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90 Como governar a comunidade universalizante: o conceito de co-imunização de Peter Sloterdijk Rolf Rauschenbach* Tradução de Vitor Ferreira Lima** RESUMO: Problema: a dinâmica atual da globalização levanta a questão de como as comunidades políticas e a humanidade enquanto entidade política global serão e deverão ser estruturadas. Ambas as posições extremas – idealista ou universalista hegemônica e cosmopolita –, bem como o particularismo pluralista fracassam em face dos desafios postos pela globalização. Visões democráticas novas e não excludentes a respeito de comunidades políticas no contexto da globalização precisam ser formuladas para responder às seguintes questões: “Quais são as estruturas de macro e de microentidades políticas em uma ordem glocalizada?”, “Quais deveriam ser os princípios norteadores para a governança dessas comunidades/entidades políticas?”. Método: as questões levantas neste artigo são dirigidas à discussão crítica a respeito dos escritos de Peter Sloterdijk. Em sua esferologia, Sloterdijk tem apresentado uma nova teoria sobre a emergência de comunidades, as quais ele analisa sobre um ponto de vista esferológico. Em “Du musst Dein Leben ändern”, ele formula uma nova teoria ética que pode servir como um campo de inspiração para uma teoria normativa para governança de uma ordem glocalizada. Resultado: este estudo fornece um novo entendimento do conceito de comunidade. Ao invés da tradicional dicotomia entre comunidade e sociedade, comunidades – ou esferas sociais – são apresentadas como fenômenos complexos e densos, que podem ser analisados em nove dimensões (chirotópica, phonotópica, uterotópica, thermotópica, erotópica, ergotópica, alethotópica, thanatotópica, nomotópica). Além disso, o conceito de esferas sociais é passível de expansão – forma a microesfera de um pequeno grupo de pessoas a esferas plurais, que hoje cobrem o planeta terra na forma de montanhas de espuma. Baseada nesta visão espacial, emerge uma teoria normativa da governança, inspirada nos princípios da imunologia. Palavras-chave: Universalização. Comunidade. Co-imunização. Peter Sloterdijk. ABSTRACT: Issue: The current dynamics of globalization raise the question of how political communities and humanity as the global polity as such will and shall be structured. Both extreme positions – idealistic or hegemonistic universalism and cosmopolitanism – as well as particularist pluralism fail to convince in view of the challenges globalization is posing. New, non-exclusionary and democratic visions of political communities in the context of globalization need to be formulated to answer the Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 90 a 110]

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Page 1: 4 ARTIGO RAUSCHENBACH Rolf. Como Governar a Comunidade Universalizante

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Como governar a comunidade universalizante:

o conceito de co-imunização de Peter Sloterdijk

Rolf Rauschenbach*

Tradução de Vitor Ferreira Lima**

RESUMO:

Problema: a dinâmica atual da globalização levanta a questão de como as comunidadespolíticas e a humanidade enquanto entidade política global serão e deverão serestruturadas. Ambas as posições extremas – idealista ou universalista hegemônica ecosmopolita –, bem como o particularismo pluralista fracassam em face dos desafiospostos pela globalização. Visões democráticas novas e não excludentes a respeito decomunidades políticas no contexto da globalização precisam ser formuladas pararesponder às seguintes questões: “Quais são as estruturas de macro e de microentidadespolíticas em uma ordem glocalizada?”, “Quais deveriam ser os princípios norteadorespara a governança dessas comunidades/entidades políticas?”. Método: as questõeslevantas neste artigo são dirigidas à discussão crítica a respeito dos escritos de PeterSloterdijk. Em sua esferologia, Sloterdijk tem apresentado uma nova teoria sobre aemergência de comunidades, as quais ele analisa sobre um ponto de vista esferológico.Em “Du musst Dein Leben ändern”, ele formula uma nova teoria ética que pode servircomo um campo de inspiração para uma teoria normativa para governança de umaordem glocalizada. Resultado: este estudo fornece um novo entendimento do conceitode comunidade. Ao invés da tradicional dicotomia entre comunidade e sociedade,comunidades – ou esferas sociais – são apresentadas como fenômenos complexos edensos, que podem ser analisados em nove dimensões (chirotópica, phonotópica,uterotópica, thermotópica, erotópica, ergotópica, alethotópica, thanatotópica,nomotópica). Além disso, o conceito de esferas sociais é passível de expansão – forma amicroesfera de um pequeno grupo de pessoas a esferas plurais, que hoje cobrem oplaneta terra na forma de montanhas de espuma. Baseada nesta visão espacial, emergeuma teoria normativa da governança, inspirada nos princípios da imunologia.

Palavras-chave: Universalização. Comunidade. Co-imunização. Peter Sloterdijk.

ABSTRACT:

Issue: The current dynamics of globalization raise the question of how politicalcommunities and humanity as the global polity as such will and shall be structured.Both extreme positions – idealistic or hegemonistic universalism and cosmopolitanism– as well as particularist pluralism fail to convince in view of the challengesglobalization is posing. New, non-exclusionary and democratic visions of politicalcommunities in the context of globalization need to be formulated to answer the

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following questions: What are the structures of micro and macro polities in a glocalizedorder? What should be the guiding principles for the governance of thesepolities/political communities? Method: The questions raised in this paper are addressedby critically discussing the writing of Peter Sloterdijk. In his spherology, Sloterdijk haspresented a new theory about the emergence of communities, which he analyzes from aspherological point of view. In “Du musst Dein Leben ändern”, he formulates a newethical theory, which can be used as inspirational ground for a normative theory for thegovernance of the glocalized order. Result: This study provides a new understanding ofthe conceptof community. Instead of the traditional dichotomy between community andsociety, communities – or, social spheres – are presented as complex and thickphenomena, which can be analyzed in nine dimensions (chirotope, phonotope,uterotope, thermotope, erotope, ergotope, alethotope, thanatotope, nomotope).Furthermore, the concept of social spheres is scalable – form the microsphere of a smallgroup of persons to plural spheres, which nowadays cover the planet earth in the formof mountains of foams. Based on this spatial view, a normative theory of governanceemerges, inspired by the principles of immunology.

