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REVEJ@ 68 Um olhar para a prática de escrita, com o uso do livro didático, no primeiro segmento da Educação de Jovens e Adultos Marinaide Lima de Queiroz Freitas 1 Tania Maria de Melo Moura 2 Resumo: Este texto objetiva apresentar um recorte dos resultados da investigação que teve como foco analisar o uso do Livro Didático - LD - nas práticas de escrita, realizadas em sala de aula do Primeiro Segmento da Educação de Jovens e Adultos - EJA. A metodologia centrou-se na abordagem da pesquisa qualitativa na modalidade do Estudo de Caso auxiliado pelas orientações da etnografia interacional. O estudo revelou que o uso do LD não é uma prática constante em sala de aula. Quando do processo da escrita, outros suportes de gêneros são bastante utilizados. Evidenciou também que não foram exploradas e nem valorizadas outras vozes presentes nos gêneros trabalhados, tanto do LD como de outros suportes, prejudicando assim o entendimento ao enfoque bakhtiniano, fazendo com que a interação e, conseqüentemente, a interação verbal fosse prejudicada. Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Livro Didático, Língua Materna, Interação. Considerações introdutórias Este texto constitui-se num recorte da pesquisa O uso do livro didático em sala de aula de educação de jovens e adultos: análise de uma prática de escrita no primeiro segmento do ensino fundamental 3 , realizada em uma sala de aula (3ª fase de pós- alfabetização 4 ) de jovens e adultos, numa escola pública municipal, situada na periferia de Maceió, Alagoas. Teve como objetivo analisar as situações de sala de aula em que os jovens e adultos vivenciam a utilização dos gêneros textuais constantes nos livros didáticos. O problema investigado foi como os gêneros textuais constantes nos livros didáticos de EJA são utilizados lingüisticamente pelos alunos e professores, na sala de aula. 1 Doutora em Língüística pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e pesquisadora do CIIE - Centro de Investigação e Intervenção Educativas, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (Portugal). É, também, professora da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED). 2 Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora do Mestrado em Educação Brasileira do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas. 3 Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (FAPEAL), no período de 2005-2006. 4 Na rede municipal de Maceió a Educação de Jovens e Adultos é ofertada apenas para o I segmento do Ensino Fundamental e organiza-se em três (3) fases: a 1ª fase corresponde à alfabetização; a 2ª fase às 1ª e 2ª séries; a 3ª fase às 3ª e 4ª séries. REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 1, n. 1, p. 1-117, dez. 2007

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REVEJ@

68

Um olhar para a prática de escrita, com o uso do livro didático, no primeiro

segmento da Educação de Jovens e Adultos

Marinaide Lima de Queiroz Freitas1

Tania Maria de Melo Moura2

Resumo: Este texto objetiva apresentar um recorte dos resultados da investigação que teve como foco

analisar o uso do Livro Didático - LD - nas práticas de escrita, realizadas em sala de aula do Primeiro

Segmento da Educação de Jovens e Adultos - EJA. A metodologia centrou-se na abordagem da

pesquisa qualitativa na modalidade do Estudo de Caso auxiliado pelas orientações da etnografia

interacional. O estudo revelou que o uso do LD não é uma prática constante em sala de aula. Quando

do processo da escrita, outros suportes de gêneros são bastante utilizados. Evidenciou também que não

foram exploradas e nem valorizadas outras vozes presentes nos gêneros trabalhados, tanto do LD

como de outros suportes, prejudicando assim o entendimento ao enfoque bakhtiniano, fazendo com

que a interação e, conseqüentemente, a interação verbal fosse prejudicada.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, Livro Didático, Língua Materna, Interação.

