábulos “pelejar”, “custa-me”, bem como as expressões “investidas perdidas”, “assim não é”, “tento de outra forma”, “não dá”, “com vagar” dão ao leitor ideia da tamanha dificuldade que enfrenta Bernardes na construção de seu livro.

Paralelamente a estas reflexões, uma outra discussão que ganha espaço na obra é a que se refere à utilidade da obra literária, como se lê abaixo:

Fico contando casos do que já passou, faço o maior esforço para arrancar da memória as lembranças enfumadas, vez em quando paro e penso: - será que esta labuta, assim tão esgotante, valerá a pena? Tenho minhas dúvidas. (QC, 180) (...) Ocupo o tempo lavrando estes escritos, dissipo horas e mais horas na ociosidade a encoivarar uma literatura inútil, entra ano e sai ano, sem contar com rendimento algum que valha a pena. (QC, 181)

Os dois trechos evidenciam a distância entre a arte e o seu reconhecimento. O empenho na

autoria é descrito através dos termos “maior esforço”, “labuta”, “esgotante” e “ociosidade”, enquanto que o sentido de utilidade desse trabalho é marcado pelos vocábulos “literatura inútil” e pelas frases “Será que esta labuta, assim tão esgotante, valerá a pena?” e “entra ano e sai ano, sem contar com rendimento algum que valha a pena.”

Chama a atenção também na metalinguagem do livro, uma enorme preocupação do

escritor em resgatar suas memórias, entretanto sem ferir a moral vigente:

Há (...) o inconveniente de serem as melhores passagens de minha vida um pouco impróprias para contar a céu aberto como em colunas de jornais. Mas espero divertir-me bastante negaceando-as, largando na subliminar os episódios desmoralizantes e inconfessáveis se a preguiça não me embargar. (QC, 40-41) Fico acanhado de contar certas coisas, esses deboches, essas vulgaridades. Espero ser compreendido, pois realmente não quero ferir as susceptibilidades dos mais pundorosos que acaso venham me acompanhando nestas caraminholas. Conforme seja, ainda vou dar notícia de uma outra cena que eu mais a linda mulher do farmacêutico representamos. Prometo dizer tudo com sobriedade, nada de pormenores chocantes, hei de ter superioridade, a que o meu apoucado talento me permitir. (QC, 163)

Essa preocupação, da forma como foi exposta, aguça a curiosidade do leitor e pode até

mesmo mobilizar o seu interesse no sentido de reler algumas passagens do livro, procurando nas entrelinhas o que o autor tenta, sublinearmente, transmitir. Neste caso, a metalinguagem serve como estímulo para que o leitor ajuste o foco de sua leitura, agora mais atento para as informações sublineares.

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Balança o autor entre o que viveu e um suposto filtro moralista do seu leitor, o que lhe traz insatisfação com o texto, pontuado de reticências e de silêncio. É o que lemos a seguir:

A conversa mole não está dando a ideia exata do que era a nossa vidinha na roça. A mocidade ficou por lá, o tempo exclui o lado mau de tudo o que foi vivido; sou traído pela gratuidade das lembranças e, com isso, vou dando da nossa gente só a face lisa das coisas e os aspectos mais salientes do que seja maravilhosamente bom e puro. Tento me corrigir e trazer a campo também as misérias e as mesquinharias, que não eram poucas. (QC, 156)

A distância entre o que foi e o que as linhas dizem não com as mesmas cores e a mesma

vivacidade, a distância entre o que ocorreu e o que se deseja contar, o que se quer e o que se pode contar, provoca um grande incômodo ao narrador, como se o que estivesse dito não pudesse senão mascarar algo que fica subentendido. Esta distância criada pela necessidade de contar os fatos e a autocensura são fontes de desagrado do narrador em relação à obra: “Vou pingando estas notas com enorme esforço, e, quando volto atrás para eliminar as excrescências que infestam o texto molengo, já intrincado de entrelinhas, sinto que a prosa escorre enfadonha como uma chieira.” (QC, 156)

A distância entre o que se quer dizer e o efetivamente dito provoca interrupções bruscas na narrativa, vazios que, longe de comprometerem o texto, tornam-no mais ágil, mais dinâmico, mais envolvente. Neste contexto, as reflexões metalingüísticas existentes em Quarto crescente vêm enriquecê-lo, orientando o leitor na sua leitura e conduzindo-o a uma empolgante viagem pelos meandros da arte literária. Considerações finais

Diante do exposto e concluindo as nossas reflexões, podemos afirmar que, através de suas reflexões, muitas vezes de cunho pessimista, o autor monta um arcabouço teórico em construção, orientando a leitura e ao mesmo tempo explicando a obra.

Tal arcabouço teórico emerge com frequência na voz metalingüística do narrador, que, ao

se dispor a tecer reflexões sobre a sua arte, coloca em discussão, de forma intuitiva e sem prolixia, teorias literárias antigas e modernas, oferecendo aos estudiosos da literatura elementos importantíssimos para a análise não apenas de Quarto Crescente, mas de toda a obra de C. Bernardes. Referências BERNARDES, Carmo. Quarto crescente (relembranças). Goiânia, UCG, 1986. CHALHUB, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 2002. CONFORTE, André. Intertextualidade é metalinguagem? Cadernos do CNLF, Rio de Janeiro, 2009. VOL. XI, N° 15, 146-158. JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1993. KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França. São Paulo, Perspectiva, 1974. PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: Elo, 1998. VALENTE, André. A linguagem nossa de cada dia. Petrópolis: Vozes, 1997. Enviado em 30/12/2015 Avaliado em 10/02/2016

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INTERDISCIPLINARIDADE E ATITUDE INTERDISCIPLINAR NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: REFLETINDO A PRÁTICA

Hilda Gomes Dutra Magalhães22 Jean Carlos Rodrigues23

Resumo Nosso objetivo, neste artigo, consiste em discorrer sobre a prática interdisciplinar desenvolvida pelo PIBID de Araguaína, durante os seus dois primeiros anos de funcionamento, entre 2008 e 2010. Para tanto, nos apoiaremos na teoria sobre a interdisciplinaridade apresentada por Fazenda (2006a,b) e tomaremos como objeto de análise a atitude interdisciplinar dos participantes do projeto, representada/mobilizada nas atividades de docência desenvolvidas pelos participantes do Programa no âmbito da UFT (Campus de Araguaína) e da escola campo durante o período citado. Palavras-chave: Interdisciplinaridade, atitude interdisciplinar, formação de professores Abstract Our goal in this article is to discuss the interdisciplinary practice developed by PIBID Araguaína during its first two years of operation between 2008 and 2010. To this end, we will support us in the theory of interdisciplinarity presented by Finance (2006a , b) and take as object of analysis the interdisciplinary attitude of the project participants, represented / mobilized in teaching activities developed by participants of the program under the UFT (Campus Araguaína) and field school during the period mentioned. Keywords: Interdisciplinary, interdisciplinary attitude, teacher training

Nosso objetivo, neste artigo, consiste em discorrer sobre a prática interdisciplinar

desenvolvida pelo PIBID de Araguaína, durante os seus dois primeiros anos de funcionamento, entre 2008 e 2010. Para tanto, nos apoiaremos na teoria sobre a interdisciplinaridade apresentada por Fazenda (2006a,b) e tomaremos como objeto de análise a atitude interdisciplinar dos participantes do projeto, representada/mobilizada nas atividades de docência desenvolvidas pelos participantes do Programa no âmbito da UFT (Campus de Araguaína) e da escola campo durante o período citado.

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência (PIBID) completou em

outubro de 2010 dois anos de atividades no Campus de Araguaína da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Ele assumiu um desafio, ao mesmo tempo complexo e instigante, que trata da elaboração de formas inovadoras de ensino tendo como eixo central de suas atividades a interdisciplinaridade. Consideramos um desafio complexo pelo fato de a temática interdisciplinar exigir uma constante disposição ao dialogo com profissionais de outras áreas do saber envolvidas com o Programa (Letras, História, Geografia e Matemática) e instigante pelo fato de termos a oportunidade no PIBID de desenvolvermos práticas, ações e competências inéditas no ensino das ciências.

Entretanto, o que consideramos de mais rico nessa curta experiência foi o dialogo que tivemos que desenvolver com a Educação Básica por meio de uma parceria estabelecida com o Colégio Estadual Jardim Paulista, que nos abriu as portas para que pudéssemos construir uma

22 Doutora em Teoria da Literatura, com pós-doutorado na Universidade de Paris III e na EHSS/França. Professora do Curso de Letras e do Mestrado em Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguaína. Coordenadora do PIBID na Área de Letras. E-mail: [email protected] 23 Professor do Curso de Geografia da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguaína. Coordenador do PIBID na área de Geografia. E-mail: [email protected]

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interface de conversas, práticas e vivências com professores e alunos do Ensino Fundamental e Médio deste estabelecimento de ensino. Foi uma experiência inovadora, pois a Universidade passou a se envolver de forma mais direta e intensa com a formação de professores e alunos, alvo dos cursos de licenciatura da IFES.

Findados dois anos de atividades, trabalhos, leituras, discussões e planejamentos interdisciplinares entre professores e alunos, podemos fazer uma primeira consideração sobre o projeto interdisciplinar, de acordo com Fazenda (2006a, p. 13): “é impossível a construção de uma única, absoluta e geral teoria da interdisciplinaridade, mas é necessária a busca ou o desvelamento do percurso teórico pessoal de cada pesquisador que se aventurou a tratar as questões desse tema”. Vamos por partes.

A primeira questão que a autora aponta na citação acima é de que é impossível a construção de uma única abordagem teórica da interdisciplinaridade. De fato, consideramos que não há um “receituário” que nos ensine a desenvolver atividades interdisciplinares. Não há uma estrutura montada de modo que se possa “encaixar” qualquer ação dentro dela e a partir daí denominá-la interdisciplinar. Quem faz isso já não está sendo interdisciplinar. Isso porque partimos do pressuposto de que as práticas desenvolvidas em atividades interdisciplinares precisam contribuir com reflexões e atividades que nos façam pensar um problema e, a partir do que for construído, darmos condições ao outro para que compreenda o mesmo e desenvolva ações de modo a solucioná-lo.

Ora, se a ciência esta dividida em “gavetas”, a realidade não o está, e a interação entre diversas disciplinas torna-se necessária para que possamos ter uma compreensão maior daquilo que nos incomoda e possamos pensar em modos de resolvê-los. Agora, a forma como essas disciplinas vão se relacionar para discutir uma problemática não possui uma fórmula única e absoluta porque as maneiras de relacionamentos entre áreas distintas do saber vão acontecer conforme a demanda e o contexto social, político, espacial, econômico, histórico e cultural de cada localidade. Ela se dá em um processo que, como o próprio termo indica, não esta pronto, acabado, mas em constante movimento de fazer-se e refazer-se. Se, para Santos (2007), cada pessoa vale pelo lugar em que está, cada problema é resultado da interação de diversos elementos presentes numa dada localidade e, portanto, necessita de um trato específico para ser pensado e analisado. Por isso não podemos falar em uma única maneira de desenvolvermos práticas interdisciplinares. Os lugares são únicos e suas especificidades também.

Isso foi possível observar no cotidiano das atividades do PIBID, em que cada grupo de bolsistas apresentava soluções diferentes tanto na forma de se organizarem quanto no modo de concretizarem a interdisciplinaridade. Assim, percebemos que a interdisciplinaridade não é apenas um trabalho realizado em conjunto, mas que está condicionado às formas e à intensidade das interações que o grupo poderá fazer, ou seja, depende das interações que cada membro pode estabelecer com os demais. Dai a necessidade de haver em cada membro do grupo de trabalho a disposição de ser interdisciplinar, de se abrir ao diálogo e estar disposto a colaborar com os demais nas atividades que visam tratar de um desafio proposto ao grupo.

De fato, desde o primeiro bimestre, notamos que alguns grupos foram muito produtivos, enquanto que outros, nem tanto. Percebemos também que alguns bolsistas, quando trocados de grupo, rendiam mais. Com outros, todavia, ocorria o inverso, o que nos levou à constatação da importância de compreendermos e respeitarmos as especificidades de cada grupo interdisciplinar e entendermos que a interdisciplinaridade é uma experiência única e peculiar a cada grupo.

A segunda questão tratada pela autora em sua citação é que cada pesquisador que se aventura pelo caminho interdisciplinar precisa trilhar um caminho teórico pessoal. Isso porque a prática interdisciplinar necessita da disposição e do interesse em dialogar com o outro (por mais conflituosa que possa ser essa conversa), sem, entretanto, abrir mão de sua particularidade enquanto cientista. Em outras palavras: ser interdisciplinar não implica, necessariamente, em deixar de lado

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sua identidade científica. Entretanto, para que isso possa acontecer, o pesquisador precisa estar em constante processo de aprendizado e apresente uma sólida formação acadêmica que o capacite a compreender o que é uma prática interdisciplinar e como sua área específica poderá contribuir no dialogo com outras áreas do conhecimento, para analisar problemas e propor formas de compreensão dos mesmos. A prática interdisciplinar não implica em dissolver os conhecimentos específicos e sedimentados de cada área do saber, mas em identificar as contribuições que esses saberes podem trazer para contribuir com os trabalhos do grupo em uma investigação ou mesmo em um planejamento de aula.

A experiência vivida no PIBID de Araguaína/Edital 2007 demonstrou que sem essa constante formação pessoal em torno de assuntos e questões interdisciplinares não é possível participar de planejamentos que visem elaborar práticas e ações interdisciplinares. É necessário ter maturidade científica para perceber como que cada área do conhecimento pode dar sua contribuição em cada atividade planejada. Não existe a perspectiva de que determinada área do conhecimento não se encaixa em uma dada temática proposta. Isso depende muito da atitude do pesquisador em querer participar do projeto interdisciplinar. Todos temos a contribuir, seja com idéias, teorias, conteúdos e sugestões advindos de nossas práticas científicas ou de nossas práticas cotidianas, daquilo que ouvimos, vemos, sentimos e observamos em cada esfera de nossa vida (um filme, uma música, uma conversa com amigos, uma palestra, um jornal, um livro, etc), de modo que possamos romper com a dicotomia entre ciência e existência no trato da interdisciplinaridade e possamos compreender de forma clara que a interdisciplinaridade não está na ciência em si, mas na disposição do cientista em dialogar com o outro, e sua contribuição extrapola, inclusive, seu campo específico do saber.

Um pré-requisito essencial à prática da interdisciplinaridade é, portanto, ter atitude

interdisciplinar, imprescindível tanto para a execução do trabalho em si quanto para se persistir nos desafios (JAPIASSU, 1976) que a interdisciplinaridade apresenta. Citando as palavras de Fazenda,

Atitude de busca de alternativas para conhecer mais e melhor; atitude de espera perante atos não-consumados; atitude de reciprocidade que impele à troca, ao diálogo com pares idênticos, com pares anônimos ou consigo mesmo; atitude de humildade diante da limitação do próprio saber; atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos saberes; atitude de desafio diante do novo, desafio de redimensionar o velho; atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos e as pessoas nele implicadas; atitude, pois de compromisso de construir sempre da melhor forma possível; atitude de responsabilidade, mas sobretudo de alegria, de revelação, de encontro, enfim, de vida.(FAZENDA, 2007, p. 13-14)

Como percebemos, a atitude interdisciplinar implica não apenas em um querer, mas num

conjunto de competências e habilidades para se trabalhar em grupo e que não desenvolvemos durante a nossa formação. No caso da equipe do PIBID de Araguaína, como todos vieram de uma formação baseada na disciplinaridade, que leva a comportamentos mais competitivos do que colaborativos. Foi necessário que cada participante tomasse para si a responsabilidade de desenvolver atitudes para se trabalhar em equipe, como saber ouvir, saber argumentar, saber negociar, saber dividir tarefas, condições para que cada componente do grupo pudesse de fato “ver” e “ouvir” o outro.

Assim, alguns componentes dos grupos foram orientados a ouvirem mais; outros, a falarem mais; outros, a se posicionarem, a defenderem suas idéias; outros, a negociar mais, e assim por diante, de modo não apenas a adquirem uma postura mais dialógica e dialogizante, mas também a propiciar aos demais que desenvolvessem ou aprimorassem sua capacidade de trabalho interdisciplinar.

Percebemos, entretanto, que, até para isso, é necessário que haja atitude interdisciplinar, ou

seja, que as pessoas “queiram” adquirir as habilidades e competências às quais nos referimos. Explica-nos Fazenda (2006b, p.72) que “um projeto interdisciplinar pressupõe a presença de

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projetos pessoais de vida”. Como já nos referimos, todos viemos de uma formação disciplinar e competitiva e é fundamental que nos proponhamos a reformular nossa forma de pensar e de nos comportar. Os participantes do Programa que se dispuseram a isso conheceram mais a si próprios, procuraram adquirir e desenvolver competências e habilidades que não apresentavam antes e conseguiram evoluir na prática interdisciplinar, tornando-se seres humanos melhores. Assim, os mais radicais aprenderam a ouvir e a negociar; os mais tímidos, a se expressar e defender suas idéias; os mais atuantes, a recuar e a dar espaço para que os demais também tomassem iniciativas, e assim por diante.

Do mesmo modo, aqueles participantes que acreditaram na proposta e que antes eram

tímidos e raramente se expressavam em grupo passaram a se mostrar mais desinibidos e mais seguros na defesa de suas idéias, tanto no seu grupo interdisciplinar quanto nas reuniões gerais do projeto. Os que antes eram muito competitivos, passaram a colaborar mais com os colegas e, via de regra, todos eles desenvolveram atitudes como paciência, humildade, empatia, reforçando o espírito de equipe. Estes apresentaram grande contribuição para o grupo como um todo.

Aqueles, entretanto, que não se dispuseram a desconstruir o comportamento individualista,

resistiram à proposta, vendo dificuldades em tudo. Pouco se manifestavam tanto no âmbito do seu grupo interdisciplinar quanto durante as reuniões gerais. Alguns demonstravam dificuldades em superar o velho e, sempre que se manifestavam, era para colocar em dúvida a proposta interdisciplinar e reforçar os valores, métodos e procedimentos pedagógicos tradicionais. Em comum, todos os que, de alguma forma, resistiram ao projeto se mostravam muitas vezes desmotivados e sempre apresentavam dificuldades em se inserir (e à sua disciplina) nos planejamentos realizados pelo grupo. Sem um projeto de mudança pessoal, apresentaram reduzida capacidade de interação com o grupo e pouco contribuíram para que a interdisciplinaridade acontecesse de fato.

Independente do grau de adesão à proposta, todos passaram por um processo de aprendizado que não foi fácil, mas cheio de tensões e/ou crises, relacionadas ora ao planejamento, ora à execução das atividades, ora a ambos. Na maioria das vezes, os participantes preferiam registrar suas reclamações nos relatórios parciais de atividades ou nas reuniões de área que cada coordenador realizava com os bolsistas de seu curso, sendo raramente externadas nas reuniões gerais da equipe. Do mesmo modo, essas questões eram resolvidas geralmente dentro do próprio grupo interdisciplinar, pelos próprios membros, havendo sido raras as intervenções de supervisores e coordenadores na resolução desses conflitos.

Dentre os problemas mais recorrentes em relação à atitude interdisciplinar, a falta de

compromisso, interesse e espírito de colaboração foram os mais frequentemente apontados pelos bolsistas nos seus relatórios de atividades. Estes entraves se, por um lado, atestavam as dificuldades dos membros da equipe na distribuição igualitária das atividades entre os membros do grupo, por outro acarretavam sobrecarga para alguns participantes, que acabavam trabalhando mais do que os outros.

