revista contra a corrente. n. 6

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09 Exclusiva com o Prof. Chico de Oliveira 20 Três deformações do marxismo: marxismo como teleologia histórica, como mecanicismo-estruturalismo e como teoria do progresso linear Cátedra Livre Karl Marx - Faculdade de Filosofia y Letras da UNAM (México) 26 Uma re-leitura marxista de Kant: crítica da razão imanentista Antônio da Silva Câmara 33 A quimera do princípio do direito da dignidade da pessoa humana Hélio Rodrigues 39 O dominó europeu: Alemanha, Eurozona e a crise capitalista mundial Gilson Dantas 46 Considerações acerca da influência de Feuerbach sobre Marx e da crítica de Marx a Feuerbach Maria Teresa Buonomo de Pinho 52 A continuidade de um ciclo vicioso de acumulação do capital via Estado: o primeiro semestre do governo Dilma Lucas Gama Lima e Alexandrina Luz Conceição 54 E. P. Thompson e os livros didáticos no Brasil Michel Goulart da Silva 61 Declaração: A Frente de Esquerda diante da crise capitalista (Argentina - Eleições 2011) 63 A revolução espanhola e a esquerda comunista no Brasil Luiz Roberto S. Lauand 70 Novas lições da Comuna de Paris Lenin Sumário 03 Linha Editorial 04 Apresentação ENTREVISTA ARTIGO RESENHA 68 Para além da miséria sexual Diana Assunção

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Page 1: Revista Contra a Corrente. N. 6

09Exclusiva com o Prof. Chico de Oliveira

20Três deformações do marxismo:

marxismo como teleologia histórica, como mecanicismo-estruturalismo e

como teoria do progresso linearCátedra Livre Karl Marx - Faculdade de Filosofia

y Letras da UNAM (México)

26Uma re-leitura marxista de Kant: crítica

da razão imanentistaAntônio da Silva Câmara

33A quimera do princípio do direito da

dignidade da pessoa humanaHélio Rodrigues

39O dominó europeu: Alemanha, Eurozona

e a crise capitalista mundialGilson Dantas

46

Considerações acerca da influência de Feuerbach sobre Marx e da crítica de

Marx a FeuerbachMaria Teresa Buonomo de Pinho

52A continuidade de um ciclo vicioso de

acumulação do capital via Estado: o primeiro semestre do governo Dilma

Lucas Gama Lima e Alexandrina Luz Conceição

54E. P. Thompson e os livros

didáticos no BrasilMichel Goulart da Silva

61Declaração: A Frente de Esquerda

diante da crise capitalista(Argentina - Eleições 2011)

63A revolução espanhola e a esquerda

comunista no BrasilLuiz Roberto S. Lauand

70Novas lições da Comuna de Paris

Lenin

Sumário03

Linha Editorial

04Apresentação

ENTREVISTA

ARTIGO

RESENHA

68Para além da miséria sexual

Diana Assunção

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Cátedra Livre Karl Marx Faculdad de Filosofia y Letras da UNAM2 (México)

Introdução

Neste encontro nos ocuparemos da concepção materialista da história, buscando explicar alguns de seus aspectos metodológicos essenciais e seus con-tornos constitutivos, debatendo com as mistificações do marxismo. Retomaremos conceitos desenvolvidos por Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lenin e León Trostski, assim como por autores contemporâneos como Alex Callinicos e Daniel Bensaid. Partimos da pre-missa que o marxismo é uma ferramenta fundamental e indispensável para abordar a situação do capitalismo contemporâneo, já que permite compreender a dinâ-mica da situação político-social, e em particular, as vias para sua transformação revolucionária.

Teoria materialista do conflito e da trans-formação revolucionária

Marx elaborou sua teoria baseando-se na con-cepção materialista que encontra no conflito e na con-tradição econômico-social o motor da transformação, diferenciando-se, desta forma, das concepções idea-listas que consideram que a história é o movimento de noções abstratas e imutáveis como o Espírito, a Ra-zão, a Cultura ou as instituições. O materialismo histó-rico, nesse sentido, constitui-se em uma teoria crítica da “modernidade” burguesa e do espírito capitalista

� Documento apresentado à III sessão da Cátedra Livre Karl Marx, em 07/�0/2008, na Faculdade de Filosofia y Letras da UNAM, México; também publicado na revista Contra la Corrien-te – Revista marxista de Teoria y Política no 1, dezembro de �008. Aqui reproduzimos na íntegra o texto Marx como crítica da ra-zão histórica positivista, que pautou o encontro na UNAM; o tí-tulo aqui adotado é de responsabilidade de Contra a Corrente. Traduzido por Ana Carolina Ramos e Silva e revisado por Ricardo R. A. Lima. 2 UNAM (Universidade Autonoma de México).

do século XIX, distinguindo-se da noção de um pro-gresso ininterrupto e automático. Este posicionamen-to crítico em relação ao suposto progresso capitalista não pode desligar-se do fato de que o marxismo sur-giu quando a sociedade burguesa encontrava-se dila-cerada pelo antagonismo de classe e o proletariado começava a emergir no cenário.

A crítica da modernidade não é exclusiva do marxismo. O pensamento irracionalista foi outro gran-de discurso crítico e teve em Friedrich Nietzsche um de seus maiores expoentes, o qual a partir de um pon-to de vista reacionário desenvolveu sua tese baseada na vontade de poder e na crítica da noção da verdade objetiva. O mesmo teve também sua continuidade e seus tributários durante o século XX; por exemplo, Gÿorg Lukács em A destruição da razão demonstra as vias de continuidade entre o filósofo alemão e George Simmel, Martin Heiddeger e outras vertentes da so-ciologia e da filosofia alemã do século XX que foram, além disso, um ponto de referência para a ideologia nazista. Nesse sentido cabe dizer que durante o sécu-lo XIX, de forma marginal ao pensamento dominante, surgiram distintas respostas à modernidade capitalis-ta formuladas a partir de pontos de vista antagônicos, mas a resposta de Marx e Engels foi a que, baseando-se em uma crítica negativa à razão moderna (fundada na propriedade privada), estabeleceu as chaves para sua superação revolucionária. Esta superação se reali-zou dialeticamente, recuperando o mais avançado do pensamento da burguesia ascendente – o que Lenin chamou as três fontes e três partes constitutivas do marxismo� – ao mesmo tempo em que o subverteu e o transformou nos fundamentos de uma teoria da revolução social.

Estrutura e luta de classesNo Prefácio ao Para Crítica da Economia Polí-

� Isto é, a economia clássica inglesa, o pensamento social fran-cês e a filosofia hegeliana.

Três deformações do marxismo: marxismo como teleologia histórica, como mecanicismo-estruturalismo e

como teoria do progresso linear1

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Três deformações do marxismo: teleologia histórica, mecanicismo-estruturalismo e teoria do progresso linear

tica, Marx assinalou os fundamentos da concepção materialista da história. Nele afirmava que “[...] tanto as relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento ge-ral do espírito humano, mas pelo contrário, elas se en-raízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’ seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade civil deve ser procura-da na Economia Política”. Logo depois desta crítica às formas anteriores de interpretar a história sustenta que “[...] na produção social da própria vida, os ho-mens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a es-trutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”, a qual se expressa na maneira em que “O modo de produção da vida material condiciona o pro-cesso em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua cons-ciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídi-ca, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de de-senvolvimento das forças produtivas, estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social” (MARX, 2000: 4)4.

Esta afirmação, já clássica, foi deformada com o intuito de atribuir a Marx uma concepção mecânica da realidade, na qual a superestrutura política se ade-quava passivamente à estrutura econômica e onde a ação humana seguia um guia preestabelecido, similar à atuação de um autômato. Entre estas generalizações podemos mencionar os manuais de economia política do DIAMAT soviético.

A concepção do revolucionário alemão estava longe disso. A determinação marxista se baseia no postulado de que os acontecimentos não são aciden-tais e que o desenvolvimento histórico segue deter-minadas leis. A principal delas foi assinalada por Marx no texto que mencionamos anteriormente. Contudo, Marx em nenhum momento confunde o conceito de determinação com a ideia de uma correlação auto-4 Ressalta-se que para a tradução das passagens escritas por Marx no Prefácio ao Para Crítica da Economia Política citadas pelo autor as passagens em espanhol foram cotejadas com a tradução contida na edição brasileira: KARL, M. Para a crítica da economia política. 2. Ed. São Paulo: Nova Cultura, �986. pp. 23-27. (N. T.).

mática e sem discordâncias entre a economia, a his-tória e a política.

Para sustentar esta afirmação recordemos que nos Grundrisse, Marx nos fala da “dialética dos concei-tos de forças produtivas e relações de produção, uma dialética cujos limites devem ser definidos não supri-mindo a diferença real” (MARX, �980: 47). No mesmo sentido, no Prefácio anteriormente citado escreve que “[...] Na consideração de tais transformações é neces-sário distinguir sempre entre a transformação mate-rial das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim” (MARX, 2000: 5). Estabelece assim uma distinção profunda – inclusive metodológi-ca – entre as mudanças estruturais e os processos na superestrutura política. Esta distinção é a base para explicar que a determinação imposta pela estrutura econômica se expressa no plano político e social atra-vés de múltiplas mediações e não como uma corre-lação direta ou isomórfica. Isto é o que Marx define como determinação em última instância.

Por exemplo, a crise econômica internacional não estabelece a priori os processos sociais e políti-cos que se desencadearão a partir dela, eles podem seguir diversos cursos a partir da ação das classes em disputa. Por sua vez, deve-se levar em conta que a própria dinâmica da estrutura econômica (e neste caso particular a dinâmica da crise) não deixará de ser influenciada pela resposta da classe operária e dos demais setores oprimidos e explorados.

Isto nos remete ao Manifesto Comunista, onde Marx afirma que a história é a história da luta de clas-ses, na qual os homens lutam para resolver o conflito. Seguindo a lógica até aqui esboçada, se a estrutura econômica impõe limites e determinações, a concre-ção do processo histórico e social e a resolução dos dilemas à sua frente dependem da ação das classes em disputa.

As deformações do marxismoAs principais frentes de ataque contra o marxis-

mo apresentam-no em uma versão particularmente vulgar, para construir um inimigo ad hoc, altamente vulnerável à refutação, mas que nada tem a ver com o pensamento de Marx e Engels.

Um exemplo deste marxismo vulgar está na social democracia alemã, cuja expressão no terreno das idéias era o evolucionismo positivista, produto do reflexo provocado por um desenvolvimento ca-pitalista que, a finais do século XIX, parecia avançar sem contradições. Esta época se caracterizou por uma grande expansão imperialista marcada pela transfor-

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mação crescente do capitalismo de livre concorrência no reinado dos monopólios, de ampliação e extensão das relações capitalistas em nível global e de certa melhoria da condição da classe operária nos países europeus. Sua expressão ideológica foi um marxismo anestesiado, que no caso extremo de Eduard Berns-tein, um dos intelectuais da II internacional, implicou na inconsequente proposta teórica de que o regime de monopólio se transformaria gradualmente e sem maiores dores de parto em um regime socialista. Isto representou a eliminação da noção de revolução so-cial ou sua manutenção como ideia decorativa, mas não como um norte estratégico em torno do qual or-ganizar a atividade política cotidiana.

Da mesma maneira, com a morte de Lenin, o triunfo da contra-revolução burocrática na URSS e a derrota da oposição de esquerda liderada por Trotski, surgiu uma teoria mecânica e gradualista expressa, por exemplo, na teoria da revolução por etapas que foi funcional aos interesses contra-revolucionários da burocracia stalinista.

Recordemos, para não perder de vista a relação entre os processos sociais e as ideias, que cada época de restauração e de consolidação da dominação bur-guesa deu lugar a ideologias que ecoaram no interior da esquerda. Na atualidade, depois de décadas de ofensiva ideológica, política e social contra o marxis-mo e a classe operária surgem teorias que apontam para substituição do proletariado por outros setores sociais na luta anticapitalista, com ideias não de luta pelo poder ou a suposição – própria de organizações como a LCR francesa, ligada ao PRT mexicano – de que a época das revoluções operárias se esgotou. Hoje observamos como o lento restabelecimento das condições clássicas da luta de classes e em particular a catástrofe econômica do capitalismo abrem portas à necessidade de recuperar a tradição marxista e a preocupação em entender a crise e as vias para sua superação revolucionária.

Em defesa de MarxA crítica contra o marxismo parte de três ar-

gumentos centrais que a seguir enumeraremos e buscaremos contra-argumentar. O primeiro conside-ra o marxismo como uma teleologia histórica, atri-buindo-lhe uma visão profética que foi utilizada para prognosticar a queda do capitalismo e sua substitui-ção pelo comunismo: a história teria um telos (fim) e a ele se dirigiria. Alguns representantes dessa postu-ra seriam o epistemólogo Karl Popper e o sociólogo Max Weber.

Mas Marx e Engels são claros: longe de fundar uma filosofia da História, constituem uma crítica da razão histórica positivista, isto é, questionam a noção de que a história tem um fim preestabelecido que se

articula e se constitui de acordo com um plano pro-gressivo. Em A sagrada família dizem: “a história não faz nada, não possui nenhuma imensa riqueza, não livra nenhuma classe das lutas. Quem faz tudo isso, quem possui e luta é o homem, o homem real, viven-te, não é, digamos, a História que utiliza o homem para elaborar seus fins, como se este fosse alheio a ela, a história não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos (MARX e ENGELS, �965: 2�0). Em A ideologia Alemã voltam a este tema: “Não se pode acreditar que a história vindoura seja o objetivo da história passada” (MARX, �973: �23).

O segundo argumento, vinculado ao anterior, su-põe que o marxismo estabelece leis imutáveis, ou seja, para estes críticos a história é um conjunto de fatos sin-gulares e ímpares. Neste contexto a teoria de Marx é desqualificada sob o argumento de que por sua estru-tura lógica e por sua pretensão de estabelecer leis ge-rais não pode ser refutada e, portanto, carece de cien-tificidade. Por exemplo, Popper denegria o marxismo porque o considerava como uma doutrina rígida.

Mas o marxismo se distancia da concepção em-pirista da história e não pretende aplicar ao estudo do desenvolvimento social leis férreas e rígidas, nem al-cançar a previsibilidade própria das ciências naturais. Ao contrário, se baseia nas noções de lei tendencial (que expressa a necessidade histórica) e sua articula-ção com o acontecimento ou a contingência (isto é, a noção de possibilidade)5.

Como dissemos anteriormente, esta tensão permanente entre a necessidade e a possibilidade só se resolve no processo histórico concreto. Por exem-plo, a tendência inerente (necessidade) até a catás-trofe do capitalismo se mostrou com toda sua força durante a Primeira Guerra mundial. Mas não estava escrito de antemão que isso levaria à ruína do capita-lismo e sua substituição por seu sistema social supe-rior, o que se delineava era uma alternativa histórica. Por isso, Lenin ressaltou que a guerra abria caminho à revolução, e esta poderia ser a via que tornaria possí-vel a solução entre alternativas distintas. Isso se efeti-vou na Rússia dominada pelos czares, onde a revolu-ção se impôs mediante a tomada do poder pela classe operária organizada em conselhos. Mas, o resto da Europa seguiu outro caminho: a revolução foi esma-gada e o capitalismo, ainda que não tenha resolvido as razões de fundo da crise, logrou impor um instável equilíbrio e sua dominação, demonstrando que as leis tendenciais se materializam ou não na arena da histó-ria. Da mesma maneira, as leis tendenciais do capital – como a queda da taxa de lucro – não são absolutas, mas atuam em um contexto complexo e se articulam com contra-tendências, como por exemplo durante o

5 Vários autores de nossa bibliografia trabalharam estas idéias, as quais incorporamos na exposição desta cátedra.

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Três deformações do marxismo: teleologia histórica, mecanicismo-estruturalismo e teoria do progresso linear

boom, ocasião em que o capitalismo obteve um au-mento na taxa de mais-valia.

Entender esta dialética entre a possibilidade e a necessidade (diferente da noção de causa e efeito unilateral que canonicamente se atribui às ciências naturais) não implica em uma impossibilidade meto-dológica para a abordagem científica na compreen-são do desenvolvimento social. Como observa Trotski “Tendo definido a ciência como o conhecimento dos fenômenos objetivos da natureza, o homem teimosa e persistentemente excluiu a si próprio da ciência, re-servando-se privilégios especiais sob a forma de pre-tensas relações com forças supra-sensíveis (religião) ou com preceitos morais eternos (idealismo). Marx privou o homem definitivamente e para sempre des-ses odiosos privilégios, considerando-o como um elo natural no processo evolutivo da natureza material, ao entender a sociedade como a organização para a produção e distribuição, ao considerar o capitalismo como uma das etapas do desenvolvimento da socie-dade humana. A finalidade de Marx não era descobrir as ‘leis eternas’ da economia” (TROTSKI, �999: �70).

Em terceiro lugar, ataca-se Marx consideran-do-o como um positivista histórico, baseando-se em sua suposta noção de progresso. Para sustentar esta ideia argumentam, por exemplo, que Marx apresen-tou uma sucessão ordenada e rígida da evolução dos modos de produção, encontrando, além disso, nas formas menos desenvolvidas da sociedade seu desti-no preestabelecido e antecipado. E, como apontamos anteriormente, atribui-se a ele a previsão infalível que o capitalismo será substituído pelo socialismo.

Mas Marx e Engels, assim como o marxismo da III Internacional, superaram a noção de uma história linear em seu curso e homogênea em seus momentos e o mesmo Marx escrevia nos Grundrisse que “o con-ceito de progresso não deve ser concebido da manei-ra abstrata habitual” (MARX, �982: 3�)6.

Essa crítica confunde a enumeração que Marx realiza dos modos de produção (entre os quais efeti-vamente encontra distintos graus de evolução históri-ca e de domínio sobre a natureza) com sua sucessão pré-estabelecida e forçada. Se o stalinismo suprimiu o modo de produção asiático para justificar um es-quema gradualista de revolução por etapas é porque sua única menção à obra de Marx demonstrava (por sua contemporaneidade em relação a outros modos de produção como o feudal) que a evolução histórica está aberta a múltiplos caminhos. De forma similar, deve-se considerar os escritos de Marx sobre a Rússia, em que, partindo das formas de propriedade comunal

6 São referências obrigatórias as elaborações de Walter Ben-jamin que nos anos �930 questionava em suas Teses sobre a his-tória a noção positivista própria da social-democracia européia e do stalinismo.

e com a ajuda da revolução européia, via a possibili-dade de uma revolução que permitisse à Rússia não repetir o caminho da Inglaterra e comprimir a fase de desenvolvimento capitalista, mostrando uma concep-ção de desenvolvimento desigual e por saltos, antípo-da a qualquer gradualismo histórico.

Sem dúvida, Marx falou que a revolução co-meçaria pelos países mais desenvolvidos e isso pode mostrar, como afirmam alguns, a existência de duas perspectivas justapostas. Esta aparente contradição, mais que produto de uma concepção positivista e da excessiva influência do método das ciências natu-rais, é o resultado do limite e das contradições que a evolução do capitalismo e a própria situação do mo-vimento operário impunham nesses anos, que limi-tavam a possibilidade da revolução proletária. Ainda assim, em cada conjuntura na qual esta se colocou, a perspectiva de Marx esteve longe de um normati-vismo positivista, como mostrou sua atitude frente à Comuna de Paris.

Em relação à suposição de que o comunismo chegará inevitavelmente, Marx e Engels afirmavam que “opressores e oprimidos se enfrentaram sempre, mantiveram uma luta constante, velada algumas ve-zes e outras franca e aberta; luta que terminou sem-pre com a transformação revolucionária da sociedade e a derrocada das classes em conflito” (MARX, �998: 57). A noção de progresso em Marx é concreta porque é histórica, não se trata de um progresso homogêneo, gradual ou pré-determinado, mas que se determina concretamente: “é desigual e por saltos”, e conduz a um dilema no processo social e, portanto, na possibi-lidade da derrota ou o retrocesso histórico.

Nesse sentido, em Marx e seus continuadores no século XX existe a confiança na possibilidade de modificar o curso da história mediante a ação revolu-cionária. Esta concepção teórica explica sua atividade militante e a elaboração de uma teoria da revolução já que, superar o estágio atual da sociedade depende – dadas certas condições – do papel da classe operária e de sua capacidade para dotar-se de uma ferramenta política para levar adiante esta tarefa�.� Considerar que não há uma sucessão ferreamente pré-deter-minada, nem um só caminho para a evolução não implica negar, olhando em retrospectiva, que para Marx o modo de produção capitalista representa um progresso histórico em relação ao feu-dalismo. Diga-se de passagem, é importante enfatizar o caráter relativo e parcial já que os fundadores do socialismo científico nunca deixaram de assinalar o caráter selvagem e avassalador, em relação às formas sociais anteriores, que poderia assumir o capi-talismo. Por sua vez, como afirma Daniel Bensaid, realizar essa avaliação não significa afirmar que estava inscrita no modo de produção feudal sua transformação no capitalismo e o mesmo au-tor cita Antonio Gramsci “As formas mais desenvolvidas revelam os segredos das formas menos desenvolvidas, mas isso não deve ser confundido com a ideia de que a forma mais desenvolvida era o destino, a finalidade, da forma previa”. Gramsci afirmava, por exemplo: “Seria possível formular assim a questão: toda ‘glande’

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Contra a Corrente

Pimenta nos olhos dos outros é refresco8. Na realidade, muitos dos críticos de Marx deveriam olhar-se no espelho. Por exemplo, em seu ataque ao marxismo, o neoliberalismo apelou para concepções certamente teleológicas, como sem dúvida fez Fran-cis Fukuyama, que postulava O fim da história. Os que quiseram jogar na lata de lixo da história Karl Marx e sua escola acabaram nesse lugar indigno. O regresso a Marx (ensaiado a partir de múltiplos lugares e in-teresses) é a busca não de uma teoria messiânica ou profética, mas um reconhecimento – nos fatos para além das intenções subjetivas de quem o faz – de um aspecto chave e crucial do pensamento marxista, como teoria concentrada na análise e esclarecimento das leis (tendenciais) do capital e de sua tendência re-corrente ao desequilíbrio, à crise e ao conflito.

Desigualdade e descontinuidade – De Marx a TrotskiA discussão do progresso positivo nos leva à

noção da descontinuidade e desigualdade no pensa-mento estratégico de Marx e dos marxistas do século XX, como Lenin e Trotski.

Toda a obra de Marx e Engels está influenciada por uma concepção de desenvolvimento desigual e heterogêneo. Não somente nos parágrafos referentes ao desenvolvimento dos modos de produção já discu-tidos anteriormente, mas, por exemplo, quando men-ciona a “desigual relação entre o desenvolvimento da produção material e o desenvolvimento, por exemplo, artístico” (MARX, �980: 3�), ou em suas análises sobre os processos políticos e revolucionários do século XIX. Quando se questiona a noção de uma adequação me-cânica, aparece a noção de discordância, de anacronis-mo e de contradição entre as distintas fases e páginas da história e da sociedade. Essa concepção é a base profunda na qual se enraíza a aposta de que triunfe a revolução em �87�, em um país cuja estrutura econô-mica capitalista ainda é atrasada, mas que conta com a classe operária mais experiente; ou a possibilidade que uma forma social anacrônica – como o mir – seja a base para uma transformação revolucionária.

Trotski será aquele que aprofunda o caminho traçado por Marx mediante a lei de desenvolvimen-to desigual e combinado9 com a qual introduz uma

pode pensar em se tornar carvalho. Se as glandes tivessem uma ideologia, esta seria justamente a de se sentirem ‘grávidas’ de car-valhos. Mas, na realidade, de cada mil glandes, 999 servem de pasto aos porcos e, no máximo, contribuem para criar chouriços e mortadelas” (BENSAID, 2003: 56). 8 A expressão original em espanhol é “La paja em el ojo ajeno”, mas aqui decidiu-se traduzi-la por uma expressão usual em portu-guês e com sentido similar (N. T.). 9 90 anos do Manifesto Comunista, escrito por León Trotski, foi um texto básico para a preparação desta cátedra e sugerido como leitura aos assistentes. Nele Trotski desenvolve, considerando os

ruptura no evolucionismo gradualista da II Interna-cional10. Trotski desenvolveu esta tese nos primeiros parágrafos da História da Revolução Russa, obra que foi a base teórica para explicar porque a revolução na Rússia poderia triunfar.

Trotski dá asas à dialética aplicada à compre-ensão do desenvolvimento histórico: a correlação entre a estrutura economia-mundo imperialista e a estrutura nacional, a relação não sincrônica e cheia de contradições entre os distintos níveis da forma-ção social russa – uma economia que articula o cam-po atrasado e a moderna indústria nas áreas urbanas – unida a uma superestrutura política vinculada ao capital estrangeiro e à parasitária burguesia nativa. Soma-se a isto, a discordância entre as classes e os partidos, em que a burguesia atrofiada e carente de personalidade política contrasta com uma classe operária jovem e revolucionária que rapidamente se viu hegemonizada pelas idéias socialistas. Tais fato-res lhe permite articular uma análise profunda pela qual chega às seguintes conclusões: a impossibilida-de da burguesia solucionar as tarefas democráticas e do país reproduzir a sucessão de etapas históricas do capitalismo francês ou inglês; além de prever a pos-sibilidade de que a classe operária chegue ao poder como única forma de resolver essas tarefas inconclu-sas, mas sem esquecer das distintas determinações da economia, afirmando que – por seu atraso – a Rússia poderá chegar antes à ditadura do proletaria-do, porém mais tarde ao socialismo.

Esta análise – que foi a base da teoria da re-volução permanente – fez escola quando estabeleceu que – sob o capitalismo – o desenvolvimento histó-rico, longe da noção de linearidade, uniformidade e homogeneidade, é desigual e combinado, articula for-mas novas e anacrônicas, comprime fases e etapas, acelerando a incorporação dos desenvolvidos sem deixar de lado o peso do atraso das formações sociais retardatárias. Trotski tendia a generalizar esta ideia afirmando que isto pode ser encontrado não somente na análise social russa, mas no restante dos países de-pendentes e atrasados.

É importante considerar que o desenvolvimen-to de um marxismo vivo, em contraposição ao esque-matismo mecanicista próprio do stalinismo, foi uma tarefa que assumiram também diferentes marxistas

pontos vigentes e aqueles que devem ser atualizados em tal texto, os limites da visão de Marx da revolução no século XIX, impostos pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Também temos re-comendado a leitura de O pensamento político do jovem Trotski, de Alain Brossat, ponto de partida e inspiração para o presente autor. �0 Uma das exceções foi Antonio Labriola, que antecipou teo-ricamente muitos dos desenvolvimentos posteriores da geração anti-positivista que em �9�7 tomou a dianteira da teoria e prática marxistas.

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Três deformações do marxismo: teleologia histórica, mecanicismo-estruturalismo e teoria do progresso linear

latinoamericanos, entre os quais podemos citar José Carlos Mariátegui, Julio Antonio Mella, Milcíades Peña, assim como distintos intelectuais revolucioná-rios ligados à corrente trotskista.

Luta de classes e revoluçãoVinculada à ideia anterior está a relação entre a

luta de classes, os partidos e instituições dos mesmos. O caráter desigual do processo histórico se expressa quando a classe operária entra em luta com suas velhas organizações e não pode improvisar – nos curtos es-paços de tempo de uma revolução – uma organização que represente seu programa histórico.

Isso significa que não existe linearidade nem concordância entre a luta de classes, a subjetividade e a consciência. Por exemplo, no processo revolucio-nário espanhol de �936 surgiram milícias, experiências de controle operário e tendências à auto-organização, mas mesmo que a ação das massas estivesse por mo-mentos – nos dizeres de Trotski – em oposição direta de �80 graus em relação a suas direções reformistas, aquelas não puderam improvisar, no curto período da revolução, uma direção política alternativa. No caso da Rússia, a relação entre classe e organização política seguiu outro caminho: em 30 ou 40 anos o nascente movimento operário alcançou aceleradamente uma experiência política que lhe permitiu chegar ao poder. Isto foi possível porque nesse tempo se desenvolveu uma organização política que nos momentos cruciais da revolução pôde unir-se com a classe operária e foi capaz de expressar seu programa e sua perspectiva histórica. Nesse sentido, a importância da organização política não está somente em seu papel nos momentos de crise revolucionária, mas em sua atuação constante nas fases preparatórias, que é fundamental para sua formação, assim como para desenvolver uma subjetivi-dade revolucionária na classe trabalhadora.

Em sentido mais amplo, o amadurecimento das condições objetivas pode se dar antecipadamente às condições políticas para a superação revolucionária do capitalismo. E isso coloca a necessidade de que a clas-se operária se constitua como sujeito social e político revolucionário. Isto implica uma disposição à luta por parte da classe operária, expressa em ações e em no-vas organizações, assim como na recuperação de seus sindicatos. E junto a isto, a máxima expressão deste desenvolvimento é a construção de uma organização política revolucionária da classe operária. A construção desta organização política expressa e condensa em seu programa e estratégia sua experiência histórica. Isto pode permitir elucidar as possibilidades históricas que – como Marx e Engels consideravam – não se resolvem automaticamente, mas requerem a ação do sujeito, como condição para acabar com o capitalismo e com a pré-história que é a sociedade de classes.

