a corrente humanista e a corrente transpessoal

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O estudo do potencial humano na Psicologia contemporânea: A corrente Humanista e a corrente Transpessoal. Elias Boainain Jr. Disponível em: http://www.encontroacp.psc.br/estudo.htm A leitura histórica que contextualiza este artigo, inicialmente proposta por Abraham Maslow, afirma que a Psicologia se desenvolveu, e contemporaneamente se estabelece, em quatro grandes Forças, isto é, grandes correntes ou movimentos congregadores de teorias, escolas, estudiosos e praticantes da ciência psicológica. De acordo com essa classificação, a Primeira Força é o Behaviorismo, ou Psicologia Comportamental, corrente iniciada por John Watson e cujo maior expoente talvez seja B. Skinner, sendo a Psicanálise, criada por Sigmund Freud, apontada como a Segunda Força. Não obstante o inegável valor e importância das contribuições dessas duas primeiras Forças para a compreensão psicológica do ser humano, elas despertaram, no meio científico psicológico, diversas oposições ao mecanicismo de suas propostas deterministas de compreensão do psiquismo e ao pouco otimismo de suas concepções relativas à natureza humana e suas potencialidades intrínsecas. Estas potencialidades, afirmam os opositores, teriam sido negligenciadas, ignoradas ou deturpadas nas propostas de Psicologia do Behaviorismo e da Psicanálise, cujas principais descobertas e teorias fundamentaram-se, respectivamente, no estudo de animais e de doentes mentais. Assim, congregando diversas escolas e investigadores, dois outros grandes movimentos, em que o estudo do potencial humano é privilegiado, tem emergido nas últimas décadas e sido apresentados e propostos como novas Forças da Psicologia: A Psicologia Humanista, ou Terceira Força, e a Psicologia Transpessoal, ou Quarta Força. O objetivo deste artigo é apresentar, de forma didática e sintética, o histórico e as características principais dessas duas correntes da Psicologia contemporânea que enfatizam o estudo e o desenvolvimento das potencialidades do psiquismo humano. Ao contrário do Behaviorismo e da Psicanálise, entretanto, nem a Psicologia Humanista nem a Psicologia Transpessoal podem ter suas origens associadas a determinado autor ou escola, embora líderes e expoentes possam ser identificados. Ambas se constituem, na verdade, como movimentos congregadores de profissionais e abordagens de origem, por vezes, bastante diversa e independente. A articulação e institucionalização, tanto do Movimento Humanista quanto do Transpessoal, nasce da insatisfação e sensação de isolamento de investigadores, teóricos e praticantes não identificados com as tendências predominantes no cenário psi e traduz seu anseio de constituir um grupo de pertença, intercâmbio, atuação e fortalecimento mútuo, a partir da convergência em torno de algumas propostas, tendências, posicionamentos, interesses,

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Excelente artigo introdutório à Psicologia Transpessoal, escrito por - Elias Boainain Jr.

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  • O estudo do potencial humano na Psicologia contempornea: A

    corrente Humanista e a corrente Transpessoal.

    Elias Boainain Jr.

    Disponvel em: http://www.encontroacp.psc.br/estudo.htm

    A leitura histrica que contextualiza este artigo, inicialmente proposta por Abraham

    Maslow, afirma que a Psicologia se desenvolveu, e contemporaneamente se estabelece,

    em quatro grandes Foras, isto , grandes correntes ou movimentos congregadores de

    teorias, escolas, estudiosos e praticantes da cincia psicolgica. De acordo com essa

    classificao, a Primeira Fora o Behaviorismo, ou Psicologia Comportamental, corrente

    iniciada por John Watson e cujo maior expoente talvez seja B. Skinner, sendo a

    Psicanlise, criada por Sigmund Freud, apontada como a Segunda Fora. No obstante o

    inegvel valor e importncia das contribuies dessas duas primeiras Foras para a

    compreenso psicolgica do ser humano, elas despertaram, no meio cientfico psicolgico,

    diversas oposies ao mecanicismo de suas propostas deterministas de compreenso do

    psiquismo e ao pouco otimismo de suas concepes relativas natureza humana e suas

    potencialidades intrnsecas. Estas potencialidades, afirmam os opositores, teriam sido

    negligenciadas, ignoradas ou deturpadas nas propostas de Psicologia do Behaviorismo e

    da Psicanlise, cujas principais descobertas e teorias fundamentaram-se,

    respectivamente, no estudo de animais e de doentes mentais. Assim, congregando

    diversas escolas e investigadores, dois outros grandes movimentos, em que o estudo do

    potencial humano privilegiado, tem emergido nas ltimas dcadas e sido apresentados e

    propostos como novas Foras da Psicologia: A Psicologia Humanista, ou Terceira Fora, e

    a Psicologia Transpessoal, ou Quarta Fora. O objetivo deste artigo apresentar, de forma

    didtica e sinttica, o histrico e as caractersticas principais dessas duas correntes da

    Psicologia contempornea que enfatizam o estudo e o desenvolvimento das

    potencialidades do psiquismo humano.

    Ao contrrio do Behaviorismo e da Psicanlise, entretanto, nem a Psicologia

    Humanista nem a Psicologia Transpessoal podem ter suas origens associadas a

    determinado autor ou escola, embora lderes e expoentes possam ser identificados.

    Ambas se constituem, na verdade, como movimentos congregadores de profissionais e

    abordagens de origem, por vezes, bastante diversa e independente. A articulao e

    institucionalizao, tanto do Movimento Humanista quanto do Transpessoal, nasce da

    insatisfao e sensao de isolamento de investigadores, tericos e praticantes no

    identificados com as tendncias predominantes no cenrio psi e traduz seu anseio de

    constituir um grupo de pertena, intercmbio, atuao e fortalecimento mtuo, a partir da

    convergncia em torno de algumas propostas, tendncias, posicionamentos, interesses,

  • pontos de vista e mesmo linguagem assumidos em comum, mas sem prejuzo das

    perspectivas mais particulares e das diferenas entre as escolas especficas com que se

    identificam.

    Essa heterogeneidade tpica das duas correntes, e que d margem a caracterizaes

    e definies por vezes bastante discrepantes entre os autores que as apresentam, acaba

    por vezes confundindo o estudante ou profissional de Psicologia que se prope a entender

    o que afinal a Psicologia Humanista ou a Psicologia Transpessoal.

    Sem a pretenso de poder acabar com essa confuso, mas desejando lanar alguma

    luz sobre o assunto, a caracterizao que aqui apresento no ter a preocupao de

    discriminar ou comparar os posicionamentos e as contribuies de cada autor ou escola

    que se identifica ou identificado como humanista ou transpessoal. O enfoque adotado

    ser o de, aps uma sinttica exposio dos aspectos histricos e contextuais a que o

    nascimento de cada um dos movimentos esteve associado, centrar a exposio nas

    tendncias mais gerais e consensuais, examinando-as em quatro tpicos, ou dimenses,

    que me parecem essenciais na caracterizao de qualquer escola ou corrente de

    Psicologia: a Temtica Privilegiada; o Modelo de Cincia; a Viso de Homem; e os

    Mtodos e Tcnicas.

    No caso da Psicologia Humanista, como esta, em suas diversas abordagens, hoje

    bem mais difundida e estabelecida no meio acadmico e profissional da Psicologia de

    nosso pas, a exposio ser mais resumida e menos fundamentada em citaes e

    esclarecimentos. Preferi ocupar um espao maior na apresentao da Psicologia

    Transpessoal, a qual, no obstante o crescente interesse que vem despertando

    (demonstrado, por exemplo, no aumento da traduo e edio de livros sobre o assunto),

    ainda bem pouco conhecida e aceita nos meios mais oficiais da Psicologia no Brasil.

    A PSICOLOGIA HUMANISTA

    HISTRICO

    O Nascimento da Psicologia Humanista

    A Psicologia Humanista, conforme historia DeCarvalho (1990), surgiu, com esse

    ttulo, no final da dcada de 50 e incio os anos 60. Foi sobretudo graas ao trabalho de

    dois homens, Abraham Maslow e Anthony Sutich, que o Movimento Humanista pode ser

    articulado, organizado e institucionalmente fundado como a Terceira Fora da Psicologia.

    No incio da dcada de 50, Maslow era um promissor psiclogo experimental e

    professor de Psicologia na Universidade de Brandeis, mas seus interesses pouco ortodoxos

    e pouco afinados forte predominncia do Behaviorismo no ambiente acadmico, apenas

  • confrontado pela influncia da Psicanlise nos meios clnicos, tendiam a lev-lo ao

    isolamento profissional e intelectual. Era-lhe inclusive difcil arranjar veculo adequado

    para publicar seus artigos, que no encontravam ressonncia na linha editorial e terica

    adotada pela maior parte das revistas tcnicas de ento. Como forma de contornar o

    problema, em meados dos anos 50, organizou uma lista de nomes e endereos de

    psiclogos e grupos envolvidos em vises menos ortodoxas e mais afinados com suas

    prprias idias, para com eles manter intercmbio de artigos e discusses, na forma de

    uma rede de correspondncia, a que chamou Rede Eupsiquiana e que viria a ser o

    embrio do Movimento Humanista.

    Sutich, psiclogo que conhecera Maslow no final dos anos 40 e que nos anos 50

    tornara-se ativo participante da Rede e intenso colaborador na discusso das novas

    idias, veio a ter fundamental papel no lanamento e institucionalizao da Psicologia

    Humanista. De suas discusses com Maslow nasceu a percepo de que uma nova Fora

    estava se configurando e j era a hora, ao final dos anos 50, de fundarem uma revista

    prpria que difundisse e veiculasse a proposta. Sutich foi encarregado de encabear o

    empreendimento, dedicando-se intensamente tarefa de articulao e organizao. Aps

    considervel deliberao sobre o nome da nova revista - foram sugeridos Ser e Tornar-se,

    Crescimento Psicolgico, Desenvolvimento da Personalidade, Terceira Fora, Psicologia do

    Self, Existncia, e Orto-Psicologia - foi adotado o ttulo Revista de Psicologia

    Humanista, sugerido por S. Cohen, e que desde ento passou a designar o Movimento,

    oficialmente lanado com o primeiro nmero da revista, em 1961.

    O sucesso da revista acabou levando organizao da Associao Americana de

    Psicologia Humanista, fundada em 1963, consolidando-se o movimento de forma

    definitiva em 1964 quando, em uma conferncia realizada na cidade de Old Saybrook,

    compareceram em aberta adeso grandes nomes inspiradores do movimento. Com sua

    rpida e slida difuso a Psicologia Humanista se mostra hoje uma Fora firmemente

    estabelecida e respeitada no panorama da Psicologia mundial, generalizadamente

    reconhecida nos campos tericos, acadmicos e de aplicao.

