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Processos associativistas entre ciganos: discutindo o projeto político de uma família cigana em Condado-PB. 1 Jamilly Rodrigues da Cunha (PPGA/UFPE ) Maria Patrícia Lopes Goldfarb (PPGA/UFPB) Mércia Rejane Rangel Batista (PPGCS/UFCG) RESUMO Apesar da ainda carência de estudos sobre ciganos no Brasil, temos assistido a apresentação de diversos trabalhos de cunho etnográfico. Pensando o cenário paraibano, há uma certa recorrência de pesquisas realizadas com os ciganos que estão em Sousa-PB, para isso podemos apontar algumas razões: os ciganos que ali vivem são reconhecidos pelo Ministério Público Federal como a maior comunidade sedentarizada do Brasil, o que pode ter desafiado aos pesquisadores uma discussão sobre a dinâmica implícita neste processo de sedentarização, além disso, é sede de um Centro de Tradição cigana, único do Brasil. Por outro lado, ao termos feito a pesquisa em Sousa, nos sentimos curiosas para investigar como outros ciganos (famílias, grupos, comunidades) experimentam este momento e se constitui alguma relação com os ciganos que ali vivem, esforço esse que vem nos permitindo acessar histórias e trajetórias de grupos que estão em outras cidades paraibanas. Tal quadro nos leva a refletir que para além de uma significativa presença de famílias ciganas, existem contextos distintos e específicos, que até a algum tempo, não se associaria a dinâmica desses grupos, sobretudo, por se tratar de novos processos sociais e políticos que consequentemente também geram novos modelos de relações. Nesta acepção, a reflexão que estamos propondo neste artigo, foi gerada a partir da pesquisa que iniciamos entre os ciganos que vivem em Condado (sertão Paraibano), pois fixados na cidade desde 1991, apesar do apoio político encontrado, o grupo tem se deparado com o cenário de preconceito e exclusão, o que fez com que muitos deixassem de operar e demarcar a sua identidade diante dos não ciganos. O fato é que num processo bem mais recente, o grupo vem ganhando espaço no contexto político da Paraíba, sobretudo, pela ação de uma jovem cigana que ao criar uma associação se tornou sua presidente e diante 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Processos associativistas entre ciganos: discutindo o projeto político de uma família

cigana em Condado-PB.1

Jamilly Rodrigues da Cunha (PPGA/UFPE )

Maria Patrícia Lopes Goldfarb (PPGA/UFPB)

Mércia Rejane Rangel Batista (PPGCS/UFCG)

RESUMO

Apesar da ainda carência de estudos sobre ciganos no Brasil, temos assistido a

apresentação de diversos trabalhos de cunho etnográfico. Pensando o cenário paraibano,

há uma certa recorrência de pesquisas realizadas com os ciganos que estão em Sousa-PB,

para isso podemos apontar algumas razões: os ciganos que ali vivem são reconhecidos

pelo Ministério Público Federal como a maior comunidade sedentarizada do Brasil, o que

pode ter desafiado aos pesquisadores uma discussão sobre a dinâmica implícita neste

processo de sedentarização, além disso, é sede de um Centro de Tradição cigana, único

do Brasil. Por outro lado, ao termos feito a pesquisa em Sousa, nos sentimos curiosas para

investigar como outros ciganos (famílias, grupos, comunidades) experimentam este

momento e se constitui alguma relação com os ciganos que ali vivem, esforço esse que

vem nos permitindo acessar histórias e trajetórias de grupos que estão em outras cidades

paraibanas. Tal quadro nos leva a refletir que para além de uma significativa presença de

famílias ciganas, existem contextos distintos e específicos, que até a algum tempo, não se

associaria a dinâmica desses grupos, sobretudo, por se tratar de novos processos sociais

e políticos que consequentemente também geram novos modelos de relações. Nesta

acepção, a reflexão que estamos propondo neste artigo, foi gerada a partir da pesquisa

que iniciamos entre os ciganos que vivem em Condado (sertão Paraibano), pois fixados

na cidade desde 1991, apesar do apoio político encontrado, o grupo tem se deparado com

o cenário de preconceito e exclusão, o que fez com que muitos deixassem de operar e

demarcar a sua identidade diante dos não ciganos. O fato é que num processo bem mais

recente, o grupo vem ganhando espaço no contexto político da Paraíba, sobretudo, pela

ação de uma jovem cigana que ao criar uma associação se tornou sua presidente e diante

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto

de 2014, Natal/RN.

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de um cenário fortemente marcado pelo poder masculino, atualmente, assumiu a posição

de chefe da comunidade. Percebe-se ainda que numa tentativa de tirar o grupo da situação

de invisibilidade, passou a exteriorizar demandas e a negociar com outros chefes ciganos.

Neste caso, estamos propondo inicialmente uma discussão em torno do processo

associativista dos Ciganos de Condado, analisando os modelos de relações que vêm sendo

instaurados.

Palavras-chave: Ciganos; Processos políticos; Associação;

Os Ciganos no Brasil, os Ciganos no Mundo.