Referências

BENSAID, D. Marx intempestivo. Argentina: Edi-ciones Herramienta, 2003.CALLINICOS, A. Contra el posmodernismo. Co-lombia: El Áncora editores, �993.ENGELS, F., MARX, K. La Sagrada Familia. México: Editora Política, �965.______. La Ideología Alemana. México: Pueblos Unidos, �973. ______. Manifiesto Comunista. España: Grijalbo Mondadori, �998.MARX, K. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) �857-�858. México: Siglo XXI, �980.______. Contribución a la crítica de la economía política. México: Siglo XXI, 2000.TROTSKI, L. Naturaleza y dinámica del Capita-lismo en la Economía de Transición. Argentina: CEIP, �999.

Família, escola e ordem social burguesa

A família e a escola, com efeito, não passam, nos nossos dias, de um ponto de vista político, de oficinas da ordem social burguesa, destinadas à fabricação de pessoas ajuizadas e obedientes. O pai, na sua figura habitual, é o representante das autoridades burguesas e do poder de Estado na família. A autoridade do Estado exige dos adultos a mesma atitude obediente e submissa que aquela que exige o pai dos seus filhos quando são peque-nos ou adolescentes. A falta de espírito crítico, a proibição de protestar, a ausência de opinião pes-soal caracterizam a relação das crianças fiéis à sua família, com os pais, assim como as dos emprega-dos e funcionários devotados às autoridades, com o Estado, e na fábrica, dos operários não esclareci-dos e sem consciência de classe, com o diretor ou o proprietário da fábrica.

Na medida em que se desenvolve a consci-ência de classe na família proletária, a atitude dos pais em relação às crianças muda igualmente, mes-mo sendo, de todas as atitudes burguesas, aquela que mais dificilmente e mais tardiamente muda.

(Wilhelm REICH, O combate sexual da juventude – COMENTADO)

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Hélio Rodrigues1

O Direito é uma vida aérea, o éter da sociedade civil (Marx)

1. Introdução:Este texto submete à crítica o princípio jurídico

denominado de dignidade da pessoa humana, reflexo de um jusnaturalismo do jurista brasileiro contempo-râneo. Ao fazê-lo, busca mostrar que se trata de uma nova roupagem do direito natural e que tal princípio surge para defender tudo aquilo que constitui o que se chama geralmente de uma ideologia.

O conceito jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana é um conceito “a priori”�. Essa fonte de conhecimento é precisamente a visão espiritual a qual, livres de amarras sensoriais, apreende-se dire-tamente a natureza essencial da existência e a lei que governa as ações. Um conhecimento deste tipo se de-nomina metafísico. Conseqüentemente, todo conhe-cimento, inclusive o da ciência do direito, que tem que estabelecer normas válidas por si mesmas para ação de seres humanos é metafísica. E o artigo desenvolve o argumento de que toda metafísica é quimera.

2. Desenvolvimento:2.� O Ponto de Partida: Tornou-se hábito falar

em princípio da dignidade da pessoa humana e o Pon-to de Chegada: Uma ciência fraudulenta.

Hodiernamente, o chamado princípio da digni-dade da pessoa humana é a norma jurídica principioló-gica que a esmagadora maioria dos juristas brasileiros adota como sendo o critério que dá validade ao direi-to positivo�. Aliás, eleva-se esse princípio para além

� Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB; espe-cialista em Filosofia Política pela UFC e especialista em Direito Constitucional pela UNIFOR. Hélio Rodrigues é co-organizador do livro A miséria da estatística e a estatística da miséria, Achia-mé, RJ, 2009.2 “A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucio-nal, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa huma-na” (SILVA, �998).3 Sobre o tema, ver NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio

do critério constitucional. O próprio Supremo Tribu-nal Federal (STF), enquanto órgão do Estado brasilei-ro com competência para fazer o controle de consti-tucionalidade das leis em última instância, também adota esse posicionamento, como se vê em vários julgamentos4, expressando claramente que “(...) a dignidade da pessoa humana precede a Constituição de �988 e esta não poderia ter sido contrariada, em seu art. �º, III, anteriormente a sua vigência.” (ADPF �5�, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-4-20�0, Plenário, DJE de 6-8-20�0.). Em outras deci-sões judiciais:

O direito ao nome insere-se no conceito de digni-dade da pessoa humana, princípio alçado a funda-mento da República Federativa do Brasil (CF, art. �º, III). (RE 248.869, voto do Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 7-8-2003, Plenário, DJ de �2-3-2004.)Sendo fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, o exame da constitucionalidade de ato normativo faz-se con-siderada a impossibilidade de o Diploma Maior permitir a exploração do homem pelo homem. O credenciamento de profissionais do volante para atuar na praça implica ato do administrador que atende às exigências próprias à permissão e que objetiva, em verdadeiro saneamento social, o en-dosso de lei viabilizadora da transformação, bali-zada no tempo, de taxistas auxiliares em permis-sionários. (RE 359.444, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 24-3-2004, Plenário, DJ de 28-5-2004.)A duração prolongada, abusiva e irrazoável da pri-são cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que

constitucional da dignidade da pessoa humana, Saraiva, 2002; SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de �988, Livraria do Advo-gado, 2002; Rosenvald, Nelson. Dignidade da Pessoa Humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva 2005; CAMARGO, Mar-celo Novelino. “O conteúdo Jurídico da Dignidade da pessoa hu-mana”. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras comple-mentares do Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. 2ª ed, Salvador: Juspodivm, pp. ��3-�35, 2007.4 Vide o trabalho de SANTOS, Karina Martins de Araújo. O prin-cípio da dignidade da pessoa humana sob a ótica de Ministros do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: SBDP, 2005.

A quimera do princípio do direito da dignidade da pessoa humana

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A quimera do princípio do direito da dignidade da pessoa humana

representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. �º, III) – significativo ve-tor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que con-forma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo ex-pressivo, um dos fundamentos em que se assen-ta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. (HC 85.23�, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em �7-3-2005, Plenário, DJ de 29-4-2005.) No mesmo sentido: HC 98.621, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em ��-�-�010, Primeira Turma, DJE de 23-4-20�0; HC 95.634, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 2-6-2009, Segun-da Turma, DJE de �9-6-2009; HC 95.49�, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em �0-3-2009, Segunda Turma, DJE de 8-5-2009.Só é lícito o uso de algemas em casos de resistên-cia e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalida-de por escrito, sob pena de responsabilidade dis-ciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. (Súmula Vinculante �1)O Plenário do STF, no julgamento da ADI 3.5�0, declarou a constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei ��.�05/2005), por entender que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida ou o princípio da digni-dade da pessoa humana.Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei 7.492, de �986). Crime societário. Alegada inépcia da denúncia, por ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados. Mudança de orientação jurisprudencial, que, no caso de cri-mes societários, entendia ser apta a denúncia que não individualizasse as condutas de cada indiciado, bastando a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da so-ciedade comercial sob a qual foram supostamente praticados os delitos. (...) Necessidade de individu-alização das respectivas condutas dos indiciados. Observância dos princípios do devido processo le-gal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, contraditório (CF,art. 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, art. �º, III). (HC 86.879, Rel. p/ o ac. Min. Gil-mar Mendes, julgamento em 2�-2-2006, Segunda Turma, DJ de �6-6-2006.) No mesmo sentido: HC �05.953-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 5-��-20�0, DJE de 11-11-�010.

O interessante é que o pensamento jurídico brasileiro, de modo eclético e vulgarizado, se auto-in-titula positivista e nega ser próximo do direito natural. E orgulha-se disso. Explica-se: entende aquele pensa-mento jurídico por positivista uma postura que pro-duz e interpreta a lei dentro um Estado democrático,

ou seja, as normas jurídicas que regem a sociedade são postas para a sociedade pela própria sociedade, sempre de modo democrático. Nessa visão vulgar, po-sitivista é de alguma forma uma garantia contra a arbi-trariedade do Estado e do governante5. É uma faceta da segurança jurídica, da legalidade, da prévia ciência e existência dos princípios e das regras que regem a sociedade. E aqui começa a contradição, porque esse jurista positivista brasileiro adota para a lei posta um conjunto de princípios e regras que a orientam, con-creta ou abstratamente, para que ele possa compre-ender e interpretar a lei.

Ao fazer isso, o jurista toma para si uma postu-ra tipicamente do direito natural, porque esses princí-pios – que são concepções pré-existentes, posições de classe internalizadas – são consideradas como eviden-tes, ensinadas como doutrina nas escolas de direito e nos livros jurídicos, proclamadas como decorrentes do próprio sistema jurídico ou da evolução da história do direito.

Ora, não se busca defender a tese de que existe uma postura neutra, livre de concepções pré-existen-tes ou de classe, mas sim a honestidade com a ciência. Adotando por ciência o conhecimento sistematica-mente desenvolvido e metodicamente comprovado, as atitudes emocionais e sua expressão ficam foram do âmbito da ciência. Mas isso não diz que os cientis-tas não podem ou lhes é vedado expressar atitudes práticas. Simplesmente quer dizer que esse aspecto de sua atividade não pode ser descrito como ciência. O que significa uma exigência dirigida, em nome da honestidade, para que as atitudes e expressões sejam destacadas com a maior clareza possível os limites que separam aquela parte de sua atividade científica que pode reclamar a autoridade e a validade objetiva da ciência e aquela outra parte que não pode preten-dê-lo, por jamais representar verdade absoluta.

Os juristas esquecem, como por exemplo, que no domínio do direito constitucional, Hans Kelsen demonstrou com infatigável empenho de que modo grandes setores dele foram escritos para defender os interesses de um regime existente. De modo ma-gistral, ele pôs a nu as manipulações e as imposturas que as atitudes políticas empregavam, conscientes, para se disfarçar de ciência, tentando atribuir, assim, forma enganosa, a autoridade que o nome de ciên-cia confere.

Aliás, os juristas continuam esquecidos de que vários conceitos – como valor, funcionamento natu-ral, equilíbrio, vontade popular, representação, demo-

5 É uma simbiose com o conceito de Estado moderno, com o conceito de democracia, de legalidade. Nesse enleio de conceitos, os juristas apenas não aceitam o título de formalistas. Estes se-riam aqueles juristas que interpretam a lei no sentido mais literal, rudimentar, criando uma interpretação que privilegia a forma em detrimento do conteúdo, e por isso causam inúmeras injustiças.

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cracia, governo, administração econômica, bem-estar público, harmonia de interesses, preço e juros, estabi-lidade e em muitas outras partes da teoria econômica ou política – que eles retiram, usam, reproduzem e ensinam de teorias do séc. XVIII e XIX, mas que ações políticas afetam secreta e constantemente tais concei-tos, deslizando ocultos componentes que conferem à doutrina um direcionamento ideológico, ao mesmo tempo que essa doutrina é oferecida como uma des-crição objetiva e científica da realidade6.

O momento atual da ciência jurídica brasilei-ra tem marchado sob a bandeira de um absolutismo metafísico. O problema da ação política da instituição Poder Judiciário continua obscurecido sob o manto do fazer justiça. Esta continua sendo considerada como um problema relacionado com a seguinte questão: qual a maneira de se determinar, à luz de princípios racionais, qual a ação correta? A resposta atual cha-ma-se princípio da dignidade da pessoa humana. Esta metafísica caracteriza não só a teoria como também a prática. A ideologia tem sido proclamada e aceita como verdade racional, e a argumentação de política jurídica tem assumido a forma de deduções a partir das verdades eternas da justiça e do direito natural.

Portanto, ao contrário do que pregam os ju-ristas, a adoção do princípio da dignidade da pessoa humana revela um ponto marcante: a arbitrarieda-de. Esta advém da sua conformação com o direito natural, que é arbitrário nos postulados fundamen-tais a respeito da natureza da existência e do ser hu-mano, e na arbitrariedade das idéias jurídico-morais desenvolvidas com base nesse fundamento. É o que se verá a seguir.

�.� A Base Arbitrária do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Conforma a Ideologia.

A idéia do princípio da dignidade da pessoa humana é que a justiça do direito positivo depende de sua concordância com o padrão ou o ideal que se encontra na natureza humana (dignidade humana) ou na razão do ser humano (captação do princípio da dignidade da pessoa humana). O direito positivo não é julgado pelos efeitos que produz na sociedade, pelo contrário, ele é julgado pela harmonia com a razão, que supostamente não se confundiria com os interes-ses das classes sociais. Vê-se, então, que o direito tem sua meta dentro de si mesmo: realizar o ideal de justi-ça. E isso se faz em conformidade com a dignidade da pessoa humana.

O princípio da dignidade da pessoa humana é uma nova faceta do direito natural. Os postulados do direito natural devem buscar seu fundamento na natu-

6 Vide a obra já clássica, MYRDAL, Gunnar. The Political ElementThe Political Element in the Development of Economic Theory, Oxford:Columbia, �944 (especialmente p. �045 e ss).

reza razoável do ser e sua justificativa numa intuição intelectual. Ou seja, como a razão se limitaria a um pequeno número de princípios básicos e evidentes, a justiça da norma particular depende de poder ser con-siderada como deduzida daqueles princípios básicos.

A crítica já consolidada ao direito natural diz que este se apoia numa intuição intelectual ou num mero sentimento de evidência que, supõe, garante a conformação dos princípios básicos e, por isso, a justiça. Mas, na realidade, não passa de uma expres-são dogmática e patética de uma consciência moral e jurídica de uma determinada época, significando, a manifestação da classe dominante.

É preciso investigar a origem dessa consciência moral e jurídica. Entretanto, os juristas sequer ques-tionam do ponto de vista histórico como um produto de fatores combinados da ordem social vigente. Tal consciência moral e jurídica não é criticada à luz de suas conseqüências sociais, mas é aceita com reve-rência como um oráculo que revela ao ser humano a verdade moral, a lei da razão válida por si mesma para o governo de suas ações.

Nos tempos atuais tornou-se hábito ensinar e julgar com base no princípio da dignidade da pessoa humana, como demonstrado anteriormente, em lu-gar de refletir, questionar e lutar contra a ordem so-cial posta. A introdução do conceito de princípio da dignidade da pessoa humana no debate dos confli-tos sociais permitiu ocultar, mas não superar, um dos defeitos fundamentais do direito: o antagonismo de classes que expressa um direito arbitrário.

No campo político sabe-se que o direito na-tural combinado com a doutrina do contrato social tem sido usado com sucesso para justificar todo tipo de governo, desde o poder absoluto (Hobbes) até a democracia absoluta (Rousseau). O direito natural se pôs, também, a serviço de quem quis consolidar a ordem existente (Heráclito, Aristóteles, Tomás de Aquino e outros) e de quem preferiu advogar a revo-lução (Rousseau).

No campo social e econômico o direito natural do séc. XVIII pregou um individualismo e liberalismo extremos. A inviolabilidade da propriedade privada e a ilimitada liberdade contratual foram os dois dog-mas que o século XIX e XX herdou do direito natural, dogmas que foram afirmados na prática dos tribu-nais norte-americanos para invalidar muitas leis de caráter social. Por outro lado, o direito natural tem sido utilizado também como fundamento de uma moral da solidariedade (Grócio, Comte e outros) e, inclusive, na interpretação de Duguit, para sustentar a negação de todos os direitos individuais e possibi-litar um sistema de serviços sociais.

No caso brasileiro, remeto o leitor às citações anteriores do STF, especialmente a decisão que trata

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da proibição do uso de algemas (súmula ��), que não foi tomada para proteger os bandidos que aparecem nos programas “barra pesada”, e a decisão que trata da lei de biossegurança, pois ambas fundamentadas no princípio da dignidade da pessoa humana. E exem-plo clássico é o Ato Institucional nº 5, no ano de �968. O referido texto legal é inaugurado com considerações acerca da “necessidade de sua publicação, embasado na defesa de que o regime institucionalizado no país em �964 teve por fundamentos um sistema jurídico e político destinado a assegurar a autêntica ordem de-mocrática, baseada na liberdade e no respeito à digni-dade da pessoa humana”.

Ou seja, o direito natural está à disposição de todos. Não há ideologia que não possa ser defendida recorrendo-se à lei natural. E, na verdade, não pode-ria ser diferente considerando-se que o fundamento principal de todo direito natural se encontra numa apreensão particular direta, uma contemplação evi-dente, uma intuição, que o jurista sequer submete à crítica, aceitando-a com imensa inércia, cuja massa encefálica deve, esta sim, ser eternamente adorme-cida e domesticada.

A evidência como critério de verdade explica o caráter totalmente arbitrário das asserções me-tafísicas. Coloca-as acima de toda força de controle intersubjetivo e deixa a porta aberta para a imagina-ção ilimitada e o dogmatismo, mas, principalmente da ideologia que oculta à dominação e à exploração de classe.

Aliás, um forte argumento em favor do ponto de vista de que as doutrinas jusnaturalistas são cons-truções arbitrárias e subjetivas é que a evidência não pode ser um critério de veracidade. Explica-se: cha-mar uma proposição de verdadeira é diferente, ob-viamente, do fato psicológico de que a asserção da proposição seja acompanhada por um sentimento de certeza. A sólida crença na verdade de uma pro-posição necessita estar sempre comprovada e jamais pode ser sua própria comprovação.

De qualquer modo, é importante perceber para além da arbitrariedade da postura metafísica do prin-cípio jurídico da dignidade da pessoa humana, pois o quadro se faz mais claro quando se compreende não só que as especulações metafísicas são vazias e falta sentido, mas também quais são as razões que fazem com os juristas persistam nelas. Ou seja, além de ar-bitrário, é importante desnudar parte da ideologia do princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, o campo dos juristas relacionado aos jul-gadores, pode-se pensar que a adoção da metafísica está associada ao temor de ter que escolher e decidir sob circunstâncias que se alteram e sob a própria res-ponsabilidade. É por isso que ao buscar justificação para as decisões judiciais em princípio imutável que

está fora da sociedade, o julgador está tentando ali-viar o peso da responsabilidade. Se há uma lei, inde-pendente de escolha e arbítrio, que nos foi dada como verdade, ainda que seja por meio de uma apreensão “a priori” da razão, supostamente em decorrência de processos históricos, e que dita o procedimento cor-reto, então ao obedecer a lei principiológica, não pas-sa o juiz de peça obediente de uma ordem cósmica e fica liberado de toda responsabilidade.

Não obstante, isso ainda não é suficiente. A ideologia que oculta a opressão do Estado, inclusive, manifestada por meio do Poder Judiciário, é a faceta adaptada da concepção do Estado neutro, agora aditi-vada com o princípio da dignidade da pessoa humana. Por outras palavras, como o Estado precisa se mos-trar como um instrumento neutro, acima das classes sociais, essa aparência de neutralidade passa a ser condição indispensável para que o Estado seja o lo-cal onde os conflitos de classe possam ser desviados, momentaneamente resolvidos, daí o princípio da dig-nidade da pessoa humana adentra no jogo ideológico retirando a responsabilidade do Poder Judiciário de ter tomado essa ou aquela decisão.

O juiz, tal como um autômato, toma a deci-são correta quando conforma a sua decisão com o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um princípio que não enxerga classe social e sim, indiví-duo, reconhecendo a dignidade da pessoa humana. Apresentar o Estado desse modo é apresentá-lo como neutro. A perspectiva estratégica torna-se então clara: se oculta a existência de interesses de classes, apre-sentando-os encobertos pelo interesse geral. Isso é precisamente a ideologia que esconde a natureza das relações sociais.

3. Considerações Finais: A Quimera, Abstração e Sujeito de Direito.É exaustivamente dito e repetido no direito

brasileiro, seja na teoria ou na prática judicial, que o princípio da dignidade da pessoa humana é essencial-mente um atributo da pessoa humana: pelo simples fato de ser humana, a pessoa merece todo o respeito, independentemente de sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição social e econômica. Afinal, como lembra SARLET (2003) foi Kant quem definiu o entendimento de que o homem, por ser pessoa, cons-titui um fim em si mesmo. Tal definição tem inspirado os pensamentos filosófico e jurídico na modernidade, posto que o atributo lhe é inerente dada a própria condição humana.

Nesse sentido, a atual Ministra do STF, Carmem Lúcia Antunes Rocha, ao comentar o Art. �º da Decla-ração dos Direitos Humanos, que trata da igualdade dos seres humanos em dignidade e direitos, faz as se-guintes considerações:

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Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não muda. Muda o in-vólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria, sente-se igual. (ROCHA, 2004, p. �3)

Portanto, o que os aplicadores do direito, por meio do princípio da dignidade humana, estão fazen-do é não refletir as diferenças que existem na socieda-de, pelo contrário, fazem abstrações delas ao declarar que todos os seres humanos são iguais em dignidade. Conceito, este, repita-se, captado “a priori”.

E isso não é tema novo. É aspecto debatido e desenvolvido desde os escritos de Marx no livro “A Questão Judaica”, o qual levantou pela primeira vez a tese de que os seres humanos vivem uma vida du-pla: como membro do Estado vive uma vida genéri-ca, enquanto que como membro da sociedade civil leva uma vida material. Exemplificando: na socieda-de civil um banqueiro é diferente do empregado do banco; um engenheiro é diferente de um operário da construção civil; um rico é distinto de um pobre. Mas como membro da comunidade política, o banqueiro, o empregado, o engenheiro, o operário, o rico e o po-bre são iguais. Ou seja, o Estado abstrai as diferenças que existem entre os seres humanos e os trata como se fossem iguais. É por isso que Marx concebia o ser humano membro da comunidade política como um ser abstrato ou como um ser que leva uma vida ideal ou imaginária. Também expressava o fato, ao afirmar que o Estado se comportava de modo idealista com a sociedade civil.

É importante dizer que, tal como Marx, a eman-cipação política tem suas imensas limitações e não é o ponto de chegada, como acreditam os ideólogos do Estado democrático de direito, mas é passo impor-tante para a emancipação humana, inclusive, porque não se deve perder de vista que não se poderá ir além quando não se chegou, sequer, no estreito limite da emancipação política.

De qualquer modo, o ufanismo do princípio da dignidade da pessoa humana destaca que essa re-presentação política do indivíduo corresponde à re-presentação jurídica do indivíduo, cujo fundamento é a categoria de sujeito de direito, isto é, o indivíduo ao qual o direito atribui as determinações da liberda-de, da igualdade e da propriedade, o sujeito-proprie-tário que, no mercado, pode oferecer, como expres-são de sua plena liberdade, inclusive na qualidade de proprietário, a sua força de trabalho em troca de um equivalente.

E percebe-se que a teoria jurídica busca excluir da órbita estatal toda a representação de interesses particulares, uma vez que, por ser público, o Estado

não poderá ser a expressão de vontades e interesses privados, daí afasta-se da noção de classe social e se-dimenta-se na dignidade humana. Desta forma, como o Estado é a esfera de existência exclusiva da política, ou seja, lugar de representação dos interesses gerais, e como a sociedade civil é o lugar onde habitam os interesses particulares, o acesso à esfera do Estado só pode ser dado aos indivíduos despojados de sua condição particularíssima, de seus interesses, de sua classe social, daí que o acesso ao Estado (leia-se Poder Judiciário) é dado por uma qualificação jurídica gene-ralizada: dignidade humana.

Por conseguinte, ser sujeito de direito é ser in-divíduo universal que participa do Estado, que este reconhece a dignidade humana. Produz-se a atomiza-ção política do indivíduo, agora chamado de ser com dignidade humana. No passado recente já foi chama-do de cidadão. Trata-se de conceber o indivíduo no abstrato. E entre cidadão e ser digno de humanidade, a obscuridade é maior. E a classe trabalhadora, dispa-ratada e atabalhoada também por causa de suas lide-ranças, não pode deixar perder a categoria classe para tornar-se um mero conglomerado de indivíduos.

Referências:

CAMARGO, Marcelo Novelino. O conteúdo Ju-rídico da Dignidade da pessoa humana. In: CA-MARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras com-plementares do Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. 2ª ed, Salvador: Juspodivm, pp. ��3-�35, 2007.KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Armênio Amado editora, Coimbra, 6º edição, �984.MARX. Karl. A questão judaica. Centauro editora, São Paulo, 5º edição, 2005.___________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Boitempo editorial, 2005.MYRDAL, Gunnar. The Political Element in the Development of Economic Theory, Oxford:Co-lumbia, �944NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio consti-tucional da dignidade da pessoa humana, Sarai-va, 2002ROCHA, Carmem Lúcia. Antunes. Direito de To-dos e para Todos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, ROSENVALD, Nelson. Dignidade da Pessoa Hu-mana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva 2005SANTOS, Karina Martins de Araújo. O princípio da dignidade da pessoa humana sob a ótica de Mi-nistros do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: SBDP, 2005SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Hu-mana e Direitos Fundamentais. In: LEITE, George

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A quimera do princípio do direito da dignidade da pessoa humana

Salomão (Org.). Dos Princípios Constitucionais - Considerações em torno das normas principioló-gicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003.___. Dignidade da pessoa humana e direitos fun-damentais na Constituição Federal de �988, Livra-ria do Advogado, 2002SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa hu-mana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, v. 2�2, p. 84-94, abr./jun. �998.Site: www.stf.jus.gov

Histórias das lutas dos trabalhadores no BrasilAutor: Vito Gianotti

Editora: Mauad

Família, religião e repressão

Acontece frequentemente que a juventude proletária, em consequência da sua autonomia material, conheça um alívio desta dependência. A Igreja lança-se imediatamente na batalha para reforçar a dependência das crianças em relação à tutela paternal e a sujeição à sua autoridade, quando se lança a (armada de todo o aparato de embrutecimento e de frases sobre Deus, a sua von-tade eterna e as suas sábias previsões), elevar até à santificação o casamento e a família, bem longe da razão crítica humana. Porque o pai, na sua figura atual – nós não poderemos nunca representá-lo de uma maneira suficientemente viva e clara – é para as crianças e a mulher na família o representante da ordem e da moral estabelecidas. E como o papa sustenta esta ordem dominante, ele é consequente, no seu ponto de vista, quando exorta seriamente os fiéis cristãos a obedecer fielmente à lei de Deus, que ordena à mulher e às crianças de serem tão submissas e obedientes ao marido e ao pai como ao Deus eterno.

Quando vemos expostas, no museu anti-religioso de Moscou, as imagens santas da época czarista que representam, seja Jesus vestido de Czar, seja o Czar com a cabeça de Jesus, compre-endemos facilmente toda a relação: Deus e Jesus são imagens representativas, projetadas no sobre-natural do imperador e das autoridades para os adultos e do pai para as crianças e os adolescen-tes. O imperador e as autoridades desempenham mais tarde na vida afetiva dos adultos o mesmo papel e despertam neles as mesmas atitudes de submissão e de ausência de crítica que em relação ao pai na criança.

O papel político da família não se esgota com isso, mas essa é a sua função política prin-cipal. A sujeição autoritária da juventude não se manifesta em nenhuma instituição da sociedade burguesa tão fortemente como no lar: esta sujeição não age em nenhuma instituição de maneira tão precoce sobre o organismo mental infantil como precisamente no lar, por isso que vemos sem ces-sar que a submissão familiar vai a maior parte do tempo lado a lado com a dedicação à ordem esta-belecida, e que a rebelião contra a família significa frequentemente o primeiro passo, nos jovens, para a luta consciente contra a ordem social capitalista.

(Wilhelm REICH, O combate sexual da juventude – COMENTADO)

Engels, Darwin e a teoria da evolução

Engels entendeu que as idéias de Darwin se-riam desenvolvidas, o que se viu confirmado mais tarde com o desenvolvimento da genética. Em novembro de 1875, escreveu a Lavrov: “Da dou-trina darwiniana, aceito a teoria da evolução, mas considero o método de comprovação de Darwin (a luta pela vida, a seleção natural) a penas como uma primeira expressão, provisória e imperfeita, de um fato recém descoberto”. E, de novo, em sua obra Anti-Duhring: “Mas a teoria da evolução é ainda demasiado jovem, fato que assegura que o desenvolvimento ulterior da investigação modi-ficará substancialmente também as concepções estritamente darwinianas do processo da evolu-ção das espécies.

(Alan WOODS; Ted GRANT, 2007 em Razão e revolução)

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Gilson Dantas1

Todo o noticiário econômico recente tem mos-trado a Europa na condição de peça-chave na crise mundial do capitalismo e com chance de se tornar o pivô de uma eventual quebradeira bancária (envol-vendo moratória de países como a Grécia) com des-controle da tensa situação econômica internacional. Ou, como afirma Wolf (20��), “o mundo entrou em nova e perigosa fase. Está surgindo uma retroalimen-tação positiva entre bancos e países debilitados, com efeito potencialmente catastrófico sobre os países da Uniao Europeia e a economia mundial”.

Um dos aspectos mais chocantes dessa crise – em todo caso inerente ao capitalismo imperialista – vem sendo o de que os mesmos Estados que amar-gam dívidas públicas históricas e arrocham a classe trabalhadora e aos aposentados e suas famílias, não hesitam em apelar à emissão de dinheiro e amplia-ção da sua dívida pública, para salvar suas grandes empresas, especialmente as bancárias, ameaçadas de quebrar.

Nestes dias tivemos o exemplo do maior ban-co da Bélgica (o Dexia), com ramificações na Fran-ça e Luxemburgo, que foi “salvo” (nacionalizado) da bancarrota por injeção massiva de dinheiro público. Operando da mesma forma especulativa dos seus colegas e concorrentes, o Dexia estava alavancado e apoiado em uma nuvem de capital fictício imen-samente maior do que seu capital efetivo. A Bélgica, que entra com 4 bilhões de euros, terá sua dívida pública nas alturas (hoje ela equivale ao seu PIB). O Dexia vinha a caminho do colapso e tem exposição a dívidas globais de 0,7 trilhão de dólares, um mon-tante espantoso (FSP, �0/�0/��).