A este respeito, fazendo uma avaliação do projeto, ao serem solicitados a dizerem qual seria

o perfil de colegas com quem escolheriam trabalhar numa equipe interdisciplinar, responderam os bolsistas:

“Comprometidos, esforçados, com princípios e conhecimento sobre o que é trabalhar em grupo” (Bolsista B1, História) “humilde, alguém que fosse flexível, que tivesse sua opinião e respeitasse a dos outros”. (Bolsista B2, Letras)

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“Uma pessoa que gosta de pesquisar e compartilhar novidades, pessoa humilde, que saiba acatar sugestões, pessoa responsável, otimista e cooperativa.” (Bolsista B3, Letras) “Antes de tudo, compromissado, criativo, que tenha conhecimentos suficientes de sua área, de forma a contribuir nos planejamentos. (Bolsista B4, Matemática) “Compromissadas, disponibilidade para tentar, errar e acertar e não desistir, tenha vontade de mudar, que acredite no ensino da Escola Pública da Educação Básica, queira transformar/mudar a metodologia de ensino. “(Bolsista B5, Matemática) “Participativa, criativa e principalmente que mostrasse compromisso com o projeto”. (Bolsista B6, Matemática) “É complicado montar um perfil interdisciplinar, a mesma é desafiadora. Porém é necessário ser sempre humilde, inovador e criativo e sempre aberto ao diálogo.” (Bolsista B7, Geografia) “Seriam as mesmas que seguiram comigo por quase um ano. Abertas ao diálogo, criativas, que procuram inovar, responsáveis e alegres. Gosto de sorrisos no momento de trabalho”. (Bolsista B8, Geografia) “Teria que ter humildade, vontade de aprender e dinamismo, motivação e ser solidária”. (Bolsista B9, Geografia) “Pessoas inovadoras, que gostam de trabalhar em sala de aula, que não têm medo de arriscar, que gostam de sugerir.” (Bolsista B10, Letras)

Solicitados a dizer que tipos de pessoas não escolheriam de forma alguma para um trabalho

interdisciplinar, assim se manifestaram: “Desconexa com o trabalho, que deixa o trabalho somente para os outros”. (Bolsista B1, História). “Pessoas preguiçosas, sem ânimo, sem ideias, sem compromisso.” (Bolsista B1, História) “Pessoa que fala demais (o que vem na cabeça), pessoa conformada com tudo e pessoas que são o inverso do que relacionei na questão anterior”. (Bolsista B3, Letras) “Preguiçoso, acomodado, fofoqueiro, descompromissado com o Programa”.(Bolsista B4, Matemática) “Aquelas que não têm compromisso e que não aceitam o desafio de mudar”.(Bolsista B5, Matemática) “Pouco participativo, inibido” . (Bolsista B6, Matemática) “Exatamente um profissional que não está aberto ao diálogo e que está sempre centrado em sua área, egoísta”. (Bolsista B7, Geografia)

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Pessoas que não dão abertura para o diálogo, mal humoradas e sem iniciativa ou responsabilidade”. (Bolsista B8, Geografia) “Não escolheria uma pessoa infantil, que se troca com os alunos, sem humildade e sem um olhar crítico”. (Bolsista B9, Geografia) “Pessoas preguiçosas, sem ânimo, sem ideias, sem compromisso” .(Bolsista B10, Letras)

Como percebemos, as variações nas respostas indicam a diversidade das experiências

vivenciadas pelos bolsistas, como também gostos e necessidades de natureza coletiva e de natureza subjetiva. Assim, a maioria dos participantes escolheria, em síntese, alguém comprometido e com capacidade de diálogo, entretanto apontam também uma miríade de outras atitudes que, se são essenciais para uns, não incomodam os outros, como o caso de pessoas fofoqueiras e que não sorriem.

A partir das respostas dos bolsistas e analisando a prática vivenciada nos dois anos de execução do projeto, pudemos perceber que, assim como não há um modelo de prática interdisciplinar único e ideal, cada um tem uma capacidade de trabalho diferenciada, níveis de compromisso e de interesse também diferentes em relação à interdisciplinaridade, do mesmo modo que cada participante contribui, à sua maneira, para o trabalho em conjunto. O grande desafio da interdisciplinaridade consiste exatamente em fazer com que as pessoas diferentes negociem as atividades de modo que todos possam contribuir para que o resultado final seja exitoso. Citando Fazenda (2006b, p. 71), “a interdisciplinaridade decorre mais do encontro entre indivíduos do que entre disciplinas” e, para que isso ocorra, é necessário que cada participante seja respeitado em sua diversidade, mas também é imprescindível que cada componente da equipe perceba que terá de romper barreiras individuais no sentido de expandir sua capacidade de atuação em grupo, exercitando a escuta, a capacidade de tomar iniciativas, a negociação, a capacidade de argumentação, de compreensão e de respeito ao outro.

Avaliando a experiência da equipe PIBID de Araguaína, percebemos que, ainda que alguns tenham demonstrado não haver conseguido construir as competências e habilidades próprias da interdisciplinaridade, o que se pode constatar nos relatórios, diários de campo e depoimentos apresentados pelos participantes, de um modo geral todos registram modificações no modo de conceber a Educação, maior segurança e amadurecimento nas discussões sobre a interdisciplinaridade e amadurecimento em relação à atuação em equipe. E considerando que as mudanças não ocorrem com todos de uma mesma maneira e nem num mesmo tempo, acreditamos que mesmo estes participantes foram, de alguma forma, influenciados pela vivência que tiveram e, se não demonstraram mudanças mais expressivas, pode ser porque, citando novamente Fazenda (2006b, p72), “o desvelamento de um projeto pessoal de vida é lento, exige uma espera adequada”.

Concluindo, podemos afirmar que a interdisciplinaridade permite um olhar sobre o próprio sujeito que se pretende interdisciplinar. Conhecer a si mesmo, suas competências e habilidades, suas facilidades e suas dificuldades, seus erros e seus acertos permite que a pessoa que pretende ou que se propõe a desenvolver projetos, práticas e ações interdisciplinares possa reconhecer seu papel no grupo e colaborar de forma mais incisiva naquilo que lhe é mais familiar. Nesse sentido, podemos observar como as representações de cada pessoa influenciam direta e indiretamente no sucesso ou no fracasso das atividades interdisciplinares.

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Referências bibliográficas FAZENDA, I. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 13.ed. Campinas: Papirus, 2006 (a). ______. Interdisciplinaridade: qual o sentido? 2. ed. São Paulo: Paulus, 2006 (b).(Coleção Questões Fundamentais da Educação) ______. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2007. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo : EDUSP, 2007. Enviado em 30/12/2015 Avaliado em 10/02/2016

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O ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO EM EDUCAÇÃO FÍSICA E SUAS MARCAS DOCENTES POSITIVAS E NEGATIVAS

Hugo Norberto Krug24 Victor Julierme Santos da Conceição25

Cassiano Telles26 Rodrigo Rosso Krug27

Patric Paludett Flores28 Marilia de Rosso Krug29

Resumo O estudo objetivou analisar as percepções de acadêmicos de um curso de Licenciatura em Educação Física de uma universidade pública da região sul do Brasil sobre suas marcas docentes positivas e negativas durante a realização do Estágio Curricular Supervisionado (ECS). Caracterizamos a pesquisa como qualitativa descritiva do tipo estudo de caso. O instrumento de pesquisa foi um questionário interpretado pela análise de conteúdo. Participaram 22 acadêmicos. Concluímos que o ECS foi gerador de marcas docentes positivas e negativas, estando relacionadas aos alunos da educação básica, aos próprios acadêmicos universitários e à estrutura da escola. Palavras-chave: Educação Física. Formação de Professores. Marcas Docentes. Abstract The study was aimed to analyze the perceptions of academic of a course of Bachelor's Degree in Physical Education from a public university in southern Brazil about their teachers marks positive and negative during the realization of Supervised (ECS). We characterized the research as descriptive qualitative of the type case study. The research instrument was a questionnaire interpreted by content analysis. Participle 22 academics. We conclude that the ECS was generator of teachers marks positive and negative, being related the students of basic education, the selfsame university academics and the school structure. Keywords: Physical Education. Teacher Formation. Teachers Marks. Considerações introdutórias

Segundo Krug et al. (2013) as Resoluções do Conselho Nacional de Educação/Conselho

Pleno n.01 e n.02 de 2002 deflagraram modificações curriculares nos cursos de formação inicial de professores de Educação Física (EF) que provocaram, com o passar do tempo, investigações sobre os seus efeitos formativos.

Neste sentido, lembramos Ferreira e Krug (2001, p.83) que dizem que um curso de

Licenciatura tem como objetivo principal a habilitação para a docência na educação básica e entre as disciplinas que constam no currículo destaca-se, pela sua relevância, o Estágio Curricular Supervisionado (ECS), que tem por “atribuições precípuas colocar o futuro profissional em contato

24 Doutor em Educação (UNICAMP/UFSM); Doutor em Ciências do Movimento Humano (UFSM); Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); [email protected]. 25 Doutor em Ciências do Movimento Humano (UFRGS); Professor da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC); [email protected]. 26 Doutorando em Educação (UFSM); [email protected]. 27 Doutorando em Ciências Médicas (UFSC); Professor da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ); [email protected]. 28 Doutorando em Educação Física (UEM); [email protected]. 29 Doutoranda em Educação nas Ciências: Química da Vida e Saúde (UFSM); Professora da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ); [email protected].

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com a realidade educacional, desenvolvendo-se estilos de ensino, possibilitando adequadas seleções de conteúdos e estratégias, etc.”. Assim sendo, Ivo e Krug (2008) afirmam que estudar ‘o quê’ e ‘quem’ envolve esta disciplina é tarefa daqueles que se preocupam com uma formação de qualidade para os futuros professores. Além disso, Sarmento e Fossati (2011) destacam que a escuta e a problematização das percepções de futuros professores sobre a docência são fundamentais, pois podem apontar questões importantes para a formação inicial.

Neste contexto, emergiu o tema ‘marcas docentes no ECS’, pois, para Cavalheiro (2014), as marcas docentes matizam o que resulta do tempo vivo na memória, abstraído na interação com os formadores durante a formação inicial, mescladas às tecidas no tempo atual. Ferri (2010) define como marcas aqueles fatos que ficam na memória espontânea e que trazem somente recordações positivas. Em contraposição, Cavalheiro (2014) diz que as marcas também são aquelas que provocam algum tipo de frustração ou desencanto com a formação vivenciada que, de alguma forma, contribuem para o corte com a docência. Já Cunha (2010) diz que ao longo do processo formativo entrelaçam-se pontos de encontros e desencontros, fatos que marcam (positiva ou negativamente) e que se encontram na subjetividade das pessoas.

Assim, embasando-nos nestas premissas descritas anteriormente formulamos a questão

problemática norteadora do estudo: quais foram as percepções de acadêmicos de um curso de Licenciatura em EF de uma universidade pública da região sul do Brasil sobre as suas marcas docentes durante a realização do ECS? A partir desta indagação o estudo teve como objetivo analisar as percepções de acadêmicos de um curso de Licenciatura em EF de uma universidade pública da região sul do Brasil sobre as suas marcas docentes positivas e negativas durante a realização do ECS.

Justificamos esta pesquisa considerando que conhecer as marcas docentes que o ECS pode

causar, pode oferecer subsídios para reflexões e possibilitar modificações no contexto do ECS de um curso de Licenciatura em EF, sempre visando a melhora da qualidade desses profissionais na atuação docente na escola. Procedimentos metodológicos

Caracterizamos o estudo como qualitativo descritivo na forma de estudo de caso. Optamos

por este tipo de estudo porque a pesquisa qualitativa proporciona a busca de novas alternativas para o conhecimento de uma realidade tão dinâmica e problemática como de determinada população ou fenômeno (GIL, 1999), sendo que com o caso é possível a educacional (GAMBOA, 1995), onde a pesquisa descritiva objetiva a descrição das características a realização um estudo profundo de um ou mais objetos ou pessoas de forma que se consiga um amplo e detalhado conhecimento sobre os mesmos (CAUDURO, 2004). Nesse sentido, o caso, referiu-se aos ECS de um curso de Licenciatura em EF de uma universidade pública da região sul do Brasil e teve a participação de 22 acadêmicos. O instrumento usado para coletar as informações foi um questionário tendo a interpretação de suas informações feitas pela análise de conteúdo. Resultados e discussões

Os resultados e as discussões foram orientados e explicitados pelo objetivo do estudo, pois

esse representou as categorias de análise (marcas positivas e negativas). Minayo; Delardes e Gomes (2007) dizem que as categorias de análise podem ser geradas previamente à pesquisa de campo. Assim a seguir, apresentamos o que expuseram os futuros professores de EF sobre as suas marcas docentes durante o ECS.

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As marcas docentes positivas Nesta categoria de análise, achamos importante mencionar Luft (2000) que coloca que

positivo é algo que tende a auxiliar para a melhoria de alguma coisa. Assim, para este estudo, consideramos positiva a marca docente apontada pelos acadêmicos estudados que tenderam para auxiliar em uma melhoria do desempenho docente nas aulas de EF na escola ministradas pelos mesmos, durante o ECS. Nesse sentido, emergiram ‘quatro unidades de significados’ descritas na sequência a seguir.

‘A boa relação com os alunos’ (quinze citações) foi a primeira e principal unidade de

significado manifestada. Sobre essa unidade citamos Cunha (1996) diz que a aula é um lugar de interação entre as pessoas e, portanto, um momento único de troca de influências. Assim, a relação professor-aluno no sistema formal de ensino é parte da educação. Já Darido e Rangel (2005) ressaltam que o sucesso e o insucesso do processo ensino-aprendizagem depende da interação professor-aluno em sua prática pedagógica. Dessa forma, a boa relação está associada ao sucesso e a má relação ao insucesso. Nesse sentido, alguns estudos (KRUG, 2010a; KRUG, 2010b; KRUG et al., 2012) apontam que a boa relação com os alunos é um fato marcante, melhores momentos e sentimento de satisfação na docência dos acadêmicos de EF em situação de ECS.

Outra unidade de significado manifestada, a segunda, foi ‘a aprendizagem dos alunos’

(doze citações). A respeito dessa unidade mencionamos Pimenta e Lima (2004) que dizem que a essência da docência é a aprendizagem discente seja qual for seu tipo. Sem os alunos não existiria esta profissão. Já Barreto (2007) destaca que a aprendizagem dos alunos é um dos itens que suscita o orgulho e o prazer de ser professor, pois vemos estampada a satisfação do professor (ou futuro professor) que se projeta e se realiza no sucesso alcançado pelos alunos. Dessa maneira, estudos de Krug (2010a), Krug (2010b) e Krug et al. (2012) apontam que a aprendizagem dos alunos é um dos fatos marcantes, melhores momentos e um sentimento de satisfação na docência dos acadêmicos de EF em situação de ECS.

‘A aprendizagem da docência’ (oito citações) foi a terceira unidade de significado

manifestada. Quanto a essa unidade nos reportamos a Fontana (2013) que coloca que o objetivo fundamental do estágio, como atividade acadêmico formativa, é promover uma aprendizagem docente que, entre muitos conhecimentos, contenha um alargamento da compreensão da cultura escolar em suas práticas e apreciações valorativas, pelo cotejamento das diversas concepções de educação, ensino, escola e docência presentes no processo de formação profissional. Dessa forma, estudo de Krug e Krug (2010) indica que a aprendizagem da docência é uma característica do ECS.

A quarta e última unidade de significado manifestada foi ‘o reconhecimento do seu

trabalho profissional pelos alunos’ (cinco citações). Relativamente a essa unidade nos referimos a Barreto (2007) que afirma que o reconhecimento pelo trabalho, embora não ocorra frequentemente, muito contribui para a satisfação e realização do professor (ou futuro professor). A autora destaca que qualquer ser humano experimenta alegria quando tem suas ações reconhecidas e bem apreciadas. Saber que seu trabalho está produzindo frutos, que o sorriso estampado na cara dos alunos é uma avaliação positiva do trabalho que desenvolve confere muito prazer ao professor (ou futuro professor). Funciona como elemento que contribui para mantê-lo motivado a desenvolver um bom trabalho. E, nesse direcionamento de ideia, o estudo de Krug et al. (2012) aponta que o reconhecimento profissional pelos alunos é algo que anima, isto é produz satisfação no exercício da docência aos acadêmicos de EF em situação de ECS.

Ao fazermos uma análise geral sobre a percepção dos acadêmicos estudados constatamos

que uma metade (duas do total de quatro) das marcas docentes positivas estão diretamente ‘ligadas aos alunos da educação básica’ (‘a boa relação com os alunos’ e ‘a aprendizagem dos alunos’), e uma outra metade estão diretamente ‘ligadas aos próprios acadêmicos, ou seja, a si mesmos’ (‘a aprendizagem da docência’ e ‘o reconhecimento do seu trabalho profissional pelos alunos’).

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Vale ainda destacar que as quatro marcas docentes positivas tiveram no total quarenta citações, sendo vinte e sete ‘ligadas aos alunos da educação básica’ e treze ‘ligadas aos próprios acadêmicos, ou seja, a si mesmos’. A partir destas constatações inferimos que o ECS é um importante componente para uma formação profissional de qualidade, pois pode proporcionar marcas docentes positivas nos acadêmicos em situação de ECS. Nesse sentido, citamos Krug et al. (2015) que destacam que a participação nos ECS foi a principal marca docente positiva durante a formação inicial na percepção de acadêmicos de um curso de Licenciatura em EF.

As marcas docentes negativas

Nesta categoria de análise, achamos necessário citar Luft (2000) que diz que negativo é algo

que contém ou exprime recusa, é contraproducente. Assim, para este estudo, consideramos negativa a marca docente apontada pelos acadêmicos estudados que tendeu para tornar contraproducente o desempenho docente nas aulas de EF na escola ministradas pelos mesmos, durante o ECS. E, nesse sentido, emergiram ‘três unidades de significados’, as quais foram elencadas a seguir.

‘A indisciplina dos alunos’ (onze citações) foi a primeira e principal unidade de significado

ressaltada. Em se tratando dessa unidade citamos Aquino (1996) que afirma que, há muito tempo, os distúrbios disciplinares deixaram de ser um evento esporádico e particular no cotidiano das escolas brasileiras para se tornarem, talvez, um dos maiores obstáculos pedagógicos dos dias atuais. Também, salienta que, está claro que, a maioria dos educadores não sabe como interpretar e administrar o ato indisciplinado. Nesse sentido, vários estudos (KRUG, 2010a; KRUG, 2010b; KRUG, 2011; MAZZOCATO; ANTUNES; KRUG, 2011) destacam que a indisciplina dos alunos é um dos principais problemas/dificuldades enfrentados por acadêmicos de EF em situação de ECS, bem como um fato marcante.

Outra unidade de significado ressaltada, a segunda, foi ‘a falta de controle/domínio da

turma de alunos’ (sete citações). Essa unidade pode ser apoiada em Krug e Krug (2012) que dizem que o acadêmico-estagiário para aprender a ser professor precisa aprender a enfrentar a complexidade da prática. Também Krug e Krug (2011) destacam que o controle/domínio da classe de alunos é uma das preocupações pedagógicas de acadêmicos de EF durante o ECS. Nesse direcionamento de ideia, salientamos que vários estudos (KRUG, 2010a; KRUG, 2011; MAZZOCATO; ANTUNES; KRUG, 2011) constataram que a falta de controle/domínio da turma de alunos é um dos principais problemas/dificuldades enfrentados por acadêmicos de EF em situação de ECS.

A terceira e última unidade de significado ressaltada foi ‘as precárias condições de

trabalho da Educação Física na escola, quanto a espaço físico e materiais’ (quatro citações). Em relação a essa unidade citamos Krug (2008) que diz que, historicamente, a EF apresenta precárias condições de trabalho que são, principalmente, representadas pela falta de locais e materiais para sua prática. E, no sentido de comprovação dessa situação, vários estudos (KRUG, 2010a; KRUG, 2011; MAZZOCATO; ANTUNES; KRUG, 2011) mostram que esta falta de espaço físico e materiais é um dos principais problemas/dificuldades enfrentados pelos acadêmicos de EF em situação de ECS.

Ao efetuarmos uma análise geral sobre a percepção dos acadêmicos estudados constatamos

que um terço (uma de três) das marcas docentes negativas está diretamente ‘ligado aos alunos da educação básica’ (‘a indisciplina dos alunos’), outro terço está diretamente ‘ligado aos próprios acadêmicos, ou seja, a si mesmos’ (‘falta de controle/domínio da turma de alunos’) e o último terço está diretamente ‘ligado à estrutura da escola’ (‘as precárias condições de trabalho da Educação Física na escola’). Vale destacar que as três marcas docentes negativas tiveram no total vinte e duas citações, sendo onze ‘ligadas aos alunos da educação básica’, sete ‘ligadas aos próprios acadêmicos, ou seja, a si mesmos’ e quatro ‘ligadas à estrutura da escola’. A partir destas constatações

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inferimos que o ECS pode ser um importante componente para uma formação profissional deficiente, pois pode proporcionar marcas docentes negativas nos acadêmicos em situação de ECS. Nesse sentido, citamos Mazzocato; Antunes e Krug (2011) que dizem que os piores momentos na experiência docente de acadêmicos de Licenciatura em EF em situação de ECS são determinados pelos sentimentos de angústia e frustração frente aos problemas da docência. Considerações transitórias

Pela análise das informações obtidas temos a destacar o seguinte: a) quanto às marcas docentes positivas constatamos que os acadêmicos estudados apontaram ‘quatro unidades de significados’: 1) ‘a boa relação com os alunos’; 2) ‘a aprendizagem dos alunos’; 3) ‘a aprendizagem da docência’; e, 4) ‘o reconhecimento do trabalho profissional pelos alunos’. Esse rol de marcas docentes positivas aponta para: duas marcas (1ª e 2ª) que possuíram ‘ligação direta com os alunos da educação básica’ e, duas marcas (3ª e 4ª) que tiveram ‘ligação direta com os próprios acadêmicos, ou seja, a si mesmos’; e, b) quanto às marcas docentes negativas constatamos que os acadêmicos estudados apontaram ‘três unidades de significados’: 1) ‘a indisciplina dos alunos’; 2) ‘a falta de controle/domínio da turma de alunos’; e, 3) ‘as precárias condições de trabalho da Educação Física na escola, ou seja, espaço físico e material’. Esse rol de marcas docentes negativas aponta para: uma marca (1ª) que teve ‘ligação direta com os alunos’, uma outra marca (2ª) que possuía ‘ligação direta com os próprios acadêmicos, ou seja, a si mesmos’ e mais uma marca (3ª) que teve ‘ligação direta com a estrutura da escola’.

