universidade estadual de campinas - 29rba.abant.org.br · hall (2009) alerta para o fato de que...
TRANSCRIPT
1
Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós Graduação em Sociologia
O Folclore Boliviano em São Paulo: reinventar a tradição mediar
relações1
Willians de Jesus Santos
Universidade Estadual de Campinas/NEPO
FAPESP
Campinas
2014
1“Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizadas entre os dias 03 a 04 de
agosto de 2014, Natal/RN.”
2
Resumo
Para a 29ª Reunião Brasileira de Antropologia propomos compreendermos a
Fraternidade Folclórica Caporales San Simón São Paulo Brasil que se trata duma
Agencia Cultural (ORTNER, 2007) pela qual atores sociais utilizam a Tradição
[Re]Inventada (HOBSBAWN ([1984] 1997) para produzir relações sociais e unidade no
processo migratório.
A Fraternidade Folclórica San Simón é criada em Cochabamba no ano de 1977 e
recriada na Pauliceia em 2007. Representando o Caporal, narrativa sobre o Capataz,
durante as festas religiosas de Novenas e Velada, homenageia as Virgens de Socavón,
de Copacabana e de Urkupiña. Sua dança, traje e símbolos sacros são Signos Diacríticos
(BARTH, 1998) recriados para construírem suas fronteiras cultural e política. Sua
unidade social durante o processo migratório se faz, portanto, através da celebração de
festas típicas, da alimentação, religião, língua, etc, sendo que estes signos ou Sinais
Diacríticos (MANUELA, 1986) são utilizadas em meio as relações sociais. Ou seja, por
meio da reinvenção da tradição constituem Relações Sociais (ORTNER, 2007).
A histórica migração boliviana para São Paulo tem feito emergir modelos de
significado e meios de ação, o folclore boliviano enquanto um Patrimônio Imaterial
(ROCHA, 2009), resignificado na capital paulista nos evidencia que as manifestações
populares como as danças, músicas e as poesias poderiam ser compreendidas sob a ótica
do inventar, criar e construir de seus agentes. Assim onde se vê apenas produções
simbólicas pode-se ler novas possibilidades de direitos humanos.
Palavras Chave: Agencia Cultural; Patrimônio Imaterial; Folclore Boliviano.
3
I - Migrantes como produtores de cultura popular
O folclore boliviano possibilita compreender importantes aspectos que
envolvem a permanência dos estrangeiros em novos espaços culturais e políticos. Pois a
coesão social dos imigrantes em novos lugares ocorre através de expressões artísticas
vivenciadas em torno de relações sociais de modo autônomo (embora sob conjuntura
política e de descolamento).
As novas formas da cultura popular expressas pelos imigrantes em seu
processo de imigração, o chamado ‘Patrimônio Imaterial’ (ROCHA, 2009, p.231)
popular, auxilia as ciências sociais a observar a autonomia destes atores sociais na sua
circulação e nos usos de patrimônio durante o experimento de seu descolamento. Quer
dizer, nos atermos ao patrimônio imaterial permite observarmos a criatividade dos
imigrantes bolivianos em reavivar tradições de seu país de origem entre São Paulo e
Bolívia, pois: “A invenção da cultura, mais do que fruto da imaginação ociosa dos
homens, consiste no resultado de uma convenção” (ROCHA, 2009, p.231).
Os movimentos e processos de revitalização das expressões culturais e da
atuação dos atores em novas localidades, através de relações sociais particulares, tem
um lado material. A materialidade do patrimônio são representações, símbolos, signos e
sinais diacríticos que estão em permanente modificação, reconstrução, ‘invenção’.
Estudar o folclore por esta via significa dar voz as populações e também luz a memória
e a unidade social. O que se procura, porém é alertar a capacidade de atuação dos
imigrantes e construir seu patrimônio:
Neste sentido, uma justificativa para a retomada da tradição, da memória e
dos processos de construção identitária, por meio do patrimônio imaterial,
sem que isso signifique uma volta ao modelo folclorista consiste no peso
dado á criatividade (ROCHA, 2009; p. 230).
Patrimônio que se efetiva nos trajes e nas das folclóricas, por exemplo.
Hall (2009) indica haver estratégias culturais capazes de deslocar as
disposições de poder2 em torno da produção da cultura popular3
. Neste caso sua
2No caso de Stuart Hall (2009) há uma discussão no texto Que Negro é esse na Cultura Negra? em que
propõe observar a inserção da cultura popular negra no período que ele entende como pós-moderno
global. Trata-se de um processo de mudanças culturais em que a Europa deixa de ser o centro da sua
produção e os EUA se transformam num grande produtor de alta cultura e da indústria cultural. O exótico
e o étnico se tornam fetiches embora ganhem espaço. Aquilo que era primitivo ou marginalizado passa a
4
reflexão cabe bem a nós que procuramos encontrar o lugar do folclore nas relações
sociais em meio ao processo migratório.
A cultura popular para Hall (2009) está aberta para disputas e jogos de
poder. Disputas por sua visibilidade, mas também sua exclusão. As resistências e as
restaurações de hegemonia entre produtores. Esta disputa ocorre em meio a cenários de
luta onde uma espécie de dialética conjuntural imanente entre abertura ao diferente
(descentrando a narrativa hegemônica branca ou Europeia, no caso da cultura diaspórica
negra) e a resistência á diferença cultural (a restauração do cânone da civilização
ocidental) se confluem e confrontam. Consequentemente também acontece o efeito de
ataque ao multiculturalismo e o retorno das grandes narrativas hegemônicas da história.
A cultura popular negra (no caso em que estuda) é produzida em meio a
estratégias culturais de agentes culturais e políticos que por sua vez possuem a
duplicidade entre constituir ‘visibilidade’ a sua produção e a si mesmo ao mesmo tempo
em que a regula e a segrega.4
A cultura popular negra segundo Hall (2009) não pode ser explicada
enquanto uma identidade que se opõe a cultura do branco senão discursos e práticas que
trazem a tona outras formas de vida, de tradições e representações. E mais: não há uma
‘pura’ cultura popular negra. E isto é um ponto importante a ser considerado. A cultura
popular (e o folclore enquanto tal) é utilizada estratégicamente, é o produto de
sincronizações, engajamentos que atravessam fronteiras, confluem tradições, confluem
estratégias de recodificação e de significação crítica, estando em produção. Não é
essencializada apesar de que haja grupos hegemônicos ou não hegemônicos interessados
em torná-lo unificada e singularizada.