Como sabemos, no Brasil, os ciganos por muito tempo permaneceram num

cenário de invisibilidade. Colocados sempre à parte, estes não são citados na história e,

para muitos, são avessos a qualquer processo de desenvolvimento. Na Europa, por

exemplo, as perseguições foram e são constantes e o próprio nomadismo, pensado e

indicado como elemento diacrítico pelo grupo, foi em muitos casos a única saída para o

não aprisionamento. Ademais, como relatado por muitos pesquisadores2, os ciganos

dentre tantas perseguições, foram escravizados na Romênia até meados do século XIX e

vítimas do holocausto perpetrado pela Alemanha Nazista no século XX.

[...] Os ciganos enfrentaram a escravidão também na Hungria

e na Transilvânia, porém em melhores condições de vida do que na

Moldo-Valaquia. Mesmo ai, entretanto, eles foram vítimas da seriedade

governamental e da cólera popular, sob a alegação de que roubavam

crianças, e de diferentes outros tipos de violações da lei, até mesmo de

antropofagia, sendo castigados pelas autoridades de forma violenta.

(SANT’ANA,1983:30)

[...] Perseguidos pelos nazistas com base na raça, muitos

ciganos foram assassinados, esterilizados e torturados. Estima-se que

cerca de 500 mil ciganos, tenham sido assassinados durante a 2ºGuerra,

no episódio conhecido como Holocausto Romani, Parranjos (“a

devoração”) ou Samudaripen/Sa Madaripen (“o assassinato de todos).

Embora os ciganos já enfretassem medidas persecutórias na Alemanha

antes de 1933, a discriminação e a opressão foram muito intensificadas

com os nazistas, culminando com o genocídio. (GUIMARAIS,

2012:25).

Mas que crimes cometiam? Como afirma Costa (1998:36), é a legislação

especifica que nos permite conhecê-los. Pois que a rejeição e punição, adivinha,

sobretudo, das tradições ciganas. O fato de serem nômades, a língua - gerigonça, como

2 Ver Moonen (2012); Guimarais (2012), Silva(2006).

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muitos não ciganos a chamavam – a leitura da sorte ou mais especificamente a “buena-

dicha”, são alguns desses elementos historicamente reprimidos pelos governos e

população.

E mesmo quando houve fascínio e admiração3, como relatado por China (1936),

esses sentimentos esbarravam no preconceito, sendo as características depreciativas

determinantes na relação cigano e não cigano. “São artistas, porém ciganos”. Assim, nas

conversas informais ou ainda diante das passagens de grupos pelas cidades, o que sempre

predominou foi o forte estigma. Ana Paula Cichowicz (2011) ao analisar como os “rom-

kalderash” no Brasil pensam a imagem estigmatizada que os envolve, bem como a

importância desta para a construção da identidade do grupo frente aos “brasileiros”,

descreve as lembranças que a mesma tinha com relação aos grupos ciganos. Sua

exposição é bastante interessante, inclusive muito se assemelha aquela que tinha quando

criança.

[...] Ora eram descritos como descendentes de Adão com outra mulher

que não Eva... Ora como aqueles que forjaram os pregos que foram

utilizados na crucificação de Jesus... Ora como seres mágicos e sobre-

humanos. Enfim, juntamente com seres lendários como o saci-pererê, o

lobisomem, o chupa-cabra, a mula-sem- cabeça, os vampiros e os

extraterrestres; os ciganos faziam parte do meu imaginário infantil.

―Não fique na rua até tarde menina, cuidado que os ciganos te levam

embora... era um conselho dado pelos mais velhos e seguido à risca,

afinal - pensava com meus botões – não fora o Pinóquio seqüestrado

por um cigano malvado chamado Stromboli. (CICHOWICZ, 2010:03)

As novelas, os filmes, as músicas e a própria literatura4 reforçam esse quadro.

Onde mulheres ciganas aparecem sempre como sensuais e por isso imorais e os homens

são apresentados como violentos e trapaceiros. No imaginário social, os ciganos são, tudo

aquilo que nós, “os outros”, não devemos ser. Conforme se ver é uma “perfeita relação

de alteridade”, os brasileiros ou qualquer outro grupo humano, se colocam em total

3 Mello (2009) ao escrever acerca dos ciganos de Catumbi, mostra como essa associação – ciganos e artistas

– foi forte no Rio de Janeiro, sobretudo, na época em que o Brasil era colônia de Portugal. O cenário

indicado pelo autor, que também é demonstrados por outros pesquisadores3, remete as “comemorações, em

1815, da elevação do Brasil à categoria de Reino Unido levaram ao Campo dos Ciganos não somente D.

João VI e toda a Corte, mas até mesmo as delegações estrangeiras, para uma tarde e noite de dança e

divertimento festivo” (2009:83). 4 A literatura oferece matéria- prima privilegiada para uma pesquisa sobre o imaginário, na medida em que,

sendo este um conjunto de idéias — que sempre tem chance de se desdobrar em ações concretas — opera

em diálogo com a realidade empírica (o contexto), mas não se resume a ela. Em outras palavras, o universo

que ela maneja é alargado; a literatura comporta a invenção e, portanto, lida com o que é possível imaginar

sobre os ciganos, sem obrigação de ser fiel ao historicamente comprovado. Nesse sentido, ela permite

aventar o que o Ocidente pensa sobre os ciganos e, consequentemente, o que aquele faz com esses.

