revista de linguagens do colégio pedro ii. ano 3. n. 2

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Revista de Linguagens do Colégio Pedro II. Ano 3. N. 2. ISSN: 2595-5349. p. 104-121 Travessias entre modalidades: a transdução de um conto para vídeo de alunos Maria Das Graças Lino Labrunie Resumo: Este trabalho é parte dos estudos de uma pesquisa de doutorado que analisou as práticas de produção de vídeos por alunos da Educação Básica. Com base no conceito de multimodalidade de Kress e Van Leeuwen (2006), partimos do pressuposto de que os vídeos são enunciados digitalizados que projetam seus sentidos através de uma multimodalidade discursiva, ou seja, incorporam diferentes modos de representação e de produção semiótica, como signos alfabéticos, imagem, movimento e, às vezes, som e música. Cada modalidade tem sua materialidade e seus princípios organizacionais únicos, que envolvem elementos em convenções que não têm significados equivalentes. Para se fazer a mudança de uma modalidade para outra, envolve-se num processo contínuo de transformação de significado chamado por Kress (2006) de “transdução”. Na escola onde foi feita a pesquisa, os docentes de Língua Portuguesa pedem que seus alunos criem vídeos a partir de textos ou livros lidos em sala de aula (para desenvolver diferentes linguagens e habilidades em seus alunos), o que permite, então, verificar o processo de transdução na prática. O objetivo deste trabalho é discutir de que modo os alunos “reconfiguraram” e “reformataram” o material semiótico de acordo com as affordances de cada modalidade. Tomamos um vídeo ilustrativo e fizemos entrevistas com a professora e com os alunos-autores para compreender de que modo eles deram sentido ao que produziram. Neste artigo, trazemos as reflexões iniciais feitas sobre a forma como os alunos realizaram a transdução. Uma análise flutuante do texto e do vídeo permite verificar que as modificações geradas na transdução incluem elementos da cotidianidade dos alunos, seu conhecimento prévio sobre o assunto e as escolhas feitas sobre os aspectos do conto de modo a projetar suas identidades de adolescentes. No caso a ser exibido, os alunos precisaram pesquisar e aprofundar a leitura do conto para fazer as adaptações necessárias de modo a manter sua essência e manifestar o interesse comunicativo dos alunos. Desse modo, os vídeos escolares, mesmo “reproduzindo os “retalhos da opacidade e mesmice” (FRESQUET, 2013, p.100) que nos trazem a cultura do consumo, abrem ricas possibilidades de expressão pessoal dos alunos. Palavras-chave: Produção de vídeos. Transdução. Multimodalidade. INTRODUÇÃO A entrada das tecnologias digitais na escola foi vista por vários educadores como propiciadora de novos paradigmas na pedagogia e na prática criativa: o computador, por causa da possibilidade de tratamento de dados, de acesso à informação e de interação entre as pessoas; o vídeo digital, pela possibilidade de se fazer um trabalho de debates sobre filmes e também de construção de vídeos pelos Maria das Graças Lino Labrunie possui graduação em Comunicação Social pela UFRJ (1988), Complementação Pedagógica pela USU (1986), Especialização em Língua Inglesa pela PUC-Rio (1995), Especialização em Informática Educativa pela UERJ (2002), Mestrado em Educação pela PUC-Rio (2004, com bolsa CNPQ) e Doutorado em Educação pela UNESA (2017). Tem experiência como professora de inglês em ensino fundamental e médio no Colégio Pedro II desde 1995, tendo atuado como coordenadora durante 8 anos. Suas áreas principais são o Ensino de Língua Inglesa, e o uso das tecnologias na escola. Participou durante 2 anos do grupo de pesquisa GRUPEM (Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia) na PUC-RIO. E-mail: [email protected]

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Revista de Linguagens do Colégio Pedro II. Ano 3. N. 2. ISSN: 2595-5349. p. 104-121

Travessias entre modalidades: a

transdução de um conto para vídeo de

alunos

Maria Das Graças Lino Labrunie

Resumo: Este trabalho é parte dos estudos de uma pesquisa de doutorado que analisou as

práticas de produção de vídeos por alunos da Educação Básica. Com base no conceito de

multimodalidade de Kress e Van Leeuwen (2006), partimos do pressuposto de que os vídeos

são enunciados digitalizados que projetam seus sentidos através de uma multimodalidade

discursiva, ou seja, incorporam diferentes modos de representação e de produção semiótica,

como signos alfabéticos, imagem, movimento e, às vezes, som e música. Cada modalidade

tem sua materialidade e seus princípios organizacionais únicos, que envolvem elementos

em convenções que não têm significados equivalentes. Para se fazer a mudança de uma

modalidade para outra, envolve-se num processo contínuo de transformação de significado

chamado por Kress (2006) de “transdução”. Na escola onde foi feita a pesquisa, os docentes

de Língua Portuguesa pedem que seus alunos criem vídeos a partir de textos ou livros lidos

em sala de aula (para desenvolver diferentes linguagens e habilidades em seus alunos), o

que permite, então, verificar o processo de transdução na prática. O objetivo deste trabalho

é discutir de que modo os alunos “reconfiguraram” e “reformataram” o material semiótico de

acordo com as affordances de cada modalidade. Tomamos um vídeo ilustrativo e fizemos

entrevistas com a professora e com os alunos-autores para compreender de que modo eles

deram sentido ao que produziram. Neste artigo, trazemos as reflexões iniciais feitas sobre a

forma como os alunos realizaram a transdução. Uma análise flutuante do texto e do vídeo

permite verificar que as modificações geradas na transdução incluem elementos da

cotidianidade dos alunos, seu conhecimento prévio sobre o assunto e as escolhas feitas sobre

os aspectos do conto de modo a projetar suas identidades de adolescentes. No caso a ser

exibido, os alunos precisaram pesquisar e aprofundar a leitura do conto para fazer as

adaptações necessárias de modo a manter sua essência e manifestar o interesse

comunicativo dos alunos. Desse modo, os vídeos escolares, mesmo “reproduzindo os

“retalhos da opacidade e mesmice” (FRESQUET, 2013, p.100) que nos trazem a cultura do

consumo, abrem ricas possibilidades de expressão pessoal dos alunos.

Palavras-chave: Produção de vídeos. Transdução. Multimodalidade.