A partir destas constatações concluímos que o ECS do curso de Licenciatura em EF

estudado na percepção dos acadêmicos foi gerador de marcas docentes tanto positivas quanto negativas. Esse fato está em consonância com o colocado por Cavalheiro (2014) de que o processo formativo é gerador de marcas e estas tomam forma e relevo, a partir das ações, reações e interações dos acadêmicos com as atividades de ensino, bem como com os formadores durante o curso.

Também concluímos pela existência de marcas docentes positivas em maior quantidade

(quatro unidades de significados com um total de quarenta citações) do que as marcas docentes negativas (três unidades de significados com um total de vinte e duas citações). Nesse sentido, destacamos uma maior possibilidade de uma formação de qualidade dos acadêmicos estudados a partir da participação no ECS. Em síntese, o ECS deixou marcas nos acadêmicos estudados, tanto positivas quanto negativas, na busca formativa para o vir-a-ser docente de EF. Referências AQUINO, J.R.C. Apresentação. In: AQUINO, J.R.C. (Org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1996. BARRETO, M. de A. Ofício, estresse e resiliência: desafio do professor universitário, 2007. Tese (Doutorado em Educação) – UFRN, Natal, 2007. CAUDURO, M.T. Pesquisa: a construção de um conhecimento. In: CAUDURO, M.T. (Org.). Investigação em Educação Física e esportes: um novo olhar pela pesquisa qualitativa. Novo Hamburgo: FEEVALE, 2004. CAVALHEIRO, R. Marcas docentes e influências formativas continuadas. In: ANPEd Sul, X., 2014, Florianópolis. Anais, Florianópolis: UDESC, 2014. CUNHA, M.I. A relação professor-aluno. In: VEIGA, I.P. de A. (Coord.). Repensando a Didática. 11. ed. Campinas: Papirus, 1996. CUNHA, M.I. (Org). Trajetórias e lugares de formação da docência universitária: da perspectiva individual ao espaço institucional. Brasília: CAPES: CNPQ, 2010. DARIDO, S.C.; RANGEL, I. Educação Física na escola: implicações para a prática pedagógica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008.

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EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR INCLUSIVA: DILEMAS E PERSPECTIVAS

Hugo Norberto Krug30 Victor Julierme Santos da Conceição31

Cassiano Telles32 Rodrigo Rosso Krug33

Patric Paludett Flores34 Marilia de Rosso Krug35

Resumo O estudo objetivou analisar as percepções de professores de Educação Física (EF) da educação básica da rede pública de ensino de uma cidade da região central do Estado do Rio Grande do Sul sobre os dilemas e as perspectivas futuras para a EF Inclusiva. Caracterizamos a pesquisa como qualitativa descritiva do tipo estudo de caso. O instrumento de pesquisa foi uma entrevista com dez professores, tendo as informações interpretadas pela análise de conteúdo. Concluímos que, apesar do respaldo legal, o sistema educacional não se estruturou para a educação inclusiva, pois os dilemas e as perspectivas futuras apontadas foram principalmente de cunho estrutural e pedagógico. Palavras-chave: Educação Física Escolar. Inclusão. Dilemas. Perspectivas. Abstract The study aimed to analyze the perceptions of Physical Education (PE) teachers of the basic education of the public education network in a city at central region of the State of Rio Grande do Sul about the dilemmas and future prospects for the Inclusive PE. We characterized the research as descriptive qualitative of the type case study. The research instrument was an interview with ten teachers, have the information interpreted by content analysis. We conclude that, although of legal backing, the educational system isn’t structured for the inclusive education, because the dilemmas and future prospects identified were mainly structural and pedagogical nature. Keywords: Physical Education. Inclusion. Dilemmas. Prospects. As considerações introdutórias

Segundo Souza e Miranda (2010) a proposta de inclusão escolar encontra dificuldades na sua concretização devido a muitos fatores, entre eles, problemas com as próprias escolas e seus professores. Entretanto, ressaltam que frente à proposta de inclusão, as escolas necessitam estar cada vez mais preparadas para poderem assimilar mecanismos que objetivam atender os alunos com deficiência, fazendo com que os mesmos participem das aulas, independente de suas limitações físicas. Convém destacar que, neste estudo, o termo pessoa (aluno) com deficiência foi utilizado para se referir à pessoa que tem “[...] impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental ou sensorial que, em interação com diversas barreiras, podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade” (BRASIL, 2008, p.9).

30 Doutor em Educação; Universidade Federal de Santa Maria; [email protected]. 31 Doutor em Ciências do Movimento Humano; Universidade do Extremo Sul Catarinense; [email protected]. 32 Doutorando em Educação; Universidade Federal de Santa Maria; [email protected]. 33 Doutorando em Ciências Médicas; Universidade Federal Santa de Catarina; [email protected]. 34 Doutorando em Educação Física; Universidade Estadual de Maringá; [email protected]. 35 Doutoranda em Educação nas Ciências: Química da Vida e Saúde; Universidade Federal de Santa Maria; [email protected].

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Assim, salientando que o currículo escolar tem a Educação Física (EF) como um componente obrigatório, voltamos nossos olhares investigativos para essa disciplina e para a temática da inclusão escolar. E, nesse sentido, constatamos que vários estudos (CONCEIÇÃO; KRUG; VENSON, 2013; FLORES; KRUG, 2014; TELLES; KRUG, 2014) apontam para o acontecimento da exclusão dos alunos com deficiência durante as aulas de EF na escola.

Diante deste quadro, consideramos necessário citar Morgado et al. (2013) que destaca a importância de que políticas de inclusão no ambiente escolar sejam adotadas para melhorar as possibilidades de participação de todos na aprendizagem.

Desta forma, segundo Braun e Vianna (2009), é muito importante promover a aprendizagem de todos independentemente da condição do aluno. Assim, para que os alunos possam receber uma educação produtiva, necessitamos profissionais qualificados e capazes de oferecer conhecimento adequado, fazendo com que esses alunos se sintam acolhidos e valorizados, promovendo melhor a assimilação de conteúdos. Já para Mori (2014) a educação inclusiva tem muito a contribuir para a aprendizagem e desenvolvimento de pessoas com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Entretanto, Braun e Vianna (2013) afirmam que para que o processo se realize, há necessidade de currículo, atividades, estrutura física e de profissionais preparados para trabalhar com as necessidades de cada grupo.

Neste sentido, a problemática da educação inclusiva surge pela “preocupação em oferecer uma educação de qualidade e sem distinções, que minimize possíveis ações de discriminação e preconceito que levem a exclusão ou até mesmo ao abandono escolar destes alunos” (SARAIVA; LEVANDOSKI, 2015, p.48).

Assim, a EF, bem como as demais disciplinas que integram o sistema educacional, segundo Caputo e Ferreira (1998), vem sofrendo grandes desafios com a inclusão, alterando o contexto escolar. Referem-se, neste caso, a um problema crucial: o despreparo dos professores. Desta forma, a escuta e a problematização das percepções dos próprios professores de EF sobre a temática em estudo torna-se fundamental, pois podem apontar dimensões importantes a serem consideradas no seu trabalho docente.

Consequentemente, embasando-nos nas premissas descritas formulamos a questão problemática do estudo: quais as percepções de professores de EF da educação básica da rede pública de ensino de uma cidade da região central do Estado do Rio Grande do Sul (RS) sobre os dilemas e as perspectivas futuras da EF Inclusiva? A partir desta indagação o estudo teve como objetivo geral analisar as percepções de professores de EF da educação básica da rede pública de ensino de uma cidade da região central do Estado do RS sobre os dilemas e as perspectivas futuras da EF Inclusiva.

Justificamos a realização do estudo respaldados na necessidade de se estudar o tema inclusão escolar (educação inclusiva), no sentido de compreender os dilemas do processo ensino-aprendizagem e as perspectivas futuras que podem auxiliar na prática pedagógica dos professores de EF na escola, que contribua para garantir oportunidades igualitárias a todos os alunos, isto considerando as adversidades. Os procedimentos metodológicos

Caracterizamos esta pesquisa como sendo de uma abordagem qualitativa descritiva do tipo estudo de caso. Para Negrine (2004, p.61) a pesquisa qualitativa “se centra na descrição, análise e interpretação das informações recolhidas durante o processo investigatório, procurando entendê-las de forma contextualizada”. Dessa forma, a pesquisa qualitativa não se preocupa em generalizar e quantificar os achados, porque trabalha com os significados, as crenças, os valores e atitudes dos sujeitos. Conforme Goode e Hatt (1968, p.17): “o caso se destaca por se constituir numa unidade

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dentro de um sistema mais amplo”. O interesse incide naquilo que tem de único, mesmo que posteriormente fiquem evidentes estas semelhanças com outros casos ou situações.

A coleta de informações foi realizada por meio de entrevista semiestruturada, que, segundo Negrine (2004), busca obter informações sobre questões já definidas mas permitindo que o pesquisador realize explorações não estabelecidas previamente, o que favorece a oportunidade ao entrevistado de dissertar sobre o tema. A interpretação das informações coletadas foi realizada pela análise de conteúdo que, para Bardin (1977), tem três etapas: a pré-análise; a exploração do material; e, o tratamento dos resultados.

Participaram do estudo dez professores de EF da educação básica da rede pública de ensino de uma cidade da região central do Estado do RS que possuíam alunos com deficiência regularmente em suas aulas. Os resultados e as discussões

Os resultados e as discussões foram orientados e explicitados pelo objetivo estudo, pois esse representou as categorias de análise (dilemas e perspectivas). Minayo; Delardes e Gomes (2007) dizem que as categorias de análise podem ser geradas previamente à pesquisa de campo. Assim, a seguir apresentamos o que expuseram os professores estudados sobre os dilemas e as perspectivas da EF Inclusiva. As percepções dos professores sobre os dilemas encontrados na EF Inclusiva

Nesta categoria de análise, achamos importante mencionar Luft (2000) que diz que dilema é uma conjuntura difícil. Assim, para este estudo, consideramos dilema as dificuldades apontadas pelos professores estudados que tenderam para a existência de uma conjuntura difícil para o desenvolvimento de uma EF Inclusiva. Vale lembrar que dificuldade, segundo Luft (2000) é um obstáculo; aquilo que se apresenta como difícil. Nesse sentido, emergiram ‘seis categorias de significados’ descritas a seguir.

‘A falta de infraestrutura e materiais na escola’*** (dez citações) foi a primeira e principal unidade

de significado manifestada. Sobre esse fato citamos Lehnhard; Manta e Palma (2011) que dizem que existem barreiras arquitetônicas no ambiente escolar que dificultam ou impedem o acesso e a inclusão de alunos com deficiência.

‘A falta de capacitação do professor de EF em lidar com os alunos com deficiência’* (nove citações) foi a segunda unidade de significado manifestado. A respeito desse fato mencionamos Sant’ Ana (2005) que coloca que muitos professores expressam a ideia de que a formação continuada deveria ser ofertada aos docentes pelos órgãos administrativos municipais, estaduais e federais, indicando que se faz necessária a realização de cursos de capacitação para que todos os envolvidos no processo inclusivo tenham condições de desenvolver um trabalho adequado às necessidades desse alunado. Destaca ainda que, inicialmente, acredita que a formação continuada pode favorecer a implementação de uma proposta inclusiva, mas salienta que esta formação continuada necessita estar ligada a outras questões tais como, a melhoria nas condições de ensino, ao suporte de profissionais no auxilio do trabalho do professor, bem como, ao compromisso de cada profissional em trabalhar para a concretização dessas mudanças.

Outra unidade de significado manifestada, a terceira, foi a ‘falta de apoio técnico ao professor de

EF’***, isto é, a falta de orientação no trabalho junto aos alunos com deficiência (cinco citações). Quanto a esse fato apontamos Sant’Ana (2005) que ressalta que mesmo aqueles profissionais que receberam algum tipo de orientação afirmam que o que está sendo feito à nível de escola não é o suficiente para atender às demandas do processo inclusivo. Neste sentido, inferimos que a ausência de uma equipe formada por especialistas de diferentes áreas que atue em conjunto com os docentes

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parece ser um obstáculo importante para a realização de ações e projetos comprometidos a inclusão.

A quarta unidade de significado manifestada foi ‘as dificuldades do professor de EF no trato com os alunos com deficiência’* (quatro citações). Em relação a esse fato citamos Silva; Santiago e Bertoni (2011) que constataram que muitos professores justificam ser a falta de uma formação adequada (inicial e continuada) determinante para que as ações pedagógicas não sejam satisfatórias no trabalho com alunos com deficiência em conjunto com os ditos ‘normais’. Krug (2002) afirma que, no âmbito da escola, é observada a falta de preparo pedagógico do professor para atuar com o aluno com deficiência, haja vista que, nos cursos de formação para o magistério, esse professor não tem oportunidade de receber qualquer informação sobre esta clientela.

‘O preconceito dos alunos com os colegas com deficiência’*** (três citações) foi a quinta unidade de

significado manifestada. Sobre esse fato Krug (2002) diz que a diversidade humana é muito ampla, mas, mesmo assim, existem pessoas que ainda não compreenderam, muito bem, as diferenças e as deficiências que todos possuem, gerando estigmas, preconceitos e impondo rotulações como no caso das pessoas com deficiência.

A sexta e última unidade de significado manifestada foi ‘as diversas concepções (e/ou entendimentos) de inclusão dos professores de EF’** (duas citações). Relativamente a esse fato citamos Lehnhard; Manta e Palma (2011) que dizem que existe um entendimento superficial dos gestores e professores sobre a inclusão de alunos com deficiência em aulas de EF, isto porque muitos entendem que a simples presença do aluno com deficiência nas aulas como inclusão, não necessariamente participando de forma ativa. Com isso, para muitos alunos com deficiência não está sendo dada a oportunidade de aprender junto aos seus colegas.

Ao fazermos uma análise geral sobre a percepção dos professores estudados constatamos que a metade (três do total de seis) dos dilemas da EF Inclusiva são de cunho estrutural*** (primeira, terceira e quinta unidades de significados) e a outra metade está dividida entre os dilemas de cunho pedagógico* (dois do total de seis - segunda e quarta unidades e significados) e os dilemas de cunho conceitual** (um do total de seis – sexta unidade de significado). Esse fato está em consonância com Silva; Santiago e Bertoni (2011) que destacam que os dilemas encontrados pelos professores de EF diante da inclusão escolar são de cunho pedagógico, conceitual e/ou estrutural. Vale ainda lembrar que os seis dilemas da EF Inclusiva tiveram no total trinta e três citações, sendo dezoito de cunho estrutural***, treze de cunho pedagógico* e somente duas de cunho conceitual**. E, a partir destas constatações inferimos que os dilemas da EF Inclusiva giram, principalmente, em torno da dimensão estrutural e, secundariamente, da dimensão pedagógica. As percepções dos professores sobre as perspectivas futuras da EF Inclusiva

Nesta categoria de análise, achamos necessário citar Luft (2000) que define perspectiva como um panorama, uma vista, uma previsão, uma esperança. Assim, para este estudo, consideramos perspectiva a previsão apontada pelos professores estudados para que aconteça o desenvolvimento da EF Inclusiva. Vale lembrar que a previsão também passa a ser uma esperança de vir a acontecer. Nesse sentido, emergiram ‘sete categorias de significados’, as quais foram elencadas na sequência.

‘A melhoria da infraestrutura e materiais na escola’*** (dez citações) foi a primeira e principal unidade de significado ressaltada. Sobre esse fato citamos Tolocka e De Marco (1998) que salientam que a otimização do ambiente para a aprendizagem e a segurança inclui a retirada de barreiras arquitetônicas as quais dificultam ou até impedem o acesso destas pessoas às atividades, ou até mesmo à própria escola.

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‘O apoio técnico ao professor de EF deficiência’*** (sete citações) foi a segunda unidade de significado ressaltada. Relativamente a esse fato apontamos Martins (2001) ao dizer que uma escola para ser inclusiva precisa ter especialistas técnicos para auxiliar no apoio aos professores no desenvolvimento de suas aulas de forma inclusiva.

A terceira unidade de significado ressaltada foi a ‘a realização de formação em serviço para o

professor de EF lidar com alunos com deficiência’* (seis citações). Quanto a esse fato apontamos Krug (2002) que afirma que o professor de EF deve estar preparado para atuar junto a todas as pessoas, sejam elas deficientes ou não. Já Martins (2001) diz que o professor não tem que aprender como ensinar para os alunos com deficiência e, sim para atender a todos os alunos.

Outra unidade de significado manifestada, a quarta, foi ‘a disponibilidade pessoal do professor de

EF em querer trabalhar a inclusão’* (quatro citações). A respeito desse fato Krug (2002) diz que para não ocorrer o risco de que a inclusão venha a incorporar um efeito perverso privilegiando justamente o mecanismo de exclusão do aluno com deficiência, faz-se necessário que o professor assuma o papel de educador.

A quinta unidade de significado ressaltada foi ‘realizar um trabalho conjunto’* (três citações).

Esse fato pode ser respaldado por Krug (2002) que destaca que a inclusão do aluno com deficiência deve ser responsabilidade da escola e da comunidade escolar que deve sentir-se comprometida e assim, facilitar a plena inclusão.

‘O apoio da família e da comunidade’*** (duas citações) foi a sexta unidade de significado ressaltada. Nesse sentido, Martins (2001) diz que para que uma escola se torne inclusiva, é preciso que ela, além de dar abertura para a matrícula de forma não restritiva, incentive a participação ativa e a aprendizagem de todos, sendo necessário para isso um investimento efetivo e sistemático, envolvendo toda a comunidade escolar.

A sétima e última unidade de significado ressaltada foi ‘a conscientização da sociedade’** (uma

citação). Sobre esse fato citamos Krug (2002) que diz que a inclusão das pessoas com deficiência na escola e na EF Escolar é benéfica, tanto para o aluno com deficiência quanto para o aluno dito normal. Ela pode ser considerada uma ‘via de mão dupla’, pois os alunos ditos normais, ao conviver em condições de igualdade com aqueles que apresentam déficits em alguma área, também serão beneficiados. Aprendem que o mundo não é um lugar onde todos são iguais, que tais pessoas, mesmo ‘diferentes’, merecem respeito, amizade e afeto. Aprendem também que existem muitas formas de ajudá-las em suas necessidades, inclusive educacionais. Crescem, enfim, com uma visão menos preconceituosa das pessoas com deficiência, deixando de lado as barreiras psicológicas que só conduzem à sua estigmatização e segregação.

Ao efetuarmos uma análise geral sobre a percepção dos professores estudados constatamos que a quase totalidade (seis do total de sete) das perspectivas futuras para a EF Inclusiva estão divididas entre as de cunho estrutural*** (três do total de sete – primeira, segunda e sexta unidades de significados) e as de cunho pedagógico* (três do total de sete – terceira, quarta e quinta unidades de significados), sendo que as de cunho conceitual** (uma do total de sete – sétima unidade de significado) foram a minoria. Vale destacar que as sete perspectivas futuras da EF Inclusiva tiveram no total trinta e duas citações, sendo dezenove de cunho estrutural***, doze de cunho pedagógico* e uma de cunho conceitual**. E, a partir destas constatações inferimos que as perspectivas futuras da EF Inclusiva giram, principalmente, em torno da dimensão estrutural e, secundariamente, da dimensão pedagógica. As considerações conclusivas

Pela análise das informações obtidas temos a destacar o seguinte: a) quanto aos dilemas da

EF Inclusiva constatamos que os professores estudados apontaram ‘seis unidades de significados’: 1) ‘a

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falta de infraestrutura e materiais na escola’; 2) ‘a falta de capacitação do professor de EF em lidar com os alunos com deficiência’; 3) ‘a falta de apoio técnico ao professor de EF’; 4) ‘as dificuldades do professor de EF no trato com os alunos incluídos’; 5) ’o preconceito dos colegas com os alunos com deficiência’; e, 6) ‘as diversas concepções (e/ou entendimentos) de inclusão dos professores de EF’; e, b) quanto às perspectivas futuras da EF Inclusiva constatamos que os professores estudados apontaram ‘sete unidades de significados’: 1) ‘a melhoria da infraestrutura e materiais na escola’; 2) ‘o apoio técnico ao professor de EF’; 3) ‘a realização da formação em serviço’; 4) ‘a disponibilidade pessoal do professor de EF em querer trabalhar a inclusão’; 5) ‘realizar um trabalho coletivo’; 6) ’o apoio da família e da comunidade’; e, 7) ‘a conscientização da sociedade’.