    Principais Influncias e Adeses

    Ao contrrio das Foras anteriores, a Psicologia Humanista no se identifica ou inicia

    com o pensamento de um determinado autor ou escola. Tratando-se primariamente de

    um movimento congregador de diversas tendncias, unidas pela oposio ao

    Behaviorismo e Psicanlise, assim como pela convergncia em torno de algumas

    propostas comuns, vrias afluncias, adeses e influncias podem ser apontadas,

    destacando-se as que se seguem:

    Teorias Neo-Psicanalticas

  • A crtica que a Psicologia Humanista faz Psicanlise, centra-se sobretudo na viso

    pessimista, determinista e psicopatologizante que atribui teoria de Freud, assim como

    na impessoalidade da tcnica transferencial. J algumas teorias de discpulos dissidentes

    de Freud so vistas com bons olhos e citadas como importantes influncias em relao ao

    trabalho de destacados humanistas. So vistas com simpatia as teorias de Adler, Rank,

    Jung e Reich, assim como so bem recebidas contribuies da Psicanlise americana,

    representada por Horney, Sullivan, Erikson, e toda a corrente de Psicanalistas do Ego e

    Culturalistas em geral. Psicanalistas no ortodoxos, como Nuttin e Fromm, chegam

    mesmo a tornar parte ativa no Movimento.

    Gestaltistas e Holistas

    A Psicologia Humanista retoma em grande parte as propostas da Psicologia da

    Gestalt alem, em especial a viso holista (que privilegia o todo em detrimento das

    partes, opondo-se ao elementarismo e ao reducionismo) do ser humano e seu

    envolvimento ambiental. Trazida aos Estados Unidos pelos seus criadores - Wertheimer,

    Koffka e Khler - e outros psiclogos imigrantes, fugitivos das conturbaes polticas

    europias, a influncia da Psicologia da Gestalt est presente em praticamente todos os

    psiclogos humanistas. Para citar apenas os principais autores envolvidos no surgimento

    da Psicologia Humanista e para os quais a formao gestltica foi decisiva lembremos

    Goldstein, Angyal e Lewin, sendo que este ltimo, ao lado das propostas do Psicodrama

    de Moreno, foi tambm uma das principais influncias no extraordinrio desenvolvimento

    e aplicao de tcnicas de trabalho grupal, que to caracteristicamente marcaram o

    movimento da Psicologia Humanista. E, ainda neste tpico da influncia gestltica, no

    pode ser esquecido Perls, o polmico Fritz, que em suas originais leituras da Psicanlise,

    da Psicologia de Gestalt e do Existencialismo, foi, com a Gestalt-Terapia por ele criada,

    uma das presenas mais marcantes no extraordinrio sucesso e desenvolvimento da

    Psicologia Humanista nas dcadas de 60 e 70.

    Psicologias Existenciais

    As articulaes para o lanamento da Psicologia Humanista coincidiram, no final da

    dcada de 50, com a maior difuso nos Estados Unidos do trabalho que havia dcadas

    vinha sendo realizado na Europa por diferentes escolas de Psicologia e Psicoterapia

    inspiradas em filsofos existencialistas e fenomenlogos(1). Essa difuso ocorre no s

    pela traduo para o ingls de obras de psiclogos existenciais, como Boss, Binswanger e

    Van Den Berg, mas tambm pelo trabalho de divulgao realizado no meio psicolgico

    pelos escritos de Tillich e Rollo May, tendo este ltimo organizado, em 1959, o primeiro

    simpsio sobre Psicologia Existencial realizado nos Estados Unidos, para o qual foram

    convidados expoentes e futuros lderes do Movimento Humanista, como Maslow e Rogers.

    No tardaram a serem encontrados pontos em comum nas respectivas propostas e,

    sobretudo pela participao ativa de May e outros psiclogos existenciais que aderiram ao

  • movimento, como Bugental e Bhler, a Psicologia Humanista foi amplamente enriquecida

    com a perspectiva fenomenolgica e existencial, a ponto de por vezes ser denominada

    Psicologia Humanista-Existencial (Greening, 1975). No cabe aqui uma discusso mais

    aprofundada do relacionamento nem sempre fcil e pacificamente aceito entre a

    perspectiva humanista americana - em muitos sentidos muito mais essencialista, ligada

    antes a Rousseau que a Heidegger e Sartre, menos filosoficamente sofisticada, mais

    otimista e vinculada a interpretaes biolgicas da natureza humana - e a perspectiva

    existencial europia. Entre os filsofos existencialistas cujas idias foram mais

    abertamente abraadas pelos humanistas americanos, destacam-se Kierkegaard e Buber,

    sem contar com a influncia de Nietzche que, sobretudo por via indireta (as idias de

    Adler), notada em algumas propostas da Terceira Fora. De uma maneira geral, o

    Movimento Humanista acabou por absorver a maioria dos psiclogos existenciais

    americanos e, do outro lado, a proposta humanista recebeu a adeso de pelo menos um

    terico europeu de destaque, Viktor Frankl, criador da Logoterapia, que posteriormente

    integraria tambm o Movimento Transpessoal. Ronald Laing, o anti-psiquiatra ingls que

    sofreu forte influncia das idias de Sartre, pode tambm ser apontado como interlocutor

    e simpatizante da Psicologia Humanista e, semelhana de Frankl, assduo freqentador

    do meio transpessoal.

    Escolas Americanas de Psicologia da Personalidade

    Outra importante influncia na constelao do Movimento Humanista, diz respeito

    afluncia de importantes escolas de Psicologia da Personalidade desenvolvidas nos

    Estados Unidos. Afora a sempre lembrada homenagem pstuma aos pragmatistas John

    Dewey e Willian James, destacados tericos independentes como G. Allport, G. Murphy,

    Murray, Kelly, Ellis, Maslow e Rogers, assim como toda a escola de Psicologia do Self e a

    corrente de fenomenlogos americanos, associaram-se ao movimento, em diferentes

    graus de apoio e envolvimento.

    Outras Afluncias como movimento aberto e inclusivo de novas tendncias, idias e

    experimentaes pouco ortodoxas, a Psicologia Humanista no tardou a integrar em suas

    fileiras de simpatizantes e proponentes toda sorte de marginais contestadores do sistema.

    A espetacular revoluo que o movimento propiciou no campo das psicoterapias,

    entendidas a partir de ento na perspectiva ampliada de tcnicas de crescimento pessoal

    ou de desenvolvimento do potencial humano, estimulou o estudo, experimentao e

    aplicao - infelizmente de modo nem sempre to srio e criterioso como seria de se

    desejar - de novas formas de ajuda psicolgica. Entre as tendncias que se aproximaram

    da Psicologia Humanista, destacam-se as novas psicoterapias que vinham se

    desenvolvendo a partir do trabalho mais ou menos independente de seus criadores, como

    a Terapia Primal de Arthur Janov, a Anlise Transacional de Eric Berne, e a Psicossntese

    de Roberto Assagioli (que posteriormente abraaria o Movimento Transpessoal); as

  • escolas e tcnicas de trabalho no verbal e corporal, com suas propostas de relaxamento,

    sensibilizao e desbloqueio psquico e energtico; as variadas formas de trabalho

    intensivo com grupos que se associaram no que ficou conhecido como Movimento dos

    Grupos de Encontro; e enfim toda sorte de touchy-feelly terapeutas envolvidos na

    experimentao alternativa de tcnicas de desenvolvimento pessoal ou simplesmente

    navegando em uma superficial e consumista adeso nova onda. Influncias matizadas

    de aspectos que em breve dariam origem ao Movimento Transpessoal, especialmente

    relativas ao estudo e aplicao de tcnicas de meditao e experimentao psquica com

    drogas psicodlicas, tambm podem aqui ser includas, embora alguns humanistas mais

    ortodoxos as rejeitem como parte das superficiais e pouco srias contribuies e adeses

    que o movimento acabou por atrair, em grande parte devido ao clima cultural mais amplo

    a que o surgimento da Psicologia Humanista esteve associado e que examinaremos a

    seguir.

    A Questo da Contracultura

    A institucionalizao e o rpido desenvolvimento e aceitao da Psicologia

    Humanista coincidiu, no contexto cultural da dcada de 60, com os anos de acentuado

    questionamento e mudana nas sociedades ocidentais. Anos de revoltas polticas e de

    costumes, sobretudo entre a juventude, e em que mais do que nunca a contestao ao

    Sistema e aos valores estabelecidos esteve na ordem do dia. Anos marcados pelo que, na

    expresso cunhada por Theodore Roszak (s. d.), foi chamado de Contracultura: revoltas

    estudantis, movimento hippie, mobilizao pacifista contra a guerra do Vietn, ativismo

    poltico, organizao de minorias raciais e feministas, desafio autoridade, revoluo

    underground nas artes, oposio ao materialismo consumista, valorizao do corpo, do

    sentimento, do amor livre, da experimentao psquica atravs das drogas psicodlicas,

    da ecologia, da auto-expresso espontnea, e das experincias meditativas e espirituais.

    Essas tendncias todas convergiam na rejeio aos modelos tradicionais de famlia, de

    trabalho, de escola, de relaes interpessoais, de igreja, de governo, de instituies em

    geral, e da prpria cultura ocidental.

    Muito do extraordinrio sucesso da Terceira Fora da Psicologia se deve ao Esprito

    do Tempo, o Zeitgeist, desse momento histrico, ao qual de vrias maneiras suas

    propostas eram ressonantes e coincidentes, ao ponto de, em diversos sentidos, ter sido o

    Movimento da Psicologia Humanista abarcado como uma das facetas da Contracultura.

    Apesar dos excessos, equvocos, ingenuidades e superficialidades cometidas no calor da

    revoluo cultural, no compartilho a opinio daqueles (como Smith, 1990) que lamentam

    como infeliz distoro a associao da imagem da Psicologia Humanista aos movimentos

    contestatrios dos anos 60. Na Verdade, mais do que qualquer outra corrente da moderna

  • Psicologia, a Psicologia Humanista marcada por um compromisso de engajamento em

    favor da mudana social e cultural, em direo a uma sociedade de valores mais

    humanos, menos controladora, mais atenta s necessidades intrnsecas de auto-

    realizao, mais criativa e ldica, envolvendo relaes pessoais mais abertas, autnticas,

    auto-expressivas e prazerosas, em que a explorao alternativa das dimenses humanas

    da intimidade corporal e emocional fosse sancionada ao invs de reprimida; enfim, onde a

    pessoa, em sua liberdade e auto-determinao no desenvolvimento de suas

    possibilidades, fosse o valor supremo, contra todos os dogmas, valores e autoridades

    externamente constitudos. Ora, em grande parte, isso me parece coincidir com as

    propostas e os valores abraados pelos movimentos contraculturais de ento.

    CARACTERSTICAS

    Temtica Privilegiada

    Alm da oposio ao Behaviorismo e Psicanlise, e da absoro de escolas no

    identificadas com essas correntes, o Movimento Humanista caracterizado pela

    congregao de estudiosos em torno de alguns tpicos e interesses que podem ser

    apontados como temticas tpicas e preferenciais da Psicologia Humanista. Sutich (1991),

    relembrando o incio do Movimento e o lanamento da Revista de Psicologia Humanista,

    informa como uma definio de Terceira Fora formulada por Maslow em 1957, foi

    utilizada na introduo da primeira edio, para assim descrever a proposta:

    A Revista de Psicologia Humanstica foi fundada por um grupo de psiclogos e

    profissionais de outras reas, de ambos os sexos, interessados naquelas capacidades e

    potencialidades humanas que no encontram uma considerao sistemtica nem na teoria

    positivista ou behaviorista, nem na teoria psicanaltica clssica, tais como criatividade,

    amor, self, crescimento, organismo, necessidades bsicas de satisfao, auto-realizao,

    valores superiores, transcendncia do ego, objetividade, autonomia, identidade,

    responsabilidade, sade psicolgica, etc. (p. 24).

