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p. 1 - 12 1 (IN)VEROSSÍMIL: O “EFEITO DE REAL”, DE BARTHES, E SEU FALSEAMENTO NA NARRATIVA FANTÁSTICA Abílio Aparecido Francisco Junior 1 Resumo: Os “pormenores supérfluos” dos quais trata Roland Barthes (2004, p. 181) em seu ensaio “O efeito de real”, publicado em 1968, são imagens possíveis de serem relacionadas à vertente fantástica da literatura. Pensando nisso, far-se-á uso dos estudos de Filipe Furtado (1980), David Roas (2014) e Rosalba Campra (2016), teóricos da citada modalidade, a fim de investigar as semelhanças e dessemelhanças em relação à ideia barthesiana da “função” do real. Tal análise fundamenta-se na conceituação de Barthes desses “enchimentos” no texto literário, a partir de seu ensaio “Análise textual de um conto de Edgar Poe”, os quais são vistos como supérfluos pela análi- se estrutural, mas que possuem um “valor funcional indireto” (2004, p. 182), segundo o autor. Ba- sear-se-á também na própria ideia de valoração do real estabelecida nos textos fantásticos a partir dos conceitos de Roas e dos recursos de legitimação do real definidos por Furtado. Palavras-chave: Efeito de Real; Roland Barthes; Fantástico. O real não é representável, e é porque os homens que- rem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura. Roland Barthes O FANTÁSTICO CAMINHA PELO VALE DO REAL Quando se trata do fantástico, há uma ideia comum errática de associá-lo ao ilógico, à fuga da razão e ao onírico. Tal presunção, de certa forma, prejudica sua análise, visto que o coloca em território de contraposição ao real. Apesar de o campo de estudo do fantástico ser consideravel- mente recente e ainda trazer muitas dissonâncias entre seus teóricos, há uma característica que se sobrepõe e perpassa praticamente todos os estudos sobre: o choque entre elementos sobrenaturais e reais no texto ficcional. Tal embate, na maioria dos casos, tem como objetivo causar a dúvida – ou como diria Todorov, a hesitação – no leitor sobre aquilo que ele está lendo. Dessa forma, em opo- sição à ideia comum aqui indicada, somos levados a concordar com David Roas (2014, p. 51): “O realismo se converte assim em uma necessidade estrutural de todo texto fantástico”. 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Lon- drina (UEL). E-mail: [email protected]

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(IN)VEROSSÍMIL: O “EFEITO DE REAL”, DE BARTHES, E SEU FALSEAMENTO NA NARRATIVA FANTÁSTICA

Abílio Aparecido Francisco Junior1

Resumo: Os “pormenores supérfluos” dos quais trata Roland Barthes (2004, p. 181) em seu ensaio “O efeito de real”, publicado em 1968, são imagens possíveis de serem relacionadas à vertente fantástica da literatura. Pensando nisso, far-se-á uso dos estudos de Filipe Furtado (1980), David Roas (2014) e Rosalba Campra (2016), teóricos da citada modalidade, a fim de investigar as semelhanças e dessemelhanças em relação à ideia barthesiana da “função” do real. Tal análise fundamenta-se na conceituação de Barthes desses “enchimentos” no texto literário, a partir de seu ensaio “Análise textual de um conto de Edgar Poe”, os quais são vistos como supérfluos pela análi-se estrutural, mas que possuem um “valor funcional indireto” (2004, p. 182), segundo o autor. Ba-sear-se-á também na própria ideia de valoração do real estabelecida nos textos fantásticos a partir dos conceitos de Roas e dos recursos de legitimação do real definidos por Furtado.

Palavras-chave: Efeito de Real; Roland Barthes; Fantástico.

O real não é representável, e é porque os homens que-rem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura.