Nestes resultados, o que chamou à atenção foi que a quase totalidade dos dilemas e

perspectivas futuras da EF Inclusiva giram em torno das dimensões de cunho estruturais (principalmente) e pedagógicas (secundariamente) o que indica que o processo de inclusão escolar ainda é um desafio a ser enfrentado devido a vários motivos, principalmente pela falta de estruturas físicas adequadas aos alunos com deficiência, bem como ao despreparo dos professores para atuar com esses alunos.

A partir destas constatações proporcionadas pelas percepções dos professores de EF estudados sobre os dilemas e as perspectivas futuras da EF Inclusiva podemos concluir que, apesar do respaldo legal, o sistema educacional não se estruturou realmente para o oferecimento de serviços educacionais, sob uma perspectiva menos restritiva às pessoas com deficiências em geral. E vários fatores concorrem para tal situação, entre eles, principalmente, a descontinuidades administrativas existentes no sistema público de ensino, em seus vários níveis, o que tem ocasionado a ausência de um planejamento efetivo que possua diretrizes claramente expressas e em que sejam perseguidos objetivos educacionais voltados para a inclusão dessa clientela. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEEP, 2008. BRAUN, P.; VIANNA, M.M. Formação de novos saberes docentes como premissa para o processo de inclusão. Brasília: CBMEE, 2009. CAPUTO, M.E.; FERREIRA, D.C. Inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais na Educação Física Escolar. In: CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE EDUCAÇÃO MOTORA, I., 1998, Foz do Iguaçu. Anais, Foz do Iguaçu, 1998. CONCEIÇÃO, V.J.S. da; KRUG, H.N.; VENSON, E. Mobilizando saberes docentes na Educação Física Escolar: a construção do conhecimento sobre inclusão. Revista Educação Especial, v.26, n.46, p.465-484, mai./ago., 2013. FLORES, P.P.; KRUG, H.N. Formação inicial de professores de Educação Física: o Estágio Curricular Supervisionado em contexto escolar inclusivo. Revista Pesquiseduca, v.06, n.11, p.190-215, jan./jun., 2014. GOODE, L.; HATT, K. Métodos em pesquisa social. São Paulo: C.E. Nacional, 1968. KRUG, H.N. A inclusão de pessoas portadoras de necessidades educativas especiais na Educação Física Escolar. Cadernos de Educação Especial, n.19, p.15-23, 2002. LEHNHARD, G.R.; MANTA, S.W.; PALMA, L.E. Inclusão na Educação Física: concepções de gestores e professores sobre a participação dos alunos com deficiência física. In: SEMINÁRIO INTERINSTITUCIONAL DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO, XVI, 2011, Cruz Alta. Anais, Cruz Alta: UNICRUZ, 2011. LUFT, C.P. MiniDicionário Luft. São Paulo: Ática/Scipione, 2000. MARTINS, L.A.R. Por uma escola aberta às necessidades dos alunos. Revista Temas Sobre Desenvolvimento, v.10, n.55, p.28-45, 2001. MINAYO, C.; DESLANDES, S.; GOMES, R. (Orgs.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2007. MORGADO, F.F.R. et al. Facilitadores e barreiras por pessoas com cegueira congênita para a prática de atividade física. Rev. Bras. Ed. Especial, v.19, n.3, p.379-394, 2013.

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A CRIANÇA ESCRAVA: UMA DISCUSSÃO ACERCA DAS AÇÕES DA PATROA EM NEGRINHA, DE MONTEIRO LOBATO

Iedja Mayara Nunes da Silva36 Silvio Nunes da Silva Júnior37

Resumo O trabalho objetiva refletir sobre as ações da patroa má que depositava suas diversas revoltas na criança órfã – Negrinha, relatada por Monteiro Lobato numa narrativa pré-modernista. O conto narrativo possui algumas origens discutidas por diversos autores, desde expressões populares até o emprego fixo nos estudos literários quando se afastou em partes da novela e do romance. Nesse sentido, esse gênero pertence a literatura há diversas escolas literárias como romantismo, realismo e modernismo, na última, destaca-se as obras de Lima Barreto, Graça Aranha e Monteiro Lobato que atuaram numa prévia chamada pré-modernismo. Assim, Monteiro Lobato, apesar da colocação nesse período, criticava totalmente os avanços modernos e, através de suas obras nos mais diversos gêneros expusera suas indignações e questionamentos utilizando em grande parte dos textos aas barreiras mais altas da ficção, criando, na maioria das vezes textos infanto-juvenis. No período pré-moderno, Lobato decide ousar e publicar um texto direcionado ao público adulto, foi desse modo que Negrinha veio trazendo muitas reflexões que são tidas até hoje por trazer à tona alguns aspectos sociais que foram e são praticados nos dias atuais como a descriminação, a escravidão e a violência. Este artigo está estruturado em discussões sobre o conto como gênero literário, o foco narrativo, a personalidade literária de Monteiro Lobato, a personagem infantil no texto literário e uma análise sobre o texto Negrinha. Palavras – chave: Estudos Literários. Pré-Modernismo. Negrinha. Aspectos Sociais. Abstract Thispaperaimstoreflectontheactionsofbadmistresswhodepositedtheirvariousuprisings in orphanedchild - Scaup, reportedby Monteiro Lobato in a pre-modernistnarrative. The narrative tale has some originsdiscussedbyseveralauthors, from popular expressionstofixedemployment in literarystudies as hepulledaway in partsofthe novel andthe novel. Thus, this genus belongstotheliteraturethere are severalliteraryschools as romanticism, realismandmodernism in thelast, thereistheworkof Lima Barreto, Graça Aranha and Monteiro Lobato whoworkedon a previouscallpre-modernism. Thus, Monteiro Lobato, despiteputting in thisperiod, entirelycriticizedthemodernadvancesand, throughhisworks in variousgenreshadexposedtheiroutrageandquestionsusinglargelythetexts aas higherbarriersoffiction, creatingmostofthe time childrenandyouthtexts. In thepre-modernperiod, Lobato decides todareandtopublish a textaimedatadults, it was in thiswaythat Negrinha came bringingmanyreflectionsthat are takentodaybybringingup some social aspectsthatwereand are practicednowadays as discrimination ,slaveryandviolence. Thisarticleisstructured in discussionsonthe short story as a literarygenre, thenarrativefocus, theliterarypersonalityof Monteiro Lobato, a childcharacter in theliterarytextandananalysisofthe Negrinhatext. Keywords:LiteraryStudies. Pre-Modernism. Scaup. Social aspects. Introdução

Esse artigo busca investigar acerca das ações maldosas da patroa da mãe da criança Negrinha na narrativa de Monteiro Lobato para com a criança que dedicava a vida ao sofrimento

36 Graduando em Letras – Língua Portuguesa (UNEAL). 37 Graduando em Letras – Língua Portuguesa (UNEAL). Bolsista PIBIC/FAPEAL. Membro do Grupo de Estudos das Narrativas Alagoanas – GENA/CNPQ

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aos 7 anos de idade. Dessa maneira, a imagem infantil tornava-se desvalorizada e, perante as diretrizes atuais, seria praticamente impossível o acontecimento de atos daquela natureza com uma criança.

Iniciaremos esse trabalho discutindo o conto narrativo na literatura, explanando suas peculiaridades e o que levou os autores a recorrerem a esse gênero para expor suas revoltas e críticas aos fenômenos sociais, partindo da literatura para refletir o quão revoltante estava uma realidade, sem desprender-se da ficção que marca o conto em toda o seu trajeto como gênero.

Monteiro Lobato, foi autor de diversas obras, principalmente as voltadas ao público infantil, importando-se assim, em escrever histórias de cunho humorístico e educativo no intuito de despertar o senso crítico das crianças por meio da leitura e, depois de alguns anos, através da perspectiva audiovisual. Com isso, na época pré-modernista, Lobato inovou e escreveu um conto para adultos, porém, não deixando de utilizar a imagem da criança, foi assim que Negrinha ganhou destaque como conto literário, pois, de modo ficcional, Lobato buscou apresentar suas críticas as modernidades e a escravidão que prevaleceu numa época e, mesmo que em baixa escala, ainda insiste em existir.

Na metodologia, utilizaremos o enredo do conto para descrever a personalidade da patroa má, apontando possíveis motivos para todo aquele ódio sobre a criança inocente e inofensiva que vagava nos corredores escuros de uma fazenda de escravos, visto que, considerava-se que a patroa não odiava extremamente as crianças, uma vez que recebia e tratava bem suas sobrinhas em visitas de férias, destacando que as crianças brancas da época desconheciam o papel da criança pobre e escrava que não conhecia o mundo infantil e, além disso, vivia num sofrimento constante.

Esse artigo ancora-se em teóricos atuantes nas definições de conto na literatura, na análise de textos literários na pré-modernidade e em reflexões sobre a vida e obra de Monteiro Lobato na Literatura Brasileira, como: Massauld Moisés (2003),Athayde (1939), Bosi (1969), Passiani (2003), Gotlib (1995), Benjamin (1993)e Barbosa (1996). O conto literário

As definições que permeiam o conceito do conto literário são diversas. Muitos, no dia-a-dia já se depararam com a expressão: Isso não vale um conto furado! ou: Isso é conto inventado! Assim, a mente dos seres humanos, desde a infância, é constituída através de diversos significados para esse termo. Nesse sentido, muitos autores que propuseram a investigar o conto desde a etimologia da palavra, até a abrangência nos estudos literários.

Uma das primeiras características que disseminam o conto na literatura é a posição como gênero literário, e, como tal, possui diversas características e peculiaridades para ser identificado, assim como os gêneros textuais, convém ressaltar também, que o conto na literatura adquire modificações a partir dos avanços sociais.

Quando falamos em gênero literário temos [...] que levar em conta a historicidade: eles evoluíram, transformaram-se, misturaram-se, uns surgiram, enquanto outros desapareceram, através dos séculos. O gênero pode ser considerado a maneira pela qual os conteúdos da literatura organizam-se numa forma. Isto é, cada gênero, através de uma técnica e uma estilística próprias (forma), representa um aspecto particular da experiência humana (conteúdo). (PELLEGRINI; FERREIRA, 1996, p. 56)

Como define Jordão e Oliveira (1999), o gênero literário divide-se em três:

• Épico: ou narrativo, apresentam como tema a narração de fatos notáveis, grandiosos, extraordinários e históricos, de um povo ou herói.

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• Lírico: expressa a realidade interior do autor, ou seja, seus sentimentos, emoções, estado da alma, geralmente apresentada em versos. • Dramático: são textos para encenação pública – a chamada peça teatral. Pode ser subdividida em tragédia, comédia ou farsa.

Com isso, observa-se que o conto literário se enquadra no gênero épico, abrange fatos reais

numa interface com a ficção, transformando o normal em extraordinário ou defasado, abordando a história, a geografia, a sociologia e outras diversas áreas no desenvolvimento dos enredos que atraem o público para leituras envolventes e reflexivas.

Nadia Battella conceitua o conto em três definições “1. relato de um acontecimento; 2.

Narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3. fábula que se conta às crianças para diverti-las.” (GOTLIB, 1995, p.11). O conto, apesar de uma grande expansão nos estudos de gênero textual, tem suas verdadeiras raízes empregadas na literatura, pois, as principais particularidades são advindas da arte literária, como a descrição de acontecimentos envolvendo a realidade na ficção, podendo acontecer de maneira falada ou escrita diante da definição de texto e adotando a fábula (textos onde seres humanos dialogam e convivem normalmente com animais) como parte constituinte. Cabe lembrar que além do texto, duas partes devem estar em harmonia para a fruição do conto narrativo na literatura: o narrador e o personagem. O narrador

O narrador em si tem um papel de extrema importância no texto literário. O “narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais” (BENJAMIN, 1993, p.197). Percebe-se que mesmo distante, o narrador se faz presente durante qualquer leitura, pois é através da voz do narrador que questionamentos como: Quem viu? Quem estava lá? e Como isso ou aquilo aconteceu?, são esclarecidos.

Santiago (1989, p. 38) afirma que “Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que narro e conheço por ter observado?”. Complementando,

O narrador é a voz que enuncia o texto, “é quem conta a história”. Entidade fictícia, é criado pelo autor para ser o emissor do discurso e, portanto, não pode ser confundido com aquele. O autor pertence à realidade, ao mundo empírico, enquanto o narrador, assim como o narratário e as personagens, é um ser virtual, cuja existência se restringe ao texto. Muitos foram os teóricos que elaboraram uma tipologia do narrador, preocupando-se em classificar quem conta a história e segundo que perspectiva a transmite. (ARMANGE, 2004, p. 36)

Em algumas pesquisas, dois termos se cruzam e de maneira errônea se envolvem na sinonímia, sendo assim o narrador e o autor. O autor não deixa de ter um papel de tamanha importância como o narrador, ele escreve o texto, escolhe os personagens e a posição do narrador em qualquer texto literário. Já o narrador possui o papel de enunciador, é responsável por dar vida ao texto, harmonizar a relação entre os personagens e, sobretudo, tentar se distanciar do leitor para que não haja uma desconcentração na leitura. A personagem

A personagem se torna relativamente livre e independente, pois tudo aquilo que no plano do autor a tornara definida, por assim dizer sentenciada, aquilo que a qualificara de uma vez por todas como imagem acabada da realidade, tudo isso passa agora a funcionar não como forma que conclui a personagem mas como material de sua autoconsciência. (BAKHTIN, 2008, p.73).

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A personagem no conto norteia do início ao fim a trajetória de realidade e ficção presente nesse gênero literário, ela pode estar sozinha ou acompanhada de muitas outras no desenvolvimento de qualquer enredo narrativo. É definida pelo autor e movimentada constantemente pela presença do narrador.

Beth Brait em sua obra apresenta como se constrói uma personagem.

Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e sensíveis os seus movimentos. (1985, p. 52)

O autor (escritor) cria as personagens de suas obras de forma natural e imaginária. Pode

descrever fatos reais de suas vidas utilizando personagens reais, inventar personagens que desejavam conhecer, com as personalidades que mais admiram (forte, ingênua, sofrida, vangloriada, etc), ou seja, as personagens surgem de acordo com o estilo de cada escritor que contribui para a literatura.

O texto narrativo e de outras tipologias está apto a se constituir por diversos tipos de personagens. Para existir a personagem boa, inocente e sem maldade, deve-se existir – na maioria das vezes – a personagem maldosa afim de diferenciar-se da primeira, tendo relação com a mesma ou não. É nesse sentido que se enquadra outra característica do conto: o desfecho pode ser feliz ou trágico, não existindo uma peculiaridade para finalizar a história, ou seja, o conto narrativo só atribui características para o desenvolvimento do texto.

A personagem, portanto, é dependência do autor e do narrador para se “acontecer” no texto literário, para ser criada e descrita no mágico mundo da leitura, no processo de reconhecimento dos sentidos do texto atribuídos pelo autor, distanciando o leitor do narrador e aproximando-o da personagem de ficção. Monteiro Lobato

José Bento Renato Monteiro Lobato foi um importante escritor da Literatura Brasileira na época que antecede o modernismo literário. Natural de Tubaté, em São Paulo, foi alfabetizado pela mãe na infância, tendo logo em seguida um professor particular. Iniciou seus estudos num colégio da cidade e apaixonou-se pelos livros através do avô que tinha uma biblioteca em casa, levando o neto a conhecer as obras que colecionava, casou-se com Maria Pureza Souza em 1908.

Foi promotor público em Areias e suas primeiras experiências de trabalho foram em jornais de influência na época, acarretando numa dedicação gloriosa no meio jornalístico, onde contatava com textos diversos, sentindo-se a vontade nessa área de trabalho.

Foi autor da saga “Sítio do Pica-Pau Amarelo” que ganhou um enorme destaque por encantar o público infanto-juvenil, onde usava das mais diversas peculiaridades do conto literário para atrair a leitura de crianças e adolescentes há muitas décadas. Sobre isso, Zilberman diz que,

O papel exercido por Monteiro Lobato no quadro da literatura infantil nacional tem sido seguidamente reiterado, e com justiça. É com este autor que se rompe (ou melhor, começa a ser rompido) o círculo da dependência aos padrões literários provindos da Europa, principalmente no que diz respeito ao aproveitamento da tradição folclórica. Valorizando a ambientação local predominante na época, ou seja, a pequena propriedade rural, constrói Monteiro Lobato uma realidade ficcional o que acorre pela invenção do Sítio do Pica Pau Amarelo. (ZILBERMAM ,1981, p. 48)

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Todas as obras da saga contavam com o princípio da sabia avó Dona Benta, da cozinheira

Tia Anastácia, dos netos Pedrinho e Narizinho, da boneca de pano falante Emília e de diversos animais falantes e personagens da mitologia folclórica como: mula sem cabeça, saci Pererê, Iara e os demais.

A obra que deu origem as outras foi O Reino das Águas Claras, depois disso, muitas outras como Reinações de Narizinho, Viagem ao Céu, O Saci, Invenções de Emília e etc. Utilizava, para isso a realidade rural, calma e tranquila, com a agitação do mundo imaginário das crianças. Sítio do Pica-Pau Amarelo foi e é até hoje a principal referência em obras de Monteiro Lobato.

Arroyo afirma que a extensa obra de Lobato foi fruto de vontades do autor,

Era uma fase de grande entusiasmo. Monteiro Lobato esquecia-se inclusive das restrições que opusera a alguns clássicos da literatura infantil traduzidos para o Brasil. Resolvera entrar pelo caminho certo: livros para crianças. “ De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro de Robinson Crusoe, doLaemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as nossa crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim, morar, como morei no Robinson e no Os Filhos do Capitão Grant”. E indagava: “ Que é uma criança? Imaginação e filosofia”, nada mais, respondia certo de que as crinaças “são em todos os tempos e em todas as pátrias as mesmas”. (ARROYO, 1968, p. 250)

No pré-modernismo, Lobato nos apresenta uma inovação que provocou um grande

impacto no público leitor: uma obra para adultos: Negrinha, que não deixava de ser um texto narrativo, porém, foi feito totalmente para o público adulto refletir alguns padrões revoltantes na sociedade da época que nos fazem pensar até hoje sobre a triste realidade vivida no país na época da escravidão, para isso, Lobato trouxe a personagem Negrinha, uma criança de 7 anos que desde cedo sofria as consequências da escravidão nas terras onde vivia. Esse texto ganhou um enorme destaque na literatura brasileira e fez com que o autor fosse em diversas vezes criticado por apontar seu papel de contra os avanços da época pré-modernista no Brasil. Negrinha: a criança escrava e a agressão Negrinha era uma criança negra chegando a ser fosca de tanta prevalência da cor de origem africana. Órfã, enquanto não podia cuidar dos afazeres domésticos na casa da senhora, vivia vagando pela casa fugindo dela para não ser mais uma vez agredida. Não teve infância! Vivia numa vida de extremos maus tratos nas mãos da senhora dos escravos daquela fazenda.

As agressões eram tidas por um simples choro de solidão ou machucado, a temida patroa não se importava com a idade e a situação da criança, só a maltratava, poupando-a de qualquer benefício tido na infância, pode-se afirmar que a infância foi a pior etapa da vida daquela menina.

Na leitura do texto pode-se ver que a patroa vivia frustrada por não haver tido filhos, por isso detestava as crianças. Porém, ainda no texto, vê-se que a mesma recebia suas sobrinhas e as tratava com toda cautela e carinho. Negrinha acompanhou a visita das sobrinhas da patroa e como consequência de uma infância poupada não conhecia uma boneca.

As próprias crianças se assustavam com o pouco conhecimento de Negrinha que por ser uma criança era praticamente um ser invisível no meio em que estava. A agressão aos escravos era constante no período que antecede a lei áurea. Pode-se refletir que a criação de Negrinha fora da senzala poderia ser uma tentativa de afastá-la da realidade em que veria posteriormente, considerando que a tortura era ainda maior fora do meio com os escravos adultos.

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O motivo que norteiam as diversas agressões pode ter ligação com o fato do estereotipo da patroa, mas, está ligado também ao preconceito, isso se explica pela comparação entre o tratamento das sobrinhas com o de Negrinha, o laço familiar poderia existir, mas o ódio à imagem negra e escrava prevalecia. Dar-se a entender que o ato de agredir era uma ação prazerosa para a senhora, ao tempo de ser agoniante e sufocante para uma criança que sofria a cada dia que se passava.

Percebe-se que o possível descanso de Negrinha seria a fase adulta, onde esta seria transferida para a senzala e trabalharia como os outros escravos nos cafezais ou na cozinha da patroa, tendo o diferencial da maior idade e da tenência da patroa em agredi-la, ou até mesmo por não haver o prazer de agredir a “criança”, mesmo que ainda fosse negra e escrava. Conclusão

No decorrer desse trabalho foi possível refletir sobre aspectos literários e sociais. Desde a explicação dos conceitos do conto na literatura, a vida e obra de Monteiro Lobato e a análise da obra.

O conto é abrangente e nos faz mergulhar no mundo ficcional que de certa forma dialoga com a realidade de uma época passada, descreve fatos e faz o contato entre as palavras do texto literário com o sendo crítico do leitor literário da maneira em que faz qualquer leitura, numa sintonia entre sentido (autor), narrador e personagem de ficção.