Considerações introdutórias

Este texto constitui-se num recorte da pesquisa O uso do livro didático em sala de

aula de educação de jovens e adultos: análise de uma prática de escrita no primeiro

segmento do ensino fundamental3, realizada em uma sala de aula (3ª fase de pós-

alfabetização4) de jovens e adultos, numa escola pública municipal, situada na periferia de

Maceió, Alagoas. Teve como objetivo analisar as situações de sala de aula em que os jovens e

adultos vivenciam a utilização dos gêneros textuais constantes nos livros didáticos. O

problema investigado foi como os gêneros textuais constantes nos livros didáticos de EJA

são utilizados lingüisticamente pelos alunos e professores, na sala de aula.

1 Doutora em Língüística pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e pesquisadora do CIIE - Centro de Investigação e Intervenção Educativas, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (Portugal). É, também, professora da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED). 2 Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora do Mestrado em Educação Brasileira do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas. 3 Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (FAPEAL), no período de 2005-2006. 4 Na rede municipal de Maceió a Educação de Jovens e Adultos é ofertada apenas para o I segmento do Ensino Fundamental e organiza-se em três (3) fases: a 1ª fase corresponde à alfabetização; a 2ª fase às 1ª e 2ª séries; a 3ª fase às 3ª e 4ª séries.

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A investigação foi fundamentada em Brandão (2000), Marcuschi (2001), Bakhtin

(1992, 2004), Freitas (1999), Geraldi (2002), Dionisio e Bezerra (2001) entre outros. Os

resultados alcançados foram possíveis a partir da metodologia desenvolvida, centrada na

abordagem da pesquisa qualitativa na modalidade do Estudo de Caso caracterizado por Gil

(1991, p. 58) como um “[...] estudo profundo e exaustivo de ou de poucos objetos, de maneira

que permita o seu amplo e detalhamento conhecimento [...]”.

Para auxiliar o estudo de caso, considerando a necessidade de realização de um

trabalho interpretativo e observacional, que acompanha o dinamismo dos elementos

observados e dos fenômenos textuais, tomou-se emprestado de Nunes-Macedo (2004) as

orientações da etnográfica interacional. Segundo os autores, através dessa abordagem:

Pesquisadores [...] têm investigado as interações em sala de aula partindo do pressuposto de que essa é uma ‘comunidade culturalmente constituída’ por meio da participação de diferentes sujeitos, que assumem diferentes papéis no processo de ensino-aprendizagem. Nessa perspectiva, a aprendizagem é definida situacionalmente por meio das formas em que professores e alunos constroem os padrões e práticas da vida de cada sala de aula. (NUNES-MACEDO, 2004, p.18-19).

A opção metodológica requereu a realização dos seguintes procedimentos:

a) pesquisa bibliográfica: seleção e estudo de categorias norteadores da investigação: gêneros

textuais, interação, escrita, concepções de linguagem e livro didático;

b) caracterização da escola, campo de observação;

c) entrevistas, gravadas em fitas cassete, com a professora e com os seus alunos -

selecionados como sujeitos-amostra da investigação;

d) aplicação de questionário com a professora da sala de aula observada;

e) análise documental do relatório da pesquisa: “A Importância dos Gêneros Discursivos no

Ensino de Língua Portuguesa em Educação de Jovens e Adultos, no Primeiro Segmento do

Ensino Fundamental do Sistema Público de Ensino na Cidade de Maceió” (2003-2004).

Comentam-se neste artigo os dados observados e registrados a partir de três blocos de

questões:

a) caracterização dos sujeitos investigados: professora e aluno(a)s, a partir das

observações, das entrevistas e dos questionários aplicados;

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b) as representações5 que a professora e aluno(a)s da 3ª fase apresentaram sobre o

Livro Didático (LD) e a sua utilização, a partir da entrevista coletiva com os mesmos;

c) a constituição das interações no processo de escrita, durante as aulas, considerando

eventos coordenados pela professora que possibilitou o trabalho individual e coletivo com o

LD e outros materiais impressos.

Caracterização dos sujeitos investigados: professora e aluno(a)s

Nesta pesquisa, os sujeitos do processo interacional verbal foram considerados como

sociais e possuidores de níveis ou graus de sociabilidade. Entendendo-se que quanto maior for

o grau de suas interações verbais sociais, maior será o grau de consciência dos indivíduos, o

que por sua vez implicará um maior grau de constituição de indivíduos em sujeitos sociais.

