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1 A HERANÇA DA CULTURA POLÍTICA DO ANTIGO REGIME NO PARÁ PRÉ- REVOLUCIONÁRIO DO INÍCIO DO SÉCULO XIX MARCO TÚLIO FREIRE BAPTISTA RESUMO Esta pesquisa teve por objetivo verificar a herança da cultura política do Antigo Regime na província do Grão-Pará, a qual teria influenciado os diversos distúrbios internos ocorridos no início do século XIX. Pôde-se verificar a existência de poderes locais distintos e concorrentes, além de relacioná-los com a forma polissinodal e corporativa do Império português, bem como, verificar o funcionamento do sistema de economia de mercês como sustentáculo dessa estrutura de governo. Tendo se esgotado as possibilidades de alimentação desse sistema por parte da metrópole, diante da necessidade de uma crescente elite local, a província do Grão-Pará tendeu a não renovar seu pacto com o monarca português, iniciando uma crise de legitimidade de governo. Palavras-chaves: Grão-Pará, governo polissinodal, economia das mercês, crise de legitimidade de governo. Introdução A historiografia sobre a província do Grão-Pará, de uma forma geral, concorda que a década de 1820 deu início a um novo período na história do Pará, inaugurando um período de instabilidade, com diversas convulsões internas e um estado de atrito crescente com os governos locais que desembocara na Cabanagem, a maior revolta armada da região Norte. Este grande conjunto de acontecimentos estão intimamente ligados às mudanças e permanências do período anterior. Mais propriamente, o choque entre certas heranças da cultura política do Antigo Regime e mudanças impostas pelo dinamismo político, cultural e comercial do início do século XIX. Em uma comparação entre os séculos XVIII e XIX na capitania do Grão-Pará, pode-se ter a impressão de um grande contraste entre a ordem do Antigo Regime absolutista e as frequentes convulsões internas que assolaram o Pará sob uma égide da difusão do liberalismo, após a Revolução do Porto. A historiografia reconhece o intenso período de perturbações sociais entre o início da década de 1820 e o fim da década de1830

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A HERANÇA DA CULTURA POLÍTICA DO ANTIGO REGIME NO PARÁ PRÉ-

REVOLUCIONÁRIO DO INÍCIO DO SÉCULO XIX

MARCO TÚLIO FREIRE BAPTISTA

RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo verificar a herança da cultura política do Antigo Regime

na província do Grão-Pará, a qual teria influenciado os diversos distúrbios internos

ocorridos no início do século XIX. Pôde-se verificar a existência de poderes locais

distintos e concorrentes, além de relacioná-los com a forma polissinodal e corporativa do

Império português, bem como, verificar o funcionamento do sistema de economia de

mercês como sustentáculo dessa estrutura de governo. Tendo se esgotado as

possibilidades de alimentação desse sistema por parte da metrópole, diante da necessidade

de uma crescente elite local, a província do Grão-Pará tendeu a não renovar seu pacto

com o monarca português, iniciando uma crise de legitimidade de governo.

Palavras-chaves: Grão-Pará, governo polissinodal, economia das mercês, crise de

legitimidade de governo.

Introdução

A historiografia sobre a província do Grão-Pará, de uma forma geral, concorda

que a década de 1820 deu início a um novo período na história do Pará, inaugurando um

período de instabilidade, com diversas convulsões internas e um estado de atrito crescente

com os governos locais que desembocara na Cabanagem, a maior revolta armada da

região Norte.

Este grande conjunto de acontecimentos estão intimamente ligados às mudanças

e permanências do período anterior. Mais propriamente, o choque entre certas heranças

da cultura política do Antigo Regime e mudanças impostas pelo dinamismo político,

cultural e comercial do início do século XIX.

Em uma comparação entre os séculos XVIII e XIX na capitania do Grão-Pará,

pode-se ter a impressão de um grande contraste entre a ordem do Antigo Regime

absolutista e as frequentes convulsões internas que assolaram o Pará sob uma égide da

difusão do liberalismo, após a Revolução do Porto. A historiografia reconhece o intenso

período de perturbações sociais entre o início da década de 1820 e o fim da década de1830

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(HURLEY, 1938; DIPAOLO, 1990). No entanto, fora escaramuças de resgates de índios

e atritos de fronteiras com estrangeiros, nenhum conflito armado fora registrado nos dois

séculos anteriores. Como a ordem que imperava nos domínios portugueses da Amazônia

teria se transformado num barril de pólvora em tão pouco tempo?

Para início de análise, talvez seja necessário supor que a ordem e tranquilidade em

que se deitava o Antigo Regime na capitania do Grão-Pará não era exatamente como

aparentava. Na verdade, se era possível imaginar ordem e perfeita harmonia, com respeito

às diferentes jurisdições e a inexistência de conflitos, uma breve verificação na

correspondência do final do século XVIII já é o suficiente para nublar tais pensamentos.