    Nessa significativa listagem elaborada por Maslow como resumo dos interesses

    editoriais do veculo oficial do movimento, pode-se perceber o delineamento das principais

    tendncias e nfases temticas que, relacionadas entre si, caracterizam-se como tpicas

    da Psicologia Humanista.

    Em primeiro lugar, a Psicologia Humanista destaca-se como a corrente que,

    afastando-se do tradicional enfoque clnico de privilegiar o estudo das psicopatologias,

    passa a enfatizar a sade, o bem estar, e o potencial humano de crescimento e auto-

    realizao. J em seu livro Introduo Psicologia do Ser, de 1957, Maslow (s. d.)

    aponta para a necessidade do desenvolvimento de uma Psicologia da Sade, criticando as

    teorias, como a Psicanlise, que generalizam suas concluses sobre o ser humano a partir

  • de dados obtidos quase que exclusivamente no estudo de indivduos mentalmente

    perturbados, resultando conseqentemente em um retrato pessimista e desabonador da

    natureza humana. Maslow, ao contrrio, se prope o estudo das mais saudveis e

    admirveis pessoas, por ele denominadas personalidades auto-atualizadoras, dando incio

    tradio humanista de abordar a Psicologia a partir do prisma da sade e do

    crescimento psicolgico. To forte essa tendncia que forneceu o termo Eupsicologia,

    cunhado nas primeiras tentativas de articulao e caracterizao do movimento. Tambm,

    em sua proposta de enfatizar o desenvolvimento das melhores capacidades e

    potencialidades do ser humano, a Psicologia Humanista muitas vezes identificada como

    o Movimento do Potencial Humano. Assim, ao invs de empenhar-se em exaustivas

    descries e teorizaes sobre os mecanismos das enfermidades psquicas, reservando

    sade a definio negativa de ausncia de doena, mais tpico da Psicologia Humanista

    buscar definir as caractersticas do pleno e saudvel exerccio da condio humana, em

    distanciamento do qual as patologias podem ento serem entendidas.

    Em segundo lugar, outra importante orientao temtica geral da Psicologia

    Humanista, diz respeito ao privilegiar das capacidades e potencialidades caractersticas e

    exclusivas da espcie humana. Criticam os humanistas, sobretudo ao Behaviorismo, a

    tendncia a generalizar concluses obtidas a partir de experimentos realizados quase que

    exclusivamente em pesquisa animal; assim como a forte tendncia da psicologia

    experimental em, mesmo quando dedicada a trabalhos com pessoas, centrar-se em

    aspectos fisiolgicos, ou muito parcializados, perdendo de vista a prpria dimenso

    psicolgica caracterstica do ser humano, que deveria em princpio ser o enfoque

    prioritrio de uma cincia dedicada ao estudo da mente e da psiqu. A volta ao humano

    como objeto de estudo uma das bandeiras do Movimento, importante a ponto de

    fornecer-lhe o ttulo designativo. Qualidades e capacidades humanas por excelncia, tais

    como valores, criatividade, sentimentos, identidade, vontade, coragem, liberdade,

    responsabilidade, conscincia, auto realizao, etc., fornecem temas de estudo tpicos das

    abordagens humanistas. Essas e outras temticas, igualmente caractersticas (organismo,

    self, significados, intencionalidade, necessidades bsicas, experincia subjetiva, encontro,

    etc.), esto tambm associadas viso de homem, proposta de Cincia, e aos mtodos

    e tcnicas desenvolvidos e assumidos pela Psicologia Humanista, que sero examinados

    nos prximos itens, e representam as diversas influncias recebidas pelo Movimento,

    sucintamente referidas nos itens anteriores.

    Ao leitor mais atento no ter por certo escapado a incluso, na listagem de Sutich,

    do tema transcendncia do ego. Tal assunto, embora em algumas abordagens possa ser

    entendido como a mera superao da identificao com uma defensiva e socialmente

    imposta imagem de si, em seu sentido mais amplo, caracteriza antes uma temtica

    transpessoal, cuja incluso aqui serve para ilustrar a vinculao dessa tendncia ao

  • Movimento Humanista, no qual era inicialmente vista como uma faco ou topifio de

    interesses, assunto que ser melhor esclarecido quando tratarmos do surgimento da

    Psicologia Transpessoal.

    Viso de Homem

    De forma bem mais declarada que as Foras anteriores, a Psicologia Humanista,

    enquanto movimento organizado, reconhece, assume e prope a inevitabilidade da

    adoo de um Modelo de Homem, ou seja, uma concepo filosfica da natureza humana,

    como ponto de partida e princpio norteador de qualquer projeto de construo da

    Psicologia. Neste tpico, talvez mais que em qualquer outro, destila a Psicologia

    Humanista suas maiores crticas e discordncias s escolas a que se ope, contestando

    veementemente os modelos de homem que identifica nas formulaes psicanalticas e

    behavioristas.

    Opem-se os humanistas concepo psicanaltica do homem como um animal

    lbrico e feroz, movido por necessidades instintivas de prazer e agresso, ao qual s a

    custa de muitas restries e sublimaes da natureza animalesca bsica se pode, na

    melhor das hipteses, trazer algum verniz de racional sociabilidade, mas no sem um

    inevitvel nus de frustrao, infelicidade e Mal-Estar da Civilizao. Recusam-se tambm

    a conceber o ser humano como uma espcie de mquina, rob ou marionete, cuja

    natureza passiva e amorfa, assim prope o Behaviorismo, absolutamente moldada,

    manipulada e controlada pelas contingncias de estimulao e condicionamento

    ambiental, a quem na melhor das hipteses se poder oferecer a escolha (ela prpria

    condicionada) entre um condicionamento fortuito e um planejado. Negando-se a aceitar

    que o homem seja assim reduzido por to pessimistas e desalentadoras vises, a

    Psicologia Humanista se afirma em um compromisso com uma viso otimista e

    engrandecedora, na qual as melhores qualidades e potenciais positivos manifestados

    pelos homens sejam valorizados como a prpria essncia da natureza humana.

    Grosso modo, a viso psicanaltica costuma ser comparada, pelos humanistas

    americanos, pessimista opinio de Hobbes (o homem o lobo do homem), e a viso

    behaviorista concepo de Locke, que v o ser humano como uma tabula rasa; ao passo

    que seu prprio modelo considerado como uma reedio da generosa viso de

    Rousseau: O homem naturalmente bom, a sociedade que o corrompe.

    Vejamos, em algumas tendncias e consensos das abordagens humanistas, um

    sucinto esboo da viso de homem que elas propem:

    Enxergando o homem como um todo complexo e organicamente integrado, cujas

    qualidades nicas vm de sua configurao total, rejeitam os humanistas as concepes

    elementaristas e fragmentadoras da psiqu. Retomando para o Movimento a proposta

    holista que Adler foi buscar em Smuts, e que de outra parte caracterizou a Psicologia da

  • Gestalt, vem no homem uma natureza tal que a totalidade da pessoa humana sempre

    maior que a soma de suas partes tomadas isoladamente. Em especial nas teorias

    desenvolvidas nos Estados Unidos - o ramo americano e mais caracteristicamente

    humanista do Movimento, e para o qual as idias do neurologista e terico gestaltista

    Goldstein foram especialmente influentes - a compreenso organsmica do ser inclu suas

    razes biolgicas. Assim, concebem o homem como marcado pela necessidade, que vem

    como intrnseca a todo organismo vivo, de atualizar seu potencial e se tornar a totalidade

    mais complexa, organizada e autnoma que for capaz. Esta hiptese da necessidade de

    auto-realizao fornece, em diversas verses, a teoria bsica de motivao da maioria das

    psicologias humanistas. Mesmo que as escolas existenciais, dada sua nfase na liberdade

    e sua compreenso do ser humano como criatura cuja natureza consiste em criar sua

    prpria natureza (Sartre), rejeitem a considerao de tendncias biolgicas

    determinantes, h quem remonte vontade de potncia de Nietzsche a origem da

    formulao humanista da existncia de uma tendncia intrnseca de busca da auto-

    realizao. Igualmente associada concepo holista, est a compreenso que os

    humanistas em geral tem do homem como implicado e indissociavelmente configurado -

    mas no determinado - em seu relacionamento com o ambiente, seja este fsico,

    fenomenolgico-experiencial, interpessoal, ou scio-histrico-cultural.

    O ser humano, na viso humanista-existencial, proposto como um ser livre e

    intencional, recebendo esta noo especial destaque nas psicologias existenciais, as quais

    por vezes rejeitam a concepo mais essencialista e rousseauniana dos americanos, que

    crem ser a natureza humana positivamente orientada, devendo as relaes psicossociais

    deletrias ser responsabilizadas por qualquer desvio dessa bondade original. Para os

    existencialistas, sendo o homem livre e auto-orientado pelos propsitos e sentidos que d

    prpria existncia, no pode eximir-se de se responsabilizar plenamente pelo que ,

    apesar da inevitvel angstia que esse assumir-se evoca, pois qualquer outra atitude

    seria auto-engano, m f, inautenticidade no existir. De qualquer forma, de uma maneira

    geral, as teorias humanistas propem que o comportamento do ser humano no pode ser

    adequadamente entendido a partir de referncias exclusivas a influncias determinantes

    externas sua conscincia e aos significados atuais que imprime ao mundo, sejam essas

    influncias provenientes do ambiente, do passado, ou do inconsciente. Associadas

    portanto aceitao da liberdade, da responsabilidade e da intencionalidade como

    caractersticas intrnsecas condio humana, resultam a nfase nas interpretaes

    teleolgicas (que enfocam a finalidade ao invs da causa passada) do comportamento; o

    privilegiar da dimenso consciente e do vivenciar da experincia presente; assim como o

    enfoque fenomenolgico (que se atem experincia subjetiva e consciente) e

    compreensivo (que contrape a compreenso por empatia explicao por referenciais

    exteriores); os quais, com maior ou menor destaque, so defendidos pelos humanistas.

  • Enfim, vendo o homem como um ser em busca e construo de si mesmo, cuja

    natureza continuamente se desvela e exprime no realizar de suas possibilidades e na

    atualizao de seu potencial, compreendem os humanistas que s se pessoa, s se

    realmente humano, no autntico, livre e integrado ato de se desenvolver. Da o

    generalizado consenso, que alguns entendem como a caracterstica mais marcante da

    viso de homem que a Psicologia Humanista apresenta, em rejeitar concepes estticas

    da natureza humana, considerada antes como algo fluido: uma tendncia para crescer,

    um movimento de sair de si, um projetar-se, um devir, um incessante tornar-se, um

    contnuo processo de vir a ser.

