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RESPONSABILIDADE CIVIL NA CONJUGALIDADE E ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS Rolf Madaleno 1 www.rolfmadaleno.com.br SUMÁRIO 1. A responsabilidade civil 2. Responsabilidade civil subjetiva e objetiva 3. Pressupostos da responsabilidade civil 3.a. Ação ou omissão 3.b. Relação de causalidade 3.c. Dano material e dano moral 4. Os graus de culpa 5. Abuso do direito 6. A responsabilidade civil no direito de família 7. Afastamento da culpa na ruptura do casamento 8. A natureza jurídica dos alimentos 9. Os alimentos compensatórios 10. Diferenças entre obrigação de alimentos e a pensão compensatória 11. Responsabilidade objetiva no direito de família 12. Constituição de capital 13. Bibliografia 1. A responsabilidade civil Todo cidadão tem o peculiar dever de ressarcir qualquer conduta sua consciente, que tenha eventualmente vulnerado e imposto um dano a outro sujeito, quer esta violação decorra de uma transgressão contratual, quer se 1 Advogado e Professor de Direito de Família na Graduação e Pós- Graduação na PUC/RS. Diretor Nacional do IBDFAM. Mestre em Direito pela PUC/RS.

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Page 1: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

RESPONSABILIDADE CIVIL NA CONJUGALIDADE E ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS

Rolf Madaleno1

www.rolfmadaleno.com.br

SUMÁRIO

1. A responsabilidade civil 2. Responsabilidade civil subjetiva e objetiva 3. Pressupostos da responsabilidade civil 3.a. Ação ou omissão 3.b. Relação de causalidade 3.c. Dano material e dano moral 4. Os graus de culpa 5. Abuso do direito 6. A responsabilidade civil no direito de família 7. Afastamento da culpa na ruptura do casamento 8. A natureza jurídica dos alimentos 9. Os alimentos compensatórios 10. Diferenças entre obrigação de alimentos e a pensão compensatória 11. Responsabilidade objetiva no direito de família 12. Constituição de capital 13. Bibliografia

1. A responsabilidade civil

Todo cidadão tem o peculiar dever de ressarcir qualquer conduta sua consciente,

que tenha eventualmente vulnerado e imposto um dano a outro sujeito, quer esta

violação decorra de uma transgressão contratual, quer se trate de responsabilidade

aquiliana, quando ausente relação jurídica entre o autor do dano e a vítima do ilícito.

Por conseguinte, ao agir no plano dos fatos ou dos contratos, todo ser humano tem o

dever de abster-se de causar qualquer comportamento lesivo para com as demais

pessoas, sob pena de ser civilmente responsabilizado em comando ao sistema normativo

por quebra de dever de conduta contratual ou imposto pela lei.

O fundamento da responsabilidade extracontratual ou aquiliana está centrado na

culpa do agente causador do dano, identificado pelo artigo 186 do Código Civil

brasileiro ao estabelecer que, pratica ato ilícito quem, por ação ou omissão voluntária,

negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que

1 Advogado e Professor de Direito de Família na Graduação e Pós-Graduação na PUC/RS. Diretor Nacional do IBDFAM. Mestre em Direito pela PUC/RS.

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exclusivamente moral. A responsabilidade extracontratual não se restringe unicamente à

culpa, mas inclui também a conduta dolosa do agente, quando ele teve a intenção de

causar o dano, e embora pudesse prevê-lo e evitá-lo, assumiu o risco com seu agir. Não

é nada fácil identificar os elementos fáticos caracterizadores do agir. Caio Mário da

Silva Pereira2 colaciona seu conceito sobre a culpa dizendo se tratar de um erro de

conduta, cometido pelo agente que, procedendo contra direito, causa dano a outrem,

sem a intenção de prejudicar, e sem a consciência de que o seu comportamento poderia

causá-lo.

Tem sido de consenso doutrinário conceituar a culpa como um erro de conduta,

que termina por lesar o direito alheio, entretanto, exige como contrapeso um padrão de

conduta, porque nem todas as pessoas agem da mesma maneira. Também há consenso

de que as ações humanas não respondem a um único padrão, e que as reações pessoais

levam em conta uma série de fatores internos e externos a serem considerados na

avaliação subjetiva da conduta de um indivíduo.

Conta Marcelo Junqueira Calixto haver sido albergado pela doutrina um

conceito de conduta mais próxima a ser observada por um bom pai de família nas

circunstâncias do caso concreto, em atitudes próprias de um homem prudente,

cuidadoso, vigilante e pontual.3 Um profissional sério e diligente, que trata os assuntos

alheios como se fossem seus. Mas, deve ser rejeitada qualquer fórmula pré-concebida e

abstrata de um homem prudente, diante da sua complexa subjetividade, e, porque a

prudência varia em cada pessoa, conforme sua maior ou menor habilidade, coragem,

experiência ou inexperiência, inexistindo um padrão único ou um standard de bom pai

de família. Basta recordar que a própria conduta da vítima interfere no desenrolar dos

acontecimentos e, desse modo pode contribuir para a execução do evento danoso, de

sorte que a culpa precisa ser avaliada no seu contexto em concreto.

E definitivamente não existe um padrão exclusivo de diligência e de

razoabilidade, observando Anderson Schreiber4 ser cada vez mais difícil, frente às

2 PEREIRA,Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, 9ª ed., Rio de Janeiro:Forense, 1998, p.69.3CALIXTO. Marcelo Junqueira. A culpa na responsabilidade civil, estrutura e função, Rio de Janeiro:Renovar, 2008, p.12-13.4SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil, da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos, São Paulo:Atlas, 2007, p.39.

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complexidades da vida, com a especialização das atividades humanas e com o avanço

da tecnologia pudesse o julgador, isolado em seu gabinete, estabelecer o cuidado médio

que deveria ser elaborado em uma empresa ou na conduta do homem para encontrar em

sua decisão a definição de um padrão de diligência. Vivenciamos o fenômeno da

fragmentação do modelo de conduta e precisamos nos socorrer de uma orientação plural

de procedimentos técnicos de proceder, e de recomendações de entidades especializadas

nas áreas de aferição dos fatos.5

Uma avaliação moderna do significado de ser um bom pai de família pode ser

encontrado em uma pessoa razoável, que leva em consideração os interesses de outras

pessoas ao seu redor, cujos direitos não podem ser lesados a qualquer preço, e por isso

agir com cuidado e perícia, preocupado com o direito alheio. Se for preciso usa métodos

alternativos para alcançar propósitos lícitos, muito embora, a maior proximidade entre

as pessoas em decorrência do afeto, da amizade ou do parentesco, pode implicar em um

relaxamento desses cuidados, pelo excesso de confiança que une essas pessoas.

Portanto, na apuração judicial da culpa do agente o magistrado levará em

consideração uma valoração objetiva, ponderando critérios e valores pessoais, frutos de

sua formação e experiência de vida, e irá considerar um juízo genérico que qualquer

homem médio deveria adotar como norma de conduta social, de uma pessoa sensata ou

técnica, para a hipótese de oferecer seus préstimos profissionais na execução de alguma

tarefa com responsabilidade contratual.

Para configurar o ato ilícito devem estar presentes: i) uma conduta dolosa ou

culposa ilícita; ii) a existência de um dano material ou moral; e iii) o nexo de

causalidade entre a conduta e o dano.

2. Responsabilidade civil subjetiva e objetiva

A responsabilidade era fundamentada exclusivamente na teoria da culpa, que,

presente, obrigava a reparar o dano pela responsabilidade subjetiva. Dentro desse

prisma, o dever de o agente reparar o dano só se configurava se tivesse agido com dolo 5 SCHREIBER, Anderson. Ob. cit., p.41.