Este é o primeiro aspecto do qual não se pode fugir em qualquer avaliação séria da crise de ampli-

1 Gilson Dantas, doutor em sociologia pela UnB, é editor da Gilson Dantas, doutor em sociologia pela UnB, é editor da revista Contra a Corrente e autor de Natureza atormentada, mar-xismo e classe trabalhadora, Centelha Cultural, �011, Brasília, DF e de Breve introdução a economia mundial contemporânea, �011, Centelha Cultural, Brasília, DF.

tude histórica na economia mundial. Ou seja: por mais que falem em resgatar emprego, em controle da inflação/deflação e retomar “crescimento” esses governos estão fundamentalmente preocupados em resgatar o grande capital, evitar grandes queimas por conta de descontrole das tendências econômicas re-cessivas postas na agenda da crise.

A linha política do Estado burguês – refém da grande banca e dos oligopólios – é a de encampar os prejuízos e títulos podres dos grandes investidores, cobrir seus danos, evitar sua quebra e, nesse sentido, comprometer enorme massa de recursos públicos (dívidas públicas) sempre na mesma direção: fazer com que aqueles que engendraram essa crise global, que lucraram todo o tempo, que continuam lucrando na crise, se mantenham ganhando.

No caso da Europa, atualmente no epicentro da crise, junto com os Estados Unidos, é importante cha-mar a atenção para dois aspectos (tema deste artigo) que têm a ver com as bases daquele comportamento por parte dos governos, mas também com a própria crise, e com a incapacidade do capitalismo para con-jurá-la sem grande destruição de forças produtivas e sua tendência inexorável – enquanto isso não ocorra –, a ganhar tempo descarregando o pior da crise nas costas da classe trabalhadora. O foco, neste artigo, será no papel da Alemanha e, ao mesmo tempo, na questão dos estímulos/ações do Estado na crise. Co-mecemos por este ponto, do papel do Estado.

1. Saída neo-keynesiana?Keynesianos mais ou menos reciclados argu-

mentam que a Europa necessita de bons estadistas que operem o Estado – sobretudo, na EU, o alemão e o francês ou o supra-Estado da eurozona – para de-belar a crise. Através de medidas estatais sobre o mer-cado. No argumento da Carta Capital (de �/�0/��), “a única maneira de conter a espiral descendente agora, é um ato de suprema vontade coletiva dos governos da Zona do Euro para erguer uma barreira de medidas financeiras para conter a crise e colocar na governan-ça do euro uma base mais sólida”. Beluzzo (20��) pro-

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põe “rigorosa e radical regulamentação bancária”. As propostas se sucedem.

A matriz da visão de Keynes concebia a crise – mesmo aquela dos anos �0 - como produto de bar-reiras ou obstáculos “externos” e que, sendo um de-sarranjo que não nasce de condições inerentes ou en-dógenas ao sistema, pode ser reordenado pela ação do Estado. Em suma, tudo se reduziria à capacidade dos governos de conceberem a correta política públi-ca e induzirem “a economia”. O Estado seria sujeito, o mercado – os oligopólios – objeto. O meio usado seria o dos gastos públicos estimulando a inversão privada; ou gastos/cortes estatais como um elemento essen-cial para despertar o interesse dos investidores.

A engenharia para a edificação da zona do euro também foi levada adiante, em boa medida, dentro dessa visão de que os governos podem arquitetar uma união de Estados imperialistas, inclusive fiscal e monetária, e que isso poderia, em algum momento dar certo.

A crise desse projeto é evidente. Mesmo assim continuam tendo voz na mídia aqueles que pensam que o sistema pode coordenar-se e encontrar a ade-quada intervenção estatal ou supra-estatal capaz de domar a crise e conduzir a qualquer coisa do tipo Es-tados Unidos da Europa sob o império do capital ou, pelo menos, a um “sistema bancário único para a Eu-ropa” (Wolf, 20��b).

No fundo, a idéia de Keynes é a de que o Estado possa vir a determinar os movimentos da economia capitalista, de que os gastos e a indução estatal pos-sam chegar a produzir “os níveis socialmente deseja-dos de produção e emprego, e, dessa forma, deter-minar, em última instância, as leis de movimento da economia capitalista” (SHAIKH, 2006, p.72).

Muitos imaginam, e neste ponto são parcial-mente keynesianos (sub-consumistas, digamos), que a intervenção estatal orientada para aumentar o con-sumo de massa (mediante crédito ao consumo e au-mentos salariais), política de países ricos na fase cha-mada “neoliberal”, poderia ser sempre utilizada para reduzir aquela brecha entre produção e consumo e, por essa via, evitar ou contornar a crise; inclusive che-gando a reestimular os investimentos capitalistas.

Não é certo. A acumulação de mercadorias invendáveis e a sobre-acumulação de capitais não pode ser tratada como uma aberração ou um desvio do sistema e que, portanto, possa ser corrigida por um gestor estatal mais capaz politicamente. Fosse assim e não teríamos crises ou então a própria Gran-de Depressão teria sido superada pelo keynesianis-mo civil. Não foi assim: a guerra, com sua colossal destruição de forças produtivas, seguida da recons-trução e, sobretudo, na esfera política, da luta de classes, a colaboração da URSS de Stalin e dos PCs

foi o que permitiu a superação de todo um processo de bancarrota do capitalismo europeu. Mesmo as-sim, não por muito tempo: em final dos anos �960, a grande crise se reinstalou.

A razão fundamental para a falta de perspectiva de qualquer regulação estatal que não apenas contor-ne a crise histórica atual (e inclusive lance bases para qualquer idéia duradoura de eurozona) é interna, endógena ao funcionamento do sistema capitalista, mais ainda em sua fase de decadência.

Reside naquele elemento já apontado por Marx: a tendência do capitalismo a limitar o consumo de massa ao mesmo tempo em que não aceita limites ao desenvolvimento das forças produtivas. O capita-lismo não pode operar de outra forma. Imaginar que ele possa funcionar de outra forma, é o mesmo que admitir que seus agentes decisivos – os grandes oli-gopólios capitalistas – deixariam, por um instante, de perseguir a melhor taxa de lucro possível para valorizar seu capital. Teríamos, naquela ficção, o gestor estatal – de um Estado dominado pelo capital e a seu serviço – conduzindo o grande capital e não o contrário. E, sobretudo: um capitalismo que aceitaria o impacto da distribuição da sua renda, dos ganhos dos oligopólios ou a regulação do seu lucro. Peça de ficcção. Equalizar renda, aumentar salários em meio à crise (justamente quando a taxa média de lucro tende a cair ou está em queda e, mais agudamente ainda, em determinados setores do capital) é utopia reacionária, venha ou não travestida de keyesianismo ou progressismo.

As decisões de investimentos (se há que inves-tir, onde há que investir) são prerrogativas dos in-vestidores privados, dos oligopólios que não podem ser confundidos com governos. Não esqueçamos que Roosevelt, na crise dos anos �930, só “despertou” os investidores capitalistas quando estes se empolgaram com as oportunidades ultra-lucrativas da guerra.

Os oligopólios internacionais fizeram a guerra para quebrar a espinha do imperialismo rival e tra-tar, no caso dos capitais ianques, de ocupar espaços e mercados mundo afora. Essa “selvagem” luta campal entre grandes oligopólios imperialistas está fora de planejamento, fora do alcance e da vontade política de qualquer que seja o governo, por mais keynesianas que sejam suas intenções. Não há decisão de Estado que detenha a tendência do capital a perseguir o lucro e restringir o consumo, a renda. Equivale a dizer que em sua dinâmica, o capitalismo nega-se a si próprio e marcha para a crise; o problema central vem daí e não do descompasso (real) entre produção e consumo.

A questão é invariavelmente a de que o capital não encontra como rentabilizar-se. Aparece capaci-dade industrial ociosa: não dá lucro acionar as má-quinas e gastar em insumos e salários. O resultado: desinvestimentos, desvalorização da capacidade ins-

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talada, desaquecimento econômico, quebras, tendên-cias recessivas e deflacionárias em marcha.

A crise de sobre-produção e de acumulação de capital é uma crise também de sobre-produção de mercadorias. Não são separáveis. Os keynesianos pensam que sim, que se pode incidir sobre a sobre-acumulação de mercadorias gerando demanda es-tatal sobre ela. Desconsideram que o capitalismo só funciona como totalidade e sua dinâmica depende de encontrar a taxa de lucro para valorizar o capital.

Uma vez que não há crise sem saída, os agentes estatais e econômicos do sistema vão reagindo, acu-mulando suas contradições, concentrando capitais, tratando de descarregar a crise sobre a classe traba-lhadora, evoluem para quebras e destruição de forças produtivas de forma que seja o oligopólio rival ou se-tores menores os que paguem a crise. Daqui decorre que crises como a atual, na qual a zona do euro está na crista do processo, gerem conflitos entre Estados e reações e mobilizações da classe trabalhadora.

Tem-se ainda o problema de proporção ou mag-nitude histórica: como a acumulação do capital veio se desenvolvendo justapondo várias contradições glo-bais (financeirização, equilíbrio instável China-Estados Unidos etc) a partir da grande crise dos 70 sem des-truição ampliada, colossal, de capitais, a possibilida-de do crack sistêmico está posta na agenda da crise atual, o que inclui obviamente Europa.

E, nestes marcos, se a Europa não se uniu es-tavelmente na fase da bonança, muito menos encon-trará condições de fazê-lo na grande crise histórica atualmente em marcha, geradora de mais forças cen-trífugas do que de coesão.

2. Alemanha e as forças centrífugas operando sobre a EurozonaPor mais que a imprensa centre fogo nos mo-

vimentos da cúpula européia, dos chefes de Estado da França e da Alemanha, do BCE, por mais que se refira a uma zona do euro (neste caso, as �7 nações do con-junto dos 27 países da União Europeia, que utilizam o euro como sua moeda) como se ela operasse de fato em bloco, por mais que passem a idéia de certa uni-dade para além da moeda e taxa de juros em comum – a grande verdade tem aparecido mais claramente agora, no desenrolar da crise: não existe e nem exis-tia um supra-Estado ou um super-Estado que pudesse exibir, no atual terremoto, qualquer capacidade séria de gerenciamento coordenado da crise.

Uma crise que se aprofunda, de acordo com o mais recente relatório anual de estabilidade financei-ra do FMI, que alerta, segundo Wolf (20��): “Quase metade do estoque de € 6,5 trilhões em dívida pú-blica dos governos da área do euro mostra sinais de intensificado risco de crédito”... “como resultado, os

bancos que têm montantes substanciais de dívida so-berana de maior risco e volatilidade estão sofrendo pressão nos mercados”. Palavras do FMI.

A primeira reação do governo alemão, a mais forte economia do bloco, diante do afundamento da Grécia nestes últimos anos, foi no sentido de deixá-la largada praticamente à própria sorte. As providências a partir de Berlim são lentas, parciais, são contra a economia grega e sequer há unanimidade política na cúpula política alemã sobre o caminho a seguir com relação aos elos mais fracos do imperialismo europeu em crise. A burguesia alemã está dividida nesse sen-tido. Uma parte do governo pretende que a Grécia corte seus gastos para poder continuar remunerando a banca dominante e também limpe seus capitais, e é justamente essa a linha que mais interessa ao capi-talismo alemão. Para este, a situação mais funcional vem a ser aquela que favoreça a semi-colonização da Grécia e dos países mais débeis do imperialismo eu-ropeu, certamente em função dos interesses capita-listas germânicos.

Na verdade, todo o processo que vem desde a unificação alemã e da criação e operação da União Europeia, sobretudo da zona do euro, obedece a essa lógica: semi-colonização da periferia da Europa, dos Estados mais débeis como a Grécia, ofensiva imperia-lista alemã em direção ao Leste europeu que se lan-çou em processo de restauração capitalista, toda uma dinâmica em favor do grande capital alemão, agora em sua condição de principal potência exportadora (35% do seu PIB tem a ver com exportações). É mais ou menos notório que hoje o ministro das Finanças alemão é quem dita ordens ao Banco Central Europeu (núcleo duro da Eurozona) e indica o formato das de-cisões do próprio FMI.

O plano alemão é o de germanizar a Europa (por enquanto a frio) e não pode ser de outra forma, entendida a economia alemã como a de maior dina-mismo – mesmo que em processo de forte desacele-ração prevista para os próximos meses por conta da crise européia - e que, por isso mesmo, aquela cujas forças produtivas mais se chocam com as fronteiras nacionais da Europa. E também como aquela que ( nos marcos de um capitalismo em crise, porém que impôs décadas de derrota contra o mundo do traba-lho�), tratou de fundar sua maior produtividade em taxas mais profundas de exploração do trabalho (os salários dos trabalhadores alemães estagnaram na úl-tima década) e deslocalização de suas indústrias para o Leste, com ganhos nessa mesma esfera.

� A este respeito, recomendamos o texto Nos limites da restau-ração burguesa, de Matias Maiello e Emilio Albamonte, publicado na revista Estratégia Internacional n.5, julho 20��. Ele procura situar os tempos do neoliberalismo, da ofensiva do capital contra o trabalho, dentro dos marcos de uma profunda análise histórica e estratégica.

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“Com o euro acentuou-se também a liberalização dos movimentos de capitais e, consequentemente, o grau de mobilidade do capital multinacional que opera no mercado interno europeu, reduzindo os custos de internalização e internacionalização do capital. As próprias deslocalizações, quer no inte-rior na UE, quer para países terceiros, juntam-se ao desemprego para “disciplinar o trabalho”. Ao mes-mo tempo, a redução ocorrida das taxas de juro não só contribuiu para reduzir os custos de refi-nanciamento do capital e sustentar artificialmente as taxas de lucro, mas para estimular crédito junto também da classe trabalhadora, permitindo aco-modar desvalorizações dos salários por conta do endividamento, o que em si mesmo corresponde a um acentuar da exploração do trabalho, agora também por via do pagamento de juros ao capital financeiro. (...)Por detrás do objectivo único da política mone-tária – a dita estabilidade dos preços, encontra-se o objectivo, hoje cada vez mais claramente assumido e repetido, de reduzir os custos uni-tários do trabalho, ou seja, tornar a evolução dos salários dependente da evolução da produ-tividade, o que é o mesmo que dizer garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, contribuindo para a au-mentar a taxa de exploração e com ela garantir sustentação das taxas de lucro”(CARVALHO, 20��).

O euro foi uma decisão política, de classe e em determinadas condições históricas, do grande capital alemão e em parte francês. Garantiu ganhos de pro-dutividade do trabalho para o capital e foi uma res-posta do capitalismo europeu à crise naquele período que combinou a débâcle da URSS (e unificação impe-rialista da Alemanha) com a mais ampla financeiriza-ção da economia (a era da “economia da dívida”). As disparidades cresceram velozmente.

Observe-se que por essa via agravaram-se de-sequilíbrios macro-econômicos, alinhando-se, de um lado países “importadores líquidos” (devedores) e do outro, os “exportadores líquidos” (credores). O gráfi-co abaixo é elucidativo.

Balança comercial no interior da EuroZona – em milhões de euros.

Nessa medida, o euro foi bem sucedido: não em unificar a Europa mas em fragmentá-la mais, torná-la mais instável e desigual, submetê-la ao imperialismo alemão e facilitar a exploração do trabalho em cada país da eurozona.

“Aqui, o euro não falhou, cumpriu o papel para o qual foi criado. O euro foi e é um instrumento fun-damental, ao serviço da exploração do trabalho e da restauração das condições de rentabilidade do capital. (...). Em termos médios anuais, na Alema-nha, os lucros líquidos cresceram 8� vezes mais que os salários reais. Em Portugal cresceram 4 ve-zes mais e na Zona Euro 7 vezes mais. Paralelamen-te, os custos unitários do trabalho reais, em ter-mos médios anuais, tiveram uma redução de 0,5% na Alemanha e 0,�%, quer em Portugal, quer na Zona Euro. Isto tendo já em conta a recessão mun-dial de 2009, onde a Zona Euro teve um recuo no produto de 4,�%, afectando por isso a produtivida-de do trabalho (produto por pessoa empregada). Mas é talvez mais significativo ter em conta os va-lores acumulados da década do euro. Entre �001 e �010, os lucros do capital alemão aumentaram 4�,7%, enquanto os custos unitários do trabalho reais tiveram uma redução 4,6%. O mesmo se passou na Zona Euro, onde os lucros aumenta-ram 35,8%, enquanto os custos unitários do tra-balho reais tiveram uma redução de �,�%. Tam-bém em Portugal, onde os lucros cresceram na última década 25,6%, por conta de uma redução dos custos unitários do trabalho reais de �,3%. Este é um instrumento que o grande capital “euro-peu” não quer perder, mesmo face às rivalidades inter-imperialistas existentes, inclusive nos países que compõem a Zona Euro. Aliás, um instrumento para o qual as principais organizações do capital “europeu”, a Business Europe (confederação pa-tronal europeia) e a ERT (mesa redonda dos indus-triais europeus), deram um importante contributo na sua criação e sustentação” (CARVALHO, 20��).

A zona do euro, ao unificar a moeda e o a taxa de juros – sem unificar orçamentos e carente de qualquer plano econômico importante em comum, improvável, em todo caso, nos marcos do capitalismo – representou um passo adiante na , digamos assim, “diluição” das fronteiras nacionais dos 1� membros do euro, beneficiando mais diretamente aos capitais alemães e franceses.

É certo que o conjunto dos países da Eurozona ganhou a vantagem – depois de um ajuste monetário prévio – de poderem dispor de uma moeda forte, o euro, mesmo a despeito de crescentes dívidas e défi-cits públicos, sobretudo dos países mais desiguais, a exemplo da Grécia e vários outros. Mas, sobretudo, a Alemanha ganhou muito mais, ao poder avançar em seu processo de ir se lançando, em sua acumulação do capital, sobre boa parte dos países europeus. A Fonte: Carvalho (20��)

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Leste, a penetração do capital alemão foi assombro-sa. Nos elos mais débeis do imperialismo europeu, o grande capital de uma Alemanha mais competitiva avançou a passos largos; sua banca emprestou rios de euros para que países como a Grécia, por exemplo, consumissem exportações alemãs.

“O excedente comercial intra-comunitário alemão aumentou �72,3%, entre 2000 e 2007, e mesmo em 2009, apesar da recessão, o excedente co-mercial ascendeu a 70,5 mil milhões de euros, re-presentando quase 42% do PIB português desse ano. Por seu lado, em simetria, países como Por-tugal viram o seu défice comercial intra-comuni-tário agravar-se no mesmo período 23%, a Grécia 34,2%, a Espanha �05,9% e, até França, teve um agravamento do seu défice de 208,2%. Talvez tam-bém aqui se explique que, apesar das aparências, o eixo franco-alemão que conduziu o processo de integração capitalista europeia, seja já só alemão. Estes números também são demonstrativos da de-sindustrialização dos países ditos da “Coesão” e do papel a que estes foram votados no interior da UE. Por um lado, de consumidores, para escoamento da produção excedentária – quer bens transaccio-náveis, quer bens de produção, quando não mes-mo armamento, do centro da UE. Por outro lado, fornecedores de mão-de-obra barata para servir os interesses de divisão da cadeia de valor do capital multinacional, numa enorme rede de subcontra-tação. Por isso os fundos estruturais e de coesão foram essenciais, servindo os interesses do capital alemão e associados, da mesma forma que o Plano Marshall serviu o capital norte-americano.Este foi claramente o caso português, onde o mo-delo económico assentou (e assenta) nos baixos salários e na re-exportação, a par da progressiva desindustrialização e liquidação do sector primá-rio substituída por uma terciarização económica, assente em sectores de baixo valor acrescentado. Em �010, a produção industrial em Portugal en-contrava-se ao nível de �996. Entre 200� e 20�0, já sobre os auspícios do euro, a produção indus-trial nacional recuou �4,�%. Na Grécia, a con-tracção foi maior, 20,4%. Na Espanha, foi de �4% e na França a contracção foi de 6,4%. O que mais uma vez indica, que o Euro fortaleceu o impe-rialismo alemão face a outros imperialismos, nomeadamente o francês” (CARVALHO, 20��).

Todo esse processo foi movido a enormes e crescentes dívidas – marca de um capitalismo em declínio, que já não cresce aumentando historica-mente as bases de valorização do capital e sim pela via do crédito, com sua taxa de investimentos de-trás da taxa média de lucro – e, por essa via, meca-nismos como a baixa taxa de juros e as “facilidades” de uma zona com “comum” terminaram desaguan-do em superávit alemão nas exportações e forta-

lecimento do seu sistema financeiro em relação ao dos demais.

E isso em uma Europa francamente penetra-da pelo grande capital financeiro norte-americano e com o dólar, mesmo em crise, mas ainda se manten-do como a grande moeda de referência e refúgio ou reserva de valor. Na outra ponta, a Grécia acumulou o mais alto déficit em conta corrente da eurozona e uma dívida pública de mais de 300 bilhões de euros que agora se mostra impagável. Grande parte dos pa-íses chamados depreciativamente de PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha) seguiu caminho pare-cido, resguardadas as diferenças de peso.

Fica evidente a realidade de uma “união de paí-ses” que se processou na esfera da política monetária, mas sem qualquer política fiscal comum e em um am-biente onde os capitais mais fortes, os alemães e em parte os franceses, foram se impondo (mesmo que, vale ressaltar, também movidos a dívidas).

Com a crise mundial, a partir da explosão da bolha imobiliária de �008, Estados Unidos e também Europa marcharam para uma persistente tendência recessiva reiterada após os pacotes bilionários de res-gate da banca.

A resposta do “bloco” europeu (seja a UE ou a zona do euro) a essa crise, é reveladora da falta de so-lidez da “união europeia”: os sinais de coordenação diante da crise não apenas se esvaem como aparece no horizonte o risco sistêmico de que a crise européia ganhe seu Lehman Brothers e , por essa via ou por outra similar, o processo regional não só frature toda unidade como também torne bem mais grave o esta-do atual da crise mundial.

Apenas para tomar um exemplo, a cúpula da Eurozona criou um fundo, o EFSF (Fundo Europeu de Estabilização Financeira, em português), que já ame-alhou um montante de mais de 400 bilhões de euros (um fundo a partir de cotas de cada país da eurozona, sendo os maiores cotistas Alemanha e França) cuja finalidade é a de socorrer dívidas públicas impagáveis, refinanciá-las para evitar bancarrota por conta da dí-vida pública, da ameaça de suspensão do pagamento dos juros etc. e, por essa via, salvar o grande capital credor daquelas dívidas. Resultado: hesitam e discu-tem entre si sobre o que fazer com aquele fundo, em constante divergências e tensões inter-estatais.

Não há acordo entre a e Alemanha e os demais países sobre a contribuição de cada um na ampliação do fundo e, muito menos, de como utilizá-lo e quan-do. E diante da magnitude da crise, já se sabe que são recursos completamente limitados. O BCE, que se-ria o outro recurso face à crise, age timidamente na compra de bônus de dívidas públicas podres etc. sem poder contar com a liberdade e a unidade federativa dos Estados Unidos para imprimir dólar (emissão ma-

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ciça de euros seria o caminho mais curto para infla-ção na eurozona, para o enfraquecimento do euro e também para grande choque com os Estados Unidos, que precisam de um dólar mais fraco, para exportar mais, e não de um euro mais fraco). Ao mesmo tem-po em que “enquanto representantes linha dura na Alemanha e na Holanda estão à frente das exigências de que perdas maiores sejam impostas ao setor pri-vado, a França e o Banco Central Europeu (BCE) re-sistem ferozmente a qualquer iniciativa desse tipo. Temem que uma renegociação dos termos provoque nova onda de venda de ações de bancos europeus, que têm fatias substanciais de dívida da Grécia e em países periféricos na zona do euro”(Valor Econômico de 28/09/20��).

Em qualquer caso, está posto o debate de fun-do: quem vai arcar com a crise (com a quebradeira de bancos, com a queima de capitais etc). Em qualquer cenário, a crise da Grécia vai impactar duramente a Eurozona. O The Economist de 24/9/20��, referin-do-se à crítica realidade da Grécia, afirma que “se a Grécia se retirar, desrespeitando a lei, como ainda poderá ter de fazer, sofreria uma corrida a seus ban-cos, pois os depositários retirariam euros antes que fossem forçosamente convertidos em novos dracmas desvalorizados. Teria de impor controles de capital. As empresas gregas com contas internacionais correriam o risco de falência, pois ficariam subitamente sem di-nheiro para cobri-Ias. E a pressão sobre outros países instáveis aumentaria”.

O cenário de contágio é destacado também por Wolf (20��b): “Grande parte da dívida grega está em poder de credores externos. Além disso, depois que um país saísse, o risco cambial passaria a ser ainda mais real para todos os outros países vulneráveis, inclusive até mesmo a Itália e a Espanha. Tanto go-vernos como empresas em tais países poderiam facil-mente vender suas dívidas. Os bancos seriam alvo de corridas. O BCE seria forçado a conceder empréstimos sem limites. As interconexões entre bancos em âmbi-to mundial pareceriam aterradoras. Segundo o Banco para Compensações Internacionais (BIS), os bancos americanos têm uma exposição de € 478 bilhões à Grécia, Irlanda, Itália, Portugal e Espanha”.

O grande capital alemão percebe que em sua condição de mais forte imperialismo da região�, não pode perder suas posições e portanto, sabe que con-sumir aquele fundo com países como Grécia debilita a Alemanha; sabe também que fazer o BCE emitir eu-ros para salvar bancos e países mais fracos (ou dividas podres) não vai propriamente fortalecer as posições alemãs. A contradição é que a banca alemã está tam-

� Alemanha, maior contribuinte da união monetária, tem PIB de 2,5 trilhão de euros e o PIB total da zona é de pouco mais de 9 trilhões de euros.

bém exposta, entupida de bônus de dívidas soberanas podres. “Até o presidente do Conselho da União Eu-ropeia, Jean Claude Juncker, já reconheceu que essa dívida [da Grécia] terá de ter um corte de até 60%. É a mesma posição da Alemanha. Todos divergem é sobre quem paga a conta, por ora dos bancos. Se forem eles, muitos irão à lona. Se forem os Tesouros, a socieda-de paga, e vários governos tombarão. Já caíram os de Portugal, Irlanda e, agora, Eslováquia. Outros estão a caminho do buraco” (MACHADO, 20��).

A pressão dos agentes da cúpula alemã da UE inclui a indução do governo grego a privatizar ampla-mente sua economia. Querem que a Grécia promova um “queima” das suas estatais, como diz o título de matéria recente do Finantial Times de 28/06/20��, Greece faces “fire sale” shortfall.

O jornal da finança inglesa já fala em “plano Brady” para a Grécia, para a Europa; uma troca ou re-escalonamento da dívida em troca de garantias e con-trole sobre as economias mais débeis da eurozona. A cada resgate parcial – já foram vários no caso grego – se dá mais um passo na transferência da dívida pri-vada para o Estado (via BCE e FMI). Bancos e segura-doras privadas vão se livrando dos títulos podres, dia a dia assumidos pelo poder público, isto é, pelos tra-balhadores, por conta dos impostos e outras medidas de arrocho e cortes sociais.

Os embates constantes têm a ver com a dificul-dade de Alemanha, França em conseguirem chegar a qualquer acordo sério, de coordenação ou de resgate maciço da banca, arma esta aliás já bem esvaziada de-pois de 2008/2009. Um setor – os chamados falcões da Alemanha – quer mais intervencionismo alemão, quer aprofundar a centralização dos capitais alemães (aceitam criar duas Eurozonas, aceitam “perder” os países mais fracos, pretendem mais poder político dentro da atual Eurozona). Outro setor diretamente quer voltar à economia do marco, em aberto conflito com os acordos em torno do euro. Os dois setores, de uma ou de outra forma, pretendem sustentar e apro-fundar o seu processo de semi-colonização da Europa tanto a Leste quanto ao Sul. Em outras palavras, as forças produtivas alemãs já transpuseram várias fron-teiras européias e há muito tempo.

A questão está – e parte da cúpula política ale-mã sabe disso – em que a dinâmica da própria crise econômica global tem superado e transbordado todas as expectativas. Isto é, a economia tem seu próprio tempo, seu ritmo relativamente autônomo e isso eles não podem ignorar. O que inclui o risco de uma que-bra bancária importante contagiar todo o sistema e chegar a alcançar o Deutsch Bank e outros elos da ca-deia. Por isso, em parte, a França se lançou a impedir a quebra do maior banco belga. Por isso também a Alemanha não assume o discurso definitivo de des-

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cartar a Grécia, por mais que sua política seja a de por este país na lona, levá-lo à deflação.

Se o principal destino das exportações alemãs é a Europa (e também em parte os Estados Unidos), uma recessão mais brutal na eurozona impactaria pe-sadamente a economia alemã, a mesma economia que financia – com seus superávits – a liquidez norte-americana para que os Estados Unidos sigam como grande importador mundial. Ou em outras palavras, a força da posição alemã depende de sua capacida-de de continuar exportando, ou seja, depende de que os Estados Unidos não afundem (como “potên-cia” compradora). A mesma regra, em maior escala, e com muito maior dose de razão, vale para a China. A prosperidade alemã se choca com os interesses dos Estados Unidos.