A cultura negra diaspórica – e o folclore boliviano imigrante – é também
constituída por adaptações nos espaços híbridos (e públicos) onde se conformam e se
ter visibilidade pública. E enquanto produtor de subjetividade se torna um novo sujeito político a fim de
garantir políticas públicas voltadas para si. Trata-se de um tempo de luta pela hegemonia cultural e das
políticas de Estado voltadas á cultura. De mudanças nas práticas cotidianas, nas narrativas locais, de
descentramento de hierarquias e a abertura para a produção de novas sensibilidades nas ex-colônias.
Trata-se também de luta pela hegemonia cultural significando a ocupação do espaço público daquelas
práticas que consigam se impor enquanto materiais legítimos e reconhecidos enquanto tal. 3O popular para o autor significa os prazeres, as experiências, as memórias e as tradições do povo. Sua
análise recorre ao filósofo e lingüista Bakhtin, que, por sua vez, entende o popular enquanto o vulgar, o
informal, o lado inferior, o grotesco, enfim a localidade das tradições alternativas que está em oposição á
alta cultura. 4A cultura popular (e o folclore), portanto, é o produto de sincronizações, de engajamentos que
atravessam fronteiras, confluências de tradições, negociação entre posições, estratégias de recodificação,
de significação crítica, de inserção social, etc. Constituída por adaptações que se conformam nos espaços
sociais em que é inserida recebe uma marca que lhe diferencia enquanto cultura popular - o significante
“negro” no caso de Hall. Mas poderíamos aproximar a partir do significante: “boliviano”.
5
apresentam enquanto cultura popular, quer dizer, volta-se aos espaços e as questões
públicas e políticas. Sua diferença (a diferença da cultura negra) dentro do popular é o
seu significante negro5
justamente um símbolo de luta e conquista de espaço dentro da
cultura hegemônica, eurocêntrica e 'branca'.
A cultura negra enquanto um significante global, devido justamente ao
processo histórico de diáspora de africanos ao redor do mundo, não é muito diversa da
imigrante boliviana ao redor do mundo, a Fraternidade Caporales San Simón é um forte
representante deste processo, melhor seria se visto enquanto um campo de
identificações subjetivas que está sempre em negociação, deve ser visto não enquanto
práticas estanques, mas práticas em produção, em disputa, conjunturalmente
localizadas. São um diferencial que (re) reinventada em um contexto de subalternidade
está em disputa por agentes políticos constituindo as relações sociais e seus integrantes.
A cultura popular, e o folclore não é avesso a este processo, como afirma
Hall (2009), é um teatro de desejos, fantasias, identificações e representações voltadas
tanto a si quanto á um público. A construção do negro6 (no caso em que observa), e no
caso da nossa análise a construção do ‘folclore boliviano’ , é um movimento dialógico
que se dá diante do outro, claro, mas dentro de agenciamentos, disputas políticas e
conjuntura histórica.
Não existe, portanto, apenas um ‘folclore’ essencializado, com base em
categorias estanques, produzidas sobre a ordem da industrial cultural, embora, detenha
sua dimensão material.
Por fim, o processo de expressão cultural e circulação do patrimônio
imaterial é resultado do requerimento dos atores sociais em esforços para a inserção nos
espaços públicos, portanto, políticos. A conformação dos imigrantes como atores do
processo migratório, como veremos a seguir, materializa-se através de uma série de
cores, ritmos corporais, interpretações e do ciclo de festas.
5No texto Que negro é esse na Cultura Negra? Hall (2009) alerta para o fato de que negro visto como
essência gera compreensões naturalizantes e deshistoricizantes confundindo justamente o que é histórico
e cultural com o que é biológico e genético. Uma vez o significante retirado de seu encaixe político e
cultural e é alojado enquanto exótico, ou enquanto raça biologicamente determinada. 6A cultura negra e expandimos esta ideia para o folclore é assentada pelo a) estilo (em si matéria do
acontecimento) está b) deslocado de um mundo logocêntrico dominado pela escrita, ou seja, a lógica do
povo diaspórico (negro) se concentra na música (oralidade) – e no caso dos bolivianos se assemelha pela
quantidade de práticas, de histórias e a importância que toma nos momentos políticos, a ‘representação’
da dança; c) O corpo do negro é um capital cultural: forma de ser visto e representado – e reafirmamos,
tal como o corpo boliviano, ou no caso a dança, é um capital cultural no contexto migratório acionado
para produzir relações e embate com o poder.
6
II - Relações sociais e cultura (i)material.
1.2 Fraternidade Folclórica Caporales Universitários San Simón
A fraternidade San Simón é originária da Universidad Mayor de San Simón.
Fundada por estudantes locais por volta dos anos 1978 em Cochabamba, espalha-se ao
longo dos anos por outros Departamentos da Bolívia, emergindo em 2007 na Pauliceia.
Com 35 anos de existência (em 2014) para a primeira e 7 (em 2014) anos de existência
para a segunda está presente em outros países: EUA, Inglaterra, Argentina, Espanha,
Suécia, etc.
Intitula-se família dedicada a “bailar” para as “mamitas” (santas) e expressar
toda a “riqueza” cultural do país de origem, a Bolívia. Lê-se a riqueza das danças, das
músicas, das cores, dos trajes, etc. Neste caso, é composta por jovens bolivianos, recém-
chegados a cidade, e brasileiros filhos de bolivianos. Muitos de seus integrantes
originam-se de diversas regiões boliviana, apesar de haver predominância de
cochabambinos, muitos deles são pascenhos, orurenhos e crucenhos, aproximadamente
123 pessoas compõem-na.