Keywords: Universalization. Community. Co-immunology. Peter Sloterdijk.

Introdução

A escolha de qualquer conjunto de pressuposições ontológicas predetermina até

certo grau como se definem o particular e o seu contexto. Isso se torna particularmente

claro quando se debate a natureza das relações internacionais e da política internacional.

Aqui, a questão ontológica pode ser traduzida em duas questões: “O que constitui atores

na política internacional?”, “Qual é a natureza que tais atores mantém entre si?”. As

implicações das respostas a essas questões são não só filosóficas, mas também

relevantes na prática, já que pressuposições ontológicas guiam atores reais na política

mundial em suas percepções e atos em relação a assuntos globais.

A distinção clássica entre realistas e idealistas nas Relações Internacionais é

baseada na pressuposição de que o domínio político pode se estruturar ou

anarquicamente ou hierarquicamente. No filamento idealista, a imutabilidade da

anarquia é rejeitada em favor de uma entidade política universal que a domestica e

estabelece uma autoridade abrangente (PROZOROV, 2009, p. 216). De acordo com

Prozorov, ambas as posições estão baseadas em uma ontologia política de identidade,

que por definição não pode romper com o particularismo: os realistas afirmam

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identidades particularistas, enquanto os idealistas tentam impor, em um padrão

fundamentalmente hegemônico, um modelo particular de nível universal. Prozorov

discute três estratégias de como superar esse impasse: universalismo genérico,

alteridade temporal e aceitação da falência própria.

Com Badiou, Prozorov argumenta que a diferença – e a identidade individual dai

derivada – é a mais fundamental e também a mais trivial característica da condição

humana (2009, p. 228) e, por essa razão, não faz sentido fundamentar a ética e a política

nesse fato. Antes, “toda postulação ética tendo por base o reconhecimento do outro deve

pura e simplesmente ser abandonada” (BADIOU, 2001, p. 25). Ao invés disso, Badiou

propõe um universalismo genérico que neutraliza o conteúdo particular, ao argumentar

que as peculiaridades são sempre o resultado de uma situação específica, não do sujeito

em si. Como todo sujeito é individuado de modos infinitos, a ideia de individualidade

como uma qualidade autocontida não pode ser mantida. A consequência disso é uma

configuração – universal – radicalmente igualitária, já que todos os sujeitos estão

submetidos a infinitas individuações. Na leitura de Prozorov, Agamben exemplifica esse

argumento com seu conceito de amor como uma experiência de “viver em intimidade

com um estranho” (AGAMBEN, 1995, p. 61), em que “o amante deseja o amado com

todos os seus predicados, seu ser-tal-qual a si mesmo” (idem, 1993, p. 2). Sob a

condição de universalismo genérico, a política mundial como antagonismo entre

identidades singulares se torna irrelevante e gera uma comunidade de sujeitos

igualitários com infinitas identidades e uma tendência a formar uma única humanidade

integrada.

O conceito de alteridade temporal deve ser visto sob a luz da alteridade espacial.

No último caso, o sujeito deriva sua identidade do espaço em que ocupa e em contraste

com o espaço que outros sujeitos dominam. Nessa perspectiva, a política é a disputa por

espaço e pelas identidades a ele ligadas. A alteridade espacial é uma versão clássica da

ontologia política identitária. No caso da alteridade temporal, identidades são baseadas

em referências identitárias de outros tempos, normalmente do passado, possivelmente

delas próprias em um estágio recuado no tempo. Aqui, o sujeito se diferencia de sujeitos

do passado, não de sujeitos contemporâneos. Entretanto, Prozorov argumenta, com

Kojève, que a alteridade temporal é sempre também alteridade espacial, já que qualquer

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ação histórica requer alguma referência geográfica que é, então, relegada ao passado

(PROZOROV, 2010, p. 10). Por essa razão, ele qualifica a alteridade temporal como

uma quimera da alteridade espacial e a dispensa como uma estratégia identitária.

A terceira estratégia para superar o impasse identitário discutida por Prozorov é

o conceito de Agamben de falência (AGAMBEN, 2000, p. 142; PROZOROV, 2010, p.

18). Apesar do fato da falência estar no passado – e, portanto, uma referência a ele possa

parecer uma alteridade temporal da forma acima exposta –, ela é uma experiência que

ultrapassa o presente e não pode ser transcendida. No coração da abordagem de

Agamben sobre a falência está a compreensão de que o sujeito é sempre também o que

foi, ou, de modo mais sucinto, o sujeito é sempre também o outro. Desse ponto de vista,

a política identitária é obviamente vã, já que contradiz a si própria. Consequentemente,

por ordem de coerência, posições identitárias precisam ser abandonadas.

São intenções deste artigo apresentar ainda outro argumento para resolver o

impasse ontológico da política mundial e mostrar como essa solução pode ser traduzida

em princípios governantes para a comunidade mundial. Para fazê-lo, exploraremos o

conceito de co-imunização de Sloterdijk. Embora a estrutura ontológica desse

argumento se pareça bastante com a abordagem de Badiou e de Agamben, sua derivação

segue um caminho diferente. Sloterdijk formula uma ontologia que parte de uma

observação de que a chegada à existência dos seres humanos se inicia no útero da mãe.