As tendências econômicas mostram um anta-gonismo nunca resolvido entre Europa e Estados Uni-dos. A prosperidade dos Estados Unidos depende de defender suas posições no “espaço” europeu e pene-trá-lo com suas mercadorias, com capitais. Na con-tra-corrente, Alemanha e a China precisam – para a expansão de suas forças produtivas – que os Estados Unidos continuem demandando suas mercadorias.

Essa crise européia também é, por isso mes-mo, reveladora de uma fratura crescente no equi-líbrio mundial das últimas décadas; uma China cujo crescimento da sua plataforma industrial financiava o déficit norte-americano para que este país continuas-se comprando suas mercadorias se vê impactada pela tendência recessiva dos Estados Unidos. A Alemanha - deixando a nu a a idéia de que ali houvesse qualquer tipo de supra-Estado -, não pode abrir mão de seguir recolonizando boa parte da Europa, ao mesmo tem-po em que se esquiva de assumir os custos da crise além de amargar a tensão já mencionada em torno de quê política adotar frente aos membros da Eurozo-na que ameaçam default (suspensão de pagamento de dívidas soberanas).

O único ponto em que o conjunto da burguesia européia é unânime é na necessidade de desfechar uma política econômica anti-operária. “Surpreendi-dos pelos efeitos adversos de seus clamores na alma popular, os investidores elevam o prêmio exigido para absorver os papéis de dívida, sejam eles soberanos ou privados. Salvos pela vigorosa intervenção das agên-cias do Estado encarregadas da gestão da moeda, do crédito e das finanças públicas, os senhores da banca cuidaram de transmutar a garantia pública em poder privado (...) para exigir um ajuste fiscal sem preceden-tes na economia da Eurolândia” (BELUZZO, 20��).

A base da mais profunda dificuldade e impas-ses antagônicos do capitalismo é que o pressuposto para o prosseguimento “virtuoso” da acumulação do capital depende de uma destruição planetária e

sem precedentes, de forças produtivas. Precisamen-te porque, como já foi argumentado, o processo que desembocou na atual crise se deu com base na não-queima maciça de capitais desde a crise mundial de �973 e nas crises que foram se acumulando desde en-tão. A banca européia foi alavancada – assim como a economia europeia de uma maneira geral – por dívi-das. Hoje aproximadamente � trilhão de euros podres pairam sobre a eurozona. Assim também como se vê ameaçada a economia do imperialismo norte-ameri-cano, que exibe sinais de decadência histórica e crise de hegemonia sem outro hegemon à vista.

O supra-Estado europeu funcionou como uma casca dentro da qual o imperialismo alemão se for-taleceu, às custas do aumento das tensões naciona-listas, agora apontando na direção de mais tensão geopolítica, mais um surto nacionalista de conseqü-ências políticas imprevisíveis,ao mesmo tempo em que se recoloca na pauta a necessidade, para o pros-seguimento do funcionamento capitalista, daquela histórica queima de capitais.

Por isso tudo a Eurozona vive a pior crise eco-nômica desde sua criação. E o capitalismo a pior crise desde o crack de �929. As tendências próprias da luta de classes também ganham força, neste caso, como o único elemento, via classe trabalhadora, que pode – se puser de pé a estratégia revolucionária a tempo – assumir o papel de única e efetiva saída à crise, com a encampação do grande capital sob gestão e planifi-cação das forças revolucionárias da classe operária e seus aliados.

Bibliografia:

BACH, Paula, 20��. Terceiro ano da crise econô-mica internacional: as medidas de contenção se tornam elos débeis. In Estratégia Internacional-Brasil, n. 5, julho 20��.BELUZZO, Luiz Gonzaga, 20��. Esperanças e pade-cimentos. In Carta Capital de �7/5/20��CARVALHO, Pedro, 20��. O fracasso do euro. In Portugal e a UE n.6�, agosto 20��-�0-�4CHINGO, Juan, 2008. Crisis y contradicciones del “capitalismo del siglo XXI”. In Estratégia Interna-cional n.24, enero 2008.FIORI, JL, 20��. O custo intangível do fracionamen-to europeu. Valor Econômico 22/09/20�MACHADO, Antonio, 20��. Crise de bom senso, Correio Braziliense, 1�/10/�011SHAIKH, Anwar, 2006. Valor, acumulación y crisis. Buenos Aires: Ediciones RyR.WOLF, Martin, 20��. Medo e rejeição na zona do euro, Valor Econômico 28/09/20��WOLF, Martin, 20��b. Por que um rompimento é tão difícil? Valor Econômico 2�/09/20��

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Maria Teresa Buonomo de Pinho1

1. Feuerbach e a virada ontológica de Marx em direção ao materialismoAté meados de �843, Marx desenvolve seu

pensamento dentro dos marcos teóricos do idealis-mo hegeliano e neo-hegeliano. Marx é então um fi-lósofo idealista, ou seja, acredita que as idéias cons-tituem o fundamento da realidade. Além disso, Marx então compartilha da crença hegeliana e neo-hege-liana no aperfeiçoamento da política em direção ao Estado racional, que representaria o interesse de cada um e de todos. Os escritos de Marx da Gaze-ta Renana, publicados entre abril de �842 e março de �843, testemunham esse quadro teórico do Marx pré-marxiano, ou seja, do Marx que ainda não era materialista e comunista.

Marx, nos artigos da Gazeta Renana, toma como objeto a miséria alemã, quer dizer, o atraso alemão em relação aos países modernos. Enquanto na França e na Inglaterra já vigorava o Estado burguês moderno, na Alemanha sobrevivia o Estado feudal-absolutista. Marx, nessa etapa do seu itinerário intelectual, inves-tiga esta realidade, o atraso alemão, a partir do qua-dro teórico da filosofia especulativa alemã - do idea-lismo hegeliano e, em particular, do idealismo ativo da filosofia jovem hegeliana. Cabem então algumas palavras acerca desse quadro teórico.

Segundo Lukács, a filosofia hegeliana é a filo-sofia da realidade pós-revolução francesa de �789. Comparando a filosofia hegeliana à filosofia do Ilu-minismo, Lukács afirma que a diferença entre ambas “decorre da diferença de situação: pós-revolucionária no caso de Hegel, pré-revolucionária para os iluminis-tas” (�979a, p. �6). O ideal político do Iluminismo, o Estado liberal concebido enquanto Estado fundado na razão, apresenta-se como uma forma política do futu-ro. A filosofia de Hegel é, por outro lado, a filosofia da realidade pós-revolucionária. Segundo Lukács:

� Professora Assistente da Universidade Federal de Sergipe.

A experiência filosófica central de Hegel é a grande-za da realidade pós-revolucionária. Assim como os iluministas estavam profundamente convencidos de que a subversão do mundo feudal-absolutista não deixaria de criar um reino da razão, também Hegel estava convencido - com igual profundidade - de que o ideal com que tanto haviam sonhado os melhores espíritos começava a se realizar precisa-mente em seu presente. (�979a, p. 27-28).

Hegel concebe o Estado feudal-absolutista como uma formação política que tem a pretensão de ser representante do interesse da sociedade como um todo, mas que, na realidade, representa apenas os interesses das camadas feudais dominantes. Por outro lado, Hegel concebe o Estado burguês como um Estado racional

Hegel reconhece, por um lado, a batalha de todos contra todos, ou seja, a contradição que se desenvolve entre os diferentes interesses particu-lares na sociedade civil. Por outro lado, Hegel acre-dita que a luta entre os diferentes interesses parti-culares que inferniza a sociedade civil é superada através da ação do Estado moderno que, segundo ele, representaria o interesse universal de toda a sociedade, o interesse de cada um e de todos. Hegel concebe o seu presente tanto como o reino da con-tradição (sociedade civil), quanto como o reino da realização da razão (Estado burguês compreendido como Estado racional).

De acordo com Lukács: “A filosofia de Hegel não é compreensível sem esta dupla delimitação: domínio, prioridade ontológica da razão, num mundo formado pela Revolução Francesa, ou, mais concretamente, pelo modo bastante esfumaçado através do qual Na-poleão a realizou” (�979a, p. 9). Hegel

quer demonstrar filosoficamente que o próprio presente é um reino da razão, com o que a contra-dição termina por se elevar a categoria ontológica e lógico-gnosiológica central. (...) A contraditorie-dade como fundamento da filosofia e, em combi-nação com isso, o presente real como realização da

Considerações acerca da influência de Feuerbach sobre Marx e da crítica de Marx a Feuerbach A

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Feuerbach

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razão constituem, por conseguinte, os marcos on-tológicos do pensamento hegeliano. Essa combi-nação faz com que lógica e ontologia se explicitem e articulem em Hegel num grau de intimidade e de intensidade até então desconhecido. (LUKÁCS, �979a, p. �0).

Podemos afirmar então que o idealismo filo-sófico de Hegel tem um caráter lógico-ontológico. A concepção hegeliana do Estado moderno enquanto Estado racional está ligada a esse caráter lógico-on-tológico; além de estar também enraizada no atraso alemão e nos próprios limites do desenvolvimento do ser social no tempo de Hegel. Marx instaura seu pró-prio pensamento a partir da efetuação de uma crítica ontológica da filosofia hegeliana e de uma crítica on-tológica da política (CHASIN, �995). Marx assim funda uma nova ontologia materialista e reconhece a reali-dade do Estado moderno.

Hegel apresenta uma nova ontologia fundada sobre a lógica, reelaborada por ele em termos dialéti-cos. A lógica hegeliana é uma ontologia. A ontologia, em Hegel, se apresenta através de categorias e rela-ções lógicas. A ontologia hegeliana - o pensamento que reproduz a realidade do ser em si - é apresentada enquanto história do conceito lógico, em outras pala-vras, enquanto história da Ideia.

As antinomias presentes no pensamento de Hegel decorrem, em primeiro lugar, da deformação a que são submetidos os fatos ontológicos a fim de serem forçados a entrar em formas lógicas. Hegel, ao fundar a nova ontologia sobre a lógica, teve o mérito de lançar as bases de uma nova lógica, dialética. Po-rém, Hegel, por outro lado,

dando expressão à sua nova ontologia nessa nova lógica, ele sobrecarregou as categorias lógicas de conteúdos ontológicos, englobando incorretamen-te em suas articulações relações ontológicas, além de ter deformado de várias maneiras os importan-tíssimos conhecimentos ontológicos novos ao for-çar seu enquadramento dentro de formas lógicas. (LUKÁCS, �979a, p. 42-43).

A nova ontologia é apresentada enquanto história da Idéia que realiza a si mesma. A Idéia é tomada como sujeito e este é identificado com o objeto. De acordo com a filosofia hegeliana, “a so-ciedade chegou no presente a adequar-se à idéia; com isso, a saída desse estágio termina sendo consi-derada como uma impossibilidade lógica” (LUKÁCS, �979a, p. �8). O Estado moderno e a realidade a ele associada, a sociedade civil ou sociedade bur-guesa, é - segundo a concepção hegeliana - a Idéia realizada, a suprema realização da razão. Em outros termos: a realidade da sociedade burguesa em as-

censão apresenta-se para Hegel como o coroamento final da história.

Os jovens hegelianos herdaram de Hegel o idealismo especulativo, ou seja, a concepção de que a idéia funda o ser, de modo que, de acordo com a sua concepção, revolucionado o mundo das idéias, através da filosofia crítico libertadora, a realidade se transformaria. Os jovens hegelianos tomaram de Hegel também a concepção de que a política é algo substancial do homem e, ademais, a fé no aperfei-çoamento da política e do Estado, aperfeiçoamento este compreendido como meio para resolver as con-tradições sociais.

Em �859, no Prefácio à Para a Crítica da Eco-nomia Política, Marx nos fornece a chave para a iden-tificação do momento preciso da instauração do seu próprio pensamento. Ele confessa que durante o pe-ríodo da Gazeta Renana se viu “pela primeira vez em apuros por ter que tomar parte na discussão sobre os chamados interesses materiais” (�982, p. 24). Marx acrescenta que, diante da condenação da Gazeta Re-nana à morte (em abril de �843), decidiu se “retirar do cenário público para o gabinete de estudos” (�982, p. 24), onde, segundo suas próprias palavras, “O pri-meiro trabalho que empreendi para resolver a dúvida que me assediava foi uma revisão crítica da filosofia do direito de Hegel” (�982, p. 24).

Estes relatos revelam que Marx ao tentar resol-ver problemas materiais a partir de sua base teórica primitiva se viu em “apuros”. Ao ter que lidar com problemas sociais concretos, Marx colocou em dúvi-da esta base teórica. Estes relatos revelam também que Marx não conseguiu, durante o período da Ga-zeta Renana, se desembaraçar dos apuros, tanto que carregou para o “gabinete de estudos”, em Kreuznach, a “dúvida que o assediava”.

Marx, em meados de �843, submete a filoso-fia especulativa do direito e do Estado a uma crítica de natureza ontológica. Marx não se limita mais a interpretar a realidade a partir da teoria do Estado enquanto instituição racional. Agora, em primeiro lu-gar, Marx interroga a teoria a partir da realidade do Estado e da sociedade, ou seja, questiona a teoria do Estado racional a partir da realidade da vida social. Marx, desde então, passa a tomar a realidade exis-tente em si como fundamento da teoria, o ser em si como fundamento do saber.

A crítica ontológica da razão especulativa, - em outros termos, o reconhecimento da prioridade da re-alidade existente em si, da objetividade sensível em sua diversidade, sobre o pensamento -, constitui parte essencial da obra de Feuerbach publicada pouco antes da instauração do pensamento marxiano de Marx.

Feuerbach, de acordo com J. Chasin, exerceu uma importante influência sobre Marx neste mo-

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Considerações acerca da influência de Feuerbach sobre Marx e da crítica de Marx a Feuerbach

mento da instauração do seu próprio pensamento. Cabem então algumas palavras de Feuerbach, com a finalidade de explicitar sua crítica à razão especu-lativa e suas exigências pela fundação de uma nova ontologia materialista.

Feuerbach volta-se contra a concepção hege-liana de que a realidade sensível - a efetividade, a objetividade - é posta pela idéia lógica. De acordo com Feuerbach:

Quem não abandonar a filosofia hegeliana, não abandona a teologia. A doutrina hegeliana, se-gundo a qual a natureza, a realidade, é posta pela idéia, só é a expressão racional da doutrina teoló-gica, segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por um ser imaterial, isto é, abstra-to. (�988, p. 3�).

Para Feuerbach - em contraposição à especula-ção hegeliana - o ser existente em si é o fundamento do pensamento. O autor afirma:

A verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o sujeito, o pensamento o pre-dicado. O pensamento provém do ser, mas não o ser do pensamento. O ser existe a partir de si e por si - o ser só é dado pelo ser. O ser tem o seu fun-damento em si mesmo, porque só o ser é sentido, razão, necessidade, verdade, numa palavra, tudo em todas as coisas. O ser é, porque o não ser é não ser, isto é, nada, não-sentido. (�988, p. 3�).

Feuerbach proclama que a tarefa da filosofia é voltar-se para o reconhecimento enfático da objetivi-dade sensível: “A filosofia é o conhecimento do que é. Pensar e conhecer as coisas e os seres como são - eis a lei suprema, a mais elevada tarefa da filosofia” (�988, p. 26).

Feuerbach afirma por toda parte o caráter fun-dante da objetividade sensível auto-posta. Nas pala-vras de Feuerbach:

O real, em sua realidade ou enquanto real, é o real enquanto objeto dos sentidos, é o sensível. Verda-de, realidade e sensibilidade são idênticas. Só um ser sensível é um ser verdadeiro, um ser real. Só mediante os sentidos se dá um objeto em sentido verdadeiro - e não mediante o pensar por si mes-mo. O objeto dado pelo pensamento ou idêntico a ele é apenas pensamento. (�988, p. 79).

Ainda nas palavras de Feuerbach:

O ser da lógica hegeliana é o ser da antiga meta-física, que é enunciado de todas as coisas indis-tintamente, já que, segundo ela, todas as coisas coincidem em que estas são. Mas este ser indi-ferenciado é um pensamento abstrato, um pen-

samento sem realidade. O ser é tão diferenciado como as coisas que são. (...) O ser não é um con-ceito universal, separável das coisas. É uno com o que é. (�988, p. 7�).

G. Lukács também reconhece

que a virada provocada por Feuerbach no proces-so de dissolução da filosofia hegeliana teve caráter ontológico; e isso porque, naquele momento, pela primeira vez na Alemanha, foram confrontados abertamente - com efeitos extensos e profundos - o idealismo e o materialismo. (�979b, p. �2).

Porém, a opinião de Lukács é diversa da de Cha-sin, quando se trata da questão da influência de Feuer-bach sobre Marx. De acordo com Lukács, o abalo pro-vocado pelo materialismo feuerbachiano é bastante visível sobre o jovem Engels. Mas, segundo Lukács,

esse abalo é pouco visível precisamente em Marx. Os documentos nos apresentam uma aceitação compreensiva e simpática de Feuerbach, que apa-rece, porém, sempre como crítica e exige um de-senvolvimento crítico. Podemos encontrar essa atitude desde as primeiras cartas (já em �84�); ela se revestirá de uma forma inteiramente explícita - em meio à batalha contra o idealismo dos hege-lianos - na Ideologia Alemã. (�979b, p. �2-�3).

Cumpre ressaltar que, de acordo com J. Chasin, Marx jamais foi feuerbachiano, não obstante o reco-nhecimento da forte influência de Feuerbach sobre Marx, em especial no que se refere à questão da supe-ração do caráter especulativo da filosofia. Chasin lem-bra das diferenças entre os dois autores no campo da tematização política. Enquanto Marx, já no momento da viragem ontológica, desenvolve sua concepção crí-tica da razão política, Feuerbach por toda sua obra é um defensor entusiasta do Estado racional (CHASIN, �995, p. 372-373).

Com certeza, existe muito em comum entre a filosofia feuerbachiana e o Marx marxiano que prin-cipia em meados de �843, tanto na recusa da razão especulativa auto-sustentada, quanto no reconheci-mento da objetividade auto-posta como fundamento do pensamento. Por toda a obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel aparece a condenação marxiana da idéia lógica como sujeito, da idéia como fundamento da realidade, da objetividade, do efetivamente exis-tente, enfim a condenação da idéia pura como origem do multiverso sensível.

Em toda a extensão da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx é taxativo ao criticar o proce-dimento hegeliano de enformação das categorias da lógica na realidade do Estado moderno. Na Filosofia do Direito,

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a essência das determinações do Estado não con-siste no fato de estas serem determinações do Es-tado, mas sim no de poderem ser consideradas, na sua forma mais abstrata, como determinações lógico-metafísicas. O aspecto que se torna mais importante é o da lógica e não o da filosofia do di-reito: o trabalho filosófico não procura encarnar o pensamento em determinações políticas, mas sim volatizar as determinações políticas em pensamen-tos abstratos. O momento filosófico não é a lógica do objeto mas sim o objeto da lógica. A lógica não serve para justificar o Estado; pelo contrário, é o Estado que serve para justificar a lógica. (MARX, �98�, p. 28).

Em suma: “Hegel dá à sua lógica um corpo po-lítico: não nos dá a lógica do corpo político” (MARX, �98�, p. 6�).

Criticando a preocupação de Hegel com a “coi-sa da lógica” - a interpretação da realidade do Esta-do e da sociedade civil a partir de um pensamento já elaborado e, ademais, colocando em seu lugar a necessidade da investigação da “lógica específica” da “coisa específica”, Marx alcança a compreensão de que é a sociedade civil, - o conjunto de relações contraditórias travadas na produção material da vida social -, o verdadeiro fundamento do Estado e das relações jurídicas. No Prefácio de 1859, Marx nos re-lata esta aquisição:

Minha investigação desembocou no seguinte re-sultado: relações jurídicas, tais como formas de es-tado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado de-senvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais da vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’, seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; a anatomia da bürgerli-che Gesellschaft (sociedade civil ou burguesa) deve ser procurada na economia política. (�982, p. 25).

Nesta passagem, Marx deixa bastante claro que foi com a revisão da filosofia do direito de Hegel que instaurou seu próprio pensamento. O objeto da crítica - a obra Filosofia do Direito de Hegel - já im-plica a vinculação de duas críticas ontológicas na gê-nese do pensamento de Marx, quais sejam: (i) crítica ontológica da politicidade e (ii) crítica ontológica da filosofia especulativa.

É também no Prefácio de 1859 que Marx nos relata que deu início aos seus estudos econômicos, após ter descoberto que a “anatomia da sociedade civil”, fundamento do Estado, “deve ser procurada na economia política”. Esta descoberta o conduz a uma terceira crítica ontológica: a crítica da econo-mia política.

Ao compreender a relação efetiva entre socie-dade civil e Estado, Marx rompe definitivamente com a idéia do aperfeiçoamento do Estado até o Estado racional. Marx abandona a crença politicista no aper-feiçoamento da política e do Estado, - que, como vi-mos, marca seus escritos anteriores e os identifica ao hegelianismo radical -, e passa a elaborar a sua con-cepção crítica da razão política. A razão política passa a ser vista como parcial, pois representa o interesse particular da classe dominante sob a forma aparente e ilusória de interesse universal da sociedade.

2. A crítica de Marx ao materialismo inconsequente de FeuerbachNão obstante reconhecer os méritos do mate-

rialismo de Feuerbach, Marx critica os limites desse materialismo, qualificando-o como um materialismo sem consequências práticas, no que se refere ao seu poder de transformar a realidade social. Segundo Marx, Feuerbach é materialista, mas não leva em con-ta a história, isto é, não concebe o papel do sujeito na história. Nas linhas abaixo, trataremos da crítica de Marx a Feuerbach, tal como aparece nas obras A Ide-ologia Alemã e Teses sobre Feuerbach.

Na obra A Ideologia Alemã, Marx e Engels afir-mam que Feuerbach tem o mérito de perceber que o homem é também um “objeto sensível”. Porém, Marx e Engels falam também dos limites do materialismo feuerbachiano: Feuerbach não reconhece que o ho-mem, além de ser “objeto sensível”, é também “ativi-dade sensível”, isto é, sujeito da história humana. Os autores escrevem que Feuerbach

Não vê que o mundo sensível em seu redor não é objecto dado directamente para toda a eternida-de, e sempre igual a si mesmo, mas antes o pro-duto da indústria e do estado da sociedade, isto é, um produto histórico, o resultado da activida-de de toda uma série de gerações cada uma das quais ultrapassava a precedente, aperfeiçoando a sua indústria e o seu comércio, e modificava o seu regime social em função da modificação das necessidades. Os objectos da mais simples ‘certe-za sensível’ só são dados a Feuerbach através do desenvolvimento social, da indústria e das trocas comerciais. Sabe-se que a cerejeira, como todas as outras árvores frutícolas, foi trazida para as nossas latitudes pelo comércio, apenas há alguns séculos, e que foi somente devido à acção de uma socieda-de determinada, numa época determinada, que a árvore surgiu como ‘certeza sensível’ a Feuerbach. (s/d, p. 30).

Na obra Teses sobre Feuerbach, Marx faz a crí-tica do materialismo contemplativo e inconsequente de Feuerbach. Marx afirma que Feuerbach, apesar de

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Considerações acerca da influência de Feuerbach sobre Marx e da crítica de Marx a Feuerbach

materialista, não leva em conta a história. Vejamos uma síntese da argumentação de Marx nas Teses so-bre Feuerbach.

Na primeira tese, Marx começa afirmando: “O principal defeito de todo materialismo até aqui (in-cluído o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a for-ma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente” (�986, p. �25). Marx aqui reclama que o velho ma-terialismo (incluído o de Feuerbach) tem um defeito, mais propriamente tem uma lacuna, ou seja, é redu-tor. O velho materialismo é reducionista porque re-duz a coisidade do mundo a duas coisas, quais sejam: (�) mundo como exterioridade (objeto) e (2) mundo como interioridade (intuição, conhecimemto imedia-to). O “velho materialismo” não compreende que o mundo é também uma terceira coisa, qual seja: “ati-vidade humana sensível”. O “velho materialismo” não compreende que a coisidade do mundo, a realidade, é também objetivação da subjetividade, ou seja, sub-jetividade coagulada sob a forma de coisa. Em suma: o “velho materialismo” não leva em conta o papel do sujeito na história. A crítica de Marx é ontológica: Marx não reclama de uma forma de captar o mundo, mas de uma forma de ser (o “velho materialismo” não vê o mundo inteiro).

Marx então afirma: “Eis por que ocorreu que o aspecto ativo, em oposição ao materialismo, foi desenvolvido pelo idealismo – mas apenas abstrata-mente, pois o idealismo, naturalmente, desconhece a atividade real, sensível, como tal” (�986, p. �25). Marx aqui afirma que na medida em que o materia-lismo não teve a capacidade de constatar a questão da atividade subjetiva, esta foi constatada pelo idea-lismo. Marx reconhece esse mérito do idealismo, mas também critica os limites do idealismo. Afirma que o idealismo reconhece a atividade subjetiva, mas só co-nhece a atividade abstrata, a atividade teórica, a ati-vidade da razão. O reconhecimento da atividade sub-jetiva pelo idealismo não é falso, incorreto. Porém, é falsificador porque é apenas parcial: a atividade real não é reconhecida pelo idealismo.

Marx então volta ao Feuerbach. Afirma que Feuerbach quer objetos sensíveis (reais), diferentes dos objetos do pensamento; ou seja: quer a exterio-ridade além da interioridade. Porém, não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva. Marx acrescenta que Feuerbach “considera apenas o comportamento teórico como o autenticamente hu-mano, enquanto que a práxis só é apreendida e fixa-da em sua forma fenomênica judaica e suja” (�986, p. �25). Feuerbach “não compreende a importância da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’” (MARX, �986, p. �25).

Conforme explicita os dois últimos trechos, Marx reconhece duas formas de atividade, quais se-jam: (�) a atividade abstrata ou teórica; (2) a atividade concreta ou prática. Segundo Marx, a atividade abs-trata não é um mal em si – a teoria não é um mal, mas algo necessário, embora insuficiente. Não basta inter-pretar o mundo, mas esta interpretação é necessária para transformar o mundo.

Marx distingue duas formas de atividade prá-tica ou concreta: (�) a atividade prática em sua for-ma fenomênica judaica e suja; (2) a atividade prática revolucionária. A primeira apenas reproduz o mundo, tal como ele já é. A segunda pode transformar radical-mente a forma da sociabilidade do mundo humano.

Na segunda tese, Marx afirma: “A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. È na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pen-samento. A disputa sobre a realidade ou não-realida-de de um pensamento que se isola da práxis – é uma questão puramente escolástica” (�986, p. �25-�26). Nesta segunda tese, Marx trata da questão do saber, da questão gnosiológica. Marx parte de uma crítica ontológica (tese I, como vimos) para depois tratar do problema do conhecimento, o que revela a prioridade da ontologia sobre a gnosiologia em seu pensamento.

A crítica de Marx, nesta segunda tese, não se dirige ao pensamento descompromissado. Marx criti-ca o pensamento contemplativo. O pensamento con-templativo não é pensamento legítimo, porque não é pensamento do sujeito ativo. O pensamento é legíti-mo quando é componente de um processo sensível, quando é pensamento do sujeito ativo. Pensar é uma relação entre sujeito e objeto. Porém, não é uma re-lação unilateral entre sujeito e objeto, onde um pólo (o sujeito) captura o outro (o objeto), tal como ocor-re no pensamento contemplativo. O movimento é de mão-dupla: o pensamento capta e põe. A razão não só interroga os objetos, mas também responde aos objetos. Pensar é refletir.

Segundo Marx, a questão de saber se cabe ao pensamento uma verdade objetiva é uma questão prática. Algo é subjetivamente correto quando pode transformar-se em mundo. A verdade não é uma cria-ção da cabeça, mas uma idealidade mentada homólo-ga ao concreto.

Na terceira tese, Marx volta a criticar o materia-lismo inconsequente. Este afirma que os homens são produtos das circunstâncias e que os homens trans-formados são produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada. Marx argumenta então que o antigo materialismo esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador deve ser educado.

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Na quarta tese, Marx faz a crítica da crítica feu-erbachiana da religião. Feuerbach dissolve “o mundo religioso em seu fundamento terreno” (MARX, �986, p. �26). Marx, por um lado, reconhece o mérito da crítica da religião: esta crítica aponta o fundamento terreno da religião e, portanto, desvenda que o erro está na ter-ra e não no céu. Porém, por outro lado, Marx aponta a insuficiência da crítica da religião. Marx afirma a neces-sidade de passar da crítica da religião (da consciência invertida do mundo) para a crítica da terra, isto é, do próprio mundo invertido. Feuerbach, segundo Marx, não compreende que depois de apontar o fundamento terreno do mundo religioso o principal ainda resta fazer. O que resta a fazer, em suma, é criticar e transformar o fundamento terreno do mundo religioso. O que deve ser feito (e Feuerbach não faz) é: (�) compreender a contradição e a dilaceração do mundo terreno; (2) re-volucionar praticamente o mundo terreno (pela elimi-nação da contradição).

Na sexta tese, Marx trata do que é a essência humana. A essência humana, segundo o Autor, não é uma qualidade abstrata inerente ao indivíduo isolado. A essência humana “é o conjunto das relações sociais” (MARX, �986, p. �27).