Um primeiro passo seria questionar quais eram os poderes presentes localmente e seus

respectivos graus de autonomia. Cañeque ao tratar de cultura vice-régia no México, alerta

para os diversos conflitos de jurisdição entre os poderes seculares e religiosos, além do

fato de que a própria Igreja não era um bloco monolítico e os conflitos existiam dentro de

sua própria jurisdição. Da mesma forma que a Espanha, a monarquia portuguesa, através

do Padroado, tinha o rei como cabeça secular da cristandade na colônia, portanto não

deveria haver o que se pensar em termos de atritos entre o Estado e a Igreja. No entanto,

alerta Cañeque que este reducionismo mascara as complicadas relações sociais na colônia

(CAÑEQUE, 2001; 22). Esta sugestão também pode ser verdadeira para a outra

monarquia ibérica, a Portuguesa. Nesta trilha, pode-se supor que conflitos e choques de

jurisdição entre autoridades locais geraram reclamações aos estágios superiores da

administração e podem ser identificados. Para que se tenha um ponto de partida, escolheu-

se colocar em foco a principal autoridade religiosa na capitania do Grão-Pará no final do

século XVIII, o bispo, revelando-se o seu relacionamento com as demais autoridades.

O Bispado e as diferentes forças política

O sétimo bispo do Pará, presbítero secular indicado por D. Maria I (e nomeado

por Bula Pontifical de Pio VI), Dom Manuel de Almeida de Carvalho, nascido na vila de

Viseu em Portugal e doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra, chegou à Belém

em junho de 1794 (PINTO, 1906; 139). Em fins do ano seguinte, desembarcou naquela

capitania o padre Antônio Ferreira Ribeiro com Carta Real, de D. João, Príncipe Regente,

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nomeando-o arcipreste da Sé de Belém. Não sendo do agrado do bispo, ele procurou

embaraçar-lhe a posse a todo custo. Só desistiu depois que o padre entrou com uma

petição junto ao Procurador da Coroa, a fim de que fosse garantindo seu direito. O atrito

não pararia nesse episódio. Na Visita Episcopal realizada em janeiro de 1796, o

eclesiástico Antônio Ferreira foi vivamente admoestado e colocado sob prisão no

Convento de Santo Antônio. À suposta agressão sofrida, de injúria e prisão, o padre

Antônio Ferreira recorreu ao Procurador da Coroa, peticionando um agravo (AHU, doc.

8475). Para este caso, é interessante notar que o Alvará de 18 de janeiro de 1765 mandou

autorizar a Junta da Coroa no Pará julgar os recursos que qualquer vassalo interpusesse

contra violência e abuso do juízo eclesiástico. Para receber esta petição de agravo deveria

o recorrente comprovar a opressão ou violência com documento de sentença definitiva

ou interlocutória proferida com manifesta nulidade. Como era essa a doutrina dos

publicistas da época, o relator e presidente daquela Junta não deveria receber petição de

agravo sem prova suficiente. De fato, o agravo foi rejeitado, no entanto, com a

substituição dos dois magistrados, o referido tribunal passou a ser o principal algoz do

bispo Dom Manuel de Almeida, numa clara disputa de poderes (PINTO, 1906; 141-142).

Este episódio evidencia dois conflitos de autoridades, um interno e outro externo à Igreja.

O mal-estar entre o eclesiástico e as instituições locais fica evidente quando da

correspondência de 13 de julho de 1795 para o secretário de Estado interino da Marinha

e Ultramar e Negócios Estrangeiros e Guerra, Luis Pinto de Sousa Coutinho, o bispo dá

notícias sobre o cumprimento do aviso de 9 de julho, procurando demonstrar um

alinhamento com o governador e capitão general da capitania do Grão-Pará e Rio Negro,

D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, contra o que chamou de absurdos da

irmandade da Misericórdia e Câmara Municipal (AHU, doc. 8338 ) .

A rivalidade e conflitos de autoridades no Pará podiam ser mais acintosos como

visto no ofício, de 27 de outubro de 1801, em que o bispo adverte o secretário de Estado

da Marinha e Ultramar, D. João Rodrigues de Sá e Melo, de que foi comunicado por meio

de uma carta da Junta da Coroa que o Ouvidor, juntamente com o padre Trovão, estavam

tentando desacreditá-lo perante aquela autoridade (AHU, doc. 9263). Do outro lado,

pode-se observar a reação do governador e capitão general D. Francisco Maurício de

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Sousa Coutinho, em ofício também para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar,

informa sobre as medidas tomadas contra o despotismo do bispo do Pará (AHU, doc.

9273).