Monteiro Lobato marcou uma época por sua personalidade forte na época em que escreveu seus textos para a literatura brasileira, por criticar constantemente o modernismo, foi criticado e praticamente crucificado por críticos literários e nem por isso se deixou abater, deixando marcas eternas no estudo literário. Cabe lembrar também que o autor foi muitas vezes comparado com Machado de Assis, através do modo que enxergava o mundo e apresentava suas diversas e polêmicas concepções nos textos literários de sua autoria.

A personagem principal do conto Negrinha, definida pela imagem da criança escrava representou toda a discussão pertinente as considerações sobre a personagem no gênero épico literário na narrativa.

O conto Negrinha define brilhantemente as características do conto literário, podendo ser identificado facilmente como tal, faz-nos refletir sobre os avanços dos padrões socais, sejam eles positivos ou negativos, e fazer comparações com a realidade e tempos antigos. Referências ARMANGE, A. H. K. O diálogo entre narrador e narratário em contos machadianos e sua contribuição para a significação. Dissertação (Mestrado em Letras: Literatura Brasileira). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004, 127p. ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1968. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008 BENJAMIN, W. O Narrador. In:_______. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 5. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. GOTLIB, Nadia B. A teoria do conto. 7. ed. São Paulo: Ática, 1995. JORDÃO, R; OLIVEIRA, C. B. Linguagens: estrutura e arte. São Paulo: Moderna, 1999. PELLEGRINI, T; FERREIRA, M. Português: palavra e arte. São Paulo: Atual, 1996. SILVA, L. C. F; LIBANORI, Evely. V. O Gênero Literário Fantástico: Considerações Teóricas e Leituras de Obras Estrangeiras e Brasileiras. In: V EPCT - Encontro de Produção Científica e Tecnológica, 2010, Campo Mourão. V EPCT, 2010. ZILBERMAM, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 1981 Enviado em 30/12/2015 / Avaliado em 10/02/2016

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UM ESTUDO SOBRE AS FORMAS DE TRATAMENTO NA FALA DE REMANESCENTES DE QUILOMBOLAS

Jorge Luis Queiroz Carvalho38 Maria Josiene Araújo de Oliveira39

Samara Santana da Silva40 Rosângela Alves dos Santos Bernardino41

Resumo O presente trabalho tem como objetivo identificar e analisar as formas de tratamento na fala de remanescentes de quilombolas do sexo masculino de três faixas etárias. Nos baseamos nas discussões de Alkmim (2001), Antunes (2007), Bagno (2007), Beline (2010) e Camacho (2001) sobre o quadro teórico-metodológico da Sociolinguística Variacionista e ao banco de dados organizado por Souza, Mendes & Fonseca (2011). Os resultados apontam que falantes mais jovens fazem uso de um menor número de formas de tratamento, enquanto falantes de mais idade apresentam uma maior variedade e fazem uso de formas que denotam maior formalidade em sua comunidade. Palavras-chave: Variação linguística. Língua Falada. Formas de tratamento. Abstract This study aims to identify and analyze forms of address in the speech of male quilombo remnants from three different age groups. We base the study on discussions from Alkmim (2001), Antunes (2007), Bagno (2007), Beline (2010) and Camacho (2001) of the theoretical and methodological framework of Sociolinguistics and we analyze the corpus organized by Souza, Mendes & Fonseca (2011). The results show that younger speakers use a small number of forms of address, while speakers of more age have a greater range and use of forms that denote formality in their community. Keywords: Linguistics variation. Spoken language. Forms of adress. Introdução

Este trabalho tem como objetivo analisar fenômenos de variação linguística diastrática presente na fala de remanescentes quilombolas do município de Portalegre, RN moradores das comunidades Pêga, Arrojado e Engenho Novo. Nossa pesquisa constitui-se de uma análise da variação linguística em que consideramos, principalmente, as variáveis faixa etária e sexo dos informantes. Sendo assim, na análise, faremos comparação entre a fala de remanescentes do sexo masculino visando identificar quais as formas de tratamento mais utilizadas pelos indivíduos de acordo com a sua faixa etária que dispomos em três blocos: indivíduos entre 61 e 84 anos, sujeitos de meia idade 55 e 58, e falantes mais jovens, entre 37 e 49 anos.

Intentamos, com esse trabalho, observar até que ponto a fala dos informantes

representados por essas três faixas etárias apresentam diferenças, levando em conta a hipótese de que a exposição dos falantes mais jovens com pessoas que moram na zona urbana município e a implantação de políticas sociais, como a inauguração de uma escola fundamental, os programas de saúde e o contato com veículos de comunicação pode ter causado interferências na fala desses

38 Mestrando em Linguística pela Universidade Federal do Ceará 39 Graduada em Letras – Língua Inglesa, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte 40 Graduada em Letras – Língua Inglesa, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte 41 Professora do Departamento de Letras Estrangeiras (DLE) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.e do Norte.

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sujeitos, conforme foi assegurado nas observações realizadas por Souza, Mendes & Fonseca (2011), que são os organizadores do banco de dados a que estamos nos propondo investigar neste trabalho.

Para subsidiar o estudo aqui apresentado, realizamos uma discussão teórica a partir das

proposições de autores como Alkmim (2001), Antunes (2007), Bagno (2007), Beline (2010) e Camacho (2001). Posteriormente, recorremos ao banco de dados organizado por Souza, Mendes & Fonseca (2011), onde se encontram os dados que contêm a transcrição da fala dos remanescentes de quilombolas das comunidades citadas. Analisamos os dados de fala de todos os informantes do sexo masculino presentes no corpus a fim de identificarmos e analisarmos as formas de tratamento mais utilizadas. Para tanto realizamos um estudo quantitativo e qualitativo, na medida em que, além de contabilizarmos as formas de tratamento mais recorrentes, descrevermos e comparamos os dados encontrados nos três grupos etários. Reconhecendo a relevância do trabalho de coleta empreendido por Souza, Mendes & Fonseca (2011) acreditamos que este trabalho pode continuar contribuindo com os estudos já realizados nessas comunidades na medida na medida em que possibilita descrever e compreender o fenômeno da variação linguística presente na fala desses informantes.

Para tanto, esse trabalho se estrutura da seguinte forma: considerações iniciais, onde

apresentamos os objetivos do trabalho; síntese teórica, em que apresentamos uma discussão de textos teóricos utilizados como base para a análise; análise dos dados, onde realizamos o estudo comparativo e analítico do corpus; considerações finais, em que se retomam os principais fatos, sendo apresentadas também algumas opiniões embasadas no que foi exposto e possíveis sugestões.

Sociolinguística: lingua, sociedade e variação linguística

Como sabemos, língua, cultura e sociedade são entidades que estão intimamente

relacionadas (ALKMIM, 2007; BELINE, 2010) e é justamente a manifestação de uma língua nesses contextos, sociais e/ou culturais, que vem a ser o objeto de estudo da Sociolinguística (ALKMIM, 2007, p. 31). Entretanto, é preciso acrescentar que, embora adotemos a concepção de Sociolinguística como o estudo da linguagem em uso no contexto social, essa área de estudos é ampla o suficiente para fundamentar pesquisas com diferentes enfoques investigativos.

Camacho (2007) distingue dois tipos de estudos que se ancoram em bases sociolinguísticas

e podem gerar uma segmentação da área em duas vertentes: a Sociolinguística Interacional e a Sociolinguística Variacionista. A Sociolinguística Interacional trata, primordialmente, “das regras que dirigem a seleção que o falante opera em função dos dados contextuais relativamente estáveis que ele contrai com o interlocutor” (CAMACHO, 2007, p. 50), focando, de modo mais direto, os modos de interação social que são mediados pelas línguas.

Na Sociolinguística Variacionista (doravante Sociolinguística), por sua vez, compreendemos

que as línguas atuais são continuações históricas, fruto da variação linguística de línguas antecedentes e que, consequentemente, continuarão se transformando, seja em seus aspectos sintáticos, morfológicos, lexicais e/ou fonéticos e, possivelmente, originaram futuras línguas através do fenômeno da variação. Nessa perspectiva, compreendemos a variação linguística como um fenômeno natural e inerente a todas as línguas.

Bagno (2007), ao se referir aos fenômenos da variação linguística, diz que a língua é uma

atividade social, uma instância indispensável à vida em sociedade e tudo que acontece numa língua em atividade, isto é, uma língua que é utilizada por falantes legítimos, tem uma razão de ser. Ele afirma que:

as mudanças que ocorrem na língua são fruto da ação coletiva de seus falantes, uma ação impulsionada pelas necessidades que esses falantes sentem de se comunicar

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melhor, de dar mais precisão ou expressividade ao que querem dizer, de enriquecer as palavras já existentes com novos sentidos (BAGNO, 2007, p. 168)

Nós nos fundamentando nessa concepção, reitera-se que a variação linguística deve ser

encarada como um fenômeno natural e inerente da língua que contribui para enriquecer a comunicação dos falantes. Destacamos que esse fenômeno pode ser identificado em diferentes níveis. Nos interessa, neste trabalho, citarmos como exemplo de variações linguísticas, as que são conhecidas como diatópicas e diastráticas (CAMACHO, 2008). Desse modo, baseando-nos em Camacho (2008, p. 34), definimos a variação diatópica (ou geográfica) como as diferenças linguísticas que são observáveis com base nas distâncias e divergências geográficas existentes. Temos como exemplo de variações diatópicas as variações de cunho lexical e/ou fonológico.

Segundo Beline (2010), a variação lexical diz respeito às diferentes formas linguísticas de se

referir a uma mesma coisa, ou seja, está no nível da palavra. Para ilustrar um caso de variação lexical, recorremos ao exemplo utilizado pelo referido autor nas expressões; “jerimum”, utilizada em alguns estados do Nordeste, e “abóbora”, usada nos estados do Sul e Sudeste do Brasil. No que se refere à variação fonológica, que é referente a sonoridade, o autor usa o exemplo da pronúncia do –r em final de sílaba, destacando as diferenças entre os paulistas e os cariocas. Nesses casos, temos exemplos de variação diatópica no nível fonológico.

Os exemplos referentes à variação diastrática (ou social), por sua vez, nos remetem aos tipos

de variação que revelam características individuais dos falantes, como por exemplo, aspectos concernentes a identidade cultural, a classe social, a sexo, a faixa etária ou a situação socioeconômica (CAMACHO, 2008, p. 35). Nas mudanças diastráticas, manifestavam-se mais comumente mudanças linguísticas de natureza morfológica e sintática.

Com relação à variação morfológica, temos como exemplo em Beline (2010), a “presença

do –r final” e “ausência do –r final” na palavra “andar”. Têm-se aí um morfema (–r) e ausência dele (ø) para expressar um verbo no infinitivo. É importante ressaltar que esse exemplo de variação morfológica, por sua vez, não se configura como uma variação diatópica, pois o seu uso não se restringe a determinadas regiões, uma vez que falantes do português brasileiro de diversas localidades se expressam das duas formas. Na variação sintática, por sua vez, consideramos os limites da frase e não somente da palavra (BELINE, 2010). Mais especificamente a variação sintática trata da disposição das palavras na frase, como, por exemplo, a forma de expressar a negação em nossa língua: no português brasileiro o advérbio de negação pode ser colocado antes da forma verbal ou colocá-lo antes e mesmo assim repeti-la no final.

Compreendido o fenômeno da variação, é preciso compreender que, através dele,

originam-se diferentes variedades. Alkmin (2008, p. 33) afirma que:

Qualquer língua, falada por qualquer comunidade, exibe sempre variações. Pode-se afirmar mesmo que nenhuma língua se apresenta como uma entidade homogênea. Isso significa dizer que qualquer língua é representada por um conjunto de variedades. (ALKMIM, 2007, p. 33)

A noção de variedade é definida em Camacho (2008), portanto, como um conjunto de

regras utilizadas por uma determinada comunidade de falantes. Nessa perspectiva, podemos entender que, no momento da fala, o sujeito encontra opções de variantes linguísticas, isto é, de possibilidades de se expressar oralmente por meio da língua, mas suas escolhas linguísticas refletem a variedade linguística da comunidade a qual pertence. Desse modo, discutiremos a seguir sobre o conceito de comunidade de fala como forma de entender melhor suas características e seu funcionamento.

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Comunidade de fala

Tendo compreendido o objeto de estudo da Sociolinguística, vemos em Alkmim (2008) que o ponto de partida das investigações sobre a variação linguística deve ser a comunidade de fala, que podemos entendida como um grupo de pessoas que se comunicam através de um conjunto de normas em comum. A autora ainda complementa dizendo que uma comunidade não é categorizada pela existência de pessoas que falam de um único modo, mas por sim por indivíduos que “se relacionam, por meio de redes comunicativas diversas, e que orientam seu comportamento verbal por um mesmo conjunto de regras” (ALKMIM, 2008, p. 31).

Dessa forma, compreendemos que uma comunidade de fala não se refere a um conjunto

de indivíduos que falam de um único modo. Esse conceito diz respeito a um grupo de pessoas que se norteiam por um conjunto de regras comuns sem desconsiderar que cada falante pode adotar características individuais no momento da fala. Beline (2010) chama atenção para o fato de que a variação linguística também alcança o nível do indivíduo, na medida em que os sujeitos podem optar pela utilização de variantes que não são necessariamente compartilhadas na comunidade.

Levando-se em consideração essa ideia, o autor lança uma questão: se cada pessoa pode

fazer uso de variantes, ora apresentando um conjunto de regras, ora apresentando outro, por que não vivemos num caos linguístico? Para solucionar essa dúvida, Beline (2010, p. 128) nos mostra que;

Embora o indivíduo possa utilizar variantes, é no contato lingüístico com outros falantes que sua comunidade que ele vai encontrar os limites para a variação individual. Como o indivíduo vive inserido numa comunidade, deverá haver semelhantes entre a língua que ele fala e a que os outros membros da comunidade falam.

O que nos interessa, portanto, é identificar agrupamentos de falantes que tem

características comuns, ou seja, saber como se constitui uma comunidade de fala, pois até mesmo as variações individuais subjazem a um grupo sociais e, por isso, as variações individuais não iriam se manifestar se não pudessem ser compreendidas pelos parceiros da troca verbal. Para isso, consideramos a definição proposta por Guy (2001) apud Beline (2010) que diz que uma comunidade de fala é formada por falantes que: (a) compartilham traços linguísticos que podem distinguir seu grupo de outros; (b) comunicam-se relativamente mais entre si do que com os outros, e; (c) compartilham normas e atitudes diante do uso da linguagem.

Convém mencionar, ainda assim, que embora uma comunidade de fala comunique-se mais

com seus membros do que com outros, ela não se constitui de indivíduos que vivem confinados em regiões ou classes sociais. Como bem afirma Antunes (2007, p. 91), alguns grupos podem interagir com outros e suas normas podem se interpenetrar, influenciando-se numa relação de reciprocidade, fazendo com que comunidades englobem características linguísticas de outras.

Desse modo, tomando esses pressupostos como base, entendemos que uma comunidade

de falantes diz respeito a um grupo de indivíduos que compartilham de um conjunto de regras, ou seja, de variedades. Essas variedades podem ser motivadas por dentro dessa comunidade, como também podem ser influenciadas por variedades de outros grupos. Nesse caso, apresentamos a seguir a análise dos dados em que investigamos as formas de tratamento mais recorrentes na comunidade de fala dos remanescentes de quilombola da zona rural de Portalegre – RN.

Análise das formas de tratamento na fala de remanescentes de quilombo

Em nossa análise, pudemos identificar uma grande variedade de formas de tratamento utilizados pelos falantes das comunidades estudadas. Buscando compreender quais as formas mais utilizadas pelos falantes de diferentes faixas etárias, dividimos as faixas etárias da seguinte maneira:

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em um primeiro bloco, agrupamos os dados colhidos entre os falantes de idade entre 37 e 49 anos. Posteriormente, investigamos a presença das formas de tratamento de falantes 55 e 58 anos e, por último, entre os falantes de 61 e 84 anos. Por fim, realizamos uma síntese interpretativa e comparativa dos dados encontrados nos três grupos e apresentamos as considerações finais. Falantes entre 37 e 49 anos

Pudemos perceber, no estudo analítico, que as formas de tratamento utilizadas pelos falantes variam de acordo com o grau de intimidade, formalidade ou de acordo com a idade dos indivíduos interlocutores a quem se referem. No primeiro exemplo, referente aos indivíduos entre 37 e 49 anos, percebemos que, numa conversa informal entre eles, o uso de pronomes como “caba”, “home”, “rapais” e “véi” são utilizados com maior frequência, sendo a forma “caba” ou “cabra” a mais utilizada, seguido por “homem”, ou de maneira bem mais comum, “home”, sem a precisa do /m/ no final. No entanto, precisamos destacar que outras formas também aparecem, porém, com menor frequência. São os casos de “moço”, “cumpade véi”, “cumpade”, “bicho” e “cara”.

Buscamos ilustrar, nos exemplos abaixo, os dois tipos de pronomes de tratamento mais

utilizados e a maneira pela qual eles se manifestam:

1b E: Como estamos? 2b H49-01: Tô cum saúde... caba véi... só tô mêi liso mas isso é mermo... Antõi disse que tá mêi duente 3b do juêi..

No exemplo ilustrado acima vemos o uso de “caba véi”, no qual percebemos uma junção

entre duas formas que, por vezes, aparecem de forma isolada. O uso dos dois pronomes, no entanto, parece ser mais utilizado quando o falante está se tratando a alguém que acaba de se encontrar, como forma de cumprimento. O uso isolado da forma “caba”, no entanto, parece referir também a indivíduos que são o tema de uma conversa, como podemos observar no exemplo a seguir:

132b

H49-01: Tẽi dois caba lá que disse... hoje nóis vamo butá o vigia de Pretim pra corrê... eu digo “vixe 133b Maria”... eu escutei... sabe?

Outra forma de tratamento utilizada com frequência é a expressão “home”. Essa, por sua

vez, parece ser utilizada geralmente quando há a intenção de chamar a atenção do interlocutor para alguma situação excepcional, como vemos nos exemplos a seguir:

63b

H49-01: Home... tĩa sido ũa queda de lasca... home... mais ela é quẽi/ ela quẽi tĩa se lascado... eu que 64b ela num tava isperano... eu fui que bati nela... né?... eu caía mas ela tĩa se lascado todĩa ...

569b H39-03: Agora caba que mente munto é esse cara que foro pra Patu...diz que só de Gonçalo eles

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570b robaro cento e quarenta conto ... eu digo... esse home nunca teve duzentos pau no bolso

Levando em consideração as ocorrências percebidas na análise, destacamos nos exemplos

referentes as formas de tratamento mais usadas “caba / caba vei” e “home / homem”. No entanto, é preciso ressaltar que os falantes se manifestam também através de outros pronomes de tratamento. Levando em consideração essas variedades, criamos o quadro abaixo com o objetivo de ilustrar quais são as formas que ocorrem com mais frequência dentro da faixa etária em destaque.

Gráfico 01 – Formas de tratamento utilizadas entre falantes de 37-49 anos.

A seguir, apresentamos os dados concernentes aos falantes da faixa etária entre 55 e 58 anos. Vejamos: Falantes de 55 e 58 anos

Na análise da fala dos informantes de 55 e 58 anos, percebemos que há uma frequência maior do uso do pronome “sĩô”. Esse pronome parece ser usado geralmente para indivíduos mais velhos, com os quais não se tem uma relação próxima e/ou para sujeitos de condição social considerada mais privilegiada. Nos exemplos seguintes podemos constatar algumas dessas situações:

320f H58-08: Não... o guaraná... se o sĩô dissé ... “Dó vamo bebê um guaraná” ... eu digo ... “num dá” ...

41f digo ..“Neidĩa... traga um café aqui po home” ... qué um café meu cumpade... quero sim sĩô

Outra forma identificada foi a expressão “meu cumpade”, como destacada no excerto

anterior. Essa forma, pelo que podemos perceber, inclusive pelo exemplo acima, é utilizada como uma forma de tratamento que denota uma relação de proximidade entre os interlocutores, uma vez que vem acompanhada do possessivo meu.

Além disso, percebemos, na análise dos dados, peculiaridades que diferenciam as formas de

tratamento entre as duas idades listadas até agora. O uso do pronome “caba” é pouco utilizada pelos falantes de 55 e 58 anos, embora seja uma das formas mais utilizadas pelos falantes entre 37 e

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49 anos, revelando assim que uma disparidade no que se refere à predominância das formas de tratamento.

Como vemos no gráfico posterior, percebemos que as formas de tratamento mais

utilizadas (sĩô, véio / vei, meu cumpade, rapais, ocê e seu) diferem em frequência e em variedade das formas de tratamento utilizadas pelos mais jovem.

Gráfico 02 – Formas de tratamento utilizadas entre falantes de 55 e 58 anos.