Na nona e na décima tese, Marx acentua o ca-ráter inconsequente do materialismo feuerbachiano. “O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade ‘civil’: o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade socializada” (MARX, �986, p. �27). O velho materialismo, como não compreende a ativi-dade humana como criadora, não pode compreender a transformação revolucionária da sociedade. Por este motivo, não pode compreender a vida humana além da vida da sociedade de classes, ou seja, além da vida na sociedade civil.

Na décima primeira tese, a mais famosa delas, Marx afirma: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo” (MARX, �986, p. �27). Nesta tese, Marx não condena que os filósofos tenham interpretado o mundo, mas que tenham se limitado a isso. Marx afirma que o importante é transformar o mundo. Porém, se-gundo Marx, a interpretação correta do mundo é essen-cial para transformá-lo. Só se pode transformar o mun-do pensando. A atividade prática deve ser acrescentada à atividade teórica para que o mundo seja revoluciona-do. No pensamento marxiano não há uma contraposi-ção entre pensamento e prática. Marx não rompe com a filosofia, mas com seu caráter especulativo.

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Darwin, a evolução e a revolução

Darwin considerava a evolução como um processo gradual a passos ordenados e à veloci-dade constante. Era adepto da máxima de Lineu: `A natureza não dá saltos`. Esta concepção se re-fletia em todos os aspectos do mundo científico. Um dos discípulos de Darwin foi Charles Lyell, o apóstolo do gradualismo no terreno geológico. Darwin estava tão comprometido com o gradua-lismo que baseou nele toda a sua teoria: `O regis-tro fóssil é extremamente imperfeito, e isto explica em grande medida que não encontremos varie-dades intermináveis, vinculando e unindo todas as formas de vida existentes e extintas em escalas graduais. Qualquer fato que rejeite esta visão do caráter do registro fóssil estará rejeitando toda a minha teoria`. Este gradualismo darwiniano es-tava enraizado nos pontos de vista filosóficos da sociedade vitoriana. Todos os saltos, as mudanças abruptas e as transformações revolucionárias fica-vam eliminadas desta `evolução`. Esta visão anti-dialética dominou a maioria das ciências até o pre-sente. `Um preconceito profundamente enraizado no pensamento ocidental predispõe-nos a buscar continuidade e mudança gradual`, diz Gould`.

(Alan WOODS; Ted GRANT, 2007 em Razão e revolução)

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Michel Goulart da Silva1*

A influência de E. P. Thompson marcou profun-damente uma importante parcela da historiografia brasileira, trazendo contribuições fundamentais para as reflexões e pesquisas dos historiadores brasileiros, principalmente a partir da década de �980. Pode-se perceber essa influência no volume Conversas com historiadores brasileiros, que reúne relatos de quin-ze historiadores brasileiros, de diferentes gerações e com formações teóricas e políticas bastante diversas. Por exemplo, a historiadora Emilia Viotti da Costa afir-ma que em sua formação “as influências da chama-da École des Annales foram contrabalançadas pelas do marxismo”, citando, entre outros, E. P. Thomp-son (MORAES, 2002, p. 7�). Boris Fausto fala de The making of the english working class como “um livro que me encantou” (MORAES, 2002, p. ��4). Maria Odila Leite da Silva Dias conta: “No meu último ano da faculdade, em �96�, ganhei dele [meu pai] um exem-plar do Edward P. Thompson, por quem me apaixonei desde então” (MORAES, 2002, p. �87). Quanto às con-tribuições mais específicas de E. P. Thompson, Edgar De Decca afirma que com The making of the english working class “começamos a aprofundar a questão do fazer-se dos sujeitos históricos, como os sujeitos his-tóricos se constituíam” (MORAES, 2002, p. �72).

Por meio desses relatos fragmentados pode-se perceber que, de diferentes formas, as contribui-ções teórico-metodológicas de E. P. Thompson, bem como de outros membros do Grupo de Historiadores do Partido Comunista Britânico (The Group), impacta-ram tanto historiadores marxistas como historiadores formados a partir das influências da História Nova. Faziam parte do The Group historiadores como Eric Hobsbawm, Christopher Hill e George Rudé, além de E. P. Thompson. Esses historiadores romperam com o partido em função da crise no movimento comunista internacional, em �956, provocado por diversos fa-tores, como a invasão da Hungria e a divulgação por Nikita Krushev dos relatórios denunciando os crimes de Stalin (FORTES & NEGRO & FONTES, 200�, p. 22-

� Mestrando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

5�). Sob a influência desses intelectuais ingleses, su-perando os esquemas conceituais mecânicos do sta-linismo e as formulações teóricas etéreas da escola althusseriana, parte dos historiadores marxistas no Brasil, a partir da década de �980, deram especial ên-fase ao estudo empírico das relações de classe e das formações históricas, deixando de lado as tentativas de encaixar seus objetos de pesquisa em formulações teóricas pré-determinadas.

A contribuição de E. P. Thompson normalmente mais destacada é sua formulação do conceito de clas-ses sociais, do qual desdobra a noção de experiência, polemizando com as interpretações estruturalistas do marxismo e procurando no próprio Marx a referência para sua interpretação. Embora datem da década de �960, tendo como marco sua famosa obra A formação da classe operária inglesa (�963), muito tardiamente essas contribuições trouxeram importantes inovações à historiografia brasileira, ainda que seja perceptível anteriormente sua influência entre cientistas sociais (MATTOS, 2006, p. 88-96). Soma-se a esse atraso o fato de as obras de E. P Thompson terem sido tradu-zidas em língua portuguesa apenas a partir da década de �980. Como consequência, seus textos chegaram ao Brasil de uma forma bastante dispersa e em gran-de medida circulando entre os acadêmicos brasileiros por meio de uma coletânea de ensaios prefaciada pelo historiador espanhol Joseph Fontana. Essa dispersão certamente acarretou dificuldades e disparidades na interpretação de sua obra, circulando muitas vezes em edições parciais, e sem acompanhar os debates de E. P. Thompson com seus contemporâneos.

Se a influência de E. P. Thompson na historio-grafia brasileira se deu de forma dispersa e desigual, certamente nos livros didáticos sua influência demo-rou muito mais a ser percebida. Uma primeira questão a ser levada em conta, que não se refere diretamente às contribuições de E. P. Thompson, passa pela distân-cia entre a produção histórica acadêmica e o ensino da disciplina na escola. O meio acadêmico se insere como um elaborador de conhecimentos, transpostos para o ensino. Mas esse processo de transposição di-dática não é uma mera simplificação do conhecimento histórico, pois na história escolar misturam-se grande

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E. P. Thompson

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quantidade de valores e crenças à trama de relatos históricos (MUNAKATA, �998, p. 294-5). Uma segun-da questão tem a ver com o próprio público dos li-vros didáticos, ou seja, os professores, que não estão inseridos no ringue onde são discutidas as polêmicas teóricas do campo historiográfico e, dessa forma, de-moram a incorporar essas mudanças teóricas e me-todológicas ao ensino de história. Mesmo tomando contato com os respingos dessas polêmicas, o pro-fessor em sua prática docente tem dificuldade em refletir os debates travados em congressos e revis-tas acadêmicas, optando muitas vezes por formas menos inovadoras (ou mais tradicionais) de traba-lhar os conteúdos (GATTI JUNIOR, 2004, p. 20-22). Nesse quadro, em que o final da ditadura abriu um espaço maior para que as renovações historiográfi-cas fossem incorporadas às pesquisas realizadas no Brasil, ao mesmo tempo em que se assistiu a uma maior profissionalização das editoras que produ-zem livros didáticos, a presença de E. P. Thompson parece ter sido um tanto quanto tímida nesse tipo de publicações.

Neste trabalho analisamos três livros didáti-cos, publicados em intervalos de cinco ou seis anos desde a década de �99�, e que pouco ou nada incor-poram da produção teórica de E. P. Thompson. Ana-lisaremos a terceira edição da obra coletiva escrita por Chico Alencar, Cláudia Ceccon e Marcus Ribeiro (�99�), um dos livros de Gilberto Cotrim (�996) e um livro mais recente, em sua segunda edição, publica-do por Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota (2002). Nossa análise está centrada em particular nos capítulos referentes à Primeira República, no Brasil, especialmente nos textos acerca do movimen-to operário no período. Tomamos esse recorte para cotejar os livros didáticos entre si e verificar neles a possível influência de E. P. Thompson devido à per-ceptível importância do historiador como referencial teórico nas pesquisas acerca desse tema (MATTOS, 2006, p. 96-�00). Nesses livros parece que a noção de classes sociais de E. P. Thompson não tem grande ressonância, pois os operários são tratados como es-truturas estáticas que não têm historicidade em sua formação nem são apresentados como sujeitos da constituição da história.

Nossa exposição estará centrada, em um pri-meiro momento, na sistematização da compreensão de E. P. Thompson acerca dos conceitos de classes sociais, experiência e luta de classes. Numa segun-da parte analisaremos de forma mais detida os livros didáticos acima mencionados, a partir de seus capí-tulos acerca da Primeira República e da participação política do operariado, e verificando a possível (ou inexistência de) influência teórica de E. P. Thompson nesses materiais.

Classe e experiência em E. P. ThompsonE. P. Thompson era marxista. Esta é uma frase

simples e bastante óbvia, mas que muitas vezes pa-rece ser esquecida, procurando-se resumir a obra do historiador inglês a um estudo das manifestações cul-turais da Inglaterra do século XVIII. Por outro lado, de-fendendo essa filiação teórica do historiador britâni-co, afirma-se que, apesar de suas polêmicas contra as ortodoxias dominantes em sua época, E. P. Thompson não tinha como objetivo uma ruptura com as propo-sições teóricas e metodológicas de Marx e Engels. O grande esforço do historiador inglês era justamente o de buscar nesses pensadores uma fundamentação teórica que se contrapusesse às propostas estrutura-listas que dominavam o marxismo produzido em boa parte dos meios acadêmicos pelo mundo naquele momento, ou seja, uma teoria que estivesse em per-manente diálogo com a pesquisa empírica. Em sua obra, E. P. Thompson “não aceita as teses de Marx porque as afirma Marx, mas porque suas investiga-ções o avalizam. Esse perene recurso as suas próprias investigações (ou as de seus colegas) é simplesmente admirável e aponta na direção de um marxismo e de um socialismo abertos” (MARTÍN, �996, p. 53).

E. P. Thompson criticava, principalmente, a “tra-dição stalinista”, tanto representada pelos dogmas defendidos por intelectuais ligados aos Partidos Co-munistas, como uma grande quantidade de pensado-res influenciados pelo filósofo francês Louis Althusser. Com essa tradição, o conceito de modo de produção, que aparecia de forma marginal nas obras de Marx, a ponto de não ter sido conceituado ou esquematizado de forma mais clara – ainda que tivesse grande im-portância em suas pesquisas – tornou-se a base para todas as explicações da história da humanidade nos últimos milênios. Em Marx e em E. P. Thompson pre-valece a pesquisa concreta acerca da articulação e da dinâmica das relações de produção, e não o enqua-dramento estanque de relações sociais a tipologias preconcebidas de modos de produção. Como destaca Ellen Wood, em referência crítica à relação estática estabelecida entre “base” e “superestrutura” pela es-cola de Althusser,

relações estruturais tão rigidamente determinadas e monolíticas entre os níveis econômico e supe-restrutural continuam a existir num modo de pro-dução teoricamente construído, mas no mundo histórico esse bloco estrutural pode se fragmentar e se recombinar num número infinito de formas (WOOD, 2003, p. 55).

Essa forma de analisar a história, negando ou minimizando a importância da pesquisa empírica, talvez seja a principal crítica de E. P. Thompson à tra-dição teórica stalinista e suas formulações reelabo-

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radas por Althusser. Assim, em A formação da classe operária inglesa, E. P Thompson afirma: “não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas rela-ções humanas” (THOMPSON, 2004, p. 9). Em outro momento, polemizando abertamente com Althusser, E. P. Thompson afirma que o filósofo francês “supõe que podemos chegar a uma teoria da estrutura da história redispondo e desenvolvendo nosso vocabu-lário”. Conforme E. P. Thompson, contudo, é difícil “compreender como é possível elaborar uma teoria da história que não se submeta, em nenhum momen-to, à disciplina histórica, ao discurso da comprovação próprio do historiador” (THOMPSON, �98�, p. �08). Nessas versões do estruturalismo francês que se uti-liza de alguns conceitos marxistas, encaradas por E. P. Thompson como uma ideologia vulgar, no que se refere aos estudos acerca das classes sociais, “temos de novo uma categoria profundamente estática, uma categoria que encontra a própria definição apenas em uma totalidade estrutural estática” (THOMPSON, 200�, p. 272).

E. P. Thompson, para formular seu conceito de classe, se apropria das contribuições, dispersas e fragmentadas, a respeito do tema que foram desen-volvidas por Marx, desvinculando-a das distorções produzidas pela tradição stalinista. Marx, contudo, não chegou a definir de forma mais precisa um con-ceito para definir as classes sociais. Os autores do Ma-nifesto comunista mostram nesse texto um possível método para analisar a formação de classe, quando descrevem momentos diversos das formas de consci-ência e organização por que passou a classe operária europeia nos séculos XVIII e XIX. Segundo os autores do Manifesto, “com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não apenas se multiplica; comprime-se em massas cada vez maiores, sua força cresce e ele adquire maior consciência dela” (ENGELS & MARX, 2005, p. 47).

Por outro lado, em um capítulo inconcluso de O Capital Marx apontou algumas breves notas acer-ca das classes sociais. Em primeiro lugar, chama a atenção para a necessidade de analisar a questão de forma concreta, apontando que nem mesmo numa sociedade com um capitalismo mais desenvolvido, como a Inglaterra, “se apresenta, em toda a sua pure-za, essa divisão de classes”, ou seja, operários assala-riados, capitalistas e latifundiários, definidas como “as três grandes classes da sociedade moderna, baseada no regime capitalista de produção” (MARX, �984, p. 99-�00). Pouco depois, Marx afirma que aquilo que define as classes é, “à primeira vista, a identidade de suas rendas e fontes de renda” (MARX, �984, p. �00). O manuscrito é interrompido no parágrafo seguinte,

mas o conhecimento de seu método de exposição permite entender que seu conceito não se limita à mera percepção desse fenômeno social.� Pode-se encontrar no conjunto da obra de Marx vários mo-mentos que indicam as diferentes determinações particulares que constituem a definição do fenôme-no de classe, sendo possível apontar a posição dian-te da propriedade (ou não propriedade) dos meios de produção, a posição no interior de certas relações sociais de produção, a consciência que se associa ou distancia de uma posição de classe e a ação dessa classe nas lutas concretas no interior de uma forma-ção social (IASI, 2007, p. �07).

Nesse sentido, pode-se concluir que para Marx não são apenas as relações de produção que definem as classes sociais, pois eles se definem tanto em rela-ção uma com a outra como na própria identificação de situações comuns de vida entre os sujeitos de cada uma das classes. Assim, as classes são categorias de análise que permitem visualizar diferenças entre gru-pos sociais, separados por fatores econômicos, nos quais a posição nas relações de produção é determi-nante. No entanto, é a partir da ação coletiva, essen-cialmente política, que podemos enxergar as classes sociais, na medida em que essa ação é a conjunção de interesses, imediatos ou de longo prazo, de uma determinada classe. Nos escritos de Marx, percebe-se uma compreensão das classes sociais enquanto um sujeito coletivo produzido historicamente, determina-do pelas condições materiais de produção e reprodu-ção da vida, mas cuja definição e comportamentos são também definidos por aspectos políticos, cultu-rais e ideológicos.

Seguindo os passos de Marx, E. P. Thompson afirma que os diferentes fatores intervêm no “fazer-se” das classes sociais:

a classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e se-gundo a experiência de suas situações determina-das, no interior de um ‘conjunto de suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas (THOMPSON, 200�, p. 277).

Portanto, a classe social é um fenômeno que, embora tendo na esfera da produção de mercadorias seu fator determinante, encontra na vida cotidiana e 2 Esse tema é discutido em Marx (2003). Mauro Iasi (2007, p. �06) destaca que a “a dialética de Marx não se reduz ao mo-vimento que quer captar no fenômeno, mas que tal dialética se expressa no movimento próprio dos conceitos, de forma que eles se referem a momentos de aproximação e aprofundamento da análise que parte da aparência até a essência, da essência menos profunda até a mais profunda, por vezes de volta à apa-rência carregando os conteúdos conquistados até então. Disso resulta que o leitor desavisado pode confundir uma dessas apro-ximações com “o conceito” definitivo de um determinado aspec-to ou coisa a ser estudada”.

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nas experiências coletivas um elemento que contri-bui na sua formação. Em outro texto, E. P. Thompson afirma que

a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (THOMPSON, 2004, p. �0).

Assim, os interesses comuns definem certa so-ciabilidade, que influencia diferentes esferas da vida, como a do trabalho e da política. Nas obras de E. P. Thompson a classe é uma relação histórica, “que uni-fica uma série de acontecimentos díspares e aparen-temente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência” (THOMPSON, 2004, p. 9). Essas formulações acerca da consciência de clas-se relacionam-se com o conceito de luta de classes. Para E. P. Thompson, a consciência de classe se cons-trói, entre outros fatores, por meio das experiências vividas pelo grupo social, expressas em diferentes for-mas culturais, ou seja, tradições, costumes, valores, entre outros, que são frutos da vivência em comum de um grupo social específico. Segundo Ellen Wood, “as formações de classe e a descoberta da consciência de classe se desenvolvem a partir do processo de luta, à medida que as pessoas ‘vivem’ e ‘trabalham’ suas situações de classe” (WOOD, 2003, p. 76).

Dessa forma, a consciência de partilhar inte-resses iguais, identificando-se com estes e com os membros do grupo social, são fatores que para E. P. Thompson formam a classe, a qual não existe sem a consciência. Assim, fazer parte de uma classe sig-nifica identificar-se com seus valores e seus interes-ses, tendo a consciência de que estes são partilha-dos pelo grupo. Embora a classe seja um conceito abstrato, transforma-se assim em algo palpável nos textos escritos e nas pesquisas realizadas por E. P. Thompson, afinal para o historiador inglês a classe “é definida pelos homens enquanto vivem sua pró-pria história e, ao final, esta é sua única definição” (THOMPSON, 2004, p. �2).

Os livros didáticosUm dos materiais didáticos escolhidos para

análise, escrito por Chico Alencar, Cláudia Ceccon e Marcus Ribeiro (�99�), intitulado Brasil vivo, carrega o subtítulo de “uma nova história da nossa gente”. Essa “nova história” proposta pelos autores pare-ce uma tentativa de escrever o que ficou conhecido como “história vista debaixo”, procurando inserir na cronologia da história do Brasil no século XX temas do cotidiano e de lutas políticas, bem como mostrar uma história da “gente comum”. Nesse sentido, essa histó-

ria, em se tratando da Primeira República, abre espa-ço para temas como o cangaço, o “Almirante Negro”, os pobres de Canudos, os operários, os anarquistas e os comunistas, entre outros sujeitos dessa história dos “vencidos”.

Entretanto, o livro é narrado a partir dos recor-tes consagrados pela historiografia a respeito do Es-tado brasileiro. Por exemplo, pela narrativa do livro, houve uma Primeira República, que passou por um momento de convulsões e crises, que desembocaria “no tempo do Doutor Getúlio”. Nesse caso, a novi-dade da proposta historiográfica está muito mais em relacionar a história do Estado com a história dos gru-pos sociais e menos em propor uma forma diferente de contar uma “nova história”; e uma nova história que pretende embasar-se num referencial teórico marxista, como fica evidente pela proposta de narrar as agruras vividas pelos “vencidos” e pela própria bi-bliografia apresentada como referência.

No caso do capítulo “Operários, artistas e tenen-tes querem um Brasil diferente”, além de continuar a reforçar a memória histórica do “tenentismo”, contra a qual historiadores leitores de E. P. Thompson, como Edgar De Decca e Ângela de Castro Gomes, tinham se insurgido antes do momento em que foi escrito este livro didático, o livro Brasil vivo mostra alguns proble-mas teóricos ao lidar com a classe operária. Primei-ro, sua ênfase excessiva na luta entre as classes, na medida em que os operários brasileiros aparecem na história tão somente quando estão em luta contra a ordem vigente; são personagens da história apenas por lutarem, e não também por trabalharem e serem parte daquela sociedade, compartilhando culturas, aspirações, medos etc. Segundo, os operários sim-plesmente surgem na história do país, sem que sua formação seja pensada nesse capítulo ou em algum dos anteriores, sendo, portanto, um fenômeno es-tático e sem dinâmica. E terceiro, a constituição dos operários como sujeitos sociais não reflete aspectos culturais, da sua própria experiência, mas está resu-mida ao âmbito econômico e político.

Os operários aparecem na história apenas na greve de �9�7. Segundo o livro didático, “no Brasil, nem tudo que acontecia nas ruas era festa, música e alegria. Às vezes ocorriam protestos, passeatas e cor-rerias” (ALENCAR & CECCON & RIBEIRO, �99�, p. 57). Os operários, quando definidos, não são descritos como produção histórica de relações sociais especí-ficas, mas como algo que “só têm de seu uma coisa: o próprio trabalho” (ALENCAR & CECCON & RIBEIRO, �99�, p. 58). Por outro lado, na narrativa exposta no livro didático, os operários não têm na sua própria for-mação uma relação histórica com os capitalistas, mas se relacionam com eles por “obrigação”, vendendo seu trabalho. Por outro lado, ainda que pretenda se

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amparar no referencial teórico marxista, os autores confundem os conceitos de trabalho e de força de tra-balho, na medida em que o que os trabalhadores ven-dem aos capitalistas não é um trabalho genérico, mas sua força de trabalho, aqui entendida como “o con-junto de das faculdades físicas e espirituais que exis-tem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie” (MARX, �985, p. �39).

O conceito marxista de mais valia é outro que aparece no livro didático, sendo definido como uma diferença no preço das mercadorias, “um preço bem maior do que haviam gasto para a sua produção” (ALENCAR & CECCON & RIBEIRO, �99�, p. 59). Ora, para Marx, a formação da mais valia não estava re-lacionada apenas à esfera da circulação (venda da mercadoria), mas também e principalmente à própria produção. Dessa forma, o capitalista não “passa a per-na” nos trabalhadores, como sugere o material didáti-co, mas compra no processo de produção um valor de uso (força de trabalho) que pode produzir mais valor do que o seu próprio. Segundo a formulação teórica de Marx (�985, p. �39),

para extrair valor de consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro precisaria ter a sor-te de descobrir dentro da esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo próprio valor de uso tivesse a característica peculiar de ser fonte de valor, portanto, cujo verdadeiro consumo fosse em si objetivação de trabalho, por conseguinte, cria-ção de valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado tal mercadoria específica – a capacidade de trabalho ou a força de trabalho.

Por fim, na própria questão da consciência de classe, no livro didático ela está resumida à questão das organizações ou das ideologias políticas. Afirma-se que “desde �9�9 os trabalhadores, sob a liderança dos anarquistas, vinham conseguindo que o governo e os políticos menos conservadores olhassem para eles” (ALENCAR & CECCON & RIBEIRO, �99�, p. 82). Curio-samente, na única parte em que há uma aproximação com algo parecido com uma noção de experiência, os autores se resumem a falar da relação entre “liber-tários” e operários, aproximando ideologia e consci-ência de classe. Assim, além de confundir consciência de classe com ideologia política, há imprecisões nos próprios dados historiográficos, na medida em que a inserção dos libertários entre os operários é anterior ao ano de �9�9, sendo parte disso inclusive a irrupção em São Paulo das greves de �9�7.�

3 Segundo o historiador Cláudio Batalha (2000, p. 23-4), “o anarquismo no Brasil começou a se difundir sobretudo a partir de �890, através de grupos de propaganda e periódicos (...) Os pionerios foram os jornais Gli Schiavi Bianchi (�892), L’Asino Uma-

Percebe-se, tomando esses pontos como exem-plos, que, embora tentasse apresentar uma nova pro-posta, alicerçada no referencial teórico marxista, o material didático em questão expressava não as ino-vações teóricas de E. P. Thompson, presentes de for-ma isolada em alguns historiadores naquele contexto, mas corroborava as vulgarizações da escola althusse-riana. Dessa forma, algumas das mesmas críticas pro-nunciadas por E. P. Thompson contra Althusser po-dem ser feitas ao livro didático: resumir a análise dos sujeitos operários à sua situação na luta de classes; classes como coisa estática e não como relação histó-rica; uma relação direta entre a consciência de classe e a ideologia; o operário como sujeito político apenas quando organizado em torno de uma ideologia.

Em outro livro analisado, História e reflexão, os objetivos de Gilberto Cotrim parecem ser mais modes-tos do que aqueles propostos pelos autores do livro anterior, embora dedique “atenção aos novos temas de estudos históricos como: o cotidiano, a vida priva-da, a visão dos vencidos e a mentalidade dos grupos sociais” (COTRIM, �996, p. 3). Então, seguindo essa perspectiva, aparecem nossos objetos de análise, os operários da primeira república, como números esta-tísticos. Seu “fazer-se histórico” resume-se a mostrar que, em �889, 54 mil operários trabalhavam em 600 fábricas e que, em �920, 275 mil operários trabalha-vam em �3.336 fábricas. Os operários têm sua história contada como parte do processo de industrialização pelo qual passou o país nessas duas décadas, ganhan-do vida apenas quando exigiam “cada vez mais o direi-to de participar da vida política e econômica do país” (COTRIM, �996, p. 43).

Nas poucas linhas dedicadas ao tema, descre-ve-se a situação difícil dos operários, a jornada de quinze horas de trabalho, os baixos salários, as demis-sões, as precárias situações de trabalho, os acidentes de trabalho, entre outros fatores. Como consequência dessa situação, “em julho de �9�7 foi organizada em São Paulo a primeira grande greve geral da história do Brasil por causa do descontentamento dos operários com as condições de trabalho” (COTRIM, �996, p. 44). No raciocínio proposto pelo autor, as greves surgiram como consequência direta das condições de vida “di-fícil” dos operários. A formulação do autor acerca das origens da greve está muito relacionada com a ideia mecânica de “base” e “superestrutura” defendida por Althusser, colidindo diretamente com E. P. Thompson que, retomando a noção de Marx da relação entre os diferentes âmbitos, econômico, político e cultural, ainda que determinado pelo primeiro, procura apon-no (�894-�894) e L’Avvenire (�894-95), todos publicados em São Paulo por grupos compostos majoritariamente por imigrantes ita-lianos. Já no Rio de Janeiro, os primeiros jornais anarquistas, O Despertar (�898) e O Protesto (�898-�900), foram publicados por grupos que reuniam brasileiros, espanhóis e portugueses”.

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tar as noções de consciência e experiência como me-dições entre a produção e reprodução da vida e os fenômenos que aparecem como superestrutura.

O outro livro analisado, escrito por Patrícia Ra-mos Braick e Myriam Becho Mota (2002), expressa de forma geral as mesmas limitações teóricas e metodo-lógicas dos anteriores, ou seja, a classe operária não se constituiu em um sujeito consciente nem sua for-mação é um processo contraditório e complexo. Um elemento que chama atenção é o fato de esse livro ser bastante mais recente (a edição analisada neste ensaio foi publicada em 2002), o que poderia pressu-por uma incorporação das contribuições teorias de E. P. Thompson. Nesse livro, os operários são simples-mente imigrantes europeus que, colocados em situa-ção de dificuldade social, realizaram greves que “não tiveram caráter diretamente político – apenas visaram melhorar suas condições de sobrevivência” (BRAICK, 2002, p. 4�3). O problema é que numerosas pesqui-sas, desde a década de �980, vêm mostrando que não havia uma origem tão mecânica entre imigração e movimento operário.4

Por outro lado, também se vêm mostrando por meio de pesquisas que essas greves não foram “não políticas”, ou seja, movidas apenas pelos interesses econômicos imediatos, ainda que o perfil ideológico seja bastante variado. Por certo, a maior corrente era a anarquista, preconizando um sindicalismo baseado na ação direita e numa perspectiva revolucionária e tendo várias das principais lideranças da Confedera-ção Operária Brasileira (COB). Contudo, sua influência tinha várias particularidades regionais, tendo em São Paulo sua maior força. Por outro lado, na mesma con-juntura havia concorrentes de relativo peso político e social, como os positivistas e católicos, que exerciam influência principalmente na composição do chama-do sindicalismo reformista. Os católicos atuavam por meio “de organizações ligadas à Igreja que buscavam subtrair o operariado da influência anarquista e socia-lista e de ação sindical” (BATALHA, 2000, p. 27). Essa corrente, embora bastante difusa, construiu organiza-ções de grande peso social, como o Centro Operário Católico de São Paulo, como ramificações em vários bairros, bem como outras organizações em Belo Ho-rizonte e Pernambuco. Por outro lado, segundo Cláu-dio Batalha (2000, p. 28), “em vários lugares, como no Rio de Janeiro, parece haver um nítido aumento das atividades dessas organizações como resposta à onda grevista da conjuntura �9�7-�9”.