INTRODUÇÃO

A entrada das tecnologias digitais na escola foi vista por vários educadores

como propiciadora de novos paradigmas na pedagogia e na prática criativa: o

computador, por causa da possibilidade de tratamento de dados, de acesso à

informação e de interação entre as pessoas; o vídeo digital, pela possibilidade de se

fazer um trabalho de debates sobre filmes e também de construção de vídeos pelos

Maria das Graças Lino Labrunie possui graduação em Comunicação Social pela UFRJ

(1988), Complementação Pedagógica pela USU (1986), Especialização em Língua Inglesa

pela PUC-Rio (1995), Especialização em Informática Educativa pela UERJ

(2002), Mestrado em Educação pela PUC-Rio (2004, com bolsa CNPQ) e Doutorado em

Educação pela UNESA (2017). Tem experiência como professora de inglês em ensino

fundamental e médio no Colégio Pedro II desde 1995, tendo atuado como coordenadora

durante 8 anos. Suas áreas principais são o Ensino de Língua Inglesa, e o

uso das tecnologias na escola. Participou durante 2 anos do grupo de pesquisa

GRUPEM (Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia) na PUC-RIO. E-mail:

[email protected]

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Revista de Linguagens do Colégio Pedro II. Ano 3. N. 2. ISSN: 2595-5349. p. 104-121

estudantes. Na instituição escolar, regida por práticas tradicionais e conservadoras,

as tecnologias digitais acenaram com novas possibilidades e dinâmicas

pedagógicas. Mas será que as práticas com o uso dessas máquinas modificaram os

paradigmas da escola? Dentro desse contexto e desse questionamento é que este

estudo acontece. Ele parte de uma busca pela compreensão de como o vídeo digital

está sendo utilizado na escola, seus ganhos e problemas, a percepção de como os

agentes da instituição usam e avaliam esse instrumento tecnológico. Nesta

pesquisa fazemos uma triangulação entre os vídeos, os docentes e os discentes:

analisamos os vídeos resultantes das atividades, verificamos os objetivos dos

professores e os critérios dos alunos para conduzir o trabalho. Dentro do material

coletado notamos que o que denominamos de “uso do vídeo digital na escola” refere-

se a uma variedade de diferentes atividades, com objetivos diversos e níveis de

demanda de criatividade para os alunos. Elas vão desde a montagem de narrativas

e histórias utilizando imagens baixadas na internet, passando por adaptações de

contos literários para vídeos, até a criação de um vídeo completo (escrita de roteiro,

atuação, edição, cenário, figurinos) tendo alunos como atores.

Neste artigo fazemos uma reflexão focalizando uma dessas atividades: a da

adaptação de contos literários para vídeo. Essa atividade é proposta na disciplina

de Língua Portuguesa por alguns professores na escola onde foi realizada a

pesquisa. Na verdade, é uma prática comum aos professores de português dessa

escola pedir que os alunos elaborem uma peça de teatro sobre o texto lido. Porém,

tal costume vem sendo mudado por influência dos próprios alunos, que acham mais

funcional fazer um vídeo. No caso a ser relatado, a professora de português pediu

que eles fizessem uma peça sobre o conto, mas um grupo decidiu produzir um vídeo.

A professora, a princípio, relutou em autorizar a mudança, mas acabou aceitando e,

por fim, se declarou satisfeita com o resultado. O conto faz parte do livro “Contos de

Taverna”, de Álvares de Azevedo, onde os frequentadores da taverna contam as

histórias de suas vidas. Os alunos escolheram o conto BERTRAM (ver resumo no

apêndice). De acordo com a professora, a leitura do conto faz parte do conteúdo

programático de literatura para a 2ª série de ensino médio, a saber, os autores da

segunda geração romântica brasileira.

Neste estudo, fizemos uma análise prévia do vídeo nos utilizando do

referencial teórico da Semiótica Social, entrevistamos alguns estudantes membros

do grupo autor do vídeo e também a professora de português. Nosso objetivo foi

compreender de que modo os alunos transformaram o conto lido na aula de

português em um vídeo, ou seja, de que modo fizeram a “transdução” de um modo

semiótico para outro.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para a análise do vídeo, nos apoiamos na teoria da Semiótica Social, nos

conceitos de multimodalidade e “transdução” de Kress e Van Leeuwen (2006).

A multimodalidade é entendida como conjunto de vários modos de

linguagem que estão presentes nas mensagens comunicativas e que interagem na

construção dos significados da comunicação social. Nessa visão de uso de

linguagens, “os modos não funcionam separadamente, funcionam em conjunto,

sendo que cada modo contribui de acordo com a sua capacidade de fazer

significados”. (HEMAIS, 2010, p.1). Em outras palavras, a multimodalidade

procura entender a articulação dos diferentes modos semióticos que são usados nas

práticas sociais com o intuito de comunicar.

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De acordo com Kress (2006), quando uma pessoa quer se comunicar, ela é

motivada por um interesse em construir um sentido na sua comunicação. Além

disso, para atingir seus objetivos, ela tem escolhas dentre vários recursos e

ferramentas que existem, como a língua escrita, a imagem, a cor, o suporte da

comunicação. Então, ela escolhe a modalidade que tornará sua comunicação a mais

adequada possível. As escolhas de como os recursos são combinados mostram os

objetivos, a história e os valores do interlocutor.

A exposição das pessoas a textos multimodais aumentou

consideravelmente com a chegada das tecnologias. Na TV, nas telas dos

computadores, na mídia impressa, nos livros didáticos, as imagens proliferam e

geram uma urgência de se estudar de que forma essa modalidade se encarrega de

transmitir as mensagens além da modalidade escrita. Para Kress (2010) é

impossível interpretar textos focalizando exclusivamente a linguagem escrita, uma

vez que consiste em apenas um dos modos dos elementos representativos de um

texto. Para ele, o texto é sempre multimodal e por isso deve ser lido a partir da

combinação de todos os modos semióticos nele dispostos. “Como toda imagem

possui um significado, já não basta apenas identificá-la, mas ler e interpretá-la

para compreender as implicações discursivas” (SANTOS, Z., 2011, p.3). Para esse

empreendimento, Kress e Van Leeuwen (2006) criaram a teoria da Semiótica

Social, a qual envolve a descrição de recursos semióticos com o objetivo de entender

como as coisas que as pessoas dizem e fazem com as imagens, podem ser

interpretadas. Ela trabalha na análise dos significados que formam o texto no seu

intento de comunicar. Nesse sentido, a semiótica social focaliza os processos da

produção e reprodução, recepção e circulação dos significados, compreendendo-os

como fenômenos inerentemente sociais em suas origens, funções, contextos e

efeitos. Distancia-se da semiótica estruturalista, que compreende os sistemas

semióticos como códigos ou conjunto de regras que conectam signos e significados.

Dessa maneira, uma vez que uma ou mais pessoas dominem os mesmos códigos,

elas são capazes de comunicar os mesmos significados e compreender umas às

outras. De acordo com Jewitt e Ohama (2001), para a semiótica estruturalista, não

é importante quem fez os códigos ou como eles surgiram. Algumas formas de

comunicação visual funcionam desta forma, como os códigos de trânsito, por

exemplo. Mas como interpretar desenhos de crianças ou formas de arte moderna?

Nesses casos, não há códigos compartilhados. As imagens são criadas a partir de

recursos semióticos que a cultura ocidental desenvolveu através dos séculos, mas a

forma como a criança ou o artista as usam não se sujeita ao mesmo conjunto de

regras que o código de trânsito. Esses desenhos (ou pinturas, vídeos, etc.) são

criados a partir do interesse do criador, com o objetivo de comunicar alguma coisa.

Por isso, a sua criação deve ser vista associada a interesses de pessoas com suas

histórias culturais, sociais e psicológicas. É dessa maneira que a semiótica social

entende os sistemas semióticos: como conjuntos de recursos disponibilizados pela

cultura e que são apropriados por pessoas com uma motivação para criá-los.