    Modelo de Cincia

    O desenvolvimento da Psicologia Humanista caracteristicamente marcado por uma

    reflexo e tomada de posies em questes filosficas e epistemolgicas sobre a natureza

    da Psicologia enquanto Cincia. , sob alguns novos aspectos e nuances, retomada a

    discusso que envolveu o nascimento e as primeiras dcadas da Psicologia Cientfica

    contempornea, em torno da questo do modelo, dos mtodos e do objeto dessa nova

    cincia. A controvrsia principal referia-se adequao do Modelo de Cincia, at ento

    bem sucedido nas modernas cincias naturais, estender-se s nascentes cincias

    humanas, as quais, justificadas pela singularidades de seu objeto de estudo,

    congregavam arrebatados defensores do desenvolvimento de um modelo prprio e

    diferenciado. Embora na Europa o debate tenha prosseguido e frutificado, principalmente

    no desenvolvimento de escolas de psicopatologia e psicoterapia inspiradas na

    Fenomenologia e no Existencialismo, no panorama americano a discusso parecia ter

    estagnado, com a aparente vitria dos modelos naturalistas, fosse o modelo positivista de

    determinismo ambiental adotado pelo Behaviorismo, com sua nfase na experimentao

    animal e na observao objetiva; fosse o modelo mdico, mecanicista em sua nfase no

    determinismo psquico, de inspirao darwiniana, e igualmente naturalista, da

    Psicanlise. Os humanistas, reeditando em novas verses propostas da Psicologia

    Compreensiva de Dilthey, da perspectiva holista da Psicologia da Gestalt, da primeira

    Fenomenologia de Husserl, e dos questionamentos existencialistas sobre a a singularidade

    e irracionalidade da existncia concreta, tendem a acordar que a Psicologia deve se

    afirmar em um modelo de cincia do homem, respeitando e se adaptando s

    especificidades de seu objeto de estudo. Embora a este respeito no se possa encontrar

    unanimidades indiscutveis entre as diversas propostas que se articulam no movimento

    humanista, algumas tendncias parecem se destacar, sobretudo em decorrncia do

    Modelo de Homem que, como vimos, esse movimento defende.

    De uma maneira geral, a Psicologia Humanista no se ope aos parmetros de

    racionalidade e objetividade emprica, quando utilizados na busca de explicao, controle

  • e previso dos fenmenos do mundo das coisas. Entretanto, quando se trata do homem,

    que os humanistas entendem como to distinto do restante da criao, ope-se, em maior

    ou menor grau, a diversos princpios e procedimentos consagrados em modelos de cincia

    natural e nas propostas de Psicologia das Foras a que se ope. H considervel consenso

    na crtica da aplicao, ao estudo do homem, de abordagens reducionistas, deterministas,

    elementaristas e objetivantes; ao passo que o racionalismo emprico-indutivo e hipottico-

    dedutivo , com adaptaes, menos rechaado. Vejamos brevemente estas questes.

    Opondo-se ao reducionismo, que vem como associado aos modelos de homem do

    Behaviorismo e da Psicanlise, recusam-se os humanistas a entender o ser humano como

    um mero jogo de foras instintivas e culturais, ou interminveis cadeias de estmulo-

    resposta, sujeito aos mesmos processos comportamentais que os animais de laboratrio.

    Reconhecem os humanistas na pessoa humana uma complexidade tal que implica numa

    mudana qualitativa, e no apenas quantitativa, em relao s espcies inferiores, de tal

    ordem que o princpio metodolgico de se compreender pelo mais simples o mais

    complexo deva, no caso do homem, ser invertido, pois at os processos psquicos mais

    simples e primitivos adquirem novos sentidos na configurao total da personalidade

    humana. Ao determinismo e mecanicismo ser desnecessrio nos estendermos, pois para

    abordagens que enfatizam a liberdade e a intencionalidade como condio humana,

    evidente que o determinismo no vai ser de muito auxlio ou relevncia.

    A questo da objetividade cientfica, em nome da qual o Behaviorismo mais radical

    tentou esterilizar de toda vida psquica a cincia da Psicologia, talvez a posio que

    recebe maiores ataques, pois justamente a dimenso subjetiva dos sentimentos, das

    emoes, dos valores, das inter-relaes, dos significados, da vontade, dos anseios, da

    criatividade, da experincia e vida consciente, o objeto de estudos que prioritariamente a

    Psicologia Humanista quer abordar. Como se pode ento, em nome da Cincia, fechar os

    olhos ao que de mais significativo e caracterstico h para se investigar no objeto que se

    tem para estudo?

    No que tange a levar a maiores extremos ainda o questionamento da natureza da

    investigao cientfica da psiqu humana, mesmo dentro do prprio Movimento Humanista

    as posies tendem a divergir. A maioria das escolas humanistas americanas se inclina a

    professar f na Cincia, e seus investigadores, muitos com slida formao emprica e

    experimental, so bastante criativos em renovar e adaptar formas de pesquisa, inclusive

    experimentos laboratoriais, s dimenses do ser que desejam estudar, enquanto a

    tradio fenomenolgica europia tem possibilitado a enorme ampliao de vias no

    desenvolvimento de procedimentos para Psicologia, e fornecido talvez os principais

    subsdios para a discusso da natureza desta, enquanto cincia do homem. entretanto

    em algumas propostas existencialistas que talvez se encontrem as posies mais radicais

    do questionamento. Tomadas at as ltimas conseqncias, certas concepes bsicas da

  • viso existencial de homem e de universo, como as que prope o carter singular e nico

    de cada existncia, a imprevisibilidade das possibilidades e dos projetos decorrentes da

    liberdade e escolha autnticas, assim como a irracionalidade de um universo que, afora os

    mutantes sentidos que cada homem a cada momento lhe imprime, de uma absurda e

    absoluta gratuidade, parecem tornar irrelevante qualquer noo de previsibilidade,

    constncia, replicabilidade, generalizao, racionalidade e mesmo comunicao de

    resultados, no estudo do humano. Sem se aceitar uma possibilidade mnima dessas

    condies, de fato difcil acreditar que seja possvel chegar a algum tipo de verdade

    cientfica, o que leva alguns psiclogos existenciais ao questionamento ctico da utilidade

    de investigaes empricas, formulaes tericas, ou mesmo da Psicologia enquanto

    Cincia. Deste ponto de vista mais extremado, algumas abordagens mantm-se muito

    mais prximas da Antropologia Filosfica que da Psicologia Cientfica, qual parecem se

    manter ligadas apenas pelas preocupaes de natureza clnica de suas propostas de

    psicoterapia.

    Enfim, no pode deixar de ser dito, os questionamentos e respostas que a Psicologia

    Humanista levanta e esboa sobre a natureza da Psicologia enquanto Cincia e sua

    possibilidade de contribuir para a felicidade, sade e auto-realizao humana, encontram-

    se no cerne de todo um processo mais amplo que marca a crise da moderna Civilizao

    Ocidental. Se a Cincia colaborou para esvaziar e isolar o homem, reduzindo-o sua mera

    dimenso material e aos frios mecanismos lgico-racionais a servio de consideraes

    mesquinhas e doentias, a justa revolta cultural contra esse estado de coisas que nos tem

    retirado o sentido, a maravilha e a profundidade da experincia de ser humano entre

    humanos, mobilizou tambm os psiclogos. Assim, a Psicologia Humanista se

    compromete, em seu projeto de Cincia, a estar sempre voltada a favorecer o movimento

    da aprisionada alma humana, em sua busca de um mundo que se possa chamar humano,

    e em que, entre os da nossa espcie, seja realmente um prazer viver.

    Mtodos e Tcnicas

    Mantendo-se fiel s suas opes temticas, e tendo sempre em vista as dimenses

    do ser que seu enfoque privilegia, a Psicologia Humanista desenvolve, adapta e renova

    variadas tcnicas e metodologias de abordagem da pessoa, com finalidades de estudo ou

    interveno. Os questionamentos e posies assumidas sobre a natureza da Cincia

    Psicolgica e seu objeto prprio de estudo, fazem do projeto humanista de construo da

    Psicologia uma fonte de inspirao e parmetros no desenvolvimento de abordagens

    adequadas, sendo sobretudo o compromisso com sua viso de homem que orienta a

    criao e desenvolvimento de novas formas de estabelecer a sade psquica e promover o

    desenvolvimento dos melhores potenciais humanos.

  • No campo da pesquisa, a Psicologia Humanista marcada no s pela eleio de

    temas e faixas da experincia humana at ento negligenciadas como objeto de

    investigao, mas tambm pelo desenvolvimento e utilizao de inovaes metodolgicas.

    O instrumental de pesquisa e investigao desenvolvido e utilizado sob a gide da

    Terceira Fora bastante rico e diversificado. Para um breve apanhado das contribuies

    mais significativas e caractersticas, podem ser brevemente lembradas as variaes dos

    mtodos inspirados na Fenomenologia, a includas as chamadas pesquisas qualitativas; a

    crescente considerao da influncia da pessoa do investigador nos experimentos, que em

    muitos estudos complementada com a inscrio dos sujeitos da pesquisa como co-

    investigadores; a larga realizao de estudos idiogrficos (interessados nas

    singularidades, ao invs das caractersticas generalizveis do sujeito da investigao); e

    o ecltico e criativo uso com que investigadores humanistas renovam abordagens mais

    tradicionais de pesquisa, desde os experimentos laboratoriais at o consagrado recurso do

    estudo de caso.

    entretanto no campo das psicoterapias e tcnicas de crescimento pessoal, mais do

    que em qualquer outro, que a contribuio da Psicologia Humanista especialmente

    exuberante e espetacular, resultando em uma verdadeira revoluo nos conceitos e

    formas de ajuda psicolgica. O espao aqui seria pequeno, caso eu desejasse fazer a

    mnima justia da citao nominal das novas escolas e propostas que foram desenvolvidas

    na vanguarda ou na esteira do Movimento Humanista. Optei ento por me restringir

    apenas discriminao comentada de algumas das principais tendncias que se associam

    ao Movimento.

    Embora a diversidade das teorias e tcnicas psicoterpicas abrangidas pela

    Psicologia Humanista seja quase inumervel, o reconhecimento do potencial positivo e

    saudvel da natureza humana tende a congreg-las em um objetivo de trabalho comum,

    distinto do apresentado pelas Foras anteriores. Para a concepo psicanaltica de ser

    humano, a psicoterapia visa obter um equilbrio entre a voracidade irracional das foras

    do Id, as restries culturais internalizadas no Superego, e as condies objetivas da

    realidade, mediante as articulaes parcialmente conscientes do Ego e seus mecanismos

    de defesa, resultando, na melhor das hipteses, na transformao, como afirmou certa

    vez Freud, de uma infelicidade neurtica em uma infelicidade normal. Para o

    Behaviorismo, o conceito determinista e valorativamente neutro que faz da natureza

    humana, implica que a terapia bem sucedida ao propiciar o descondicionamento dos

    comportamentos indesejados e a aprendizagem do repertrio que propicie melhor

    adaptao e atenda ao desejado, sendo que as questes desejado por quem? ou adaptado

    a que? no encontram no Behaviorismo resposta, que deve ser buscada na ideologia da

    moda ou no senhor de escravos que estiver de planto. J para a Psicologia Humanista, o

    objetivo de qualquer tratamento pode ser formulado numa frase quase redundante: levar

  • a pessoa a ser ela mesma. Propiciar ao cliente, ou estudante, a conquista de uma

    existncia autntica, auto-consciente, transparente, espontnea, verdadeira, congruente e

    natural, sem mscaras, jogos, couraas ou divises (splits) internas: eis o que pretendem

    os humanistas.

