revista gosto - edição florianópolis

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1 FLORIANÓPOLIS 2010 GOSTO COMER BEM NÃO FAZ MAL A NINGUÉM A cultura da cozinha do mar viaja da Europa para Florianópolis Tabletes Dalva O doce de coco que nasceu na capital catarinense arrebata fãs pelo Brasil afora Como Florianópolis se transformou no referencial brasileiro no cultivo do molusco Vitor Gomes Ostras de grife Ostras in natura depuradas do Restaurante Ostradamus Sotaque baiano Madá abre as portas de casa e presenteia os manés com o melhor da Bahia Especial Florianópolis

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Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina. Produção de pautas, reportagem, edição e diagramação.

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Page 1: Revista Gosto - Edição Florianópolis

1 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O

COMER BEM NÃO FAZ MAL A NINGUÉMA cultura da cozinha

do mar viaja da Europa para Florianópolis

Tabletes Dalva

O doce de coco que nasceu na capital catarinense

arrebata fãs pelo Brasil afora

Como Florianópolis se transformou no referencial brasileiro no cultivo do molusco

Vitor Gomes

Ostras de grife

Ostras in natura depuradasdo Restaurante Ostradamus

Sotaque baiano

Madá abre as portas de casa e presenteia os manés

com o melhor da Bahia

Especial Florianópolis

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2 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 3 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O

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SUMÁRIO

6 ENTREVISTA Vitor Gomes resgata a sua trajetória e analisa a profissionalização da gastronomia em Florianópolis

12 BOX 32 O boteco do Mercado Público se transformou ao longo de 21 anos e hoje atrai gente do mundo todo

14 VADINHO O restaurante de beira de praia oferece a típica cozinha açoriana, com cardápio democrático e fixo

15 GOSTO DE LER Dicas de livros que trazem ao leitor o melhor da cozinha de Santa Catarina

16 OSTRA DE FLORIPA A história do molusco que colocou a Ilha na rota da gastronomia brasileira

24 ENSAIO A sequência de camarão e a lógica da quantidade em detrimento da qualidade

26 PERFIL DE CHEF A baiana que conquistou o paladar dos florianopolitanos conta o segredo do seu acarajé

30 RECEITA DE FAMÍLIA O doce de coco mais famoso de Florianópolis comemora 68 anos de tradição

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Foto da capa: Divulgação

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Esta edição especial da revista GOSTO é um convite a conhecer um pouco do cenário gastronômico em Florianópolis. “Um pouco”, porque seria pretensioso demais falar em um mapa da gastronomia de uma cidade com mais de 100 praias, além da região continental. O mar, aliado à forte colonização açoriana, é quem dá o tom do que se vê pelas mesas de restaurantes e bares da capital catarinense.

Foi graças a essa relação com o mar que Florianópolis se tornou a referência nacional no cultivo de ostras. São mais de duas toneladas do molusco produzidas por ano, que abastecem o mercado nacional. As barreiras sanitárias são o próximo degrau a ser superado para que as ostras cruzem o oceano e alcancem o mercado internacional.

Quem conhece bem essa travessia é Vitor Gomes, chef e sócio do Café Riso & Etc., o premiado restaurante que toma a frente do movimento de profissionalização da gastronomia na Ilha de Santa Catarina. Vitor trouxe na bagagem da estadia na Europa as melhores referências da cozinha do mar, aprendidas com ninguém menos que Jacques Le Divellec.

Da entrevista com o chef mais renomado de Florianópolis a histórias como a da baiana Madá e da fábrica familiar de doce de coco em tabletes, esta edição pretende trazer ao leitor nomes reconhecidos e preciosidades ainda não descobertas por turistas e locais.

O pedacinho de terra perdido no mar, de Zininho, grande poeta mané e compositor do Rancho de Amor à Ilha, cresce e se profissionaliza para encontrar espaço no roteiro gastronômico do Brasil e do mundo.

Aos leitores, desejo uma boa viagem e uma ótima leitura!

Bruna de Paula

Descobrindo Florianópolis

Universidade Federal de Santa CatarinaCentro de Comunicação e Expressão

Departamento de JornalismoCurso de Jornalismo

Trabalho de Conclusão de Curso

AcadêmicaBruna Vieira de Paula

OrientadoraGislene Silva

Designer Ayami Tanaka Projeto Gráfico Ken Tanaka

Texto e diagramação Bruna de PaulaFotografia Arquivo/Madá, Bruna de Paula, Divulgação/Box 32, Divulgação/Ostradamus, Geison Werner, Phillippe Arruda,

Ronaldo Lima/Foto Arena, Sérgio Vignes/Abrasel SCIlustração Tarik Assis

Tratamento de Imagens Bruna de Paula e Geison Werner

Impressão Expert Gráfica

Florianópolis, junho de 2010

Aos meus pais Dilceu e Sandra, ao meu irmão Sandro, ao meu namorado Geison, à minha amiga e orientadora Gislene. Aos

profissionais da Revista Gosto, especialmente a J.A. Dias Lopes, Ayami Tanaka, Ken Tanaka e Regiane Valente. A todos os

entrevistados que tornaram possível a produção desse trabalho.

ÍNDICE DE RECEITAS

22 RISOTO DE OSTRA

23 ESTROGONOFE DE OSTRA

29 ACARAJÉ DA MADÁ

29 23 29

Florianópolis

Ementa

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6 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 7 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O6 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 7 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O6 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 7 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O

Entrevista Vitor Gomes

A cara do Riso

trabalhar fora. Eu e os meus irmãos tínhamos que tomar conta da casa e eu acabei ficando mais na cozinha. Aos 16 eu tinha um bar no Campeche com alguns amigos, onde a gente fazia mais festa que trabalhava. Na sequência, eu abri a Pão Família, que deu origem ao que hoje é o Emporium Bocaiúva, um divisor de águas na gastronomia de Florianópolis. O Emporium entrou em funcionamento no início da década de 90, quando o Brasil estava se abrindo aos importados e a proposta deu muito certo.

Como foi decidir abandonar

um negócio consolidado para

estudar e viajar?

Eu via meus amigos fazendo intercâmbio, falando outra língua de forma perfeita, cultivando amizades à distância e eu não tinha me dado a esse luxo. Com 16 eu tinha meu próprio negócio, com 17 eu tinha uma padaria com 12 funcionários e a viagem sempre foi ficando pra trás. Com 32 anos eu estava um pouco cansado e resolvi dar uma de adolescente e viajar, mas com uma mentalidade mais madura e com um certo dinheiro.

E como foi a experiência na

França?

Foi ímpar, porque eu nem mesmo conhecia a Europa. Sempre falei da Europa, sempre li sobre a Europa, sempre vendi produtos europeus, mas nunca tinha estado lá. Foi bom conhecer Paris, ver a importância que o francês dá ao ato de comer. Morei um tempo na escola (no Lycée Hôtelier, em Yvelines), outro em La Rochelle, depois em Paris. Em Paris, eu tive a oportunidade de trabalhar com o chef Jacques Le Divellec, o que foi uma experiência incrível. A cozinha era absolutamente rigorosa, trabalhávamos com ingredientes primorosos, produtos muito frescos. Recebíamos praticamente todo dia camarões, lagostas e peixes vivos.

Qual foi a importância de, na

volta ao Brasil, trabalhar com o

chef mais renomado do país, no

D.O.M.?

Voltei um pouco atordoado, porque no exterior existem várias facilidades que no Brasil ainda não chegaram. Quando cheguei aqui fui a São Paulo, jantei no D.O.M. e o Alex (Atala) me convidou para trabalhar lá, justamente pra

Se o nome do restaurante tivesse apenas um sentido – o da alegria – já bastaria

para dizer da personalidade do chef Vitor Gomes, à frente das panelas e sócio do Café Riso & Etc. e do Café Riso Plage. Riso é também uma alusão a um dos destaques do menu, o risoto. Aos 37 anos, Gomes é referência em Santa Catarina, premiado por duas vezes seguidas como o melhor chef de Florianópolis, pela revista Veja Santa Catarina - O Melhor da Cidade. A trajetória de trabalho precoce, com uma pausa de dois anos para estudos na França foi recompensada pelo reconhecimento no retorno à Ilha. O desafio de crescer dentro do mercado de Florianópolis, que tem custos de operação próximos a São Paulo, mas uma possibilidade muito menor de retorno, é um dos desafios levantados pelo chef nesta entrevista.