Roland Barthes

O FANTÁSTICO CAMINHA PELO VALE DO REAL

Quando se trata do fantástico, há uma ideia comum errática de associá-lo ao ilógico, à fuga da razão e ao onírico. Tal presunção, de certa forma, prejudica sua análise, visto que o coloca em território de contraposição ao real. Apesar de o campo de estudo do fantástico ser consideravel-mente recente e ainda trazer muitas dissonâncias entre seus teóricos, há uma característica que se sobrepõe e perpassa praticamente todos os estudos sobre: o choque entre elementos sobrenaturais e reais no texto ficcional. Tal embate, na maioria dos casos, tem como objetivo causar a dúvida – ou como diria Todorov, a hesitação – no leitor sobre aquilo que ele está lendo. Dessa forma, em opo-sição à ideia comum aqui indicada, somos levados a concordar com David Roas (2014, p. 51): “O realismo se converte assim em uma necessidade estrutural de todo texto fantástico”.

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Lon-drina (UEL). E-mail: [email protected]

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Portanto, fica claro que o texto fantástico, mais que o texto ficcional em si, necessita firmar um pacto com o leitor para que tenha sucesso em seu objetivo. Não obstante, o pacto ficcional es-tabelecido entre o texto e o leitor do conto fantástico precisa, em um primeiro momento, de uma receptividade do leitor de que os acontecimentos que serão narrados realmente ocorreram. O leitor necessita estar preparado para todo tipo de inconsistência com relação à sua concepção de realida-de que poderá ocorrer. Até este ponto, o pacto ocorrido no texto fantástico não difere em nada do realizado em qualquer outro texto ficcional, mas é a quebra de expectativa que muda esse cenário.

O relato fantástico, ao apresentar ambientação e descrição completamente fiéis aos moldes do real já conhecido, “viola” o pacto estabelecido, muitas vezes pegando o leitor despreparado para aquela carga de real que é exposta. Ele, estranhado, espera a todo momento algo de insólito acontecer, busca dar razão à classificação da narrativa que está lendo. Mas quando isso acontece, é exposto a esse fenômeno de forma tão sutil – e novamente inesperada – que o leitor não sabe mais no que acreditar, não consegue se decidir entre o real que lhe foi apresentado de forma tão convincente e que ele já é acostumado e o sobrenatural, o qual, por mais chocante que possa ser, é exposto contendo frinchas, questões a serem resolvidas, parecendo incompleto. Assim, a narrativa fantástica se constrói a partir de uma dupla quebra de expectativa do leitor com o texto fantástico, a qual é proporcionada, principalmente, pela construção mais verossímil possível do real.

No entanto, o “efeito fantástico” não ocorre somente na relação entre o leitor e o texto, mas também no nível intradiegético. As personagens, na narrativa fantástica, também precisam ter essa percepção de real. Roas, no subcapítulo em sua obra A ameaça do fantástico destinado à questão do realismo nesse tipo de narrativa, corrobora essa visão evidenciada. Para ele, “depois de aceitar (pactuar) que estamos diante de um texto fantástico, ele deve ser o mais verossímil possível para alcançar seu correto efeito sobre o leitor (a ilusão do real que Barthes denominou efeito de realida-de)” (ROAS, 2014, p. 51). Aqui, encontra-se o ponto chave desta pesquisa. Tanto na referência ao texto “O efeito de real”, de Roland Barthes, publicado pela primeira vez em 1968, quanto na outra definição que o crítico espanhol tece, buscando equivaler a temática proposta por Barthes: “ilusão do real”.

Sobre a primeira questão, tratar-se-á mais a frente nesta mesma pesquisa, a fim de dar a de-vida importância à contribuição de Roland Barthes, mesmo que indiretamente, aos estudos sobre o fantástico. Já a segunda questão será demonstrada, primeiramente, por meio de um trecho da obra supracitada de Roas (2014, p. 51-52):

Diferentemente de um texto realista, quando nos deparamos com uma narrativa fantástica essa exigência de verossimilhança é dupla, uma vez que deve-mos aceitar – acreditar em – algo que o próprio narrador reconhece ou estabelece,

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como impossível. E isso se traduz em uma evidente vontade realista dos narra-dores fantásticos, que tentam fixar o narrador na realidade empírica de um modo mais explícito que os realistas.

Ao destacar tal efeito de realidade como uma ilusão do real, Roas consegue definir exa-tamente a importância do estudo de Barthes para a narrativa fantástica. A ilusão criada por meio daquele “efeito de real” se estabelece como fundamental a qualquer narrativa fantástica que cria a dúvida no leitor no campo da diegese. Isto posto, verifica-se a importância da verossimilhança para o texto fantástico, que é constituído, como afirmou Roas, por efeitos de realidade mais acentuados que dos próprios textos do período realista.