(FERRARI, 2002: 22)

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oposição diante do “mundo cigano”. E, portanto, o que se percebe no senso comum, é a

ideia de uma “vida cigana” dotada de uma liberdade exacerbada, uma situação de

imoralidade constante, e uma impureza que parece ser contagiosa, por isso, a população

sempre agiu de modo que não houvesse qualquer contato.

Sant’ana (1983) indica que no século XVIII os ciganos já se faziam numerosos

por todo o país, há inclusive muitos registros de denúncias feitas pela população acerca

de crimes cometidos pelos grupos que migravam entre as cidades. Sua análise, também

nos remete a que é feita por Cristina Pereira (1986), pois ao descrever sobre o povo

cigano, dentre outros aspectos, é indicado, que na região Nordeste a intensificação da

circulação dos jornais impressos5 a partir de 1960, trazendo matérias bastante

sensacionalistas, contribuiu não só para a acentuação dos estigmas (ladrões de crianças,

feiticeiros, entre outros) já existentes, mas para a formação de novos outros. No Nordeste,

por exemplo, existe uma imagem muito forte que os liga à grupos de bandoleiros,

participante de luta armada, pistoleiros e matadores de aluguel (1985:38). Assim, há

durante esse período um fortalecimento da ideia de cigano enquanto ameaça social, ideia

que permanece até os dias de hoje para a maioria daqueles que se propõe a falar sobre

este povo6.

O fato é que nômades ou fixados, atualmente, existem mais de 10 milhões de

ciganos em todo o mundo7. São grupos que acabaram desenvolvendo variados

mecanismos de resistência, seja por meio do camuflamento de sua identidade, seja por

meio de sua afirmação. Segundo Cristina da Costa Pereira, há aproximadamente

1.500.000 ciganos na América Latina, sendo cerca de 600 mil vivendo no Brasil. É bem

verdade que esses números podem variar, afinal, como afirma Moacir Locatelli, os

deslocamentos tão frequentes dificultou e dificulta a realização de censos entre os grupos.

No entanto, é importante perceber como os trabalhos etnográficos publicados no

Brasil, estão sendo importantes na revelação dos múltiplos cenários existentes. Grupos

que vivem em maior situação de pobreza e falta de acesso a políticas públicas, outros que

parecem estar integrados a sociedade, grupos nômades e que não se fixam a nenhum

5 Como vemos, os jornais também são um forte meio de fortalecimento e reprodução dos estigmas. Batista

et al (2012) analisa este veículo de comunicação e sua importância na legitimação da figura do cigano

enquanto indivíduo biologicamente errante. 6 Cunha (2013) ao se debruçar sobre a presença destes na Paraíba, indica o mesmo quadro. Pois através de

uma aplicação de questionários em três cidades que compõe o estado – Campina Grande, Patos e Sousa –

foi percebido a permanência de imagens totalmente depreciativas que colocam os ciganos como aqueles

que desviam a ordem e, mais do que isso, detentores de um comportamento naturalmente violento. 7 Dados indicados pelas organizações ciganas europeias. Não são precisos, para muitos é um número

superior, para outros, um exagero.

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território, ou ainda, grupos que mesmo em processo de fixação continuam vivendo sua

ciganidade, performatizando sua identidade cotidianamente. Lembrando que muitos dos

elementos diacríticos estão passando por processos que podem implicar em realce,

manutenção, representação, afirmação, negação e estabilidade dessa identidade

(POUTIGNAT E STREIFF-FENART, 1998), como sugere os autores que discutem o

fenômeno étnico8.

Além disso, a pluralidade das próprias identidades étnicas dos grupos – Rom, Sinti

e Calon - também acaba por gerar contextos distintos. Afinal, a categoria “cigano” passou

a ser utilizada no século XV, como sinônimo de individuo de vida errante e imoral, mas

com o passar dos anos acabou sendo incorporada pelos próprios ciganos. No entando,

existem subdivisões e por conseguinte outras subcategorias que são utilizadas pelos

ciganos e que estão ligadas a origem geográfica, dialetos e profissões praticadas.

Os Rom, ou Roma, que falam a língua romani; são divididos em vários

sub-grupos, com denominações próprias, como os Kalderash,

Matchuaia, Lovara, Curara e.o.; são predominantes nos países

balcânicos, mas a partir do Século 19 migraram também para outros

países europeus e para as Américas. Os Sinti, que falam a língua sintó,

são mais encontrados na Alemanha, Itália e França, onde também são

chamados Manouch. Os Calon ou Kalé, que falam a língua caló, os

“ciganos ibéricos”, que vivem principalmente em Portugal e na

Espanha, onde são mais conhecidos como Gitanos, mas que no decorrer

dos tempos se espalharam também por outros países da Europa e foram

deportados ou migraram inclusive para a América do Sul. (MOONEN,

2011:12).