Com apenas alguns exemplos verifica-se que o Bispado do Pará, de certa forma,

media forças com o governador e capitão general da capitania, bem como Câmara

Municipal, Ouvidor e Junta da Coroa. Apresentavam-se, assim, como forças distintas e

concorrentes que iam muito além do dualismo entre poder laico e religioso. De igual

maneira, o representante do Episcopado pouco se ligava com o clero local e levava às

últimas consequências a sua missão de vigilância pastoral. Para tais antagonismos, deve-

se ter em mente que na segunda metade do século XVIII, as medidas do Consulado

Pombalino enfraqueceram o poder religioso em todas as dimensões, reduzindo-lhe as

possibilidades de confronto direto com os demais poderes na capitania.

Neste jogo de oposições, além dos choques de instituições como o Bispado, a

irmandade da Santa Casa de Misericórdia e a Câmara Municipal e o Procurador da Coroa,

o Ouvidor surgia com poder tanto de mediar o embate entre as demais forças políticas,

como também poderia se alinhar a qualquer uma delas, dependendo da conveniência. Esta

composição de poderes locais corrobora o posicionamento de João Fragoso, ao defender

a ideia de monarquia pluricontinental portuguesa, na qual a arquitetura política era

polissinodal e corporativa (FRAGOSO, 2017; 52).

Refinando essa pequena digressão, podemos observar que existia na virada do

século XVIII para o século XIX distintas autoridades locais que absorviam boa parte do

poder do distante monarca. Começando pelo governador e capitão general, nomeado

diretamente pelo rei para administração civil e militar da capitania. Ele espelharia a

soberania do rei na capitania, porém a distância transatlântica poderia fazer com que o

povo o não reconhecesse como tal. De um outro lado, representando o poder religioso do

rei, ou o espelho do padroado, estava o bispo. Embora os poderes temporais e religiosos

tenham essências diferentes e não poderiam se confundir, na prática, tratava-se de poderes

concorrentes em um mesmo nível. Visto que o bispo era nomeado por bula papal, mas

depois de indicado pelo rei, o que, para todos os efeitos, equivale a ser nomeado pelo

próprio rei. Limitando o poder religioso estava o Procurador da Coroa. Normalmente dois

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juízes a quem cabiam os recursos das decisões religiosas. O Procurador da Coroa servia

de freio aos abusos dos bispos, no entanto era outra fonte de disputas e rivalidades. Outro

poder concorrendo na capitania era o das Câmaras Municipais e irmandades beneficentes,

notadamente a Santa Casa de Misericórdia. Esses poderes políticos representavam a

grande maioria da elite local e eram esteios significativos do poder do império português,

visto que os demais, principalmente os governadores e capitães generais e capitães-mores

eram substituídos com muita frequência. A Câmara detinha poderes especiais,

comunicando-se diretamente com o rei. Assim, concorria em pé de igualdade com o

governador e o bispo. No entanto, representava os interesses da elite local, em detrimento

aos do Reino. Por fim, representando a justiça do rei estava na capitania os Ouvidores.

Bastiões legais do direito positivo, garantiam o cumprimento, uniformização e hegemonia

das leis, da mesma forma que na metrópole.

Sem abandonar essa ideia de pluralidade de poderes nos domínios amazônicos de

Portugal, ressalta-se os poderes eminentemente locais, representados pela Câmara e a

Casa da Misericórdia.

As Câmaras Municipais e a irmandade da Misericórdia

Num trabalho pioneiro, Charles Boxer apontou a instituição da Câmara Municipal

e Santa Casa da Misericórdia como pilares da administração colonial portuguesa

presentes desde o Maranhão até Macau. Elas eram compostas por estratos sociais

idênticos e compunham a elite colonial. Assim, mesmo encontrando diferentes condições

sociais na Ásia, África e América, os portugueses obtiveram relativo sucesso em

transplantar as instituições metropolitanas para as colônias. Esse sistema de governo

municipal foi estabelecido na sua forma definitiva em 1504, permanecendo até 1822 sem

alterações significativas (BOXER, 2011; 367).

Os componentes das câmaras eram chamados oficiais da câmara, sendo de dois a

seis vereadores, dois juízes ordinários (magistrados ou de paz) e um procurador. Todos

eram não-assalariados e tinha direito de voto nas deliberações. Havia também os oficiais

subordinados, como escrivão, tesoureiro, Almotacéis (inspetores de mercado), juízes dos

órfãos, alferes (porta-bandeira), porteiro, arquivista e carcereiro. A eleição era feita por

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um sistema complicado de listas tríplices e trienais, confeccionadas por seis

representantes eleitos para este fim (homens-bons). O Juiz da Coroa fazia o escrutínio

para verificação das ligações de parentescos ou econômicas entre os possíveis eleitos. A

escolha era feita por sorteio na véspera do Ano Novo (BOXER, 2011, 368).