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ou culpa. Ao lado da responsabilidade subjetiva surgiu a teoria da responsabilidade

objetiva, ou do risco, pela qual, todo o dano deve ser indenizado, independentemente da

culpa, bastando estar presente o elo do nexo causal. Por vezes, a culpa é presumida e

nesses casos há inversão do ônus da prova, devendo a vítima apenas demonstrar a ação

ou omissão do agente e o dano dela resultante, salvo que o demandado comprove a

culpa exclusiva da vítima ou a ocorrência de força maior. A teoria da responsabilidade

sem culpa proclama a reparação do dano por uma crescente necessidade de socialização

do direito, não importando se o agente agiu com acerto ou desacerto, pois acima dos

interesses individuais devem ser garantidos os interesses sociais. O ponto de partida da

socialização do direito está na denominada solidariedade social, cujo suporte fático é a

pessoa humana e a defesa de sua dignidade. Seu propósito é o de reduzir as

desigualdades sociais e o desequilíbrio existente na qualidade de vida das pessoas. Leva

em conta a vulnerabilidade da pessoa humana e a melhor tutela dos direitos da

personalidade quando surgir qualquer conflito entre uma situação jurídica material e um

direito existencial.6

Na teoria do risco a prova da culpa é totalmente prescindível, bastando

demonstrar o nexo causal entre a ação do agente e o dano, pois a noção de culpa é

substituída pela ideia de risco e o dano é reparado em razão da atividade realizada pelo

agente causador, por conta do benefício que extraí em seu proveito ao assumir uma

atividade de risco calculado. A culpa não é suficiente para abarcar todas as hipóteses de

responsabilidade e, embora o Código Civil brasileiro tenha adotado a teoria subjetiva da

responsabilidade civil, construída na idéia de ocorrência de culpa ou de dolo, o sistema

legal brasileiro também acolheu a teoria da responsabilidade objetiva em diversas

passagens do Diploma Civil, e em outras leis esparsas, como por exemplo, o risco

proveniente dos contratos de transporte. Portanto, a culpa isoladamente, não é suficiente

para regular todos os casos de responsabilidade civil,7 e por isso não exclui uma

ampliação dos casos de dano indenizável que surgem com a teoria da responsabilidade

objetiva.

6 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana, uma leitura civil-constitucional dos danos morais, Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p.120.7 GONÇALVES, Carlos Roberto. (Coord.) AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Comentários ao Código Civil, São Paulo:Saraiva,v.11, 2003, p.30.

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3. Pressupostos da responsabilidade civil

Quem por sua ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência violar

direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito e ao

causar um dano deve repará-lo. Os pressupostos de caracterização da responsabilidade

civil são: a ação ou omissão; a culpa ou dolo do agente; o nexo causal e o dano sofrido

pela vítima.

3.a) ação ou omissão

A responsabilidade deriva de ato próprio, de ato de terceiro, como nas hipóteses

dos danos causados por filhos, tutelados ou curatelados, pelos empregados, prepostos,

hóspedes e agentes públicos, assim como o dano pode ser causado por coisas ou animais

3.b) relação de causalidade

O dever de reparar o dano depende da existência do nexo causal entre a conduta

do agente e o resultado danoso. Para que surja o dever de indenizar deve existir um elo,

uma relação de causa e efeito entre o dano sofrido pela vítima e a conduta ilícita do

agente, pois se a causa do dano não está relacionada com o comportamento do agente,

resta ausente a relação de causalidade e a obrigação de indenizar. Existe uma

pluralidade de teorias buscando explicar o nexo causal que deflagra o dever de

indenizar, sendo imprescindível demonstrar essa vinculação entre o ato e o resultado

danoso para efeito de responsabilidade civil, de sorte que o dano não existiria se não

fosse pelo ato doloso ou culposo do agente ao qual o ato é necessariamente atribuído. A

jurisprudência tem relativizado o nexo causal ao adotar suas mais diferentes teorias para

legitimar o ressarcimento dos danos sofridos pela vítima, criando a expansão do dano

ressarcível8 e, no direito de família tem restringido sua incidência pelo temor na

banalização das relações de afeto.

3.c) dano material e dano moral

O dano a ser reparado pode ser material ou meramente moral, mas só o efetivo

prejuízo proveniente de ato ilícito do agente deve ser civilmente reparado, pois

8 SCHREIBER, Anderson. Ob. cit..,p.75.

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nenhuma indenização poderá ser exigida, apesar da violação culposa ou dolosa de um

dever jurídico, se deste ato não houve qualquer prejuízo. O dano material é aquele que

afeta exclusivamente o patrimônio da vítima e representa o ressarcimento do bem

jurídico lesado e que pode ser quantificado economicamente, ao passo que o dano moral

ou imaterial, consolidado pelo artigo 5°, V e X da Carta da República, não tem como ser

economicamente mensurado e tem por objetivo ressarcir qualquer sofrimento ou

incômodo humano que não é causado por perda em pecúnia.9

4. Os graus de culpa

Embora o Código Civil não faça nenhuma distinção entre as medida de culpa

para efeito de reparação do dano, ela tem sido classificada em três diferentes graus:

grave, leve ou levíssima. A culpa grave revela um erro de conduta grosseiro e absoluta

falta de cautela, quase se aproximando do próprio dolo eventual, que acontece quando o

agente assume o risco de produzir o resultado danoso, ainda que não o deseje, Contudo,

na culpa grave, inexiste a intenção e tampouco o agente assume intencionalmente o

risco de produzir o dano, mas seu agir, no entanto, carece da percepção que qualquer

pessoa seria capaz de verificar, para evitar o dano. A culpa grave decorre da violação do

dever de diligência exigido de uma pessoa de média inteligência e seu grau de

negligência vai ao extremo da inconsequência, como no exemplo de um motorista

embriagado. Na culpa leve, o erro de conduta não seria cometido pelo ser humano

prudente e a culpa levíssima seria aquele desvio de conduta que nenhum diligente pai de

família causaria. Marcelo Junqueira Calixto exclui qualquer relevância à culpa graduada

como levíssima, pois se a falta de um mínimo de diligência já seria suficiente para gerar

a responsabilidade do agente, mostra-se totalmente irrelevante distinguir a culpa

subjetiva da responsabilidade objetiva,10 até por que, é sabido que o maior ou menor

grau de culpa não interfere no montante da indenização devida à vítima, que tem direito

ao integral ressarcimento do dano sofrido, embora o artigo 944 do Código Civil autorize

o juiz a reduzir equitativamente, a indenização se houver excessiva desproporção entre a

gravidade da culpa e o dano.11

9 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, Rio de Janeiro:Renovar, 2004, v. I, p.335.10 CALIXTO, Marcelo Junqueira. Ob. cit., p. 116.11 GONÇALVES, Carlos Roberto. Ob. cit., p.301.

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5. Abuso do direito

Conforme prescreve o artigo 187 do Código Civil, também comete ato ilícito o

titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo

seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O abuso do direito

nasceu da prática jurisprudencial, com o intuito de reprimir os atos que, não obstante

praticados com estrita observação da lei, violam o seu espírito.12 Trata-se de uma

conduta lícita, contudo o seu exercício se mostra abusivo e desconforme com a

finalidade da lei, por que de nada adianta ater-se à estrutura formal da lei se pela via

reflexa o agente desvia de seu fundamento axiológico, como corrente exemplo sucede

no desvio de finalidade pelo uso abusivo da personalidade jurídica, que deve ser

episodicamente desconsiderada quando o sócio ou a sociedade se desviam dos fins

sociais do contrato para fraudar direito de terceiro. A doutrina do abuso do direito

dispensa a existência de culpa e decorre do dever que todo cidadão tem de ressarcir o

dano que causa ao direito de outrem quando abusa de um direito. Observa Carlos

Roberto Gonçalves que o instituto do abuso do direito é destinado a reprimir o exercício

antisocial dos direitos subjetivos e, portanto, tem aplicação em todos os campos do

direito.13

No direito de família abusa do direito o cônjuge que extrapola em sua defesa

processual, valendo-se de subterfúgios para protelar o tempo de inadimplência de seu

dever alimentar e causar com essa atitude, dano moral e material do cônjuge credor dos

alimentos ao deixá-lo deliberadamente sem recursos para enfrentar suas despesas

ordinárias, perdendo, inclusive, sua moradia pela cobrança judicial do condomínio,

resultando na expropriação de sua moradia e na inclusão de seu nome no cadastro dos

serviços de proteção ao crédito. Sem esquecer toda a exposição e humilhação pública

sofridas pela intolerância dos demais condôminos do imóvel, tudo isso conjuminando

para que o consorte atingido em sua honra e dignidade pessoal, e que também sofreu

perdas materiais com o leilão de sua habitação, ingresse com processo de reparação dos

danos morais e materiais sofridos pelo abuso do direito de defesa do seu ex-cônjuge.

12TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloisa Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Ob. cit., p.341.13 GONÇALVES, Carlos Roberto. Ob. cit., p.297.

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6. A responsabilidade civil no direito de família

O direito de família ainda não tem nenhuma simpatia para com a doutrina da

responsabilidade civil, e o Código Civil brasileiro mantém um conveniente silêncio

acerca da responsabilidade civil nas relações familiares. Como tem acontecido na

maioria das decisões judiciais, a reparação civil tem sido afastada das relações

familiares, especialmente no tocante ao dano moral. Importava realçar no tradicional

direito de família, a defesa da sua estabilidade e da hierarquia na sua estrutura, cujos

preceitos apontam na direção oposta aos princípios da responsabilidade civil.

O Código Civil teria remédios específicos para causas concretas de danos entre

familiares e boa parcela da doutrina argumenta que o rompimento dos casamentos pela

infração dos deveres conjugais deve ser apartado das regras de responsabilidade civil,

porque a legislação já prevê sanções próprias diante da culpa conjugal na falência do

matrimônio e a única consequência jurídica da quebra de algum dever nupcial é a sua

absorção como causa da separação judicial.14

Certamente, o afeto é a nota característica do direito de família e deve ser

encontrado em todas as modalidades de relacionamentos familiares, seja no casamento,

na união estável, e nas demais conexões entre pais e filhos. Esses vínculos representam

a exteriorização de cada um dos projetos de vida idealizados pelas pessoas que

constituem suas ligações baseadas no amor e no afeto. São realidades construindo os

nós afetivos com vocação de permanência, embora precisem aceitar eventuais fracassos

extinguindo vivências projetadas para uma existência vitalícia.

O casamento e a união estável não representam vínculos inquebrantáveis, e

embora o contexto sentimental que una duas pessoas tenha essa expectativa, essas

relações podem persistir por maior ou menor tempo, mas ninguém poderá considerá-las

permanentes, a ponto de não se sujeitarem à ruptura pelos mais variados motivos,

inclusive pelo adultério, que é um fato previsível, não se justificando qualquer

indenização, senão nos casos excepcionais de uma situação vexatória e de enorme

14 GUITIÁN, Alma Maria Rodríguez.Responsabilidad civil en el derecho de família:especial referencia el âmbito de las relaciones paterno-filiales, Navarra:Thomson Reuters, 2009, p.25.

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repercussão social, suficientemente escandalosa para ultrapassar os limites do

desgosto pessoal causado pela conduta do cônjuge adúltero.15

Na Alemanha, não foi admitida a indenização por dano moral (Schmerzensgeld)

pelo descumprimento do dever de fidelidade ou de qualquer obrigação do casamento, e

tampouco o terceiro que se intromete na vida conjugal pode ser acionado por dano

moral, pois não seria concebível que o cúmplice respondesse mais que o próprio

consorte.16 E, principalmente, porque o direito de divórcio alemão está sustentado no

princípio da ruptura conjugal, e se fosse permitido indenizar entre os cônjuges no

direito de família alemão, estaria sendo reintroduzido o princípio da culpa. No

direito alemão o dano moral só pode ser ressarcido em face de violação ao corpo,

saúde ou liberdade.17

Para os defensores da preservação da paz familiar não há espaço no direito de

família para a incidência de qualquer reparação pecuniária, tratando-se de um ramo

especial do direito privado, onde já existem penalidades próprias previstas em lei e

endereçadas aos responsáveis pelo fracasso conjugal, não havendo como enxergar

qualquer conduta irregular e qualquer ato ilícito capaz de ensejar a genérica

responsabilidade dos artigos 186 e 927 do Código Civil. O casamento e a união estável

dependem de afinidades sentimentais dos cônjuges ou companheiros e ambos os

institutos estão sujeitos ao término dos relacionamentos na prática cotidiana das

15 Trecho do voto relatado pelo Des. Maia da Cunha na 4ª Câmara de Direito Privado do TJSP, na Apelação Cível n°361.324.4/7, com o seguinte acórdão: “Dano moral. Adultério. Circunstância que, em si mesma, salvo excepcionalidade inocorrente na hipótese, não acarreta dano moral indenizável. O relacionamento extraconjugal é apenas a consequência de uma união cujos sentimentos iniciais não perduraram no tempo, dando ensejo a que outros se sobrepusessem e levassem algum dos cônjuges ou companheiros à relação afetiva com outras pessoas. Considerações e jurisprudência deste TJSP. Improcedência da ação que se impõe. Recurso dos réus provido e prejudicado o da autora.” 16 GUITIÁN, Alma Maria Rodríguez. Ob. cit., p.29.17 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. A reparação de danos morais por dissolução do vínculo conjugal e por violação dos deveres pessoais entre cônjuges, São Paulo:RT, Revista de Jurisprudência da RT 802, p.18/20.

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relações humanas,18 constituindo-se em uma temeridade para a harmonia familiar a

monetarização da quebra dos relacionamentos.

Conforme Sérgio Gischkow Pereira, essa tendência de vislumbrar em tudo a

possibilidade de especular o dano moral está se tornando perigosa, por se pretender

monetarizar todas as relações sociais ao divinizar o lucro e sacralizar a moeda, em uma

competição desenfreada, e se assim continuar, restará ao ser humano buscar no seu

semelhante apenas uma fonte de renda.19

Eram os tempos da unidade familiar centrada em uma estrutura hierarquizada, e

controlada pelo domínio do marido, chefe e provedor da sociedade conjugal. Também

justificava a imunidade ressarcitória entre os esposos, o temor pelo perigo de

proliferação de demandas triviais e o aumento dos conflitos judiciais familiares,

desestabilizando a paz e a harmonia da família com ações sem nenhuma importância,

cuja serventia se reduziria para dar vazão a desgostos e contrariedades pessoais.

Porém, essa imunidade vai sendo reduzida diante da tendência do valor

conferido constitucionalmente aos direitos individuais das pessoas e do respeito à

autonomia de vontade nas relações conjugais e familiares. A visão atual do

desenvolvimento da personalidade e da autonomia do sujeito familiar, com realce para

valores como a igualdade dos cônjuges, e o da concepção do poder familiar, a outorgar

a função dual de pai e mãe, e os novos modelos de constituição familiar, trazem para o

direito familiarista os princípios do direito ao ressarcimento de danos.

Embora ainda presente no ordenamento jurídico brasileiro um princípio de

imunidade da responsabilidade civil nas relações familiares, é fato incontestável

que recentes decisões judiciais parecem estar rompendo essa imunidade da família ,

como fez o desembargador Ênio Santarelli Zuliani, em declaração de voto vencido, na

18 Voto vencedor declarado pelo Desembargador Maia da Cunha na Apelação Cível n. 465.038-4/0, da 4ª Câmara de Direito Privado do TJSP, j. 29.05.2008, com a seguinte ementa: “Dano moral. Adultério. Circunstância que, em si mesma, salvo excepcionalidade. Inocorrente na hipótese, não acarreta dano moral indenizável. O relacionamento extraconjugal é apenas a conseqüência de uma união cujos sentimentos iniciais não perduraram no tempo, dando ensejo a que outros se sobrepujassem e levassem algum dos cônjuges ou companheiros à relação afetiva com outras pessoas. Considerações e jurisprudência deste TJSP. Improcedência da ação que se impõe. Recurso provido.” 19 PEREIRA, Sérgio Gischkow. Estudos de Direito de Família, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.82.