A professora observada, denominada na investigação como Z, declarou ter 29 anos de

idade. Sua formação escolar é em magistério (atualmente nível médio - modalidade normal) e

curso superior incompleto na área de teatro. É professora concursada da rede publica

municipal de Maceió, há oito anos. Há sete anos, atua no Ensino Fundamental de Jovens e

Adultos e nos últimos quatro anos está lotada na escola campo de pesquisa. A professora,

mesmo sendo jovem, declarou ter sido alfabetizada através do método tradicional com a

cartilha do bê-a-bá, realizou atividades de cópia e foi alvo de castigos, através da palmatória,

pelos erros cometidos.

Nas conversas6, durante a investigação, fez uma reflexão de sua prática pedagógica:

[...] eu só recebia, não havia uma interação entre aluno-atividade-professor/aluno-professor-atividade ou atividade-professor-aluno [...], não havia questionamentos da parte do aluno, não havia objetivos a serem cumpridos ao qual o aluno deveria saber [...]. Só havia autoritarismo e um emissor e outro receptor [...]. (PROFESSORA Z).

Bakhtin (2004, p. 113) explica essa passagem vivenciada pela citada professora ao

dizer que: “Em um determinado momento, o locutor [professor] é incontestavelmente o único

dono da palavra, que é então sua propriedade inalienável”.

A vivência da professora no período em que foi alfabetizada reflete hoje em sua

prática pedagógica, apesar de enfatizar que seu posicionamento teórico específico baseia-se

nos estudos de Paulo Freire e Vygotsky (sic): “[...] porque é necessário compreender o

processo de ensino-aprendizagem dos alunos jovens e adultos”. (PROFESSORA Z).

5 Denominam-se representações, nessa pesquisa, as opiniões, conceitos e concepções da professora e dos aluno(a)s investigados. 6 Todas as falas (da professora e dos aluno(a)s, obtidas através das conversas informais e das entrevistas, foram consideradas – registradas – na integra.

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A turma de 3ª fase sob sua orientação no período da investigação (ano de 2005) era

composta por 32 aluno(a)s inscritos e 24 freqüentando. Os aluno(a)s encontravam-se numa

faixa etária extremamente diferenciada, de 18 a 62 anos de idade, sendo 17 do sexo feminino

e 15 do sexo masculino. Na Educação de Jovens e Adultos, no município de Maceió, a mulher

vem marcando presença nas salas de aula, em sua maioria ultrapassando o número de homens,

o que há dez anos não acontecia. Outro fato que merece destaque é que nessa escola ainda se

encontra um quantitativo significativo de pessoas adultas, apesar de encontrarmos na maioria

das escolas no Estado de Alagoas a presença marcante de jovens, desde a década de 1980.

Jovens esses que não formam um grupo homogêneo, com interesses e comportamentos

idênticos.

A maioria dos alunos reside próximo à escola. Aqueles que são casados mantêm uma

família em média de três a cinco filhos, sobrevivendo com uma renda abaixo do salário

mínimo, fato mencionado pela professora em conversa informal. Faz-se necessário salientar

que os alunos sempre apresentavam uma aparência cansada, pois, muitos vinham direto do

trabalho, mas apesar do aspecto enfadonho demonstravam o desejo de aprender.

Os alunos declararam em seus relatos que o motivo mais importante de retorno à

escola foi à necessidade de aprender a ler e escrever por conta das exigências da própria

sociedade. Um deles afirma:

[...] Então hoje, eu vi a necessidade de voltar à sala de aula porque é... hoje a gente tamo num mundo de... de grande, como é que se diz, é... é, tecnologia avançada e eu não ter concluído o ensino fundamental que é de 1ª a 8ª série enquanto menino, a gente fica numa situação muito difícil, porque quando a gente vai até pegar um ônibus, quando precisa fazer uma conta, aí a gente num sabe [...]. (ALUNO 1).