Algumas câmaras podiam contar com representação das classes trabalhadoras

(corporações). As funções eram as mais variadas: administração das terras comunais;

estabelecimento de taxas municipais e preços; verificação da qualidade dos produtos;

distribuição de licenças; manutenção de estradas, pontes, fontes, cadeias; estabelecimento

de pesos e medidas; atuava como tribunal de 1ª instância; era responsável pela

alimentação e vestuário das guarnições e manutenção das fortalezas, etc. (BOXER, 2011;

369). Portanto, as Câmaras Municipais regulavam e administravam todas as principais

instâncias da vida na capitania com uma autonomia evidentemente necessária, visto que

a distância para a Corte e o tempo necessário para obter respostas poderiam simplesmente

impossibilitar diversas ações administrativas. Assim, também, o acréscimo de autonomia

se dava com as necessidades e características de cada localidade.

Segundo Fernanda Bicalho, cada Câmara (reinol ou ultramarina) tinha uma

configuração própria e um equilíbrio historicamente tecido ao longo do tempo e das

diferentes conjunturas econômicas, sociais e políticas no amplo espaço geográfico da

monarquia portuguesa no Antigo Regime (BICALHO, 2001; 193).

Muito cedo a Coroa percebeu esse incremento de autonomia e sentiu necessidade

de melhor controlar, estabelecendo o cargo de juiz de fora em diversas localidades, sendo

mais profícuos a partir de fins do séc. XVII e início do XVIII. Eles muitas vezes foram

considerados pela historiografia como indício de declínio da municipalidade. No entanto,

seu papel político e administrativos é normalmente subvalorizado. Sua participação na

vida política e administrativa da colônia permitiu um melhor enquadramento político-

administrativo dos municípios. Tratava-se de juízes letrados, o que permitiu uma

hegemonização dos parâmetros jurídico-administrativos veiculados pelo poder central

(BICALHO, 2001; 200).

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O Senado da Câmara, como era conhecido o conjunto em exercício dos cargos se

correspondiam diretamente com o monarca, um privilégio invejável e que expunha sua

grande força política (BOXER, 2011; 270).

Ainda com a intenção de diminuir o poder acumulado pelas municipalidades, a

partir da segunda metade do século XVI, a Coroa passou a escolher, pela lista tríplice, os

seus representantes nas principais províncias. Mesmo assim, durante o século XVIII,

muitas Câmaras assumiram características oligárquicas. Muito do acréscimo de

autonomia era favorecido pelo constante isolamento e pela difícil comunicação com

Lisboa, possibilitando descumprir normas de conduta estabelecidas, sem, no entanto,

sofrerem severas sanções. Na interpretação de Charles Boxer, as Câmaras não eram meros

vassalos acríticos perante os funcionários superiores do governo, vice-reis ou juízes

supremos. Tais afirmações se dava por conta do pesquisador ter encontrado

documentação em que algumas Câmaras protestavam expressamente contra Decretos e

Decisões Régias. Elas conseguiram acumular um grande poder e permaneceram assim até

1822, quando, por decreto, passaram a ter funções unicamente administrativas, exceto

Macau que manteve seus poderes até 1833. No Brasil Imperial a perda de autoridade das

Câmaras Municipais se deu entre 1828-1834, com a Lei das Câmaras e o Ato Institucional

(BOXER, 2011; 278).

Segundo João Fragoso, “o poder local tinha sua maior expressão nas Câmaras

Municipais, mas também reunia as corporações que agiam no âmbito da república/

localidade, como as irmandades, ordens terceiras, agremiações de comerciantes, grupos

de lavradores, etc.” (FRAGOSO, 2017; 59).

Atentando-se para a capitania do Pará é fácil perceber que a Câmara Municipal de

Belém possuía poderes extremamente alargados desde os momentos mais remotos da

administração colonial. Veja-se, por exemplo, a representação ao rei D. João IV dos

oficiais da Câmara da cidade de Belém em 1643, cujo teor era uma queixa, remetendo

capítulos e provas contra o capitão-mor do Pará Pedro Maciel Parente e João Velho do

Vale (AHU, doc. 47). Da mesma forma, o Provincial das Missões do Pará enviou

requerimento ao rei solicitando que fosse cumprida a legislação contra a escravização dos