    A nfase na sade ao invs de na doena, assim como a proposta de

    desenvolvimento do potencial humano, tem levado as terapias humanistas a entender

    suas tcnicas de ajuda muito mais como formas de estimular o desenvolvimento e a

    aprendizagem do que como tratamento de enfermidades, disfunes ou anomalias

    psquicas. A troca do modelo mdico pelo de auto-realizao tem levado muitas

    abordagens a se apresentarem - no obstante o tradicional designativo psicoterapia

    mantenha sua fora - como sendo mtodos e tcnicas de desenvolvimento ou crescimento

    pessoal. De qualquer forma bastante generalizada a concepo de que toda psicoterapia

    bem sucedida um processo de aprendizagem profunda e ampla, assim como toda

    aprendizagem verdadeiramente significativa profundamente liberadora e curativa, sendo

    diversos dos mtodos humanistas utilizados quase que indiferenciadamente no consultrio

    e na sala de aula.

    Uma das conseqncias da viso holista, e da concepo do homem como um todo

    bio-psquico-social, o destacado desenvolvimento das chamadas tcnicas e abordagens

    corporais, em que massagem, toque, sensaes, dana e movimento, catarses

    expressivas de clera, choro, riso, vmito, grito e orgasmo instrumentalizam o

    crescimento psquico e a maior vivncia de si. Ainda neste tpico do enfoque

    pluridimensional, podem ser includas as tcnicas no verbais, o uso do poder da

    expresso artstica, e at mesmo prticas meditativas e espirituais, cujo potencial

    curativo viria a ser posteriormente assumido como um dos principais recursos da terapias

    transpessoais.

    Noes existencialistas do homem como um ser de natureza dialogal, que s se

    mostra - e verdadeiramente - no encontro pessoal, tem favorecido as terapias

    relacionais, em que o terapeuta abdica das posturas e defesas profissionais, para entrar

    em relao como pessoa real, pois no encontro de pessoa para pessoa, na relao Eu-

    Tu, que, acreditam os humanistas, a mudana se d.

    A aceitao da tendncia inata e intrnseca para o crescimento e auto-realizao

    favorece a compreenso do terapeuta como sendo antes um facilitador, do que algum

    que atua sobre o outro. A nfase no fluir constante, na liberdade e na singularidade de

    cada ser, tende a abolir os planejamentos, os objetivos e estratgias, e a desenvolver

    uma atitude abertura ingnua e incondicional ao que vem do outro em seu processo de

    desenvolvimento e auto-criao.

    O extraordinrio desenvolvimento de terapias e tcnicas de trabalho com grupos,

    especialmente na forma de vivncia intensiva, uma das tendncias que marca a

  • Psicologia Humanista. Alm das ricas e inovadoras contribuies tericas e tcnicas a essa

    modalidade de atuao, at ento negligenciada, o chamado Movimento dos Grupos de

    Encontro representou, ao menos nos anos 60 e 70, a faceta de maior impacto da Terceira

    Fora, traduzindo em aes efetivas o compromisso transformao scio-cultural que a

    Psicologia Humanista se impe.

    Enfim, no teste emprico de suas idias, muitas vezes taxadas de ingnuas ou

    utpicas, e no sucesso e aceitao de suas prticas, que a Psicologia Humanista tem se

    consolidado como uma psicologia afinada ao Zeitgeist de nossa poca, em que apesar de

    toda crise, amargura, cinismo, solido e desesperana, o anseio mudo e oculto por uma

    vida mais autntica e humanizada torna-se eloqente e fulgura ao encontrar quem nele

    acredite e se disponha a ajudar.

    A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL

    HISTRICO

    Antecedentes

    O reconhecimento da existncia e importncia, assim como o interesse em seu

    desenvolvimento, das potencialidades humanas relacionadas espiritualidade, auto-

    transcendncia e ampliao da conscincia - temtica que contemporaneamente

    caracteriza o objeto de estudos privilegiado da Psicologia Transpessoal - imemorial nas

    culturas e sociedades humanas. Embora esse interesse, assim como a viso de homem e

    universo a ele associada, sejam com justia habitualmente relacionados ao campo da

    Religio ou da Filosofia, igualmente justo e apropriado, sob uma tica mais atual,

    considerar grande parte da produo cultural desenvolvida nessa rea como pertencente

    ao campo do que hoje chamamos Psicologia. De fato, abstrada uma leitura mais ingnua

    dos aspectos mitolgicos, doutrinrios e ritualsticos especficos, a maioria das religies e

    tradies espirituais acaba propondo um modelo terico-operativo da psiqu humana - ou

    seja, uma teoria da personalidade - e tecnologias de mudana da personalidade em

    direo ao considerado mais saudvel pelo modelo adotado - ou seja, um tipo de

    psicoterapia.

    Este ponto de vista de aceitar as tradies espirituais como psicologias, e mais

    ainda psicologias transpessoais, ponto pacfico dentro do Movimento Transpessoal e,

    mesmo fora deste, encontra hoje ampla aceitao, em grande parte graas ao trabalho de

    Jung , que em suas pesquisas sobre a Alquimia e as religies orientais e ocidentais,

    revolucionou a concepo cientificista com que tais tradies eram encaradas. Assim

    vemos hoje populares manuais acadmicos de teorias da personalidade, largamente

    utilizados fora do crculo transpessoal (como o de Fadiman e Frager, 1979) e mesmo de

  • autores no identificados com a perspectiva transpessoal (como Hall e Lindsey, 1984)

    dedicarem captulos s chamadas Teorias Orientais.

    Ainda examinando o passado histrico da Psicologia, vamos encontrar nas

    psicologias pr-cientficas desenvolvidas sob a gide da Filosofia, toda gama de

    concepes sobre a natureza humana e suas relaes com o universo circundante, em

    que so privilegiadas perspectivas metafsicas e enfatizado o potencial de espiritualidade e

    transcendncia da conscincia. Tais concepes, permanecendo atuais e dando margem a

    estudos adequados ao arcabouo terico e conceptual da Cincia atual, podem ser

    considerados como patrimnio pela moderna Psicologia cientfica e, nos aspectos

    relacionados espiritualidade, como contribuies Psicologia Transpessoal.

    Mesmo na histria recente de nossa ainda jovem cincia da Psicologia, so

    encontrados significativos precursores do atual Movimento Transpessoal, sendo trs os

    nomes mais amplamente reconhecidos:

    Em primeiro lugar, lembrado o psiquiatra canadense Richard Maurice Bucke, que

    em fins do sculo passado realizou estudos sobre vivncias de ampliao e transcendncia

    da conscincia, as experincias msticas, de farto relato na literatura religiosa e, mais

    recentemente, tambm na psiquitrica. Foi Bucke quem adotou o termo conscincia

    csmica, como designativo mais ou menos genrico para a vivncia subjetiva de abarcar o

    cosmos como contedo da conscincia. Ttulo de seu livro Conscincia Csmica, hoje um

    clssico da Psicologia Transpessoal, o termo ainda largamente utilizado, em grande

    parte como uma homenagem a esse grande pioneiro no estudo cientfico dos estados

    superiores da conscincia humana.

    Em segundo lugar, j na virada do sculo, fulgura William James, que em seus

    estudos sobre As Variedades da Experincia Religiosa (ttulo de seu livro de 1902) e,

    sobretudo, em suas teorias sobre a natureza da conscincia, seu fluxo e estados,

    formulou arrojadas concepes transpessoais que hoje so recuperadas e revalorizadas

    pelos psiclogos da Quarta Fora. No so poucos os que vem na Psicologia

    Transpessoal, a qual retoma a conscincia como objeto central da Psicologia (nfase que

    desde James havia sido abandonada), uma continuidade de seu trabalho. Esse grande

    luminar, cuja obra nas ltimas dcadas vem sendo redescoberta e retirada das

    empoeiradas pginas da Histria da Psicologia, aclamado como precursor no s da

    Psicologia Transpessoal, mas tambm do movimento fenomenolgico, humanista e

    existencial da Terceira Fora.

    E por fim vamos encontrar o extraordinrio Carl Gustav Jung, outro gnio cuja

    filiao pstuma em suas fileiras, como membro honorrio e precursor, disputada tanto

    pelo Movimento Humanista como pelo Transpessoal. Psiclogo adiante de seu tempo, em

    muitas de suas revolucionrias concepes antecipou em dcadas diversas tendncias

    assumidas hoje pela Psicologia Transpessoal, sendo impossvel, neste curto espao,

  • traar ainda que um resumo de suas contribuies ao estudo das dimenses

    transcendentes da conscincia - ou do inconsciente, como ele preferiria dizer. Apenas

    para citar, noes como arqutipo, inconsciente coletivo, psiqu objetiva, Self,

    sincronicidade, psicide, entre outras, assim como seus j referidos estudos sobre

    Religio e Alquimia - e mais, Parapsicologia, Astrologia e mtodos divinatrios -

    encontram-se, e por certo se mantero por muito tempo, na ordem do dia para os

    psiclogos transpessoais deste e do futuro sculo.

    A Emergncia da Psicologia Transpessoal

    No obstante o interesse milenar do ser humano pelas dimenses superiores e

    espirituais de sua psiqu e experincia, e do significativo trabalho desenvolvido no campo

    da Psicologia por pioneiros como os que foram referidos, somente de meados para o

    final da dcada de 60 que uma srie de fatores contribui para o aumento de

    investigaes, teorizaes e prticas psicolgicas relacionadas ao tema, criando condies

    para a emergncia e institucionalizao da Psicologia Transpessoal enquanto movimento

    organizado que se prope como a Quarta Fora da Psicologia.

    Entre os fatores mais comumente apontados, e que examinaremos a seguir, esto

    as necessidades decorrentes de fenmenos da mudana scio-cultural; as novas

    perspectivas de compreenso e abordagem cientfica da realidade abertas pelos

    desenvolvimentos mais recentes das cincias naturais; e , no mbito da Psicologia, certas

    decorrncias do desenvolvimento da prpria Psicologia Humanista.

    Mudanas no Contexto Cultural

    No contexto das intensas transformaes culturais observadas na cultura ocidental

    nas ltimas dcadas e que, como vimos, estiveram tambm associadas ao

    desenvolvimento da Psicologia Humanista, houve um crescente interesse em

    espiritualidade, assim como um significativo aumento do nmero de pessoas envolvidas

    em espetaculares vivncias de alterao e ampliao da conscincia. Isto tem sido

    explicado, ao menos em parte, pela difuso do uso de substncias psicodlicas, pela

    popularizao de prticas meditativas e espirituais importadas do oriente ou difundidas a

    partir da abertura de antigas tradies esotricas, e mesmo pela crescente valorizao

    cultural desse tipo de experincia, antes inibida e reprimida como sinal de transtornos

    mentais, ou ainda de ignorncia, primitividade, superstio e mesmo farsa.