Quando você começou a

encarar a gastronomia como

profissão?

Foi um processo muito natural. Meu pai morreu quando eu tinha dois meses, então a minha mãe sempre teve que

O chef florianopolitano leva às panelas de seu restaurante as referências da cozinha da mãe

F O T O S P H I L L I P P E A R R U D A

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8 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 9 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O8 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 9 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O8 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 9 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O

Entrevista Vitor Gomes

fazer essa readaptação. Foi muito bom, o Alex é um ícone da cozinha brasileira, uma pessoa absolutamente acessível, que não tem nenhum tipo de senão na hora de te mostrar o caminho, de ensinar. Fiquei cerca de três meses, fiz eventos, trabalhei na cozinha, trabalhei no pré-preparo. Isso sem dúvida me ajudou muito a ver em que patamar a cozinha do Brasil estava operando naquele momento. Também aprendi coisas importantes, como a adaptação de várias receitas clássicas francesas e italianas a ingredientes brasileiros. Se temos um produto tão bom como a castanha-do-pará, que dá um resultado final

interessante e custa um terço de uma amêndoa, que vem de longe, que gasta combustível pra chegar aqui, que é importada, por que não usá-la? Esse é o conceito de sustentabilidade que o Alex prega.

Depois de acumular tanta

bagagem, viajar, a intenção

era voltar à Florianópolis?

A idéia sempre foi viajar e voltar para Floripa. Minha casa estava aqui, minha família, meus cachorros. Eu até tive oportunidade de ficar mais tempo em São Paulo, mas se fosse pra ficar longe de casa, em uma metrópole, eu teria ficado em Paris. A decisão de voltar ao Brasil era, sem dúvida

nenhuma, a decisão de voltar a Florianópolis. Inclusive para dar respostas a alguns amigos que não entenderam muito a minha saída. É difícil entender que um cara com um negócio consolidado pare tudo e comece de novo, trabalhando 18 horas por dia. Na volta, trabalhei uma temporada no Taikô de Jurerê Internacional, tive uma breve passagem pela cozinha do Sofitel e comecei a fazer eventos.

Foi nessa época que começou

a pensar na idéia do Café Riso

& Etc.?

Exatamente. Encontrei um amigo, cliente de longa data,

que se predispôs a ser investidor e a participar do projeto. Foram consumidos nove meses em função da reforma. Durante esse tempo foi feita a montagem de toda a brigada, menu, decoração, enxoval. Sem dúvida nenhuma foi absolutamente árduo, porque a própria concepção era completamente diferente de qualquer coisa que existia em Florianópolis. O lugar é um café e um restaurante, com abertura ininterrupta. Depois desses meses de trabalho, abrimos em 17 de outubro de 2008.

A promoção de eventos é um

diferencial?

Sem dúvida. Tentamos

rico, tanto pelo número de etnias, pela composição do seu povo, pelas microrregiões, pelos microclimas. Todo o nosso estado tem uma veia gastronômica muito forte, basta os restaurantes e os chefs daqui fomentarem o que é nosso.

Como é o relacionamento com

os fornecedores?

Certos produtos só são comprados de um determinado fornecedor. É o caso das ostras, que variam muito em função da região em que são criadas. Nossas folhas vêm de Ratones, de um produtor que não usa agrotóxico. A gente utiliza brotinho de salada, que ele cria através da germinação de sementes crioulas, que não passaram por nenhum processo químico.

E o contato com os clientes?

Em qualquer segmento é absolutamente primordial que você esteja próximo ao cliente. A concepção gastronômica, mesmo sendo minha, é direcionada a agradar uma pessoa. Tentar agradar a gregos e troianos em um restaurante em que se atende um publico conhecedor é difícil, mas também é uma possibilidade de trocar experiências. A gente aprende e ensina um pouco todo dia.

De que maneira acontece o

processo de criação dos pratos?

Nosso menu é modificado duas vezes por ano, para a primavera/verão e para o outono/inverno. A criação é feita de forma participativa com minha equipe de cozinha, meus subchefs, com o chef que nós temos hoje, o Rafael Campagnolo, no Café Riso Plage. A gente se reúne, faz um briefing

do quê e da forma que quer fazer e vai ajustando até chegar a uma concepção que agrade e que a gente consiga reproduzir dentro das nossas estruturas.

O Café Riso Plage tem uma

proposta diferente do Café Riso

& Etc.?

O Plage foi uma loucura. Tivemos 25 dias para fazer o mesmo trabalho que tivemos no primeiro restaurante, quando gastamos nove meses. A concepção é diferente, é um restaurante de praia, que sai um pouco da mesmice do pé sujo de praia. Tentamos dar mais de consistência à proposta, mas sem deixar de ser um ambiente democrático, rústico e descontraído. Trabalhamos basicamente com tudo grelhado: frutos do mar, carnes, frango. Isso tudo desenhado com a possibilidade de atender a um alto fluxo, já que fica em Jurerê Internacional, lugar que recebe muita gente na temporada. E durante a baixa temporada temos usado as estruturas para realizar eventos, além do movimento do fim de semana, que tem sido bastante satisfatório.

Em geral, as pessoas reclamam

muito do profissionalismo

na área de gastronomia em

Florianópolis, o que você acha

disso?

É uma pergunta difícil de responder. Ao mesmo tempo que as pessoas cobram pela falta de profissionalismo, elas não querem

“Com o Alex Atala, aprendi a adaptar várias receitas clássicas francesas e italianas a ingredientes brasileiros”

buscar eventos internos que brindem a nossa clientela com a possibilidade de ter acesso a coisas que Florianópolis nunca teve. Acho que o Festival de Trufas foi uma dessas idéias. Foram seis restaurantes no Brasil que receberam trufas frescas e o Café Riso foi um deles, o único em Santa Catarina. Além disso, o festival aconteceu justamente durante as enchentes do final de 2008 e a gente doou toda a receita para a compra de cerca de 100 colchões, que foram entregues à Defesa Civil. Fomentamos também, através de uma promoção, o mercado de vinhos catarinenses. O cliente toma o vinho de uma determinada vinícola catarinense e concorre a um fim de semana na serra com tudo pago. Além de brindar o cliente, valoriza aquilo que é o nosso produto.

Qual a importância desse

fomento aos produtos

catarinenses por parte dos

profissionais de gastronomia?

Acredito que a gastronomia francesa é o que é em função do fomento regional. Se diz isso, se fomenta isso, todo mundo fala: a melhor lagosta do mundo é o homard bretão, por exemplo. O cuidado que tem que ter é o de não falar mal dos outros, mas falar mais do que é produzido aqui e que tem uma belíssima qualidade. Santa Catarina tem hoje uma condição gastronômica ímpar. É um estado absolutamente

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10 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 11 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O10 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 11 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O10 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 11 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O

Entrevista Vitor Gomes

pagar pelo profissionalismo. Nem sempre dentro do universo de clientela de Florianópolis as pessoas estão dispostas a pagar essa conta. Eu considero que, do ponto de vista profissional, de dez anos pra cá melhorou muito. Mas acho que existe uma deficiência grande no que diz respeito à mão-de-obra. Algumas profissões ligadas ao mundo gastronômico aqui não são levadas de forma profissional, mas de forma momentânea. Garçom até pouco tempo atrás não era profissão, era bico. E obviamente isso não contribui com a formação de profissionais que querem trabalhar nessa área.

Qual o papel das faculdades de

gastronomia nesse processo?