A expressão fraternidade folclórica é antes de tudo um conceito nativo que
interpreta a prática de construção de uma coletividade, uma unidade, composta por
fraternos. Fraternos é denominação e um título que recebem alguns migrantes ou
brasileiros ao serem inseridos e aceitos na fraternidade após um ‘batizado’. Ao receber
esta posição têm acesso a certos direitos: receber informações dos dias de ensaios e
apresentações, serem convidados para festas, poder comprar camisas, jaquetas e o traje
folclórico, ter o prestígio de dançar e carregar o nome da fraternidade na cidade, poder
viajar para a Bolívia e compor a tropa estrangeira da fraternidade durante o carnaval lá,
etc.
Reinaldo7, 34 anos, diretor da fraternidade San Simón, e dançarino da
mesma, numa interpretação que nos fornece uma compreensão aproximada á realidade
brasileira compara a fraternidade com outra forma coletiva de expressão de dança e bem
conhecida dos brasileiros, a qual, também faz uso de danças populares durante datas
festivas. Em sua visão uma fraternidade: “È igual escola de samba. Por exemplo, eu sou
da gaviões [da fiel] e você da vai-vai”. Mas, de acordo com Fabio, homem de meia
7Todos os nomes dos entrevistados neste texto são fictícios.
7
idade, integrante sob o título de Achachi em 2013, a fraternidade significa mais do que
um coletivo que expressa danças tradicionais:
Fraternidade significa amizade. Por exemplo, eu e o Fernando nos
conhecemos na fraternidade, foi ele quem me apresentou. Cada um dançava
em um grupo, daí montamos este. Muita gente saí de um e entra em outro.
Em cada fraternidade que você passa deixa amigos. Muitos jovens tão aqui
porque gostam da dança, porque tem amigos, a gente sabe que nem todos é
por devoção.
Quer dizer, a fraternidade pode carregar significados diferentes pra quem é
de dentro ou pra quem é de fora, contudo, uma significância comum é que a sua unidade
possibilita o conhecimento de pessoas, relacionar-se, compartilhar, reconhecer e ser
conhecido, e sobretudo participar de uma experiência coletiva.
Esta foto é significativa acerca do que procuramos compreender:
descrevendo sujeitos que afirmativamente posaram para o fotógrafo, ou seja, sabiam
que eram fotografados, mais as interpretações da parte dos fraternos sobre o San Simón,
enquanto um coletivo a semelhança dos brasileiros que participam e expressam a
Figura 7
Fraternos segurando chapéus e bandeira descrevendo a origem da Fraternidade Folclórica San Simón em apresentação no Memorial da America Latina no dia 4 de agosto de 2013.
Fonte: Material do Pesquisador
8
‘cultura popular’, relacionam-se com a alteridade local e com conterrâneos devido a
familiaridade que constroem, expõe o particular caso das fraternidades bolivianas que
investem no resgate de símbolos e práticas no contexto migratório como vem ocorrendo
na cidade de São Paulo e com isto fazem uso de seus espaços.
O recado aí é claro: nós carregamos um ‘nome’ cuja importância ultrapassa
fronteiras e representa um coletivo muito maior, um país até, com um passado e uma
história comum. Bem como representa um coletivo que não possui um brasão por que é
só uma associação que expressa uma dança. Mais do que isto se trata de um coletivo
que expressa gestos históricos e possui também certa origem, certa ‘tradição’, digamos.
Quer dizer, a bandeira e o orgulho dos fraternos diante dela (presente na
foto), bem como a significativa fala dos fraternos entrevistados, dão conta de uma
unidade que se forma por meio do uso de símbolos e práticas diferenciadoras e de senso
de “nós” cujo eixo são os sentimentos de pertença e reconhecimento, embora veiculado
aos locais, participando do espaço público.
2.2 - A Dança e o Traje Folclórico como expressão cultural.
Se existe algo do qual os fraternos se orgulham, certamente, são seus trajes e
suas danças folclóricas. Embora, o folclore boliviano envolva uma série de narrativas,
gestos, cores, sabores, imagens, ícones, etc temos como eixo duas características mais
fortes e evidentes que envolvem as relações sociais da fraternidade sob os quais aqueles
sentimentos de reconhecimento e pertença mediam a inserção no espaço público local e
são certamente o patrimônio mais resgatado neste processo migratório e de circulação.
A dança folclórica expressa pela fraternidade San Simón em diversas
ocasiões religiosas ou não religiosas é o Caporal. Contam os migrantes que o Caporal é
a dança que se origina com os africanos na Bolívia, é a dança ‘dos negritos’. Tem
origem noutra dança chamada Saya, também afro boliviano, sendo descrita ainda
enquanto uma expressividade mais valorada pelos jovens. Embora seja originaria da
região dos Yungas boliviano ao passar dos anos é reutilizada no contexto do carnaval de
Oruro quanto em Cochabamba e, atualmente, também na cidade de São Paulo durante
as festividades que envolvem as celebrações as santas.
A dança representa dois personagens: um homem de chapéu que significaria
o ‘Capataz’, aquele que açoitava os escravos, agredindo-os com chicote e que usava um
chapéu e botas com cascáveis. Outro personagem se trata da filha do fazendeiro onde
trabalhavam os escravos. Embora, também a dançarina seja interpretada como a
9
personagem que provocava o capataz através do seu charme.
Sendo assim, os fraternos, durante o ato da dança devem usar roupas
folclóricas que representem estes personagens. Os homens, por exemplo, utilizam botas
com chocalhos e quando andam ou saltam acompanham compõem com o próprio corpo
parte da musicalidade da dança. Esta musicalidade é expressa ou por bandas ao vivo ou
gravações; devem usar chapéus ou chicotes nas mãos. As mulheres, por sua vez, fazem
uso de saltos, saias curtas, dançando de maneira elegante, sorrindo, demonstrando certo
charme.
Fonte: Material do Pesquisador8
No ato da dança, fazendo uso do traje folclórico, os fraternos organizam-se
conforme uma série de classificações, assim, em Tropas os integrantes subdivididos em
coletivos conforme seus gêneros executam passes em devoção ás santas. A tropa é um
conceito que interpreta a divisão entre masculino e feminino durante o ato da dança
caporal, alias, esta relação se expressa em gestualidades diferentes, ou seja, em maneiras
de se bailar masculina e feminina.