Fazendo a leitura do gráfico, ainda podemos observar que há evidencias de variação com relação a um mesmo pronome de tratamento como é possível ver em meu fie/fi, meu fio, meu filo e ainda meu fie dosôto. O mesmo fenômeno de variação também aparece nas formas ocê (ocêis no plural) e cê (cêis no plural). A variação continua a ser perceptível nos dados dos falantes de maior idade, como discutiremos a seguir: Falantes de 61 e 84 anos

Temos percebido, neste estudo analítico, que as formas de tratamento utilizadas pelos falantes variam de acordo com a situação que o individuo está inserido. Nos falantes da faixa etária equivalente a 61 e 84 anos identificamos uma incidência maior de formas de tratamento que denotam maior formalidade do que nos demais falantes, como por exemplo, quando ele se refere utilizando pronomes como “sĩô”, “seu”, ou com o uso, embora menos regular, de “vossa incelença”. A maior frequência no uso de ocorrências supostamente mais formais, no entanto, não significa dizer que o falante não faz uso de formas de tratamento que remetem a coloquialidade, como vemos abaixo:

189d

H84-06: Não... tẽi não... eu quiria a véia rapidamente...véi... pro sĩô vê o viuvão cumo é...

Além desses exemplos, destacamos abaixo exemplos de formas de tratamento que

aparecem no repertório linguístico de falantes de outras faixas etárias, embora com menor frequência, que não foram identificados em falantes de outras faixas etárias. Alguns desses exemplos podem ser ilustrados abaixo:

275e H64-07: Você sabe... queu sei que seu Jãozim Goiana fais farĩada de fazê gosto... e

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3d

H84-06: Oi ... meu patrão...meu coroné... como tẽi passado vossa incelença? ... bẽi?... bẽi... né... meu

Independentemente do nível de formalidade, identificamos 9 formas de tratamento na fala

dos indivíduos entre 61 e 84 anos, como dispõe o gráfico 03:

Gráfico 03 – Formas de tratamento utilizadas entre falantes de 61-84 anos.

Vemos assim que, as incidências das formas consideradas mais formais estão mais presentes na fala dos sujeitos entre 61 e 84 anos do que na fala de falantes mais jovens (37-49 e 55-58). Isso, como já mencionamos, não implica dizer que formas mais impessoais não estejam presentes, ou que elas não podem aparecem com grande frequência dependendo da situação comunicativa. Sendo assim, os graus de formalidade e/ou informalidade na conversa dependem do grau de proximidade que o falante sente com relação ao seu interlocutor. Considerações finais

Analisando o contexto de fala desses fragmentos, entendemos que quando o indivíduo sente que deve se referir ao seu interlocutor, seja por ser um indivíduo mais velho ou por ter mais poder aquisitivo e/ou nível de escolarização maior, ele faz uso de formas de tratamento consideradas mais formais em sua comunidade. Os níveis de formalidade, no entanto, são variáveis e, assim como em todas as ocasiões, vai depender do grau de proximidade com o interlocutor. Desse modo, observamos que as formas de tratamento mais utilizadas pelas faixas etárias destacadas diferem consideravelmente.

Com isso, entendemos que nos falantes de idades entre 37 e 49 anos as formas linguísticas

mais utilizadas foram (1) caba, (2) home, (3) rapais e (4) véi. Diferentemente, os falantes de 55 e 58 fazem mais uso dos pronomes de tratamento (1) sĩô, (2) véio/véi, (3) meu cumpade, (4) rapais e (5) ocê. Na faixa etária equivalente a 61 e 84 anos as formas mais utilizadas também diferem das idades anteriores, como (1) véi, (2) sĩô, (3) seu, (4) rapais e (5) cê. No estudo ainda percebemos que formas de tratamento muito utilizadas em algumas faixas etárias, como o uso de “caba” nos falantes entre 37 e 49 anos, não fazem parte do acervo de indivíduos de mais idade, tendo em vista a não ocorrência dessa forma em outras faixas etárias.

O mesmo pode acontecer de maneira inversa, considerando o grande uso dos pronomes

sĩô e véi, tanto nos falantes de 55 e 58 anos, quanto nos falantes entre 61 e 84 que pouco são

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utilizadas pelos falantes mais jovens. Um dos fatores que podem explicar isso, como mencionamos anteriormente, pode ser o acesso dos falantes mais jovens a novas tecnologias e/ou contato com pessoas de comunidades diferentes, onde, através disso, podem ter incorporado novas variantes linguísticas a seu repertório e, assim, manifestarem-se de maneira diferente, embora de igual modo compreensível.

É importante mencionar que nosso trabalho não esgota as possibilidades de estudar esse

fenômeno, sendo assim, para próximos estudos, sugerimos pesquisas que deem continuidade a investigações dessa natureza e, possivelmente, que possam analisar formas utilizados em situações de interação específicas.

Para esse trabalho, assim, retomamos a explicação de Alkmim (2008) que diz que uma

comunidade linguística não se constitui de pessoas que falam de um mesmo modo, mas sim que adotam um mesmo repertório linguístico, aceitando-o como legítimo. Sendo assim, embora tenhamos identificado a manifestação de diversas formas, isso não atrapalhará a comunicação dos falantes dessa comunidade, mas sim poderá enriquecer e modificar as opções de formas de tratamento existentes, abrindo um leque maior de opções e possivelmente agregando novos sentidos aos já existentes.

Referências ALKMIM, T. M. Sociolinguística – Parte I. In: BENTES, A. C.; MUSSALIM, F. (org) Introdução à linguística: domínios e fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 21-47. CAMACHO, R. G. Sociolinguística – Parte II. In: BENTES, A. C.; MUSSALIM, F. (org) Introdução à linguística: domínios e fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 49-75. BELINE, R. A variação Linguística. In: FIORIN, J. L. Introdução à linguística. 6ª. Edição. São Paulo: Contexto, 2010. BAGNO, M. Como uma onda. In: BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 1ª. Edição. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. ANTUNES, I. A norma socialmente prestigiada não é a única norma lingüisticamente válida. In: ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. 3ª. Edição. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. SOUZA, M.; MENDES, W. V.; FONSECA. C. M. V. A fala de remanescentes de quilombolas de Portalegre do Brasil. Mossoró: Edições UERN, 2011. Enviado em 30/12/2015 Avaliado em 10/02/2016

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ESC OU ENTER? CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROINFO E INOVAÇÕES NA PRÁTICA DOCENTE

José Amilsom Rodrigues Vieira42

Resumo As mudanças tecnológicas que ocorreram nas últimas décadas impuseram aos nossos professores o desafio de incorporar as novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) em sua prática pedagógica. Diante disso, o governo federal criou em 1997 o Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo). Esse artigo analisa se as orientações do referido programa repercutiram, de fato, inovações em sala de aula. Palavras-chave: Inovação. ProInfo. TIC.

Abstract The technological changes which have occurred in recent decades have imposed to our teachers the challenge of incorporating the new information and communication technologies (ICT) in their teaching. Thus, the federal government created in 1997 the Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo). This article analyses if the guidelines of the said program resonated, in fact, innovations in classroom. Keywords: Innovation. ProInfo. ICT.

Introdução Os corredores de nossas escolas têm-se transformado em verdadeiros túneis do tempo: no

pátio, crianças e adolescentes se comportam como se pertencessem ao século XXI. Quando retornam às salas de aula, se percebem como se estivessem no século XIX. É para isso que nos chama à atenção Bellón (2013). O autor afirma, nesse sentido, que “as escolas atuais preparam o aluno para um mundo que já não existe” (BELLÓN, 2013, p. 33). Partilhando desse entendimento, Pujol & Torre (2013) acrescentam que os sistemas educacionais mantêm-se mais alinhados à sociedade da época da revolução industrial do que à da época atual, a sociedade da informação.

Na sociedade da informação, o imediatismo na divulgação dos fatos leva ao entendimento

de que se aprende mais fora da escola que dentro dela (NAVARRA, 2012), haja vista, por exemplo, que o acesso ao conhecimento através da Internet supera em grande escala aquele que os alunos aprendem em sala de aula, complementam Pujol & Torre (2013). Significa dizer que não há mais espaço para o professor enquanto “dono exclusivo" do conhecimento, embora ainda lhe seja assegurado lugar na construção de saberes no processo ensino-aprendizagem (NAVARRA, 2012), o que se mostra condicionado à sua capacidade de incorporar as novas tecnologias da informação e comunicação (TIC) à sua prática pedagógica.

Em seus esforços de posicionamento face ao desafio que as TIC representam às práticas

escolares, o governo federal criou, por meio da Portaria nº 522/MEC, de 9 de abril de 1997, o Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo), objetivando universalizar o uso de recursos tecnológicos de ponta no sistema público de ensino. O presente artigo analisa se as diretrizes do referido programa repercutiram, de fato, inovações em sala de aula.

42. Mestre em Letras: Ensino de Língua e Literatura (UFT). [email protected]

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Situando inovação Presenciamos a passagem da sociedade industrial à sociedade da informação (SUANNO,

2011). Mostra-se vital compreender os novos processos de aquisição e construção do conhecimento, o que nos leva a considerar a urgência de introduzir as TIC no processo de ensino-aprendizagem. O que se tem estabelecido, entretanto, é um grande distanciamento entre o mundo das TIC e o mundo da educação, conforme nos alerta Pretto (1999). Em meio a uma coisa e outra, o professor, que, diante de uma realidade em constante mutação, deve criar estratégias que possam inovar a sua prática.

O termo inovação pode ser compreendido sob diversas perspectivas, sendo cada uma delas

revestida de sentido e validez (TORRE, 2012). O propósito deste trabalho nos permite assumir o enfoque sociocultural, segundo o qual a ação inovadora é concebida a partir da interação e compromisso mútuo entre os agentes envolvidos em processos de mudança. Nessa perspectiva, inovação constitui-se, essencialmente, “o processo de gestão de mudanças específicas (em ideias, materiais ou práticas do currículo) até sua consolidação, com vistas ao crescimento pessoal e institucional” (TORRE, 2012, p. 18 - parênteses no original). Em decorrência, acrescenta o autor, a inovação educativa apresenta-se como um processo dinâmico e aberto, que objetiva tanto o crescimento pessoal e institucional quanto a melhoria social.

O ensino inovador, constitutivo da escola do século XXI, é, sob esse prisma, “o ensino que

vai além das paredes da sala de aula” (PUJOL & TORRE, 2013, p. 22), que, segundo esclarecem os autores, compreende que o progresso das ciências, a difusão das tecnologias e a formação da sociedade da informação trouxeram impactos significativos ao processo ensino-aprendizagem. De forma complementar às palavras de Pujol & Torre (2013), Pretto (1999) afirma que tais impactos demandam a implantação de políticas públicas43 educacionais coerentes com as transformações por que passa a sociedade como um todo, e não simples inserção da prática docente em projetos de informatização do sistema de ensino. Informatizar para inovar

O progresso da informática e das comunicações promoveu o advento de uma nova gestão

social do conhecimento, desencadeada pelo crescimento de novas técnicas de produção, armazenamento e processamento de informação. As novas tecnologias, nesse sentido, vêm transformando a vida humana, ao possibilitar novas formas de pensar, trabalhar, viver e conviver. Tem-se um cenário em que se torna imperativo que o indivíduo saiba operar com novas tecnologias da informação, com vistas a resolver problemas, tomar iniciativa e se comunicar. Partindo desse entendimento é que o Ministério da Educação – MEC – justificou a criação do Programa Nacional de Informática na Educação – ProInfo.

Em sua apresentação, o ProInfo traz a assertiva de que a crescente e irreversível presença

do computador no cotidiano tornou indispensável que o governo informatizasse a Escola Pública. Sob esse intento, as ações previstas no documento estariam inseridas em um contexto político-pedagógico mais amplo, que compreende, entre outras: livro didático, parâmetros curriculares nacionais, TV-Escola, educação a distância, valorização do magistério, descentralização de recursos para escolas e avaliação da qualidade educacional. Dessa forma, ao propor o ProInfo, o MEC alberga intenções de “iniciar o processo de universalização do uso de tecnologia de ponta no sistema público de ensino” (BRASIL, 1997, não paginado).

43. O conceito de políticas públicas é aqui assumido sob a perspectiva de Teixeira (2002, p. 2), que a compreende como “diretrizes, princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado".

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A previsibilidade de otimização dos vultosos recursos públicos demandados pela execução do ProInfo exige, em primeiro lugar, ênfase à capacitação de recursos humanos, que, precedendo a instalação de equipamentos, responde por 46% do custo total do programa. Em segundo, que a infraestrutura física e de suporte técnico assegure o uso educacional de tais equipamentos. Em terceiro, que o MEC proponha a implementação descentralizada do programa, tornando-o flexível e contextualizado, em respeito à autonomia pedagógico-administrativa dos sistemas estaduais de ensino, (BRASIL, 1997).

Reconhecendo o uso do computador “como prótese da inteligência e ferramenta de

investigação, comunicação, construção, representação, verificação, análise, divulgação e produção do conhecimento” (BRASIL, 1997, p. 02), e que o sistema educacional define-se como “o lócus ideal” para deflagrar esse processo, tem-se no documento que

o MEC, no papel político-estratégico de coordenar a Política Nacional de Educação, tem criado ou reformulado mecanismos de apoio ao sistema público de educação, para o qual traçou, dentre outras, as seguintes diretrizes: fortalecimento da ação pedagógica do professor na sala de aula e da gestão da escola, maior envolvimento da sociedade na busca de soluções educacionais e modernização com inovações tecnológicas introduzidas no processo ensino-aprendizagem (BRASIL, 1997, p. 02).

Considerando-se inserido no conjunto de ações desenvolvidas no âmbito de tais diretrizes,

o programa elege como objetivos:

1. Melhorar a qualidade do processo de ensino-aprendizagem [...]; 2. Possibilitar a criação de uma nova ecologia cognitiva nos ambientes escolares mediante incorporação adequada das novas tecnologias da informação pelas escolas [...]; 3. Propiciar uma educação voltada para o desenvolvimento científico e tecnológico [...]; 4. Educar para uma cidadania global numa sociedade tecnologicamente desenvolvida [...] (BRASIL, 1997, p. 03).

Os objetivos que se hospedam nas diretrizes do ProInfo, ainda na década de 1990,

"demonstram a consciência de que o país não pode ficar ausente de uma política que integre as Tecnologias de Informação e Comunicação à Educação" (SILVA, 2011). Hoje, acrescenta a autora, por força de políticas públicas nesse setor, a informática chegou à maioria das escolas. A questão não é mais se o digital se materializou no ambiente escolar, mas sim de que forma a escola recepcionou o digital nas práticas de ensino e de aprendizagem. Esc

Conforme Demo (2010, p. 861), “inovar a educação é promessa eterna”, sendo o professor

“o agente principal dessa mudança”. Essa promessa nasce e adquire grande fôlego no âmbito do discurso acadêmico, mas precisamente no curso de formação de professores, no qual, em tese, criam-se encaminhamentos às demandas e necessidades das salas de aulas. Em tese. Ali se criam e recriam-se discursos que, em sua maioria, subjazem a inocuidade. Fazem parte dessa maioria as discussões que se têm lançado sobre os impactos das novas tecnologias em nossas vidas em geral e, em particular, no processo ensino-aprendizagem.

A questão é que, segundo denuncia Freitas (2010), o discurso inovador não tem adquirido

repercussão suficiente para instrumentalizar o futuro professor para que utilize, em sua prática pedagógica, os recursos do computador-internet. Nesse sentido, o autor assevera que, nos cursos de formação inicial de professores, inexistem disciplinas que focalizam as novas tecnologias enquanto ferramentas para e no processo ensino-aprendizagem. Ou seja,

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estuda-se sobre a informática na educação, mas não se forma o futuro professor, trabalhando seu letramento digital ou envolvendo-o em atividades de efetivo uso do computador-internet como instrumentos de aprendizagem (FREITAS, 2010, p. 345).

É exatamente a partir do uso do computador-internet que esse profissional encontra-se

obrigado a assumir a função de agente inovador das práticas escolares, de uma forma ou de outra. Há que se considerar, todavia, dois aspectos a esse respeito. Em primeiro lugar, falta-lhe entrosamento com as TIC, pressuposto essencial à inserção das ferramentas digitais na prática pedagógica (SILVA & REIS, 2012); em segundo, ainda que dispusesse da familiaridade necessária, mesmo assim estaria deserto de criatividade para inovar em seu ofício, pois, na maioria das vezes, a tecnologia digital serve para sustentar a velha aula, como nos reporta Demo (2010).

Silva (2011) chama à atenção para o fato de que o ProInfo traz albergada entre suas metas

prioritárias a formação continuada de professores. A esse respeito, a autora põe em destaque que estudos têm evidenciado que a falta de continuidade, em adição à pequena carga horária da maioria dos cursos de formação em serviço, concorreu para que estes caíssem em descrédito no ambiente escolar. Tem-se, por outro lado, o teor tecnicista de tais cursos, nos quais não se apresenta qualquer software pedagógico, tampouco se associa o uso do computador aos conteúdos curriculares.

Insta ressaltar que o MEC, ao pontuar as ações demandadas para a execução dos objetivos

e estratégias do ProInfo, afirma que o sucesso do programa “depende fundamentalmente da capacitação dos recursos humanos envolvidos com sua operacionalização” (BRASIL, 1997, p. 06). Entre os objetivos que alicerçam a capacitação de recursos humanos, destacamos aquele que consiste em

preparar o professor para saber usar as novas tecnologias de forma autônoma e independente, possibilitando a incorporação das novas tecnologias à experiência de cada um, visando a transformação de sua prática pedagógica (BRASIL, 1997, p. 08).

Consoante propõe o documento, capacitar não significa apenas instrumentalizar o

professor quanto a exigências particulares de seu ofício, demandas pontuais das novas tecnologias, mas redimensionar o seu papel em face das necessidades formativas do cidadão do século XXI.

O que a realidade denuncia, entretanto, é que esse profissional, que, a priori, deveria

encontrar-se capacitado a inovar a sua prática a partir do uso dos novos recursos tecnológicos, não dispõe de saberes necessários ao seu manuseio. Em pesquisa desenvolvida por Silva & Reis (2012) constatou-se a angústia de professores inseridos em curso de formação continuada quando diante de atividades que demandavam a utilização de aportes tecnológicos. Registre-se que as autoras tiveram como sujeitos da pesquisa docentes da rede pública do Estado do Tocantins, inseridos em curso de Letras da Universidade Federal do Tocantins – UFT, no âmbito do Programa PARFOR - Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica; suas análises incidiram sobre implicações do uso do chat, via plataforma moodle, com finalidades pedagógicas.

O PARFOR, constituindo-se programa de alcance nacional, ao incrementar o uso das

tecnologias digitais em cursos de formação continuada de professores, acaba por desconsiderar especificidades regionais. É isso que afirmam Silva & Reis (2012, p. 9), ao constatarem que o acesso à Internet se configura como “uma realidade ainda distante para muitos professores”. Dito de outro modo, programas oficiais que demandam o uso das novas tecnologias em ambiente educacional são colocados em curso como se os objetivos do ProInfo já estivem consubstanciados.

Ainda que o professor, não raras vezes, seja apontado como o agente de retrocessos nas

práticas escolares, o responsável por cristalizar práticas combatidas com veemência pelos estudos especializados, ele quer, sim, inovar, esclarecem Duarte, Vieira e Pinho (2014). A questão é que as políticas públicas para a educação pouco ou em nada têm contribuído nesse sentido. A esse respeito

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Marcuschi (2001) afirma ser inegável a presença do computador até mesmo nas escolas situadas no interior do nosso país, mas adverte:

Para ser mais justo, deveria dizer que o que se deu até hoje foi a entrada do computador na escola (e, na maioria delas, apenas um que vem sendo usado pela administração), mas não seu uso com objetivos educacionais. Isso até por razões práticas, pois não são suficientes para servir sequer uma turma. Portanto, o que entrou na escola foi uma ideologia e não um instrumento (MARCUSCHI, 2001, p. 81, destaques do autor).

O autor acrescenta que o uso do computador em sala de aula tem sido conduzido de forma

ingênua e despreparada, haja vista a ausência de reflexões críticas nesse sentido. Do lado de fora da escola, enquanto a inovação docente via ferramentas digitais ainda

subjaz ao discurso oficial, esclarece Xavier (2005), crianças e jovens desenvolvem, pelo uso constante da rede mundial de computadores, uma nova forma de aprendizagem, “pautada na independência, na autonomia, nas necessidades e nos interesses imediatos de cada um dos aprendizes” (XAVIER, 2005, p. 140). Com essa forma de aprendizagem, que se caracteriza por ser dinâmica, participativa e descentralizada da figura do professor, nossos alunos estariam desafiando os sistemas educacionais tradicionais de ensino, pontua o autor.