Com o advento das faculdades de gastronomia, turismo, do Instituto Federal, que hoje forma garçons, barmen, serviço de sala, a mentalidade dessa mão-de-obra está mudando. Hoje eles já começam a encarar como uma profissão de apaixonados, que é desgastante, cansativa, mas que pode ser produtiva e pode pagar um bom salário. Por outro lado, existe um glamour envolvido na profissão, que nem sempre coincide com a realidade. Ficar 12 horas em pé em uma cozinha passando calor ou frio, descascando batata, é muito diferente do que se vê nas

capas de revistas. Você vê hoje nas faculdades de gastronomia pessoas muito deslumbradas com a profissão. Já saem da faculdade se denominando chefs de cozinha, achando que o principal processo a ser cumprido é adereçar um prato. Muitas vezes na nossa cozinha abrimos oportunidade para estagiários. Alguns chegam sem saber o processo inicial, querem saber do fim. Eu peço para o cara temperar um feijão, cozinhar um arroz e ele não sabe. Ele sabe montar um prato como ninguém, mas não tem o domínio pleno da técnica culinária, não tem domínio dos processos envolvidos,

desde o plantio daquilo até a chegada no restaurante e a preparação. Mas acho que a profissão de cozinheiros, baristas, garçons, maîtres, gerentes, sommeliers, nos últimos anos está sendo muito valorizada pela mídia e principalmente pelos estabelecimentos abertos em Florianópolis.

Como foi ser premiado dois

anos consecutivos pela

Veja como o melhor chef

e o primeiro como melhor

restaurante de comida variada

de Florianópolis?

A sensação é de muita felicidade. Essa foi uma resposta muito rápida às pessoas que

se perguntaram por que eu parei, estudei, viajei. O primeiro prêmio veio em função da minha trajetória, eu tinha aberto o Riso há somente um mês. O segundo foi buscado desde a abertura. A família Café Riso trabalhou de forma exaustiva para ser reconhecida, é um brinde a esse esforço. Trabalhamos para gerar satisfação às pessoas que vem aqui, nossos reis e rainhas. Antigamente a gastronomia era voltada à burguesia, aos reis e seus amigos. Hoje a gente continua voltado a tratá-los como reis. A diferença é que, se errarmos, o fim não será a guilhotina, mas o cartão de crédito. Se o cliente não gosta, não volta mais.

O que você acha das

denominações de alta e baixa

gastronomia?

Às vezes as pessoas dizem que eu faço alta gastronomia e eu respondo que não sei onde elas vêem isso. É obvio que há uma confusão. Você faz uma terrine de foie gras, que envolve um ingrediente de valor alto e pouco difundido no Brasil, mas é um processo absolutamente simples de cocção, de fabricação, de execução do prato. Para mim, alta gastronomia é todo ingrediente preparado com amor, esmero e muita técnica. A partir do momento que consegue se extrair dele o melhor que o ingrediente pode dar, isso é alta gastronomia. Você pode fazer um feijão para mim e ele estar absolutamente delicioso, isso pra

“Alta gastronomia é todo ingrediente preparado com amor e técnica. Um feijão bem executado pode ser alta gastronomia”

mim pode ser alta gastronomia.

Fala um pouco sobre o que você

acha do movimento mundial em

torno da cozinha brasileira.

O Brasil é um país rico e enorme, com vários países dentro de um só. A Amazônia é um desses países. Esse olhar pra Amazônia vem do momento, da busca da sustentabilidade do produto e de quem depende desse produto. Essas são discussões muito importantes em que empresas, ONGs e chefs sérios

dão a sua contribuição na busca dessa sustentabilidade, unindo economia com aspectos sociais e ambientais.

Você usa alguma contribuição

da cozinha científica, das

técnicas de Ferran Adriá no

Riso?

Acho que o Ferran é um gênio, a contribuição dele vai ser válida e falada por muito tempo. É um divisor de águas, com a técnica de esferificação, do uso do nitrogênio liquido, de insumos

antes usados em laboratórios e não dentro de uma cozinha. Mas não é algo que me toca de forma apaixonante. Eu prefiro muito mais o resgate de técnicas clássicas do que o processo de desconstrução e reconstrução de pratos. Já reproduzi, na França e com o Alex Atala, algumas técnicas como caviar de melão, algodão doce de abobrinha. Aqui usamos somente cocção a vácuo e cocção em baixa temperatura, mas o uso de esferificação, gelatinas, solução em cálcio não é a nossa praia.

Quais são as suas referências?

Eu me inspiro muito na cozinha da minha casa, nas coisas inventivas que a minha mãe fazia. Talvez a diferença maior esteja no uso da técnica culinária, já que ela fazia de forma empírica e nós trabalhamos mais tecnicamente para potencializar o sabor, a textura dos alimentos. Na cozinha do mar, a referência são Jacques Le Divellec e Nicolas Meunier, o jovem chef francês de 30 anos, apaixonado pelo que faz e faz muito bem feito.

Ainda é possível se surpreender

na cozinha?

Eu me surpreendo todo dia com coisas impensáveis que vejo companheiros de profissão fazendo. Se existe o limite do cliente, para o cozinheiro isso não existe. Ele pode inventar infinitas combinações, formas, texturas e cores.

Page 7: Revista Gosto - Edição Florianópolis

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TIRA-GOSTOS

O lugar da misturançaNo Box 32, convivem políticos oposicionistas, jogadores de clubes rivais, manés e turistas

Quando, em 1984, Roberto Henrique Barreiros Silva decidiu vender o posto de

gasolina recordista de vendas do estado para abrir um boteco de 15m2

no decadente Mercado Público de Florianópolis, muita gente apostou no fracasso. Mas Roberto, hoje Beto do Box, não desistiu da empreitada. “As pessoas que alcançam o êxito têm algo em comum: a capacidade de sobrevivência em ambientes hostis”, orgulha-se Beto.

Poucos imaginariam que os originais cinco metros de balcão do Box 32, hoje expandidos para nove, seriam responsáveis pela revitalização do Mercado Público. “O Mercado é onde acontece a verdadeira misturança, que melhor traduz o seu povo”, observa Beto. A paixão pelo lugar vem de criança, quando aos domingos, com seu avô, assistia à missa na Catedral, passava pelo

Palácio Cruz e Souza e completava a via sacra nas peixarias do Mercado.

As lembranças da infância, somadas às visitas a mais de 30 mercados públicos mundo afora, deixaram Beto apto para expandir o negócio e receber manezinhos e turistas. Nas paredes do Box, as fotografias registram a passagem de figuras como os chefs Alex Atala, Pierre e Claude Troigros, do presidente Lula, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e de um sem número de famosos.

Para Beto, o sucesso dos atuais 42m2 do Box tem receita simples, resultado do bom atendimento, da qualidade dos produtos, do local certo e do preço para todos os gostos. Para Beto, não adianta oferecer somente quantidade. “Nenhum ‘oh’ de felicidade ultrapassa a terceira garfada”, sentencia.

O Box figura hoje nos melhores

roteiros turísticos, como o Guide Vert da Michelin, a maior autoridade em guias do mundo. A fama de balcão mais democrático do Brasil pode ser traduzida em dois dos destaques do cardápio, que é disponibilizado em sete idiomas: o pastel recheado com 100 gramas de camarão e o presunto espanhol Pata Negra, considerado o melhor do mundo. Produtos com a marca Box 32 podem ser adquiridos somente no bar, como a reconhecida cachaça da casa, além de uma série de souvenirs, perdição dos turistas.

As opiniões sobre o Box são divergentes. Há quem discorde da fama de balcão democrático e diga que os preços são salgados demais. O certo é que, desde a fundação, o bar saltou de quatro para 30 funcionários, que na alta temporada se empenham em servir mais de 1.200 pessoas por dia. De março a novembro, 600 a 800 pessoas passam pelo Box.