O indivíduo nunca está sozinho, e, por essa razão, a divisão entre sujeito e os outros

representa uma posição antropologicamente cega. Insistindo nesse fato, Sloterdijk

propõe uma antropologia espacial dentro de esferas, criada e habitada por mais de um

indivíduo. Esferas possuem tanto dimensões materiais quanto intangíveis. A formulação

de esferas amplas e complexas permite a Sloterdijk criar um vocabulário mais perspicaz

para o que é mais usualmente referido como globalização e universalização. De acordo

com Sloterdijk, o governo da esfera global contemporânea, que ele na verdade

caracteriza como espuma, deveria ser guiado por considerações imunológicas ou, como

expressa ele, por co-imunização. Este artigo discutirá o argumento de Sloterdijk,

respondendo às seguintes questões:

• Qual é a estrutura básica das comunidades? (comunidades como esferas).

• Qual é a política das comunidades? (política de eros e thymos).

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• De onde emergiu o presente cenário comunitário? (paleopolítica e política

clássica conduzindo à hiperpolítica).

• Quais deveriam ser os princípios governantes para a comunidade

universalizante? (co-imunização).

A resposta de Sloterdijk a essas questões é particularmente interessante, já que

ele abraça a natureza paradoxal dos coletivos. Ele combina a dinâmica integrante e

segregadora dos grupos sociais, afirmando tanto a dimensão particularista quanto a

universalista, inerente a toda prática humana. O pensamento de Sloterdijk tem

provocado vários debates acalorados nos feuilletons de língua alemã, porém tem

também gerado pouca reação da academia (JONGEN VAN TUINEM & HEMELSOET,

2009) e da literatura sobre teoria das Relações Internacionais. Isso pode ter se dado

também pelo fato de que, até agora1, apenas um número pequeno de suas traduções

relevantes a esse tópico foram traduzidas para a língua inglesa. Último, porém não

menos importante, há de se considerar o estilo de escrita de Sloterdijk. Ele

confessadamente transita constantemente entre o pensamento filosófico clássico, de um

lado, e modos de expressão poética, de outro. Isso não é um problema per se, até menos

quando um autor tenta criar um vocabulário inovador para capturar a realidade.

Entretanto, ao fazê-lo, ele põe um desafio ao leitor e torna mais difícil sua inserção em

discursos estabelecidos. É o objetivo deste artigo sistematizar parte do pensamento de

Sloterdijk a fim de facilitar sua recepção.

Comunidades como esferas

Do ponto de vista de Sloterdijk, o ponto ontológico inicial da existência humana

é o ventre da mãe. A coexistência precede a existência. Ele inicia sua ontologia com o

número Dois (2006, p. 147). Não existe ser sem ser-em-algum-lugar – inicialmente no

útero. Vida é sempre vida-em-meio-à-vida (1998, p 551). Do começo, o ser humano é

rodeado por algo que não pode aparecer como um objeto. Trata-se do indiscernível

complemento da existência própria de cada um, com o que cada um forma um par. É à

luz desse Urszene que Sloterdijk afirma que a investigação filosófica do ser humano

significa explorar casais – sejam casais sociáveis ou o problemático e inacessível outro

1Este artigo foi originalmente escrito em 2011. (N.T.)

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(1998, p. 487). Ele analisa o cenário no útero não apenas de uma perspectiva biológica,

mas também sônica e, portanto, psicológica. É a câmara musical pré-natal que forja o

senso de escuta, o senso que é o coração de toda a interação humana, seja de tipo íntimo

ou público (1998, p. 530; 2006, p. 166). Com o nascimento da criança, ocorre a

expulsão da esfera que se habitou durante a fase inicial da existência. Na visão de

Sloterdijk, todas as atividades humanas que se seguem do nascimento são criações de

outras esferas, tentando substituir a acolhedora experiência do útero.

Em sua esferologia, Sloterdijk examina os modos pelos quais as esferas foram

concebidas através da História. Embora as esferas possuam componentes materiais, é o

intangível, o frágil, o compartilhado, o etéreo e o elusivo que representam sua essência.

É por essa razão que Sloterdijk se esforça em mudar o foco da orientação tradicional a

substâncias e objetos para uma perspectiva que captura o fluido, o flutuante e o sutil. É a

relação, a “coisa” entre pessoas que está no coração de sua investigação. Entretanto, ele

não limita sua análise ao meio de diálogo e à comunicação direta; ao invés disso, ele

estabelece uma teoria antropológica de espaços compartilhados, de campos nos quais

subjetividade e intimidade são geradas (2006, p. 137). Ao fazê-lo, ele estabelece

fundamentalmente uma geografia da generosidade. Do ponto de vista de Sloterdijk, o

espaço é um fenômeno social no sentido de que carrega significado somente quando é

compartilhado com outros. Compartilhar significa ser generoso com o outro. Isso

motiva Sloterdijk a investigar as estruturas de generosidade que criam espaços (2004, p.

884).

O conceito de espaço, ele mesmo, é infinito. Para conter a infinitude e criar

espaços nos quais compartilhar possa ser vivenciado, Sloterdijk sugere falar sobre

esferas humanas. Como em Geometria, esferas humanas giram ao redor de ao menos

dois polos. No caso de esferas humanas, esses polos são representados por seres

humanos individuais povoando uma esfera e compartilhando seu espaço com outros

(2006, p. 161). Com o estabelecimento de uma esfera humana, algumas barreiras entre o

interior e o exterior são criadas. O espaço compartilhado é isolado do resto do espaço

infinito. Dentro da esfera, o espaço pode ser manipulado. Essas manipulações podem

resultar em climas específicos (2004, p. 309). Sloterdijk usa o termo clima não apenas

para denominar um estado meteorológico, mas também para se referir a nove

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dimensões, que juntas caracterizam o clima das esferas humanas (2004, p. 362):

1. Chirotopo: essa dimensão se refere ao mundo da mão. A emergência da mão

humana, capaz de manipular seu entorno, transforma a esfera humana não

somente através de interferências específicas feitas por seres humanos, mas

também muda a percepção do entorno pelos seres humanos, já que eles

começam a entender que sua esfera é, na verdade, modelável e, pelo menos,

parcialmente resultado de suas presenças;