10

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Apelação Cível n. 361.324-4/7 da 4ª Câmara de Direito Privado do TJSP (aresto

reproduzido na nota de rodapé n.13, supra), ao reconhecer o direito de a esposa traída

pela infidelidade conjugal do marido ser ressarcida pelo dano moral que sofreu, não em

decorrência da perda do afeto, mas como resultado da conduta desleal do esposo e que

se constituiu em verdadeiro abuso do eventual direito que tinha de terminar seu

relacionamento.20

Essas mudanças surgem da independência e da igualdade alcançadas pelos

cônjuges, com a superação da visão de chefia da sociedade nupcial pelo homem que

deixou de ser o único provedor da família, observando Vitor Ugo Oltramari, não ser

demais observar que o pedido de dano moral precisa estar fundado em ato injusto

do outro parceiro, não se esgotando o direito na mera ruptura da sociedade

conjugal,21 e imposição das sanções próprias pela violação dos deveres matrimoniais,

mas também transitando pela via paralela oferecida pelo instituto da responsabilidade

civil.

É tal qual foi bem lembrado por Alma Maria Rodríguez Guitián, de que nem

sempre em nome da paz familiar se deve excluir a responsabilidade civil no âmbito

familiar, sendo forçoso discernir quais seriam os danos próprios das sanções previstas

no direito de família, e quais seriam as violações que vulneram a relação em família,

que devem ser objeto de ressarcimento, cujo grau de gravidade é capaz de romper o

equilíbrio dos vínculos em família e ferir direitos fundamentais do parente ou parceiro

vitimado.22 Pode até não ser indenizável o simples descumprimento de um dever

conjugal, e realmente a sua admissão poderia afetar a paz familiar, acarretando uma

indesejável multiplicação de pleitos judiciais, mas o fato de existir um dano em concreto

20 Ao declarar seu voto vencido na Apelação Cível n. 361.324-4/7, j. em 27.03.2008, o Desembargador Ênio Santarelli Zuliani redigiu a seguinte ementa: “Responsabilidade civil. Adultério do marido praticado com mulher do relacionamento social da família e que motiva o abandono abrupto do lar, desestruturando a vida da mulher abandonada, tanto no aspecto financeiro como na administração dos interesses comuns, especialmente por testemunhar o filho mais novo ser tomado pelo vício das drogas. Ato ilícito que ultrapassa os limites do Direito de Família e que provoca lesão a direitos da personalidade, justificando a indenização por danos morais, admitida a solidariedade da amante, pela maneira maliciosa de agir. Não provimento do recurso dos requeridos, com provimento, em parte, do recurso da autora, majorando o quantum para R$20.000,00.”21 OLTRAMARI, Vitor Ugo. O dano moral na ruptura da sociedade conjugal, Rio de Janeiro:Forense, 2005, p.142.22 GUITIÁN, Alma Maria Rodríguez. Ob. cit., p.88-89.

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a causar séria lesão a direito fundamental de familiar, seja ele moral ou

patrimonial, não pode ser afastado da apreciação judicial e do ressarcimento

pecuniário, como sucede, por exemplo, com os danos à saúde, causados pela

infidelidade, com o risco do contágio por doenças venéreas ou pela AIDS; pelos danos à

integridade física e psíquica provocados pelos maus tratos durante a convivência; os

danos à honra, com os casos de infidelidade, muitas vezes noticiados na imprensa em

revistas de variedades e até em crônicas policiais; os danos à liberdade sexual, pelas

práticas pouco convencionais de um dos cônjuges ou companheiros; pelos danos à

integridade psíquica e à honra, causados pelo nascimento de filhos extramatrimoniais

registrados como se fossem conjugais.23

Danos morais e patrimoniais também são provocados pelos gastos

despendidos na investigação particular, para comprovar uma aventura ou relação

extraconjugal de concubinato, além do ressarcimento com os custos suportados

com a impugnação da paternidade, e com a manutenção de filho registrado pela

presunção do casamento como se fosse prole matrimonial.24

7. Afastamento da culpa na ruptura do casamento

Tendência irreversível do direito de família é a completa abolição das razões

causais nas demandas de separação judicial que deixam de pesquisar o descumprimento

dos deveres do casamento, para prevalecer o direito fundamental à felicidade com o

princípio da ruptura, que toma o lugar processual do superado princípio da culpa. Mas,

o fato de os cônjuges solicitarem a dissolução de sua sociedade afetiva sem alegarem

nenhuma causa, mas tão-só a mera vontade de romper a relação não significa ignorar os

casos patológicos de ruptura dos laços conjugais, quando um dos consortes não tem

nenhum escrúpulo maltratar e humilhar seu consorte, como, por exemplo, em uma

traição tornada pública de forma voluntária ou involuntária, mas debitada essa

divulgação aos atos vexatórios causados pelo cônjuge adúltero; ou naqueles episódios

de crônico e constrangedor alcoolismo, ou de envolvimento com drogas e a triste

realidade da dependência química; sem esquecer os registros da violência física

23 Idem, p.90.24 Ibidem, p.91.

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doméstica e os covardes espancamentos de um cônjuge física e psicologicamente

vulnerável e, portanto, indefeso.25

Para essas ocorrências extravagantes o cônjuge, companheiro ou familiar

agredido e ofendido, tem todo o direito de se socorrer do instituto da responsabilidade

civil para ser ver ressarcido pelo dano moral ou material de que foi vítima. Mas, que

fique bem claro que nem a separação judicial é decorrência do descumprimento de

qualquer um dos deveres do casamento, e que tampouco o direito à indenização pelo

dano familiar é efeito do inadimplemento desses mesmos deveres conjugais, pois se a

Carta da República tutela valores humanos, como a honra, a saúde, a integridade física e

a psíquica, negar ou limitar o dano moral ou material no âmbito do direito de família,

apenas porque a legislação prevê outra cadeia de sanções, significaria entrar em franco

conflito e negar os direitos fundamentais de qualquer cidadão. Basta considerar que esse

mesmo cônjuge ou companheiro, física ou psicologicamente agredido poderia solicitar a

proteção penal, ou dela abdicar e só vindicar em juízo, o ressarcimento financeiro pelo

dano moral ou material sofrido, tudo porque na regulamentação legal existem outros

remédios jurídicos além daqueles previstos no direito de família e no direito penal.

Separação e dano são ações diferentes e respondem à pretensões distintas, pois

qualquer violação a dever nupcial vulnera e desestabiliza faticamente o casamento, que

roto e sem comunhão plena de vida, justifica pedir a separação judicial para terminar

oficialmente o casamento. E, ao decretar a separação ou o divórcio, o magistrado

remedia uma situação de conflito, mas não repara um dano surgido à raiz da lesão de

um direito fundamental. Seria inconcebível admitir que o direito não pudesse ressarcir

um dano por lesão a direito fundamental, apenas por se tratar o agressor de uma pessoa

próxima da vítima e a ela vinculada por duvidoso afeto ou incontestável parentesco.26

25 ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O fim da culpa na separação judicial, uma perspectiva histórico-jurídica, Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.105.26 “Separação judicial. Pretensão à reforma parcial da sentença, para que o autor-reconvindo seja condenado ao pagamento de indenização por danos morais, bem como seja garantido o direito de postular alimentos por via processual própria. Fidelidade recíproca que é um dos deveres de ambos os cônjuges, podendo o adultério caracterizar a impossibilidade de comunhão de vida. Inteligência dos arts. 1.566, I e 1.573, I, do Código Civil. Adultério que configura a mais grave das faltas, por ofender a moral do cônjuge, bem como o regime monogâmico, colocando em risco a legitimidade dos filhos. Adultério demonstrado, inclusive com o nascimento de uma filha de relacionamento extraconjugal. Conduta desonrosa e insuportabilidade do convívio que restaram patentes. Separação do casal por culpa do autor-reconvindo corretamente decretada. Caracterização de dano moral indenizável. Comportamento do autor-

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Page 14: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

A prática do ato ilícito que fere de morte direito fundamental do cônjuge ou

familiar admite e impõe o ressarcimento do dano material, ou a compensação do agravo

moral e, embora a separação judicial ou o divórcio e por sua vez, a indenização

material ou moral tratem de pedidos independentes, nada impede sejam

postulados e cumulados em uma única demanda.