Chef e proprietário do Box 32, Beto Barreiros é considerado embaixador da Ilha da Magia

Fotos: Divulgação/Box 32

Page 8: Revista Gosto - Edição Florianópolis

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Onde todos são iguais

Um dos redutos mais tradicionais da Ilha, o Pântano do Sul, é onde se encontra o Restaurante do Vadinho. A localidade, no extremo sul da Ilha de Santa Catarina, abriga uma

das últimas colônias de pescadores e fica a 30 km do centro de Florianópolis. Formalidades como cardápio ficam de fora da casa que abriga mais de um século de história e foi transformada em restaurante em 1984.

Lourival João Perão, o Vadinho, começou a pescar aos 14 e não parou mais pelos 30 anos seguintes. Depois de trabalhar com pesca artesanal e industrial por toda a costa brasileira, Vadinho deixou de lado o molinete e as redes. Abandonou a embarcação quando abriu o restaurante, mas continuou apaixonado pelo mar, provedor das delícias que leva à mesa.

Os ingredientes que entram na cozinha são todos de pescadores do Pantâno do Sul, amigos da família. “Hoje já não pesco mais, só de vez em quando pego umas tainhas”, conta Vadinho, que faz da renda do restaurante o sustento da casa.

A opção de almoço é uma só para todos: peixe da época servido em postas e/ou filé, pirão, salada, arroz, feijão, batata frita e a saborosa estopa, um desfiado de cação ou arraia, destaque da

casa. Ali se encontra a autêntica comida caseira do Pântano, segundo Vadinho. “Aqui não existe pobre nem rico. Todos comem a mesma coisa à vontade e pagam o mesmo valor: 18 reais”, explica o proprietário.

O restaurante, que antigamente abrigava a venda do seu João Manuel Inácio, pai do Vadinho, abre todos os dias durante a alta temporada. De abril a novembro, o almoço é servido aos fins de semana e feriados. Os quatro garçons se desdobram para atender as 19 meses que lotam nos finais de semana de inverno e no verão. “Na temporada ficamos aqui até de madrugada, esse salão fica cheio de gente”, comemora o ex-pescador.

No ambiente rústico podem-se ver as obras de arte confeccionadas pelo próprio Vadinho. As paredes expõem os quadros de barcos a vela, feitos com conchas e outros materiais. Já na arte das panelas, quem se destaca é a esposa, a quatro auxiliares de cozinha.

A dica é chegar cedo para garantir lugar. Se no tempo do seu João Manuel o destaque era o único gramofone da região, que fazia a venda ficar apinhada de gente, hoje é a comida do Vadinho que atrai turistas e moradores de Florianópolis em busca de uma refeição simples e saborosa.

RESTAURANTE DO VADINHORua Manoel Vidal, 305 - Pântano do Sul, tel. (48) 3237-7305.

Fotos: Geison Werner

Tira-Gostos

A típica comida açoriana é servida à vontade por R$ 18 por pessoa

Vadinho expõe sua arte nas paredes do restaurante

Um apanhado geral da vitivinicultura e da indústria cervejeira de Santa Catarina. Este é o produto final do trabalho do jornalista, professor e sommelier João Alexandre Lombardo, transformado em livro. Santa Catarina à mesa (Editora Expressão, Florianópolis, 2009) pode ser lido por

especialistas, amantes de vinhos e cervejas e também principiantes. Dividida em três capítulos – Vinho, Cerveja e Harmonização – a publicação foi inicialmente disponibilizada para o Governo do Estado. Na

segunda edição, conta com distribuição em todo o território nacional. O livro, ilustrado com belas fotografias, retrata os primeiros anos da vitivinicultura e das cervejarias artesanais e faz uma retomada histórica dos movimentos que transformaram a qualidade da indústria do vinho e da cerveja catarinenses. A obra traz ainda dicas de como se deve degustar uma boa cerveja e um bom vinho e ainda conta com 30 receitas. O leitor pode consultar os guias da cerveja e do vinho em Santa Catarina, com a relação das vinícolas e cervejarias e mapas de localização. Lombardo foi o responsável por todas as etapas do processo de criação, desde a apuração, realizada em todo o estado, até a elaboração dos pratos e da degustação e harmonização com vinhos e cervejas. Sommelier formado pela Federazione Italiana Sommelier Albergatori Ristoratori (FISAR), com especialização em enogastronomia na Toscana e no Piemonte, possui também formação pela Wine & Spirits, tradicional escola inglesa. Lombardo é figura conhecida pelos ilhéus, atraídos pela qualidade dos produtos da renomada padaria Lombardo e, agora, pela leitura deste registro histórico da enogastronomia catarinense.

Fotos: Divulgação

Rota catarinense

Em busca de uma identidadeHá cerca de uma década a ostra vem se firmando como um produto típico ilhéu. Atentos a essa transformação cultural, alunos de Gastronomia da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) levaram o conhecimento das panelas às páginas. A orientação foi feita pelo professor João Gustavo Souza, que faleceu logo depois de concluir o projeto. O professor foi também responsável pela organização do livro, ao lado do coordenador do curso de Gastronomia, Luiz Guilherme Figueiredo. A invenção da ostra – Receitas de Floripa (Editora Unisul, Palhoça, 2009) faz um resgate histórico da adoção do molusco como marca da Ilha de Santa Catarina na busca de uma identidade gastronômica. Conta ainda com 23 receitas elaboradas pelos alunos de gastronomia, que fizeram parte da seletiva para participar do concurso da Festa Nacional da Ostra e da Cultura Açoriana, evento que acontece todos os anos em Florianópolis. Três tradicionais restaurantes contam suas histórias e também revelam receitas de sucesso.

Gosto de Ler

Page 9: Revista Gosto - Edição Florianópolis

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A gente não quer só tainhaO que era apenas um tira-gostos depois do futebol foi o pontapé inicialpara fazer de Florianópolis a Capital Nacional da Ostra Cansado de ver o mar carregar amigos que

iam até os costões catar mariscos, Seu Luis Carlos Costa teve uma ideia. Se os moluscos,

que retiravam das pedras para comer no futebol de domingo, se fixavam até nos bambus que as ondas traziam, por que não controlar a criação, levando-os para as águas calmas de Santo Antônio de Lisboa? A curiosidade do Seu Luis Carlos, aliada ao conhecimento de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), colocou o estado no mapa da maricultura no final dos anos 80. Do cultivo de mariscos para outros tipos de moluscos foi um pulo. O que era uma experiência aparentemente pouco promissora se transformou no sustento de mais de 130 famílias da capital e alcançou status de grife: a ostra de

Florianópolis.A variedade mais comum de ostra encontrada

nos restaurantes é a Crassostrea gigas ou ostra do pacífico. Independente da variedade, o molusco bivalve (protegido por uma concha externa dupla) divide a opinião entre fãs e detratores. Há quem ame a textura, o gosto de mar absorvido pela carne da ostra. Há quem não consiga nem mesmo ver

alguém comendo a ostra in natura. Para os iniciantes, o mais comum é começar pela gratinada, com molho de queijos, preferência dos turistas. O chef Beto Barreiros, do bar Box 32, entusiasta dos primeiros cultivos de ostra em Palhoça, na Região da Grande Florianópolis, considera a ostra

gratinada uma heresia. “O molusco indica a pureza e a vida dos oceanos.

Acho que pode se comer ao bafo, para quem está começando. Mas amantes da boa mesa curtem as ostras vivas”, sentencia Beto. In natura, ao bafo, gratinada ou em preparações mais elaboradas, como no risoto ou acompanhada de massas, depende do gosto do freguês. O certo é que a ostra foi a responsável por fazer de Santa

Catarina o maior fornecedor de produtos da maricultura para o Brasil.