Destacada a importância do “efeito de real” para a construção do fantástico, busca-se de-limitar a linha a ser seguida nesta pesquisa a fim de não se “chover no molhado” com relação ao tema aqui tratado. Recentemente (Julho/2017), foi publicado um artigo indicando a indispensabi-lidade do “efeito de real” de Barthes para a narrativa fantástica (SOUSA; ASSIS, 2017). Mesmo que brevemente, o assunto foi tratado com felicidade, proporcionando muitas reflexões acerca do exposto e indicando aberturas de novas formas de pensar o efeito de real no campo dos estudos do fantástico. Apesar de acreditar-se que tal tema tenha fôlego para uma dissertação, quiçá uma tese, buscou-se aqui seguir uma linha paralela à apresentada por Sousa e Assis em seu artigo. Dando a importância devida ao texto “O efeito de real”, de Roland Barthes, imprescindível para o entendi-mento dos modos de funcionamento de um dos mecanismos do fantástico, far-se-á, neste estudo, a análise da contribuição de Roland Barthes sobre o assunto até aqui trabalhado por meio de seu texto “Análise textual de um conto de Edgar Poe”, publicado pela primeira vez em 1973. Sem mais delongas, passa-se ao cerne da teoria tão citada aqui.

A SIGNIFICAÇÃO DA INSIGNIFICÂNCIA

Barthes (2004, p. 181), ao indicar o barômetro de Flaubert e a porta de Michelet, está exibin-do os “detalhes ‘supérfluos’” relacionados à estrutura de um texto a partir de uma visão estrutural. No mesmo parágrafo, tais “detalhes” também são apresentados como “‘enchimentos’ (catálises), afetados de um valor funcional indireto”. Não obstante, Barthes, no parágrafo seguinte, trata dessas questões utilizando a expressão “pormenores ‘inúteis’” (2004, p. 182), o que é, claramente, uma ironia à suposta inutilidade desses detalhes. Por fim, nesta mesma linha de pensamento, o autor ainda indica essas “notações” do real como “escandalosas do ponto de vista da estrutura”, deixan-do claras as duas vertentes as quais estão sendo trabalhadas nesse primeiro momento de seu texto. Uma é estruturalista, corrente a qual o autor ajudou a fundar e dedicou grande parte de sua vida,

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notando tais detalhes como escandalosos e pormenores supérfluos. Mas também, e é essa visão que acompanhará o restante de seu estudo, o teórico francês faz uso das ideias do pós-estruturalismo, corrente à qual pertencia na época de publicação do referido texto.

É importante destacar essa trajetória tomada pelo escrito, visto que as duas correntes evi-denciadas diferem muito entre si e, como o próprio Barthes expõe, seria impossível para o pensa-mento estruturalista considerar tais “pormenores” como algo passível de análise. Assim, a visão pós-estruturalista acerca do assunto fica evidente no seguinte questionamento: “tudo, na narrativa, seria significante, e senão, se subsistem no sintagma narrativo alguns intervalos insignificantes, qual é, definitivamente, se assim se pode dizer, a significação dessa insignificância?” (BARTHES, 2004, p. 184).

Ao estabelecer a descrição como “externa” à estrutura geral da narrativa, Barthes declara o caráter daquela como somatório, não se envolvendo diretamente nos conflitos desencadeados por esta. Assim, busca-se refletir sobre o título desta seção e o trecho supracitado. Se considerarmos que, como apresentado, o texto fantástico necessita de elementos que suspendam o leitor na dúvida entre o real e o sobrenatural, ou que nos textos realistas de Flaubert e Michelet busca-se atestar a tentativa de representação do real, somos levados e entender o “efeito” que esse real destacado como pormenor provoca no texto literário. Ele destaca, de certa forma, a autoridade ali presente, a “significação da insignificância” está dada por meio de elementos que corroboram com a constru-ção de uma narrativa crível, verossímil aos olhos de um leitor, seja ele desconfiado ou não.