A tendência judicial tem sido no sentido de reconhecer uma dimensão

constitucional aos gravames causados nas relações de família, conjugando os deveres

matrimoniais com os direitos fundamentais da Carta da República. Prevalecem os

direitos individuais das pessoas em família e não prosseguem as sanções ordinárias para

a quebra dos deveres conjugais. Mas, de outra parte, inclina-se o direito civil em

ampliar a reparação dos prejuízos extrapatrimoniais, como corolário lógico da

valorização dos direitos de personalidade na defesa dos direitos individuais da pessoa.27

8. A natureza jurídica dos alimentos

O direito alimentar carrega diferentes características que destoam das outras

obrigações civis, diante de sua especial função de ser vinculado à vida do alimentando e

por atuar em uma faixa de valor superior, indispensável e indisponível para a

sobrevivência do ser humano. Essa sua especial natureza decorre do propósito de

assegurar a proteção do credor de alimentos, mediante um regramento diferenciado,

pois os alimentos cobrem as necessidades vitais do alimentando e sua satisfação não

pode admitir postergações.28

Os alimentos sobrevêm de uma pluralidade de parâmetros, e um deles é o ato

ilícito, muito embora não exista nenhuma divisão do direito em setores ou em

repartições, seu estudo deve ser visto como uma unidade do ordenamento jurídico, sem

nenhuma fragmentação legal, por se tratar de uma disciplina afeta ao direito alimentar,

reconvindo que se revelou reprovável, ocasionando à ré-reconvinte sofrimento e humilhação, com repercussão na esfera moral. Indenização fixada em R$ 45.000,00. Alimentos. Possibilidade de requerê-los em ação própria, demonstrando necessidade. Recurso provido.” (Apelação Cível n. 539.390.4/9 da 4ª Câmara de Direito Privado do TJSP, rel. Des. Luiz Antonio de Godoy). 27LEONARDO, Teresa Marin García de. Remédios indemnizatorios en el ambito de las relaciones conyugales, In Daños em el derecho de família, Navarra; Thomson Aranzadi, n.17, 2006, p.159. 28 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família, 3ª ed., Rio de Janeiro:Forense, 2009, p.634-635.

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Page 15: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

onde devem ser aproveitados todos seus princípios e propósitos para beneficio do

destinatário dos alimentos.

Passagem histórica do direito alimentar brasileiro considerou que, ao lado da sua

função de subsistência, a pensão alimentícia também guardava um viés indenizatório,

tanto que o cônjuge culpado pela separação perdia o direito alimentar mesmo sendo

financeiramente dependente do consorte inocente. Memoráveis lições acerca da

natureza indenizatória da pensão alimentícia são registradas na obra de Tito Fulgêncio,

com suporte no artigo 159 do Código Civil de 1916, aduzindo ser aquele dispositivo a

fonte do caráter indenizatório do direito alimentar, exclusivamente abonado à mulher

inocente e pobre, a título de reparação do prejuízo causado pela conduta do marido e

causa do desquite, que a privou dos recursos que o casamento lhe autorizava a contar

para viver. 29

Também é clássica a lição de João Claudino de Oliveira e Cruz30 sobre a

natureza jurídica da pensão alimentícia, ao lhe conferir um caráter misto de alimentos e

de indenização, para a compensação do prejuízo sofrido com o rompimento do

matrimônio, não se tratando, portanto, de um prolongamento do dever de socorro entre

os cônjuges, mas de uma obrigação de reparar as consequências de um ato ilícito

ocasionado pela ruptura culposa do matrimônio.

Nessa toada também andou Mário Moacyr Porto, ao dizer ter “a firme convicção

de que a dívida de alimentos de que cuida o art.19 da Lei 6.515, de 26.12.77, é, na

verdade, uma indenização por ato ilícito, que se cumpre sob a forma de pensão

alimentar. Uma reparação pecuniária pela dissolução prematura e reprovável da

sociedade conjugal, por culpa de um dos cônjuges.”31

9. Os alimentos compensatórios

O Código Civil brasileiro regulamenta no inciso III, do artigo 1.566, o dever

conjugal da mútua assistência, pelo qual os esposos se devem reciprocamente alimentos

29FULGÊNCIO, Tito. Do desquite, São Paulo:Livraria Academica, Saraiva & Comp.Editores, 1923, p.161. 30 CRUZ, João Claudino de Oliveira. Dos alimentos no direito de família, 2ª ed., Rio de Janeiro:Forense, 1961, p.194-195.31PORTO, Mário Moacyr. Temas de responsabilidade civil, São Paulo: RT, 1989, p.65-66.

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Page 16: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

na constância da sociedade conjugal ou na constância da união estável, conforme artigo

1.724 do mesmo Diploma Civil. Advindo a separação do par conjugal ou convivencial,

os alimentos encontram uma nova denominação institucional no artigo 1.694 do Código

Civil, proporcionando o suprimento das necessidades de subsistência do ex-cônjuge ou

convivente na proporção, inclusive, do padrão social do credor dos alimentos.

A expressão alimentos não tem idêntico significado quando avaliada na

constância do relacionamento afetivo, quando confrontada com sua vocação alimentar

sobrevindo a separação do casal. Assim posto, a mútua assistência é ônus do

matrimônio e da própria união estável, ao lado dos demais deveres de fidelidade,

convivência e respeito recíproco. É o socorro mútuo que os cônjuges e conviventes

devem respeitar e se ajudar reciprocamente, atuando sempre no interesse da família, que

segue unida e solidária. São cargas do matrimônio e subsistem enquanto não existe

qualquer crise conjugal, convivendo ao lado de outros deveres espirituais que os

esposos também têm entre si.

No entanto, quando o casamento entre em crise, o sustento dos consortes já não

mais se dá através do matrimônio e dos chamados encargos conjugais, cedendo lugar

para a obrigação de prestar alimentos do artigo 1.694 do Código Civil, em favor do

cônjuge ou companheiro necessitado.32

Normas diferentes regulamentam os alimentos da mútua assistência em relação

aos alimentos da obrigação, pois com a separação do casal desaparece a comunidade de

vida e se extinguem os efeitos pessoais do casamento, ou da união estável, e no lugar do

mútuo socorro surge uma possível obrigação de alimentos. 33

De outra parte, com o enfrentamento judicial da separação oficial do casal pode

o direito dar margem à pensão alimentícia do artigo 1.694 do Código Civil, ou aos

alimentos denominados de compensatórios, que tem por escopo manter o equilíbrio

econômico-financeiro presente ao tempo da ruptura do matrimônio, ou como escrevia

Tito Fulgêncio em 1923, quiçá, plantando a primeira semente da responsabilidade civil

32 MOZO, Fernando Moreno. Cargas del matrimonio y alimentos, Granada:Editorial Comares, 2008, p.43.33 Idem. Ob. cit., p.45.

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Page 17: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

objetiva nos alimentos compensatórios, quando identificou na pensão alimentícia o

meio de reparar o prejuízo sofrido pela esposa privada, com a separação, dos recursos

do casamento que contava para viver.34

Com a pensão alimentícia o credor atende sua subsistência e satisfaz suas

necessidades de sobrevivência, as quais podem se restringir aos alimentos naturais e,

portanto, aqueles puramente indispensáveis para a manutenção do alimentando, como

podem agregar o estilo de vida do destinatário dos alimentos, tendo em conta o padrão

social experimentado pelos cônjuges.

A pensão compensatória resulta claramente diferenciada da habitual

pensão alimentícia, porque põe em xeque o patrimônio e os ingressos financeiros de

ambos os cônjuges, tendo os alimentos compensatórios o propósito específico de

evitar o estabelecimento de um desequilíbrio econômico entre os consortes. Os

alimentos compensatórios estão à margem de qualquer questionamento causal da

separação, ou do divórcio dos cônjuges e da dissolução da união estável, e

ingressam unicamente as circunstâncias pessoais da vida matrimonial ou afetiva, na qual

importa apurar a situação econômica enfrentada com o advento da separação e se um

dos consortes ficou em uma situação econômica e financeira desfavorável em

relação à vida que levava durante o matrimônio, os alimentos compensatórios

corrigem essa distorção e restabelecem o equilíbrio material.