O estado responde por cerca de 95% da produção nacional de ostras. Das fazendas marinhas de Florianópolis saem 90% dos moluscos comercializados no país. Pode parecer estranho, mas o vocabulário da ostreicultura passeia por termos agrícolas pecuários sem nenhum problema. As sementes de ostras crescem e engordam nas fazendas marinhas, por mais que isso possa parecer uma incoerência semântica e biológica. Os dados mais recentes, de 2008, apontam que a Grande Florianópolis comercializou 2.159 toneladas do molusco, mais de 97% da produção de Santa Catarina. Foram 2.213 toneladas em todo o estado.

Alex Alves dos Santos, engenheiro agrônomo da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), explica por que a atividade ganhou força em Florianópolis. “A cultura açoriana, que tem uma relação muito forte com o mar, trabalhando em sintonia com a pesquisa e extensão da Epagri e da UFSC criou o cenário de sucesso para a maricultura”, destaca Alex. A Epagri foi parceira na implantação da ostreicultura e hoje desenvolve uma série de projetos para fomento da atividade. Somente em 2008, a ostreicultura gerou uma movimentação financeira bruta estimada em R$ 29.709.300.

Mas as dezenas de donos de restaurantes que hoje fazem da ostra o carro chefe de seus menus, até pouco tempo sequer imaginavam que o molusco conquistaria o país. Convencer os produtores de que a ostreicultura era um bom negócio foi uma tarefa difícil, que reuniu esforços da universidade, do governo e de alguns pescadores que tomaram a frente da situação. Os pescadores artesanais sofriam com a oscilação das safras e com o avanço da pesca industrial. Foi então que Seu Luis Carlos juntou a experiência acumulada com o espírito empreendedor para liderar o grupo de cinco pescadores que levou o projeto da UFSC em frente, em 1988. A iniciativa foi o embrião para a criação do Laboratório de Moluscos Marinhos da Universidade

Foto: Divulgação

Especial

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(LMM), referência no Brasil e atualmente responsável pela comercializaçãode 100% das sementes de ostras para os produtores de Santa Catarina.

O laboratório cultiva os moluscos reprodutores, acompanha o desenvolvimento das larvas e, finalmente, a transformação em sementes. A partir daí são comercializadas e o trabalho fica por conta do produtor. As pequenas smeentes saem do laboratório para ganhar o mar medindo de 1mm a 3mm. Da semente à mesa podem passar de quatro meses a um ano no mar, dependendo das condições do tempo, das correntes e, principalmente, do manejo.

“Além da vocação natural e do manejo correto, a ostra precisa de águas calmas e limpas, em uma temperatura que fique entre 18o e 23o e com incidência de correntes frias”, explica o professor Jaime Fernando Ferreira, supervisor do LMM e um dos incentivadores do grupo capitaneado por Luis Carlos. Essas são justamente as condições que as ostras encontram na praia do Ribeirão da Ilha, ao sul, e em Santo Antônio de Lisboa e Sambaqui, ao norte da Ilha de Santa Catarina. São nessas localidades que trabalham a maioria dos ostreicultores de Florianópolis, como Leonardo Cabral Costa, filho de Luiz Carlos e responsável pela Fazenda Marinha Freguesia, que tem 21 anos de atividade, e

também pelo Freguesia Bar e Restaurante, aberto há 12 anos, ambos em Santo Antônio de Lisboa.

Leonardo começou a trabalhar ao lado do pai quando o público que hoje lota seu restaurante começava a descobrir o sabor da ostra. Eles montaram o empreendimento em 1998 e tiveram que educar os potenciais consumidores. “Foi um trabalho de garimpo de clientela. As pessoas vinham comer camarão e a gente oferecia ostra de graça, porque sabia que mais tarde isso ia nos dar retorno”, relembra Leonardo, que herdou do pai e do avô o espírito empreendedor. A família investia na pecuária e tinha um abatedouro de carnes, mas a vocação para o mar falou mais alto.

Hoje Leonardo consolidou uma forma de manejo das ostras que o diferencia dos demais produtores da região. O pai, Seu Luis Carlos, foi quem montou a balsa onde atualmente ocorre toda a manipulação das ostras, que antes, de forma mais rudimentar, era utilizada para manejar os mexilhões do domingo de futebol. Com a manipulação na balsa, que fica a cerca de 200 metros da margem, as ostras não precisam ser deslocadas para a praia, o que diminui despesas, poupa tempo e garante maior segurança alimentar e sanitária. O processo garantiu à Fazenda Marinha Freguesia o quarto lugar no ranking de produtores de ostras no Brasil em 2003, posição que mantém até hoje. São comercializadas de 90 a 110 mil dúzias de ostras por ano.

Produção controladaDentro da balsa, o controle é rigoroso. Todo

o material é de inox e polietileno, para evitar contaminações. Com o sistema de rastreabilidade que o engenheiro agrônomo Rafael Luiz da Costa implantou é possível saber a qual lote pertence a semente, há quanto tempo ele está no mar e quando vai chegar ao consumidor. A ideia é simples, feita em uma planilha manual com uma legenda de cores para cada lote. A preocupação com o meio ambiente também passa pela balsa de Leonardo. Todas as cascas são recicladas. “Nós temos três tipos de consumidores das cascas: o pessoal que usa para artesanato, os que usam para

ração animal, já que a casca tem muito cálcio, e os que usam em estações de tratamento de esgoto, onde a casca substitui a pedra e ainda tem a vantagem de regular a acidez do solo”, detalha Leonardo.

As sementes chegam do laboratório com cerca de 1mm e passam por três acondicionamentos diferentes. Primeiro vão para as caixas flutuantes, com uma tela, que garante uma boa iluminação e contato com a superfície, a região que mais tem microalgas, que é o alimento dos moluscos. Quanto mais ele cresce, maior é o tamanho da tela, trocada periodicamente. Na segunda etapa vão para os chamados travesseiros, que são estruturas maiores e também flutuantes. Essas estruturas são também formadas por uma malha que permite o contato do molusco com a água do mar. “Essa malha se parece com uma meia-calça feminina, depois vamos abrindo mais, para dar espaço para crescerem”, explica Leonardo. Quando atingem o tamanho de um dedo polegar, é hora de transferi-las para as lanternas, estruturas verticais que ficam submersas no mar. Depois de engordarem na lanterna, são separadas, limpas e já têm destino certo: metade vai para o

restaurante e os outros 50% são comercializados para dez estabelecimentos da região.

Mas todas estas melhorias nos últimos anos tiveram um motivador: o Certificado de Qualidade das Ostras da Grande Florianópolis, concedido por uma série de autoridades. “Para obter o selo, existe uma análise de controle que vai do laboratório à mesa”, explica Leonardo. Ele adotou o manual de boas práticas desenvolvido pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Santa Catarina (Sebrae/SC) e obteve a primeira certificação, uma preocupação com o cliente, além de uma boa jogada de marketing. “Como fomos os primeiros produtores, também tínhamos que conseguir o selo primeiro”.

A Fazenda Marinha Paraíso das Ostras, que fica do outro lado da Ilha, na Caieira da Barra do Sul, foi uma das três fazendas que conquistou a certificação. Em atividade desde 2004, fornece ostras para restaurantes de renome, como o Ostradamus, que fica no Ribeirão da Ilha, também ao Sul da capital. Além da certificação do fornecedor, o restaurante trabalha com o processo de depuração da ostra. O aparelho que faz a depuração

Balsa onde acontece o manejo das ostras da Freguesia Fazenda Marinha

Ostras gratinadas do Ostradamus: a preferida dos turistas é considerada um sacrilégio pelos puristas

Foto: Divulgação/OstradamusFoto: Bruna de Paula

Especial

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Ostras depuradas do Restaurante Ostradamus

é muito semelhante aos filtradores de piscina. A água do mar é retirada a 200 metros da costa e submetida a um tratamento através de raios ultravioletas. Depois de passar no mínimo 12 horas dentro dos tanques com a água tratada para eliminar as bactérias e outras impurezas, as ostras estão prontas para ir para a cozinha. O subgerente Rogério Carvalho, que trabalha no restaurante há oito anos, garante que o processo não altera o sabor da ostra. “Pelo contrário. Em outros locais, quando se abre a ostra, ainda tem lama e impurezas e é comum que as pessoas as lavem em água corrente, da torneira. Isso tira o sabor do mar característico da ostra. Aqui elas são filtradas nos tanques com a água salgada”, garante Rogério. A ideia original era submeter à depuração somente as ostras que seriam consumidas in natura. Como a estrutura montada comporta uma grande quantidade de moluscos, toda ostra consumida no restaurante passa antes pelo depurador. A mais pedida é a ostra gratinada.