Outros declararam, também, ter deixado muito cedo a sala de aula para dar apoio

financeiro à família, submetendo-se a diversos tipos de trabalhos. Alguns tiveram que

abandonar seus lares para migrar à procura de “algo melhor”.

Nesse sentido registram-se algumas falas:

[...] e eu não tive a oportunidade de estudar, porque... por causa da conseqüência da vida. Tive que ajudar meus pais, que são pobre, né?. (ALUNO 1).

[...] não estudei no tempo de criança é por que... é porque meus pais era muito pobre, morava no interior. Não tinha condições de estudar mesmo. Após eu terminar minha jornada de trabalho eu achei que era certo voltar a estudar, é também tô ocupando a mente a noite, por isso eu voltei a estudar. Eu passei um certo tempo estudando assim, porque eu é... era do interior e meu pai era uma pessoa que num tinha... num tinha lugar certo. (ALUNO 2).

[...] Estudei até 72, estudei até a 2ª, tive que parar porque teve um problema na minha família com um cunhado meu, eu tinha que trabalhar pra sustentar minha irmã na roça, depois eu cheguei de São Paulo e comecei a estudar aquela Educação de Jovens e Adultos – o MOBRAL. (ALUNO 3).

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Estes relatos revelam situações concretas de pessoas que buscam o direito de acesso

à escola e que continuam sonhando com oportunidades para o seu crescimento pessoal, na

tentativa de recuperar o tempo que eles consideram perdido, como também buscar a conquista

da cidadania.

As representações da professora e dos alunos da 3ª fase sobre o LD e sua utilização.

A professora menciona, na sua fala, que o LD de Língua Materna (LM) utilizado em

sala de aula é um apoio necessário, recurso esse de uso para conscientização política do

cidadão, pois está voltado para os sujeitos das turmas de EJA, contemplando as suas

necessidades. Não faz referência aos gêneros textuais para o ensino da Língua Portuguesa,

mas como pretexto para outras áreas do conhecimento. Ressalta, ainda, que não utiliza apenas

uma única opção de material, pois a escola disponibiliza outras coleções para o

aprimoramento de suas aulas. O uso do LD de LM está basicamente direcionado às leituras

informativas, interpretações coletivas e individuais e voltado para o estudo da gramática,

manuseando-o de duas a quatro vezes por semana.

O estudo da Gramática é entendido no seu sentido mais comum, designando um

conjunto de regras que devem ser seguidas por aqueles que desejam “falar e escrever

corretamente”. É como define Geraldi (2004, p. 47): “um conjunto de regras a serem

seguidas”. Dessa forma, o LD torna-se material de pesquisa privilegiado, quer seja como

fonte documental na definição de práticas do passado, quer seja como representações de tais

práticas.

Deixa claro, também, que o LD de LM não é responsável pela aprendizagem da língua

escrita, afirmando que: “[...] o grande responsável pela aprendizagem é o próprio aluno de

acordo com a motivação e incentivo [...]”. (PROFESSORA Z).

Ao se referir à dinâmica do professor/livro/aluno, a professora Z explica que se dá sob

uma forma de círculo, “[...] onde as informações de cada um vão sendo vistas, analisadas,

interpretadas, apreendidas e absorvidas [...]”. A partir da fala da professora é possível

entender que o LD de LM resume-se numa “ponte” para a relação dela com os aluno(a)s, bem

como um instrumento de mediação do conhecimento entre ambos.

A professora, ratificando os comentários dos alunos, evidenciou a importância do LD

na sala de aula, enfatizando a importância do mesmo como material próprio de pesquisa e de

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leitura, além de ser indispensável para motivação dos estudos. Entende que a forma como os

LDs são organizados e dispostos na escola, “[...], pois, tudo fica guardado em um único local

[...]”, facilita que a escrita seja desenvolvida e exercitada constantemente na sala de aula,

motivando os alunos a produzirem textos.