Barthes estipula duas vantagens provindas do que ele chama de “chassé-croisé”, uma mis-tura das injunções estéticas e referenciais na narrativa. A primeira alude à função estética, a dar sentido ao texto, considerando principalmente a descrição como essencial. A segunda interessa mais esta pesquisa: “por outra parte, colocando o referente como real, fingindo segui-lo de maneira escrava, a descrição realista evita deixar-se levar por uma atividade fantasística (precaução que se julgava necessária à ‘objetividade’ do relato)” (BARTHES, 2004, p. 187). Contrapondo o trecho destacado, somos levados a pensar que a narrativa fantástica – aquela que causa dúvida no leitor –, antes mesmo dos textos realistas a que Barthes faz menção, fez uso desses pormenores supérfluos para causar o efeito fantástico aqui já mencionado, principalmente por meio de contos publicados no início do século XIX por autores como E. T. A. Hoffmann, Prosper Mérimée, Théophile Gautier, Mary Shelley entre outros.

Destarte, encaminhando-se para um fechamento da análise do primeiro estudo de Barthes proposto, faz-se aqui relação, novamente, com o texto fantástico. Ao discutir sobre o “real concre-to” e os “resíduos irredutíveis da análise funcional” (2004, p. 187), o teórico francês expõe a apa-rição do real como forma de resistência à estrutura no texto ficcional, mas demonstra sua total im-

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portância na narrativa histórica: “o ‘real concreto’ torna-se justificativa suficiente do dizer” (2004, p. 188). Assim, fica claro que o discurso fantástico, como a narrativa histórica, faz uso desse “real concreto” e pressupõe que a mera representação do real – a descrição que tenta fazer referência à realidade de um leitor – se torna suficiente para que este acredite, seja momentaneamente, seja durante quase toda a narrativa, que aquele real representado é verossímil.

Por conseguinte, para ilustrar e finalizar esta parte da pesquisa, buscou-se entender que o real para Barthes, por mais irrepresentável que possa ser, ainda possui seus graus de aparição no texto literário, e é por meio do “efeito de real” que a realidade se torna demonstrável – não representável – ao leitor, permitindo que esse identifique-se com o texto e faça associações com elementos baseados em seu conhecimento de mundo. Tais ideias ficam claras nos parágrafos finais do texto de Barthes, dos quais reproduzimos um trecho:

A verdade dessa ilusão [referencial] é a seguinte: suprimido da enuncia-ção realista a título de significado de denotação, o “real” volta a ela a título de significado de conotação; no momento mesmo em que se julga denotarem tais detalhes diretamente o real, nada mais fazem, sem o dizer, do que significá-lo; o barômetro de Flaubert, a pequena porta de Michelet afinal não dizem mais do que o seguinte: somos o real; é a categoria do “real” (e não os seus conteúdos contin-gentes) que é então significada; noutras palavras, a própria carência do significado em proveito só do referente torna-se o significante mesmo do realismo: produz-se um efeito de real, fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a es-tética de todas as obras correntes da modernidade (BARTHES, 2004, p. 189-190).

A ILUSÃO FANTÁSTICA

Além de Roas (2014) considerar o sobrenatural como elemento desestabilizador do real, proporcionando o fantástico, há outros teóricos que seguem essa linha de pensamento e se apro-fundam ainda mais na importância do real para manutenção da dúvida criada entre o sobrenatural e seu contrário. É o caso de Filipe Furtado, que em sua obra A construção do fantástico na narrativa (1980) dedica um capítulo inteiro, intitulado “A falsidade verosímil”, para dissertar sobre a impor-tância desse real na narrativa fantástica e como ele é construído. Assim, para o crítico português, o fantástico está, a todo instante, falseando a imagem do real construída na narrativa. Tal questão fica evidente no seguinte trecho:

Pretendendo encenar a manifestação meta-natural irrompendo ou in-sinuando-se no quotidiano e tornar aceitáveis ambos esses elementos de facto antinómicos, o fantástico, mais do que qualquer outro género, procede por falsi-ficação, escamoteando ou alterando dados necessários à decisão do destinatário

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do enunciado e procurando induzi-lo a uma cognição tão vaga e insegura quanto possível (FURTADO, 1980, p. 44).