Os vídeos feitos pelos alunos têm, a princípio, uma motivação externa, que

lhe é dada pelo professor. No entanto, na hora de confeccionar o vídeo (considerado

aqui como um texto multimodal), eles podem empregar diversos recursos semióticos

relativos a seus próprios interesses para comunicar suas ideias da forma mais

compreensível possível. Há casos em que os alunos partem de um texto escrito para

transformá-lo num vídeo, ou seja, num suporte comunicativo que utiliza a

linguagem visual, gestual e musical. Esse deslocamento de uma linguagem (ou

modalidade) para outra aciona um processo incessante de “tradução” entre uma

variedade de modos semióticos (Kress, 2006), denominado como “transdução”. Esse

conceito descreve a estrutura de sistema de signos e suas convenções – palavra

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escrita, desenho, dança, música, web design, produção de vídeo – e as conexões

entre eles para criar sentido na experiência humana. É um processo no qual

alguma coisa, que é configurada em uma ou mais modalidades, é reconfigurada de

acordo com as possibilidades de uma modalidade diferente. Lima (2007), diz que “os

diversos modos de linguagem não traduzem o mesmo significado de uma mesma

maneira (ou nem mesmo transmitem o ‘mesmo’ significado)” e que não há apenas

uma “tradução” de um modo de linguagem para outro, mas uma “transdução”

(LIMA, 2007, p.2). Ou seja, “transdução” é um termo usado para denominar o

processo de mudança de um modo semiótico para outro (por exemplo, do verbal

para a imagem, em que o cérebro decodifica simultaneamente a linearidade da

palavra e a espacialidade da imagem) e consequentemente de mudança relativa de

significado.

De acordo com Mills (2011), visto que cada modalidade tem sua

materialidade e seus princípios organizacionais únicos, que envolvem elementos em

convenções que não têm significados equivalentes, a pessoa que tiver que fazer a

mudança de uma modalidade para outra será incentivada a fazer a “transdução”.

É importante enfatizar que, ao fazer a transdução de um modo para outro,

o autor deve fazer escolhas para tornar sua comunicação mais adequada possível

para se fazer entender. Essas escolhas conduzem necessariamente a um

“comprometimento epistemológico” (KRESS, 2010, p.16). Em outras palavras, o

autor assume a responsabilidade pelas mudanças quando fizer o processo de

transdução.

O objetivo deste trabalho é discutir de que modo os alunos

“reconfiguraram” e “reformataram” um conto literário e o reconstruíram em vídeo,

ou seja, como adaptaram o material semiótico de acordo com as affordances1 de

cada modalidade.

Metodologia

A escola onde a pesquisa está sendo realizada é um dos campi de uma

escola pública federal do Rio de Janeiro, de grande porte (8 campi em diferentes

bairros da cidade), fundada em 1837. A escola tem um perfil tradicional, mas

aberta a experiências pedagógicas com o uso de tecnologias. O campus pesquisado

fica num bairro de classe média da zona sul carioca e o perfil socioeconômico dos

alunos é, majoritariamente, de camadas provenientes deste segmento. No entanto,

por se tratar de uma escola pública, possui também alunos de camadas mais

pobres, moradores de comunidades próximas ao colégio.

A partir de conversas com diversos professores, descobrimos quais deles

haviam trabalhado com produção de vídeo com seus alunos e pedimos se poderiam

nos ceder os trabalhos. Soubemos pela professora de português que seus alunos

haviam feito o vídeo sobre o conto e ela gentilmente nos cedeu. A princípio fizemos

uma análise inicial para averiguar os recursos semióticos utilizados pelos alunos

para representar suas ideias. Depois fizemos entrevistas com os professores e com

os alunos-autores para compreender de que modo eles deram sentido ao que

produziram. Nas entrevistas com os alunos, perguntamos o porquê de terem

adotado certas soluções para a adaptação do conto. De acordo com a Semiótica

Social, é importante verificar não apenas o contexto de criação, mas quem cria e

quais são suas concepções, pensamentos e objetivos. Lembramos que o autor de um

texto multimodal é um sujeito que tem uma história, faz parte de uma cultura e

1 O conceito de affordances usado aqui diz respeito às características e usos potenciais de um objeto que

surgem a partir de suas propriedades perceptíveis e sempre em interação com os interesses de um agente.

(KRESS, 2010)

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sociedade, fatores que irão influenciar na sua criação. Neste artigo, apresentaremos

algumas reflexões sobre como os alunos de uma turma de 2ª série de EM de uma

escola pública federal do Rio de Janeiro fizeram a transdução de um dos contos do

livro Contos de Taverna, de Álvares de Azevedo, Bertram, para um vídeo.

Roteiro

Antes de transformarem o conto em vídeo, duas alunas do grupo

escreveram um roteiro para uma peça de teatro, tarefa solicitada pela professora. O

roteiro seria uma espécie de etapa intermediária entre o conto e o vídeo, uma forma

de deixar o texto de Álvares de Azevedo mais “visual” e “dialógico”. As alunas foram

escolhidas para escrever o roteiro porque uma delas diz que gosta muito de escrever

(e pretende ser roteirista) e a outra “tem muita imaginação”. Numa análise

baseada na Semiótica Social, é importante compreender as concepções e crenças

dos autores, pois são esses elementos que fundamentam as escolhas ao fazer a

transdução, por isso decidimos entrevistar as alunas roteiristas. Essas alunas, bem

como os outros componentes do grupo, são majoritariamente adolescentes de 15 a

16 anos, pertencentes às camadas médias e moradores da zona sul do Rio de

Janeiro. São alunas que têm TV por assinatura, Netflix e costumam assistir a

séries americanas. As autoras do roteiro disseram que, ao escrever o texto, tiveram

alguma influência de suas vivências como espectadoras de séries de TV como

“Revenge” e Dexter”2: na série tem, mais ou menos esse tempo de filme que a gente

precisa fazer. Então a gente vê como que o diretor divide. As cenas,

os cortes. Então, isso facilita também na hora de você fazer o seu

roteiro.

Decisões iniciais

A primeira decisão do grupo foi determinar o formato do trabalho: por que

preferiram o vídeo em vez da peça de teatro pedida pela professora? As alunas que

escreveram o roteiro explicaram que estavam com pouco tempo para estudar e para

decorar as falas. E que com o filme “a gente fica com o roteiro do lado, se a gente

esquecer alguma coisa, a gente corta”. Essa fala demonstra que as características e

possibilidades do vídeo (suas affordances) determinaram a escolha do formato do

trabalho pelos alunos. As condições que a produção de um vídeo oferece, de

possibilitar a edição, a repetição das filmagens, o improviso sem o detrimento do

sentido geral, foi um aspecto decisivo para sua escolha em vez da peça de teatro.

Logo depois veio a escrita do roteiro, a etapa intermediária antes de o vídeo

ser efetivamente posto em prática. Nesse lugar intermediário, as concepções das

autoras sobre a história e sobre os personagens são importantes para compreender

como elas nortearam a escrita do roteiro.