índios, quebrada pelos capitães do Estado do Maranhão, com o apoio do governador

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daquele Estado, Bento Maciel Parente (AHU, doc. 46). O Conselho Ultramarino não

perdeu tempo em levar tal queixa ao conhecimento do rei. Já em 4 de maio de 1644, o

mesmo Conselho emitiu seu parecer sobre as queixas dos oficiais da Câmara da cidade

de Belém do Pará, contra o governador do Maranhão, Bento Maciel Parente, e contra o

capitão da dita cidade, Pedro Maciel Parente (AHU, doc. 49). O acesso direto ao rei,

sempre fez da Câmara Municipal um agente político poderoso. Em novembro de 1685,

seus oficiais representaram diretamente ao rei D. Pedro II, informando sobre o que

julgavam abusos e opressões dos padres da Companha de Jesus para com os moradores e

os oficiais da Câmara da cidade do Maranhão, acerca do exercício do poder temporal na

distribuição dos índios (AHU, doc. 253). A força política da municipalidade não podia

ser desprezada nem pelo governador e capitão general, como pode ser percebido pela

carta enviada pelos oficiais da Câmara de Belém em julho de 1692, na qual consta a

informação para o rei D. Pedro II sobre o bom governo de Antônio de Albuquerque

Coelho de Carvalho e a solicitação da prorrogação de seu governo por mais seis anos

(AHU, doc. 305). Sem querer dar muito crédito à intromissão da Câmara de Belém,

cumpre lembrar que o governo de Antônio Albuquerque perdurou até 1701 (BAENA,

1969; 122). A importância da Câmara também se revela na imiscuição quanto à outros

cargos de nomeação régia, como foi a solicitação em 1711 para que os Ouvidores-Gerais

nomeados pela Coroa já possuíssem alguma experiência no exercício do cargo, além de

que pediam para que sua nomeação fosse de, no mínimo, três anos (AHU, doc. 471).

Da mesma forma, essa interferência também podia se revelar por questionamento

de própria legislação. Em agosto de 1722, o Senado de Belém apontava ao rei D. João V

a escassez de mão de obra na capitania e a premente necessidade dos moradores de

recorrerem ao cativeiro indígena, mesmo contrariando a Ordens Régias (AHU, doc. 618).

É verdade que desde o início do século XVII as determinações reais quanto à liberdade

dos indígenas vinham sendo flexibilizadas na capitania, no entanto, a Câmara Municipal

desempenhou importante papel de mediadora nos conflitos entre religiosos, colonos e o

próprio interesse da Coroa, no que diz respeito ao cativeiro indígena. Por outras ocasiões,

também contestou taxações de produtos da terra, como o cacau, considerada em 1730

excessiva em comunicação ao rei D. João V (AHU, doc. 1149). O poder político da

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Câmara Municipal ao nível de confronto com outros poderes oriundos da metrópole e

nomeado pelo próprio rei não foi uma exclusividade do século XVIII ou anterior. Em

janeiro de 1807, o Conselho Ultramarino enviou uma consulta ao Príncipe Regente sobre

uma representação do Senado da Câmara da cidade do Belém, relativa às queixas

apresentadas contra o ex-governador e capitão general do Estado do Grão-Pará e Rio

Negro, D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho (AHU, doc. 10568).

A constatação da existência de poderes políticos locais, formando uma elite nos

domínios portugueses fora da metrópole, demonstra uma grande parcela de

descentralização do império português, porém, isso não significa uma desagregação do

sistema político ou mesmo um caos como alguns historiadores pensaram em caracterizar.

Na verdade, o sistema absolutista português, da mesma forma que Cañeque identificou

para a Espanha, era compatível com uma extensa autonomia de outros poderes políticos.

Estes outros poderes, se por um lado desenvolviam grande autonomia, por outro se

mantinham ligados por fortes laços de vassalagem e submissão à Coroa graças a um

sistema de trocas que pode ser denominado economia da graça. Um esquema de benefício

que gerava uma dívida de gratidão com o monarca e, por sua vez, garantia e compensava

a fragilidade da Coroa (CAÑEQUE, 2001; 38-39). A economia da graça estava em

consonância com a cultura e doutrina política da época e tinha seu maior fundamento na

chamada justiça distributiva.

A justiça distributiva

Recúpero aponta o entendimento de justiça mais correntes dos publicistas

portugueses, ou seja, “a justiça consiste principalmente em galardoar bons e castigar

maus”, já definido em Imagem da Vida Cristã, de frei Heitor Pinto, publicado em 1563.

Tais pensamentos são recorrentes de temas gregos e romanos ou mesmo das Sagradas

Escrituras (RECÚPERO, 2009; 33). Padre Antônio Vieira lembrava em 1640 que além

daquela parte da justiça que, com rigores, castigava e limpava os vícios, também era

necessária a justiça distributiva, portanto, premiar àqueles que por seus bons feitos

mereciam (CAÑEQUE, 2001; 34).

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Em contrapartida, a liberalidade, ou seja, a faculdade de dar, era considerada, na

cultura política do Antigo Regime, uma virtude inerente aos reis, tanto em Portugal,

quanto em qualquer parte da Europa Ocidental (OLIVAL, 2001; 15). Se por um lado, é

possível reter a imagem medieval de extrema fidelidade de um vassalo por seu senhor,

capaz de resistir às mais duras provas e vicissitudes por uma questão de honrar a palavra

empenhada; na Idade Moderna, a fidelidade, segundo a cultura política, deveria ser

compensada na mesma medida em que era empenhada. Assim, os reis, como expressões

máximas inspiradoras de fidelidade e lealdade, também se tornavam as expressões

máximas de liberalidade, ou seja, àquele que detém a virtude de dar todas as graças

sonhadas pelos vassalos de uma monarquia.