Neste sistema a tropa masculina é classificada em diversas categorias tais
8Estas fotografias descrevem dois Fraternos. A foto 8 descreve a gestualisação dos sentimentos de
simpatia e de charme de uma integrante durante a 18ª Festa do Imigrante no Museu da Imigração em
2013. E a foto 9 descreve um fraterno, sob o título ainda de Guia – por isto do seu uso de apito na boca –
dançando gestualisando com o chapéu que represente o ‘capataz’.
Figura 8 Figura 9 Fraternos apresentando o Caporal durante a 18ª do Imigrante no Museu da
imigração em São Paulo
10
como Machos, Ruchos e Achachis. E as mulheres de Cholitas. No entanto, talvez como
uma subversão de gênero, na tropa masculina há alguns personagens interessantes como
as Machotas - mulheres que no ato da dança executam os mesmos gestos que os
homens, embora o contrário não ocorra. Na tropa feminina há também algumas
categorias que, porém, diferenciam umas de outras, dotando-lhes um certo prestígio. As
Tinas são diferenciadas e admiradas por sua altura, por exemplo. A Miss e a Preferida
são diferenciadas por sua ‘beleza’. Cada tropa detém um Guia, aquele (a) que orienta os
ritmo dos dançarinos, intensificando ou não o seu movimento, numa gestualidade que
explora e perpassa os espaços.
As roupas folclóricas, utilizadas apenas neste momento, são um importante
conjunto de signos e sinais diacríticos que compõem a tradição reinventada e define a
socialidade dos migrantes, inclusive determinando quem é de dentro e quem é de fora.
Sem o traje de dança não é possível se integrar a fraternidade, não é possível ser um
dançarino do San Simón, ou seja, não é possível ser um fraterno.
Produzidas apenas na Bolívia em diferentes departamentos locais e
diferentes oficinas são enviadas para todos os integrantes na cidade de São Paulo. Os
trajes atuais, porém, diferenciam-se do emergente na época da colonização, bem como
do início da fraternidade nos anos 1970, sendo que agora estão mais ‘estilizados’,
segundo os migrantes, e ano a ano suas cores, seus signos e a sua costura muda.
Figura 10 Figura 11
Tropas masculinas apresentando-se durante a 18ª do Imigrante em São Paulo (foto 4). E durante a festa de 4 e 5 de Agosto no Memorial da America Latina em 2013 (foto5).
11
Fonte: Material do Pesquisador9
A justificativa de Reinaldo para a roupa ser produzida na Bolívia é o fato de
que a produção na cidade de São Paulo ser custosa. Porém, não é incomum integrantes
afirmarem que o motivo se deve porque lá há qualidade única de confecção e costura
que não há em outros lugares. Contudo, é preciso dispor de elevada verba para deter
este artefato cultural de pouco mais de R$700,00 dólares ao menos no caso do San
Simón durante o ano de 2013.
È preciso lembrar que a dança folclórica não é de uso ‘cotidiano’. Se na
Bolívia é comum o uso de certos trajes, como a Polera (saia extensa utilizada por
mulheres) e das longas tranças. Estes trajes folclóricos são apenas de uso para o caso de
festividades, nem nos ensaios – com exceção de outras vestimentas como botas ou
camisetas e jaquetas com descrições que contém o nome da fraternidade e seu ‘logo’,
quer dizer, símbolo de nomeação – é de uso.
Por fim, é marcante também como são meios não apenas de demarcar o
reconhecimento entre fraternos, ou seja, ‘quem é de dentro’, mas, paradoxalmente,
classifica quem é de fora. Assim sendo, as práticas de resgate a despeito de um desejo
de que seja para todos devido a forma como é produzido os trajes, o valor material, e o
valor simbólico que gera o ato da delimitação, esta experiência acaba sendo para alguns.
III - Compreender a tradição no contexto migratório.
Coletivos culturais em processo de migração se estruturam em torno de
traços diacríticos tais como rituais, cultos, o parentesco: o seu patrimônio imaterial. Sua
unidade ocorre através da revitalização de traços historicamente emergentes frente a
novos contextos e ímpares.
A cultura popular dos imigrantes é constituída por Signos Diacríticos
(BARTH, 1998) com os quais se localizam e se unem. Assim, por meio dos signos
diacríticos configuram regras, práticas e fronteiras que permitem a inserção de novos
indivíduos, mediam a coabitação e até certo comércio.
9As duas fotos servem bem a título de comparação. As duas tropas são masculinas, na primeira (foto 10)
os fraternos vestem azul, dourado, branco e prata e fazem uso do traje utilizado durante as festividades de
2012, embora a foto seja o registro de apresentação durante a 18ª Festa do Imigrante em São Paulo em
2013. A segunda (foto 11) é um registro sobre os Achachis trajando vermelho, marrom, branco e detalhes
em azul e laranja, roupa esta de 2013 utilizada durante a festa em 4 de Agosto no Memorial da América
Latina.
12
Neste caminho é possível afirmar que coletividades imigrantes que se
configuram em torno de signos diacríticos conferem sua unidade no processo migratório
mantendo-se através da celebração de festas típicas, da alimentação e da religião, etc.
estes signos não são naturais, mas socialmente criado por seus atores que se utilizam de
regras de pertencimento e de reconhecimento dispondo “[...] de suas próprias regras de
inclusão e exclusão (CUNHA; 1986 p.111).”
Apesar de sua aparente anacrônia os grupos étnicos – reconhecidos e
compreendidos como tradicionais – não são vestígios de um passado que permanece,
embora, sua atuação coletiva perpasse pela seleção de símbolos e materialidades
ulteriores que exibem aqueles que serão seus novos filiados.
Sua unidade ocorre por meio de relações sociais que fazem uso da tradição
cultural diferenciando-se de outros parceiros ou rivais e o que ressignificam são os
Sinais Diacríticos (CUNHA, 1986) para novas necessidades. Coletividades em processo
de inserção em novos contextos expressam a tradição cultural, que por sinal consideram
ser dotada de prestígio como uma forma de construir sua socialidade e sua unidade:
A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso
contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova
função, essencial e que se acresce ás outras, enquanto se torna cultura de
contraste: este novo princípio que a subtende, a do contraste, determina
vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se
mais visível, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor
de traços que se tornam diacríticos (CUNHA, 1986, p.99).