A depuração é uma das barreiras sanitárias que impede que o molusco atravesse o oceano e atinja grandes mercados consumidores, como a Europa. “Acredito que dentro de quatro ou cinco anos Santa Catarina exporte ostra”, prevê o engenheiro agrônomo Alex, da Epagri. Por enquanto, a limitação é tamanha que apenas sete empresas conseguem comercializar o molusco em outros estados brasileiros.

O Serviço de Inspeção Federal (SIF) é a condicionante que impede que os outros produtores também alcancem o mercado nacional. “Esses sete detém 80% da comercialização, os outros 20% são pequenos produtores que não conseguem implantar o SIF, porque o custo é muito alto”, argumenta Alex. A alternativa encontrada foi a criação do Serviço de Inspeção Municipal (SIM), que prevê regras que se adaptam à realidade dos produtores artesanais. Com o SIM, ainda não será possível comercializar o molusco para outros estados, mas será garantida a segurança alimentar e sanitária da ostra que vai para os restaurantes ou é comercializada

diretamente aos apreciadores. A proposta está em discussão e movimenta todos os interessados no processo. Leonardo é o representante dos produtores e acredita que a medida vai profissionalizar o mercado. “Hoje se vê muitas fazendas clandestinas. Se as pessoas vissem como é produzido, certamente não consumiriam. Mas quando vêem a dúzia da ostra no mercado a quatro reais, não pensam duas vezes antes de comprar”. A expectativa da aprovação do SIM é boa. “Devemos aprová-lo ainda nesse ano. A ideia é que na Fenaostra do ano que vem só entrem ostras inspecionadas”, antecipa o engenheiro Alex.

A Festa Nacional da Ostra e da Cultura Açoriana (Fenaostra) acontece todo ano desde 1999. Integra as já tradicionais festas de outubro de Santa Catarina e este ano acontece entre os dias 22 e 31. Durante o evento há atrações gastronômicas, folclóricas e culturais para o público, além de pequenos cursos e seminários voltados ao maricultor. Em 2009, sete restaurantes tradicionais da Ilha serviram ostras para um público de cerca de

150 mil pessoas. É nessa época que os restaurantes mais faturam. Somente o Freguesia, restaurante do Leonardo, vendeu cerca de 22 mil dúzias de ostras, entre preparações gratinadas, ao bafo, in natura, pastel, risoto e o carro-chefe da festa, o estrogonofe de ostras.

Leonardo se divide entre o stand montado para o restaurante e o palco do evento, onde participa do tradicional Concurso Papa-Ostra. Munido de faca e limão, ganha quem conseguir comer mais ostras vivas em um minuto. No ano passado, Leonardo ficou com o segundo lugar, com 12 ostras, uma a menos que o vencedor, Sérgio Luiz Pereira. Mas em matéria de Papa-Ostra ninguém bate o pai. Luis Carlos Costa é o recordista de todas as edições. Chegou a comer 28 ostras em três baterias de um minuto. Experiência que vem de família.

Foto: Divulgação/Ostradamus

Especial

Depois de passar no mínimo 12 horas dentro do tanque de depuração, as ostras estão prontas para ir para a cozinha

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Estrogonofe de ostras do Freguesia

Serve 3 porções 24 ostras médias frescas 180g de creme de leite 4 tomates médios maduros 2 cebolas médias 250g de champignon 2 colheres de sopa de cheiro verde

1. Refogue a cebola, o tomate e o cheiro verde por cerca de cinco minutos. 2. Acrescente as ostras abertas na hora, inclusive com o suco.3. Cozinhe por mais três minutos.4. Acrescente o creme de leite e o champignon5. Sirva com arroz branco e batata palha.

Risoto de ostras do Ostradamus

Serve 2 porções 24 ostras grandes pré-cozidas e extraídas da concha100g de manteiga sem sal2 pistilos de açafrão 150ml de vinho branco50ml de creme de leite fresco3g de alho picado fino50g de cebola picada fina100g de tomates sem semente30ml de azeite extra virgem120g de arroz arbóreo1,5 litro de caldo de peixe100g de queijo parmesão ralado Sal a gosto

1. Em uma panela, junte metade da manteiga e o azeite e doure o alho.2. Acrescente os pistilos do açafrão e a cebola.3. Quando estiver com aparência translúcida, coloque o tomate picado finamente.4. Em seguida, adicione o arroz e mexa bem.5. Coloque o vinho, refogue até obter cremosidade e despeje o caldo de peixe aos poucos, mexendo sempre para que o arroz não grude no fundo da panela.6. Quando estiver bem cremoso, junte as ostras e acerte o sal.7. Desligue o fogo quando o arroz estiver al dente.8. Acrescente o restante da manteiga, o queijo parmesão e o creme de leite.9. Sirva imediatamente.

Foto: Ronaldo Lima/Foto Arena Foto: Sérgio Vignes/Abrasel SC

Especial

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Ensaio

Ilustração: Tarik Assis

Tudo ao mesmo tempo agoraO sucesso da sequência de camarão, o prato que contraria o Aurélio, mas enche a barriga

Ilustração: Tarik Assis

Como para a maioria das

pessoas quantidade satisfaz

muito mais que qualidade,

não é de se espantar que

o prato faça tanto

sucesso. Amada

pelos turistas, a

sequência de

camarão figura

em nove entre

dez banners dos

restaurantes da

orla da Lagoa da

Conceição. O preço

varia da casa dos 30

reais até os três dígitos,

dependendo da época do

ano e da cara do freguês. A

manezinha conquistou súditos

pelo Brasil afora, atraídos, quase

sempre, pelas generosas porções

oferecidas.

É difícil contabilizar quantos

estabelecimentos, entre restaurantes,

bares, botecos, lanchonetes e

quiosques têm na sequência o principal

atrativo. A tradicional costuma servir

duas pessoas, com casquinha de siri de

entrada, seguida por camarão ao alho

e óleo, camarão à milanesa, camarão

ao bafo e, como se não bastasse, peixe

grelhado ao molho de – adivinhe se

puder – camarão. Isso sem falar nos

tradicionais acompanhamentos, como

arroz, pirão e batata frita.

Tudo iria bem, se a lógica da

nossa sequência não contrariasse o

Aurélio. Para ele, se.quên.ci:a é: 1. Ato

ou efeito de seguir. 2. Continuação.

Por aqui, a ideia é bem diferente. Os

camarões ao bafo, à milanesa ou alho

e óleo marcam encontro na mesa no

mesmo horário. Tudo ao mesmo tempo

e agora, sem o mínimo vestígio de

continuação.

A sequência do Aurélio caminha

próxima do que se convencionou

chamar de rodízio. Na carona da

semelhança, alguns restaurantes

(pra quem o Aurélio pouco importa

e a sequência é o que bem entendem)

optaram por rebatizar o prato.

“Rodízio” passou de semelhante

a sinônimo, em uma tentativa de

se aproximar do léxico de alguns

turistas, como os paulistas, por

exemplo, para quem “sequência” soa

estranho.

Há controvérsias. Como a base

de comparação, nesse caso, são os

rodízios de pizzas, massas ou carnes,

imagina-se que a ideia seja: pague

um valor fixo por uma quantia

não-limitada, servida por garçons

indo e vindo. Fazer “rodar” a maior

quantidade de sabores possíveis sobre

a mesa do cliente é o objetivo que dá

sentido ao termo. Ao contrário, no

tal rodízio de camarão, a quantidade

é ditada pelo restaurante. Entre os

donos dos estabelecimentos e os fãs

do prato, comer bem e comer muito

é uma equivalência que beira a

unanimidade.