Em primeiro lugar, elas transformaram o conto, que não tem diálogos, num

relato mais “visual” e dialógico. Além disso, no texto escolhido, o vocabulário e as

referências que o personagem Bertram faz remetem à literatura antiga, muitas

vezes inacessíveis aos alunos de hoje (por exemplo: “Entre aquele homem brutal e

valente, rei bravio ao alto mar, esposado, como os Doges de Veneza ao Adriático”).

Apesar das dificuldades, as alunas roteiristas tomaram algumas decisões

importantes para fazer sua escrita: uma delas foi determinar um público-alvo

imaginário, outra foi tornar o conto mais leve e descontraído e, ainda,

manter a época em que a história se deu no vídeo.

2 Ambas são séries de canais a cabo de TV que tratam de temas como vingança e assassinatos em série.

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Concepções que influíram nas adaptações

A linguagem

De acordo com elas, o vocabulário e as palavras do conto eram

“complicadas e o conto, difícil de interpretar”. Por isso, ao escrever o roteiro,

estabeleceram que queriam criar uma história de modo que crianças de 6º ou 7º ano

pudessem entender. A imagem de crianças foi evocada por elas apenas para terem

uma referência de pessoas com menor compreensão linguística para poder

direcionar a linguagem do roteiro. Devido a essa decisão, elas o escreveram

focalizando apenas a sequência cronológica de fatos da vida do personagem do

conto, suprimindo toda a cena inicial, a cena da taverna. Na introdução do conto

(tabela 1), o personagem Bertram introduz seu relato, indicando um tom obscuro,

com alusão à morte, o que feria a intenção das alunas de escrever para crianças:

“Um outro conviva se levantou.

Era uma cabeça ruiva, uma tez branca, uma daquelas criaturas

fleumáticas que não hesitarão ao tropeçar num cadáver para ter mão de um fim.

Esvaziou o copo cheio de vinho, e com a barba nas mãos alvas, com os olhos

de verde-mar fixos, falou:”

Tabela 1 – introdução do conto

Além do público-alvo, outro motivo que determinou a exclusão da cena

inicial foi que, de acordo com elas, o conto era longo e elas queriam torná-lo mais

leve, e, por isso, como a cena alongava a história e era sombria, não cabia em seus

objetivos. Desse modo, para elas, a parte da taverna era “desnecessária”. Outra

explicação dada foi que “queriam já saber o final”.

Em nossa pesquisa, tem sido recorrente na fala dos alunos dessa faixa

etária que eles preferem séries a filmes porque as histórias são mais rápidas,

apresentam um desfecho que demanda menos tempo de atenção e, a cada episódio,

trazem surpresas. Para eles, o filme dura tempo demais. Por isso, nos

questionamos se essa ansiedade de saber logo o final não teria a ver com um ritmo

impaciente na apreensão de informações.

A época

Mesmo adaptando a linguagem, elas tiveram a preocupação em retratar a

época do conto (século XIX) através da manutenção de algumas palavras e

expressões antigas do conto (por exemplo, Bertram: ...Eis aí quem eu sou, se eu

quisesse contar longas histórias de minha vida, suas vigílias correriam breves

demais... – tabela 4) e também através da inserção de um aspecto cultural da

época: um pai severo. Em dois momentos diferentes da história nos diálogos, as

autoras mencionaram um pai que decide sobre a vida das filhas de forma

autoritária. Esse pai não existe no conto. Quando questionamos às autoras porque

o incluíram, elas replicaram que imaginavam que uma moça daquela época devia

ter um pai que determinava seu destino. Essa adaptação foi feita a partir de seu

conhecimento da época pelo que elas já tinham lido em livros e assistido em filmes.

Ou seja, as roteiristas fizeram uso de suas experiências culturais e pessoais para

gerar um texto mais adequado para interagir conto de Álvares de Azevedo.

Podemos ver na tabela 2 os dois momentos da menção ao pai no roteiro.

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Conto Roteiro

EX. 1

Amei muito essa moça,

chamava-se Ângela. Quando eu estava

decidido a casar-me com ela, quando

após das longas noites perdidas ao

relento a espreitar-lhe da sombra um

aceno, um adeus, uma flor, quando

após tanto desejo e tanta esperança eu

sorvi-lhe o primeiro beijo, tive de partir

da Espanha para Dinamarca onde me

chamava meu pai.

Foi uma noite de soluços e

lágrimas, de choros e de esperanças, de

beijos e promessas, de amor, de

voluptuosidade no presente e de

sonhos no futuro... Parti. Dois anos

depois foi que voltei.

(Bertram e Ângela no palco,

luzes acesas, árvores em volta, fim de

tarde)

Ângela (chorando): Por favor,

Bertram, eu lhe imploro, não vá, não me

deixe sozinha.

Bertram: Juro por tudo que amo

que não quero ir. Mas não posso fugir

dessa viagem, meu pai precisa de mim,

não posso abandoná-lo em seus últimos

momentos.

Ângela: E o que devo dizer ao

meu pai? Nos casaríamos daqui a dois

meses! Ele irá te caçar na Dinamarca,

irá até o inferno se for preciso.

Bertram: Diga a ele que volto, é

só isso que preciso, que você me espere.

Me prometa isso.

Ângela (chorando): Tudo bem,

eu entendo, você precisa ir, precisa se

despedir de seu pai. Se pudesse iria com

você, mas seria apenas mais um motivo

para meu pai não aprovar nosso

casamento.

(Bertram beija Ângela e seca

suas lágrimas.)

Bertram: Eu voltarei. Adeus,

Ângela.

Ângela: Adeus, Bertram.

(Bertram sai do palco e Ângela

cai ajoelhada, ainda chorando. As luzes

se apagam.)

EX. 2

O comandante trazia a bordo

uma bela moça. Criatura pálida,

parecera a um poeta o anjo da

esperança adormecendo esquecido

entre as ondas. Os marinheiros a

respeitavam: quando pelas noites de

lua ela repousava o braço na amurada

e a face na mão aqueles que passavam

junto dela se descobriam respeitosos.

Nunca ninguém lhe vira olhares de

orgulho, nem lhe ouvira palavras de

cólera: era uma santa. (...)

(...) E ela!?... ela no meio de

sua melancolia, de sua tristeza e sua

palidez, ela sorria às vezes quando

Bertram: E o que lhe aconteceu

para ser tão melancólica e solitária?

Mulher do Comandante: Casar

com um homem que não amo e ser

obrigada a passar o resto dos meus dias

neste navio é motivo suficiente para

você?

Bertram: Foi um casamento

arranjado?

Mulher do Comandante: Sim,

meu pai me obrigou.

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cismava sozinha, mas era um sorrir

tão triste que doía. Coitada!