Estes traços diacríticos culturais resgatados estão longe de ser determinados
biologicamente, mas, são constantemente reinventados, recompostos e ressignificados.
A organização coletiva e a socialidade realizada por meio de seus usos é a resposta ás
condições políticas e econômicas novas, portanto, estes grupos se servem de certo
arsenal cultural pretérito não para conservarem-no, mas para recriá-lo com novas
finalidades.
Os elementos culturais da tradição são rearranjados e apresentados como
novos, embora extraídos de seu contexto original e pretérito, recebam ressignificações
outras. Um destes traços, justamente, é a língua. Ela é o elemento mais concreto da
permanência dos sistemas simbólicos que organizam a percepção e atuação no mundo,
além do fato de ser um diferenciador social, embora em nosso caso a língua é a dança e
o traje folclórico.
13
Nosso objetivo não é pensar a fraternidade enquanto um grupo étnico fixo.
A proposta destes dois antropólogos cabe a nossa reflexão sobre a formação de
coletivos em processo de usos de artefatos culturais no contexto migratório. É um bom
ponto de partida ao compreendimento da fraternidade folclórica como um coletivo
constituído em torno do projeto de agenciamento e uso de signos e sinais diacríticos
para composição de suas relações sociais na capital paulista e com alteridades na
Bolívia. Portanto, os migrantes ao fazer uso da tradição reinventando-a evidenciam que
são atores sociais utilizando as tradições para recriar experiências e dialogar entre
contextos.
Nesta medida diante da produção histórica de artefatos também históricos é
preciso considerar que o folclore não apenas faz referencia a aspectos históricos, mas
justamente se constitui em uma conjuntura histórica e tem poder de construir esta
conjuntura, além de que os seus agentes, ou aqueles que retomam a fraternidade, são
determinantes e determinados pela história que fazem.
Para os Comarroff (2010) a história10
pode revelar para as ciências sociais a
‘textura cultural de uma época’ (COMARROF; 2010 p.17). Bem como a história
permite situar a vida dos de baixo dentro de contextos amplos, de mundos abrangentes,
do poder e da significação, portanto, em relação com outros sujeitos, textos e práticas.
As ações e os significantes culturais estão situados historicamente mudam e
geram mudanças, sendo assim, os signos e sinais diacríticos (digamos assim)
configuram visões de mundo, mas, são, também, contextualizados e podem ser
reapropriados11
.
O mundo da produção de signos e significados, porém, é fluido, ambíguo,
mutante, contingente: histórico. As relações sociais historicamente, portanto,
configuram-se por narrativas, imagens e práticas de significação. Neste sentido é
10
A teoria histórica escolhida pelos historiadores é a ‘historiografia subalterna’, ou aquela preocupada
com os “significantes” das “massas sem rosto”, aqueles que deixaram “poucos vestígios documentais de
suas trajetórias promotéicas”. Trata-se portanto de uma preocupação com a fixação da memória social e
com a ‘história – em – processo’ dos marginalizados. Trata-se também, da preocupação entre o poder e o
saber, sujeito e objeto, observador e observado, presente na perspectiva analítica da razão ocidental. A
perspectiva de história que seguem é a orientação de Ginzburg uma vez que para este o historiador da
cultura os fragmentos dispersos de uma época - tal como o etnógrafo observa - são fragmentos de um
campo cultural. Fragmento (indivíduos ou eventos) estes que devem ser conectados ao contexto de uma
sociedade historicamente determinada: um mundo de interconexões dotadas de significados. A conexão
entre fragmentos e totalidades significa situar a historia dos de baixo, ou vista de baixo, redimindo os
fragmentos aos contextos mais amplos, nos mundos mais abrangentes do poder e do significado, quer
dizer, dar luz á outros sujeitos, textos e práticas de significação. 11
A cultura, nesta medida, é um espaço semântico ou um campo de signos e práticas no qual os seres
humanos constroem e representam a si mesmos configurando sua sociedade
14
possível dizer que a Cultura (e a cultura popular como tal) é: “um conjunto de
significantes – em – ação situados na história e desenrolando-se ao longo dela,
significantes ao mesmo tempo materiais e simbólicos, sociais e estéticos (COMARROF;
2010:34)”.
Como a produção cultural se volta ao espaço público e é histórica é preciso
considerar que a ordem dos signos materiais e das práticas sociais é naturalizada por
seus produtores muitas vezes sob ideia de universalidade e verdade, portanto, estão em
volta de ideologia. Ideologia, neste caso, é o conjunto de valores, significados e formas
materiais em disputa. È uma ‘visão de mundo’ que se apresenta no cotidiano como
ordem sistemática, imagem, estilos coerentes, fornecendo narrativa para a produção
simbólica e social. Já a hegemonia, seu paralelo, é uma ideologia dominante
naturalizada – ou que naturaliza as estruturas da dominação.
Desta maneira o poder (não só político e cultural) está envolvido na
construção e determinação da cultura12
. O poder é uma qualidade intrínseca dos seres
humanos e da moldura da vida por meio do controle sobre a produção, a circulação e o
consumo de signos, objetos ou na formação de subjetividades e realidades sociais. O
poder é um agente. Um construto imerso na vida cotidiana e nas formas que norteiam as
práticas humanas e as trajetórias individuais e coletivas determinando os signos, os
sinais e a história. O poder é determinante da cultura popular da história. Neste caso é
agente presente na estética e na ética, na representação do corpo13
, no conhecimento e
na produção material.
12
Cultura contém em si mensagens, imagens e ações polivalentes. Significantes-em-ação situados
historicamente. Significantes materiais e simbólicos – sociais e estéticos - que mudam e que também
geram mudanças. Símbolos que configuram visões de mundo mas podem ser alvo de contestação ou
reapropriados, podem ser indeterminados em seu valor. O ‘poder’ deve ser visto dentro deste modo uma
vez que determina os signos. Está dentro da cultura e da história. O poder é um determinante cultural ou
capacidade de fazer os seres humanos modelarem a vida e a formação de suas subjetividades. Poder é um
agente presente nas perspectivas, trajetórias e práticas humanas. A cultura nesta medida é um campo semântico em mutação, um campo de produção simbólica e prática material, permeado pelo poder. O
mundo da produção de significados é fluido, ambíguo, mutante e, também, permeado de narrativas,
imagens e práticas de significação, formas semânticas, materiais e sociais. Embora pareça hegemônica e
coerente (imutável) há forças, estilos, moralidades e visões de mundo alternativa e divergentes. 13
O significado cultural, neste caso, deve ser visto em sua prática histórica ao mesmo tempo em que deve
ser considerado microprática em macroprocesso. Já os atores sociais podem ser vistos como metonímias
da história, desta maneira os eventos históricos não são apenas motores da transformação, senão a
combinação entre o prescrito e o contingente, e ele está, também, localizado em ações que se desdobram.