O MEC, ao propor o ProInfo, antecipava-se, de certa forma, ao jeito de aprender a que se

refere Xavier (2005). Entretanto, quase três décadas depois, afirma Silva (2011), as metas originais do ProInfo estão longe de serem atingidas, se considerado o que têm apontado os índices referentes à qualidade de educação em nosso país. No que tange à utilização pedagógica dos computadores no cotidiano escolar, a autora observa que as pesquisas têm evidenciado que o uso dos laboratórios de informáticas manifesta-se insignificante face ao número insuficiente de máquinas, principalmente se levado em consideração a quantidade de alunos matriculados por turma. De igual modo, a literatura especializada tem desvelado a falta de conservação e manutenção dos equipamentos e dos softwares.

A implantação do ProInfo, em síntese, pode ser definida como fragmentada e descontínua,

deserta de um projeto político-pedagógico comprometido com as reais necessidades da população brasileira. Em movimento contrário aos seus objetivos mais legítimos, as políticas públicas para a inserção de tecnologias no cotidiano escolar têm servido, constantemente, a interesses político-eleitoreiros, quando não rebatizados a cada novo governo, para que se justifiquem projetos faraônicos de compra de computadores, conclui a autora.

Na impossibilidade de inovar a prática, inova-se o discurso, afirmam Duarte, Vieira e Pinho

(2014). Em 2007, por meio do Decreto Nº 6.300, institui-se o Programa Nacional de Tecnologia Educacional, o atual ProInfo, cujos objetivos, conforme observado por Silva (2011), pouco diferem daqueles do Programa Nacional de Informática na Educação, o ProInfo da década de 1990:

I - promover o uso pedagógico das tecnologias de informação e comunicação nas escolas de educação básica das redes públicas de ensino urbanas e rurais; II - fomentar a melhoria do processo de ensino e aprendizagem com o uso das tecnologias de informação e comunicação; III - promover a capacitação dos agentes educacionais envolvidos nas ações do Programa; IV - contribuir com a inclusão digital por meio da ampliação do acesso a computadores, da conexão à rede mundial de computadores e de outras tecnologias digitais, beneficiando a comunidade escolar e a população próxima às escolas; V - contribuir para a preparação dos jovens e adultos para o mercado de trabalho por meio do uso das tecnologias de informação e comunicação; e VI - fomentar a produção nacional de conteúdos digitais educacionais (BRASIL, 2007, não paginado).

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Constatando essa proximidade de metas de ambas as versões do programa, Silva (2011)

põe em questão se tal reorganização de nomenclatura pode, de fato e de direito, desencadear inovações no processo ensino-aprendizagem brasileiro. O que se tem até o momento, em termos de ações concretas, observa a autora, constitui-se “um quadro de políticas públicas descontínuas, de programas faraônicos e de resultados catastróficos” (SILVA, 2011, p. 554). Dito com outras palavras, tem-se, de um lado, o discurso oficial renovado, que supõe apontar para o ensino dos novos tempos. De outro, o professor, recluso a velhas práticas, inquieto e angustiado com as novas formas de aprender e ensinar, impostas, principalmente, pelas TIC. Considerações finais

É inegável que as instâncias competentes criaram políticas públicas voltadas à inserção da

escola na era da revolução tecnológica. É inegável, também, que os objetivos institucionais não saíram do terreno das intenções. O ProInfo tem aí criado raízes. Passadas quase três décadas de sua criação, o programa, agora em nova embalagem, não repercutiu inovações nas práticas escolares. Nossas escolas parecem pertencer a uma realidade paralela, para a qual crianças e adolescentes são forçados a se teleportarem em busca de conhecimentos desconectados com a vida e que, por isso, em pouco ou em nada lhes interessam. Por sua vez, nossos professores olham com admiração e medo para a realidade que adentra as portas de nossas escolas, perpassada, em particular, pelas tecnologias digitais.

A geração da conectividade chegou. Nossas crianças e jovens percorrem o mundo num

tocar de dedos. Na e para a constituição de saberes, ignoram a importância do sistema de educação formal. Enquanto isso, a escola parece datilografar uma reação, com uma máquina que parece ainda não conhecer a eletricidade. Referências BELLÓN, F. M. A escola galática, uma escola criativa transformadora: uma nova consciência. In: PUJOL, M. A.; SOUSA e SILVA, V. L. De.; TORRE, S. de la. (Coord.) Inovando na sala de aula: instituições transformadoras. Blumenau: Nova Letra, 2013. p. 32-51. BRASIL. Decreto nº. 6.300, de 12 de dezembro de 2007. Dispõe sobre o Programa Nacional de Tecnologia Educacional - ProInfo. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 dez. 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6300.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. ______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação a Distância. Programa Nacional de Informática na Educação: ProInfo: diretrizes. Brasília, DF, 1997. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001166.pdf>. Acesso em: 04 jan. 2014. DEMO, P. Rupturas urgentes em educação. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 18, n. 69, p. 861-872, out./dez. 2010. DUARTE, J. G.; VIEIRA, J. A. R; PINHO, M. J. de. O discurso da inovação no referencial curricular de língua portuguesa para o ensino fundamental – 1º ao 9º ano: uma análise semiótica. Revista Querubim, Niterói, ano 10, v.1, n. 23, p. 95-101, 2014. FREITAS, M. T. Letramento digital e formação de professores. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 26, n. 03, p. 335-352, dez. 2010. MARCUSCHI, L. A. O hipertexto como um novo espaço de escrita em sala de aula. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 4, n. 1, p. 79-111, jan. 2001. NAVARRA, J. M. I. Ecoformação e Transdisciplinaridade: fundamentos para a elaboração de um currículo do século XXI em uma didática humanista. In: RAJADELL, N.; SUANNO, M. (Org.). Didática e formação de professores: perspectivas e inovações. Goiânia: CEPED, 2012. p. 79-102.

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INICIAÇÃO À DOCÊNCIA E PRÁTICAS INOVADORAS: (RE) PENSANDO A PRÁTICA DOCENTE NA FORMAÇÃO INICIAL

Juliane Gomes de Sousa44 Maria José de Pinho45

Resumo O presente artigo tem por objetivo refletir acerca do exercício de práticas pedagógicas com indícios inovadores no âmbito da formação inicial docente, cuja intenção constitui em perceber como essas práticas foram materializadas a partir da experiência vivenciada no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID. O percurso metodológico que se realiza é uma introspecção, á luz de referenciais teóricos, como base para análise da experiência concretizada. Assim, são apresentadas reflexões que indicam a existência de indícios de práticas inovadoras nas atividades realizadas neste contato inicial com a docência, delineando um ambiente propício à concretização de práticas educativas criativas. Palavras-chave: Prática docente. Práticas inovadoras. Formação Inicial. Abstract This article aims to reflect on the exercise of pedagogical practices with innovative evidence as part of initial teacher training, the intention is to understand how these practices have been materialized from the experience lived in the Institutional Program Initiation Scholarship to Teaching (PIBID). the methodological course that takes place is an insight, in the light of theoretical frameworks as a basis for analysis of the achieved experience. So reflections are presented that indicate the existence of evidence of innovative practices in the activities carried out in this initial contact with teaching by delivering a environment conducive to realization of creative educational practices. Keywords: Teaching practice. Innovative practices. Initial formation. Introdução

Refletir sobre a prática de ensino, conduz a um caminho investigativo que pauta o trabalho docente em uma perspectiva de análise constante. Nesse sentido, requer uma posição atenta que estimule um olhar crítico e aprofundado sobre as atitudes, intenções e objetivos que guiam a ação pedagógica, pois todos esses aspectos originam-se de um modo de perceber e conduzir a ação cotidiana. Sendo que tal pressuposto baseia-se na ideia de que devemos, “compreender que ensinar e aprender estão alicerçados numa concepção de mundo e de ciência [...]” (CUNHA, 2005, p. 17). Portanto, nossas propostas e práticas são reflexos de um pensamento organizado e sistematizado, que coadunam com a nossa percepção de realidade.

Desse modo, a proposta do referido artigo consiste em refletir acerca de práticas pedagógicas com indícios inovadores, que foram desenvolvidas no âmbito da formação inicial docente, através do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID).

A realização dessa reflexão é importante, haja vista que, “fica claro que o modo como os

professores realizam seu trabalho, selecionam o conteúdo das matérias, ou escolhem técnicas de ensino e avaliação tem a ver com pressupostos teórico-metodológicos, explícita ou implicitamente.” (LIBÂNEO, 2001, p. 03). Portanto, analisar o contato com práticas inovadoras ainda no período

44 Graduada em Pedagogia. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Tocantins – PPGE – UFT. E-mail: [email protected] 45 Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Tocantins. PPGE/ UFT. E-mail: [email protected]

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de formação inicial docente, pode contribuir como estímulo para uma ação profissional futura, baseada na busca constante de alternativas metodológicas, que venham romper com as práticas tradicionais no processo de ensino-aprendizagem.

É nessa intenção, de pontuar alguns aspectos sobre a incipiente e curta experiência de

prática docente que se efetivou no contexto do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), é que são encadeadas as reflexões vindouras, destacando as propostas de práticas inovadoras concretizadas no trabalho desenvolvido como bolsista. E para tanto, foram utilizados referenciais teóricos que fundamentam as reflexões levantadas, e a análise da própria experiência, como base para o (re) pensar das ações.

Assim sendo, o presente texto se organiza em quatro momentos, que se encontram

interligados entre si, comportando a seguinte estrutura: inicialmente um relato que perpassa os aspectos da experiência como bolsista, assinalando as práticas no cotidiano de uma escola de educação básica; posteriormente são levantadas reflexões sobre a proposta de práticas pedagógicas inovadoras no contexto da ação docente; em continuidade são realizados alguns apontamentos acerca da criatividade no processo educacional; e como síntese da discussão proposta, são feitas algumas considerações, que não são finais, mas inconclusas, constituindo apenas um olhar inicial e carregado de outras possibilidades de análise. O início de uma trajetória

O primeiro contato com o espaço de sala de aula efetivou-se em uma escola de educação

básica pública, na qual fui inserida para a realização de um trabalho coletivo, fundamentado em objetivos e princípios do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Este programa, desenvolvido na Universidade Federal do Tocantins (UFT), abrangendo os vários câmpus da instituição, atua na área de formação docente, o qual permite aos acadêmicos envolvidos a oportunidade de vivenciar experiências na prática do magistério, sendo um projeto do Ministério da Educação fomentado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Dessa forma, seguindo os objetivos pontuados pelo subprojeto do programa, as ações

eram idealizadas e concretizadas em grupo, todavia as atitudes individuais eram acionadas rotineiramente, como necessárias para a consolidação de um trabalho valorativo das diversas posições.

A partir desse projeto ocorreu o primeiro contato com a prática do magistério, efetivando-se no ensino fundamental em uma escola de educação básica do município de Tocantinópolis, revelando-se como fortuito para o desenvolvimento de experiências formativas que incitaram a reflexão como base para a formação profissional, elemento este que se revela importante visto que,

[...] é necessário pensar a formação docente que considere autonomia intelectual, cujas atitudes visem transformar a sociedade, sem esquecer políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento educacional inovador [...] (ROLIM et al., 2015, p. 179).

Foi neste espaço educativo, que pude vivenciar a proposta de formular um trabalho, cuja

configuração perpassasse por um viés de práticas pedagógicas inovadoras. Essa experiência teve o período de um ano, e se constituiu como fonte potencial do pensar

a atividade docente, pois em frente a descobertas, curiosidades e desafios vivenciados, ainda na formação inicial (graduação), esta se configurou como campo fértil de pensar o ato de ensinar, como uma ação que não se desvincula da necessidade do agir pautado pela criticidade. Essa constatação baseia-se na proposta de que,

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A formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as dinâmicas de auto-formação participada. (NÓVOA, 1992, p. 25)

Deste modo, o olhar atento para minha ação, convertia-se em requisito fundante do fazer

docente no âmbito da escola, esse fator sendo importante no meu processo de formação, pois desde a graduação já pude vivenciar diversos elementos ligados à ação pedagógica.

Essa experiência confluiu na possibilidade de adentrar efetivamente em contato com

aspectos e desafios que permeiam o trabalho docente, desdobrando-se como marco relevante para a configuração de minha formação profissional.

Ação pedagógica e inovação: Possibilidades no fazer docente

A inovação conduz ao repensar de atitudes, ações e comportamentos, como forma de romper com as estruturas já arraigadas e responsáveis pela a configuração de um modelo unificador e centralizador do pensamento. Assim, as inovações são vistas,

[...] como possibilitadora de novas práticas educativas [...] para contrapor a ideia de que ensinar significa ministrar aulas que se pautam em rotinas mecanicamente adotadas preconizadas na concepção conservadora do ensino, na lógica da organização do conteúdo em partes e pré-requisitos, no binômio transmissão e assimilação. ( PINTO, 2011, p. 86)

Partindo da proposição da inovação no contexto educativo, esta deve inclinar-se para a

realização de práticas que objetivam a superação de ações segmentadas que se sustentam, sobretudo, na organização tradicional de conceber o ensino, e encaminhar para a inserção de propostas que ressignifiquem em novas pautas as relações de ensinar e aprender.

Dessa forma, inovar desencadeia a perspectiva de buscar formas de conceber a construção

do conhecimento a partir da relação entre os diferentes saberes, o que corrobora com a valorização do contexto e dos conhecimentos multireferencias carregados pelos educandos para o espaço escolar, pois estes devem ser vistos como,

[...] indivíduo que aprende, representa e utiliza o conhecimento de modo diferente, que conhece o mundo de uma maneira específica dependendo do perfil de inteligências que possui, do contexto e da cultura em que foi gerado. Um aprendiz que é produto e síntese de experiências pessoais interiores e exteriores com a comunidade externa, um sujeito que é histórico e ao mesmo tempo sujeito da história, construtor de sua história (MORAES, 1997, p. 139)

Partindo dessa proposição, inovar na prática pedagógica respalda-se na superação de

modelos já assentados, modificando a relação verticalizada para uma proposição dialógica no processo de aprendizagem, em que este deve ser visto como construção coletiva, referenciado e influenciado pelas trocas recíprocas no meio. Destarte, o movimento de configurar uma prática pedagógica, que seja capaz de criar novas formas de constituir o ensinar e aprender introduz a ideia de que, “a docência inovadora pode atuar na contramão do pensamento unificador [...]” (PINTO, 2011, p. 87), uma vez que parte da noção de que o conhecimento se constrói a partir do caráter multidimensional da realidade.

A inovação não se restringe ao âmbito de práticas centralizadas e pontuais, contudo, o desenvolvimento de ações pedagógicas que busquem romper com o conservadorismo, presente e operante no modo de ensinar tão típico nas instituições de ensino, implica na possibilidade de indícios de ruptura no contexto que se desencadeiam. Portanto, a realização de práticas que visam ser inovadoras deve pautar-se pela a inserção de metodologias que ultrapassem as barreiras da

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concepção de um único conhecimento, comprometendo-se com a relação e valorização dos diferentes saberes. Nessa proposta,

As inovações [...] se materializam pelo reconhecimento de formas alternativas de saberes e experiências, nas quais imbricam objetividade e subjetividade, senso comum e ciência, teoria e prática, cultura e natureza, anulando dicotomias e procurando gerar novos conhecimentos mediante novas práticas (CUNHA, p. 18)

Nesse sentido, inovar requer uma posição de inquietação, de não comodismo, de busca

atenta pela ruptura de modelos que fragmentam e docilizam o pensar e agir docente. Assim, “incentivar o processo de inovações é agir contra um modelo político que impõe, não raras vezes, a homogeneização como paradigma” (CUNHA, 2006, p. 18). Essa perspectiva de rompimento insere a proposta de inserção de novas formas de vivenciar o processo de ensino-aprendizagem, pautando-se na prerrogativa de que inovar requer uma base de transgressão das estruturas dadas, encaminhando para além de simples reorganização de práticas e atitudes, concebendo e viabilizando iniciativas que busquem a emancipação dos sujeitos envolvidos.

Partindo da ideia de “[...] que a inovação existe em determinado lugar, tempo e

circunstância, como produto de uma ação humana sobre um ambiente ou meio social” (BROILO, et al. 2006, p. 116) é que serão desenvolvidas as reflexões em torno das práticas pedagógicas realizadas no âmbito do PIBID, ponderando que estas não são estáticas e que foram concretizadas dentro de um determinado contexto de atuação. Propostas inovadoras no contexto da formação inicial

Em acordo com um dos objetivos do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência que consiste em “[...] oportunidades de criação e participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar [...]” (BRASIL apud ROLIM et. al. 2015, p. 179) foi possível uma aproximação com um conjunto de ações que buscavam sempre ser pontuadas pela ação crítico-reflexivo sobre elas.

Destarte, com a proposição de desenvolver um ideário de ensino como fator que

propulsiona mudanças, o trabalho que se buscava desempenhar, pautava-se pela a visualização da importância em proporcionar conexões diretas entre o ensinado em sala de aula com o contexto real dos alunos, levando estes a perceberem-se no espaço escolar. Nesse viés, o trabalho realizado tinha a proposição de uma aprendizagem significativa do educando, concretizada por meio do estabelecimento da aproximação entre conteúdos com o vivido no cotidiano pelo grupo atendido. Essa postura,

Entende a escola como mediação entre o individual e o social, exercendo aí a articulação entre transmissão dos conteúdos e a assimilação ativa por parte de um aluno concreto (inserido num contexto de relações sociais); dessa articulação resulta o saber criticamente re-elaborado” (LIBÂNEO, 2001, p. 21)

Assim, por entender a importância dessa articulação, conteúdo-realidade social, o trabalho

enquanto bolsista sempre encaminhava para a possibilidade da construção do saber por uma ótica crítica, partindo da ideia de que a significação do conhecimento, por meio da materialidade produzida pela contextualização do que é ensinado no espaço escolar, fomenta e pode potencializar no aluno a participação ativa em seu contexto social.

Seguindo este posicionamento, eram desenvolvidas as metodologias que buscavam romper

com as práticas rotineiras das salas de aulas, entre elas, a realização de atividades coletivas, como rodas de leituras compartilhadas, círculos de conversas, realização de jogos didáticos, ações que incitavam o despertar da autonomia do aluno colocando-o frente a situações de decisão e escolha, desenvolvimento de projetos temáticos que ultrapassavam os limites de sala de aula, levando os

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educandos a outros contextos, assim como a proposição de projetos que discutiam questões relativas ao contexto da própria realidade dos alunos. Essa proposta encaminha:

Na direção da construção de uma outra cultura [...] possível inferir que o conceito de conhecimento passa a ser compreendido sob outras base, que se diferenciam daquelas que têm uma formulação prescritiva e fragmentada da ciência moderna. Na medida em que os estudantes partem em busca de caminhos para se relacionarem com os fatos do cotidiano, o saber é ressignifcado dando sentido ao conteúdo estudado. (FERNANDES et. al, 2006, p. 104)

A ideia desenvolvida era de deslocar o eixo de centralidade do professor, colocando-o

como agente que cria situações para que o conhecimento possa ser construindo. Essas atividades tinham em sua estrutura a lógica de que o aluno é um ser ativo, e que sua posição de aprendiz o configura como agente na produção do seu conhecimento. De tal modo, até alguns materiais utilizados nas propostas didáticas, contavam com a decisão de escolha e a disposição do grupo atendido. A respeito dessas ações, Fernandes et. al. (2006, p. 106) pontua:

Práticas pedagógicas que permitem a discussão coletiva dos temas, a escolha das parcerias para a formação dos grupos [...] o acesso aos materiais que o professor disponibiliza e o processo de trabalho em sala de aula na direção da construção coletiva, favorecem a relação democrática e permitem aos alunos criar uma cultura de responsabilidade, autonomia e rigor no trato com os temas em estudo [...].

Portanto, as práticas pedagógicas desenvolvidas naquele contexto do Programa

Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, pautam-se como indícios inovadores, uma vez que apresentavam uma proposta que modifica a ideia de ensinar e aprender como transferência de conteúdo, não se sustentavam na utilização da divisão disciplinar rígida, bem como na ausência de ações que protagonizavam o professor como mantenedor e fonte única do conhecimento, outrossim, acentuava mais o processo do que os resultados.

Práticas pedagógicas inovadoras como possibilidade criativa no contexto escolar

O conceito de criatividade possui diferentes abordagens, levando, de acordo com os fundamentos teóricos, a diversas significações. Todavia, é perceptível, que embora com diferenciações quanto ao conceito, a criatividade perpassa pela a ideia de inovação. Inclusive a significação da própria palavra, que deriva do termo “creare” (criar, fazer algo de novo), já traz imbuída à proposta de elemento inovador.

No âmbito educacional, os novos desafios colocados à escola, derivados de mudanças

políticas, sociais, econômicas, pressupõem a necessidade do (re) pensar de sua configuração, encaminhando para a formação de uma instituição que atenda as novas demandas, renovando-se por meio da ressignificação de práticas, atitudes e função social.

Nesse viés, a criatividade apresenta-se como proposta valorativa de novas formas de pensar

o ensinar e o aprender no contexto escolar. Pinho (2015) cita Praun; Gonçalves (2009) para acentuar a criatividade como elemento necessário na ação educativa, pontuando que, “a capacidade criativa que distingue o homem dos outros animais [...] deve ser elemento norteador de todo sistema educativo” (PINHO, 2015, p.73). Por conseguinte, o potencial criativo pode ser estimulado, como ação que propicia o desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas.