O artigo 270 do Código Civil francês prevê a pensão compensatória para

compensar as diferenças verificadas no modo de vida dos cônjuges depois de rompido o

matrimônio, podendo ser fixada por acordo dos nubentes ou por decisão judicial e sua

principal distinção da pensão alimentícia reside no seu caráter definitivo, por que não

pode ser revista em razão da modificação dos recursos do devedor ou do credor e os

critérios fáticos para o seu arbitramento.

O Código Civil espanhol regula os alimentos compensatórios no artigo 97 e

ordena que o juiz, na sentença, na falta de acordo do casal, determinará o montante dos

alimentos compensatórios levando em conta uma sequência de circunstâncias que sob

forma alguma irão influenciar no direito aos alimentos compensatórios, mas unicamente 34 FULGÊNCIO, Tito. Ob. e .p.cit.

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Page 18: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

na sua quantificação, consistindo-se das seguintes variantes: 1ª) Os acordos a que

chegaram os cônjuges; 2ª) A idade e o estado de saúde; 3ª) A qualificação profissional e

as probabilidades de acesso a um emprego; 4ª) A dedicação passada e futura à família;

5ª) A colaboração com seu trabalho e as atividades mercantis, industriais ou

profissionais do outro cônjuge; 6ª) A duração do casamento e da convivência conjugal;

7ª) A eventual perda de um direito de pensão; 8ª) A riqueza e os meios econômicos e as

necessidades de um e do outro cônjuge; 9ª) Qualquer outra circunstância relevante.

São situações meramente enunciativas, podendo casos igualmente análogos

influenciar na determinação dos alimentos compensatórios, que tem, portanto, dois

pressupostos, sendo um deles objetivo, que reconhece o direito aos alimentos

compensatórios por uma mera operação aritmética, apurada em razão do desequilíbrio

econômico, e como requisito subjetivo cada um dos questionamentos enunciados pelo

direito espanhol, que servirão de parâmetro para o julgador montar um verdadeiro

quebra-cabeça e ter uma visão global da situação mantida pelos cônjuges durante a

convivência e assim quantificar os alimentos compensatórios.

Na ponderação desses dados destinados a justificar o arbitramento da pensão

compensatória diante da ruptura do casamento, também será necessário considerar a

situação econômico-financeira de cada cônjuge ao início do relacionamento, e bem

assim, sopesar o que cada um já possuía, perdeu ou deixou de produzir em função do

relacionamento, para que a celebração das núpcias, em razão dos alimentos

compensatórios não se confunda com um seguro de vida.35

Pela análise de cada uma dessas circunstâncias próprias da vida conjugal o juiz

formará uma ideia muito precisa do nível de vida do cônjuge durante o matrimônio e

poderá concluir se a separação ou o divórcio o deixou em uma situação visivelmente

desvantajosa em relação ao seu consorte, e em comparação com o modo de vida

experimentado durante o casamento.36

A finalidade da pensão compensatória não é a de cobrir as necessidades de

subsistência do credor, como acontece com a pensão alimentícia, regulamentada pelo

35 Idem, ob. cit., p.65.36GONZÁLEZ, Maria Paz Sánchez. Ob. cit. p.57.

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Page 19: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

artigo 1.694 do Código Civil e sim corrigir o desequilíbrio existente no momento da

separação, quando o juiz compara o status econômico de ambos os cônjuges e o

empobrecimento de um deles em razão da dissolução da sociedade conjugal, podendo a

pensão compensatória consistir em uma prestação única, por determinados meses

ou alguns anos, e pode abarcar valores mensais e sem prévio termo final.

Os alimentos compensatórios não são estranhos ao direito brasileiro, como pode

ser visto em antigo aresto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgado pela 5ª

Câmara Cível, sob o n. 588071712, em 04 de abril de 1989, sendo relator o Des. Sergio

Pilla da Silva e compondo o colegiado os desembargadores Alfredo Guilherme Englert

e Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que, à unanimidade, reconheceram a peculiar natureza

compensatória da pensão em prol da mulher, tendo em conta que o vultoso patrimônio

rentável tocou ao varão e ele pretendia revisar judicialmente o valor dos alimentos

porque enfrentava uma crise financeira e a alimentanda havia se formado em curso

superior.37

Alimentos compensatórios também foram admitidos pela juíza de direito Ana

Maria Gonçalves Louzada, titular da 3ª Vara de Família de Brasília, no Distrito Federal,

na ação de alimentos compensatórios n.2008.01.1.150839-4, onde os alimentos

compensatórios foram fixados no valor liminar de 250 salários mínimos mensais em

favor da alimentanda, que se viu prejudicada diante do desequilíbrio econômico

enfrentado com a separação do casal.38 O despacho foi reapreciado em 10 de junho de

2009, pela 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios,

no agravo de instrumento n.20080020195721, interposto pela própria credora dos

alimentos compensatórios que desejava majorá-los. Entretanto, o tribunal negou

provimento ao recurso por entender que o valor fixado, somado aos rendimentos

37“Alimentos. Ação revisional. Peculiar natureza compensatória da pensão em prol da mulher, considerando que o vultoso patrimônio rentável tocou ao varão. Ação improcedente. Sentença confirmada.” (RJTJRGS n.146, p.220, publicada em junho de 1991).38 Em uma passagem do despacho proferido pela juíza Ana Maria Gonçalves Louzada ela destacou que a alimentanda estava “acostumada ao luxo que o marido lhe proporcionava, acrescido ao fato de que com ele manteve envolvimento afetivo por quase três décadas, dele advindo quatro filhos, é razoável seja mantida em seu nível de vida, eis que hoje se vê alijada de usufruir a enormidade de bens que possuem.”

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Page 20: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

mensais da agravante lhe conferia um elevadíssimo padrão de vida e o valor se mostrava

ajustado para uma cognição judicial ainda sumária.39

10. Diferenças entre obrigação de alimentos e a pensão compensatória

Enquanto a pensão alimentícia está destinada a cobrir as necessidades vitais do

credor de alimentos, inclusive para atender a condição social do alimentando,

constituindo-se em uma verba indispensável para o sustento, habitação, vestuário e

assistência médica do destinatário dos alimentos, sendo proporcional aos recursos da

pessoa obrigada e às necessidades do reclamante (CC, § 1°, art. 1.694), em sentido

oposto, nos alimentos compensatórios a quantia será determinada em razão do

desequilíbrio econômico que sofre um dos cônjuges ou conviventes com a ruptura do

vínculo afetivo e sua finalidade não é a de subsistência, mas a de restaurar, com critério

de igualdade, o equilíbrio financeiro vigente entre os consortes ou companheiros,40 por

ocasião da separação. Não se trata de indenizar nenhuma violação do dever conjugal de

mútua assistência, ou de sancionar a quem rompe a coabitação, mas sim, de situar a

desfeita convivência a um background familiar da união rompida e compensar o

parceiro economicamente prejudicado.

Embora, entre os dois institutos se intercalem algumas características específicas

do direito alimentar, a pensão compensatória está fundamentada na solidariedade

familiar, pela qual devem os cônjuges se manter em prol do consórcio que um dia

estabeleceram e evitar que o cônjuge menos favorecido financeiramente possa ver

agravada a situação econômica desfrutada durante o casamento e a pensão

compensatória justamente restaura esse status desfrutado durante as núpcias.

Os alimentos compensatórios tampouco são uma decorrência natural ou um

efeito automático da ruptura das núpcias, pois a sua fixação será ocasional, dependendo

da concreta situação dos esposos, e dos pressupostos fáticos que conduzam à apuração

39 Eis a íntegra da emente do acórdão n. 361.793(AI n.20080020195721), da 6ª Turma Cível do TJDFT, relator o Des. Jair Soares, julgado em 10.06.2009: “Alimentos compensatórios. Manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. Alimentos compensatórios são pagos por um cônjuge ao outro, por ocasião da ruptura do vínculo conjugal. Servem para amenizar o desequilíbrio econômico, no padrão de vida de um dos cônjuges, por ocasião do fim do casamento. Fixados em valor razoável, não reclamam elevação. Agravo não provido.”40 MOZO, Fernando Moreno. Ob. cit., p.51.

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Page 21: Responsabilidade civil e alimentos compensatórios rolf madaleno

de um efetivo desequilíbrio econômico-financeiro de um cônjuge em oposição ao outro.