As relações histórico-culturais e a produção das relações sociais estão permeadas por materialidades
constituídas na estrutura histórica tendo papel importante neste processo além de que são expressas no
corpo, ou materializadas no corpo, por exemplo, o qual é objeto físico e sujeito social. Nele modos
coletivos de ser emergem como disposições, em outros termos, a ‘auto-consciência’ individual e coletiva
– a memória - é carregada na pele. O corpo é uma esfera de disputa e pública. O corpo enquanto
expressão da ‘pessoa’ ou de um ‘estilo (histórico) de vida’ são signos, distinção, são práticas tangíveis.
15
Quer dizer, a produção de relações culturais deve é permeada pelo poder e
pelo determinante histórico. Isto não quer dizer que os imigrantes são receptáculos de
poder, cultura e história. Mas são também agentes de produção, reinvenção e ação
cultural, modificando, por isto mesmo, a história, o poder e a cultura. Trata-se de um
jogo dialético e posições e contraposições de agentes que se autodeterminam.
Ortner (2007)14
compreende que determinadas sociedades compelem seus
atores a ser e agir de uma maneira. Desta forma a cultura15
pode ser pensada como um
sistema de produções de atores quanto forma de ideologia, dominação e de produção de
artefatos históricos:
Se tomarmos a cultura no sentido novo-antigo – como os esquemas
(politicamente infletidos) por meio dos quais as pessoas vêem o mundo e
atuam sobre ele e as subjetividades (politicamente infletidas) por meio das
quais as pessoas têm sentimentos (emocionais, viscerais, ás vezes violentos)
sobre si mesmos e sobre o mundo -, a transformação social implica a ruptura
desses esquemas e subjetividades. E, se tomarmos a cultura no sentido mais
novo – pública, móvel, viajante -, a transformação social funciona, em parte, por meio da constante produção, contestação e transformação da cultura
pública, da mídia e de outras representações de todos os tipos, incorporando e
procurando plasmar antigos e novos pensamentos, sentimentos, ideologias.
Em ambos os sentidos, então, diremos, parodiando um velho ditado: a
transformação social deve ser também transformação cultural, ou não será
nada (ORTNER,2007, p. 40).
Quem joga os jogos sérios políticos-culturais são atores que podem ser
vistos como agentes. A ação (ou agencia) autônoma dos atores não é coisa uma em si,
não está dada, mas é também um processo de estruturação, um fazer e refazer formações
sociais e culturais.
Produtos ideológicos de processos particulares constituídos em conjunturas que estabelecem relações
entre o local e o global. 14
Inspirada em Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Marshal Sahlins e Clifford Geertz, traz-nos a ideia da verificação da relação entre práticas de atores sociais e as grandes estruturas ou sistemas entendendo a
relação dialética entre as coerções estruturais da sociedade e da cultura e as práticas dos atores sociais.
Assim os processos culturais, tais como discursos, representações, sistemas simbólicos, são visto dentro
das relações pessoais e na vida concreta. 15
Houve contemporaneamente segundo a autora três grandes influencias no conceito de cultura que há fez
ser abordada sob outro marco: I) Os estudos sobre mídia e etnografia dentro dos ‘estudos culturais’ na
escola de Birminghan; II) Os estudos sobre mídia e a discussão feminista; III) As publicações da revista
Public Culture que descentralizou a teorização sobre o conceito. Estes três elementos foram ponto de
partida importante para mudar o enfoque da discussão sobre cultura trazendo-a junto das discussões sobre
poder e processo político. Mais de um autor trouxe a crítica histórica junto ao conhecimento
antropológico. Seu impacto ocorreu na metodologia – pois desestabilizou a maneira muitas vezes estática
de investigação – e foi substantiva – fazendo ver as culturas como produtos históricos com dinâmicas
internas e forças externas temporalizadas. A história é duração para Ortner (2007) e a análise do social
deve se situar em um momento historicamente compreendido.
16
E esta agencia não é coisa em si, não está dada, mas é também um processo
de estruturação, um fazer e refazer as formações sociais e culturais. Enquanto cultural e
historicamente constituída a agencia é a ação das pessoas com o objetivo de realizar
projetos valorizados segundo suas categorias de valor. Ela é constituída por
intencionalidade, estados cognitivos e emocionais, enfim vários níveis de consciência
voltados para um fim. É socialmente mediada. Mas também é o resultado de projetos e
práticas rotineiras.
A fraternidade folclórica, portanto, é uma Prática Social (ORTNER, 2007),
onde atores culturais e políticos agenciam danças, signos e sinais diacríticos como trajes
folclóricos, envolvendo-se em datas festivas, de seus países de origem, para mediarem
suas Relações Sociais (ORTNER, 2007) tanto no contexto da cidade de São Paulo como
de alguns Departamentos bolivianos. Sendo que estas práticas são tanto agenciadas
quanto agentes destas relações.
Os fraternos são, portanto Atores Sociais (ORTNER; 2007) que reproduzem
e transformam a mesma cultura popular da qual partilham. Tal prática social indica que
estas vidas sociais são construídas para a realização de metas e projetos, são Jogos
Sérios16
(ORTNER; 2007), envolvendo ações intencionais, tal como a reinvenção da
cultura da Bolívia em São Paulo.