Destarte, esse destinatário do texto fantástico, para o teórico português, é conduzido “quase que pela mão” (1980, p. 44) pelo texto, a “quase aceitar” a subversão às leis daquele mundo que ele conhece. Tal processo, pensando na ideia de ilusão, assemelha-se a um truque de mágica. Enquanto o espectador – leia-se leitor – é distraído por “efeitos de real” que brincam com suas expectativas e estabelecem um mundo ao qual ele está acostumado, por trás dos bastidores, a outra mão manipula acontecimentos, de certa forma, invisíveis para o espectador, utilizando-se apenas de sugestões de algo extraordinário para manter sua atenção presa ao número. Assim ocorre no fantástico, como veremos no tópico seguinte referente à análise de Barthes de um conto de Edgar Allan Poe.

Furtado se destaca na análise do real principalmente por conta de um conceito fundado em sua obra já referida. Para o teórico português, os “efeitos de real” aqui destacados são representa-dos como um “recurso à autoridade”, conforme se pode notar no trecho a seguir:

Na sua maioria, os processos aqui envolvidos têm por base o que se pode denominar recurso à autoridade. Em grande número de casos, com efeito, a narra-tiva procura atestar a realidade objectiva daquilo que encena com dados fictícios ou manipulados, mas atribuindo-os a fontes vulgarmente consideradas de grande confiança e probidade. Para tal, socorre-se com frequência de diversos meios, sobretudo o testemunho de certas personagens caracterizadas pelo seu prestígio, o apoio confirmativo prestado por documentos de vária índole, a referência engana-dora a dados imaginários entretecidos com outros reconhecidamente verídicos ou, ainda, a distorção fraudulenta destes últimos (FURTADO, 1980, p. 54).

Da mesma forma que Furtado, Peter Penzoldt, em seu The supernatural in fiction, também destaca essa luta do leitor ao vacilar entre a ocorrência do sobrenatural e do real no texto fantástico:

Suspeitamos constantemente do autor. Enganar-nos é a sua função; sabe-mos que ele quer fazer-nos acreditar em coisas que estão em flagrante contradição com a nossa própria experiência da realidade. Estamos prontos a duvidar de todas as suas palavras. Ao longo do texto, a sua perícia e o nosso cepticismo lutam furiosamente... Se o autor puder incorporar na sua narrativa excertos de alguma “autoridade” respeitada, o nosso cepticismo diminui. Embora saibamos que tais excertos não lhes dão qualquer apoio real, impressiona encontrar as afirmações do autor aparentemente confirmadas por uma fonte tão digna de confiança (apud FURTADO, 1980, p. 54).

Ainda em sua obra, Furtado continua sua empreitada de definir os elementos que funcionam como recurso à autoridade no texto fantástico. O primeiro deles é evidenciado como a personagem,

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para ser considerada um “efeito de real” ou um recurso à autoridade, precisa ser acatada como respeitável na sociedade, seja naquela construída na diegese, seja na conhecida pelo leitor da obra em seu determinado tempo e espaço. Em grande parte das narrativas que fazem uso desse recurso, tais figuras são exibidas como médicos, advogados, professores de universidade. Em suma, pessoas que representam uma área do saber, principalmente científico.

Furtado (1980) considera outra forma de garantir o efeito de realidade a partir da atribuição de certa credibilidade a objetos, tais como documentos encontrados, um livro antigo entre outros. Nesse processo, Furtado (1980, p. 56) demonstra a possibilidade de abertura para “incrementar a sua plausibilidade, a narrativa fantástica também recorre amiúde ao que se pode denominar refe-rências factuais, alusões mais ou menos extensas e profundas a factos ou fenômenos do mundo empírico inteiramente comprováveis”. Ainda no campo dos processos de autoridade, o teórico português expõe como um deles as referências factuais, as quais se dividem em duas: 1) aconte-cimentos históricos ou fatos contemporâneos referentes à sociedade na qual a personagem ou o leitor estão inseridos. 2) dados científicos ou pseudocientíficos, também adequados à realidade da diegese ou do leitor.

Por fim, são expostos mais dois recursos comumente utilizados na narrativa fantástica. O primeiro evidenciado por Furtado é o testemunho de um narrador personagem, principalmente da-quele que se mostra cético perante os acontecimentos sobrenaturais, aplicando-se às mesmas regras trabalhadas na categoria de personagens já expostas aqui. Por conseguinte, o último recurso indi-cado por Furtado é a explicação racional de alguns recursos secundários que permeiam o discurso fantástico, causando a falsa impressão de realidade presente na narrativa.