Tabela 2 – A inserção de uma figura paterna no roteiro para marcar a época do

conto

O tom

Com o objetivo de manter uma correspondência com o texto de Álvares de

Azevedo, e preservar algum tom sombrio, as roteiristas incluíram uma história

paralela num trecho em que um marinheiro conversa com o personagem principal,

a saber, a história de uma mão cortada:

Conto Roteiro

… Pobres doidos! parece que esses

homens amam muito! A bordo ouvi a

muitos marinheiros seus amores singelos:

eram moças loiras da Bretanha e da

Normandia, ou alguma espanhola de

cabelos negros vista ao passar sentada na

praia com sua cesta de flores, ou

adormecida entre os laranjais cheirosos, ou

dançando o fandango lascivo nos bailes ao

relento! Houve-as... junto a mim, muitas

faces ásperas e tostadas ao sol do mar que

se banharam de lágrimas...

Marinheiro: Não posso fazer

nada se aquela moça da Normandia

me encantou. Ela era tão linda, uma

verdadeira guerreira. Já te contei a

história de quando ela cortou a mão

de um homem? Ele devia dinheiro a

ela, e se negou a pagar, e ainda

entrou numa briga com ela. Coitado,

nunca imaginou que o preço ia ser...

Bertram (o interrompe): ...a

sua mão. Sim, você contou essa

história umas cinco vezes desde que

eu cheguei nesse barco.

Marinheiro: Isso porque

ainda não lhe contei a história da

Espanhola, mas essa deixa pra outro

dia.

Quando perguntadas sobre a razão desse elemento, elas disseram que

incluíram a história da mão para “dar um ar mais misterioso e violento, tentar

trazer mais elementos da época, algo mais sombrio”. Acrescentaram, ainda, que as

ideias para o diálogo foram tiradas de filmes e um pouco das suas vivências

também. A inserção da história da mão demonstra que as alunas fizeram uso de

seu conhecimento intuitivo do que pode criar um tom mais lúgubre e sombrio,

revelando que fizeram conexões texto-mundo-texto. O mesmo aconteceu com a

inclusão do elemento paterno. Pode parecer paradoxal que elas quisessem criar um

roteiro mais leve e, no entanto, inserirem uma história nova que segue no sentido

oposto. Isso sugere que o esforço de ser fiel ao sentido e tom do texto também é

bastante forte na hora de fazer a adaptação.

A referência

Outra mudança feita na adaptação do conto para o roteiro foi a passagem

da narração de primeira para a terceira pessoa (tabela 3). Quando o próprio

personagem narra sua história, todos os acontecimentos giram em torno de si

mesmo, sendo, assim, uma narrativa parcial. O leitor é induzido a compartilhar dos

sentimentos vividos pelo personagem, o que dificulta outros pontos de vista da

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história. Normalmente, quando a terceira pessoa é utilizada, há uma espécie de

distanciamento do personagem para o leitor, o narrador intermedia a relação entre

eles. Nesse caso, o narrador é onisciente e sabe de tudo, além de conhecer todos os

aspectos da história e de seus personagens (até mesmo seus sentimentos e

pensamentos). Ao questionar as alunas por que elas fizeram essa mudança, elas

próprias não souberam explicar. No entanto, mesmo mudando algumas coisas do

conto, a professora, quando questionada, avaliou que elas se preocuparam em

“preservar o que há de mais importante em cada passagem.” Notamos que a

adaptação do roteiro oscila entre as intenções das autoras e a necessidade de

manter o que a professora chamou de a “essência” do conto. Como é um trabalho

escolar, sabemos que a pressão do currículo e da autoridade docente estão sempre

pairando sobre as criações dos alunos.

Conto Roteiro

— Sabeis, uma mulher levou-me

a perdição. Foi ela quem me queimou a

fronte nas orgias, e desbotou-me os

lábios no ardor dos vinhos e na moleza

de seus beijos: quem me fez devassar

pálido as longas noites de insônia nas

mesas do jogo, e na doidice dos abraços

convulsos com que ela me apertava o

seio! Foi ela, vós o sabeis, quem fez-me

num dia ter três duelos com meus três

melhores amigos, abrir três túmulos

àqueles que mais me amavam na vida —

e depois, depois sentir-me só e

abandonado no mundo, como a

infanticida que matou o seu filho, ou

aquele Mouro infeliz junto a sua

Desdêmona pálida!

(Narrador no palco escuro,

apenas uma luz clara nele)

Narrador (gritando para a

plateia): Sabe, uma mulher levou-o a

perdição. Foi com ela quem ele teve as

melhores noites de sua vida, quem o

amolecia com beijos, quem o

aconchegava em abraços, foi ela que o

fez passar longas noites de insônia nas

mesas de jogo. Foi ela quem o fez um

dia ter três duelos com seus três

melhores amigos, abrir três túmulos, e

depois, sentir-se só e abandonado no

mundo. Pois bem, vou contar a história

de Bertram e Ângela. Senhores! A quem

tem vinho de Espanha, encheis os copos

– à saúde das Espanholas!

(As luzes se apagam e o

Narrador sai do palco)

Tabela 3 – Mudança da referência do narrador da primeira para a terceira pessoa

A percepção do personagem

Um trecho no qual o protagonista faz um discurso se explicando chamou

nossa atenção para a percepção das autoras sobre ele. Nesse momento, elas se

posicionaram quanto ao personagem e descolaram do texto. Para elas, Bertram era

um sedutor malandro e cruel. “É como se dar um tiro numa pessoa fosse uma coisa

comum para ele, assim, normal, de torturar. Todo dia eu vou matar uma pessoa.

Não que a gente achasse que ele fosse um psicopata, mas ele era sedutor”. “Ele era

o bom moço, mas no fundo, no fundo, ele era cruel, maluco.” Talvez por essa

percepção, elas criaram um discurso “simpático” ao personagem, que, no vídeo, foi

representado por um aluno-ator sorridente (tabela 4).

Conto Roteiro

Eis aí quem eu sou: se quisesse

contar-vos longas histórias do meu viver,

CENA VI

(Itália, século XIX. Bertram

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vossas vigílias correriam breves demais…

Um dia — era na Itália —

saciado de vinho e mulheres eu ia

suicidar-me A noite era escura e eu

chegara só na praia. Subi num rochedo:

daí minha última voz foi uma blasfêmia,

meu último adeus uma maldição, meu

último... digo mal, porque senti-me

erguido nas águas pelo cabelo.

Então na vertigem do afogo o

anelo da vida acordou-se em mim. A

princípio tinha sido uma cegueira, uma

nuvem ante meus olhos, como aos daquele

que labuta na trevas. A sede da vida veio

ardente: apertei aquele que me socorria:

fiz tanto, em uma palavra, que, sem

querê-lo, matei-o. Cansado do esforço

desmaiei...

no centro do palco, é noite, uma praia

com rochas e mar forte.)

Bertram: Queria poder dizer

que sou uma pessoa boa e honesta,

que alguém algum dia poderia sentir

orgulho de mim, que eu não sentisse

vergonha de ser quem eu sou, mas, ao

mesmo tempo, não me arrependo de

nada. Tudo que fiz foi sem um pingo

de arrependimento. Eis aí quem eu

sou, se eu quisesse contar longas

histórias de minha vida, suas vigílias

correriam breves demais.