2. Phonotopo (ou logotopo): qualquer esfera humana tem uma dimensão sônica. Os

sons produzidos pelas vozes e por outros instrumentos humanos criam uma

esfera acústica que promove um senso de pertencimento e de identidade. Quanto

mais diferenciados são os sons humanos, maior a complexidade de comunicação

entre os membros de uma esfera humana;

3. Uterotopo (ou hysterotopo): como mencionado acima, as esferas são sempre

concebidas como extensões do útero materno. A dimensão do uterotopo se refere

às qualidades de uma esfera que produz um senso de proveniência de um mesmo

lugar, possuindo a mesma origem;

4. Thermotopo: o thermotopo denomina a dimensão confortável de uma esfera. Ser

parte de uma esfera implica ter acesso a vantagens que permitem ou acentuam a

sobrevivência de habitantes da esfera;

5. Erotopo: o fato de diferentes indivíduos formarem uma esfera não implica que a

relação entre eles seja homogênea e sem dinâmica. Ao contrário, há uma vívida

interação entre esses indivíduos, cujas aprovações e desaprovações de outros

membros individuais é constantemente comunicada e calibrada. Essas interações

contribuem para a aclimatação erótica de uma esfera. Na seção seguinte, essa

dimensão será diferenciada em componentes eróticos e thymóticos

6. Ergotopo (ou phalotopo): não há esfera humana sem propósito. Para servi-lo,

alguma autoridade é requerida para fortalecer a função da esfera. A função mais

básica de qualquer esfera é assegurar sua sobrevivência, mantendo um certo

clima. Essa mantença é primeiro alcançada balanceando-se forças internas e,

segundo, contrabalanceando ameaças ao clima interno decorrente de influências

externas. A ação contrabalanceadora mais extrema é o serviço militar, em que a

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sobrevivência do coletivo é defendida como objetivo fundamental;

7. Alethotopo (ou mnemotopo): cada esfera humana tem sua própria referência à

verdade, seus modos próprios de processar experiência e falsificar informação

para criar memórias. A manutenção de verdades e memórias específicas

determina a dimensão alethotópica do clima de uma esfera;

8. Thanatotopo (ou theotópica, iconotópica): como uma extensão da alethotópica, a

thanatotópica é a dimensão da esfera humana que hospeda os mortos, ancestrais,

fantasmas e deuses. Essa dimensão o que está além da esfera, porém é

considerada parte dela;

9. Nomotopo: essa dimensão denomina o conjunto de regras implícitas e explícitas

que estruturam a interação dos indivíduos dentro da esfera. A aderência a esses

princípios é motivada por experiências mútuas de coerção.

Sloterdijk conceitualiza a esfera humana como uma estufa de nove dimensões na

qual os seres humanos são capazes de sobreviver e consequentemente podem

desenvolver complexidades além das suas heranças animais. Cada uma das nove

dimensões pode atingir diferentes graus de implicitude e explicitude. Fazer explícita

uma dimensão – em outras palavras, formular uma teoria a seu respeito – requer um

mecanismo de compromisso, já que os membros da esfera precisam concordar qual

teoria eles estimam apropriada. Enquanto teorias podem ser ferramentas para acentuar

anda mais a performance de uma esfera, elas também representam perigo, já que o

processo de explicitar um ingrediente implica o questionamento do até então não

questionado e assenta potenciais conflitos (2004, p. 496).

Para o propósito deste artigo, podemos sintetizar e dizer que Sloterdijk concebe

comunidades como esferas humanas. Comunidades sloterdijkeanas são definidas por

nove dimensões que formam juntas um clima específico. Um indivíduo por si só não é

capaz de sobreviver. Ele depende de ser parte de uma esfera povoada por outros. O

ponto de partida ontológico de Sloterdijk é, portanto, impensável sem o outro, já que é a

forma colaborativa do outro que fornece uma influência positiva para o clima dentro de

uma esfera.

Política de eros e thymos

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Como afirmado acima, Sloterdijk define as comunidades como coletivos

criadores de esferas. Esferas são caracterizadas por complexidades e fragilidades,

inseridas em um ambiente dinâmico, senão hostil. Fazer política significa produzir e

manter um clima específico dentro de uma esfera (1999, p. 1007). Embora Sloterdijk

diferencie esse clima em nove dimensões, ele enxerga duas forças psicodinâmicas

fundamentais atuando: eros e thymos.

Os relatos de Sloterdijk sobre eros, a primeira força psicodinâmica, são um tanto

escassos. É eros que mostra o caminho aos “objetos”. De uma perspectiva erótica, os

objetos supostamente preenchem o vácuo criado pela ausência do útero. A possessão de

objetos produz um sentimento de completude (2005b, p. 30). As forças eróticas oscilam

entre o impulso de acumular objetos egoisticamente, de um lado, e de compartilhá-los

altruisticamente, de outro. Em termos políticos, a necessidade de acumular pode ser

traduzida na tentativa de dominar outros indivíduos, objetos e territórios, enquanto que

mecanismos de compartilhamento levam a atitudes de solidariedade.

Eros tem a ver com o que se tem, thymos tem a ver com o que se quer ser.

Thymos refere-se ao orgulho, à coragem, à magnanimidade, à necessidade de justiça,

aos sentimentos de dignidade e honra, à indignação e à vingança (2005b, p. 27).

Sloterdijk concebe o thymos à moda platônica e sublinha sua paradoxa peculiaridade no

fato de que uma pessoa (ou coletividade) possa desenvolver sentimentos de orgulho não

apenas em relação aos outros, mas também em relação a si mesma. Isso acontece

quando uma pessoa (ou coletividade) não está satisfeita com sua própria conduta e se

sente envergonhada (2005b, p. 41). Para manter o excedente thymótico dentro de uma

esfera, indivíduos (ou coletividades) tendem a fazer um juízo de diferenciação entre eles

próprios e os outros para criar um excesso de autoestima positiva (2005b, p. 38). Isso

pode ser alcançado por duas estratégias diferentes: ou negando ou afirmando o outro.

