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Resgatando afetos: uma etnografia sobre o papel da rede solidária de proteção animal no contexto urbano de Porto Alegre/RS Leandra Pinto 1 Resumo O presente estudo visa analisar novas moralidades e sensibilidades envolvendo relações interespecíficas, partindo de um caso etnográfico particular: a rede de apoio aos animais que residem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob proteção de três organizações sociais. A partir disso, pretende-se com essa investigação responder ao seguinte questionamento: em que medida uma etnografia sobre animais comunitários pode contribuir para compreender o lugar dos animais no universo social? A problemática norteadora permite refletir sobre as controvérsias em torno do estatuto dos animais domésticos, especificamente a população de cães e gatos abandonados que vivem nas ruas, um dos principais focos dos movimentos sociais de defesa animal urbana. Logo, o presente estudo sugere que as comunidades de animais, como exemplo de novos arranjos sociais, revelam a necessidade de pensar a família e a sociedade para além dos coletivos humanos. Bem como, indica a crescente valorização de uma ética em relação aos animais domésticos promovida pela rede de proteção animal urbana, cujo empenho representa um “resgate” não apenas dos animais em situação de abandono, mas sobretudo, da sociedade para a questão animal. Palavras-chave: antropologia das relações humano-animais; proteção animal; animais comunitários. Introdução A questão animal não tem se caracterizado apenas pela mobilização e representatividade no campo do ativismo político, mas também configura um tema de estudo emergente na antropologia. A temática tem recebido atenção, visto que desestabiliza noções centrais do paradigma científico moderno, desafiando o pesquisador a enfrentar o dilema da centralidade do homem na investigação social, que distancia 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Resgatando afetos: uma etnografia sobre o papel da rede solidária de proteção

animal no contexto urbano de Porto Alegre/RS

Leandra Pinto1

Resumo

O presente estudo visa analisar novas moralidades e sensibilidades envolvendo

relações interespecíficas, partindo de um caso etnográfico particular: a rede de apoio aos

animais que residem na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob proteção de três

organizações sociais. A partir disso, pretende-se com essa investigação responder ao

seguinte questionamento: em que medida uma etnografia sobre animais comunitários

pode contribuir para compreender o lugar dos animais no universo social? A problemática

norteadora permite refletir sobre as controvérsias em torno do estatuto dos animais

domésticos, especificamente a população de cães e gatos abandonados que vivem nas

ruas, um dos principais focos dos movimentos sociais de defesa animal urbana. Logo, o

presente estudo sugere que as comunidades de animais, como exemplo de novos arranjos

sociais, revelam a necessidade de pensar a família e a sociedade para além dos coletivos

humanos. Bem como, indica a crescente valorização de uma ética em relação aos animais

domésticos promovida pela rede de proteção animal urbana, cujo empenho representa um

“resgate” não apenas dos animais em situação de abandono, mas sobretudo, da sociedade

para a questão animal.

Palavras-chave: antropologia das relações humano-animais; proteção animal;

animais comunitários.

Introdução

A questão animal não tem se caracterizado apenas pela mobilização e

representatividade no campo do ativismo político, mas também configura um tema de

estudo emergente na antropologia. A temática tem recebido atenção, visto que

desestabiliza noções centrais do paradigma científico moderno, desafiando o pesquisador

a enfrentar o dilema da centralidade do homem na investigação social, que distancia

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFRGS).

natureza e cultura, e por consequência, aparta das ciências sociais a interação do homem

com outras espécies vivas. Assim, sob influência do estruturalismo, bem como da

fenomenologia, a antropologia contemporânea tem expressado a necessidade de rever

algumas premissas da prática científica, tendo em vista produzir conhecimento para além

das divisões conceituais consagradas pela epistemologia naturalista.

Essas abordagens expressam a motivação de novas sínteses teóricas que ao mesmo

tempo em que desequilibram as fronteiras ontológicas, também possibilitam o diálogo

entre áreas do conhecimento localizadas em polos distantes da hierarquia disciplinar. No

caso dos estudos humano-animais esse movimento é aparente, devido ao aspecto

multidisciplinar da temática. Além do debate com outras áreas, a revisão da literatura

aponta a dimensão que as etnografias multiespécies (Kirksey,Hilmreich, 2010) têm

assumido em diversas linhas de pesquisa antropológica. A metodologia segue como norte

uma visão pós-humanista e pós-doméstica interessada em compreender o homem em

relação ao ambiente em que está inserido, assim como, o lugar do animal no âmbito social,

considerando os coletivos implicados por agenciamentos humanos e não-humanos

(Lestel, 2008).

Assim, com o objetivo de contribuir para o debate, em um primeiro momento

pretendo com esse artigo visitar as críticas e contribuições da antropologia das relações

humano-animais, na tentativa de compreender como as relações interespecíficas tem sido

pensadas na atualidade. Partindo disso, tratarei de um caso particular de interação entre

humanos e animais de estimação, a partir da análise do trabalho desenvolvido por uma

rede de proteção animal de Porto Alegre. Trata-se da rede solidária da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul, que pode ser considerada como um exemplo específico de

arranjo social envolvendo coletivos de animais em ambientes urbanos, sob proteção de

entidades e/ou de protetores independentes, motivados pela sensibilidade ao problema

social do abandono de animais.