Os alunos, ao serem questionados sobre o uso do LD em sala de aula, demonstraram

inquietação, tendo em vista o pouco contato que mantêm com o mesmo, justificando “[...] Em

minha opinião, não pode se aprofundar no livro porque nós estudemos muito poucos [...]”.

(ALUNO 1).

Outro aluno ainda complementa, resgatando a organização do LD antigamente: “[...]

quando a gente ganhava um livro [...] assim, tinha uma programação [...]”.(ALUNO 2).

Observa-se a partir das diferentes falas que o LD não se constitui no único material

didático utilizado pela professora e os aluno(a)s. A professora faz uso de outros portadores de

gêneros textuais e atividades organizadas separadas dos LDs, acreditando na possibilidade de

ampliar o conhecimento dos alunos, nas diversidades textuais.

Diante dessa constatação, procurou-se conhecer qual a importância dada a esse

material pelos alunos, sabendo que eram possuidores da coleção elaborada pelo Núcleo de

Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação de Jovens e Adultos e em Educação Popular -

NUPEP7, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Os alunos responderam: “[...] Eu

mesmo acho muito importante [...], (ALUNO 1); outro aluno diz ter preferências, “[...] pra

mim, o que eu gosto mesmo é o de matemática. Mas todos eles só têm o que ensinar à gente, a

gente só tem o que aprender com eles [...]”, (ALUNO 2).

Foi presenciado, em alguns momentos de sala de aula, a ansiedade pelas atividades de

matemática, mas a professora combinava com os alunos trabalhar esporadicamente, quando

necessário, com o livro de matemática. Argumentava que o referido LD era muito elevado

para os alunos.

Havia resistência por parte dos alunos em relação à maioria das atividades de LM,

constantes no LD. Em uma das aulas observadas, a resistência foi atribuída a dois motivos. O

primeiro porque solicitava que a cada atividade o aluno(a) registrasse através de desenhos

7 O material produzido pelo NUPEP para a EJA é o resultado de uma experiência de cinco anos num Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA), em Olinda Pernambuco, para atender as necessidades básicas de aprendizagem de jovens e adultos trabalhadores e contribuir na sua profissionalização, bem como na realização de processos de pesquisas educacionais e formação do seu professorado (SOUZA, 2001, p. 139-140).

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uma estrofe da poesia ou sobre qualquer outra temática trabalhada. O segundo motivo diz

respeito às letras muito pequenas.

Um dos alunos, contrariando as argumentações dos colegas e da professora, declarou:

“[...] eu tenho uma prática boazinha de matemática, num tenho de português [...], [...] os livros

trazem boas leituras e não são cansativas”. (ALUNO 3).

Diante dos depoimentos dos alunos, ficou evidenciado que a professora não

apresentava segurança na utilização do LD como um suporte de gêneros textuais.

Constituição das interações em sala de aula e o uso do LD

Tomou-se como base, na análise desse item, as categorias interação de Bakhtin

(1992) e escrita de Marcuschi (2001). Interação que implica numa atitude responsiva entre

autor/leitor, mediada sempre pela linguagem verbal e não-verbal, conforme Bakhtin (1992, p.

113), ou seja, entendida como processo que ocorre entre dois sujeitos: interlocutores que

interagem através do signo ideológico – a palavra, objetivando pelo menos um sentido no

acontecimento discursivo.

A escrita no sentido considerado por Marcuschi (2001, p. 32), que defende a visão de

continuum fala-escrita, salientando que os gêneros textuais aparecem na perspectiva da fala e

da escrita dentro desse continuum tipológico das práticas sociais de produção textual.

O LD é concebido na perspectiva bakhtiniana defendida por Nunes-Macedo (2004, p.

18) como “[...] um enunciado que constitui um elo na cadeia de ‘comunicação verbal’

estabelecida por alunos e professores na sala de aula [...]”.