A criatividade é segundo Moraes (1997, p.164) “[...] uma característica inerente à natureza

humana, mas que precisa encontrar condições favoráveis para sua expressão.” Logo, como elemento que faz parte da própria configuração do indivíduo, a criatividade deve ser estimulada por meio de atuações que prezem a emancipação do sujeito e que reconheçam suas habilidades como válidas, dentro de um contexto que valore o ser distinto e multidimensional. Assim sendo, é

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necessário criar ambientes em que a valorização do indivíduo, como ser social, ativo e em movimento contínuo seja um referencial para o processo educativo.

Dessa forma, o desencadeamento de práticas que vislumbram a proposição de novas

formas de ensinar corrobora com a possibilidade da criatividade no processo educacional. E é nessa proposta, de redimensionamento de ações, e da validação do ser em sua totalidade é que se apresenta a criatividade e a inovação como potencial transformador. Nesse sentido destaca Pinho (2015),

A criatividade e a inovação na prática educativa escolar podem ser compreendidas como reconhecimento de outras formas de produção de saberes, de valores humanos e sociais de convivência, de liberdade e criatividade, de competências para a vida, de iniciativa e capacidade empreendedora numa percepção integradora de totalidade do ser humano e da natureza. (PINHO, 2015, p. 30)

Para tanto, práticas pedagógicas inovadoras inserem-se como referencial para a criação de

condições que quebrem com ambientes inibidores da criatividade, estes baseados, sobretudo na unificação, simplificação e fragmentação da realidade. No contexto escolar, para que oportunidades criativas e inovadoras sejam desenvolvidas, torna-se necessário a preparação e a formação de um corpo docente consciente de sua função, indispensável, para a inserção da criatividade como valor formativo.

Considerações Finais

Refletindo sobre as ações desenvolvidas no âmbito do PIBID, são perceptíveis indícios de

práticas inovadoras que corroboram para a possibilidade de ações educativas criativas. Além do que, evidencia-se que o contato com tais ações no processo de formação, poderá contribuir para a configuração de um profissional atento para suas atitudes como formador.

As atividades realizadas na estrutura do programa apresentam-se como estimuladoras da

perspectiva de mudança na prática docente, pois se voltavam para ações em que a valorização de um processo descentralizado, integrador e diferenciado das práticas conservadoras eram reafirmadas continuamente.

Nesse contexto, verifica-se que o exercício de análise da prática docente, coaduna com a

importância do professor entender sua própria ação a partir da reflexão sobre estas, reformulando-as, confrontando-as e agindo em busca de novas posturas.

Diante dessas constatações, penso que vivenciei um movimento significativo, ainda na

formação inicial, em que pude conviver com aspectos que perpassam as relações no ambiente escolar, contudo, tenho a clareza que o ser professor vai além de uma experiência isolada, ultrapassa a ideia de prática estática, amplia-se para a dimensão de processo, e por isso mesmo em plena construção, marcado por fatores diversos que se atraem, repelem-se e se redimensionam.

Referências Bibliográficas BROILO, Cecília Luiza; PEDROSO, Maisa Beltrame; FRAGA, Evanilda Teixeira . Os alunos como parceiros: Adesões e resistências às inovações no espaço de sala de aula. In. CUNHA, Maria Isabel da (Org). Pedagogia Universitária: Energias emancipatórias em tempos neoliberais. Araraquara: Junqueira & Marin, 2006. CUNHA, Maria Isabel da. Professor Universitário na transição de paradigmas. 2ª ed. Araraquara: Junqueira & Marin editores, 2005. FERNANDES, Cleoni Maria Barbosa; ZANCHE, Beatriz Maria; KONARZEWSKI. Pedagogia universitária: Refletindo sobre os impasses e desafios para a experiência inovadora. CUNHA, Maria

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EXPERIÊNCIA DE LEITURA E ESCRITA LITERÁRIA

Laura Isabel dos Santos Vieira46 Thaís Almeida F. de Souza47

Resumo O presente artigo tem por objetivo analisar e divulgar os resultados de um projeto pedagógico voltado para o incentivo da leitura e da escrita no ensino médio, aplicado no Liceu Nilo Peçanha em Niterói. Usando como base teórica autores como Esméria Saveli, Marisa Lajolo e Sônia Kramer observamos o ambiente da escola e desenvolvemos um trabalho de leitura e produção do gênero crônica, com o propósito de questionar a função da leitura e da escrita na sala de aula. Palavras-chaves: produção textual, crônica, gêneros textuais Abstract The following paper aims to analyze and publicize the results of a pedagogic project targeting the incentive of reading and writing in high school, implemented at Liceu Nilo Peçanha in Niterói. Taking as theoretical base authors such as Esméria Saveli, Marisa Lajolo and Sônia Kramer we observed the school environment and developed an assignment of reading and writing of the chronicle genre with the purpose of questioning the role of reading and writing in classroom. Keywords: textual production, chronicle, textual genre Introdução

No primeiro semestre de 2015, dedicamos 36 horas para a aplicação de projeto em duas turmas do 3º ano do ensino médio do Colégio Estadual Liceu Nilo Peçanha, localizado no centro da cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. A instituição oferece apenas Ensino Médio e é frequentada por alunos na faixa etária entre 15 a 19 anos, que residem não somente em Niterói, mas também no subúrbio de alguns municípios do estado do Rio. Juntamente com a professora responsável pelas disciplinas de Língua Portuguesa, Literatura e Produção Textual, acompanhamos dois grupos, com cerca de 20 alunos cada, durante 10 semanas do período letivo. O contato com os jovens e o reencontro com o ambiente escolar possibilitou reflexões e percepções que nos deram a oportunidade de experimentar como funcionam, na prática, as teorias estudadas nas disciplinas de Licenciatura.

De acordo com as Orientações Curriculares definidas pelo Ministério da Educação, as

“ações realizadas na disciplina Língua Portuguesa, no contexto do ensino médio, devem propiciar ao aluno o refinamento de habilidades de leitura e de escrita, de fala e de escuta.” Com base em observações feitas para a elaboração do projeto, pudemos perceber que essas competências nem sempre são efetivadas com êxito no ambiente escolar. Diante desse diagnóstico, elaboramos uma proposta pedagógica que tivesse como objetivo principal mediar o relacionamento dos alunos com a Literatura, incentivando a criação e valorizando a habilidade de produção textual dos estudantes. Propusemos um novo contato com a linguagem, especificamente a linguagem literária, que lhes oferecesse uma oportunidade de ver a leitura e a escrita não somente como atividades curriculares, mas como experiências de reflexão, crítica, apreciação e entretenimento.

46 Licencianda em Letras pela Universidade Federal Fluminense – Bolsista de Iniciação à docência no subprojeto de Língua Portuguesa 47 Licencianda em Letras pela Universidade Federal Fluminense – Bolsista de Iniciação à docência no subprojeto de Língua Portuguesa

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Por ser um gênero acessível, de fácil compreensão e que pode funcionar como porta de entrada para outros tipos de produções literárias, optamos em trabalhar com a leitura e escrita de crônicas, destacando, também, suas características estruturais. Com o intuito de proporcionar uma experimentação coletiva, discutimos questões de aspecto social e individual da vivência humana através da exploração de textos literários consagrados das eras moderna e contemporânea, utilizando obras que são comuns no cotidiano escolar, leituras frequentemente obrigatórias nas aulas e cobradas nos vestibulares. Porém, sob a perspectiva de leitores completos – receptores da produção literária brasileira, além de estudantes submetidos às imposições escolares.

Em “O que está em jogo na leitura hoje em dia”, Michele Petit salienta a seguinte fala de

um dos jovens entrevistados durante sua pesquisa – “aquele que domina a escrita é necessariamente alguém que registra na memória sua experiência de vida e pode transmiti-la” (PETIT, 2008, p.66). Sobre a leitura, Jean Foucambert (1994) afirma que “ser leitor é querer saber o que se passa na cabeça de outro, para compreender melhor o que se passa na nossa.”48. Com base nessas perspectivas, o contato com livros, contos, crônicas, poemas pode ajudar o jovem a compreender o mundo e encontrar seu lugar nele, bem como reconhecer-se como parte da sociedade na qual nem sempre se sente acolhido. Nossa experiência durante a aplicação deste projeto e os resultados obtidos ratificaram tais afirmações e nos motivaram a continuar o exercício do magistério, superando os desafios que encontraremos futuramente. Primeiro passo: o diagnóstico

Através da análise do ambiente da sala de aula, foi possível identificar deficiências sintomáticas no processo de leitura e escrita dos alunos. Notou-se que o ato de ler está voltado, quase exclusivamente, para o cumprimento de exigências curriculares. A prática da leitura dedicada apenas para a avaliação, e da escrita aplicada, unicamente, para a correção empobrece a experiência do contato com o texto literário, privando o aluno do poder transformador da literatura.

Marisa Lajolo, em “O texto não é pretexto. Será que não é mesmo?”, deixa claro que a escrita e a leitura têm utilidades não só no campo da descrição linguística, mas também no âmbito social. A autora defende a coletividade como aspecto principal da produção textual. Ao ler e escrever, os sujeitos estão influenciados “pela história coletiva que cada um vive no momento respectivo da leitura e da escrita, e pela história individual de cada um” (LAJOLO, 2009, p.104), ou seja, o produzir e o interpretar estão envoltos, também, por experiências sociais.

As palavras de Sonia Kramer, do seu artigo “Leitura e escrita como experiência: seu papel

na formação de sujeitos sociais” (2000) na revista Presença Pedagógica, se relacionam com as ideias apresentadas, anteriormente.

Levar algo da leitura para além do seu tempo, para além do momento mesmo em que se realiza – aqui reside a dimensão de experiência que chamo de avesso. Por quê? Por considerar como experiência o processo de leitura ou de escrita (...) que engendra uma “reflexão sentida” de um coração formado sobre aspectos fundamentais da vida humana; leitura compartilhada – ainda que seja com o autor – daquilo que a gente pensa, sente ou vive. (KRAMER, 2000, p. 21)

Kramer baseia-se nos ensaios de Walter Benjamin para afirmar que as narrativas são,

essencialmente, espaços de diálogo, e para dimensionar “seu papel na constituição do homem como sujeito social” (KRAMER, 2000, p.19). Logo, entendemos que as funções da linguagem não estão

48 FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Trad.: B. C. Magne. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

In: SAVELI, Esméria de Lourdes. Por uma pedagogia da leitura: reflexões sobre a formação do leitor. In:

CORREA, Djane; SALEH, Pascoalina (Orgs). Práticas de letramento no ensino: leitura, escrita e

discurso. São Paulo: Parábola Editorial; PR: UEPG, 2007

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relacionadas somente à metalinguística disseminada pela escola. Há uma tendência no espaço escolar de tomar apenas o saber idiomático como relevante para o ensino e aprendizado da língua. Entretanto, considerando que o aluno é um ser social inserido em um determinado contexto sociocultural, outros saberes se fazem necessários para completar o processo de letramento.

Assim como Lajolo, Kramer defende a leitura como uma forma de interação com a

história, coletiva e individual, que leva à reflexão sobre o papel do homem como ser social, afirmando que não é “o acúmulo de informação sobre clássicos, sobre gêneros ou sobre estilos, escolas ou correntes literárias” (KRAMER, 2000, p.21) que proporciona tal raciocínio. Já sobre a escrita, declara que “significa aqui sempre (re)escrever, interferir no processo, deixar-se marcar pelos traços do vivido e da escrita.” O ato de escrever configura experiência quando o “vivido” é transcrito para um mecanismo que permita o compartilhamento e a perpetuação de vivências. A escrita cristaliza as abstrações desenvolvidas no pensamento, oferecendo oportunidade de ampliar e/ou modificar a perspectiva tanto de quem escreve quanto de quem lê.

No mesmo artigo, Kramer traz o questionamento: “A leitura na escola se fecha em leitura

da escola, onde notas, ‘provas de livros’, fichas e apostilas com resumos das histórias ocupam o tempo e o espaço que poderiam ser destinados a simplesmente ler e desfrutar o livro?” (KRAMER, 2000, p. 18). A partir da observação e realização do presente projeto, encontramos características que conservam a resposta afirmativa à questão.

A imagem do professor como aquele que produz o conhecimento é substituído por aquela

do sujeito que domina a arte de transmitir um saber já produzido. Dessa forma, é possível compreender o uso de tais artifícios mencionados na reflexão sugerida pela pergunta feita por Sonia Kramer, citada no parágrafo anterior. Os professores de Língua Portuguesa, Literatura e Produção Textual da educação básica, principalmente, parecem estar imersos na ótica de repetição do discurso responsável por transmitir os conteúdos curriculares. Esse mecanismo ocasiona a perda das propriedades científicas do exercício do magistério, desvalorizando o professorado.

A falta de uma qualificação contínua por parte dos profissionais da educação e de incentivo

por parte da sociedade e do governo, que não proporciona aos alunos condições viáveis para o aproveitamento da leitura, e a pressão imposta pelas “provas de livro” e exames vestibulares, são fatores que também contribuem para o desinteresse dos estudantes pela leitura. A escola é um ambiente que oferece mais obstáculos do que caminhos para o simples desfrute da experiência do ato de ler.

No ensaio “Por uma pedagogia da leitura: reflexões sobre a formação do leitor”, Esméria

de Lourdes Saveli (2007) identifica possíveis causas da ineficácia do trabalho com leitura e escrita na escola. A partir da definição de escrita de Vygotsky, atesta que “(...) a escrita é instrumento do pensamento reflexivo por possibilitar um pensamento sobre o pensamento.” (SAVELI, 2007, p. 110) e que a escola tende a impor a decifração dos textos escritos, invalidando o que a escrita oferece de mais interessante, que é a possibilidade de atribuir sentidos que extrapolam o pensamento de origem (do autor).

(...) a escrita é um meio de construir um ponto de vista, uma visão do mundo, de encaixar cada fato num conjunto, de estabelecer um sistema, de dar um sentido às coisas. Em decorrência dessa concepção de escrita, a leitura precisa ser concebida como aquilo que vai em busca do ponto de vista, que leva ao questionamento, à investigação dos meios que permitiram elaborá-lo, ao confronto com seus próprios pontos de vista, a sua relação com o instrumento que permite elaborá-los. (SAVELI, 2007, p. 112)”

A leitura e a escrita se completam, visto que o leitor reescreve o escrito, aplicando seus

próprios conhecimentos de mundo e conceitos intelectuais ao que lê, na tentativa de abstrair a ideia que deu origem ao texto, tornando-se a si mesmo autor de um novo conteúdo. Essa declaração

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ratifica a noção de que a leitura e a escrita são processos fundamentais para o exercício do saber elocucional do aluno, além do idiomático e expressivo explorados exaustivamente pela escola.

O delineamento de alternativas práticas capazes de intervir nesse cenário, citado pela

autora, é tão somente alcançado diagnosticando o problema e considerando as necessidades do aluno. A partir de então, será possível desenvolver projetos que ofereçam melhorias na relação dos alunos com as disciplinas referentes à leitura e escrita. Da teoria à prática

Unimos as reflexões feitas a partir das teorias estudas à observação da prática escolar e desenvolvemos a proposta a seguir. Primeiramente, houve um período de adaptação da ideia e observação da turma na qual foi aplicada. Depois o cumprimento das etapas do projeto que, para efeitos didáticos, foi divido da seguinte forma:

Etapa 1

Foram realizadas leituras e discussões coletivas de crônicas que tratam de assuntos cotidianos. A escolha dos textos foi feita com base no conteúdo programático proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o 3º ano do Ensino Médio, que estuda o Modernismo e a literatura contemporânea brasileira. Nas primeiras aulas, as orientadoras ficaram responsáveis pela leitura oral dos textos, enquanto os alunos acompanharam através de cópias dos mesmos, e de mediar o debate acerca da temática proposta, ouvindo as diversas interpretações dadas pelos alunos.

A fim de proporcionar comparações entre autores e temáticas, algumas crônicas presentes

na elaboração do projeto original precisaram ser substituídas. Os textos abordados foram:

“Hora de Dormir” de Fernando Sabino

“Restos do Carnaval” de Clarice Lispector

“Então, Adeus!” de Lygia Fagundes Telles

“Horóscopo” de Carlos Drummond de Andrade

“Maldita Lei da gravidade” de Thalita Rebouças

“Gol da Alemanha” de Antônio Prata

“A morte do Leiteiro” de Carlos Drummond de Andrade 49 Etapa 2

A realização de um estudo sobre as características estruturais do gênero crônica foi de suma importância para o desenvolvimento desta etapa. Partindo dos textos lidos na etapa anterior, apontamos o formato no qual o texto é escrito, a estrutura da narração, a construção dos personagens e diálogos, o enredo, entre outros. A seguir, os alunos participaram de uma dinâmica chamada “Teia de ideias” ou brainstorming em que, a partir de uma palavra escolhida aleatoriamente pelas orientadoras, eles deveriam citar substantivos ou expressões que remetessem ao significado do vocábulo central, considerando a perspectiva individual de cada um. Após todas as palavras estarem postas no quadro, os estudantes escreveram um pequeno parágrafo utilizando pelo menos três delas. O objetivo dessa atividade era familiarizar os alunos ao ato da escrita, para então propor a produção de suas próprias crônicas de acordo com as temáticas abordadas na leitura dos textos

49 O poema de Drummond foi incluído no repertório a pedido da professora, que desejava apresentar um poeta do modernismo, já que ela iria iniciar esse conteúdo com a turma após a aplicação do projeto.

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literários, anteriormente. Para isso contaram com três aulas e o auxílio das orientadoras e dos próprios colegas. Etapa 3

Algumas das crônicas produzidas foram selecionadas para serem lidas e debatidas, assim como foi feito na primeira etapa. Desta vez incentivamos os alunos a fazerem a leitura oral dos seus próprios trabalhos ou, caso consentido, dos colegas. A maioria dos estudantes permitiu a leitura de seu texto por outros. No final do projeto, os textos criados foram organizados em forma de livreto que está disponibilizado na biblioteca da escola. Dessa forma, cumprimos o objetivo de valorizar a habilidade de escrita dos alunos. Resultados

Apesar da não participação de todos, a grande maioria dos estudantes envolveu-se com a proposta. De início, um pequeno grupo apresentou certa resistência motivada pelo pré-julgamento do projeto como mais uma cansativa atividade escolar. Após salientar o caráter não obrigatório e não avaliativo, tal parcela se deu a oportunidade de desfrutar da iniciativa pedagógica. Em contrapartida, surgiu outra que, tendo em vista essa informação, decidiu não participar.

As discussões acerca das reflexões levantadas a partir da leitura das crônicas foram marcadas pelo envolvimento considerável dos alunos, principalmente daqueles que costumavam ficar quietos durante as aulas das disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura. Essa observação foi feita, também, por parte dos próprios estudantes, que ficaram surpresos com a capacidade criativa de leitura e escrita de alguns de seus colegas.

Grande parte da turma conseguiu fazer relações com as histórias dos textos e as suas, levantando pontos de vistas diversos, o que muito contribuiu para aproximação deles à literatura. A leitura do poema “A morte do leiteiro”, antes não incluso no conjunto de textos a serem trabalhados, proporcionou um momento marcante de total aproveitamento da experiência social dos estudantes. Muitos compararam a figura do leiteiro de Drummond com homem pobre, negro e favelado existente na atual realidade brasileira, imagem com que alguns deles se identificam.

Por meio do contato com textos de alguns autores aclamados pela academia, abordando temáticas desde as mais simples as mais complexas, houve uma ruptura no caráter entediante imposto por uma parte dos alunos à literatura consagrada. Através dessa análise, os estudantes ficaram mais confiantes em escrever sobre temas de seu cotidiano, rompendo a ideia, muitas vezes disseminada em instituições de ensino, de que para uma produção textual de qualidade, é necessário ter uma escrita altamente elaborada e uma abordagem de extrema complexidade.

Ao observar amplamente a efetuação do projeto, reconhecemos que os resultados extrapolaram aqueles já esperados. O reconhecimento da eficácia do trabalho impresso nas palavras de agradecimento dos alunos e da própria professora serviu como estímulo para continuar seguindo o caminho do magistério. Além disso, esse projeto comprovou que é possível elaborar e aplicar propostas alternativas nas escolas, tendo a consciência da não aprovação de todos, mas a conquista de muitos, principalmente, daqueles que esperam o reconhecimento do aspecto relevante de suas ricas experiências enquanto sujeitos sociais, que quando valorizadas, tornam-se proveitosas para a formação de cidadãos críticos. Referências ANTUNES, Irandé. A escrita de textos na escola: de olho na diversidade. In: Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Trad.: B. C. Magne. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. In: SAVELI, Esméria de Lourdes. Por uma pedagogia da leitura: reflexões sobre a formação

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