Dessa forma, apesar de Filipe Furtado em nenhum momento citar o texto de Roland Bar-thes, fica clara a aproximação entre os recursos à autoridade explicitados pelo teórico português e os efeitos de real teorizados pelo crítico francês. De tal modo, mesmo separados geográfica e cronologicamente, os dois estudiosos, de certa forma, podem ser aproximados. Porém, não foram apenas Filipe Furtado e David Roas nos estudos do fantástico que trabalharam com o Real. Rosal-ba Campra, em sua obra Territórios da ficção fantástica, dedicou o capítulo intitulado “Em busca de provas” ao estudo do real nessa narrativa, porém, dando um enfoque aparentemente maior aos textos fantásticos do século XX.

O que Barthes chamou de “efeito de real” e Furtado de “recurso à autoridade”, Campra cha-ma de “formas de convalidação”. Para a escritora argentina, “o mundo do texto [fantástico] aparece assim como um reflexo minucioso, e ao mesmo tempo sutilmente deformado, dessa verdade que existe além do texto, no mundo em que o leitor lê seu livro” (CAMPRA, 2016, p. 78). Para ela,

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a convalidação do discurso fantástico deve ocorrer por meio dos mesmos elementos já elencados aqui. Apesar de mais breve que o capítulo de Roas e de Furtado, sua contribuição para os estudos do real no fantástico fica marcada, principalmente por aproximar o recorte escolhido por ela à lin-guagem. A escritora argentina prefere focar no campo do discurso, trabalhando com questões como “sucessão cronológica”, “testemunho”, “voz narrante”, entre outras. Poder-se-ia dizer que ela faz uma análise linguística do fantástico.

Todavia, o que fez com que os estudos de Campra aparecessem nesta pesquisa foi, princi-palmente – e diferente de Furtado –, a marca clara de que a autora fez uso dos conceitos de Roland Barthes para fundamentar sua pesquisa sobre o real na narrativa fantástica. Ao estabelecer a ideia de necessidade de transgressão que o fantástico tem e demonstrar que, geralmente, essa transgres-são é construída a partir de antinomias, como “sonho/vigília; vida/morte etc.”, há uma sobreposi-ção das condições em que a transgressão acontece sobre ela própria. Para a autora, tais condições, para o texto fantástico, precisam de mais atenção. A partir desse pensamento que a escritora argen-tina comenta sobre o estudo de Barthes:

Se em um texto ficcional se classificam as sequências segundo seu grau de funcionalidade ao desenvolver a ação, é possível identificar, como fez Barthes, uma categoria que, desde este ponto de vista, agrupa as sequências “supérfluas”. Trata-se de elementos de caráter essencialmente descritivo, que possuem um ob-jetivo estético ou ideológico, ou criam um “efeito de realidade” graças ao que re-metem – ou melhor, fingem remeter – ao universo extratextual (CAMPRA, 2016, p. 77-78).

Apesar de não retomar o importante estudo do ensaísta francês, Campra deixa claro ao lon-go de suas exposições teóricas que os procedimentos ali apresentados são, de certa forma, frutos do “efeito de real” de Barthes, principalmente quando trabalha com questões referentes à língua e ao narrado usando termos como “refúgio lexical” ou “variações nominativas”, os quais parecem remeter à abordagem linguística que Barthes faz em grande parte de seus estudos. Sendo assim, passemos à última parte desta pesquisa para verificar como Barthes, em sua análise do conto “A verdade sobre o caso do Sr. Valdemar”, de Edgar Allan Poe, aprofunda a questão dos efeitos de real no texto fantástico.

BARTHES E SEU INSÓLITO ENCONTRO COM O FANTÁSTICO

Ainda que seja um texto pouco conhecido de Roland Barthes, “Análise textual de um con-to de Edgar Poe”, publicado originalmente em 1973, mesmo não sendo objetivado para servir de

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aporte teórico acadêmico, como nos afirma o autor no próprio texto, possui certas contribuições que se encaixam muito bem na teoria da narrativa. Nesse texto, o ensaísta francês realiza o que ele define como “análise textual”, mesma investigação que o autor fez com a novela Sarrasine, de Balzac, e ficou perpetuada em sua insidiosa obra S/Z.