Na Paraíba, dentre os 223 municípios que a constitui, sabe-se até o momento que

ao menos 259 destes existem comunidades ou famílias ciganas. O mais interessante é que

mesmo com cenários geograficamente próximos, cada grupo acabou desenvolvendo

mecanismos particulares, sobretudo, com relação a forma que vem se relacionando, seja

com a população, seja com a política local. No entanto, enquanto alguns cenários

permanecem pouco estudados, a comunidade cigana que vive na cidade de Sousa, sertão

8 Fradrik Barth (1969) elenca a importância de perceber o fenômeno étnico, especialmente, através da

interação social, o que vai contradizer a ideia de que a etnicidade era resultado direto de uma cultura

estática, homogênea e isolada. 9 Campina Grande, Cajazeiras, Condado, Conceição de Piancó (Conceição), Congo, Bonito de Santa Fé,

Divinopolis (CJ), Galante (CG), Ingá, Itapororoca, João Pessoa, Juazeirinho, Livramento, Patos, Paulista,

Pombal, Mamanguape, Marizópolis, São João do Rio de Peixe, São Mamede, Santa Luzia, Santa Rita,

Soledade e Triunfo, são alguns desses lugares.

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paraibano, vem demonstrando ser área de grande interesse entre os pesquisadores10. Sobre

o grupo, já existem inúmeros trabalhos que abordam as relações identitárias, bem como

os processos de mobilização política. Com mais de três mil ciganos vivendo no local, a

comunidade desperta a curiosidade de muitos estudiosos, sobretudo, pela forma estes

mantem sua identidade, mesmo após 30 anos de fixação. Além disso, há no lugar uma

recente mobilização para que seus direitos e demandas sejam atendidos pelo Estado,

mobilização esta que vem ressoando em outras comunidades ciganas que até pouco não

se percebiam enquanto possuidores de direitos.

Ademais, o movimento de mobilização política entre os ciganos no Brasil é um

fenômeno recente e pouco estudado. Pois recente é também a atuação dos agentes do

estado nessas comunidades. Dessa forma, é importante questionar e problematizar quais

os impactos dessas políticas na dinâmica desses grupos. Sabe-se que por muito tempo a

lógica foi outra, uma vez que a invisibilidade e camuflamento evitou as perseguições e,

consequentemente, a discriminação. E atualmente os ciganos são chamados a demarcar

sua identidade, para que assim possam acessar as possíveis políticas.

Os ciganos em Condado e luta pelo reconhecimento

Cortada pela BR230, Condado, durante muito tempo, foi para mim apenas um

local de passagem, pois o trecho faz parte do caminho que me leva até Sousa e foi

justamente através de conversas com os ciganos que moram no local, que tive

conhecimento de que ali também havia uma comunidade cigana. O município integra a

Região Metropolitana de Patos, situado também no sertão paraibano. De acordo com o

IBGE, sua população estima-se em aproximadamente sete mil habitantes. Com uma área

territorial de 280,913 km², os moradores do local tem como principais fonte de rendas a

pecuária e a agricultura, no entanto, devido aos grandes períodos de secas, outras

atividades vem despertando o interesse, sobretudo, dos mais jovens. Nesse sentido, é

intensa a migração para cidades vizinhas a fim de empregar-se no comércio. Além disso,

por não possuir universidades e com as facilitações de acesso ao ensino superior

(PROUNI, FIES), a grande maioria dos jovens também vem buscando acessar o universo

acadêmico, para isso se deslocam especialmente paras as cidades de Patos e Cajazeiras

10 Cunha (2013) discute o processo de fixação no local, a formação de alianças políticas e como a

manutenção da identidade étnica do grupo. Robson Siqueira (2012) também atenta para os novos processos

que vem ocorrendo na comunidade. Para isso, o autor analisa a formação de jovens lideranças políticas e

sua atuação no interior do grupo.

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É interessante que ao saber da existência de uma comunidade cigana no local,

sempre procurava identificar, mesmo que pela janela do ônibus, quem eram os ciganos

que ali vivam. Certamente, meu interesse se acentuou quando ao procurar notícias sobre

os ciganos que vivem na Paraíba, me deparei com uma matéria11 que dava conta de uma

jovem cigana que falara numa audiência com o Ministério Público Federal sobre as

dificuldades que seu povo enfrenta. Seu nome era Maria Jane Soares, presidenta da

comunidade cigana de Condado.

A notícia me chamou bastante a atenção, sobretudo, por se tratar de uma mulher

que se apresentava como liderança de seu grupo. Ademais, sabe-se que no universo

cigano, as relações são quase sempre mediadas por homens, sendo em sua maioria, os

mais idosos. Esses são os que trazem consigo as experiências e lembranças do “tempo de

atrás”, como indicado por Goldfarb (2004), sendo capazes de liderar e conduzir o grupo,

mesmo no período pós-nomadismo. Desse modo, observa-se que tradicionalmente as

relações são patrilineares, vivendo esses sob um sistema patriarcal12, pois que a

ascendência-descendência é exclusivamente masculina, onde sua organização é

caracterizada por um conjunto de relações onde os detentores de poder são os homens,

sendo estes os donos da palavra final.