A quantidade e o preço, em uma

matemática rasa de custo/benefício,

justificam todo o resto do serviço. A

começar pelo atendimento. Como se

sabe, Florianópolis é criticada pela má

prestação de serviços, traduzida no

desleixo dos garçons, no desrespeito

aos clientes e no despreparo dos donos

de restaurante. Na contramão do

oba-oba da temporada, são poucos os

sérios restaurantes que se dedicam a

conquistar o cliente, a vê-lo mais uma

vez à mesa, pedindo o prato favorito.

Mas por R$ 39,90 e muitos camarões,

quem liga?

Poucos se importam com a

casquinha, que de siri tem só o nome.

Com o camarão boiando no óleo,

mirrado que só, com a milanesa

molenga de tão gordurosa. Com a

apresentação lamentável da comida,

com a solitária folhinha de alface

adornando o prato, sem nunca

encontrar um estômago como destino.

Com a demora entre o pedido e o prato

na mesa. Com a comida fria, que é

servida atropelada, toda de uma vez,

sem um ritmo que respeite o tempo do

paladar.

Seja no Ribeirão da Ilha, em

Santo Antônio de Lisboa, na Lagoa

da Conceição, na Barra da Lagoa ou

na Armação, a sequência é sucesso

absoluto. Ultrapassou a ponte, cruzou

estados e hoje já pode ser encontrada

em alguns restaurantes do Rio, de São

Paulo e onde mais sua fama tenha

alcançado. Por aqui cumpre o papel

de legítimo “chama turista”. A ideia

não é condenar o pobre crustáceo,

que é muito gostoso. Quem dera

o mesmo esforço empregado para

empanar tantos camarões fosse usado

para escolher ingredientes de boa

qualidade. Em menor quantidade,

melhor qualidade e sem o amontoado

de todos os camarões ao mesmo tempo

à mesa, o prato poderia ser chamado

de se.quên.ci:a.

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26 G O S T O F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 27 F L O R I A N Ó P O L I S 2 0 1 0 G O S T O

Das mãos da alegre e tímida baiana Maria Madalena Soares saem os acarajés que conquistaram público cativo em

Florianópolis. Madá, como é conhecida, abre as portas da sua casa e, juntamente com as filhas Andréia e Daniela, dá aos sábados ilhéus um sotaque baiano.

Madá deixou Salvador em 1990, quando começou sua história em Florianópolis. A mudança se deu a convite do casal Roberto Marimon e Paula Casagrande, para quem trabalhava como doméstica em Salvador. Foi então que, contrariando a resistência de alguns familiares, veio para a capital catarinense com as duas filhas. “A adaptação em Florianópolis foi difícil, as pessoas são muito diferentes. Foi nesse período complicado que os meus patrões deram a ideia do acarajé. Eles foram meus pais”, relembra Madá, que até hoje trabalha para Roberto e Paula, em casas separadas depois do divórcio deles.

Sem muita experiência com o acarajé, a baiana começou a cozinhar para amigos do Seu Beto antes de montar o tabuleiro na Praça Bento Silvério, na Lagoa da Conceição. Do primeiro acarajé até hoje, foram muitos os lugares onde Madá conquistou clientes e amigos. “Fazer amigos com o acarajé pesou muito na hora de decidir ficar aqui. São gaúchos, baianos, cariocas, paulistas, paranaenses e até estrangeiros”, orgulha-se. Da Bento Silvério, mudou-se para o restaurante do Seu Valtécio, que ficava em frente à praça. Em seguida montou o tabuleiro

ao lado do Via Shopping, ainda na Lagoa. Passou a trabalhar no restaurante Rififi, na Joaquina, mudou-se para o Boteco da Ilha e, finalmente, para o Bar Drakkar, os dois últimos na Lagoa da Conceição.

Foi então que, há três anos, Madá anunciou aos clientes que estavam no bar: “A partir da semana que vem o acarajé vai ser na minha casa”. O boca-a-boca impediu que a clientela ficasse órfã dos acarajés. “Acho que eles vieram atrás do cheiro”, brinca a baiana. A maioria dos frequentadores são amigos ou vão até a casa de Madá, no Rio Tavares, por indicação. “No restaurante trocava de garçom toda hora. Eles não conheciam as pessoas, às vezes não tratavam bem”, relembra. Agora, quem dá conta dos pedidos, que são feitos por telefone ou pessoalmente, são as filhas Andréia e Daniela, que trabalham com Madá todos os sábados.

Andréia conta que sabe da preferência da maioria dos clientes. “Uns pedem com mais pimenta, outros sem. Tem os vegetarianos que não comem o camarão seco, nem o vatapá, que leva camarão também”. Para alguns, o ritual do acarajé de sábado à noite é sagrado. “Acompanho a Madá desde 1995, quando vim de Salvador pra Floripa. Foi amor à primeira vista. Nos apaixonamos e ela me adotou como mãe”, conta Aldelice Braga, a Nega, que não falha um sábado. “Há pouco tempo fui a Salvador e senti saudades do acarajé da Madá. Fui até na Cira, considerada por muitos a melhor do Brasil, mas não é a mesma coisa”, garante Nega.

O que é que Floripa tem?Trabalhando há duas décadas na capital catarinense, Madá recebe clientes e amigos em sua casa, onde serve o acarajé que a põe ao lado de grandes nomes da cozinha baiana

Perfil de chef Madá

Foto: Geison Werner

Na sua cozinha, Madá prepara o típico prato da cozinha baiana

Page 15: Revista Gosto - Edição Florianópolis

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Flávio César Ribeiro é dos clientes mais antigos. Conheceu Madá assim que ela montou o tabuleiro na pracinha da Lagoa. Já levou a baiana para preparar acarajé no bairro Kobrasol, em São José, cidade vizinha à capital. Baiano de Salvador, também faz acarajé em casa, mas não poupa elogios à Madá. “É difícil bater o acarajé dela. O importante na cozinha é a constância. O comprometimento tem que ser o de atingir pelo menos a mesma qualidade do que você já ofereceu. Manter o mesmo nível ou então melhorar. Jamais pode piorar. E a Madá nunca decepcionou”, destaca Flávio.

Para Madá, o segredo é só um: lavar bem o feijão fradinho. De resto, é só seguir a receita que ela

aprendeu em um livro antigo de culinária baiana, que hoje não precisa mais consultar. De Salvador vem o azeite de dendê, que ela encomenda aos litros. De Florianópolis, o camarão fresquinho do Mercado Público, comprado no dia e secado no forno, em casa. O restante dos ingredientes vem de um fornecedor de São Paulo. O capricho e a dedicação são comprovados na cozinha aberta, que pode ser

vista da sala de sua casa, onde fica grande parte dos clientes e amigos.

Durante o inverno o movimento cai bastante, já que as pessoas ficam mais preguiçosas para sair de casa, segundo a baiana. No verão, chega a vender de 50 a 100 acarajés por noite. Tamanha imprecisão tem justificativa. “Comida de santo não se conta”, explica Andréia, a filha mais nova. São as divindades que protegem a baiana. Sem esquecer a tradição, Madá não deixa de lado a bata, a saia rodada e o torço, que envolve a cabeça, todos brancos. O colar completa a indumentária, com contas coloridas que representam diversos Orixás.

Depois de conquistar tanta gente, ainda resta um sonho. Montar o próprio negócio é um desafio para a baiana que construiu a própria casa com a

renda do acarajé e do trabalho na casa dos patrões. “Precisa de muito investimento, contratar outras pessoas e muita dedicação. Eu e as minhas filhas, durante a semana, já temos nosso trabalho. Quem sabe mais pra frente?”, divaga Madá. Enquanto o sonho não se realiza, as filas se formam à porta da casa. “Me sinto muito feliz. Chamamos isso aqui de encontro de amigos”.