(Bertram anda até o fim do

palco e pula dele. As luzes se apagam)

Tabela 4 – Bertram fazendo um discurso “simpático”. No trecho sublinhado há um

exemplo de manutenção de um linguajar antigo no roteiro.

Linguagem do vídeo

De acordo com as autoras, a movimentação do corpo e a imagem

concretizada na tela tornam o texto mais leve, ou seja, as próprias affordances do

vídeo transformam o texto em algo mais descontraído e leve: Mas, quando está em um filme, em uma peça, na televisão, é uma

coisa leve, daí você consegue entender com ele falando e a

movimentação do corpo também. Porque no livro você precisa

imaginar. E aí você fica com aqueles bonequinhos de palito. Tipo

assim, sem rosto, sem nada. Sem saber se é magro ou gordo. Sem

saber sei lá o quê. E aí, com a peça e o filme, é mais fácil. Não

precisa imaginar. Você está vendo.

É interessante notar que, para uma das autoras, a imaginação do

espectador é suprimida ao assistir ao vídeo, diferentemente do texto escrito onde a

imaginação é feita de “bonequinhos palito”. Haveria aí um exemplo de simplificação

e precarização da imaginação?

Outra de suas crenças diz respeito à importância da interpretação dos

colegas para comunicar pensamentos e sentimentos. Na verificação da transdução,

constata-se que as roteiristas transferiram algumas sutilezas do texto que descreve

o íntimo do personagem à interpretação dos colegas: “Tinha que ser tudo na

interpretação. Porque não dava para a gente ficar falando: “Ah, eu estou me

sentindo assim,”, porque, na verdade, tecnicamente ele não sentia. Então aquilo era

dentro dele.”

As autoras mencionam, aqui, uma das dificuldades que os produtores de

cinema e audiovisual têm na adaptação de duas linguagens ou modalidades

diferentes. Furtado (2003) diz que há muitas diferenças estéticas/técnicas e éticas

entre a linguagem escrita e a linguagem audiovisual. No campo da estética/técnica,

o autor lembra que A primeira e mais evidente diferença é que na linguagem

audiovisual toda a informação deve ser visível ou audível. Isto

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parece uma obviedade ululante, mas quem já tentou fazer um

roteiro sabe como é difícil evitar a tentação de escrever: “João

acorda e lembra de Maria”. Isso é muito fácil escrever e muito

difícil de filmar. Palavras como pensa, lembra, esquece, sente, quer

ou percebe, presentes em qualquer romance, são proibidas para o

roteirista, que só pode escrever o que é visível.

Para ele, a segunda diferença é que, na leitura de um texto, o leitor

imagina sua própria cena a partir do que o autor informou (no caso da aluna, essa

imaginação é simplificada e representada por bonequinhos palito). No cinema,

cineastas – e os roteiristas – precisam fazer grande parte do trabalho do leitor como

a caracterização do personagem, o cenário. Mesmo que essas caracterizações sejam

respondidas no livro, numa criação audiovisual, o cineasta precisa tomar essas

decisões, adiadas pelo autor. “Lendo, cada leitor cria suas próprias imagens, sem

custos de produção e limites de realidade. É natural que se decepcione quando veja

as imagens criadas pelo cineasta e diga: “gostei mais do livro”.” (FURTADO, 2003)

Ele menciona também a ordem em que as informações são liberadas

no livro e que na narrativa audiovisual é diferente. Às vezes uma cena que vai

sendo lentamente revelada no livro, no filme tem que ser revelada de imediato. E,

ainda, como terceiro aspecto estético diferente, o autor diz que no cinema o tempo

de apreensão das informações é definido exclusivamente pelo autor. No livro, o

leitor tem seu tempo para usufruir a narrativa, imaginar os cenários e os

personagens. No filme este tempo é imposto pelo cineasta e é igual para todos os

espectadores. Esses determinantes do cinema foram percebidos e concretizados

pelas alunas na hora de escrever o roteiro. Por exemplo, na cena em que o autor

descreve a situação em que os personagens ficam no barco à deriva, ele esmiúça as

sensações de desespero dos personagens, devaneia e filosofa. No roteiro e no vídeo,

os diálogos são poucos (“há quantos dias estamos aqui?”), as imagens são

simplificadas, são retratados os três sobreviventes no barco, com expressão triste e

cansada. As cenas são focalizadas nas ações que podem ser visualizadas (quando,

por exemplo, os personagens resolvem tirar na sorte quem vai ser morto para ser

comido pelos demais).

Transdução: do conto para o vídeo

Antes de iniciar a análise da transdução propriamente dita, achamos

pertinente explicitar alguns pressupostos da Semiótica Social para a análise de

filmes. De acordo com Iedema (2004, p.187), a semiótica social mostra que a posição

de leitura da pessoa que analisa vídeos é passível de guiar suas interpretações, mas

vê isso como uma força e não fracasso. A análise da Semiótica Social é centrada na

questão de como o espectador é posicionado pelo vídeo em questão e como ele vê

certos valores sendo promovidos em detrimento de outros. Desse modo, a semiótica

social nega que exista uma lacuna entre o texto e a audiência. A análise é uma

leitura fortemente influenciada pela experiência étnica, social, econômica, de

gênero e conhecimento da pessoa que irá examinar o vídeo. Dessa maneira, o

resultado da análise não é uma verdade universal, mas um ponto de vista. Ainda

segundo esse autor, os filmes só mostram o que é considerado artística ou

logicamente necessário; por isso, ele mostra sempre menos do que aconteceu no

tempo ‘real’ e para isso usa técnicas para comprimir o tempo e espaço. Uma delas é

a continuidade-edição, que tenta suavizar as lacunas que marcam as mudanças de

foco. Desse modo, naturaliza a ‘forma’ da sequência editada. “Enquanto a

continuidade espacial é construída fazendo os campos visuais se sobreporem, a

continuidade temporal é normalmente alcançada mantendo a continuidade sonora

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através dos cortes visuais” (IEDEMA, 2004, p.187) A semiótica social atenta para

essas técnicas de modo a apontar o que foi incluído na edição e para mostrar o que

foi deixado de lado. Essa teoria também se interessa pelas razões sobre as escolhas

que os produtores de filme e TV fazem em relação aos campos socioculturais que

eles decidem focar.

Numa análise da transdução, como o que existe é uma releitura de um

conto já escrito por outro autor, essas escolhas não dizem tanto respeito ao foco

sociocultural a adotar, mas sim às adaptações necessárias para manter a

equivalência da materialidade de um campo semiótico para outro.

Já mencionamos que, ao compor o roteiro, algumas soluções para a

adaptação do conto já haviam sido oferecidas pelas alunas-roteiristas: a mudança

do vocabulário com o objetivo de facilitar a compreensão do público-alvo, a inclusão

ou exclusão de alguns elementos para adaptar o tom do conto e torná-lo mais leve

mas também mais condizente ao tom do texto.

Mas o que especificamente foi feito na transdução?