Entusiasmada com tal fato, procurei na internet outras notícias sobre os ciganos

que vivem em Condado, até que me veio a ideia de buscá-los nas redes sociais. Uma vez

que numa sociedade vista como da informação e da comunicação, essas novas tecnologias

também tem sido um meio eficaz de reinvindicação e exposição de grupos sociais e

étnicos. Afinal, como afirma Melo (2013) “as novas tecnologias são ferramentas nos

embates contemporâneos de luta e exposição dos grupos e movimentos por se tornarem

instrumentos políticos e de ação muito poderosas pela velocidade e amplitude de alcance

que possuem em tempo real nas redes sociais e de interesses”.

Os ciganos, não diferente de outras minorias, também tem utilizados esses

instrumentos, a fim de tornar visível sua identidade, demandar direitos e expor as

precárias condições em que vivem. Como havia pensado, não foi difícil encontrar Maria

Jane, que prontamente passou a trocar mensagens comigo. A mesma me pareceu bastante

atuante na rede social, sua página além apelos e reclamações, também trazia muitas

11 http://www.prpb.mpf.mp.br/news/em-patos-pb-mpf-realiza-audiencia-publica-sobre-defesa-dos-

direitos-dos-ciganos/ 12 Segundo Weber(1964), chama-se patriarcalismo situação na qual, dentro de uma associação, na maioria

das vezes fundamentalmente econômica e familiar, a dominação é exercida(normalmente) por uma só

pessoa, de acordo com determinadas regras hereditárias fixas.” (1964:184).

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imagens do universo cigano e algumas trocas de mensagens com outros Calons que vivem

no Brasil. Nesse sentido, me apresentei como uma estudante de antropologia que vinha

pesquisando a cultura cigana, após o necessário esclarecimento acerca do que era

antropologia e algumas longas conversas em chats de bate-papo, a mesma me convidou

a ir até a sua casa para conhecer sua comunidade.

No entanto, as palavras trocadas cotidianamente com a cigana através da rede

social, acabou gerando um rico material. Tanto que seria impossível produzir esse artigo,

deixando de lado tudo o que me foi apresentado. Nesse sentido, estamos construindo uma

pesquisa que reconhece não apenas as utilidades dessas novas ferramentas, mas a

importância de entender o ator social como um sujeito ativo, que interage, tem lugar e

função na pesquisa. É importante notarmos que a própria antropologia vem rompendo

com o mito da “autoridade do pesquisador”13 e pensando o texto final como uma

composição de várias vozes. Pois, ao se perceber que a veracidade do texto etnográfico

estava totalmente associado a presença do pesquisador em campo, passou-se a questionar

a relação sujeito-objeto na pesquisa de campo, bem como o próprio fazer antropológico

enquanto método de compreensão mútua e não apenas de interpretação do outro14.

Nesta acepção, podemos dizer que este artigo é fruto de uma relação que vem

sendo instaurada com a comunidade cigana de Condado, através de conversas em redes

socais e de estadias mais duradouras no local. Até o momento foi possível estar com o

grupo em três momentos distintos. Apesar de se tratar de uma pesquisa inicial, já se

percebe um sistema de relações interessante e que se distingue daqueles que imaginamos,

pois apesar de se tratar de uma unidade familiar extensa, como é na maioria das

comunidades ciganas, a presença e atuação de liderança feminina é algo que vem

chamando nossa atenção, sobretudo, pela forma como a mesma vem atuando.

Pensando acerca da trajetória do grupo, estes indicam o ano de 1991 como período

de fixação em Condado, entretanto, não diferente de outras comunidades sedentarizadas

na Paraíba, também afirmam que muitos já viviam acampando no local, sob a sombra das

13 Ver James Clifford (2008) 14 A respeito da autoridade interpretativa, para Clifford (2008) está baseada, sobretudo, “na exclusão do

diálogo” (Geertz seria seu maior representante), aqui as culturas são pensadas enquanto conjuntos textuais,

devendo assim ser interpretadas. Torna-se claro que estes dois modelos de autoridade, após as

transformações que, sem dúvida também são recorrentes da descolonização, bem como da emergência

política e social de diversos grupos, abriram espaços para os outros dois modelos de autoridade apontados

no texto: O dialógico, etnografia como resultado de um trabalho conjunto, com negociações, e o polifônico,

produção colaborativa do conhecimento etnográfico, onde os informantes estão “vivos” no texto de forma

regular.

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árvores, em fazenda de “amigos”15, até que através de um apoio político, houve a decisão

de ficar.

Já faz mais de vinte anos que moramos aqui, nossos filhos são

natural da cidade, já houve vários casamentos e batizados na

paroquia da cidade de Condado. Em 1972, meus avós já se

arranchavam por aqui, no sítios, nas fazendas. (Cigana

Margarida, janeiro de 2014).