No primeiro caso, Sloterdijk se refere a mecanismos de vingança, nos quais o objetivo

maior é agredir o outro de tal modo que a autoestima própria possa ser reestabelecida.

Ao fazê-lo, uma humilhação pode ser compensada. No segundo caso, o respeito próprio

é reposto através de um ato de misericórdia. Ao perdoar-se o outro por haver

transgredido o thymos próprio, não apenas liberta-se da maldição como também

devolve-se a liberdade àquele que, de outro modo, permaneceria culpado. No segundo

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caso, a contabilidade do olho-por-lho é abandonada e substituída por uma economia

“trans-capitalista” de generosidade e doação. Empreender uma mudança do modo de

vingança para o de perdão permite também reverter a perspectiva, passando-se de um

ponto de vista orientado ao passado para um ponto de vista orientado ao futuro. (2005b,

p 53).

Baseado nessas considerações, em termos gerais, Sloterdijk caracteriza o político

dentro de uma esfera da seguinte maneira (2005b, p. 36):

• Grupos políticos são assembleias sob pressão thymótica endógena;

• Ações políticas são resultados de diferenças em pressões thymóticas dentro e

fora de esferas;

• Campos políticos são formados pelo pluralismo espontâneo de forças

autoafirmadoras. Eles mudam suas relações entre si de acordo com uma fricção

inter-thymótica;

• Opiniões políticas resultam de operações simbólicas impulsionadas pelos

recursos thymóticos de um coletivo;

• Retórica – a arte de manipulação emocional de uma assembleia política – é a

ciência aplicada do thymos;

• Lutas por poder dentro de um corpo político são sempre também motivadas por

considerações thymóticas dos protagonistas e de seus seguidores. Para evitar

total desestabilização, mecanismos para remediar os perdedores precisam

funcionar.

Na primeira seção deste artigo, concluímos que Sloterdijk concebe comunidades

como esferas humanas com um específico e favorável clima. Podemos agora adicionar a

essa definição que o clima dessa esfera depende do jogo entre duas forças

psicodinâmicas: eros e thymos (1999, p. 1010). Administrar eros e thymos é uma tarefa

complexa, já que eles precisam permanecer separados e juntos em equilíbrio. Somente

nessas circunstâncias, uma esfera pode ser preservada. Os habitantes continuam a ser

protegidos contra hostilidades do lado de fora e enfrentam condições favoráveis que os

permitem evoluir em direção a maiores complexidades.

É nesse ponto que Sloterdijk introduz o conceito de imunização. Para especificar

a função das esferas, ele argumenta que elas são veículos de aprendizado, produzindo

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imunização para seus membros. A imunização providencia mecanismos de autodefesa.

Ela se origina como um conceito dos campos biológico e médico. Sloterdijk argumenta

que as esferas humanas não são somente para favorecer a imunização biológica de seus

membros, mas também são projetadas para produzir sócio-imunizações e psico-

imunizações. Todas as três imunizações estão funcionalmente interconectadas entre si.

Sloterdijk resume instituições jurídicas, solitárias e militares sob o conceito de práticas

sócio-imunizadas; elas tem como objetivo prevenir confrontos danosos com o outro.

Somados a esse confronto “real”, indivíduos e coletivos também enfrentam ameaças

“virtuais” aos seus estados mentais e psicológicos, como questões existenciais, o destino

desconhecido e a mortalidade fundamental. Práticas psico-imunológicas como a religião

e outros rituais místicos permitem lidar com essa ameaça através de modos simbólicos

(2009, pgs. 23 e 709). A preservação de uma esfera depende, portanto, da habilidade de

seus membros de constantemente controlar o clima dentro dela, de modo a assegurar

suas bio-, sócio- e psico-imunizações.

Através do tempo, as esferas humanas evoluíram das formas mais simples até as

mais complexas. Sloterdijk divide esse processo histórico em três estágios: o estágio de

microesferas (bolhas), o estágio de macroesferas (globos) e, finalmente, o estágio de

esferas plurais (espumas) (1993; 1998; 1999; 2004). Suas correspondentes entidades

políticas, políticas e polícias de eros e thymos são resumidas na tabela abaixo:

Estágio esférico Entidades políticas Política Polícia de eros e thymos

Microesferas (bolhas)Clãs, hordas Paleopolítica Eros: compartilhar com o outroThymos: predominantemente ausente

Macroesferas (globos)

Tribos formais, reinos, impérios, estados-nações

Política clássica Eros: dominação do outroThymos: no nível individual, o thymos é reprimido; no nível coletivo, o sentimentode agressividade é dominante

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Esferas plurais (espumas)

Humanidade Política do mercado mundial

Eros: dominação do outroThymos: superioridade baseadano ressentimento

Hiperpolítica Eros: unificação com o outroThymos: superioridade baseadana generosidade

Tabela 1: Os três estados esferológicos, suas entidades políticas, suas políticas e polícias de eros e thymos

Paleopolítica

O primeiro estágio se inicia em tempos longínquos, quando nossos ancestrais

animais aos poucos tornaram-se humanos, e termina quando coletividades humanas

assumem estruturas formais. Durante o estágio da paleopolítica, coletivos humanos são

povoados por um pequeno número de pessoas, e a sua vantagem tecnológica sobre a

natureza é insignificante. Por essa razão, a sobrevivência do indivíduo ainda depende a

curto prazo totalmente do coletivo. A essência da paleopolítica é a repetição de homens

por homens. Nesse processo, o primeiro desafio é o nascimento bem-sucedido e a

sobrevivência do recém-nascido. Em contraste com a maioria dos animais, recém-

nascidos humanos continuam dependendo do suporte dos pais por muitos anos. A

vantagem desse conjunto de características é a moldabilidade da criança; a desvantagem

se encontra na dependência em relação aos pais e a outros amparos. A formação do

homem enquanto um ser social ocorre dentro das esferas da família, dos clãs e das

hordas que funcionam como incubadoras sociais. Essas esferas fornecem o clima de

nove dimensões necessário para provocar o complexo processo de aprendizado no qual

as habilidades sociais possam ser adquiridas (1993, p. 14). O contexto mais amplo de

esferas paleopolíticas é o espaço aberto e vasto. Cada microesfera funciona por si

mesma, com pouca ou nenhuma interação com outros coletivos.