Fernanda Olival, na sua marcante obra, As Ordens Militares e o Estado Moderno;

honras, mercês e venalidade em Portugal (1641-1789), cita Damião Antônio de Lemos

Faria e Castro que, em 1749, iniciou uma série de publicações destinadas à educação

política dos jovens e, portanto, iniciava com as principais virtudes políticas: a justiça, a

prudência, a fortaleza, a temperança e a liberalidade, as quais, segundo ele, deveriam ser

consideradas os alicerces da instrução de um príncipe e de um político (OLIVAL, 2001;

15-16).

Estes princípios não eram uma exclusividade portuguesa, mas uma forte marca da

cultura política ibérica. Tal reflexo se pode observar na colônia espanhola de Nueva

Espanha (México), quando os vice-reis eram empossados com toda a pompa e

circunstância na capital, onde era construído um arco do triunfo, por onde deveria passar

o vice-rei. Nesse arco encontrava-se inscrito, em termo chaves, toda a teoria do poder da

época: religião, justiça, prudência e liberalidade (CAÑEQUE, 2001; 20). Dessa forma, a

liberalidade era lembrada a todos àqueles que detinham o poder em nome do monarca e

seus representantes, visto que a justiça distributiva (de graças) não era apenas uma

competência do monarca, mas também, de seus representantes, formando uma rede de

poder trabalhando no sentido de manter unida a monarquia em nome de um único

soberano.

Ainda segundo Olival, nos séculos XVII e XVIII, um dos pontos de maior

insistência nas doutrinas políticas estava relacionado com os efeitos da liberalidade, ou,

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ainda, da falta desta. Nesse último caso, “não dar” era um risco muito grande para a Coroa,

pois cativaria o ódio e a falta de apoio dos seus súditos num momento muito próximo.

Diogo Guerreiro Camacho de Aboim (1663-1709) ensinou que negar o prêmio do suor

dos súditos era o equivalente a destruir o desejo de lutar pela monarquia e que os príncipes

conseguiam por força da liberalidade, aquilo que a força e as armas não podiam conseguir

(OLIVAL, 2001; 17).

A justiça distributiva, conforme apresentada no discurso político era objeto de

grande atenção pela sociedade. O bispo Sebastião César de Meneses (†1672) considerava

a justiça distributiva mais importante do que qualquer outra, pois quando não era

respeitada, praticava-se uma ofensa a todos os beneméritos. E, portanto, alertava que há

grande diferença entre um ofendido queixoso e muitos queixosos beneméritos, o que

poderia ser fatal e levar à revolução (OLIVAL, 2001; 21).

Entra-se, assim, num raciocínio de contrato ou pacto entre monarca e vassalos. O

“dar”, de forma alguma significaria caridade do soberano, mas, pelo contrário, pagamento

por sua lealdade e fidelidade, que se traduziam em trabalhos realizados em prol da

monarquia, ou mais especificamente, em prol do governo do monarca. Sendo o monarca

a fonte primeira das possíveis graças, a ele também eram dirigidos os trabalhos e serviços

que seus vassalos podiam fazer. E o faziam em troca da devida recompensa. Nesse ponto,

parece interessante verificar os tipos de recompensas que eram pleiteadas pelos vassalos.

As recompensas

As recompensas envolvidas na chamada liberalidade real abarcavam uma grande

gama de serviços prestados pelos vassalos, desde os mais humildes aos mais nobres e

caros serviços que um monarca poderia esperar de um leal súdito. No Arquivo Histórico

Ultramarino foi possível identificar 506 pedidos de mercês em retribuição aos serviços

prestados na capitania do Grão-Pará e Maranhão (Maranhão e Grão-Pará até 1752). As

informações foram tabuladas segundo às solicitações e não quanto as concessões, já que

estas informações nem sempre estavam disponíveis no citado arquivo.

Com estes dados foi possível distinguir e classificar as mercês consideradas como

pagamento adequado para os serviços realizados na capitania, nos seguintes grupos:

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hábito de Ordens Militares, ofícios público civis, ofícios públicos militares, tenças ou

pensões e outras (baixa do serviço militar, administração de índios, etc.).