O número de ciganos que vivem no local, segundo a presidente da comunidade, é

de 130 pessoas, porém, muitos ainda praticam o nomadismo, sendo comum as viagens

para que os homens realizem suas trocas e para que as mulheres, por sua vez, possam

oferecer a leitura do baralho de cartas16. Durante a pesquisa de campo, percebemos que é

comum algumas casas estarem fechadas, já que seus moradores estariam fazendo esse

tipo de deslocamento. Afinal, a pequena população de Condado, parece não abrir mais

espaços para que os ciganos façam seus negócios, neste caso, a fonte de renda do grupo,

além de poucas aposentadorias, da bolsa família, advém, sobretudo, de relações

comerciais com pessoas de fora da cidade. Todo esse cenário acaba por revelar um novo

modelo de nomadismo, nomadismo esse que não ficou no “tempo de atrás”,

contrariamente, se ressignifcou e atualmente ocorre de forma cíclica, implicando na ida e

na volta para um/seu lugar.

Durante a pesquisa, realizamos ainda um rápido censo, no qual verificamos a

presença de 79 ciganos, sendo a sua maioria crianças e jovens. Diferentemente do cenário

de Sousa, o grupo reside em casas distribuídas entre os cinco bairros da cidade. Além

disso, a maioria das casas são alugadas o que permite que haja um constante deslocamento

interno. E mesmo quando são próprias, ou seja, quando construíram ou conseguiram

adquirir, é comum a sua venda, para que assim se compre outra e se tenha algum lucro.

15 A categoria “amigos” corresponde aos não ciganos que ofereciam apoio e auxílio ao grupo. Cunha (2013)

cita que na época das “andanças” muitos ciganos ao chegar nas cidades apresentavam cartas de

recomendação de políticos e coronéis que detinham, fruto das relações de confiança que foram sendo

instauradas ao longo do tempo. O objetivo era que a estadia fosse aceita pelos não ciganos que viviam no

local. 16 A quiromancia quase não é mais praticada entre o grupo, com exceção da cigana Margarida, que todos

os dias vai a cidade de Patos, realizar a leitura de mãos.

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Antes da fixação na cidade, o grupo era liderado pelo Sr. Calon17, pai de Maria

Jane. Após problemas familiares, o cigano saiu de Condado em 1998 e ainda hoje prática

o nomadismo. Desse modo, sem nenhuma liderança no local, Maria Jane afirma que

percebeu que algumas comunidades ciganas estavam acessando políticas, enquanto que a

que fazia parte, permanecia à parte das discussões.

17 Utilizo um nome fictício, pois não tenho autorização para divulga-lo.

Casas de ciganos em Condado, com anúncios de venda

Foto: Jamilly Cunha

Maria Jane e seu esposo Antônio. Fonte: Acervo de Maria Jane

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Diante disso, a jovem cigana percebeu que a formação de uma associação, poderia

ser um meio útil de buscar reconhecimento para sua comunidade, uma vez que o

movimento indígena, as chamadas comunidades remanescentes de quilombo, bem como

outras minorias estavam se organizando e conseguindo espaço no cenário político. A isto

soma-se o fato de que mediante os problemas enfrentados pelo grupo, Maria Jane sempre

foi acionada para resolver conflitos e opinar sobre decisões importante, situação que é

confirmada por alguns ciganos que venho conversando.

É Deus no céu e Xinxinha18 na terra. O que ela disser, tá dito.

Pode confiar. Ela vem lutando pelo nosso povo. (Cigano João)

Ela tá tentando trazer umas melhorias pra gente. Aqui somu tudo

pobre. (Cigano José)

Ela é quem tá fazendo tudo, buscando melhorias. Foi ela quem

quis e assim tá tentando fazer. (Cigana Janete)

Apesar de existir no Brasil, algumas lideranças ciganas femininas19 é interessante

refletir acerca da atuação e do processo de formação de liderança nas comunidades

ciganas. Ademais, o diagrama de sua família nuclear nos mostra a existência de dois

irmãos, inclusive sendo um mais velho, que não quis seguir os passos do pai e assim

exercer a chefia.

18 Alcunha de Maria Jane. 19 - Maura Piemonte, Mirian Stanescon, Yaskara Calin, são algumas ciganas que se afirmam enquanto

lideranças de seus grupos e que vem ganhando espaço no cenário nacional.

Diagrama de parentesco da família de Maria Jane

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Nesse sentido, o reconhecimento das limitações dos chefes de seus grupos – a

ausência de estudo se apresenta como a principal –, bem como a falta de uma liderança

local, acaba por gerar um movimento que ao menos no Brasil é bastante novo. Estamos

falamos de um ativismo político praticado, sobretudo, pelos ciganos mais jovens. Nesse

cenário, se configura também a mobilização de algumas mulheres, que vem ultrapassando

várias barreiras à elas perpetradas historicamente. Conforme dito anteriormente, diante

um universo cigano mediado por homens, é importante questionar como está sendo

construído essa ativismo, bem como ele é percebido nas comunidades20. Já que hoje elas

parecem ser ouvidas e instadas a participarem da luta em prol do povo cigano.

Pensando o contexto europeu, sabe-se que o ativismo político por parte de alguns

grupos ciganos – os Rom ou Roma são os mais atuantes - é um fenômeno bastante antigo,

sendo inclusive objeto de estudo de vários pesquisadores21. Marcos Guimarais (2012)

vem discutindo as organizações internacionais ciganas e afirma que estas visam unir os

grupos num movimento transnacional. A União Romani Internacional criada na década

de 1970, por exemplo, desde o Primeiro Congresso Mundial em 1971, busca reforçar a

ideia de uma nação cigana, ultrapassando as fronteiras nacionais e construindo campos

sócio-políticos transnacionais. De um modo geral, segundo Guimarais, esses

movimentos, mesmo com um trabalho ainda incipiente, vem organizando conferências e

encontros a fim de discutir e denunciar questões importante para todos os ciganos, como

as perseguições, as reparações, e de um modo geral temas como educação, padronização

do romanês, entre outros.