É devido a esse contexto que as forças psicodinâmicas de eros e thymos ainda

aparecem em termos simples. A necessidade erótica de possuir é limitada, já que o

espaço é abundante. Objetos feitos pelo homem estão disponíveis apenas em pequena

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quantidade, porém, como até a sobrevivência de curto prazo depende de esforços

conjuntos, um comando diferenciado de propriedade faz pouco sentido e, portanto,

emerge neste estágio somente na medida em que é preciso definir relações sociais

básicas entre os membros de uma esfera, incluindo determinados direitos e

responsabilidades. Por essa razão, as forças eróticas produzem um clima de

compartilhamento, mesclando e unindo membros de um modo aparentemente natural.

Embora tenha que ser assumido que certo tipo de auto-consciência emerja já no estágio

das microesferas, fenômenos thymóticos são ainda muito limitados. Isso pode ser

deduzido do fato de que a interação entre diferentes bolhas humanas é muito rara. O

coletivo paleopolítico não experimenta a si mesmo no contexto de outros coletivos; o

outro é a natureza.

Política clássica

Com o passar do tempo e graças ao progresso tecnológico, comunidades

expandiram para escalas maiores: de tribos formais até reinados, impérios e estados-

nações. É o período da política clássica. Para refletir o tamanho maior das esferas

humanas, Sloterdijk fala agora de globos enquanto contêineres holísticos. As políticas

de eros e thymos se tornam mais complexas e mais explícitas. É o período de

emergência da noção clássica de política.

A dimensão erótica da política clássica está concentrada na dominação e

acumulação (1993, p. 26). A criação de comunidades maiores não ocorre naturalmente,

é o resultado de estruturas de poder socialmente produzidas que vão muito além da

natureza das hierarquias de famílias, clãs e hordas. Inicialmente, essas estruturas de

poder aparecem na forma de pura violência física. Porque a onipresença do poder físico

é dispendiosa, os agentes de violência são, cada vez mais, aquartelados e substituídos

por representantes não violentos de poder. Esses representantes não violentos mostram

poder de maneira simbólica. Métodos pedagógicos que emergem no decorrer da política

clássica treinam tanto os representantes quanto os indivíduos das macroesferas a

entender e lidar com o poder simbólico (1993, p. 32).

Isso leva à questão de como as forças thymóticas funcionam na política clássica.

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Elas precisam ser diferenciadas entre o domínio individual e o domínio coletivo. Para

construir esferas humanas para além de bolhas paleopolíticas, o indivíduo necessita

separar-se de seu contexto social inicial e adquirir uma identidade da estrutura de poder

mais ampla (2004, p. 263). A aderência à identidade de uma macroesfera humana requer

aceitação do rebaixamento próprio a uma posição subordinada com a finalidade de

aumentar a grandeza do coletivo. É por essa razão que tendências egocêntricas são mais

e mais reduzidas; e a submissão, enquanto o objetivo final para o indivíduo, promovida

(2005b, p. 31). Entretanto, quanto mais bem-sucedida a construção de uma esfera

humana mais ampla, mais dificultosa é a mantença da atitude de submissão de seus

membros. Isso se deve à economia da escala que proporciona ao indivíduo recursos que

não são requeridos para a sobrevivência de curto prazo e que criam momentos de

liberdade (2004, p. 278). A longo prazo, a política clássica tende a se tornar vítima de

seu próprio sucesso.

No domínio coletivo, forças thymóticas não são reprimidas; ao contrário, são

alimentadas para gerar sentimentos agressivos de superioridade sobre outros coletivos

(2005b, p. 38). Está em jogo, na política clássica, que coletivos humanos comecem a

entender que eles não estão sozinhos no mundo. Com a percepção de outros coletivos, a

comparação entre eles é inevitável e resulta no estabelecimento de relações

internacionais. A partir desse momento, a identidade de uma macroesfera humana

também é determinada pela confirmação (ou pela sua falta) da identidade desse coletivo

por outros grupos (2005b, p. 39). Ao exigir reconhecimento do outro, está-se aplicando

um teste a ele. Aquele que se recusa a reconhecer o outro será confrontado pela sua

raiva, já que o outro se sentirá desestimado (2005b, p. 43). A competição na política

clássica é, portanto, dupla: competição erótica sobre territórios, pessoas e recursos e

competição thymótica, por reconhecimento de superioridade coletiva.

No estágio da política clássica, instituições sócio-imunológicas e psico-

imunológicas são expandidas e consolidadas. No domínio sócio-imunológico, a

emergência de instituições de bem-estar social pode ser observada, bem como a de

instituições militares e de outras agências dedicadas a questões de autonomia e

segurança. No domínio psico-imunológico, toma lugar a formalização de práticas

espirituais em instituições religiosas, como as igrejas.

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É bem conhecido que, quando aplicada a uma escala global, a mistura clássica

entre políticas eróticas e thymóticas (dominação do outro e sentimento de superioridade

agressiva) representa um coquetel explosivo que já levou a inúmeras catástrofes

produzidas pelos humanos (2009, p. 704). Para evitar a crise global final, Sloterdijk

propõe a hiperpolítica como alternativa.