4 Segundo o historiador Cláudio Batalha (2000, p. �2), “os imi-grantes foram amplamente majoritários em São Paulo (...) e em certas áreas industriais do sul do país; também na capital federal e em algumas cidades mineiras tiveram peso considerável. (...) Ain-da em �920, passada a grande onda imigratória, os estrangeiros representavam 5�% dos trabalhadores industriais em São Paulo e 35% no Rio de Janeiro”.

Considerações finaisEmbora com uma amostragem pequena, de

apenas três livros didáticos, foi possível perceber que pelo menos parte dos materiais didáticos de his-tória produzidos nas duas últimas décadas não in-corporaram as inovações historiográficas produzidas no Brasil sob a influência de E. P. Thompson.5 Pelas obras analisadas, percebe-se que os operários não aparecem em sua experiência de “fazer-se” na so-ciedade, de forma geral, e na luta política, em parti-cular. Nas obras analisadas, os operários continuam sendo coisas estáticas que surgem apenas em pro-cessos políticos bastante particulares cujas causas ou origens os historiadores aparentemente sempre estão buscando. Esses sujeitos aparecem sem vida nas páginas desses livros, resumindo-se sua consci-ência a uma identificação com certas ideologias polí-ticas, como o marxismo e o anarquismo.

Possivelmente ampliando a quantidade de obras analisadas, em especial as mais recentes, e ve-rificando principalmente aquelas produzidas sob a in-fluência mais clara do marxismo, talvez se possa per-ceber uma maior influência de E. P. Thompson, ainda que as obras de maior difusão e circulação mostrem-se pouco simpáticas a esse tipo de teoria e, quando se propõem a utilizar seus conceitos, o façam de forma bastante pobre e equivocada.

Referências

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5 Essa conclusão pode ser ampliada para outras tendên-cias teóricas bastantes diferentes do marxismo, como a Nova História francesa ou as correntes inspiradas na hermenêutica. Pode-se afirmar que parece ainda predominar na produção de material didático uma forte influência positivista e conservado-ra, centrada em datas organizadas de forma cronológica e nos “grandes” nomes, secundarizando as contradições e dinâmicas dos processos sociais.

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E. P. Thompson e os livros didáticos no Brasil

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Materialismo histórico e pessimismo da cultura burguesa

Durante a crise mundial que sobreveio após 1920, Lenin combateu com igual vigor os econo-mistas burgueses que viram nela apenas um dese-quilíbrio passageiro, e os revolucionários segundo os quais a situação não comportava mais nenhuma saída para a burguesia. “Não existe situação abso-lutamente sem saída”, dizia Lenin, o que significa, em linguagem filosófica, que o método marxista permite perfeitamente determinar se uma crise grave do capitalismo pode tornar-se fatal, em cer-tas circunstâncias concretas, mas que a questão de saber se tal ou tal crise comporta uma saída, não poderia ser resolvida senão pela luta, pela ação prática das classes em presença. Postular anterior-mente a ausência objetiva de toda saída é, segundo Lenin, jogar com palavras: só a ação prática dos partidos revolucionários pode provar a ausência real de toda saída. Essa atitude de Lenin ilumina aliás singularmente certas divergências, que se

manifestaram a respeito de numerosas questões econômicas entre ele e Rosa Luxemburgo.

Assim, Lenin definiu com precisão a atitude que deve ter o partidário do materialismo dialético face à realidade objetiva, que existe independente-mente da consciência, e também face à sua própria atividade prática na sociedade. Essa atitude funda-se teóricamente na relação entre o conhecimento e a realidade objetiva, tal como foi descrita por Le-nin. Eis aliás como Lenin, falando da evolução re-volucionária, formulava essa relação: “A História, escreve ele, em particular a história da revolução é sempre mais variada, mais rica, mais complexa e mais “astuta” do que imaginam as vanguardas mais conscientes dos melhores partidos e das clas-ses mais avançadas.”

Essa nota esclarece o caráter de aproxima-ção do conhecimento, unidade dialética do abso-luto e do relativo. Contrariamente ao pensamento burguês, que nega a existência objetiva do mundo real, e dele se desvia ideologicamente, como de uma potência obscura, perigosa e incalculável, o materialismo dialético propõe a confiança e a fi-delidade em relação ao mundo objetivo, O co-nhecimento certamente não atingiu ainda toda a realidade, mas isto é apenas um encorajamento para o progresso. Os objetos mais preciosos, mais elevados do nosso pensamento, não foram sempre o reflexo da realidade objetiva? Nosso progresso humano não é função do aprofundamento dessa interação? Quando, enfim, entra em jogo a realida-de mais próxima do homem, a sociedade, o mate-rialismo dialético destrói ainda mais radicalmente o pessimismo da filosofia burguesa moderna com sua profunda aversão pelo real. Lenin não disse, com efeito, que o movimento da História reserva à sociedade perspectivas de progresso, de evolução e de metamorfose bem mais elevadas e mais pre-ciosas do que nossos mais belos sonhos poderiam representar? Para empregar uma fórmula mais re-sumida, poder-se-ia dizer que a marcha do real é filosoficamente mais verdadeira e mais profunda do que nossos pensamentos mais profundos.

Para o partidário do materialismo dialético, essas considerações constituem um encorajamen-to ao estudo sempre mais aprofundado do mundo real e também – necessàriamente – a uma ativida-de prática sempre mais resoluta e mais segura de si mesma. O movimento da História é uma soma de ações humanas da qual nossa própria ação, a do proletariado revolucionário, forma um dos componentes que não poderíamos negligenciar. O conhecimento, que está em condições de apre-ender dialeticamente as “astúcias” da evolução histórica, só é válido e eficaz quando suas aquisi-ções forem outros tantos expedientes para a ação prática, cujas experiências virão, por sua vez, en-riquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma força sempre nova. A teoria leniniana do conhecimento é a alta escola da ação prática.

(LUCKÁCS, Materialismo e dialética: crise teó-rica das ciências da natureza).

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IntroduçãoNa Argentina deste o segundo semestre, desen-

volve-se uma experiência eleitoral-revolucionária, a Frente de Esquerda, de grande importância por sua condição de experiência estratégica e programáti-ca para a luta da classe trabalhadora. Na reta final das eleições, foi tirada uma declaração onde além da breve análise de conjuntura, formulam suas pro-postas para arrancar o país da desigualdade social e marchar para uma experiência de emancipação dos trabalhadores. Como contribuição ao debate por uma esquerda marxista e revolucionária na América Latina divulgamos aqui essa declaração.

Revista Contra a Corrente

Declaração A Frente de Esquerda diante da crise capitalista

6 de outubro de 2011

Já não se fala mais de “blindagem”, de “desco-lamento” e nem da “solidez do modelo”: os bancos e os grandes capitais estão levando embora dezenas de bilhões de dólares da Argentina, a produção in-dustrial começou a cair e estão sendo cortadas as horas extras nas principais empresas; a inflação cres-ce sem parar. A fábrica Alpargatas da localidade tu-cumã de Aguilares suspendeu 1.�00 trabalhadores por dez dias, enquanto que a Fiat Córdoba ameaçou fazer o mesmo com 400 operários. Os especulado-res e os monopólios capitalistas arrancam do país os lucros que conseguiram com a exploração operária e os suculentos subsídios ou créditos que recebe-ram do governo. Desviam esses fundos para resgatar suas matrizes da quebra e como cautela diante da forte desvalorização do peso. No entanto, ao sabor da recessão mundial, o preço da soja desabou nas últimas semanas.

Que faz o governo diante desta sangria e o que propõem os chamados opositores? O governo está financiando essa fuga de capitais com a entrega das reservas do Banco Central e da Anses. Está usando os fundos dos aposentados e os aportes dos trabalhado-res da Anses para resgatar ao capital!

Os trabalhadores estamos pagando a bancarro-ta capitalista.

Que propõe o governo diante disso?Propõe buscar financiamento no exterior à taxa

usuraria de �0% ao ano; o cordobes Shiaretti, o bona-erense Scioli, o portenho Macri já estão fazendo isso com o aval do governo federal.

Preparam, da mesma forma, tarifaços, como já acontece com a gasolina e a eletricidade.

Contam com o apoio das burocracias sindicais que em 2009 deixaram que se dessem milhares de de-missões de contratados e fechamentos de empresas como Paraná Metal e Massuh.

A chamada oposição apóia tais medidas an-tinacionais e anti-operárias. A fatura das dividas e resgates exigida pelo capital é uma carga demasiado pesada para a maioria que trabalha, que hoje recebe um salário médio de �.800 pesos.

A Frente de Esquerda propõe uma saída dian-te da desorganização econômica e a sangria que os capitalistas preparam contra o país e seus trabalha-dores?

1. Nenhuma demissão e nem suspen-são. Redistribuição das horas de trabalho disponíveis entre todos os trabalhadores empregados e desem-pregados sem afetar o salário. Salário mínimo igual à cesta familiar, indexado com a inflação e 82% móvel para os aposentados. Incorporação efetiva de todos os contratados.

2. Nenhum tarifaço contra o povo. Che-ga de financiar os lucros dos capitalistas privatizado-res: renacionalização do petróleo, do gás, das linhas férreas e dos serviços privatizados para colocá-los a funcionar sob controle dos trabalhadores.

Declaração

A Frente de Esquerda diante da crise capitalista

(Argentina - Eleições 2011)

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�. Eliminação do IVA e de todo imposto sobre os salários. Comitês operários e populares de controle de preços.

4. Impostos progressivos sobre as grandes fortunas e os lucros financeiros, agrários e industriais.

5. Proibir de imediato a remessa de lu-cros e dividendos ao exterior.

6. Cessar o pagamento da dívida exter-na agiota.

7. Abrir os livros das corporações eco-nômicas e estabelecer o controle operário.

8. Expropriação dos bancos privados e concentração de todo o sistema de crédito em mãos do Estado: por uma banca nacional única. Nacionalizar o comércio exterior e estabelecer, com seus recursos, um fundo para a reindustrialização nacional, habita-ção e obras públicas sob controle dos trabalhadores.

9. Fim da intervenção na Anses, por um diretório eleito e revogável a partir dos aposentados e trabalhadores.

Para evitar que a crise seja mais uma vez paga pelos trabalhadores, é necessário lutar por recuperar os sindicatos e as organizações operárias que hoje se encontram em mãos da burocracia sindical, defender aos delegados e ativistas anti-burocráticos de qual-quer perseguição, cercar de solidariedade ativa cada conflito contra as suspensões, demissões e fechamen-tos de empresas. É necessário levantar uma alternati-va política dos trabalhadores nas ruas e no Congresso para evitar que a crise capitalista arranque as conquis-tas sociais dos trabalhadores.

Frente de Esquerda e dos TrabalhadoresPARTIDO OBREROPARTIDO DE LOS TRABAJADORES SOCIALISTAS IZQUIERDA SOCIALISTA

Do macaco ao homem: o papel do trabalho e do caminhar ereto

Na evolução do cérebro, poucas partes são totalmente descartadas. À medida que se desen-volvem novas estruturas, as velhas reduzem-se em tamanho e importância. O desenvolvimento do cérebro leva a uma crescente capacidade de aprendizagem. Num primeiro momento, assu-miu-se que a transformação do símio em homem tinha começado com o desenvolvimento do cére-bro. A capacidade cerebral símio z de 400-600 cc; a humana, de 1.200-1.500 cc. Acreditava-se que o “elo perdido” seria fundamentalmente parecido a um símio, mas com um cérebro maior. Nova-mente se considerava que o aumento do cérebro precedia à posição erguida. Aparentemente, pri-meiro teria sido a inteligência, que, por sua vez, teria permitido aos primeiros hominídeos com-preender o valor do bipedalismo.

Esta primeira teoria foi posta em dúvida decisivamente pro parte de Engels como uma ex-tensão da visão idealista da história. A posição er-guida ao andar foi um passo decisivo na transição do símio ao homem. Foi o caráter bípede que, ao liberar as mãos, levou a um posterior aumento do cérebro. “Primeiro o trabalho”, disse Engels, “e, com ele, a linguagem: estes foram os dois estímu-los mais essenciais sob cuja influência o cérebro do macaco se converteu aos poucos no do homem ”. Posteriores descobrimentos de restos fósseis con-firmaram a tese de Engels. “A confirmação era completa e além de qualquer dúvida científica. As criaturas africanas que estavam sendo desen-terradas tinham cérebros não maiores que os dos símios. Tinham caminhado e corrido como os hu-manos. O pé diferenciava-se muito pouco do pé do homem moderno, e a mão estava a meio cami-nho da forma humana.

(Alan WOODS; Ted GRANT, 2007 em Razão e revolução)

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Luiz Roberto S. Lauand1

A Revolução Espanhola (�93� a �939) foi junta-mente com processos como na Alemanha (�929-�933) e França (�936), um dos palcos avançados da luta de classes na década. Tornou-se também, pela sua intrín-seca ligação com as disputas imperialistas, o último cenário no qual a revolução proletária teve a possibi-lidade de evitar a eclosão da 2ª Guerra mundial. Do ponto de vista dos debates estratégicos, a Espanha envolveu todas as tendências do movimento operá-rio, por ter se constituído como a mais internacional das revoluções derrotadas na década de �930�.

O objetivo do artigo é debater o desenvolvi-mento das posições da esquerda comunista no Brasil, o Partido Comunista do Brasil e as distintas organiza-ções trotskistas organizadas em torno de A Luta de Classe. Evidente, pois, que nos limitaremos a abordar os problemas estratégicos da revolução espanhola a partir destas refrações nacionais, considerando a grande multiplicidade de debates em torno do tema.

O PCB, a Frente-Popular e a revolução espanholaA visão do PCB sobre o processo espanhol pas-

sou por uma transição importante, que se combina mais ou menos com a experiência em torno da Aliança Nacional Libertadora em �935 e mais especificamente com a viragem da Internacional Comunista do Sétimo Congresso de julho do mesmo ano. Como referência desta transição:

“Em certa medida, pode-se dizer que a insurreição fracassada de novembro de �935 ocorreu num momento de transição entre duas etapas da orien-

� Bacharel em Ciências Sociais, PUC-SP. A foto acima: manifes-tação de rua na revolução espanhola, em julho �936, Barcelona. Site: site socialiststudents.org.uk2 Isso envolve desde a participação das mais diversas tendên- Isso envolve desde a participação das mais diversas tendên-cias do movimento operário internacional no cenário da guerra de classes, tendo como maior exemplo as Brigadas Internacionais, como também a intervenção de diversos países diretamente, como por exemplo, a França de León Blum, o México de Cárdenas e a URSS; do outro lado, o fascista, da Alemanha hitlerista e da Itália de Mussolini.

tação do Comintern [IC]: representou, ao mesmo tempo, um último vestígio do ‘Terceiro Período’ esquerdista (�929-�933) e o primeiro passo no caminho da tática frente-populista que ira ser do-minante a partir dessa época. O método de luta – insurreição armada – pertencia ao período ante-rior; o programa moderado, democrático-nacional, anti-fascista, anunciava já a nova linha”. (LÖWY, �980, P.42)

Portanto, a partir do ano �935, a IC passou a defender uma política de colaboração direta com a burguesia, as Frentes-Populares, que tiveram como palcos de experiência principais a França e a Espa-nha. Neste congresso, o antifascismo tomava uma forma democrática, não-revolucionária, que buscaria superar tanto aquele de origem puramente liberal ou socialista – contudo, criando condições para uma aliança orgânica com os Partidos Socialistas e setores burgueses -, quanto aquele originado nos primeiros Congressos da IC, ou seja, a frente única proletária�.

No Brasil, a ANL era uma tentativa do PCB nes-te mesmo sentido de subordinação do proletariado à burguesia nacional; configura-se, contudo, como pre-cursora, considerando que a combinação que lhe deu origem teve determinações distintas daquela que se formou a partir da IC no Sétimo Congresso. A política do PCB foi uma combinação da experiência do Bloco Operário e Camponês nos anos �920 – considerada as lições que o stalinismo brasileiro tirou da revolução chinesa de �927 - e do peso que tomou o tenentismo pela figura de L. C Prestes. As orientações da IC evi-dentemente tinham um peso grande no PCB, que se combinava com o processo de reorganização do parti-do iniciado em �930 com a renovação do quadro diri-gente, seguida do expurgo da geração que o conduziu na década anterior4.

No curso deste ano, ainda o PCB se localizava em uma posição formalmente anterior à da colabora-

3 Para um debate em torno do problema da frente única pro- Para um debate em torno do problema da frente única pro-letária no Brasil ver artigo publicado na edição anterior de CaC, Revisitando aspectos da história do trotskismo brasileiro nos anos 1930.4 Para maiores detalhes sobre a experiência da ANL e a Para maiores detalhes sobre a experiência da ANL e a posição dos trotskistas ver o artigo Introdução sobre o trotskismo brasileiro. Boletín CEIP León Trotsky, no. �3, Abri/20�0.

A revolução espanhola e a esquerda comunista

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A revolução espanhola e a esquerda comunista no Brasil

ção de classes direta, no que diz respeito à Espanha, preconizando uma via revolucionária para atingir os objetivos democrático-burgueses. Referindo-se à con-vulsão revolucionária de Outubro de �934 com epi-centro nas Astúrias, afirmavam que:

“A Espanha nos oferece mais exemplos de como os trabalhadores em grandes e heroicas lutas esta-beleceram durante algumas semanas seus soviets desafiando o poder da burguesia. Os soviets, em todos estes casos, constituíam os amplos órgãos para a direção das lutas revolucionárias das mas-sas. Em nenhum desses casos, porém, os soviets chegaram a ser os órgãos do novo poder estatal dos operários e camponeses. A razão está no fato de que em nenhuma destas lutas os levantes ar-mados revolucionários tiveram êxito” (A Classe Operária, no. �80, 05/35).

Tal artigo, intitulado Alguns aspectos da ques-tão dos Soviets no Brasil, ligava-se diretamente à defesa que se fazia de uma situação iminentemente revolucionária no país e de que era preciso passar à construção imediata dos soviets como instrumentos da revolução burguesa no Brasil. O radicalismo da fra-seologia do PCB buscava ainda indicar que:

“Nas condições de crise do capitalismo em putre-fação, o camarada Stalin, chefe da Internacional Comunista, mostrou claramente às massas explo-radas do mundo inteiro a única saída – revolucio-nária – pelo caminho das lutas de massas contra a reação e o fascismo, contra a fome e a guerra, contra o imperialismo e todos seus aliados, pelo caminho da frente única de combate, é preciso preparar o proletariado e as massas para as lutas pelo Poder.” (A Classe Operária, no. �80, 05/35)

Pouco depois, Luis Carlos Prestes, mesmo pre-conizando uma etapa anterior sob o nome de Gover-no Popular Nacional Revolucionário (ou seja, “não so-viética”), afirmava que:

“Nós, comunistas, sabemos que só a ditadura re-volucionária democrática dos conselhos operários e camponeses é capaz de fazer a revolução demo-crático-burguesa, levando até o fim a execução de suas tarefas e, portanto, garantindo a sua ulterior transformação em revolução socialista.” (A Classe Operária, no �84, 06/35).

A viragem do Sétimo Congresso foi muito forte no caráter discursivo do PCB, assim como em todas as seções da IC, particularmente após a vitória da Fren-te-Popular na Espanha em fevereiro de �936 e com o início da luta armada dos fascistas em meados do mesmo ano. Todo o eixo passou a ser a defesa da “Es-panha legal”, como forma de chamar a concretização

de um bloco da URSS com os países imperialistas “de-mocráticos” contra o fascismo e a guerra, desapare-cendo evidentemente qualquer referência aos soviets espanhóis, à revolução proletária ou mundial etc., ou seja, o proletariado era entendido como instrumento de uma política burguesa:

“Desde o primeiro momento esta guerra assumirá um caráter não de guerra imperialista em si, mas de guerra civil mundial. As pandilhas reacionárias, e particularmente o fascismo, de um lado; e de outro, o povo organizado nas frentes populares do mundo inteiro, tendo, na vanguarda, o proletaria-do.” (A Classe Operária, no. �97, 08/36)

A Espanha seria o palco desta “profissão de fé” stalinista, ao passo que a França o seria do ponto de vista parlamentar. O PCB buscava ainda associar o problema da frente na Espanha com a conformação, no Brasil, de um bloco do tipo da ANL, sem as suas pretensões insurrecionais anteriores:

“O povo trabalhador espanhol espera de todos os cidadãos honrados do mundo um apoio decidido para acelerar a sua vitória sobre a cáfila fascista. Impõe-se, assim, a necessidade da mais vasta frente única nacional, aqui, no Brasil, de todos os anti-fascistas, de todos os que querem a liber-dade e a democracia, tanto em solidariedade ao povo espanhol como para esmagar os bandidos integralistas que pretendem reeditar, apoiados por Getúlio, e é claro, em condições próprias, a mesma façanha tentada pelas hordas dos gene-rais Molla e Franco. A própria Espanha nos forne-ce o exemplo; ali, anarquistas, socialistas, comu-nistas de todas as tendências, todos, conjugam suas forças contra o inimigo comum.” (A Classe Operária, no. �97, 08/36.)

As consignas do movimento operário passa-vam, na visão da IC, para defesa da liberdade, demo-cracia e da paz e contra a guerra, já que “O drama espanhol é, neste momento, a chave da situação in-ternacional. É o problema da Paz ou da Guerra que se coloca concretamente” (A Classe Operária, no. 20�, �0/36). Associava-se também a luta no solo espanhol a luta contra o eixo fascista, sob a consigna “Fora da Espanha os assassinos fascistas de Hitler, Franco e Mussolini!”, sempre partindo de subordinar essa luta à aliança da URSS aos países imperialistas “democrá-ticos”, neste caso concreto a França (A Classe Operá-ria, no. �98, ��/36).

Como consequência lógica do giro da IC, a uni-dade passava das organizações do proletariado para as “nações democráticas”, ao passo que se borravam todos os objetivos da revolução social na Espanha, li-mitando-a aos marcos de um regime burguês demo-

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Contra a Corrente

crático formal e a primeiro vencer a guerra contra o fascismo para depois iniciar um processo de transfor-mação social:

“A vitória sobre Hitler e Mussolini, dentro do ter-ritório espanhol, depende de uma única coisa: UNIDADE DE AÇÃO. Unidade de ação interna de todas as correntes integrantes da Frente Popular, assinando-se no momento um único objetivo: ga-nhar a guerra. Unidade de ação internacional do proletariado e das massas populares, para reforças e auxiliar a luta do povo espanhol, para esmagar o fascismo dentro de seu próprio país. Unidade de ação de todas as nações democráticas, ao lado da URSS…” (A luta pela libertação da Espanha do jugo fascista é uma causa de toda a humanidade!, A Classe Operária, no. 200, 03/37.)

Segundo o historiador Pierre Broué, estas posi-ções advinham de cálculos precisos da URSS na guerra que se avizinhava:

“A Espanha se tornou agora uma carta importante na política externa de Stalin, consciente do perigo representado, para ele, pela vontade de expansão e pelo antibolchevismo notório do governo hi-tlerista. A Espanha é, para ele, ao mesmo tempo que um campo de experiências necessárias, um laboratório para a guerra, o terreno sobre o qual pretende demonstrar às ‘democracias ocidentais’ que ele é um aliado sólido, um defensor do status quo, a muralha contra a subversão política que eles temem mais ainda do que os nazistas ou os fascis-tas. Stalin não dissimula os seus objetivos políticos na Espanha, dos quais o principal é a destruição das organizações revolucionárias, tendo à frente o POUM, que denunciou com vigor os ‘processos de Moscou’ e proclama que luta sob a bandeira de Lenin”. (BROUÉ, �992, P. 93)

Os processos de Moscou chegam ao BrasilAo passo que toda a farsa discursiva sobre a

Frente-Popular como unidade de todas as tendências se desfez na unidade com as nações “democráticas”, a política contra a vanguarda revolucionária acompa-nhou em miniatura os Processos de Moscou na URSS, uma sequencia de julgamentos fabricados para des-truir toda e qualquer oposição e, logo na sequencia, todas as possibilidades de cisão dentro do próprio aparelho dominante do stalinismo. Afirmava o Pra-vda, órgão do stalinismo na URSS, que “Na Catalunha, a eliminação dos trotskistas e dos anarco-sindicalistas já começou: ela será conduzida com a mesma energia que na URSS”5.

O primeiro militar brasileiro a chegar na Espa-nha em �936, o tenente Alberto Besouchet, foi uma

5 Pravda, �7 de Dezembro de �936, conf. BROUÉ, �992, p. 93. Pravda, �7 de Dezembro de �936, conf. BROUÉ, �992, p. 93.

das vítimas do stalinismo na Espanha. O seu crime, assim como o de Andres Nin e outros, foi lutar pela re-volução proletária nesse país. Ao sair do Brasil, como membro do PCB, Besouchet teve uma carta publicada em A Luta de Classe, após uma negativa dos próprios companheiros de partido por negar a política de co-laboração de classes e por pronunciar termos incon-cebíveis como “soviets” e “revolução internacional”. Afirmava em sua carta que desejava:

“aplicar os conhecimentos adquiridos na minha carreira militar e política na formidável empresa que se levanta no território da futura ESPANHA SOVIÉTICA [...] Companheiros! A segunda etapa para a Revolução Proletária Mundial que se está agora iniciando na Espanha depende em grande medida do apoio do proletariado de todos os países. Não é necessário que vos lembre que o maior auxílio que poderá prestar o proletariado do Brasil à causa revolucionária da Espanha é a luta contra os feudais e burgueses que dominam, em ostensiva colaboração com os vários imperia-lismos, a economia e a política brasileiras”.(A Luta de Classe, no. 33, ��/36)6.

Ao desaparecer em circunstâncias ainda hoje obscuras, Besouchet já havia sido promovido a Co-ronel e formava parte do estado maior do exército republicano. Contudo, a ausência de subserviência à política soviética de colaboração de classes o conde-nou à morte durante o período de repressão política e “contrarrevolução” stalinista.

No Brasil, os trotskistas também não ficaram de fora das ameaças stalinistas, como demonstra o artigo O PCB e a luta nos dois fronts, de autoria do Comitê Regional de São Paulo, que neste momento editava A Classe Operária e que em pouco mais de � ano, em �939, teria parte importante do seu elenco dirigente rumando para o trotskismo, como Hermínio Sacchet-ta e Alberto da Rocha Barros:

“O Partido[PCB] denuncia o POL (pretenso Partido Operário Leninista) que instaurou seu mais forte reduto na Capital Federal, auxiliado pelos erros di-reitistas de Bangu e André, como uma organização anti-proletária e que o levará fatalmente ao mes-mo trágico fim do POUM na Espanha, cujo esmaga-mento final foi obtido pelo desmascaramento mais completo de suas ligações com o fascismo interna-cional, o mesmo que com os trotskistas da URSS, da França e demais países.” (A Classe Operária, no. 209, 02/38.)

6 Em torno de dois meses depois, em uma comunicação confi- Em torno de dois meses depois, em uma comunicação confi-dencial ao Comitê Central do PC Espanhol, Besouchet já era “mar-cado” para ser perseguido pela polícia política stalinista, conf. FERNANDEZ, 2003, p. 304.

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A revolução espanhola e a esquerda comunista no Brasil

Os trotskistas e a revolução proletária internacionalO posicionamento estratégico dos trotskistas

acerca dos problemas colocados pela revolução espa-nhola pode ser considerado como prematuro, já que desde a queda da monarquia em �93� já tinham bem evidentes os seus principais traços e que em linhas ge-rais foram confirmados pelo desenvolvimento do pro-cesso revolucionário.

Como descreve Trotsky, no artigo Está na Alema-nha a chave da situação mundial (�93�), “a revolução espanhola criou premissas políticas gerais favoráveis a uma luta imediata do proletariado pela conquista do po-der”. Contudo, para a Oposição de Esquerda, havia ainda um atraso extremo da vanguarda, somado a um papel desorganizador que a IC cumpria no movimento comu-nista espanhol e a um acordo mútuo existente entre o anarco-sindicalismo e a socialdemocracia, o que combi-nados contribuíam para dar à burguesia republicana as condições necessárias para reestabelecer o Estado e o seu aparelho de repressão. Afirmava Trotsky, que:

“Inútil dizer que a revolução espanhola não está terminada. Ela não deu solução a nenhum de seus problemas mais elementares (questão agrária, cleri-cal e problema das nacionalidades), e está longe de ter esgotado os recursos revolucionários das massas populares. A revolução burguesa nada mais poderá dar do que já deu […] É muito provável que o desen-volvimento progressivo da revolução espanhola dure por um período de tempo mais ou menos longo. E por aí o processo histórico abre, de algum modo, um novo crédito ao comunismo espanhol. (Boletim da Oposição, no. 3, 0�/32).