Entrevistamos a aluna-diretora para compreender de que modo ela pensou

a realização do roteiro. Essa aluna tem um canal no Youtube e alguma experiência

com edição e filmagem e por isso foi escolhida para dirigir o vídeo. Uma de suas

características é que, quando ela assiste a um filme, ela se interessa mais pela

técnica do cinema e que isso chama mais sua atenção do que o conteúdo (deu como

exemplo o filme Birdman, que foi realizado sem cortes e isso a fascinou). De

qualquer forma, em sua entrevista, soubemos que ela trabalha a parte técnica

intuitivamente, se baseando na sua experiência com o Youtube e observação de

filmes. Quando questionada sobre o que ela achou sobre a supressão da cena da

taverna no roteiro, ela disse que “normalmente a gente faz o que cabe a gente”,

revelando a divisão de tarefas no grupo e a não integração dos alunos em todas as

etapas da criação. No entanto, dentre o grupo que atuou e participou das filmagens,

a aluna-diretora disse que as decisões eram tomadas em conjunto e que um ajudava

o outro. Quanto à designação de papéis, o ator principal que fez o papel de Bertram

foi escolhido porque “consegue decorar falas muito rápido”. Os outros foram

alocados pela própria vontade deles. Cada um escolheu qual personagem queria

fazer.

Analisamos alguns elementos do vídeo como a) as telas de transição e o

narrador; b) o enquadramento/efeitos especiais, c) o papel da música e sonorização

em cenas importantes da história; d) os cenários e figurinos, para compreender

como os alunos solucionaram visualmente, sonoramente e dramaticamente o texto

escrito.

a) As telas de transição, sempre pretas com letras brancas (figuras 1 e 2),

serviram para mostrar a passagem do tempo e para suprir a falta de cenário. Como

o tempo para fazer o vídeo era curto, os estudantes optaram em dividir o tempo

histórico com a introdução de algumas telas. Nesse caso, a solução das telas foi

motivada pelo pouco tempo disponível. Algo similar ocorreu com a narração: “eu

lembro que tinha alguma cena do conto que a gente não tinha como atuar, não

tinha como explicar. E pulava um bom tempo. E aí acontecia isso, acontecia aquilo

e aí a gente falou: “Ah, vamos narrar”. A função da narração e das telas de

transição foi também para reduzir o tempo do vídeo e para não ficar cansativo.

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Figuras 1 e 2 – telas de transição

b) Enquadrar é decidir o que faz parte do filme em cada momento de sua

realização. Enquadrar também é determinar o modo como o espectador perceberá o

mundo que está sendo criado pelo filme3. De acordo com Fresquet (2014, p.185),

“Enquadrar confere uma série de atos de escolha, disposição e ataque que, reunidos

em um único momento, materializam um recorte do que se vê e do que se quer dar

a ver.” Observamos que os alunos usaram o enquadramento médio4 na maior parte

do vídeo e alguns poucos closes5. Estes apareciam quando havia uma cena mais

dramática e vinham acompanhados de alguma música. A aluna-diretora disse que

as mudanças de enquadramento surgiram para dar mais dinamismo ao vídeo, mas

que foram feitos por tentativa e repetição. Se estivesse bom, eles mantinham; se

não, mudavam. Não houve muita reflexão sobre o que queriam deixar de dentro e

de fora da cena enquadrada. Os alunos usaram sua experiência e intuição para

definir qual seria o melhor enquadramento para cada cena. Da mesma forma,

intuitivamente, usaram dois efeitos especiais, a câmera lenta e a repetição da

sequência em alguns momentos dramáticos – como a morte do marinheiro em

batalha e os pés de Bertram quando foi se suicidar. O objetivo desse uso foi

provocar força dramática às cenas.

c) A sonorização foi usada principalmente na cena da batalha entre os

navios. Álvares de Azevedo faz uma descrição bem detalhada da batalha, mas,

devido às restrições da modalidade fílmica, já mencionadas acima – que apresenta

dificuldades para o que acontece no íntimo do personagem – os alunos resolveram o

problema caracterizando a guerra com seu ícone principal: as armas. A atuação e a

sonorização (som de tiros) também foram importantes para dar o tom de tensão e

nervosismo. Ou seja, no processo de “transduzir” conteúdo semiótico expresso em

palavras para imagens em movimento na tela, os alunos se adaptaram às

affordances e limitações da mídia fílmica, estabelecendo objetos para caracterizar

visualmente a cena do conto e imitar a ambiência da história (tabela 5).

Quanto às músicas, foram baixadas da internet e surgiam em cenas de

suspense e de amor. De acordo com a diretora, a música “deixa o vídeo menos

monótono e antecipa o que vai acontecer”. Eles usaram três músicas que se

repetiam no vídeo nos momentos tensos e nos momentos tristes.

3 (http://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-planos-e-angulos/) 4 No enquadramento médio, a câmera está a uma distância média do objeto, de modo que ele ocupa uma

parte considerável do ambiente, mas ainda tem espaço à sua volta. 5 No close, a câmera está bem próxima do objeto, de modo que ele ocupa quase todo o cenário, sem

deixar grandes espaços à sua volta.

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Roteiro Vídeo

CENA III

(Meses depois. Bertram e a

mulher do comandante dormem no

chão de um dos cômodos do navio.

Escutam o barulho de tiros e canhões e

acordam assustados.)

Mulher do Comandante

(assustada): O que e isso? Que

barulhos são esses?

Bertram: São tiros, estamos

sendo atacados!

(Entram o Comandante e

marinheiro armados no cômodo.)

Comandante (irritado): O que

faz aqui mulher? Não deveria estar no

seu quarto?

Mulher do Comandante

(nervosa): Vim buscar ajuda quando

escutei os barulhos, o quarto de

Bertram era o mais próximo do meu.

Marinheiro: Não temos tempo

para isso. O navio inimigo está

atacando cada vez mais, malditos

piratas!

Comandante (ainda irritado):

Vamos, pegue sua arma, Bertram, e

você, se esconda o mais rápido possível.

(Bertram, o Comandante e os

marinheiros começam a atirar na

direção do navio pirata. Os tiros

aumentam cada vez mais. Um dos

marinheiros leva um tiro e cai

sangrando.)

Comandante (gritando):

Atirem mais rápido! Eles estão em

maior número!

(Os tiros atingiram o resto dos

marinheiros enquanto Bertram e o

Comandante davam os últimos tiros da

batalha.)

Tabela 5 – As armas e os sons de tiros

d) A época em que acontece a história foi retratada, visualmente, através

do figurino. Um figurino simplificado com o uso de ícones representativos de uma

época: o suspensório e chapéu no ator principal, o coque e xale na primeira mulher

pela qual Bertram se apaixona. O figurino também foi a solução apresentada para

representar a profissão do comandante do navio. Ele estava sempre com o quepe,

outro ícone que ajuda o espectador a imediatamente detectar seu papel e posição.