Em todo o período analisado (1635-1833) observou-se três pedidos de mercês que

certamente destoam de todos os demais domínios portugueses, eram pedidos para

administrar índios. Tais solicitações entraram como usufruto do trabalho indígena para a

economia privada do requerente, por isso ser considerada como uma mercê em pagamento

aos serviços prestados. Em 1635, Bento Maciel Parente, veterano no Nordeste e

desbravador do Pará que lutou contra aos neerlandeses e franceses, estando como

governador do presídio do Cabo de Santo Agostinho, requereu a Filipe III, como

pagamento por seus serviços no Estado do Brasil e do Maranhão, a mercê de poder

administrar mil casais de índios da província dos guajajaras, para trabalharem nos

engenhos do Maranhão e, ainda, a mercê de administrar outros dois mil casais de índios

da província Pacajés, Reguape e Gurupá na capitania do Pará (AHU, doc. 37). Tais tipos

de pedidos desapareceriam nos séculos posteriores, visto que escravizar índios passara a

ser ilegal, portanto, não poderia ser concedido pela Coroa como graça ou mercê.

Durante todo o período, o maior número de pedidos de mercês girava em torno de

ofícios públicos, principalmente de natureza militar. A maioria tratava de postos de

comando militar que iam desde companhias de infantaria e comandos de fortes até o posto

de capitão-mor da capitania (pedidos de patentes militares). No entanto, havia também

eventuais pedidos de reformas com soldo vitalício, tudo por conta dos serviços já

prestados por si ou por algum parente. Dos ofícios públicos de caráter civil estavam os

relacionados com a provedoria da Fazenda Real e cargos menores de escrivão e

almoxarife. No rol das mercês pouco usuais estava também a dispensa do serviço militar

que aparece nas primeiras décadas do século XVIII. Essas pedidos de mercês eram feitos

por uma autoridade em prol de um parente que estava sendo obrigado a prestar o serviço

militar, mas que, no entanto, tinha oportunidade de estudar e galgar cargos de maior

relevância. Assim, ocorreu que o governador e capitão general do Estado do Maranhão,

João da Maia da Gama, interveio em carta ao rei D. João V, em setembro de 1726,

informando da impossibilidade de Manuel de Sousa prosseguir nos estudos de gramática

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devido ter sido destacado para o posto de soldado de uma Companhia no Pará, solicitando,

assim, a mercê de baixa desse serviço (AHU, doc. 840).

Nesse levantamento, de um total de 506 pedido de mercês, 48 tratavam de hábitos

de Ordens Militares, sendo preferenciais a Ordem de Cristo, secundada pela de São Bento

de Avis. No entanto, tais pedidos não se distribuem uniformemente no período, pois só

houve seis pedidos até a metade do século XVIII. A grande concentração destes pedidos

está localizada na segunda metade do século XVIII.

Gráfico – Pedidos de mercês, por tipo, na capitania do Grão-Pará (1635-1822)

Fonte: dados retirados do Arquivo Histórico Ultramarino

Entre 1736 e 1760 o aumento de pedidos de cargos militares contrasta com a menor

disponibilidade no período seguinte, 1761 a 1785. No entanto, foi parcialmente

compensada com o considerável aumento nos pedidos de hábitos das Ordens Militares.

Este período de meio século foi um período de efervescência do Antigo Regime

ibérico. Desde a segunda metade do século XVIII, contra os perigos das ideias

revolucionárias liberais que assolava as monarquias europeias, Portugal respondia com

um projeto reformista que visava a preservação do ameaçado Estado monárquico

absolutista. Num cenário de crise econômica em que Portugal estava em completa

dependência de suas colônias, o sistema de exploração dos domínios portugueses passava

a ser algo de muitas críticas. Dessa maneira, os reformistas ilustrados, como o marquês

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de Pombal (1750-1777), tinham como meta o fortalecimento do Estado monárquico

absolutista, baseado no princípio da unidade luso-brasileira (LYRA, 2000; 9-10). No

Pará, o próprio irmão do Marquês de Pombal, governou a capitania de 1751 a 1759.

Francisco Xavier de Mendonça Furtado chegou ao Pará com a clara atribuição de

reorganizar a administração das conquistas do Norte e com instruções claras de

estabelecer-se em Belém, como cabeça da capitania (SANTOS, 2011; 35). Estas novas

luzes reconfiguraram todos os domínios portugueses no sentido de centralização do

regime. E para uma monarquia “absolutista” que vinha se abrindo a muitas

descentralizações, alguma coisa tinha que ser dado em troca da fidelidade. Afinal de

contas, após adquirir certa liberdade e autonomia, os poderes locais precisavam ser

compensados de alguma forma para além dos ofícios públicos. Assim, pode-se imaginar,

sem grande margem de erro, que a economia das mercês se fazia mais necessária do que

nunca em tal período e os vassalos pareciam saber muito bem disso.