    Fossem tais vivncias experienciadas como positivas, perturbadoras, ou

    meramente divertidas, o fato que colocaram os psiclogos e as psicologias numa

    desconfortvel posio. Chamados a explicar o que se passava e interferir como

    autoridades no assunto, pouco tinham a dizer ou fazer. Salvo referncias a eruditos

    estudos antropolgicos do que at ento podia ser considerado como uma extica

    curiosidade de culturas primitivas ou de fechados grupos religiosos, os psiclogos s

  • tinham para repetir surradas lies de psicopatologia psiquitrica, que logo se mostravam

    como inadequadas respostas queles que os procuravam em busca de explicaes e

    ajuda para entender e integrar to extraordinrias vivncias. Mesmo jovens psiclogos e

    pesquisadores, dentro do caldeiro de auto-experimentao psquica que caracterizou os

    anos da Contracultura, vivenciavam essas alteraes dramticas, desconcertantes,

    intrigantes, e sobretudo instigantes, da prpria conscincia. Viu-se ento a Psicologia

    desafiada a abordar o fenmeno com todos os instrumentos tcnicos, metodolgicos,

    tericos e conceituais conhecidos, ou mesmo criando outros que se fizessem necessrios.

    Surgia todo um novo campo de estudos, at ento negligenciado nos meios mais

    oficiais, e que agora se mostrava no descortinar de uma vasta gama de desconhecidos

    estados alterados da conscincia, para utilizar uma expresso difundida no meio

    transpessoal por Charles Tart (1977). Em consequncia dessa situao, verificou-se o

    explosivo aumento de pesquisas e teorizaes na rea, estudos estes que no poderiam

    ser adequadamente encaixados nos ramos de estudo anteriormente delimitados para a

    Psicologia, nem to pouco eram adequadamente abarcados pelas formulaes tericas

    mais correntes.

    Da necessidade de intercmbio de pesquisas e pontos de vista desses estudiosos

    isolados e deslocados nos meios mais oficiais, como outrora ocorrera com os psiclogos

    que se associaram no lanamento da proposta humanista, emergiam as condies para a

    articulao de um novo movimento congregador, envolvido agora na investigao

    privilegiada das experincias inusuais e ampliadas da conscincia humana.

    Mudanas no Paradigma Cientfico

    Entre os fatores extrnsecos mais comumente relacionados emergncia da

    Psicologia Transpessoal, apontado o extraordinrio desenvolvimento observado neste

    sculo no campo das cincias naturais, tais como a Fsica, a Qumica, a Biologia e a

    Fisiologia. Novas descobertas e teorias em ramos de ponta da pesquisa cientfica tm a tal

    ponto abalado as concepes estabelecidas de realidade e Cincia que, recorrendo-se

    conhecida concepo de histria da Cincia apresentada por Kuhn (1987), tem sido

    freqentemente apontado que estaramos em plena crise e revoluo paradigmtica,

    testemunhando o nascimento de um novo paradigma cientfico, isto , uma nova

    concepo de realidade e Cincia. Tal revoluo, de implicaes no s cientficas como

    scio-culturais, teria significados e conseqncias to transformadoras, ou mesmo mais

    ainda, que aquela iniciada outrora por Coprnico, que subvertendo a cartografia da

    realidade propiciou, entre outras coisas, o prprio nascimento das cincias naturais e da

    Civilizao Moderna. Est sendo solapada em suas prprias bases a viso de mundo

    cartesiano-newtoniana, cujos princpios de ordenao lgica e causal, e de objetividade

  • confivel das dimenses espao-temporais, tinham at agora fornecido alicerce seguro

    para a paulatina e inexorvel construo do edifcio da Cincia. O novo paradigma que se

    insinua, e tem sido chamado de ps-moderno, holstico, hologrfico, e mesmo

    transpessoal, parece nos falar de um universo mais amplo, do qual a realidade em que

    at agora transitvamos em nossos projetos de investigao cientfica, no passa de uma

    estreita faixa, cuja existncia, ao invs de se revestir de materialidade, parece dever

    nossa conscincia tanto quanto as delirantes vises de um psictico se associam sua

    subjetividade doentia. Na nova perspectiva cientfica, tempo e espao so conceitos

    relativos; matria e energia, uma questo de ponto de vista; parte e todo so sinnimos;

    relao causa e efeito um conceito anacrnico; conscincia subjetiva e objetividade

    concreta, duas faces inseparveis e intercambiveis de uma mesma realidade unitria.

    Essa inslita viso de mundo, inicialmente restrita a esotricos crculos de

    pesquisadores e tericos, acabou por despertar curiosidade no insatisfeito e questionador

    panorama da cultura em crise e, atravessando as fronteiras disciplinares, chega tambm

    Psicologia, onde encontra eco e confirmao nos extravagantes interesses e

    interrogaes de isolados psiclogos envolvidos em estudar os limites da conscincia.

    Este surpreendente encontro entre cincias de to distinto campo - o mago da matria e

    os confins da alma humana - mediado por uma constatao mais desconcertante ainda:

    a nova viso de mundo e realidade, vislumbrada nas pesquisas mais especulativas e

    arrojadas, no era to nova assim, mas imemorialmente vivenciada nas tradies

    religiosas, na experincia dos msticos, e nos relatos transpessoais.

    Assim, contextualizando-se em um quadro de revoluo paradigmtica, a Psicologia

    Transpessoal recebe estmulo para se consolidar como movimento de contribuio e

    resposta da cincia psicolgica que se atualiza, ao desafio e tarefa que - tradicionalmente

    colocado a todo empreendimento cientfico - recebe agora renovados significados:

    conhecer, colocando este conhecimento a servio da humanidade, a realidade do

    universo que nos cerca.

    A Psicologia Humanista e o Nascimento da Psicologia Transpessoal

    Embora auto-intitulada a Quarta Fora da Psicologia, a Psicologia Transpessoal no

    surge em oposio Psicologia Humanista. Pelo contrrio, como movimento de proposta

    mais inclusiva que contestatria, mantm estreita ligao com a Psicologia Humanista e,

    no obstante desta difira qualitativamente nas posies e interesses a ponto de

    caracterizar um novo movimento, a Psicologia Transpessoal em geral entendida como

    uma ampliao ou extenso do Movimento Humanista, a partir de tpicos que haviam sido

    apenas perifericamente considerados nas formulaes iniciais da Terceira Fora. alis no

    prprio seio da Psicologia Humanista que se iniciam as articulaes para o lanamento do

    novo movimento:

  • Na dcada de 60, durante o rpido desenvolvimento da psicologia humanstica,

    tornou-se evidente que uma nova fora emergia de seus crculos internos. Entretanto, a

    posio humanstica, enfatizando o crescimento e a auto-atualizao, era muito restrita e

    limitada para tal fora. A nova nfase residia no reconhecimento da espiritualidade e das

    necessidades transcendentais como aspectos intrnsecos da natureza humana e no direito

    de cada indivduo escolher ou mudar seu caminho. Muitos renomados psiclogos

    humansticos mostraram crescente interesse por vrias reas antes negligenciadas e por

    tpicos de psicologia como experincias msticas, transcendncia, xtase, conscincia

    csmica, teoria e prtica de meditao ou sinergia inter-espcie ou interindividual. (Grof,

    1988, p. 138).

    Mais uma vez, a percepo de que as circunstncias favoreciam a emergncia de

    uma nova Fora, e a iniciativa de encabear as articulaes para seu lanamento, coube a

    Maslow e Sutich. Conforme relembra este ltimo (Sutich, 1991), foi a partir das idias que

    transpiraram em um seminrio sobre Teologia Humanstica promovido em 1966, que

    Maslow e ele amadureceram a constatao de que uma nova Fora estava se impondo e

    fora erroneamente identificada como parte da Psicologia Humanista. De fato, em 1968,

    Maslow assim se expressaria na introduo segunda edio de seu livro Introduo

    Psicologia do Ser:

    Devo tambm dizer que considero a Psicologia Humanista, ou Terceira Fora em

    Psicologia, apenas transitria, uma preparao para uma Quarta Fora ainda "mais

    elevada", transpessoal, trans humana, centrada mais no cosmos que nas necessidades e

    interesses humanos, indo alm do humanismo, da identidade, da individuao e

    quejandos (...). Necessitamos de algo "maior do que somos" (Maslow, s. d., p.12).

    A proposta, divulgada em conversas, seminrios, artigos e troca de

    correspondncias, logo encontrou destacados adeptos, sendo formado um comit para

    organizao de uma nova revista, dedicada ao que quela altura chamavam Psicologia

    Trans-humanstica. Das discusses desse comit, presidido por Sutich e integrado por,

    alm de Maslow, nomes do calibre de James Fadiman, Sidney Jourard, Michel Murphy e

    Miles Vich, completa em finais de 1967 a definio e declarao de objetivos da nova

    Fora. Em 1968, em discusso de que participaram tambm Viktor Frankl e Stanislav

    Grof, adotado o ttulo Psicologia Transpessoal em substituio ao anteriormente

    proposto, e a revista lanada em 1969, sendo o movimento assim apresentado :

    Psicologia Transpessoal (ou "Quarta Fora") o ttulo dado a uma fora emergente

    no campo da Psicologia, representada por um grupo de psiclogos e profissionais de

    outras reas, de ambos os sexos, que esto interessados naquelas capacidades e

    potencialidades LTIMAS que no possuem um lugar sistemtico na teoria positivista ou

    behaviorista ( "Primeira Fora"), na teoria psicanaltica clssica ( "Segunda Fora"), ou na

    psicologia humanstica ("Terceira Fora"). (Apud Sutich, 1991, p. 29).

  • Nos prximos itens, procurarei caracterizar a Psicologia Transpessoal em termos dos

    temas que privilegia em seus estudos; das posies que adota em sua proposta de

    Psicologia cientfica; da viso de natureza humana desenvolvida em suas teorias; e das

    tcnicas e mtodos que utiliza para investigao e atuao. Em todos os tpicos, na

    medida do possvel, sero enfatizadas as relaes e diferenas entre as posies

    transpessoais e humanistas.

    2. CARACTERSTICAS

    Temtica Privilegiada.

    Na declarao dos contedos de interesse para publicao, impressa no frontispcio

    do primeiro numero da Revista de Psicologia Transpessoal, pode-se ter uma expressiva

    idia dos campos temticos caracteristicamente privilegiados na proposta da Quarta

    Fora:

    A Revista de Psicologia Transpessoal ocupa-se da publicao da pesquisa terica e

    aplicada, de contribuies originais, estudos empricos, artigos e estudos sobre meta

    necessidades, valores ltimos, conscincia unitiva, experincia de pico, xtase,

    experincia mstica, valores B, essncia, felicidade, respeito, milagre, auto-realizao,

    significado ltimo, transcendncia do eu, esprito, sacralizao da vida cotidiana, unidade,

    conscincia csmica, jogo csmico, sinergia individual e da espcie, mximo encontro

    interpessoal, responsividade e expresso, e sobre os conceitos, experincias e atividades

    relacionadas. Como declarao de objetivos , esta formulao deve ser entendida como

    sujeita a interpretaes opcionais individuais ou de grupos, tanto parcial quanto

    totalmente, com relao aceitao de seus contedos como essencialmente naturalistas,

    testas, sobrenaturalistas, ou qualquer outra classificao que se lhes d. (Apud Sutich,

    1991, p. 31)

    Trata-se de uma listagem bastante extensa, cuja topificao em grande parte

    refere-se a termos relacionados a certas perspectivas tericas mais especficas, sendo

    apresentada aqui mais pelo interesse histrico da declarao e para que se tenha um

    apanhado geral da amplitude e abertura de perspectiva dos interesses do Movimento

    Transpessoal. Ao invs de discorrer sobre cada um dos temas relacionados, o que alm de

    resultar demasiado extenso provavelmente forneceria uma viso em tanto confusa e

    dispersiva, optei em centrar minha apresentao em torno de trs tpicos gerais que,

    relacionados entre si, tem mais comumente sido apontados como a rea privilegiada e

    caracterstica das abordagens transpessoais: as potencialidades ltimas; a espiritualidade;

    e os estados alterados de conscincia, a includas as experincias transpessoais.