(Figuras 3 e 4)

Quanto ao cenário, os alunos planejaram previamente e se organizaram

onde iriam filmar. Eles demonstraram alguma preocupação em adequar os locais à

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época (como esconder as tomadas elétricas do campo de visão), se dirigiram à praia

para filmar as cenas do mar. Mas nem sempre tiveram a cautela de esconder as

referências modernas (os prédios da praia de Copacabana aparecem). De qualquer

modo, houve a compreensão de que a cenografia é um elemento importante para se

contar uma história em vídeo. A partir da cena da batalha até o fim, as filmagens

foram feitas na praia. Lá os alunos encontraram barquinhos de pescadores e

pagaram ao dono dos barcos para os usarem enquanto filmavam.

Constatamos que a transdução envolveu um processo de continuamente

antecipar, avaliar e revisar as intenções enquanto adequavam os significados

através das modalidades. Nos exemplos acima, os alunos tiveram que planejar os

figurinos e cenários para manter a equivalência com o conto. As cenas finais do

vídeo acontecem no barco e na praia, e a dramatização dos alunos é um elemento

fundamental nessa parte onde há mais ação (figuras 5 e 6).

Figuras 3 e 4 – As roupas imitando a época e o quepe para determinar a

profissão

Figuras 5 e 6 – A importância da interpretação na parte mais dramática

Outras observações

Um aspecto interessante que surgiu na entrevista com as alunas

roteiristas foi a exteriorização da vontade de ter cenas engraçadas no vídeo. Uma

das alunas falou: “É que até ficou um pouco engraçado. Sabe? Tinha umas cenas

engraçadas”. Uma história como esta de Álvares de Azevedo não tem cenas

engraçadas, apenas tragédias, violência e drama. No entanto, a cena da tentativa

de suicídio de Bertram, para elas, ficou engraçada porque era um afogamento no

mar, mas, como eles não podiam ir ao mar naquele momento, o aluno-ator se jogou

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de roupa numa piscina, o que deve ter gerado risos entre seus colegas na hora da

exibição (figura 7). Nesse ponto, queremos apontar para um outro fator que parece

definir e determinar alguns aspectos na hora de fazer a transdução pelos

adolescentes na escola: a preocupação com os colegas-espectadores. O desejo do

grupo de fazer um trabalho descontraído e engraçado decorre também do fato de

que sabem que passarão pelo crivo e crítica de seus pares. Notamos, em nossa

pesquisa, que os alunos tendem a fazer algumas cenas engraçadas para que seu

trabalho seja popular e provoque o riso entre os colegas-espectadores (como o

making-off e erros de gravação no fim). Quando esse trabalho inclui atuação e a

exibição da própria imagem dos alunos, desconfiamos que há um certo

constrangimento que é resolvido através do humor. Como o conto Bertram não

apresenta cenas cômicas, os alunos as inserem sutilmente, como foi o caso do aluno

se jogando de roupa na piscina. Desse modo, inventam conexões entre palavra e

imagem móvel criando novos significados através de conexões que não existiam a

priori. Isso ilustra o potencial da transdução.

Figura 7 – Aluno (Bertram) se atirando de roupa na piscina/mar

Considerações finais

A disponibilidade crescente das tecnologias digitais gera novas

possibilidades para a produção textual em diferentes modalidades e

consequentemente do emprego do processo de transdução em composições de

jovens.

A multiplicidade de significados a que os adolescentes são expostos

demanda que eles aprendam a fazer a transdução entre as modalidades de forma

flexível. A transdução é fundamental para o papel cada vez mais importante das

tecnologias digitais na comunicação hoje, requerendo o remodelamento do

significado através do contexto e plano de expressão de múltiplas estruturas

semióticas. Este artigo demonstrou que este processo sofre a influência: a) da

intenção dos autores, b) de suas experiências culturais, c) de suas concepções e

crenças sobre os diversos elementos envolvidos, d) das affordances do meio

tecnológico, e) das limitações do tempo, do cenário, do conhecimento e da atuação

dos personagens e f) das pressões escolares, ou seja, do professor e do currículo.

Mesmo num caso restrito de geração de conhecimento, tal como recontar um conto

através de um vídeo digital, algum grau de transformação é detectado. Isso

acontece porque cada sistema de signos tem princípios organizacionais

particulares, que envolvem elementos e convenções que não têm significados

equivalentes. Para manter a equivalência de sentidos entre as modalidades, os

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alunos, em sua criação fílmica, transformam um texto escrito por outro autor em

algo mais próprio deles, porque incluem suas subjetividades, mas mantêm a

correspondência com a escrita do autor. No caso relatado neste artigo, mostramos

como os alunos procuraram manter a equivalência linguística, temática, temporal e

estilística com o conto. Verificamos que no contexto da produção fílmica, a

transdução foi caracterizada como um processo de contínua adaptação de intenções

para representar o conhecimento em resposta às possibilidades e limitações dos

sistemas produtores de signos e seus potenciais de significado. A busca por

semelhanças através de modalidades diferentes, que não tem uma correspondência

um-a-um, criou “anormalidades” que deram lugar a um pensamento gerador e de

resolução de problemas enquanto novas conexões eram feitas entre os planos de

expressão pelos alunos, como quando fizeram a exclusão e inclusão de alguns

elementos para fazer valer seus objetivos.

Ao propor uma atividade como essa, os professores estão fornecendo ricas

oportunidades para que os alunos desloquem significados através de múltiplas

modalidades em vez de se basear exclusivamente na palavra escrita. Encorajar os

estudantes a se engajarem na criação de mídia digital, tal como filmes, permite eles

irem além da simples reprodução do conteúdo literário em direção à transformação

do significado e do conhecimento.

Apêndice

Um breve resumo do conto

O conto relata uma sequência de acontecimentos na vida de Bertram, um

dos frequentadores da taverna, contados por ele mesmo. Ele era um dinamarquês

que se apaixonou por Ângela, uma espanhola, mas, como teve que voltar à

Dinamarca para ver seu pai doente, ficou longe dela por dois anos. Quando

retornou para casar com ela, soube que ela estava casada e tinha um filho. Mas isso

não foi empecilho para a mulher voltar para Bertram: ela mata seu marido e filho e

foge com seu amado. A vida dos dois é tumultuada, com muitas bebedeiras e orgias.

Um dia Ângela abandona Bertram, e ele tenta esquecê-la na bebida, nos jogos, nos

duelos. Um dia é acolhido por uma família de um viúvo, convive com eles e desonra

a filha do seu anfitrião. Leva-a embora e logo enjoa dela, vendendo-a numa dívida

de jogo. Ela se suicida. Logo depois, ele também tenta o suicídio se jogando ao mar,

mas é recolhido por um navio e acaba trabalhando na embarcação. Só que o

comandante tem uma mulher bonita, e logo Bertram e ela se apaixonam e traem o

comandante. Algum tempo depois, há o ataque de piratas, e o navio acaba

afundando. Apenas Bertram, o comandante e sua mulher ficam vivos. Depois de

muitos dias no mar, eles decidem tirar a sorte de quem irá morrer para servir de

alimento aos outros. O comandante é sorteado e Bertram o mata. A mulher

enlouquece, e Bertram termina por matá-la também. No fim, sabemos que ele é

resgatado por outro navio e fica vivo para contar essa história.

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