Uma fraternidade folclórica é uma linguagem ou um projeto cultural
historicamente determinado e ao mesmo tempo transformador da história e da cultura
que lhe determina, dotado de improvisadas relações sociais e agenciamentos de signos e
sinais diacríticos voltados para a construção da unidade dos atores e da experiência
migratória. È uma linguagem que não só ressignifica símbolos, mas, constroem aos seus
atores como tais, sujeitos históricos e de ação social:
Assim, como todos os humanos têm capacidade de linguagem, mas precisam
aprender a falar um idioma particular, todos os humanos têm também a
capacidade de agência, mas as formas específicas que esta assume variam nos
diferentes tempos e lugares (ORTNER, 2007:55).
Os fraternos são os atores que recriam a fraternidade. São sujeitos histórica
e culturalmente determinados sendo que suas práticas – a recriação da fraternidade -
16
Este conceito indica que os atores sociais são culturalmente variáveis, embora universais (porque
participam de uma mesma estrutura social), são também subjetivamente complexos. São os atores sociais
que jogam os jogos sérios, portanto, são eles os agentes da vida social, estão envolvidos em processos,
sistemas mais amplos e complexos onde costuram solidariedades, relações de poder, relações econômicas
e políticas.
17
trata-se de um projeto que ressignifica o folclore mediando por meio dele suas relações
sociais: “esses projetos culturais são jogos sérios, o jogo social de metas culturais
organizadas em e em torno de relações locais de poder” (ORTNER, 2007).
E é justamente esta agencia cultural, historicamente reconstruída e jogada na
metrópole paulista, que reinventa práticas e símbolos ulteriores (o folclore) relacionados
a Bolívia.
Outro elemento importante, por fim, a ser considerado é que os trajes
folclóricos, também são agentes do processo imigratório e de construção das relações,
das práticas e dos atores sociais. A roupa não é um elemento passivo neste processo
histórico da imigração boliviana em São Paulo.
Na visão de Latour (2012) o ‘social’ “é aquilo que outros tipos de
conectores amalgamam” (LATOUR, 2012, p. 22), isto significa que os agregados
sociais – a coletividade - são associações específicas.
Os agregados sociais é um tipo de conexão e associação, mas são também
um complexo heterogêneo que necessita reunir-se em uma dada circunstancia: “um
movimento de reassociação e reagregação” (LATOUR, 2012, p.25), portanto em
constante processo de construção. Não é um sistema ou uma estrutura propriamente a
ser revelada pelo cientista sócia, nem está dado ‘naturalmente, mas é complexificamente
construído. Ocorre que este ‘social’ se constitui (ou se agrega) por meio de traços
disseminados a cada nova associação: “Ser social já não é uma propriedade segura e
simples, é um movimento que ás vezes não consegue traçar uma nova conexão e
redesenhar um conjunto bem formado (LATOUR, 2012, p. 26).”
A ação do ator social é partilhada coletivamente e é um acontecimento. A
ação social pode ser compreendida como uma espécie performance isto quer dizer que
os coletivos e os indivíduos não agem conforme um padrão, nem reproduzem
comportamentos padrões, mas os (re)criam. O ator não é um indivído estático e sua ação
é processo, portanto, performática:
Por definição, a ação é deslocada. A ação é tomada de empréstimo,
distribuída, sugerida, influenciada, dominada, traída, traduzida. Se se diz que
um ator é um ator-rede, é em primeiro lugar para esclarecer que ele
representa a principal fonte de incerteza quanto á origem da ação – a vez da
palavra “rede” chegará no devido tempo (LATOUR,2012, p. 76).
18
O social (conjuntural) em conexão com a ação social pode ser pensado ao
lado da idéia de rede, e é aqui que surge a Teoria do Ator-Rede (LATOUR, 2012, p.18)
como suporte que dialoga com as colocações anteriores.
Com este horizonte aquilo que se refere ao ‘não-humano’, ou seja, aos
objetos, a ciência e a tecnologia, ou os trajes folclóricos, por exemplo, possuem agora
um papel e uma importância ativa na construção das relações sociais. A cultura popular
não é passiva mas é também ator do processo migratório influindo na produção das
relações sociais dos imigrantes e na sua unidade, ou seja, nos agregados sociais, os
quais inclusive são modificadas com a inserção de novos objetos, novos artefatos
(atores) ao mesmo tempo em que são constituídas em seu entorno.
Portanto, para haver ação e vínculo social é preciso também haver objetos –
ou certa materialidade - que desempenhem papeis sociais de agregação do coletivo. Eles
são partícipes do curso da ação de construção do coletivo político cultural que por sua
vez está constituído em torno de vínculos e laços. Assim os objetos são determinantes
enquanto pano de fundo ou concreto que evidencia associações funcionando como
autorizantes ou concessão. A materialidade da cultura não é mediadora de laços sociais,
são intermediários, desde que induzam os atores político-culturais a agirem.
A tradição inventada vista por Hobsbawn ([1984] 1997), e que nos serve de
luz para pensar o folclore diante de conjunturas históricas, trata-se, das práticas
ritualizadas e dos artefatos culturais reinventados que mediam a constituição da
coletividade migrante. O que a fraternidade reinventa é a tradição (material das roupas,
dos símbolo, das danças, etc). A Tradição [re] Inventada17
produz continuidade entre
uma narrativa sobre o passado boliviano (um passado histórico reapropriado) que é
inerente ao processo migratório, regulando-o através de tais práticas rituais e simbólicas
as quais são meio de inculcar valores e normas.
As tradições históricas e culturais são recriadas no tempo e embora possam
desfalecer expressam processos de transformação social que produzem, por sua vez,
novos padrões sóciohistóricos. Sua referencia é um tempo pretérito, por exemplo muitas
danças bolivianas se referem a personagens do período colonial, mas seu efeito no
17
Fazemos uso do conceito de Hobsbawn (1997) a “Invenção das Tradições” como central a nossa
pesquisa. No entanto, reafirmamos que partimos da qualidade de sua compreensão sobre os usos de
artefatos e do folclore e não de sua reprodução, sendo assim, insistimos que apesar de concordar com o
autor de que as tradições são criadas por grupo políticos em conjunturas históricas para fins estratégicos,
neste caso dos bolivianos, trata-se de um novo uso de tradições criadas num passado e não criação de algo
inédito. Nossa perspectiva é que os migrantes recriam, como uma espécie de “Bricoleur” levistrousseano,
diversos símbolos, gestualidades, trajes, etc para constituírem suas relações sociais em num processo em
que mudanças históricas vem ocorrendo na cidade de São Paulo no que se refere a luta política.