    A escolha, nas primeiras definies, do designativo genrico de potencialidades

    LTIMAS como o objeto de estudo da Psicologia Transpessoal, assim como a indicao de

  • temas anlogos (valores ltimos, experincias de pico, mximo encontro interpessoal,

    significado ltimo, estado final, conscincia sensorial mxima, ponto mega, relaes

    ltimas, etc.), parece relacionar-se s razes humanistas do Movimento Transpessoal. Na

    verdade, a vinculao do surgimento da Psicologia Transpessoal ao Movimento Humanista

    bem mais do que circunstancial, podendo, ao menos assim eu entendo, ser vista como

    uma decorrncia lgica das prprias propostas da Terceira Fora que, ao se declarar

    interessada em estudar e promover a sade, o bem estar e o desenvolvimento do

    potencial humano, estimulou muitos investigadores a se questionarem sobre as

    possibilidades mximas dessas qualidades, os estados e potencialidades LTIMAS desse

    desenvolvimento, ou aquilo a que Maslow chamou de as mais longnquas buscas da

    natureza humana (The Farther Reaches of Human Nature, Maslow, 1971). Nessa busca,

    no raro, concluam os investigadores que a auto-realizao humana no se esgota no ser

    plenamente pessoa mas sim no ultrapassar da prpria condio pessoal, acessando a

    dimenso csmica, espiritual, ou transpessoal, do ser. Da mesma forma que se pode dizer

    que um rio - imagem a que freqentemente os humanistas comparam a qualidade

    processual ideal do crescimento psicolgico saudvel - no encontra auto-realizao em

    ser plenamente rio, mas que esta, em ltima instncia, s se concretiza quando vai alm

    de ser rio e se torna parte do mar; tambm para a perspectiva transpessoal na

    transcendncia dos prprios limites da pessoa que, paradoxalmente, sua realizao ltima

    pode ser obtida. Neste sentido, a proposta transpessoal qualitativamente distinta da

    humanista :

    Isto , a orientao transpessoal tem como conceito fulcral a "auto-

    transcendncia", o que, em ltima anlise a diferencia da orientao humanista, cujas

    metas bsicas de desenvolvimento localizam-se na "auto-realizao". Assim, na

    psicoterapia transpessoal, a capacidade humana para "auto-transcendncia", alm da

    auto realizao, reconhecida como etapa final do desenvolvimento". ( Grof, 1988, p.

    133)

    A espiritualidade, ou a dimenso espiritual do homem, segundo tpico de nossa

    caracterizao temtica, identifica o Movimento Transpessoal como a primeira corrente da

    Psicologia contempornea que dedica ateno sistemtica e privilegiada dimenso

    espiritual da experincia humana, at ento ignorada, negada, negligenciada ou reduzida

    a derivaes secundrias de outras faixas inferiores do ser, como a sexualidade e a

    agressividade sublimadas, por exemplo. O prprio uso mais ou menos freqente e

    generalizado do termo espiritual que os transpessoais fazem, tomando emprestado

    Religio este e outros vocbulos, na falta de termos prprios na tradio psicolgica

    ocidental, fala-nos do desinteresse da Psicologia pelo assunto. Como diz Maslow:

    (...) quase impossvel falar "vida espiritual" (frase desagradvel para um cientista,

    em particular para os psiclogos) sem usar o vocabulrio da religio tradicional.

  • Simplesmente ainda no existe outra linguagem satisfatria. Uma excurso pelos lxicos

    poderia demonstr-lo com rapidez (Maslow, 1964, p. 4)

    Na verdade, a aceitao do homem como ser cuja auto-realizao final envolve a

    auto-transcendncia e o acesso a uma dimenso csmica ampliada de participao

    universal, naturalmente tende a aproximar a Psicologia Transpessoal das concepes

    religiosas da natureza humana, as Psicologias Espirituais como denominou Tart (1979), as

    quais imemorialmente defendem este ponto de vista como pressuposto que fundamenta a

    prpria Religio, conforme j constatara William James em seus estudos sobre as

    variedades da experincia religiosa:

    Resumindo da forma mais ampla possvel as caractersticas da vida religiosa, tais

    como elas se nos deparam, encontramos as seguintes crenas:

    1. Que o mundo visvel parte de um universo mais espiritual do qual ele tira sua

    principal significao;

    2. Que a unio ou relao harmoniosa com este universo mais espiritual nossa

    verdadeira finalidade;

    3. Que a orao ou comunho interior com o esprito desse universo mais elevado -

    seja ele "Deus" ou "ordem" - um processo em que se faz realmente um trabalho, e em

    que a energia espiritual flui e produz efeitos, psicolgicos ou materiais, dentro do mundo

    fenomnico. (James, 1991, p. 300).

    Naturalmente, sendo a Psicologia Transpessoal uma proposta de Psicologia

    cientfica, e no se filiando enquanto movimento a nenhuma concepo religiosa

    especfica de mundo, sua abordagem do espiritual e do religioso se far pela via do

    emprico, pela ateno ao fenmeno experiencial em si, assim como pela considerao de

    seus efeitos psicolgicos e suas implicaes para a compreenso da estrutura, da

    dinmica e do desenvolvimento da personalidade.

    No s no interesse despertado pela singular fenomenologia relatada nas

    experincias espirituais, msticas ou religiosas, mas tambm pela abordagem de outros

    fenmenos extraordinrios de alterao e ampliao da conscincia, os quais, como

    vimos, crescentemente se apresentam no contexto cultural atual como desafio para a

    Psicologia, que se pode caracterizar o campo de estudos privilegiado da Psicologia

    Transpessoal: Os estados alterados da conscincia. Pierre Weil chega mesmo a definir :

    A Psicologia Transpessoal um ramo da Psicologia especializada no estudo dos

    estados de conscincia; ela lida mais especialmente com a "experincia csmica" ou os

    estados ditos "superiores" ou "ampliados" da conscincia. (Weil, 1978, p. 9).

    O estudo da conscincia como objeto central da Psicologia, abandonado desde que

    a objetividade behaviorista superou as propostas de Wundt e William James, e que Freud,

    descortinando a parte submersa do iceberg, apontou o subconsciente como a dimenso

    psquica predominante, j comeara a ser recuperado pela Psicologia Humanista, com sua

  • nfase na experincia consciente, entendida como dimenso do psiquismo onde a pessoa

    exerce suas potencialidades de liberdade, escolha, autonomia e intencionalidade. A

    concepo transpessoal da existncia de outros estados de conscincia alm dos

    tradicionalmente aceitos pelas teorias correntes (viglia, sonho, sono sem sonhos,

    intoxicao, e alguns estados intermedirios), muitos dos quais entendidos como estados

    supra-conscientes cujas potencialidades na promoo da sade e crescimento superariam

    em muito as do estado normal de viglia e as derivadas da anlise das faixas infra-

    conscientes descobertas por Freud, faz da explorao das possibilidades ltimas da

    conscincia o interesse primordial das teorias, pesquisas e aplicaes da Psicologia

    Transpessoal. Coube a Charles Tart, pesquisador e terico cuja contribuio notvel no

    s no campo da Psicologia Transpessoal mas tambm no da Parapsicologia, recuperar

    para a Psicologia atual a anacrnica expresso estados de conscincia, acrescentando-lhe

    o adjetivo alterados, para definir conceitos que se mostraram de largo uso, contribuindo

    para o vocabulrio tcnico e operacional da Quarta Fora da Psicologia. No obstante o

    uso do adjetivo alterado tenha por vezes sido criticado por parecer sugerir algo artificial

    ou com conotaes patolgicas, estando mais em voga atualmente a utilizao nos meios

    transpessoais da expresso estados inusuais - ou no-ordinrios - de conscincia e, no

    obstante ainda, tambm ser por alguns questionado o prprio uso da expresso estados

    de conscincia por entenderem que a alterao desta se processa em um contnuo e

    no em estados delimitados, as definies de Tart permanecem importantes e atuais:

    De um modo bastante conciso, "um estado de conscincia" (SoC) aqui definido

    como um padro generalizado de funcionamento psicolgico. Um "estado alterado da

    conscincia" (ASC) pode ser definido como uma alterao qualitativa no padro comum de

    funcionamento mental em que o experienciador sente que a sua conscincia est

    radicalmente diferente do seu funcionamento "normal". Deve-se notar que um ASC no

    definido por um contedo particular da conscincia, por um comportamento, ou por uma

    modificao fisiolgica, mas em termos de seu padro total.(Tart, 1991, p. 41)

    Embora os estados alterados de conscincia em geral interessem Psicologia

    Transpessoal, em especial naqueles em que a conscincia se expande ou amplia para

    alm dos limites usuais da viglia, que os estudos esto concentrados. Mesmo que se

    questione a existncia de estados realmente superiores - que a rigor, para Tart seriam

    aqueles em que no s todas as funes do estado habitual estivessem mantidas, como

    fossem ainda mais eficientes e/ou acrescidas de funes novas - o conceito de

    experincias transpessoais, definidas por Grof (1988) como aquelas em que h o

    sentimento de expanso da conscincia para alm das fronteiras egicas comuns e das

    limitaes do tempo e do espao (p. 104), pode esclarecer o campo de interesses

    caracterstico e exclusivo (no sentido de que a nica corrente que sistematicamente o

    aborda) da Psicologia Transpessoal.

  • Alm dos tpicos subentendidos nas orientaes temticas gerais aqui

    apresentadas, outros temas tpicos do Movimento Transpessoal esto relacionados s suas

    propostas epistemolgicas e cientficas; ou suas concepes da natureza humana; ou

    ainda s suas formas prprias de abordagem e atuao. Isto examinaremos nos prximos

    itens.

    Modelo de Cincia

    Da mesma forma que a Psicologia Humanista, a Psicologia Transpessoal, enquanto

    movimento, assume e defende posies epistemolgicas tpicas, propondo para a

    Psicologia a adoo de um modelo de cincia distinto do tradicional modelo naturalista.