Acresce que a virada do século XVIII para o XIX foi um momento de

prosperidade para as elites comerciais paraenses, conforme pode ser notado pelas

informações registradas na Junta de Comércio. Nesse período a balança comercial entre

a capitania do Grão-Pará e Portugal era bastante favorável à capitania, em prejuízo da

metrópole (BARATA, 1973; 300-307). A esta elite comercial pouco importava os cargos

públicos, pois tinham suas próprias fontes de renda. Assim, o bem intangível das mercês

honorificas, os hábitos das ordens militares, garantindo-lhes status e nobreza, eram mais

adequados. Porém, a incapacidade de Portugal em suprir a crescente elite local de mercês

se intensificariam após o deslocamento da Família Real para o Rio de Janeiro. Dessa

maneira, o polo irradiador de mercês já não era Portugal, mas o próprio domínio do Brasil.

No levantamento de pedidos de mercês realizado para essa pesquisa não foi encontrado

no Arquivo Histórico Ultramarino nenhum pedido de hábito de Ordens Militares entre

1809 e 1822, logicamente por estarem sendo direcionados para o Rio de Janeiro. Durante

a permanência do rei no Brasil e a soberania das Cortes Extraordinárias da Nação

Portuguesa, uma grande crise de legitimidade de governo afetaria diretamente Portugal.

O retorno do rei para Portugal em 1821 já não mais faria recuperar a legitimidade do pacto

monarca/ vassalos, pois que nesse momento se estabelecia um novo pacto com D. Pedro

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I, que apressou a suprir todas as necessidades de graças e mercês dos súditos brasileiros.

Além de manter profícua a concessão de hábitos da Ordem de Cristo, a nova Ordem do

Cruzeiro se transformaria em moeda adaptada à herança cultural política do Antigo

Regime, permitindo sedimentar o novo pacto (SILVA, 2018).1

Considerações finais

No transcorrer dessa pesquisa, pode-se observar inicialmente que a simples

existência de conflitos entre autoridades na capitania do Grão-Pará já revela a existência

de uma variedade de poderes locais. Estes poderes são, em parte, enviados da metrópole

para a administração colonial, tais como o governador e capitão general, Ouvidor,

Procurador da Coroa e, mesmo, o bispo. No entanto, uma fatia desse poder local ficou na

mão de homens que, no geral, eram filhos da própria capitania, como era o caso das

Câmaras Municipais e irmandades beneficentes, da Casa de Misericórdia. Essas duas

instituições se revelaram de grande importância para a administração de todos os

domínios portugueses, desde o século XVI até o século XIX. A existência desses poderes

na capitania do Pará corrobora a ideia de império polissinodal e corporativo, ressaltando-

se o exercício de poderes locais por homens oriundos da própria terra.

Esses poderes locais adquiriram boa margem de liberdade e autonomia até meados

do século XVIII, sendo mesmo uma característica das monarquias ibéricas do Antigo

Regime. Se, por um lado, a estrutura era flexível, ou descentralizada, do ponto de vista

do poder político, ela ganhava rigidez e coesão no sentido dos laços de fidelidade à

monarquia e, mais especificamente, ao monarca português. O mecanismo fortalecedor

dessa fidelidade era a retribuição aos serviços com graças e mercês, facilmente verificável

nos diversos pedidos existentes na farta correspondência da capitania do Pará com a

metrópole. Assim, esse sistema de poder polissinodal era sustentado por laços de

relacionamentos privados que redundavam na “economia de mercês”, representando

grande herança político-cultural do Antigo Regime.

1 Para melhor compreensão do uso das ordens honoríficas na construção do Império brasileiro, veja: SILVA, Camila Borges. As ordens honoríficas e a Independência do Brasil; o papel das condecorações na construção do Estado imperial brasileiro (1822-1831). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018.

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Como herança cultural, fez parte de um movimento de longa duração e, portanto,

estrutural, que perduraria, com poucas modificações, por uma boa parte do século XIX.

Na capitania do Grão-Pará, recorreu-se ao sistema de retribuição por mercês com

muita intensidade durante todo o período colonial. A instabilidade, ou enfraquecimento

do sistema de governo do Antigo Regime parece ter exigido uma grande contrapartida de

benefícios para os súditos. No entanto, o esgotamento das possibilidades de retribuição

por parte da metrópole, na mesma medida em que exigia a crescente elite local paraense,

especialmente após a vinda da Família Real, evidencia uma crise de legitimidade do

governo em Portugal, contribuindo para que a província desfizesse o pacto monarca/

vassalos, para criar um novo pacto com o nascente Império do Brasil.

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XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017

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MANUSCRITOS

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46, 47, 49; cx. 3, doc.: 253, 305; cx. 6, doc.: 471; cx. 7, doc.: 618; cx. 9, doc.: 840; cx.

12, doc.: 1149; cx. 105, doc.: 8338; cx. 107, doc.: 8475; cx. 120, doc.: 9263; cx. 121,

doc.: 9273; cx. 139, doc.: 10568;