Ainda segundo Nunes-Macedo (2004, p. 18), “[...] a análise das interações face a face

que constituem o uso do livro didático pode ser fecunda para a compreensão dos processos de

ensino e aprendizagem da leitura e da escrita”. Ele transita entre aluno e professor, numa

interação mediada pela linguagem que é constitutiva dos sujeitos e da consciência.

A fim de estabelecer uma visão geral do acontecido na sala de aula, foi elaborado um

mapeamento das ações dos participantes (professora e aluno(a)s que envolveram a leitura e a

escrita. Para isso, foi analisado o diário de sala (registro da prática de ensino-aprendizagem),

perfazendo um total de sete aulas alternadas. Do total das aulas observadas, o LD só foi

utilizado em três. Dos eventos desenvolvidos em sala de aula e os poucos momentos do uso

do LD, foram observadas e registradas algumas atividades em que o processo interativo foi

sempre prejudicado.

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A professora não aproveitou as variedades lingüísticas surgidas nos textos e centrou

sua ação nas perguntas de compreensão e de atividades gramaticais. Isso ficou evidenciado ao

trabalhar na sala de aula o texto “Meu País, de Flávio e José” extraído do livro dos alunos de

Ciências Sociais – “A sociabilidade do ser humano, a natureza em transformação: a cultura”,

volume 04, NUPEP/UFPE – Centro de Educação, lição I, p. 07.

O objetivo da atividade, segundo a professora, era fazer a interpretação e o estudo do

vocabulário do referido texto. O vocabulário deveria ser trabalhado a partir da consulta ao

dicionário.

Enquanto manuseavam o dicionário (não ficou claro se os aluno(a)s já tinham

familiaridade para usá-lo), alguns aluno(a)s irritavam-se, outros descontraíam-se,

demonstrando muita animação. A cada momento que conseguiam encontrar um significado,

vibravam. “Isso é um quebra-cabeça, já estou com o juízo fervendo!”, gritou um aluno. “Até a

palavra sabão eu encontrei”, ressaltou uma aluna.

Os aluno(a)s não conseguiram encontrar no dicionário o significado da palavra

concris (pássaro corrupião) que no texto aparecia na última estrofe: “Um país que cantou e

hoje chora pelo grito último de concris. Que floresta destrói pela raiz e a grileiros de posse

entrega. Pode ser que ainda seja o chão, mas não é, com certeza, (nação do meu país)”. (Texto

“Meu País, de Flávio e José”. Livro de Ciências Sociais).

A professora decidiu registrar no quadro os significados encontrados pelos alunos,

porém, a explicação que prometeu fazer sobre o significado das palavras servis e concris não

aconteceu.

Referindo-se à unidade temática exposta pela professora, Bakhtin explica:

[...] O tema deve ser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base para definir a enunciação. [...] O tema da enunciação é um sistema de signos dinâmicos e complexos, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O tema é a reação da consciência em devir ao ser em devir. A significação é um aparato técnico para a realização do tema [...]. (BAKHTIN apud FREITAS, 1999, p. 128-129).

Note-se ainda que, sendo a palavra retirada do “estoque sígnico8”, o qual circula em

determinadas sociedades e em um dado momento, é detentora de formação ideológica,

permitindo uma outra leitura (reação) por parte dos interlocutores. Assim, Freitas (1999) em

suas observações retrata a dinamicidade do signo enquanto palavra, de forma circundante

8 Capacidade que o sujeito tem se expressar-se por meio da escrita e da fala.

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entre as estruturas sociais em seu nível mais elementar – o da ideologia do cotidiano. O que

não aconteceu na aula analisada.

Para compreender o sentido do campo extralingüístico descrito por Freitas (1999), a

análise do sistema ortográfico de escrita teve um papel significativo nos eventos de

letramento durante o período observado. O fato da maior parte dos alunos dominarem o

sistema alfabético de escrita pode justificar a ênfase na análise ortográfica. A leitura e a

produção de textos não ocuparam um espaço significativo nas aulas e a maior parte dessas

práticas não esteve vinculada ao uso do LD.