Embora a desigualdade já existisse antes mesmo da ruptura do casamento, essa

disparidade era preenchida pelo dever mútuo de socorro presente na constância do

matrimônio.

A pensão compensatória não depende da prova da necessidade, porque o

cônjuge financeira e economicamente desfavorecido com a ruptura do

relacionamento pode ser credor dos alimentos mesmo tendo meios suficientes para

sua manutenção pessoal, pois o objeto posto em discussão é a perda da situação

econômica que desfrutava no casamento e que o outro continua usufruindo. Isso não

significa concluir que a pensão compensatória se propõe a igualar patrimônios e rendas,

pois seu papel é o de tentar ressarcir o prejuízo causado pelo desequilíbrio

econômico, compensando as perdas de oportunidades de produção só acenadas para um

dos esposos.

Além dessas diferenças a pensão alimentícia pode ser revista quando, depois de

fixada sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os

recebe (art.1.699 do CC), enquanto na pensão compensatória as alterações de fortuna do

devedor não justificam a mudança da quantia alimentar, dado à circunstância de os

alimentos compensatórios corrigirem o desequilíbrio existente no momento da

separação, só cabendo a sua redução ou extinção se aumentar a fortuna do credor ou se

diminuírem os recursos do prestador dos alimentos compensatórios.

Portanto, os alimentos compensatórios em nada se confundem com a pensão

alimentícia e sua origem remonta ao direito francês, quando aquele país, no ano de

1975, apagou a discussão da culpa para o estabelecimento da prestação alimentar

compensatória41e passou a considerar o desequilíbrio econômico de forma objetiva, com

total independência da culpa ou inocência do cônjuge credor de alimentos, consagrando

definitivamente, a irrelevância da culpa e a importância apenas da ruptura do

relacionamento, evitando qualquer dramatização causal nos conflitos conjugais. Com o

estabelecimento dos alimentos compensatórios o direito francês admitiu que o cônjuge

41 ALBERDI,Beatriz Saura. La pensión compensatória; critérios delimitadores de su importe y extensión, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, p.32.

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credor percebesse alimentos mesmo quando exercesse vínculos de trabalho, os quais

não supõem a privação do direito aos alimentos compensatórios pelo fato de o credor

dos alimentos ter uma fonte própria de proventos, posto que importa apurar se, com o

rompimento da relação, instalou-se uma visível disparidade na condição de vida de um

dos cônjuges em confronto com a do outro e, destarte, proteger o consorte mais débil

economicamente. Tampouco adianta afirmar que com a partilha dos bens os consortes

se mantêm economicamente equilibrados, se com o marido, por exemplo, ficaram os

bens rentáveis e com a pensão alimentícia a ex-esposa sequer consegue preservar sua

meação.

Outro fato rotineiro nas separações conjugais também ilustra a finalidade dos

alimentos compensatórios quando um juiz reduz o percentual da pensão alimentícia do

cônjuge porque, por exemplo, o pai ainda está ajudando financeiramente filhos maiores

e estudantes. Mas por qual razão a mãe desses mesmos filhos também não pode ajudá-

los financeiramente? E, as respostas são óbvias e cruéis, primeiro, porque ela não mais

desfruta como credora de pensão alimentícia, a cuja categoria foi alçada com a

separação oficial, do equilíbrio econômico e financeiro experimentado durante a

convivência conjugal e o pior de tudo, porque ainda vige na sociedade brasileira o

surrado preconceito da chefia masculina da sociedade familiar.

11. Responsabilidade objetiva no direito de família

O instituto da responsabilidade civil não é uma ciência jurídica estanque e nem

poderia ser, pois sua função é a de restabelecer o equilíbrio jurídico-econômico

anteriormente existente entre o agente e a vítima.42 Como antes mencionado, a

responsabilidade tem diferentes origens, podendo ser contratual ou extracontratual. E

será subjetiva quando for necessária a prova da culpa ou do dolo, e objetiva quando

dispensada a prova do elemento culpa. Até pode existir a culpa, mas ela será irrelevante

para configurar o dever de indenizar na responsabilidade civil objetiva.

A responsabilidade civil objetiva surgiu com a revolução industrial, com o

progresso científico, e com a explosão demográfica ocorrida nos grandes centros

urbanos. Com essas mudanças vieram os automóveis, as indústrias e as máquinas, 42 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, 8ª ed., São Paulo Atlas, 2009, p.13.

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gerando toda sorte de acidentes; no trânsito os automóveis e os serviços de transporte;

nas fábricas os acidentes de trabalho com as máquinas industriais. Logo ficou patente

que a culpa como condição de ressarcir não mais explicava outras necessidades de

reparação civil diante de uma emergente necessidade de proteger uma nova categoria de

vítimas e, diante da luta desigual que passou a ser travada entre o poder e a vítima

desprovida de recursos.43 Seguir condicionando a indenização à prova da culpa se

mostrou injusto para as vítimas e sua cobrança como requisito ao dever de indenizar se

apresentou claramente insuficiente para fundamentar a responsabilidade civil, que

precisava ampliar seus horizontes doutrinários.

Frente a essas novas evidências fáticas de completo desequilíbrio, como refere

Alvino Lima, “era imprescindível, pois, rebuscar um novo fundamento à

responsabilidade extracontratual, que melhor resolvesse o grave problema dos danos, de

molde a se evitarem injustiças que a consciência jurídica e humana repudiavam.”44

Assim, foi preciso que o dano e sua reparação se desarticulassem da culpa,

emergindo a ideia de que a responsabilidade decorre do fato e não obrigatoriamente da

culpa. O fato, na pensão compensatória consiste na evidência de um manifesto

desequilíbrio material causado pelo agente.

O direito de família evoluiu bastante com a Carta da República de 1988, quando

foi oficialmente sufragado o princípio da intransigente proteção da paz doméstica, onde

nada podia abalar a estabilidade do casamento e da família conjugal, e não havia espaço

para o reconhecimento de qualquer reparação por danos materiais ou morais nas

relações de matrimônio.45 Na nova roupagem constitucional as relações familiares têm

como ponto de partida a dignidade humana e a solidariedade familiar, sem mandantes e

sem mandados, vale dizer, sem nenhuma hierarquia patriarcal para abafar os danos

materiais e afetivos causados geralmente pelo marido contra a mulher e filhos.

43 LIMA, Alvino. Culpa e risco, 2ª ed., São Paulo:RT, 1998, p.113.44 Idem, ob. cit., p.114.45 LAGE, Juliana de Sousa Gomes. “Responsabilidade civil nas relações conjugais”, In Manual de Direito das famílias e das sucessões, (Coord.) TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado e RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite, Del Rey/Mandamentos: Belo Horizonte, 2008, p.488.

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Dentro dessa visão, Juliana de Sousa Gomes Lages defende a ampliação de

proteção à autonomia privada nas relações de família para o abrigo da dignidade da

pessoa do personagem familiar.46 A expressão autonomia privada tem o sentido de o

indivíduo conduzir sua consciência de maneira ética, atento aos comandos superiores de

uma organização social e familiar, e assim se apresente em sociedade e diante da sua

célula familiar, como uma pessoa responsável, com proceder tranquilo nas suas relações

de família, como deve agir com equilíbrio nas suas relações para com terceiros.

À vista desses princípios, se mostra plenamente defensável vindicar na seara das

relações de família a reparação dos danos causados pelo desvio de alguma conduta

conjugal capaz de gerar sofrimento ou de propiciar algum desequilíbrio econômico-

financeiro em relação a um dos consortes. Para tanto, deve mais uma vez ser lembrado

que a natureza do instituto jurídico dos alimentos no direito de família tem dois claros

desdobramentos: O primeiro, originado da concepção do dever da mútua assistência

material e imaterial dos cônjuges, que existe e deve estar presente durante todo o

desenvolvimento harmônico do casamento ou da união estável, ocasionando com a

separação do casal o seu segundo desdobramento, este último, consistente no eventual

direito à pensão alimentícia, tendo como único motivo a prova da dependência

financeira do cônjuge hipossuficiente.