Os trotskistas brasileiros partiam de uma posição bastante similar, já que em artigo escrito anteriormente afirmavam que:

“A burguesia espanhola em vez de estar procurando consolidar definitivamente a república contra uma tentativa de restauração monárquica, muito pos-sível ainda, pois as forças monárquicas não foram destruídas, continuando intactas, só se preocupa em quebrar a resistência do proletariado [...] É absoluta-mente necessário que o movimento proletário passe de sua primeira fase instintiva para a fase superior e disciplinada de plena consciência coletiva e política.” (A Luta de Classe, no. 7, 05/3�)

As lições estratégicas que os trotskistas tiraram da revolução espanhola eram opostas pelo vértice às do stalinismo no que diz respeito ao desenvolvimento dos organismos soviéticos surgidos em �934 e, poste-riormente, em �936. Seguindo a Resolução do Bureau Internacional, de Janeiro de �937, A IV Internacional e a revolução espanhola, o CC do POL identificava que:

“Esse governo [a Frente-Popular, em Valência e Bar-celona] ainda dissolveu todos os órgãos de massa, criados espontaneamente pela própria luta, tais como os comitês de milícia, comitês de massa de frente popular, comitês de fábrica etc.Considerando que esses órgãos são os germens do futuro poder proletário que se vinham formando como consequência da vontade real das massas em substituir o regime burguês capitalista pelo re-gime socialista proletário, e que dissolvê-los equi-vale a esmagar no ovo a nova Espanha Soviética nascente, em benefício exclusivo dos capitalistas reacionários, de grandes proprietários latifundiá-rios e do clero.” (Resolução do CCP do POL sobre o governo Negrin, Boletim de Informações Interna-cionais, no. �, 07/37)

Como afirmado anteriormente, o Comitê Re-gional de São Paulo do PCB passaria por um processo de ruptura com o stalinismo que se desenvolve até uma fusão com o POL e, posteriormente, na fundação do Partido Socialista Revolucionário. Parte importante do processo da ruptura foi a identificação da política do PCB em particular e da IC em geral com as defini-ções do Sétimo Congresso, resumida na subordinação do movimento operário às burguesias democráticas. O CR-SP buscava recobrar a força, pelo contrário, da frente única proletária, tanto do ponto de vista doutri-nário dos primeiros Congressos da IC, quanto a partir da experiência concreta ocorrida no Brasil com a Fren-te Única Antifascista de �934, organizada com peso dirigente decisivo da Liga Comunista Internacionalista e com os debates de estratégia na vanguarda quando do surgimento da ANL, nas palavras dos trotskistas, uma “ilusão de frente popular”:

“A experiência dos fracassos da política de ‘Frente Popular’ na França e na Espanha vem provar, tan-to no terreno parlamentar como no da guerra civil, que o proletariado e sua vanguarda comunista não podem manter ilusões com seus inimigos de classe. A luta contra o fascismo tem que ser encarada de um ponto de vista classista, isto é, como luta do pro-letariado, unido em frente única, contra as tropas de choque da burguesia. (Boletim no 2, 03/39, CR-SP)

Finalmente, a declaração do PSR, já após a derrota da revolução espanhola, buscava dimensio-nar as consequências da política de colaboração de classes empreendida pela IC na Europa, buscando também contrapor-se à fórmula, que tomou contor-nos dramáticos nesse país, de “luta da democracia contra o fascismo”:

“A responsabilidade da guerra de �9�4 cabia, sem dúvida, à 2ª Internacional que se tornou, nas véspe-ras da carnificina, social-patriota. Hoje, a responsa-bilidade cabe, em primeiro lugar, à ‘Internacional’

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stalinista, agência da casta burocrática usurpadora que governa a URSS. Foi o stalinismo que lançou a palavra de ordem da luta da ‘democracia contra o fascismo’ e, em nome dela, obrigou o proletariado a depor as armas diante de sua burguesia ‘demo-crática’, afogou em sangue a revolução proletária da Espanha e perseguiu sem quartel os militantes fiéis ao proletariado e ao socialismo”.

ConclusãoA revolução espanhola, como palco do último

suspiro da guerra de classes, suscitou as maiores es-peranças para que pudesse ser uma poderosa arma para barrar o início da 2ª Guerra Mundial. Tanto a IC, quanto os trotskistas organizados no movimento da Quarta Internacional, incorporaram essa dimensão e teias de relações entre a guerra e a revolução, seguin-do a tradição iniciada pelos revolucionários marxistas em �9�4.

Contudo, os objetivos da IC e da URSS estavam vinculados ao pressuposto de supressão da revolução social e subordinação do proletariado à “democracia”, ou seja, ao bloco imperialista dirigido por França e In-glaterra. Já os trotskistas tiveram na Espanha, talvez, a menor possibilidade de intervenção concreta em um processo revolucionário, desde o seu aparecimento como tendência no movimento comunista internacio-nal, limitando-se aos debates doutrinários e à luta de tendências. No Brasil e em outros países teve frutos concretos tanto do ponto de vista organizativo, quan-do do ponto de vista de preparação de quadros mar-xistas para enfrentar um período de grandes derrotas do proletariado com a eclosão da guerra.

Deste modo, conclusivamente, buscamos de-monstrar como, na esquerda comunista brasileira se desenvolveram as posições estratégicas acerca da revolução espanhola, sem a pretensão de esgotar os mesmos debates, que possuem desdobramentos múltiplos e ainda vivos mesmo após décadas de ocor-rida a revolução.

No caso do PCB, combinava-se ao processo de “stalinização” do partido após as experiências dos anos �920. A assimilação das posições da Internacional Co-munista no PCB se deram a partir das experiências no terreno nacional, desde a fase ultra esquerdista, que preconizava a revolução imediata e a construção de soviets no Brasil, até a Aliança Nacional Libertadora, que combinava uma concepção de insurreição com colaboração de classes. No curso dos anos da guerra civil, entre �936 e �937, o PCB passou a apoiar dire-tamente a institucionalização da revolução espanhola e consequente repressão aos organismos de combate das massas e, depois, a contrarrevolução stalinista, ou internacionalização dos Processos de Moscou.

No caso dos trotskistas, buscamos demonstrar que as posições estratégicas acerca do papel do pro-

letariado na revolução se delinearam nos primeiros anos da revolução espanhola, tomando corpo quando o proletariado passou a indicar o caminho a seguir: tudo pelo desenvolvimento da revolução social, ou seja, combinação da expropriação dos capitalistas nas cidades e guerra camponesa, condição para que a Es-panha passasse de palco de experiências da luta entre as potências imperialistas e dos interesses da casta stalinista na URSS para o centro da revolução proletá-ria mundial, constituindo-se como posição avançada para a transformação da guerra imperialista em guer-ra civil contra as burguesias nacionais.

BIBLIOGRAFIA

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PERIÓDICOSA Classe Operária, órgão central do Partido Comunis-

ta (Seção Brasileira da Internacional Comunista).A Luta de Classe, órgão da Liga Comunista Interna-

cionalista e do Partido Operário Leninista.

DOCUMENTOSBoletim da Opposição no. 3, 0�/�932, órgão da Liga

Comunista (Oposição leninista do PC do Brasil).Boletim de Informações Internacionais, no. �,

0�/�937; no. 2, 08/�937 (dedicado à revolução espanhola); no. 3, Set/37, Comitê Central Provisório do Partido Operá-rio Leninista.

Boletim no 2, 03/�939; no. 3, 05/�939, Comitê Re-gional de São Paulo do PCB (Dissidência Pró-Reagrupamen-to da Vanguarda Revolucionária).

Boletim s.n. 08/�939, Comitê Pró-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionária do Brasil, constituído pelo Partido Operário Leninista e pelo Comitê Regional do PCB da região de São Paulo (Dissidência Pró-Reagrupamento da Vanguarda).

Lutemos contra a guerra imperialista, Declaração do CC do Partido Socialista Revolucionário, ��/09/39.

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Diana Assunção1

Neste último mês veio a público “O combate sexual da juventude”, de Wilhelm Reich, comentado por Gilson Dantas, médico, militante setentista, edi-tado pela Centelha Cultural. O livro lança luz sobre uma série de questões, e a primeira que aponto é: qual o espaço do debate da sexualidade entre a pró-pria esquerda? Já é de praxe que entre os setores da esquerda, da centro-esquerda e progressistas o debate da opressão seja um tema teoricamente im-portante. O teoricamente se dá pelo fato de que, na prática, o lugar relegado às opressões não expressa sua importância, pois na maioria das vezes encontra-se à margem da política. Além disso, a luta contra a opressão é quase sempre encarada desde um ponto de vista “reivindicativo”, no que diz respeito às de-mandas democráticas – em sua maioria mínimas, elementares – ou diretamente à idéia “maximalista”, ainda que correta, de que “só com a revolução socia-lista se acabará com a opressão”.

Há muito que os marxistas e revolucionários não colocam como parte do combate à opressão, um combate pelo direito à livre sexualidade. É de notar-se, inclusive, que mesmo nos espaços da esquerda o sexo passa a ser um “tabu”, como muitas vezes o é, ainda que “do avesso”, entre a burguesia. Qual foi a última manifestação em que vimos uma bandeira ou uma música que pedia o “direito ao prazer sexual”? Qual foi o último encontro, da juventude, em que discutiu-se sexo e amor? Pelo menos em nosso país não é fácil recordar-se. Daí que chegamos numa triste constatação de que a luta contra a opressão muitas vezes se perde no “reivindicativo” impossibilitando-se de ir até o mais profundo do que significa o controle sexual na sociedade capitalista, que transcende inclu-sive o tema da opressão em si.

Então para questionar – no mínimo – o fato de que as discussões de sexualidade são adendos nos programas da esquerda, dos sindicatos e de movimen-tos sociais, e na maioria das vezes estão relegados a espaços “próprios”, onde o oprimido se encontra

1 Diretora do Sintusp e integrante do grupo de mulheres Pão e Rosas e autora do livro A precarização tem rosto de mulher.

com outros oprimidos para debater – este processo na maioria das vezes leva ao inverso do que se busca, ao contrário do espaço mais “livre”, que certamente é necessário, leva-se a uma lógica vitimizada do oprimi-do, mesmo daquele que já deu um passo adiante em sua consciência de classe e compreende que o capita-lismo é miserável, principalmente para as mulheres, negros e homossexuais. É para questionar esta idéia que venho saudar a iniciativa da publicação do livro de Wilhelm Reich, onde Gilson Dantas se coloca a ta-refa de, desde uma perspectiva marxista revolucioná-ria, “beber da fonte” de Reich e suas idéias, bastante controversas para a época, sobre a sexualidade.

Apesar de ter uma série de publicações mais conhecidas, como “A função social do orgasmo” e “A revolução sexual”, é neste pequeno livro “O comba-te sexual da juventude” que Reich irá problematizar a questão da sexualidade entre os jovens, desde as questões mais elementares como prevenção e direi-to ao aborto, até o questionamento da idéia de sexo enquanto reprodução, contrapondo-o à idéia de sexo enquanto fonte de prazer. A isso, Reich pergunta “Mas podemos nós, atualmente, nas condições atuais do capitalismo , dizer à juventude de uma maneira ge-ral: ‘Podeis ter tranquilamente relações sexuais’? Não, não podemos, porque lhe falta todas as condições”.

Reich, que era um militante do Partido Comu-nista Alemão, defende a tese de que a sexualidade somente será totalmente livre com a Revolução So-cialista – ainda que, ao não compreender a situação de degeneração que passavam os PC´s pós-URSS aca-bava tornando abstrata esta idéia. Daí a importância de uma leitura marxista revolucionária, como apre-senta Gilson Dantas nesta publicação, alertando ao leitor tanto sobre questões que já foram superadas como também por aspectos da teoria de Wilhelm Reich que não condizem com o marxismo, negando a dialética. É este o caso, por exemplo, como insiste Dantas, da unilateralização sobre a libertação sexual e a decadência da burguesia.

Mas ao mesmo tempo, Reich demonstra, ao longo do livro, como a sexualidade é parte intrínse-ca da dominação capitalista, da alienação. “Seria um grande erro acreditar que são assuntos privados sem

Para além da miséria sexual

RES

ENH

A

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interesse, porque eles se enraízam na nossa ordem sexual, e na nossa educação capitalista; corrompem a nossa juventude tornando-a além disso muito fre-quentemente incapaz de lutar”. Aqui podemos re-correr à Gramsci, em “Americanismo e fordismo”, quando também demonstra que, para além da du-pla jornada, já conhecidamente um mecanismo que combina opressão e exploração, o controle sobre o tempo livre dos operários e operárias, assim como sobre seu corpo e sexualidade, passam a ser parte da exploração. Gramsci apontava que o industrialis-mo fordista organizava uma série de campanhas no interior das fábricas, combatendo o alcoolismo e su-gerindo a “vida em família”, como forma de manter melhores condições de trabalho.

No “Combate...”, Reich chega a desenvolver as-pectos terminados de programa como a distribuição gratuita e generalização da informação sobre méto-dos contraceptivos, o direito ao aborto, alojamentos para que os jovens possam se independizar de suas família e terem espaço também maior de liberdade sexual, mas vê como essencial para uma juventude re-volucionária alimentar-se do mais feroz combate por sua sexualidade, questionando não somente os dita-mes da ideologia burguesa ( sexo como reprodução, hipocrisia nas relações, etc) e suas instituições (famí-lia burguesa, casamento, Igreja) como buscando uma nova ideologia, ligada à idéia da Revolução Socialista. Assim Reich coloca o combate sexual da juventude no marco da luta anticapitalista: “Antes da revolução não podemos ajudar muito a massa dos jovens de um pon-to de vista sexual, mas é preciso politizar a questão, é preciso transformar a rebelião sexual da juventude, secreta ou aberta, numa luta revolucionária contra a ordem social”. Recentemente o Centro de Estudos Leon Trotsky, da Argentina, publicou o livro “O estado, a mulher e a revolução” da norte-americana Wendy Goldman, que lançou luz sobre estas idéias.

Afinal, é possível ser revolucionário nas relações pessoais, no amor e no sexo, vivendo numa sociedade capitalista? Para isso, Goldman buscou estudar o pós-tomada do poder na Rússia revolucionária e como os bolcheviques encaravam o problema das relações pessoais, do modo de vida, que Trotsky em sua “Teo-ria da Revolução Permanente”, terminada em �928, irá caracterizar como parte da lei geral da revolução, quando esta vive sua “metamorfose” interna, contra todos os preconceitos capitalistas que, materialmen-te destruídos, ainda vivem nos corações e mentes da população mais atrasada.

Mas se hoje não existem as bases econômicas para se realizar o amor livre – e entende-se por amor livre justamente o exercício de um sentimento, não de forma individualista, mas de forma social, livre de todas as relações capitalistas e econômicas que

o aprisionam – buscar desconstruir toda a ideologia burguesa em torno do amor, em torno da sexualida-de e das relações é um exercício necessário aos re-volucionários para, como parte da estratégia decidi-da pela insurreição proletária, questionarem-se mais profundamente – já que são parte da construção de um mundo novo.

Então, voltar “à Reich” com o olhar marxista, deve ser encarado como parte deste exercício, de re-colocar o tema da sexualidade como um aspecto das transformações humanas que almejamos. A burgue-sia, dizia Reich, não é capaz de encabeçar esta trans-formação, já que a sociedade capitalista se delicia so-bre a opressão do corpo, da sexualidade, a castração da juventude, o medo diante do prazer, a vergonha, o ciúmes, e todos os sentimentos que, em última ins-tância, fazem parte da manutenção de um status quo da família, do estado e sua propriedade privada. Aqui vale ressaltar que Reich, apesar de não condenar ou perseguir a homossexualidade, apresentava posição equivocada, preso à heteronormatividade, caracteri-zando-a como uma doença. Mesmo com esse equí-voco determina que nenhum homossexual pode ser “forçado” a qualquer tratamento (psicanálise) e nin-guém pode ameaçar, denunciar ou extorquir os ho-mossexuais. Nesta passagem é fundamental, no livro, levar em conta os comentários de Gilson Dantas.

Por tudo isso, a leitura de “O combate sexual da juventude” é necessária, e devemos buscar inaugurar na esquerda o estudo sobre estes temas que, no pro-fundo da individualidade de cada um, sejam trabalha-dores ou trabalhadoras, jovens, estudantes, ocupam grande parte de seus pensamentos já que esta socie-dade nos relega enorme miséria nos campos da sexu-alidade, do amor, das relações pessoais. Como disse Lenin à revolucionária alemã Clara Zetkin “O comu-nismo não deve trazer o ascetismo, mas a alegria de viver, o vigor, e isso tem a ver com uma vida amorosa plena”. A juventude, em especial, deve se lançar, cor-rendo o risco de errar, sobre estes problemas da vida. Certamente estará mais preparada para revolucionar o mundo, para arrancar o seu futuro, para tomar o céu de assalto com a classe trabalhadora.

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Paris1

IntroduçãoEm memória dos 140 anos da Comuna de Paris, re-

publicamos aqui o texto escrito por Lenin em 1917, e que faz parte do livro O Estado e a revolução. Neste excerto, o autor retoma lições e debates que estão e estarão na pauta das lutas sociais e de reflexões que, quase um século e meio após a Comuna, cobram nos marcos das diferentes fases históricas, plena atualidade.

Gilson Dantas

Em que consiste o heroísmo da tentativa dos communards?Alguns meses antes da Comuna, no outono de

�870, Marx – como se sabe – preveniu os operários parisienses, pondo-os de sobreaviso de que a tenta-tiva de derrubar o governo seria uma tolice inspi-rada pelo desespero. Contudo, em março de 18�1, quando se impôs aos operários a batalha decisiva e eles a aceitaram, quando a insurreição tornou-se um fato, Marx, apesar dos maus prognósticos, saudou com entusiasmo a revolução proletária. Marx não se obstinou na condenação pedante de um movimento “prematuro”, como Plekhanov, o célebre renegado russo do marxismo, de triste memória, que em no-vembro de �905 escreveu encorajando a luta dos operários e dos camponeses, mas, após dezembro de �905, gritava, à maneira dos liberais: “não se de-via ter pêgo em armas.”

Marx, porém, não apenas se entusiasmou com o heroísmo dos communards, que “assaltavam o céu”, segundo sua expressão. Muito embora o movimento revolucionário das massas, não tivesse alcançado seus objetivos, Marx viu nele uma expe-riência histórica com uma importância imensa, um passo à frente da revolução proletária mundial, uma tentativa prática mais importante do que centenas de programas e de argumentos. Analisar essa experi-

� Publicado pela primeira vez em russo, em novembro de �9�7. Extraído do livro: LENIN, V. I. O Estado e a revolução, dis-ponível em português no site marxists.org. Revisão Gilson Dan-tas. Foto acima, da Comuna de Paris, disponível no site www.marksizm.info.

ência, tirar dela lições de tática, rever sua teoria com base naquela experiência – eis a tarefa à qual Marx se impôs.

A única “correção” que Marx julgou necessá-rio fazer no Manifesto Comunista foi feita por ele com base na experiência revolucionária dos com-munards parisienses.

O último prefácio à nova edição alemã do Ma-nifesto Comunista, assinado pelos seus dois autores, é datado de 24 de junho de �872. Neste prefácio, os autores, Karl Marx e Friedrich Engels, dizem que o programa do Manifesto Comunista “está, sob alguns aspectos, obsoleto.” “[...] A Comuna, especialmente” – prosseguem – “forneceu a prova de que a classe operária não pode contentar-se em assumir a má-quina de Estado que encontra montada e colocá-la a serviço de seus próprios objetivos”. As últimas pala-vras desta citação entre aspas foram tiradas da obra A guerra civil na França, de Marx.

Assim, Marx e Engels consideraram que uma das lições principais e fundamentais da Comuna de Paris tinha uma importância tão gigantesca que a introduzi-ram como correção essencial ao Manifesto Comunista.

É bastante notável que precisamente essa correção essencial tenha sido deturpada pelos opor-tunistas, e nove décimos, se não noventa e nove centésimos, dos leitores do Manifesto Comunista certamente não perceberam seu alcance. Adiante falaremos pormenorizadamente dessa deturpação, num capítulo especialmente consagrado às deturpa-ções. Por ora, bastará assinalar que a “interpretação” corrente, vulgar, da famosa máxima de Marx citada por nós consiste em que Marx teria sublinhado ali a ideia de um desenvolvimento lento, em oposição à conquista do poder etc. Na realidade, é exatamente o contrário. A ideia de Marx consiste em que a classe operária deve quebrar, demolir a “máquina de Esta-do que encontra montada”, e não limitar- se simples-mente à sua conquista.

Em 1� de abril de 18�1, isto é, exatamente du-rante a Comuna, Marx escreveu a Kugelmann�:� As cartas de Marx a Kugelmann foram publicadas em russo pelo menos em duas edições, uma das quais sob minha redação e

Novas lições da Comuna de Paris1

V. I. Lenin (1917)

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Contra a Corrente

Reli o último capítulo do meu Dezoito Brumário3, e lá afirmo que a próxima revolução francesa deve tentar, antes de tudo, não transferir de umas mãos para outras o maquinário burocrático e militar, mas destruí-lo [este grifo está no original de Marx, zer-brechen], e esta é a condição prévia de qualquer verdadeira revolução popular no continente. Esta é também a tentativa dos nossos heróicos camara-das parisienses4.

Estas breves palavras: “destruir a máquina buro-crática e militar do Estado”, condensam a principal lição do marxismo sobre a questão das tarefas do proletaria-do com relação ao Estado na revolução. E precisamen-te esta lição, não só foi absolutamente esquecida, mas ainda francamente deturpada pela “interpretação” do-minante do marxismo, da obra de Kautski!

É interessante assinalar especialmente dois pon-tos no citado raciocínio de Marx. Em primeiro lugar, ele limita sua conclusão ao continente. Isto era compreen-sível em �87�, quando a Inglaterra era ainda um mode-lo de país puramente capitalista, mas sem casta militar e, em grau significativo, sem burocracia. Por isso Marx excluía a Inglaterra, onde a revolução, e até a revolução popular parecia, e era então possível, sem a condição prévia da destruição prévia da “máquina de Estado que se encontra montada.”

Agora, em �9�7, na época da primeira grande guerra imperialista, esta limitação de Marx já não é vá-lida. Tanto a Inglaterra como a América5, os maiores e os últimos representantes em todo o mundo da “liber-dade” anglo-saxônica no sentido da ausência de casta militar e de burocracia, escorregaram completamente para o pântano lamacento e sangrento, comum a toda a Europa, das instituições burocrático-militares, que tudo subjugam, que tudo esmagam. Agora, tanto na In-glaterra como na América, “a condição prévia de qual-quer revolução verdadeiramente popular” é a demoli-ção, a destruição da “máquina de Estado que encontra montada” (que veio sendo levada, de �9�4 a �9�7, a uma perfeição “européia”, imperialista).

Em segundo lugar, o que merece uma especial atenção é essa profunda observação de Marx de que a destruição da máquina burocrática e militar de Estado é “a condição prévia de qualquer revolução verdadei-ramente popular.” Esta expressão revolução “popular” pode parecer estranha na boca de Marx, e os plekha-novistas russos e os mencheviques, esses discípulos de Struve que desejam se passar por marxistas, poderiam talvez declarar que se trata de um “engano”, aquela ex-

com prefácio meu (N. A.). � Marx refere-se a sua obra O Dezoito Brumário de Luís Bona-parte (N. Ed.).4 Neue Zeit, XX, �, �90�-�902, p. 709. 5 Por “América”, Lenin pretende designar os Estados Unidos da América (N. Ed.)

pressão em Marx. Eles reduziram o marxismo a uma deturpação tão miseravelmente liberal que, exceto a antítese revolução burguesa e revolução proletária, nada existe para eles, e mesmo esta antítese é compre-endida por eles de uma maneira morta.

Se tornarmos como exemplo as revoluções do século XX, teremos naturalmente de reconhecer que as revoluções portuguesa e turca foram burguesas. Mas nem uma nem outra foi “popular”, pois a mas-sa do povo, sua imensa maioria, não incidiu de uma forma visível, ativa, autônoma, com as suas reivindi-cações econômicas e políticas próprias, em nenhuma destas duas revoluções. Ao contrário destas, a revolu-ção burguesa russa de �905-�907 - embora nela não tenha havido êxitos tão “brilhantes” como ocorreu nas revoluções portuguesa e turca -, foi, indubitavel-mente, uma revolução “verdadeiramente popular”, porque a massa do povo, a sua maioria, as “camadas inferiores” mais profundas da sociedade, esmagadas pelo jugo e pela exploração, sublevaram-se esponta-neamente e imprimiram, a todo o curso da revolução, a marca das suas reivindicações, das suas exigências para reconstruir à sua maneira uma sociedade nova no lugar da antiga, em vias de destruição.

Na Europa de �87�, o proletariado não consti-tuía a maioria do povo em nenhum país do continente. A revolução “‘popular” que arrasta verdadeiramente a maioria para o movimento só podia ser popular englobando tanto o proletariado como o campesina-to; ambas as classes constituíam, então, o “povo”. A união de ambas deve-se ao fato de que a “máquina burocrática e militar de Estado” as oprime, esmaga e explora. Quebrar esta máquina, demoli-la, é este verdadeiramente o interesse do “povo”, da maioria dos operários e dos camponeses, esta é a “condição prévia” da livre aliança dos camponeses pobres e dos proletários, e sem tal aliança a democracia é instável e a transformação socialista é impossível.

Era para esta aliança que, como se sabe, a Comuna de Paris abria caminho, não tendo atingi-do seus fins devido a uma série de razões de caráter interno e externo.

Consequentemente, ao falar de uma “verdadei-ra revolução popular”, Marx, sem esquecer de modo algum as particularidades da pequena burguesia (de-las falou, e frequentemente), tem em conta, com o maior rigor, a efetiva correlação das classes na maio-ria dos Estados continentais da Europa em �87�. E, por outro lado, ele constata que “quebrar” a máquina de Estado é exigido pelos interesses tanto dos operá-rios quanto dos camponeses, os une e coloca perante eles a tarefa comum da eliminação do “parasita” e sua substituição por algo novo.

Pelo quê, precisamente?

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Novas lições da Comuna de Paris

Pelo quê substituir a máquina de Estado depois de destruída?

A esta pergunta, Marx dava em �847, no Ma-nifesto Comunista, uma resposta ainda abstrata, ou melhor, uma resposta que indicava as tarefas, mas não os meios para resolvê-las. Substituí-la pela “or-ganização do proletariado como classe dominante”, pela “conquista da democracia” tal era a resposta do Manifesto Comunista.

Sem cair em utopias, Marx espetava da experi-ência do movimento de massas a resposta à questão de quais as formas concretas que tomaria esta orga-nização do proletariado como classe dominante, de que maneira precisa esta organização conciliar- se-ia com a mais completa e a mais consequente “con-quista da democracia”

Marx, n’ A guerra civil na França, submete a experiência da Comuna, por mais limitada que tenha sido, à mais atenta análise.

Citemos as passagens mais importantes desta obra:

No século XIX desenvolveu-se, vindo da Idade Média, “o poder de Estado centralizado, com os seus ór-gãos onipresentes – exército permanente, polícia, buro-cracia, clero, magistratura.” Com o desenvolvimento do antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, “o poder de Estado foi adquirindo cada vez mais o caráter de uma força pública organizada para servidão social, instrumento de despotismo de uma classe. Depois de cada revolução que marque o processo da luta de clas-ses, o caráter puramente repressivo do poder de Estado apresenta-se cada vez mais abertamente”. O poder de Estado torna-se, depois da revolução de �848-�849, “o instrumento nacional da guerra do capital contra o tra-balho.” O segundo Império consolida isto. “A Comuna foi a antípoda do Império.” “A Comuna foi a forma “po-sitiva”, uma “república que devia eliminar, não apenas a forma monárquica da dominação de classe, mas a pró-pria dominação de classe [...].”

Em que consistia precisamente esta forma “po-sitiva” de república proletária, socialista? Qual era o Estado que ela havia começado a fundar?

“O primeiro decreto da Comuna foi a supres-são do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado [...]”

Esta reivindicação figura agora no programa de todos os partidos que se dizem socialistas. Mas nós vemos claramente para que servem seus programas através da conduta dos nossos socialistas-revolucio-nários e mencheviques que, exatamente depois da revolução de 27 de fevereiro, se recusaram a realizar essa reivindicação!

A Comuna constituiu-se a partir dos conselhei-ros municipais eleitos por sufrágio universal nos di-ferentes bairros de Paris. Estes eram responsáveis e

revogáveis a qualquer momento. A sua maioria con-sistia naturalmente de trabalhadores ou representan-tes reconhecidos da classe proletária [...]

[...] A polícia, até aí o instrumento do gover-no estatal, foi imediatamente despojada de todos os seus atributos políticos e transformada no ins-trumento da Comuna, responsável e revogável a cada momento [...] O mesmo princípio foi aplicado aos funcionários de todos os outros ramos adminis-trativos [...] A começar pelos membros da Comuna e daí para baixo, o serviço público tinha de ser exer-cido mediante um salário não superior ao salário proletário. Os direitos adquiridos e o dinheiro de representação dos altos cargos de Estado desapa-receram com os próprios cargos [...] Uma vez eli-minados o exército permanente e a polícia, os ins-trumentos do poder material do velho governo, a Comuna estabeleceu imediatamente corno objeti-vo quebrar o instrumento de repressão espiritual, o poder dos padres [...] Os funcionários judiciais per-deram aquela aparente independência [...] daí em diante, os magistrados e os juízes, como os demais servidores do povo, deveriam ser eleitos, responsá-veis e revogáveis [...].

Deste modo, e por assim dizer, a Comuna substitui a máquina de Estado quebrada por uma democracia “apenas” mais completa: supressão do exército permanente, plena elegibilidade e revo-gabilidade de todos os funcionários públicos. Mas, na realidade, este “apenas” significa a substituição gigantesca de instituições por outras de tipo funda-mentalmente diferente. Aqui observa-se exatamen-te um dos casos de “transformação da quantidade em qualidade”: a democracia, realizada de modo tão completo e consequente quanto é concebível, converte-se de democracia burguesa em proletária, de Estado (= força especial para a opressão de uma classe determinada) em qualquer coisa que já não é propriamente falando Estado.