As observações apontaram, por fim, que a análise ortográfica não ocorre apenas como

conseqüência de atividades específicas desenvolvidas com esse objetivo. Um exemplo disso

pode ser encontrado na aula observada. Através do diálogo realizado com alguns alunos,

percebeu-se que muitos demonstraram não ter apreendido. Como, por exemplo, no fragmento

a seguir: “Professora a palavra servis aqui está escrita com /r/ no final, é a mesma coisa?”.

(ALUNA 1). “É porque ela está no plural, mas eu ainda vou explicar”. (PROFESSORA Z).

A aluna declarou ter dúvidas no destaque da palavra SERVIS identificada no texto, o

mesmo aconteceu com outro(a)s aluno(a)s. Essa prática pode ser encontrada na maior parte

das atividades em que os próprios alunos chamam a atenção para a ortografia de certas

palavras. Contudo, não foi observada durante a realização dessas atividades uma reflexão

sobre as regras do sistema de escrita alfabética.

Durante a utilização do dicionário, na aula acima explicitada, foi possível evidenciar a

interação entre os sujeitos. O discurso produzido na relação professor-aluno foi analisado na

dinâmica de duas dimensões, uma de caráter autoritário e outra de persuasão. Esta segunda

era muitas vezes incerta, visto que o trabalho desenvolvido não procurava valorizar a

participação ativa do aluno no processo ensino-aprendizagem.

A tipologia textual do gênero poema, utilizado pela professora, não foi explorada.

Segundo Brandão (2000, p. 25), essa é uma tipologia de linguagem lírica, poética,

ressaltando, por conseguinte, as competências sócio-cognitivas frente às diversidades e

heterogeneidade que apresenta. A professora também não evidenciou uma articulação das

ações/eventos de letramento na visão do continuum fala-escrita, como fundamenta Marcuschi

(2001). O foco permaneceu na dicotomia que ainda persiste entre a oralidade e a escrita:

[...] a) idéia de que a escrita codifica lexical e sintaticamente os conteúdos, enquanto que a fala usa os elementos paralíngüísticos como centrais; b) a idéia de que o texto escrito é mais coesivo e coerente do que o oral, sendo a fala fragmentária e sem

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conexão (ou com uma conexão marcadamente interacional); c) a noção de que a escrita conduz os sentidos diretamente a partir da página impressa, sendo que a fala se serve do contexto e das condições da relação face a face.[...]. (MARCUSCHI, 2001, p. 29).

Na atividade exemplificada anteriormente foi apresentada uma análise de padrões e

eventos iniciais de interação, destacando os diferentes padrões de organização dos alunos.

Entre os padrões mais recorrentes, encontra-se a individualidade.

Dando continuidade às observações das práticas de letramento com o uso do LD, em

outra aula foi presenciado o trabalho desenvolvido com um material didático. Dessa vez não

com os livros da coleção NUPEP, que os alunos possuíam, mas do acervo que a escola

disponibilizava, produzido por alunos de uma outra escola da rede municipal. O texto

selecionado para trabalhar foi “Meu desejo”, retirado de um dos Cadernos de Produção

Coletiva, da série Construindo a Cidadania9, publicados pelo Departamento de Jovens e

Adultos – DEJA, da Secretaria Municipal de Educação de Maceió – SEMED.

A proposta contida no Caderno em uso era a leitura do texto produzido pelo aluno-

autor e uma análise reflexiva sobre sua reescrita. A professora trabalhou com os alunos da

mesma forma que fazia, costumeiramente, quando utilizava os LDs. Organizava os estudantes

na sala de forma enfileirada e eles trabalhavam sempre individualmente. A maior parte dos

eventos centrou-se em atividades de leitura em voz alta e discussão coletiva das informações

presentes no texto “Meu desejo”.

Não houve resistência por parte dos alunos em trabalhar o texto. Contudo, não se

observou uma discussão com os alunos sobre a função da leitura silenciosa e oral, nem

mesmo uma orientação sobre como o texto poderia ser lido.