Hiperpolítica

A paleopolítica e a política clássica são formas históricas de governo. Seu

holismo agressivo e centralmente orquestrado provou ser uma estratégia política

inadequada, quando aplicada a uma escala global, já que leva inevitavelmente a

conflitos insolúveis. Em decorrência disso, alternativas precisam ser formuladas. Isso é

ainda mais verdadeiro quando se leva em conta que a paisagem das esferas está

atualmente alcançando um novo estágio: a humanidade está entrando, depois das

microesferas – bolhas – e das macroesferas – globos –, no estágio das esferas plurais –

ela vive, agora, em espumas.

Sloterdijk caracteriza as espumas humanas como aglomerações de um sem

número de bolhas. Cada uma das bolhas representa uma microesfera, fornecendo o

conforto de nove dimensões que seus habitantes precisam para sobreviver (2004, p. 55).

O número de habitantes de microesferas continua a ser pequeno: casais, famílias ou

outros grupos de novas pessoas povoam as bolhas. De um lado, cada bolha é uma

produtora autorreferencial de intimidade. De outro lado, devido ao fato de que bolhas

compartilham suas paredes com outras bolhas, elas se encontram em uma situação

paradoxal de co-insulamento. Apesar do fato de que as bolhas vizinhas estão o mais

próximo possível, elas permanecem inalcançáveis umas em relação às outras. A

interação entre as bolhas não é baseada em comunicação direta; trata-se do efeito de

infiltrações miméticas de padrões similares, bens contagiantes e símbolos (2004, p. 61).

Dentro da espuma, não existe perspectiva privilegiada; qualquer perspectiva é limitada e

parcial. Essa configuração tem implicações teóricas: é impossível – e indesejável –

formular e abranger supervisões de mundo (2004, p. 62). Tudo o que pode ser dito é que

a humanidade forma um número de montanhas de espuma, com nenhuma instância

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Simone
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central.

Sloterdijk discute duas formas fundamentalmente diferentes de governo para

esferas plurais: política de mercado mundial versus hiperpolítica. Do seu ponto de vista,

é a última que é capaz de fornecer imunização sustentável para a humanidade.

Com a política de mercado mundial, as esferas plurais são reduzidas a uma ideal

supertigela, na qual indivíduos se encontram e realizam suas transações em termos

iguais. Os atores do mercado mundial tentam transformar todas as necessidades

humanas em produtos comerciais para substituir o conforto acolhedor da esfera de

casais, famílias e outros grupos menores. O pensamento do mercado mundial é um

esforço de regresso à macroesfera totalizante, típica da política clássica. Entretanto,

Sloterdijk argumenta que tal retorno está fadado ao malogro. Uma supertigela,

consistindo apenas de superfície, não é capaz de produzir intimidade, o escudo esférico

de nove dimensões que os humanos precisam para sobreviver. Além disso, é

inconcebível como e por que as ricas complexidades, acumuladas em espumas através

dos tempos possam ou devam ser reduzidas em uma supermonoesfera (2005a, p. 231).

A estrutura erótica do mercado mundial é definida pelo esforço individual de dominar

todos os outros para ganhar vantagens competitivas e dispor de ainda mais recursos de

opressão. A mesma configuração egoística é refletida nas práticas thymóticas no

mercado mundial: o mercado mundial em si não é capaz de fornecer referências

thymóticas, já que é projetado apenas para o trânsito e para transações. Os indivíduos

socialmente atomizados procuram sentimentos de superioridade ao negar ou rebaixar

seus companheiros. Não é preciso dizer que tal configuração não é capaz de produzir os

recursos imunológicos necessários para sustentar as necessidades de longo prazo da

humanidade.

As considerações de Sloterdijk sobre a hiperpolítica não são sistematizadas. Ao

introduzir esse conceito, ele define hiperpolítica em termos bastantes vagos, insistindo

que a política clássica não é mas adequada. Em tempo, ele já está preocupado com o

número crescente de “últimos homens” – a figura nietzschiana para um indivíduo sem

descendência biológica (1993, p. 76) – e insiste na importância da sustentabilidade

(1993, p. 79). Em seus últimos escritos, ele continua a trabalhar com as questões de

hiperpolítica, entretanto sem utilizar esse termo explicitamente. O termo é mantido

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neste artigo, já que permite uma clara caracterização das diferentes estratégias políticas

discutidas por Sloterdijk.

Com a hiperpolítica, a espumosa realidade é abarcada. Os conceitos holísticos

representados em metáforas animalescas, corporais e arquiteturais de corpos políticos

são abandonadas e a configuração poliesférica, multisituacional e associacional das

espumas é aceita. De acordo com a hiperpolítica, é senso comum que não há perspectiva

do olho de deus; cada um é confinado em sua bolha, com acesso limitado ao resto da

espuma (2004, p. 293). O confinamento não é percebido como um encantamento, já que

é a bolha que assegura a sobrevivência a curto prazo de seus habitantes. Entretanto, a

hiperpolítica acentua a percepção dos habitantes de que suas perspectivas precisam ser

expandidas para além de suas microesferas. Já que o acesso direto ao exterior é

limitado, a hiperpolítica induz a um processo de aprendizagem que permite processar

observações de segunda ordem de acentos eróticos e thymóticos que vibram dentro da

espuma (2005a, p. 223). O resultado desse processo de aprendizado é uma racionalidade

que objetiva balancear os polos opostos de eros e thymos, um código de conduta para

uma realidade que continua a ser multimegalomaníaca e interparanóica, entretanto em

níveis não destrutivos. Como não há hierarquias, o controle sobre forças psicodinâmicas

não pode ser centralizado. É de responsabilidade de todas as bolhas contribuir para o

equilíbrio geral. A hiperpolítica tem a ver com equilíbrio, assumir o comando de

conflitos relevantes e evitar confrontos excessivos. Além disso, significa confrontar

processos entrópicos, principalmente a destruição do meio ecológico (2005b, p. 355).