19
processo de migração fornece ao migrante coesão para este lhe dar com as novas
realidades territoriais, temporais, culturais e políticas encontrados no novo contexto
vivido. Portanto, enquanto realidade sóciohistórica a reinvenção da tradição boliviana
expressa a produção de representações socialmente partilhadas e identificações
comunitárias no contexto da cidade de São Paulo.
William18
, 25 anos, integrante da fraternidade na condição de guia19 de
tropa, tem uma das visões mais significativa sobre a fraternidade, ou melhor, em como
no processo de reinvenção de tradições no processo migratório que a fraternidade media
a unidade de cada ator social. Comentando sobre o porque resolveu participar de uma
fraternidade nos mostra a força de coesão sociocultural que fornecem aos migrantes e
seus descendentes:
Eu to na San Simón faz cinco anos, eu não tinha contato nenhum com a
comunidade boliviana, aí eu resolvi entrar, eu só jogava bola com boliviano.
Minha irmã dançava num grupo chamado Kantuta há uns dez anos mais ou
menos, ai eu nunca queria dançar, na realidade eu nunca queria dançar, tomei
gosto assim do nada, meu contato com o boliviano era somente no futebol,
jogava bola, só que aí eu acabei vendo um ensaio só, acho que é assim a
paixão, porque muita gente fala muito....porque quando eu falo assim pro
amigo assim brasileiro, ah você dança num grupo folclórico boliviano, ah o
pessoal não tem muita cultura, alguns acham assim a coisa bonita, outros não.
Tem que ir lá e assistir, eu assisti um ensaio, tomei gosto e entrei...tem que
olhar, porque assim, o boliviano é muito pregado á cultura. Eu acho isso legal
da Bolívia, eles não largam a cultura por nada, tem uma festa, o carnaval da
Bolívia você faz com danças culturais, então é...acho uma coisa sensacional,
uma coisa que eu não vejo aqui, entendeu? Muita cultura, eles pegam as
raízes, roupas típicas, dançam com fé e devoção, acho isto bem legal.20
A fala interpretativa deste fraterno é explicativa sobre como a dança do país
de origem é um modelo para a convivência social dos mais jovens através de signos e
sinais diacríticos (a tradição reinventada) em novas cidades mediadas pela fraternidade.
Embora seja um relato sobre sua trajetória nos fornece uma noção de como a tradição é
recriada por seus atores, justamente, para que detenham modelos para o comportamento
diante das mudanças (a migração, por exemplo), embora a referencia não seja um
passado político, no caso, é por meio da linguagem da dança, da linguagem da tradição,
a inserção no novo, portanto:
18
Todos os nomes presentes neste artigo são fictícios. 19
Mais a frente explicaremos uma série de títulos inerente a prática da fraternidade e sua relação com os
símbolos e valores da tradição cultural. 20
Esta entrevista foi realizada no contexto de uma apresentação da fraternidade folclórica San Simón
durante a 18ª do imigrante no Museu do Imigrante em São Paulo no ano de 2013. Embora não
reproduzimos todo o diálogo, alertamos que a fala do jovem foram respostas á algumas perguntas nossas
sobre o contato que ele possuiu com o folclore e a fraternidade ao longo de sua trajetória.
20
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente
reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se
estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado
(HOBSBAWN, [1984] 1997, p.09).
Pode-se pensar, então, que a tradição inventada é um sistema simbólico
diacrítico que em contextos de encontro, circulação e permanência (para aqueles que
residem no novo contexto) fornecem e mediam a construção da coletividade. A dança
folclórica boliviana uma vez institucionalizada serve aos propósitos das fraternidades.
Por fim, afirmamos haver um processo dialético entre a fraternidade ser
projeto cultural de agenciamento da tradição inventada - ressignificando e revivendo
signos e sinais diacríticos - e ser também a produtora das relações sociais fornecendo-
lhes por isto mesmo um original modo de vida na metrópole paulista, ou melhor: “Mais
interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de elementos antigos na elaboração
de novas tradições inventadas para fins bastante originais” (HOBSBAWN, [1984],1997,
p. 14), e um destes fins é o atravessamento das fronteiras políticas, culturais e históricas.
Bibliografia
BARTH, Frederik. Grupos Ètnicos e suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe.
Teorias da Etnicidade. Seguido de Grupos Étnicos e suas fronteiras de Frederik Bath /
Philipe Poutignat, Jocelyne Striff-Fenart; tradução de Elcio Fernandes. – São Paulo:
Fundação Editora da Unesp, 1998. – (Biblioteca básica).
COMARROF, J.&J.Etnografia e Imaginação Histórica. PROA – Revista de
Antropologia e Arte [online]. 2010, vol.1, n.2. Disponível em:
HTTP://www.ifch.unicamp.br/proa/traduçoesII/comaroff.html.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade /
Manuela Carneiro da Cunha. – São Paulo: Brasiliense: Editora da Universidade de São
Paulo,1986.
HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra (interrogação) in: SOVIK, L.
(org.) Da diáspora, Identidades e Mediações Culturais . Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2003.
HOBSBAWN, Eric. & RANGER, Terence. A invenção das Tradições. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1997. 5ª Edição. (Coleção Pensamento Crítico; v. 55).
21
LATOUR,B. Reagregando o Social – uma introdução á teoria do Ator-Rede. São
Paulo: EDUSC,2012.
ORTNER, S. Poder e projetos: Reflexões sobre a Agência. In: ECKERT, C.;
GROSSI, M. P.; FRY, P. (orgs) Conferências e Diálogos: saberes e práticas
antropológicas. Blumenau: Nova Letra, 2007.
ORTNER, S. Uma atualização da teoria da Prática. In: ECKERT, C.; GROSSI, M.
P.; FRY, P. (orgs) Conferências e Diálogos: saberes e práticas antropológicas.
Blumenau: Nova Letra, 2007.
ROCHA, Gilmar. Cultura Popular: Do Folclore ao Patrimônio. Rev. Mediações v,
14, n.1, pp. 218-236, jan / jun.2009.