Conforme dito, na década de 1970 Barthes já estava em sua fase considerada pós-estrutura-lista, portanto, assim como no ensaio “O efeito de real”, nesta análise do conto de Poe o autor co-loca seus códigos de análise para trabalharem e realiza uma investigação minuciosa, passo a passo, de trechos específicos do conto de Edgar Allan Poe. Tal visão pós-estruturalista – e certo desprezo pela análise estruturalista – pode ser destacada no trecho a seguir: “O que fundamenta o texto não é uma estrutura interna, fechada, contabilizável, mas o desembocar do texto noutros textos, noutros códigos, noutros signos; o que faz o texto é o intertextual” (BARTHES, 2001, p. 307).

A justificativa de Barthes sobre a escolha da obra é a de que ele “precisava de um texto bem curto para poder dominar inteiramente a superfície significante (a sequência de lexias) e bem denso simbolicamente”. É claro que a seleção do conto foi muito bem pensada, principalmente sendo os contos de Poe tão densos em sua totalidade. Porém, a análise feita pelo ensaísta francês, se tentada em outros contos que sejam considerados pertencentes ao fantástico, poderia dar semelhantes re-sultados, visto que, como já exposto aqui, a narrativa fantástica precisa se revestir de camadas de significação para conseguir criar o “jogo de espelhos” – a ilusão – e causar a dúvida entre o real e o sobrenatural.

Barthes busca começar rapidamente a análise do conto por conta do pouco espaço que tem para desenvolvê-la. Assim, esse exame é iniciado pelo título da narrativa de Poe, no qual já encontramos um importante item para desencadear a análise do “efeito de real” do próprio autor, que se mostra como um elemento essencial forjado para destacar a plausibilidade do real no texto. Sobre o título, Barthes (2001, p. 310) nos coloca que “anunciar uma verdade é estipular que há um enigma [...] do artigo definido a (só existe uma verdade)”. Aqui, o ensaísta francês consegue ver um pequeno detalhe que agiganta a intenção do texto. Além de o relato que se seguirá ser tratado como uma verdade, o autor do texto coloca aquela como a única verdade, freando qualquer possí-vel interpretação dúbia logo antes de começar a narrativa.

Ainda na análise do título, Barthes se preocupa com outro “pormenor”, que irá contribuir, novamente, para uma construção do “efeito de real” na narrativa. Aqui fica clara a construção do recurso à autoridade por meio da personagem proposto por Furtado:

Dizer “sr. (senhor) Valdemar” não é a mesma coisa do que dizer “Valde-mar”. Em muitos contos, Poe usa simples prenomes (Ligeia, Eleonora, Morella). A presença deste senhor carrega um efeito de realidade social, de real histórico: o

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herói é socializado, faz parte de uma sociedade definida, na qual é dotado de um título civil (BARTHES, 2001, p. 311).

Ao trabalhar com seus códigos, Barthes consegue achar elementos da narrativa de Poe que, em um primeiro momento, parecem superficiais, mas que, quando analisados de perto, tornam-se um ponto de referência para o estabelecimento da verossimilhança necessária à literatura fantás-tica. Os mais importantes desses códigos, pensando em uma aproximação com as teorias do real supracitadas são: 1) o “código científico-deontológico”, pelo qual o autor analisa o uso de questões referentes à cientificidade para tornar aquela narrativa mais “real”; 2) “código-simbólico”, com o qual Barthes faz uso dos elementos simbólicos presentes no texto para “presentificar” certas cren-ças ou estabelecer uma ambientação que fuja do real, como a ideia de vida após a morte indicada no conto de Poe (BARTHES, 2001, p. 313). Os dois códigos trabalhados, mesmo sendo opostos, complementam-se para criar o efeito fantástico de dúvida no leitor. A dúvida que paira o conto de Poe logo no começo, como exposto implicitamente por Barthes é: em qual acreditar? Uma verdade estampada no título do texto que lê-se e é reafirmada por figuras de autoridade do campo científico ao longo da narrativa, ou a crença, mesmo que advinda de uma pseudociência, de que há vida após a morte e que essa “vida” pode se manifestar no mundo o qual até então o leitor considerava ser o seu próprio?