Derrotar a burguesia e quebrar a sua resistên-cia continua a ser uma necessidade. Para a Comuna, isto era especialmente necessário, e uma das causas da sua derrota residiu no fato de ela não ter se lan-çado a fundo nessa tarefa. Mas na Comuna, o órgão de repressão era já a maioria da população e não a minoria, como sempre havia sido, tanto na escravidão como na servidão e também na escravidão assalaria-da. Ora, e, uma vez que é a própria maioria do povo que reprime os seus opressores, já não é necessária uma “força especial” para a repressão! É neste sen-tido que o Estado começa a extinguir-se. Em vez de instituições especiais de uma minoria privilegiada (funcionalismo civil privilegiado, comando do exército permanente), a própria maioria pode realizar direta-mente as funções do poder político, e, quanto mais

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a própria realização das funções do poder de Estado toma-se de todo o povo, menos necessário se torna esse poder.

A esse respeito, é particularmente notável uma medida da Comuna sublinhada por Marx: a abolição de toda a remuneração paga a título de representa-ção, de todos os privilégios pecuniários e a redução dos vencimentos de todos os funcionários do Estado ao nível do “salário proletário”. É aqui exatamente que se manifesta de modo mais evidente a viragem da democracia burguesa para a democracia proletá-ria, da democracia dos opressores para a democracia das classes oprimidas, do Estado como “força espe-cial” para a repressão de uma classe determinada, para a repressão dos opressores pela força geral da maioria do povo, dos operários e camponeses. E é precisamente sobre este ponto, particularmente evi-dente e talvez o mais importante no que diz respeito à questão do Estado, que as lições de Marx são mais esquecidas! Os inúmeros comentários dos populariza-dores de Marx não falam disto! É costume se calarem sobre isto como uma “ingenuidade” de uma época antiga, à maneira dos cristãos que, tendo chegado à situação de religião de Estado, “esqueceram” as “in-genuidades” do cristianismo primitivo, com o seu es-pírito democrático revolucionário.

A redução geral da remuneração dos altos funcionários do Estado parece “simplesmente” a rei-vindicação de um democratismo ingênuo, primitivo. Um dos “fundadores” do oportunismo moderno, o ex-social-democrata Eduardo Bernstein, ocupou-se mais de uma vez em repetir os gracejos burgueses vulgares sobre o democratismo “primitivo”. Como todos os oportunistas, como os kautskianos atuais, não compreendeu de modo algum que, em primeiro lugar, é impossível a transição do capitalismo para o socialismo sem um certo “retorno” ao democratismo “primitivo” (pois, de que outra forma se pode passar para a realização das funções do Estado pela maioria da população e na verdade por toda a população?). E, em segundo lugar, Bernstein não viu que o democra-tismo primitivo na base do capitalismo e da cultura capitalista não é o democratismo primitivo dos tem-pos antigos ou pré-capitalistas. A civilização capitalis-ta criou a grande produção, as fábricas, as estradas de ferro, os correios, os telefones etc.; ora, com essas bases, a imensa maioria das funções do velho “poder de Estado” simplificou-se de tal maneira, podendo ser reduzida a operações de registro, fiscalização, de inscrição, de controle tão simples, que estas funções estão totalmente ao alcance de qualquer pessoa al-fabetizada, que estas funções podem perfeitamente ser realizadas pelo habitual “salário operário”, e tais funções podem e devem perder qualquer sombra de privilégio, de hierarquia.

A elegibilidade completa, a revogabilidade, a qualquer momento, de todos os funcionários públi-cos sem exceção, a, redução de seus vencimentos ao habitual “salário operário”, estas medidas democrá-ticas simples e compreensíveis por si mesmas, unin-do completamente os interesses dos operários e da maioria dos camponeses, servem ao mesmo tempo de ponte que conduz do capitalismo ao socialismo. Estas medidas dizem respeito à reorganização esta-tal, puramente política da sociedade, mas só adqui-rem naturalmente todo seu sentido e importância se conectadas com a realização ou a preparação da “ex-propriação dos expropriadores”, isto é, com a socia-lização da propriedade privada capitalista dos meios de produção. “A Comuna”, escrevia Marx, “fez da palavra de ordem de todas as revoluções burguesas – governo barato – uma verdade, ao suprimir as duas maiores fontes de despesas: o exército permanente e o funcionalismo.”

Do campesinato, assim como de outras ca-madas da pequena burguesia, apenas uma insignifi-cante minoria “sobe”, “torna-se alguém”, no sentido burguês, isto é, converte-se em pessoa abastada, em burguês, ou em funcionário privilegiado e com uma posição garantida. A imensa maioria do campesinato, em qualquer país capitalista em que exista campesi-nato (e estes são a maioria), é oprimida pelo governo e aspira a derrubá-lo, aspira a um governo “barato”. Só o proletariado pode realizar isto e, ao realizá-lo, dá ao mesmo tempo um passo para a reorganização so-cialista do Estado.

A supressão do parlamentoMarx escreveu:

A Comuna devia ser, não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo [...] Em vez de decidir, de três em três anos ou de seis em seis, que membro da classe dominante havia de representar e reprimir (vertreten und zertreten) o povo no parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo consti-tuído em comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolherem operá-rios, fiscais e contabilistas no seu negócio.

Esta notável crítica do parlamentarismo, feita em 18�1, também pertence agora, graças à domi-nação do social-chauvinismo e do oportunismo, às “palavras esquecidas” do marxismo. Os ministros e os parlamentares de profissão, os traidores do pro-letariado e os socialistas interesseiros dos nossos dias deixaram aos anarquistas o monopólio da críti-ca ao parlamentarismo e, nestes marcos, classifica-ram como “anarquista” toda a crítica ao parlamen-tarismo!! Não é de admirar que o proletariado dos

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países de parlamentarismo “avançado”, sentindo repugnância ao ver “socialistas” tais como os Schei-demann, David, Legien, Sembat, Renaudel, Hender-son, Vandervelde, Stauning, Branting, Bissolati e cia., tenha cada vez mais concedido suas simpatias ao anarcosindicalismo, embora este seja irmão gêmeo do oportunismo.

Mas, para Marx, a dialética revolucionária nun-ca foi a fraseologia da moda, a brincadeira de criança que dela fizeram Plekhanov, Kautski e outros. Marx soube romper impiedosamente com o anarquismo devido à incapacidade deste em utilizar mesmo a “pocilga” do parlamentarismo burguês, sobretudo quando não há manifestamente uma situação revo-lucionária; mas, ao mesmo tempo, soube também fazer uma crítica verdadeiramente proletária e revo-lucionária do parlamentarismo.

Decidir uma vez em cada certo número de anos que membro da classe dominante reprimirá, esma-gará o povo no parlamento, eis a verdadeira essência do parlamentarismo burguês, não só nas monarquias constitucionais parlamentares, mas também nas re-públicas mais democráticas.

Mas, se se coloca a questão do Estado, se se considera o parlamentarismo como uma das institui-ções do Estado, qual é, pois, do ponto de vista das ta-refas do proletariado neste domínio, quais os meios de romper com o parlamentarismo? De que forma deveremos descartá-lo?

Somos forçados a repetir mais uma vez: as li-ções de Marx baseadas no estudo da Comuna estão tão esquecidas que, para o “social-democrata” con-temporâneo (leia-se: o traidor contemporâneo do so-cialismo), é simplesmente inconcebível outra crítica do parlamentarismo que não seja a crítica anarquista ou a reacionária.

O meio para romper com o parlamentarismo, naturalmente, não consiste na supressão das institui-ções representativas e da elegibilidade, mas na trans-formação das instituições representativas, de lugares de charlatanice em instituições de trabalho: “A Comuna devia ser, não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo”.

Uma instituição “não parlamentar, mas de tra-balho”: isto atinge em cheio aos parlamentares con-temporâneos e aos “cachorrinhos de colo” parlamen-tares da social-democracia! Olhem para qualquer país parlamentar, dos Estados Unidos à Suíça, da França à Inglaterra, à Noruega etc.: o verdadeiro trabalho “de Estado” é realizado nos bastidores, é executado pelos departamentos, pelas chancelarias, pelos Es-tados-maiores. Nos parlamentos o que se faz é ape-nas tagarelar, com a finalidade especial de enganar às “pessoas simples”. Isto é tão verdade que, mesmo na república russa, república democrático-burguesa,

todos esses vícios do parlamentarismo manifestaram-se imediatamente, mesmo antes de se ter tido tempo para constituir um verdadeiro parlamento. Heróis da pequeno burguesia apodrecida, como os Skobelev e os Tsereteli, os Chernov e os Avxentiev, conseguiram apodrecer mesmo os sovietes segundo o modelo do mais ignóbil parlamentarismo burguês, convertendo-os em lugares ocos da charlatanice. Nos sovietes, os senhores ministros “socialistas” enganam os mujiques6 de boa fé com sua fraseologia e suas resoluções. No governo, se desenvolve um frenesi permanente: por um lado, para reunir em volta do “bolo” dos cargos rentáveis e de status o maior número possível de so-cialistas-revolucionários e de mencheviques; por ou-tro lado, para “distrair” a atenção do povo. Enquanto isso, o trabalho “de Estado” vai sendo levado adiante nas chancelarias e nos Estados-maiores!

O Dielo Naroda, órgão do partido dirigente dos “socialistas- revolucionários”, confessava recentemen-te num editorial, com a incomparável franqueza das pessoas da “boa sociedade”, em que todos exercem a prostituição política, que mesmo nos ministérios pertencentes aos “socialistas” (desculpem a expres-são), que mesmo neles todo o aparelho burocrático permanece, no fundo, o antigo, nada ali mudou e que ele sabota com completa “liberdade” as iniciativas revolucionárias! Mas, mesmo que não existisse esta confissão, por acaso a história real da participação dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques no governo já não é prova suficiente disso? O que é notável aqui é apenas que, encontrando-se no minis-tério lado a lado com os cadetes (democratas-consti-tucionalistas), os senhores Chernov, Russanov, Zenzi-nov e outros redatores do Dielo Naroda percam tanto a vergonha que não se inibam de contar em público como uma ninharia, sem corar, que “entre eles”, ou seja, nos seus ministérios, nada mudou! Frase demo-crático-revolucionária para enganar o homem da roça e enrolação burocrática para agradar aos capitalistas: eis a essência da “leal” coligação ministerial.

A Comuna substitui este parlamentarismo ve-nal e apodrecido da sociedade burguesa por institui-ções nas quais a liberdade de opinião e de discussão não degenera em engodo: os próprios parlamenta-res têm de trabalhar, executar eles próprios as suas leis, comprovar eles próprios os resultados obtidos e responder eles próprios diretamente perante os seus eleitores. As instituições representativas perma-necem, mas o parlamentarismo como sistema espe-cial, como divisão do trabalho legislativo e executivo, como situação privilegiada para os deputados, aqui já não existe. Não podemos conceber uma democracia, mesmo uma democracia proletária, sem instituições representativas, mas podemos e devemos concebê-la

6 Mujique: do russo muzhik, camponês russo (N. Ed.).

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sem parlamentarismo, desde que a crítica da socieda-de burguesa seja para nós não uma palavra oca, desde que a aspiração a derrubar a dominação da burguesia seja nossa aspiração séria e sincera e não uma frase “eleitoral“ destinada a captar os votos dos operários, como ocorre com os mencheviques e os socialistas- revolucionários, e com os Scheidemann e os Legien, os Sembat e os Vandervelde.

É extremamente instrutivo que, ao falar das fun-ções ou do tipo de funcionalismo de que tanto a Comu-na como a democracia proletária precisam, Marx tome como comparação os empregados de uma empresa de um “patrão qualquer”, isto é, uma empresa capitalista vulgar com “operários, fiscais e contadores”.

Em Marx não existe um único grão de utopis-mo, no sentido de inventar ou imaginar uma sociedade “nova”. Ao contrário; ele estuda, como se estuda um processo de história natural, o nascimento da nova so-ciedade a partir da velha, as formas de passagem da segunda para a primeira. Toma a experiência real do movimento proletário de massas e esforça-se por tirar dela lições práticas. “Seu aprendizado” é com a Comu-na, da mesma forma que todos os grandes pensadores revolucionários não recearam aprender com a expe-riência dos grandes movimentos da classe oprimida, nunca se referindo a eles com “sermões” pedantes (à semelhança do “não se devia ter pegado em armas”, de Plekhanov, ou o “uma classe deve saber refrear-se”, de Tseretelli).

Não se trata de suprimir o funcionalismo de uma só vez, por todo lado e até o fim. Isso sim seria uma utopia. Mas se trata de destruir sem demora a velha máquina burocrática e começar imediatamente a construir uma nova, que permita gradualmente aca-bar com todo o funcionalismo; isto não é utopia, isto é a experiência da Comuna, isto é a tarefa imediata e primordial do proletariado revolucionário.

O capitalismo simplifica as funções da adminis-tração estatal, permite que se suprima a hierarquia, reduzindo tudo à organização dos proletários como classe dominante e que contrata, em nome de toda a sociedade, “operários, fiscais e contadores”.

Não somos utopistas. Nunca “sonhamos” dis-pensar imediatamente e de um dia para o outro toda a administração, toda e qualquer subordinação; estes so-nhos anarquistas, baseados na incompreensão das tare-fas da ditadura do proletariado, são fundamentalmente estranhos ao marxismo e só servem na realidade para protelar a revolução socialista até o momento em que os homens tenham adquirido outra essência. Não é o nosso caso: nós queremos a revolução socialista com homens como os de agora, onde não se pode dispensar a subordinação, o controle, “fiscais e contadores”.

Mas é ao proletariado, à vanguarda armada de todos os explorados e trabalhadores, que é preciso

subordinar-se. Podemos e devemos, desde já, de hoje para amanhã, começar a substituir a hierarquização específica dos funcionários do Estado pelas simples funções dos “fiscais e contadores”, funções que, já hoje, estão completamente ao alcance do nível de de-senvolvimento da população urbana em geral e que podem perfeitamente ser executadas “mediante um salário operário”.

Organizaremos a grande produção partindo do que já foi criado pelo capitalismo, organizando-a nós mesmos, os operários, apoiando-nos na nossa expe-riência proletária; criando uma disciplina rigorosa, de ferro, apoiada pelo poder de Estado dos operários ar-mados, e assim reduziremos os funcionários públicos ao papel de simples executores de nossas diretivas, na condição de “fiscais e contadores” (naturalmente contando com técnicos e especialistas de todos os gêneros e níveis) responsáveis, revogáveis e modes-tamente pagos – eis a nossa tarefa proletária, eis por onde podemos e devemos começar na realização da revolução proletária. Esse programa, aplicado na base da grande produção, conduz por si mesmo à “extinção” gradual de todo o funcionalismo, ao es-tabelecimento gradual de uma ordem – ordem sem aspas, sem semelhança nenhuma com a escravidão assalariada – em que as funções de fiscalização e de contabilidade, cada vez mais simplificadas, serão desempenhadas por todos, por turnos, tornando-se depois um hábito, até finalmente se tomarem cadu-cas em termos de funções especiais de uma catego-ria especial de indivíduos.

Um espirituoso social-democrata alemão dos anos 70 do século passado [XIX] qualificava aos cor-reios como um modelo de instituição socialista. Isto é muito justo. Os correios são agora uma empresa orga-nizada segundo o tipo do monopólio de Estado capi-talista. O imperialismo transforma progressivamente todos os trustes em organizações de tipo semelhante. Os “simples” trabalhadores, famintos e sobrecarrega-dos de trabalho continuam submetidos à mesma bu-rocracia burguesa. Mas o mecanismo de gestão social aqui já está pronto. Uma vez derrubados os capitalis-tas, quebrada a resistência destes exploradores com a mão de ferro dos operários armados e uma vez demo-lida a máquina burocrática do Estado contemporâneo – e temos diante de nós um mecanismo admiravel-mente aperfeiçoado, livre “parasita” e que os pró-prios operários unidos podem perfeitamente pôr em funcionamento, contratando técnicos, fiscais, conta-dores, pagando o trabalho de todos eles, assim como o de todos os funcionários do “Estado” em geral com um salário de operário –, tal é a tarefa concreta, prá-tica e imediatamente realizável em relação a todos os trustes, e que liberta os trabalhadores da exploração, tendo em conta a experiência já começada na prática

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(especialmente na esfera de governo) pela Comuna. Devemos levar em conta essa experiência.

Toda a vida econômica organizada à maneira dos correios, de forma que os técnicos, os fiscais, os contadores, como todos os funcionários públicos, re-cebam um vencimento que não exceda um “salário operário” e sob o controle e a direção do proletariado armado – eis o nosso objetivo imediato. Eis o Esta-do, eis a base econômica da qual temos necessida-de. Aí está aquilo que aniquilará o parlamentarismo, mantendo, no entanto, as instituições representativas – atualmente prostituídas pela burguesia – a serviço das classes trabalhadoras.

A organização da unidade da naçãoNum breve esboço daquilo que seria organi-

zação nacional, que a Comuna não teve tempo para elaborar mais amplamente, os communards escre-vem, expressamente, que a Comuna deveria ser [...] a forma política a ser adotada por todas as aldeias [... ]. A “delegação nacional de Paris” também deveria ser eleita pelas comunas país afora. As poucas, mas importantes funções que depois ainda restariam a um governo central não deveriam ser abolidas, como de-liberadamente se tratou de falsificar em alguns textos, mas deveriam ser entregues a funcionários comunais, e portanto, rigorosamente responsáveis [...]. A unida-de da nação não devia ser quebrada, mas, pelo con-trário, organizada segundo a Constituição comunal; devia tornar-se uma realidade a partir da destruição daquele poder central de Estado que se fazia passar pela encarnação desta unidade, mas queria ser inde-pendente e superior diante da nação, mas que era, de fato, apenas uma excrescência parasitária [...] Ao mesmo tempo em que se amputava os órgãos pu-ramente repressivos do velho poder de Estado, ao mesmo tempo em que se abolia uma autoridade que usurpava poder e se colocava acima da sociedade, as funções úteis da sociedade passavam a ser devolvi-das aos agentes responsáveis da própria sociedade.

Até que ponto os oportunistas da social-demo-cracia contemporânea não compreenderam — seria talvez mais certo dizer: não quiseram compreender — estes raciocínios de Marx citados no parágrafo acima, é o que mostra, de forma cabal, o livro do renegado Bernstein, As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia, que adquiriu celebri-dade à maneira de Eróstrato�. Precisamente a pro-pósito das palavras de Marx acima citadas, Bernstein escrevia que este programa [da Comuna],

pelo seu conteúdo político, revela, em todos os tra-ços essenciais, a maior semelhança com o federa-

� Ficou conhecido pela estupidez de ter incendiado o Templo de Diana (NT).

lismo – de Proudhon [...] Apesar de todas as outras divergências entre Marx e o “pequeno-burguês” Proudhon [Bernstein coloca a expressão “peque-no-burguês” entre aspas, as quais deviam ser, na opinião dele, irônicas], nestes pontos a maneira de ver de ambos é quase idêntico.

Prossegue Bernstein:

Naturalmente, a importância das municipalidades cresce, mas parece- me duvidoso que a primeira tarefa da democracia seja esta abolição [Auflo-sung – literalmente dissolução, decomposição] dos Estados contemporâneos e esta mudança completa [Umwandlung – transformação] da sua organização como a imaginam Marx e Proudhon: formação de uma Assembleia Nacional, de dele-gados das assembleias estaduais ou municipais, as quais, por seu turno, seriam compostas por delegados das comunas – de maneira que toda a forma anterior das representações nacionais de-sapareceria por completo8.

Isto é simplesmente monstruoso: confundir as concepções de Marx sobre a “supressão do poder do Estado-parasita” com o federalismo de Proudhon! Mas isto não é casual, pois sequer ocorre ao opor-tunista que Marx não fala aqui de modo nenhum do federalismo em oposição ao centralismo, mas de quebrar a velha máquina de Estado burguesa exis-tente em todos os países burgueses.

Só ocorre ao oportunista aquilo que vê à sua volta, no meio do filisteísmo pequeno-burguês e da estagnação “reformista”, isto é, só sabe falar das “mu-nicipalidades”! Quanto à revolução do proletariado, ele sequer pensa nela!

Isto é ridículo. Mas o notável é Bernstein não foi contestado neste ponto. Muitos refutaram Bernstein – especialmente Plekhanov na Rússia e Kautski na Eu-ropa ocidental, mas nem um nem outro disseram nada acerca desta deturpação de Marx por Bernstein.

O oportunista está tão desacostumado a pensar de forma revolucionária e de refletir acerca da revolu-ção que atribui “federalismo” a Marx, confundindo-o com o fundador do anarquismo, Proudhon. E Kautski e Plekhanov, que pretendem ser marxistas ortodoxos e defender a doutrina do marxismo revolucionário, calam-se sobre isto! Aqui reside uma das raízes des-ta extrema pobreza das concepções sobre a diferença entre o marxismo e o anarquismo, que é a caracte-rística tanto dos kautskistas como dos oportunistas e sobre este ponto voltaremos mais adiante.

Nos citados raciocínios de Marx acerca da ex-periência da Comuna, não há nem sombra de fede-ralismo. Marx coincide com Proudhon exatamente no ponto que o oportunista Bernstein não enxerga; 8 Bernstein, As premissas. �899. p. �34 a �36 da edição alemã.

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Marx diverge de Proudhon justamente no ponto onde Bernstein enxerga coincidência. Marx coincide com Proudhon no ponto em que ambos defendem que se deve “quebrar” a máquina de Estado contemporâ-neo. Esta coincidência do marxismo com o anarquis-mo (de Proudhon com Bakunin), nem os oportunistas nem os kaustkistas querem vê-la, uma vez que, neste ponto, eles próprios se afastaram do marxismo.

Marx diverge, tanto de Proudhon quanto de Bakunin, na questão do federalismo (e nem falemos da ditadura do proletariado). O federalismo deriva, em princípio, do ponto de vista pequeno burguês do anarquismo. Marx é centralista e nos raciocínios que acima citamos dele não existe o menor desvio do cen-tralismo. Só as pessoas cheias de uma “fé supersticio-sa” no Estado podem tomar a supressão da máquina de Estado burguesa pela supressão do centralismo!

Ora, se o proletariado e o campesinato pobre tomarem nas mãos o poder de Estado, se se organi-zarem com toda a liberdade em comunas e unirem a ação de todas as comunas para os ataques contra o capital, para destruir a resistência dos capitalistas, para restituir a toda nação, a toda a sociedade, à na-ção inteira, a propriedade privada das estradas-de-ferro, das fábricas, da terra etc., não será isto centra-lismo? Não será isto o centralismo democrático mais consequente? E, além disso, centralismo proletário?

Bernstein, simplesmente não concebe um cen-tralismo voluntário, uma união voluntária das comu-nas em nação, uma fusão voluntária das comunas pro-letárias com o fim de destruir a dominação burguesa e a máquina de Estado burguesa. Como todo filisteu, Bernstein imagina o centralismo como uma coisa que só pode ser imposta e mantida de cima, imposta por meio do funcionalismo e da casta militar.

Marx sublinha intencionalmente – como que prevendo a possibilidade da deturpação das suas concepções – que as acusações à Comuna de que ela queria suprimir a unidade da nação, abolir o po-der central, constituem uma falsificação consciente. Marx emprega intencionalmente a expressão “orga-nizar a unidade da nação” para contrapor o centralis-mo consciente, democrático, proletário, ao centralis-mo burguês, militar, burocrático.

Mas não existe pior surdo do que aquele que não quer ouvir. E os oportunistas da social-democra-cia atual não querem precisamente ouvir falar de su-primir o poder de Estado, de amputar o parasita.

A supressão do Estado parasitaJá citamos Marx a esse respeito; só resta

completar as citações:

O destino habitual de novas criações históricas é serem confundidas com contrapartidas de formas

mais antigas e mesmo já extintas da vida social, às quais, em certa medida, se assemelham. Assim, esta nova Comuna, a qual quebra [bricht] o Esta-do moderno, tem sido vista como uma reprodução das comunas medievais [...], uma federação de pe-quenos Estados como Montesquieu e os girondi-nos a sonharam [...], como uma forma exagerada da velha luta contra os abusos da centralização [...] A constituição comunal teria, pelo contrário, devol-vido ao corpo social todas as forças até aqui devo-radas pelo Estado excrescência parasitária, o qual se alimenta da sociedade e tolhe o livre movimen-to desta. Este fato bastaria por si só, para torná-la um ponto de partida para a regeneração da França [...] Na realidade, porém, a Constituição comunal teria colocado os produtores rurais sob a direção intelectual das capitais distritais, e ter-lhes-ia asse-gurado nestas, na figura dos operários urbanos, os defensores naturais dos seus interesses. A simples existência da Comuna implicava, naturalmente, na liberdade, no autogoverno local, mas agora já não como um contrapeso contra o poder estatal, já tor-nado supérfluo.

“Supressão do poder de Estado”, essa “excres-cência parasitária”, a sua “amputação”, a “demolição”, desse “poder de Estado já tornado supérfluo” – são estes os termos com os quais Marx falava do Estado, avaliando e analisando a experiência da Comuna.

Tudo isto foi escrito há pouco menos de meio século, e agora é quase que é necessário realizar verdadeiras escavações para levar ao conhecimento amplo das massas um marxismo não-deturpado. As conclusões tiradas da observação da última grande re-volução do seu tempo foram esquecidas exatamente quando chegava a época das grandes revoluções mo-dernas do proletariado.

A multiplicidade de interpretações a que a Co-muna deu lugar e a multiplicidade dos interesses que nela se viram expressos provam que se tratava de uma forma política completamente expansiva, ao passo que todas as formas de governo anteriores tinham sido es-sencialmente repressivas. O seu verdadeiro segredo era este: ela era essencialmente um governo da classe operária, o resultado da luta da classe que produz con-tra a que se apropria do produto desta, a forma políti-ca, finalmente descoberta, sob a qual se podia realizar a libertação econômica do trabalho [...] Sem esta úl-tima condição, a Constituição comunal teria sido uma impossibilidade e um engano [...]

Os utopistas dedicaram-se a “descobrir” as formas políticas sob as quais deveria se dar a reor-ganização socialista da sociedade. Os anarquistas es-quivaram-se completamente da questão das formas políticas em geral. Os oportunistas da social-demo-cracia atual aceitaram as formas políticas burguesas do Estado democrático-parlamentar como um limite

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intransponível e quebraram a espinha de tanto se cur-var diante deste “modelo”, classificando de anarquis-mo qualquer tentativa de demolir essas formas.

Marx deduziu, de toda a história do socialismo e da luta política, que o Estado deverá desaparecer e que a forma transitória do seu desaparecimento (passagem do Estado para o não-Estado) será “o proletariado or-ganizado como classe dominante”. Mas Marx não se aventurou a descobrir as formas políticas desse futuro. Limitou-se a uma observação precisa da história fran-cesa, à sua análise e à conclusão a que o conduziu o ano de �87�: caminhamos para a destruição da máqui-na de Estado burguesa.

E quando o movimento revolucionário de mas-sas do proletariado eclodiu, Marx, apesar do fracasso deste movimento, apesar da sua curta duração e da sua fraqueza evidente, entregou- se ao estudo das for-mas que tinham se revelado.

A Comuna é a forma, “finalmente descoberta” pela revolução proletária, na qual se pode realizar a libertação econômica do trabalho.

A Comuna é a primeira tentativa da revolução proletária para demolir a máquina de Estado burgue-sa e a forma política “finalmente descoberta” pela qual se pode e se deve substituir o que foi quebrado.

Mais adiante, veremos que as revoluções rus-sas de �905 e �9�7, em um quadro diferente e em outras condições, não fazem mais senão continuar a obra da Comuna, confirmando a genial análise histó-rica de Marx.

A dialética e o conservadorismo da comunidade científica

Apesar dos incansáveis esforços por negar a validade da dialética, esta sempre se vinga de seus mais duros detratores. A conservadora comuni-dade geológica viu-se obrigada a aceitar a deriva continental e o nascimento e morte dos continen-tes, elemento diante do qual já se riram às garga-lhadas. Os biólogos viram-se obrigados a aceitar que a velha idéia da evolução como um processo gradual e ininterrupto é unilateral e falsa e que, na realidade ela ocorre através de saltos qualita-tivos catastróficos, nos quais a morte (extinção) se converte na precondição para o nascimento (de novas espécies).

A cada momento, a riqueza do mundo material proporcionada pelas ciências naturais impulsiona aos cientistas a adotarem conclusões dialéticas. No entanto, em seguida se sentem in-comodados porque se dão conta das implicações potencialmente `subversivas` deste tipo de idéias. Neste momento recorrem a todo tipo de desculpas e subterfúgios para darem as costas. A escapató-ria habitual é alegar ignorância no que se refere à filosofia. Como “o amor que não se atreve a di-zer seu nome” de Oscar Wilde, estes autores, tão eloqüentes sobre qualquer tema da face da Terra, vêem-se incapazes de pronunciar a expressão ma-terialismo dialético. No máximo, insistem: o mate-rialismo dialético é válido em seu campo concreto, mas não tem qualquer aplicação na ciência e muito menos – Deus nos livre! – na sociedade.

(Alan WOODS; Ted GRANT, 2007 em Razão e revolução).