Se a professora desejava orientar as atividades em sala de aula para o exercício da

linguagem, a compreensão de seus aspectos, ela não podia esquecer de que a linguagem não é

possível fora do espaço interacional, em que todas as condições dialogais se estabelecem pela

negociação recíproca das intenções e das pressuposições. Por conseguinte, a interação não

supõe uma anulação das diferenças individuais e sociais dos participantes (professor/aluno),

mas uma adequada distribuição e tomada de papéis na interlocução.

A análise dos eventos acima citados justifica uma grande ênfase na prática

pedagógica apresentada pela professora e a aceitação da mesma pelos alunos, sem, no entanto,

9 A série Construindo a Cidadania é o resultado de uma experiência de quatro anos, num Curso de Educação Básica de Educação de Jovens e Adultos, que o DEJA-SEMED vem realizando, para atender as necessidades de aprendizagem dos trabalhadores estudantes, na área de Língua Portuguesa. No período de 2000 a 2003, foram publicados quatro Cadernos de Produção Coletiva.

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avançar lingüisticamente. Essa é uma dificuldade evidenciada no trabalho-pedagógico voltado

para o ensino da LM, uma vez que a maioria dos professores tem formação em Pedagogia,

curso que ainda carece de uma base lingüística aprofundada.

Considerações finais

A investigação revelou que o uso do LD não foi uma constante em sala de aula, a sua

presença foi bastante flutuante, mesmo considerando que atualmente na EJA, no município de

Maceió, foi adotado um LD para o aluno, além de outras coleções que são disponibilizadas na

sala de leitura para a utilização do professor e do aluno. Suportes como jornais, revistas, entre

outros marcaram presença na sala de aula.

As observações também indicaram que, em relação ao papel do LD nas práticas de

letramento, na interação há uma proposta bem maior que não foi abstraída pela professora,

empobrecendo os eventos e confirmando a falta de habilidade no uso desse material

pedagógico utilizado pelos participantes na interação em sala de aula.

Registra-se ainda que os momentos de intertextualidade no processo de escrita, tendo

o LD ou outros suportes de gêneros como mediadores, ficaram a desejar, uma vez que a

preocupação tanto da professora, quanto dos alunos, esteve sempre centrada no dialeto

padrão, no escrever correto. Não foram observados momentos onde o aluno pudesse refletir

sobre o seu dialeto popular.

As contribuições dos autores consultados e as abordagens da professora sobre

interação na sala de aula, utilizando gêneros textuais e tendo a fala-escrita como continuum,

apresentaram propostas que não contemplaram as categorias da interação e da escrita adotadas

neste estudo. Observa-se, também, que não foi explorado e nem valorizado outras vozes

presentes nos gêneros trabalhados, prejudicando assim o entendimento ao enfoque

bakhtiniano, no qual “a linguagem é vista como interação humana”. (BAKTHIN, 2004).

A professora observada demonstrou, em vários momentos da prática pedagógica,

oscilações na utilização dos gêneros. Ora tentando avançar para a concepção de língua como

interação, ora contradizendo-se, adotando uma postura bem tradicional. Essa professora atua

há bastante tempo na EJA e participou da formação continuada oferecida pelo

DEJA/SEMED, a qual o foco maior do ensino de língua foi a concepção de interação

defendida por Geraldi (2002). Contudo, as análises permitiram concluir que existe um

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descompasso no trabalho pedagógico da professora, no ensino de LM, entre a utilização dos

gêneros e o processo de escrita.

Na perspectiva de contribuição para o aperfeiçoamento do professor na sua sala de

aula, estabelecemos um diálogo sobre as evidências mencionadas na pesquisa, durante o

processo de formação continuada organizado pelo DEJA\SEMED que, entre suas temáticas,

prioriza a reflexão sobre o ensino-aprendizagem da língua materna, tendo como base os

gêneros textuais.

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