Acarajé da Madá

Serve 10 porções 1kg de feijão fradinho 250 g de cebola ralada 1 litro de azeite de dendê sal a gosto

1. Deixe o feijão de molho, na véspera. 2. No dia seguinte, tire toda a casca de feijão, lavando por várias vezes até sair toda a casca. É importante que fiquem bem limpos. 3. Passe o feijão na peça lisa da máquina de moer carne, para que a massa fique lisa e uniforme. 4. Junte a cebola e o sal e misture bem, batendo por cerca de 10 minutos. 5. Em uma panela funda, aqueça o azeite de dendê. 6. Com a ajuda de duas colheres, molde os bolinhos e frite-os. Eles devem subir rapidamente. 7. Depois de fritos, retire com escumadeira. Acompanhe a seguir como se faz o vatapá, que recheia o bolo de feijão.

Vatapá ½ kg de pão 1 galinha média 1 coco de 1kg 2 cebolas grandes

150g de castanha de caju 250g de camarão cebolinha, sal, tomate, pimenta e salsinha a gosto 2 xícaras de azeite de dendê

1. Rale o coco e separe o leite grosso do leite fino. 2. Coloque o pão de molho em água fria e escorra. Leve-o ao liquidificador, junto com o leite fino. 3. Passe os camarões secos, juntamente com as castanhas de caju na máquina de moer carne. 4. Junte essa mistura à massa de pão com os temperos, a pimenta e o sal e 1 xícara de azeite de dendê. 5. Leve-os ao fogo brando, mexendo sempre. 6. Quando cozido, junte a galinha desfiada e leve ao fogo novamente. 7. Junte o restante do azeite de dendê e o leite grosso. Espere ferver. Está pronto para rechear o acarajé.

Corte o acarajé ao meio, recheie com vatapá, camarões secos e tomates sem pele e sem semente cortados em pequenos cubos.

Acrescente pimenta malagueta a gosto. A gosto do freguês.

O capricho e a dedicação são comprovados na cozinha aberta, que pode ser vista da sala de sua casa, onde fica grande parte dos clientes e amigos

Madá prepara o acarajé na pracinha da Lagoa da Conceição, lugar onde começou sua história na ilha, em 1990

A baiana ensina qual a temperatura certa do azeite, o formato e o tamanho do acarajé

Perfil de chef Madá

Fotos: Geison WernerFoto: Arquivo/Madá

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Raspado do fundo do tacho é melhor ainda. Quentinho, com açúcar no ponto, gosto levemente queimado, com pedaços de coco

fresco que em nada lembram o ranço artificial dos doces industrializados. Há anos a produção deixou de ser artesanal, mas o gosto de feito em casa é o principal diferencial do Doce de Coco em Tabletes Dalva, que muita gente chama de bala. A tradição começou em 1942 e se aproxima do septuagenário mantendo a mesma receita: coco, açúcar, água e xarope de milho.

Seu Alberto Henrique Schütz apostou na indústria do doce em uma época em que Florianópolis contava com pouco mais de 40 mil habitantes, dez vezes menos que a população atual. A Almirante Lamego nem de longe lembrava a rua ladeada por lojas e com fluxo intenso de automóveis e pedestres que se vê hoje. Foi ali que o velho Alberto montou a fábrica de doces que carregava no nome uma homenagem à filha Dalva. Aposentou-se somente em 1990, quando o filho Alberto Schütz Júnior, o Nêne, assumiu o comando. Ele já trabalhava na fábrica desde 1962, quando tinha 19 anos. Viu de perto muita lenha queimar para dar o ponto do doce na caldeira, observou o trabalho para cortar a bala a mão e acompanhou o grupo de mulheres que passava de segunda a sábado embalando um sem fim de tabletes Dalva.

Nêne acompanhou o crescimento de muitos dos alunos do Colégio Catarinense, um dos mais tradicionais da capital catarinense. Na hora do recreio, o rumo era certo: a fábrica do doce de coco, que exalava o cheiro de

Com açúcar, coco e afeto

F O T O S G E I S O N W E R N E R

A receita simples se mantém há sete décadas e está na terceira geração da família Schütz

longe. “Eu era pequena e me lembro de irmos quase todos os dias pra pegar bala. Como o meu avô era o dono, pra mim ficava mais fácil”, relembra Gisele Schütz, neta do fundador e sobrinha de Nêne.

A produção, na época, era de 400 a 500 kg por dia, somente de tabletes Dalva. Isso porque o mercado de atuação de Nêne era muito mais amplo. Incluía a ainda sobrevivente bala queimada e os extintos pirulitos psicodélicos, chupetas e balas azedinhas, vendidos no atacado e no varejo. Mas o verdadeiro frisson ficava por conta da bala de coco, a preferida nas festas juninas. Conquistou fãs com a mesma embalagem vermelha e amarela que se vê hoje. De lá pra cá, só o material mudou: o papel deu lugar ao plástico, em nome da praticidade.

Mas não foi só o material da embalagem que mudou. O comando da fábrica veio acompanhado de novos desafios. Nêne percebeu que era impossível se manter no mercado sem abandonar a produção completamente manual. A primeira máquina a entrar pela porta da fábrica foi justamente a de embalar os tabletes. É utilizada até hoje, assim como todo o restante do maquinário adquirido na época. “Esse equipamento substitui o trabalho de dez mulheres que antes embalavam os doces”, observa Israel Izadinho Florindo, gerente de produção e funcionário mais antigo, na fábrica há 29 anos.

Israel acompanhou o crescimento e a modernização do negócio, assim como da cidade. Em uma Florianópolis com uma população de 340 mil habitantes não havia mais espaço para uma fábrica em pleno centro da capital. A pressão da Vigilância Sanitária e, principalmente, dos vizinhos, incomodados com o barulho e com a fumaça, foram os responsáveis pela mudança do empreendimento para Biguaçu, na Grande Florianópolis, em 2001.

Assumia então a terceira geração da família. Augusto Schütz, neto do velho Alberto e filho de Nêne,

estudou no Catarinense e cresceu em meio a cocos, embalagens de doces e quilos e quilos de açúcar. É ele o responsável por fazer sair do galpão de 130m2 os 300 kg diários de tabletes Dalva e bala queimada. A capacidade de produção de 700 kg por dia não é aproveitada porque o negócio hoje só atende clientes que fazem pedidos por telefone. “Não valia mais a pena trabalhar com distribuidores. Eles não conservavam os carros e isso era um prejuízo para nós”, lamenta Israel.

A distribuição que antes era feita também no Sul do estado, hoje se restringe à Grande Florianópolis. Augusto é quem faz as entregas e se relaciona com os clientes. Israel assume o comando da produção, que conta com quatro funcionários e diversas máquinas: uma para triturar o coco, outra para apurar o doce (hoje com gás central), a terceira para prensar e cortar os tabletes uniformemente com 3,5cm e uma última para embalar. Com quadro de funcionários reduzido e demanda baixa, o jeito é revezar a produção. Um dia é o da bala queimada, o outro é o do tablete Dalva.

A aproximação do inverno anima o empresário. “Os pedidos aumentam em 50% nessa época, principalmente em junho, por conta das festas”, analisa Augusto. É quando o telefone mais toca. Mas os pedidos não se resumem às quermesses juninas. É comum receberem chamadas de diversas regiões do país, procurando pelo doce. “Já atendi gente de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul. Mas não temos como enviar o produto por conta dos custos com a postagem”, conta Israel.

São turistas que visitam Florianópolis e levam daqui mais que a foto da ponte Hercílio Luz. Carregam a lembrança da bala de coco que atravessou três gerações e marcou a infância de muitos manés. Alguns dos visitantes passam na fábrica para se municiar de um carregamento estratégico. Pelo menos até a próxima incursão à capital.

Foto: Geison Werner

Page 17: Revista Gosto - Edição Florianópolis

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