A partir da década de 50, após o período da Segunda Grande Guerra,

algumas organizações ciganas se formaram na Europa (especialmente

na Alemanha) com o objetivo, entre outros, de obter reconhecimento

dos governos internacionais e ressarcimento para as vítimas do

holocausto, como os judeus. Mas, é apenas a partir de 1960 que estas

organizações passam a representar alternativas políticas de ação na

dimensão internacional (FAZITO, 2000:140)

20 Até o momento não existe nenhum estudo que aborde as relações de gênero e o ativismo político no

universo cigano. 21 Estuda-se também a tensa relação entre Estado e grupos ciganos na Europa, ademais, o cenário de

perseguição não é camuflado, nem indireto, contrariamente, as políticas de expulsão de Nicolas Sarkosy

demonstram quão agressivas são essas ações. Dentre tantos, podemos destacar o artigo de Alexandra Castro

intitulado “Ciganos e desigualdades sociais: contributos para a inflexão de políticas públicas de cariz

universalista” e o de Tommaso Vitale, intitulado “Sociologia de contextos locais contra os Rom e os Sinti

em Itália. Pluralidades de contextos e variedades de instrumentos políticos.

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No Brasil, o ativismo político aparenta ser muito mais local do que nacional. A

primeira ONG cigana brasileira foi o Centro de Estudos Ciganos, criada em 1987 e

sediada no Rio de Janeiro. A instituição, presidida por Mio Vacite, foi extinta em 1993,

porém antes mesmo do encerramento de suas atividades, Vacite criou a União cigana do

Brasil, que como relatado por Moonen (2012) apesar do nome, não representa os ciganos

de todo o país, mas sim uma unidade familiar. É interessante notarmos que após a

promulgação da Constituição Federal de 1988 e da proposta ali contida de

redemocratização do país, há a abertura de muitas associações ciganas e não ciganas que

visam entre outras coisas promover eventos culturais, mediar o acesso à políticas

públicas, além da constante preocupação com os direitos básicos dessas comunidades.

São elas:

Associação de Preservação da Cultura Cigana, no Paraná;

Associação Brasileira dos Ciganos no Paraná; Centro de Estudos e

Resgate da Cultura Cigana, em São Paulo; Coletivo de Ciganos Calon

do Brasil, em São Paulo; Phralipen Romani –Embaixada Cigana do

Brasil, Associação de Apoio e Divulgação da Cultura Cigana de

Ribeirão Preto. Recentemente surgiram a Associação Cigana da Etnia

Calon do Distrito Federal, o Centro Calon de Desenvolvimento

Integral, em Sousa/PB, a Associação dos Ciganos de Pernambuco, no

Recife, além de outras ONGs mais. (MOONEN, 2012:11)

A Associação Comunitária dos Ciganos de Condado- ASCOCIC, apesar de não

ser citada por Moonen, foi criada em 29 de junho de 2010. Com uma direção composta

por membros da família de Maria Jane, a instituição não foge das características contidas

em outras associações do Brasil, já que é formada por unidade familiar22 que vem

buscando acessar políticas públicas e reconhecimento cultural para seu grupo. No Estado,

além da ASCOCIC, existem outras duas associações, localizadas nas cidades de Patos e

Sousa. Desse modo, é interessante perceber que esse ativismo político quase sempre se

desenvolveu a partir de dois pontos: Mediante um cenário de perseguição e

discriminação; e com a conscientização das dinâmicas políticas e sociais extra grupo, ou

seja, a partir do reconhecimento de que há algumas ações sendo realizadas em prol das

comunidades tradicionais e étnicas, mas que para ser acionada é necessário que haja um

engajamento por parte dos próprios atores sociais.

Robson Siqueira (2012), ao pesquisar a mobilização política dos ciganos em

Sousa, afirma que há entre os jovens um forte sentimento de que eles são o futuro da

22 A presidente da Associação é Maria Jane e o vice-presidente é seu tio, Ubiraji. O primeiro secretário é

seu esposo, Carlos Antônio, o segundo secretário é uma prima que se chama Cleia Marcia e o tesoureiro é

seu outro tio, Ubirajara.

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comunidade. Desse modo, o maior interesse é de garantir formação, emprego e renda, ou

mais precisamente, “engajar o jovem cigano em atividades construtivas, de modo que não

haja perigo de envolver-se com atividades ilícitas, principalmente no que concerne ao

consumo de drogas.” (2012:98). De certa forma organizar os jovens numa associação

permite que estes tenham uma representação direta com os agentes externos. Percebe-se

assim uma mudança, sobretudo, nas demandas reivindicadas, pois que a um maior

interesse de conhecimento e profissionalização, ao contrário dos mais idosos, quase

sempre demandando remédios e comida.