    Novamente, porm, vamos encontrar significativas diferenas, de grau e qualidade, entre

    a proposta humanista e a transpessoal. Os psiclogos humanistas, em geral, defendem

    para a Psicologia um modelo de cincia do homem, de base compreensiva,

    fenomenolgica, idiogrfica, holista e teleolgica; em contraposio perspectiva

    objetivante, explicativa, reducionista, normativa, elementarista e determinista do modelo

    tradicional das cincias naturais, o qual, entretanto, via de regra respeitam como

    abordagem adequada ao mundo das coisas, to distinto - assim entendem - do mundo

    humano. Grande parte alis do debate entre a Psicologia Humanista e o Behaviorismo - e

    tambm com certas concepes mecanicistas do modelo hidrulico da Psicanlise - se

    trava neste tpico de qual dos dois modelos, o naturalista ou o humanista, adequado

    para a Psicologia. Mas, enquanto este j quase montono e repetitivo debate se

    prolongava nos crculos da Psicologia, as cincias naturais evoluam a passos - ou melhor,

    saltos - enormes, tornando ultrapassadas as posies anteriormente identificadas como

    seu modelo cientfico, e generalizando em seu meio a convico de estar em curso uma

    revoluo do paradigma geral da Cincia. Assim, como vimos, o Movimento Transpessoal,

    assumindo a leitura de queest em curso uma revoluo paradigmtica, ao invs de

    contrapor cincias humanas e cincias naturais, realiza intensa aproximao destas

    ltimas, s que j entendidas dentro de um novo paradigma unificado - holstico, ps-

    moderno, hologrfico e transdisciplinar - da Cincia. Captulos inteiros dedicados s novas

    descobertas da Fsica, da Qumica, da Pesquisa Cerebral, entre outras, so uma constante

    em livros de Psicologia Transpessoal, onde citaes de cientistas como Bohm, Bohr,

    Einstein, Prigogine, Bell, Pauli, Heisenberg, Teilhard de Chardin, Capra, Pribam,

    Sheldrake, e muitos outros, chegam s vezes a ser mais freqentes que as dos mais

    renomados psiclogos. Do outro lado, nas modernas cincias naturais, a aproximao

    recproca. mesmo um fato curioso, que eu prprio tenho observado, que a Psicologia

    Transpessoal desperte menos interesse entre os psiclogos que entre os praticantes

    dessas cincias, os quais, talvez por dever de ofcio, em geral encontram-se melhor

  • familiarizados com as novas perspectivas paradigmticas, sintonizando com facilidade o

    ponto de vista e o discurso adotado pelos psiclogos transpessoais.

    Atnitos e fascinados com a descoberta de uma realidade s anteriormente

    concebida nas esotricas tradies espirituais e nas mais visionrias experincias msticas

    e transpessoais de alterao da conscincia, s quais crescentemente recorrem como

    ilustrao, confirmao e mesmo inspirao de suas teorias revolucionrias, os novos

    cientistas cada vez mais assumem a constatao do fsico James Jeans de que o universo

    parece mais com um grande pensamento do que com uma grande mquina. No estudo

    desse novo mundo em que a realidade psquica parece inseparvel da realidade material,

    as cincias naturais recorrem crescentemente a modelos desenvolvidos nas cincias

    humanas - fala-se por exemplo em sociologia dos eltrons - a ponto de se poder afirmar,

    como o faz Boaventura de Sousa Santos (1988), que: No h natureza humana porque

    toda natureza humana. (p. 63). Mais que isto, temas como conscincia - e no s

    conscincia humana! - at h pouco impensveis em cincias que primavam pela

    objetividade emprica, passam a ser de crucial importncia no desenvolvimento das

    pesquisas e teorias. Comentando a clebre afirmao de Watson, criador do

    Behaviorismo, de que a Psicologia j estava apta a abandonar qualquer meno

    conscincia, tornando-se um ramo puramente objetivo e experimental das cincias

    naturais que necessita to pouca introspeco quanto as cincias da fsica e da qumica, a

    fsica e filsofa Danah Zohar (s.d.) afirma: Ironicamente, esta linha de pensamento hoje

    to obsoleta para a fsica quanto foi obsoleta para a psicologia (p.57). Assim que,

    tambm ironicamente, mutatis mutandis e de uma perspectiva totalmente inversa, a

    Psicologia Transpessoal reedita o ideal behaviorista de ver a Psicologia irmanada s

    cincias naturais dentro de um mesmo modelo e proposta de Cincia unificada.

    O paradigma cientfico emergente tem sido freqentemente intitulado holstico ou

    hologrfico. O termo holos (todo, em grego) foi utilizado pelo estadista e pensador sul-

    africano Jan Smuts, no seu livro publicado em 1926, para formular a proposta do Holismo,

    teoria que, opondo-se a concepes atomistas, prope como caracterstica fundamental

    da Natureza a tendncia para promover a evoluo no sentido de totalidades cada vez

    mais complexas e organizadas. Quase desapercebidas na poca, suas idias influenciaram

    Adler (um dos dissidentes de Freud cujas teorias antecederam e influenciaram em

    diversos aspectos o Movimento Humanista) e, sendo de resto coerentes com a proposta

    da Psicologia da Gestalt ( o todo mais que a soma das partes ), o ponto de vista holista

    obteria ainda maior apoio com a Teoria Geral dos Sistemas, de Von Bertalanffy, cuja

    concepo transdisciplinar do comportamento dos sistemas, tem possibilitado inmeras

    aplicaes e desenvolvimento nas psicologias que a adotam. Assim essa perspectiva

    generalizou-se entre as teorias humanistas, as quais, de uma maneira geral,

    caracterizam-se pela abordagem holista, ou organsmica, ou sistmica, da pessoa

  • humana, em contraposio s posies elementaristas e reducionistas que criticam nas

    Foras precedentes.

    Entretanto, a viso holstica do novo paradigma, que assume como uma das

    propostas centrais a superao de todas as fronteiras disciplinares e mesmo o

    rompimento da compartimentalizao das reas do saber humano (donde se vem

    crescentes aproximaes transdisciplinares entre Filosofia, Cincia, Arte e Religio), difere

    substancialmente - embora no contrarie - da viso holista do Movimento Humanista.

    Para compreender as semelhanas e diferenas entre as duas perspectivas, que

    aqui diferencio pelas denominaes de holista e holstica, convm uma breve exposio

    dos princpios da holografia, a tcnica de reproduo tridimensional de imagens, cujas

    caractersticas instigantes tm levado distintos proponentes do novo paradigma a

    apresent-lo a partir do modelo, ou metfora, da holografia.

    A foto tridimensional foi pela primeira vez teoricamente concebida em 1947 pelo

    ganhador do Prmio Nobel Denis Gabor, mas s pode ser concretizada em 1965, com a

    inveno do raio laser. Ao invs de reproduzir imagens por pontos localizados

    espacialmente em superfcies quimicamente sensveis luz, como ocorre na fotografia

    comum, o que registrado no holograma ( a matriz da holografia ) so os padres de

    interferncia de dois feixes de luz laser, a um dos quais foi interposto o objeto que se

    quer grafar. Exposto novamente a um feixe de luz, o padro registrado no holograma,

    projeta uma reproduo espectral tridimensional da imagem do objeto, a chamada

    holografia. Independentemente da compreenso deste processo - confesso que eu prprio

    ainda no entendi muito bem - o que nos relevante considerar a interessante

    caracterstica da holografia, que tem inspirado cientistas dos mais variados campos

    criao de modelos tericos anlogos:

    Holografia um mtodo de fotografia sem lentes no qual o campo ondulatrio da

    luz espalhada por um objeto registrado em uma chapa sob a forma de um padro de

    interferncia. Quando o registro fotogrfico - o holograma - exposto a um feixe de luz

    coerente, como um laser, o padro ondulatrio original regenerado. Uma imagem

    tridimensional aparece.

    Como no h focalizador, isto , lentes focalizadoras, a chapa tem a aparncia de

    um padro de espirais destitudo de significado. Qualquer pedao do holograma pode

    reconstruir a imagem inteira. (Wilber et al., 1991, p 12)

    Assim, indo alm da proposta holista da viso humanista - o todo mais que a

    soma das partes - a viso holstica das novas cincias - a includa a Psicologia

    Transpessoal - afirma que a abordagem deve ser hologrfica, pois a parte contm o todo,

    ou seja, qualquer elemento de um todo como um holograma no qual, ainda que em

    menor detalhe, identificvel a qualidade isomrfica do padro de complexidade e

    interdependncia existente na configurao total.

  • Concepes radicais, em disciplinas distintas e independentes, parecem convergir

    em torno de uma concepo hologrfica da natureza da realidade. Talvez a mais

    conhecida destas coincidncias e complementariedade de concepes tericas

    independentes, seja o caso das teorias de Karl Pribram e David Bohm. O primeiro,

    destacado pesquisador do crebro, sugere um modelo hologrfico do funcionamento

    cerebral para superar o enigma da localizao da memria, pois insistentes pesquisas

    pareciam no deixar outra resposta intrigante constatao de que a informao se

    distribui por todo o crebro, sendo por inteiro recupervel a partir de qualquer parcela. O

    segundo, eminente fsico terico, na tentativa de integrar inquietantes e paradoxais

    teorias, pesquisas e concepes no campo da micro e da macro fsica, prope uma teoria

    hologrfica do universo, por ele concebido como um contnuo dobrar-se e desdobrar-se

    das formas aparentes - a ordem exposta - a partir de uma realidade mais profunda,

    transcendente e subjacente a tudo que existe: a ordem implicada da qual tudo imagem

    hologrfica. O encontro das idias dos dois cientistas originou a proposta de que o crebro

    era uma estrutura de funcionamento hologrfico que interpretava um universo de

    natureza igualmente hologrfica, produzindo a realidade - ou realidades - em sua

    construo espao-temporal de imagens da realidade unitria transcendente. Alis, a

    indissociabilidade da relao entre mente e realidade, implicada em diversas concepes

    das modernas cincias naturais, lana nova luz sobre o secular problema mente-corpo,

    tradicional e de longa histria no desenvolvimento da Psicologia. As novas descobertas e

    teorias, recuperando concepes milenares da Religio e Filosofia, sugerem que as

    realidades se constituem a partir de uma filtragem e reconstruo hologrfica realizada

    pela mente em sua relao com a realidade inefvel implicada no mago do mundo

    fenomenal ilusrio, no obstante a prpria mente no seja mais entendida como

    organicamente contida no crebro (algumas propostas crem ser a mente, na verdade,

    obstruda pelo crebro). As relaes mente/crebro/realidade constituem alis uma das

    principais temticas unificadoras dos novos interesses cientficos

    Escapa aos propsitos desta breve caracterizao formular um inventrio, ainda que

    resumido, das principais descobertas e tendncias que, semelhana de um mosaico em

    formao tem se associado, a partir de diversas cincias, na configurao e emergncia

    de um novo paradigma cientfico. Desejo me referir apenas a algumas decorrncias

    dessas novas vises, que me parecem implicar radicalmente a Psicologia Transpessoal.

    Mrcia Tabone (1988), em uma colocao bastante feliz, afirma que podemos entender o

    "movimento transpessoal" como o resultado de esforos para ajustar a Psicologia

    ocidental ao paradigma emergente, contribuindo para a assimilao das novas premissas

    em seu campo de pensamento (p. 160). Desse ponto de vista e tambm na sua