Mas, a obrigação alimentar tem várias outras fontes e diferentes fundamentos,

pois surge da lei ou da vontade contratual, como também tem origem em dever

indenizatório.47 Qualquer dessas fontes traz como seu principal objetivo evitar a

miserabilidade do alimentando.48

A apuração do dano causado em seara de direito alimentar independe da

culpa e os alimentos compensatórios assumem a finalidade de cumprir um dever

de solidariedade pós-conjugal,49incidindo unicamente um dano objetivo. A pensão

compensatória busca reparar os prejuízos econômicos causados concretamente com a

46 LAGE, Juliana de Sousa Gomes. Ob. cit., p.492.47 Nesse sentido merece especial referência o artigo 944 do Código Civil:”A indenização mede-se pela extensão do dano.” 48PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e prática dos alimentos, Rio de Janeiro:Aide, 1985, p.13.49 COLOMA, Aurelia María Romero. Reclamaciones e indemnizaciones entre familiares em el marco de la responsabilidad civil, Barcelona:Bosch, 2009, p.67.

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dissolução da sociedade nupcial. A responsabilidade surge exclusivamente do fato

consubstanciado no manifesto desequilíbrio econômico e financeiro de um dos

cônjuges ou conviventes em confronto com o de seu ex-parceiro no momento do

rompimento da relação, sendo avaliadas circunstâncias que atendem a critérios

indenizatórios, alimentícios e equilibradores, todos eles absolutamente alheios à

ideia de culpa. A pensão compensatória conforma, portanto, uma natureza mista de

indenização e de pensão com mais sentido no regime de separação de bens, e se o

cônjuge ainda carece de atividade laboral, vai sendo preenchida cada uma das variantes

fáticas preordenadas pelo artigo 97 do Código Civil espanhol.

A pensão compensatória constitui-se no ressarcimento de um prejuízo objetivo,

surgido exclusivamente do desequilíbrio econômico ocasionado pela ruptura do

matrimônio e carrega em seu enunciado uma questão de equidade.

Na doutrina de Aurelia María Romero Coloma,50 a pensão compensatória

identifica-se com a indenização devida pela perda de uma chance, experimentada

durante o matrimônio pelo cônjuge que mais perde com a separação. E, com efeito, não

é destituída de lógica a equiparação com a teoria da perda de uma chance, porque o

instituto da responsabilidade civil foi levado a acompanhar as transformações

ideológicas e econômicas vivenciadas pela sociedade, prevalecendo hoje, o paradigma

da solidariedade como eixo da dignidade da pessoa humana, e essa dignidade, quando

for preciso repará-la, não pode ficar restrita à existência da culpa e a perda de uma

chance pelos acordos conjugais de concessões e sacrifícios pessoais caracterizam um

prejuízo consumado e o dano a ser reparado é a perda dessas oportunidades.

A pensão compensatória visa a reparar o passado, cuidando para que ele não

falte no futuro. Tem a toda evidência, um propósito indenizatório, que não exclui

sua função compensatória, mas antes, se completa, pois corrige um descompasso

material causado pela separação e compensa o cônjuge que se viu em condições

financeiras inferiores com o término da relação, e cobre as oportunidades que

foram perdidas durante o matrimônio.

50COLOMA, Aurelia María Romero.Ob. cit., p.70.

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Os alimentos compensatórios ao contrário da pensão alimentícia (CC, art.

1.707) são renunciáveis e seu pleito não é de caráter obrigatório, sendo endereçados

apenas ao cônjuge ou convivente em razão da dissolução conjugal, para compensar a

perda do padrão social e econômico,51 ficando sua fixação a critério do juiz, consoante

as circunstâncias fáticas a serem ponderadas na quantificação dos alimentos

compensatórios, tais como:

a) Os acordos a que chegaram os cônjuges. Reconhecendo os cônjuges a

ocorrência de desequilíbrio econômico podem ajustar por convênio subscrito por ambos

o montante amistoso da prestação dos alimentos compensatórios, ficando o ajuste

pendente de ratificação judicial que homologue a separação do casal depois de

certificar-se que o conteúdo do acordo não resulta prejudicial para um dos consortes

(CC,§ único, art.1.574);

b) A idade e o estado de saúde. A idade e o estado de saúde tanto do credor,

como do devedor dos alimentos compensatórios deve ser sopesada, eis que em função

dela, as possibilidades de acesso a um posto de trabalho são maiores ou menores; 52

c) A qualificação profissional e as probabilidades de acesso a um emprego. A

qualificação profissional e as possibilidades de acesso a um emprego são circunstâncias

que exigem uma capacidade quase profética do juiz, diz Beatriz Saura

Alberdi,53podendo ser causa de futura extinção dos alimentos compensatórios se

desaparecer o desnível econômico. Especial atenção deve ser conferida se o cônjuge já

era profissionalmente qualificado, mas não pôde exercer sua profissão durante o

matrimônio;

d) A dedicação passada e futura à família. O trabalho dedicado a casa e à

família deve ser computado como compensação aos alimentos pelo desequilíbrio

econômico;

e) A colaboração com seu trabalho e as atividades mercantis, industriais ou

profissionais do outro cônjuge. É o trabalho dedicado por um cônjuge à empresa,

51 GONZÁLEZ, Maria Paz Sánchez. Ob. cit. p.191.52 GONZÁLEZ, Maria Paz Sánchez. Ob. cit., p.74.53 ALBERDI, Beatriz Saura. Ob. cit., p.153.

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indústria ou atividade de seu consorte, sem receber nenhuma retribuição pecuniária por

seu esforço. É inquestionável o desequilíbrio econômico quando rompidas as núpcias o

consorte que contribuiu com seu trabalho deixa inclusive de trabalhar na empresa do ex-

consorte, que foi beneficiado pelo desapegado auxílio do parceiro afastado;

f) A duração do casamento e da convivência conjugal. São dois elementos que

não podem ser separados, pois não basta computar exclusivamente a duração do

casamento, mas associá-la à convivência conjugal, sob pena de os alimentos

compensatórios concorrerem com uma separação de fato que, por evidente, não gera

direitos e a pensão compensatória exige certa permanência da relação marital. Como

observa Maria Paz Sánchez González, “uma convivência muito breve é, em muitas

ocasiões, um dado que, a juízo da jurisprudência, permite presumir que a causa do

desequilíbrio econômico entre os ex-cônjuges não se encontra no casamento e na sua

posterior ruptura, e nessas hipóteses só cabe denegar a pensão;” 54

g) A eventual perda de um direito de pensão. A perda de uma pensão

compensatória, originada por um novo casamento é um critério de quantificação de

outra pensão compensatória;

h) A riqueza e os meios econômicos e as necessidades de um e do outro cônjuge .

Importa considerar que o cônjuge credor dos alimentos compensatórios até pode

perceber ingressos por causa de uma relação de emprego, mas esse vínculo laboral não

o priva do direito aos alimentos compensatórios quando sua remuneração ou os seus

ganhos não sejam suficientes para restabelecer a situação econômico-financeira dos

cônjuges existentes durante o matrimônio;

i) Qualquer outra circunstância relevante. Esse é o caráter aberto das

circunstâncias determinantes da pensão compensatória, porque outros questionamentos

podem influenciar na quantificação dos alimentos compensatórios, menos o exame do

motivo da separação do casal.

12. Constituição de capital

54 GONZÁLEZ, Maria Paz Sánchez. Ob. cit., p.75.

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Os alimentos compensatórios, como qualquer direito alimentar55 e não somente

os decorrentes do ato ilícito, podem dar origem à constituição de capital, cuja renda

deve assegurar o pagamento mensal da pensão, conforme preceituado pelo artigo 475-Q

do CPC, com a redação dada pela Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005. A garantia

da formação de capital ordenada pela legislação processual do cumprimento da sentença

decorre do ato ilícito ou da responsabilidade objetiva e visa a garantir qualquer crédito

de pessoa beneficiada de alimentos mensais, constituindo-se o capital de uma soma em

dinheiro equivalente ao montante da indenização devida e que será financeiramente

aplicada, seja por meio de imóveis que produzam frutos ou através de títulos da dívida

pública.

13. Bibliografia

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