Esse cenário a muito se assemelha ao discurso que Maria Jane articula tanto em

nossas conversas informais, como quando é inquirida a discorrer com outras lideranças e

representantes do Estado, acerca de sua comunidade. A comunidade de Sousa parece ser

sua maior referência, pois que as melhorias alcançadas pelo grupo que ali vive, a faz

organizar suas demandas e mobilizações.

O fato é que após saber da construção e efetivação do Centro Calon de

Desenvolvimento Integral em Sousa, o local passou a ser mais uma reinvindicação por

ela apresentada. Sua intenção é ter um lugar para realizar as reuniões da associação, os

cursos que lhes estão sendo ofertados e os tradicionais festejos comemorados pelo grupo,

ou seja, a ideia é ter um espaço de sociabilidade. Além disso, e aqui temos um ponto

muito importante, a cigana apresenta uma demanda até agora não percebida, ao menos na

Paraíba. Pois diante da situação atual de seu grupo, existe o desejo de conseguir uma área

na cidade (um território), para que assim possam construir suas casas. Para Maria Jane,

morando todos espacialmente próximos, num mesmo ambiente, haverá maior união e

coesão, além disso, a cigana afirma que este poderá ser um ponto turístico de Condado,

assim como atualmente é no universo sousense. Nesse sentido, a demanda por um

território surge como uma pauta nova e bastante distinta daquela que costumamos

associar ao mundo cigano. Conforme já discutido, esses grupos são caracterizados,

sobretudo, pelo nomadismo e pela ideia do não lugar. Desse modo, a medida em que se

avança na discussão das políticas públicas, percebe-se também a complexidade destes

grupos, como é destacado por Mello & Silva (2008), pois pensando os novos sujeitos

políticos, os que parecem desafiar mais a mente dos que formulam as políticas públicas,

são os ciganos, pois estes “traziam uma demandas qualificada e surpreendente, sobretudo

por sua inusitadas formas de organização e de associação, por sua rápida capacidade de

mobilização e por sua expressiva articulação internacional, de toda inesperada para o staff

do Ministério”.

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Por conseguinte, precisamos analisar de modo mais profundo a concepção que

esses indivíduos têm com seu espaço e a reelaboração e ressignificação da sua cultura,

sobretudo, porque pensamos ser o território um elemento historicamente importante na

configuração dos grupos étnicos. Logo, é necessário que se discuta como os grupos

ciganos lidam com a questão, pois até o momento me parece que a demanda por um

território se configura de modo distinto daquela apresentada pelo movimento indígena e

quilombola, pois mesmo se afirmando enquanto cidadãos de Condado, o discurso pela

cigana apresentado, nos remete a um espaço ainda não ocupado e não determinado, que

não é pensando a partir de sua ancestralidade, e sim um espaço de reprodução cultural,

social, econômica e política.

Reflexões finais

A escrita desse artigo, me leva a algumas certezas. Uma delas está no fato de que

essa é uma pesquisa que está apenas no seu começo, sendo necessário que se alcance toda

a comunidade. Afinal até o momento discutimos o projeto político de uma jovem

liderança cigana e sua família nuclear e ainda não sabemos de fato como os ciganos que

lá vivem incorporam e repercutem tais questões, bem como estes lidam com a retórica da

etnicidade.

Entretanto, desde já, é importante que notemos como essa e outras minorias vem

se mobilizando, reforçando o que Weber já nos dizia em 1922, pois estamos falando de

grupos que também são formas eficientes de organização políticas. No caso analisado,

existe uma cigana que se lança enquanto liderança de seu grupo e é reflexo do momento

em que vivemos. Uma vez que no atual contexto brasileiro, sobretudo, após a

Constituição Federal de 1988, os grupos étnicos vem ganhando espaço para suas

mobilizações, desse modo, esse cenário também vem influenciando nas dinâmicas das

comunidades.

Nota-se assim que surge um novo perfil de liderança entre o grupo, representação

essa capaz de mediar com todas as esferas de nossa sociedade e que luta por uma

positivação de sua identidade, evidenciando as riquezas da cultura cigana.

É válido apontar ainda que, num contexto em que é comum ouvi-los dizer que

muitos não sabem de sua existência, tem sido gratificante ajudá-los a revelar seu universo.

Ainda mais gratificante tem sido conviver com eles, enfrentando todos os desafios que a

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pesquisa de observação participante impõe. Além disso, venho percebendo na prática o

que a teoria nos indica, afinal, o grupo mantem a sua identidade, ressignificando muitos

de seus elementos e incorporando outros. Interessante é também participar de um

momento em que o grupo volta a performatizar sua identidade (ou ciganidade) para fora

do seu ciclo. Queremos então participar desse momento no qual se começa a investir em

etnografias que descrevam as comunidades ciganas percebidas enquanto grupos étnicos,

sem se ater apenas ao repertório clássico: nomadismo, tradição, violência, estigma.

Compreendendo que esses grupos estão projetando um passado e indicando

possibilidades para um futuro, no qual a presença de bens e serviços oriundos do Estado

brasileiro é colocada como significativos para a manutenção de sua identidade.

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