Embora Sloterdijk descarte um tipo de universalismo holístico, ele é a favor da

universalização enquanto uma reflexão semântica da expansão do mundo em processo

de globalização. Universalização não é um objetivo em si mesmo, antes é um processo

de maturação e de civilização (2004, p. 308; 2005a, p. 414; 2005b, p.355). É nesse

contexto que Sloterdijk advoga uma segunda ecumenia. Por ecumenia, ele se refere ao

conceito grego de oikuméne, cujo significado é de mundo habitado (1999, p. 986; 2004,

p. 265). Durante a primeira ecumenia, a base para o tratamento igual entre seres

humanos não fora suas necessidades iguais. Os filósofos antigos perceberam os

indivíduos ontologicamente unidos por um abrangente mundo secreto (1999, p. 987).

Na segunda ecumenia, o mundo secreto é substituído pelo medo de uma crise global. Do

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ponto de vista de Sloterdijk, a crise global é a única instituição capaz de redirecionar as

forças psicodinâmicas de maneira colaborativa (1999, p. 985; 2005a, p. 224). É a crise

global que pode elevar a consciência através das espumas de que a política clássica se

tornou obsoleta (2009, p. 699). Em vez de estratégias agressivas, o único modo de lidar

com a crise global é se empenhar em negociações sem fim nas quais forças eróticas e

thymóticas são constantemente reequilibradas (1999, p. 985; 2005a, p. 224). A questão

não é a do equilíbrio entre eros e thymos, as duas forças psicodinâmicas precisam ser

enfaticamente abarcadas. O desafio é desviar o foco erótico da dominação de pessoas e

territórios e da egoística acumulação de objetos para um modo de compartilhamento e

fusão e, ao mesmo tempo, desviar o foco thymótico de base ressentida para o de

superioridade generosa. A liberdade de buscar os próprios interesses precisa ser

balanceada pela habilidade de doar recursos eróticos e thymóticos para o outro, de modo

que ele também se liberte (2005a, p. 412). A consequência de atitude tão generosa é que

o outro não aparece mais como aquele que fora e que está em dívida, mas como aquele

que poderia se tornar um apoio (2005b. p. 354).

A segunda ecumenia põe o chão para uma nova percepção das necessidades

imunológicas dos seres humanos. Em verdade, essas necessidades nunca mudaram

fundamentalmente. Com a expulsão do útero, cada ser humano precisa de abrigo para

sobreviver. Como afirmado acima, esse mecanismo não se limita ao controle de

ameaças biológicas. Seres humanos também dependem de recursos sócio- e psico-

imunológicos; sua produção depende, entretanto, de vias colaborativas. Na

paleopolítica, essa colaboração ocorre naturalmente; pode ser interpretada como

continuação do altruísmo animal de práticas de criação e como a emergência do

altruísmo cultural (2009, p. 710). Na política clássica, a colaboração é restrita dentro das

entidades políticas clássicas de tribos formais, reinados, impérios e estados-nações. A

imunização é, então, um privilégio exclusivo dos membros de uma específica entidade

política. A colaboração além dos limites de uma entidade política clássica é vista como

um desperdício de recursos ou simplesmente como um risco assumido; conceitos

racistas são um exemplo óbvio dessa perspectiva. Em vez de colaborar com outras

entidades políticas, coletivos estrangeiros são percebidos como ameaças para a

imunização própria ou utilizados como local de descarga para qualquer elemento não

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bem-vindo dentro do confinamento próprio. Já que a imunização da humanidade está

agora ameaçada pela crise mundial, a política clássica se torna tão obsoleta quanto a

paleopolítica. A negação e a desconsideração do outro se mostram estratégias

autodestrutivas.

É a essa luz que Sloterdijk extrapola o conceito de imunização para o de co-

imunização. Ele argumenta que, embora o comunismo tenha se equivocado por um sem

número de enganos, ele seguiu uma intuição válida. Complexas formas sociais de vida

somente podem ser sustentadas por práticas universais, cooperativas e ascéticas. A

prosperidade das espumas humanas depende de macroestruturas de co-imunização. Os

membros dessas estruturas não são passageiros em um navio de tolos, navegando sob a

estrela do universalismo abstrato; eles são transformados em colaboradores

responsáveis pela construção da arquitetura global da co-imunização (2009, p. 713).

Conclusão

Sloterdijk proporciona a partir de seu conceito de espumas humanas uma visão

inovadora da configuração espacial da comunidade universalizante. Partir de um projeto

de bolhas, povoadas por pequenos números de pessoas e ar condicionadas por suas

forças eróticas e thymóticas, permite a ele resolver o impasse ontológico de forma

antropológica. Ao enfatizar na história da humanidade e na emergência de entidades

políticas cada vez mais complexas, a política e a polícia permitem a ele resumir os

princípios governantes de comunidades universalizantes no conceito de co-imunização.

A ideia básica de co-imunização é que seres humanos dependem de recursos bio-, sócio-

e psico-imunológicos, que só podem ser gerados por vias colaborativas. A negação do

outro resulta automaticamente na redução da própria imunização.

Com o conceito de co-imunização, a pura base identitária da política mundial

pode ser abandonada e substituída por uma abordagem não exclusivista. A necessidade

por identidades não é negada pelo conceito de co-imunização, mas as dinâmicas

thymóticas são contidas de modo que não provoquem confrontos destrutivos dentro de

bolhas e espumas. Em verdade, os modos colaborativos de coexistência implicados pelo

conceito de co-imunização precisam ser abastecidos pelo orgulho thymótico do doador

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generoso e carecem ser alimentados pelo prazer erótico do compartilhamento e da

fusão.

*Rolf Rauschenbach é Mestre em Ciências Políticas e Relações Internacionais e Doutor em CiênciasPolíticas pela Universität St. Gallen; Pós-Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo(USP). E-mail: [email protected].

**Vitor Ferreira Lima é pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) e estudantede Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail:[email protected].

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