Se não bastasse a contribuição de Barthes para reafirmar e complementar aquilo que foi indicado em “O efeito de real”, o ensaísta francês vai além, mesmo que ele não tenha pensado so-bre, versando sobre o essencial à narrativa fantástica: a dúvida; a hesitação. Ao tratar das primeiras linhas da narrativa de Poe, Barthes aborda novamente o discurso científico, mas desta vez aprofun-dando esse elemento a partir da análise do termo “fato”:

Há que se dizer de imediato [...] que esses dois códigos são indecidíveis (não se pode escolher um contra o outro), e que essa indecibilidade mesma é que faz a boa narrativa. [...] A lei, a deontologia científica submete o cientista, o obser-vador ao fato; é um velho tema mítico a oposição entre o fato e o rumor; invocado numa ficção (e invocado de maneira enfática, por uma palavra em itálico), o fato tem por função estrutural (pois o alcance real deste artifício não engana ninguém) autenticar a história, não fazer acreditar que ela realmente tenha acontecido, mas manter o discurso do real, e não o da fábula. O fato é tomado então num paradig-ma em que se opõe à mistificação (BARTHES, 2001, p. 313-314).

Aqui estabelece-se uma nova expressão para tratar de elementos relacionados ao fantástico, como dito anteriormente. O termo “indecibilidade” resume muito bem a ideia de dúvida – da hesi-tação. Nesse trecho apresentado, está resumida a essência da análise feita por Barthes do conto de

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Edgar Allan Poe. Ao tratar de questões como “autenticar a história” e “manter o discurso do real” fica claro como o ensaísta francês, mesmo indiretamente, faz sua análise da narrativa de Poe a par-tir de uma perspectiva que até então era muito pouco abordada, visto que quase todos os teóricos indicados nesta pesquisa – com exceção de Peter Penzoldt – os quais versaram sobre a relação do real com o fantástico são contemporâneos à data de publicação dos dois ensaios de Barthes.

A análise do teórico francês se desenvolve por diversas páginas a partir do sistema de códi-gos definido por ele e que funciona muito bem para o tipo de estudo que foi proposto. Não obstante, é de extrema importância como a análise textual de Barthes (2001, p. 316) funciona para delimitar o “puro efeito de real” do texto, identificando os “pormenores supérfluos” comentados em seu en-saio analisado no início desta pesquisa. É importante também destacar a riqueza de possibilidades para se estudar o fantástico a partir da análise feita pelo ensaísta francês, visando duas questões principais: 1) A data de publicação de tal estudo permite-nos perceber que Barthes, mesmo se não tinha a intenção, delimitou um ferramental teórico muito importante para os estudos futuros do fan-tástico, de onde beberam, explicitamente, Rosalba Campra e David Roas e, muito provavelmente, mesmo que sem especificar, Filipe Furtado.

Apesar de não ser pioneiro no campo dos estudos do real, Barthes foi quem conseguiu apli-car as teorizações propostas em seu ensaio e abri-las de forma a fomentar uma análise que, a partir de seu sistema de códigos, inova a apreciação do texto fantástico proposta até aquele momento. É sabida a importância de Barthes em diversos campos do saber, principalmente das Letras. Mas, indo muito além, o teórico francês foi, de certa forma, precursor e fomentador de um dos campos mais importantes para análise do conto fantástico como concebemos hoje: “o efeito de real”.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Análise textual de um conto de Edgar Poe. In: ______. A Aventura Semiológica. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. O Efeito de Real. In: Literatura e Semiologia. Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1972.

CAMPRA, Rosalba. Territórios da ficção fantástica. Tradução de Flavia Pestana. Rio de Janeiro: Dialogarts Publicações, 2016.

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.

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ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. Tradução de Julián Fuks. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

SOUSA, Andressa Silva; ASSIS, Emanoel Cesar Pires de. “Efeito de real” versus sobrena-tural: um conflito necessário à construção da fantasticidade em Esfinge, de Coelho Neto. Revista de Letras Juçara, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 01, p. 144-161, Jul. 2017.