O campo foi escolhido levando-se em consideração que o resgate e manutenção

de animais promovido por protetores independentes ou grupos de defesa animal que

atuam em comunidades tanto públicas, quanto privadas, origina-se do fato de serem

espaços propícios para o descarte de animais. Em algumas situações, esses locais acabam

desenvolvendo estruturas de apoio, como é o caso da Universidade Federal do Rio Grande

do Sul que abriga três entidades de proteção animal, além de um número indefinido de

voluntários independentes engajados no cuidado com os cães e gatos que foram

descartados nas imediações da Universidade.

Logo, tendo delineado o campo etnográfico, o material de análise deste artigo

resultou da observação participante realizada a partir de 2014 nas comunidades de apoio

aos cães e gatos residentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

especificamente no Campus do Vale, assistidos pelos projetos sociais atuantes. Assim

como, cabe ressaltar que a motivação para a pesquisa é fruto de minha participação como

ativista da rede de proteção animal de Porto Alegre desde 2011. Assim, esse estudo

também pode ser considerado como uma abordagem auto-etnográfica, tema que tem sido

debatido na antropologia desde o interpretativismo de Geertz (1979), e mais

recentemente, a partir das abordagens pós-coloniais dos estudos feministas como o de

Lila Abu-Lughod (1991) e Marilyn Strathern (1988). Assim como, de antropólogos

nativos como Epeli Hau’ofa (1993), em torno da necessidade de produzir um texto

polivocal, que leve em consideração não apenas a perspectiva nativa, mas sua escrita

etnográfica, ou auto-etnográfica, como proponho nesse estudo, a partir da noção definida

por Danahay (1997):

As a form of self-narrative that places the self within a social context. It is both

a method and a text, as in the case of ethnografy. Autoethnography can be done

by either an anthropologist who is doing “home” or “native” ethnography or

by a non-anthropologist/ ethnographer. It can also be done by an

autobriographer who places the story of his or her life within a story of the

social context in whitch it occurs. (Reed-Danahay, 1997, p. 9)

Nesse sentido, tendo em vista considerar aqueles aspectos que vivenciados na

prática, tornam-se fundamentais para o tema desse estudo e que não necessariamente

foram problematizados a partir da etnografia, além da observação participante, entrevistas

não-diretivas e produção do diário de campo realizado durante o levantamento dos dados

etnográficos, esse estudo também se sustenta no meu conhecimento como membro da

rede em defesa animal de Porto Alegre.

Com esse intuito, esse artigo visa compreender o debate em torno do estatuto atual

dos animais de rua. Assim, procurou-se refletir sobre as práticas no âmbito da rede em

defesa dos animais, bem como, suas negociações com as comunidades onde os animais

residem. Portanto, trata-se de considerar o papel das organizações animalistas na

construção do fenômeno pet, como também passa por reconhecer a posição da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul face à realidade de ser um local de descarte

de animais, foco do abandono de tutores irresponsáveis, e sua relação com os projetos

sociais que atuam no resgate e manutenção desses animais.

Por fim, esse estudo também intencionou mapear o processo pelo qual os animais

de rua tornam-se pets, tendo em vista o trabalho de transformação corporal e moral

proporcionado pelos projetos sociais, que preparam os animais resgatados, com a

finalidade de remover seus aspectos "selvagens", produzindo uma nova condição, na qual

o animal seja visto como um pet pelos candidatos à adoção. Assim, identifico como

desdobramento desse estudo a transformação que se evidencia na passagem do animal de

rua para o pet, tendo como foco o papel da rede de proteção animal como etapa

intermediária e fundamental no processo de passagem de um estatuto a outro.

Nesse sentido, destaca-se a teia de relações e negociações presentes nesse

processo, que inicia com o abandono de animais nas imediações da universidade, vistos

como objetos que podem ser descartados, para em seguida ser intermediada pela

responsabilidade e ética pública (Varner, 2000) das redes sociotécnicas envolvidas com

a manutenção e fortalecimento dessas comunidades, nas quais os animais são vistos como

sujeitos morais que precisam ser respeitados e assistidos pelos cuidados e afeto humano.

Para enfim ser concluído, em caso do processo ter sido bem-sucedido, através da adoção

do animal comunitário por uma família responsável, que deverá oferecer e garantir os

cuidados com o animal, que continuará sob proteção do projeto, por meio do contrato de

adoção assinado em comum acordo entre o adotante e o projeto social, ambos

responsáveis pela proteção permanente do animal adotado.

Os animais na antropologia

O interesse pelas interações entre humanos e outras espécies de animais sempre

esteve presente no pensamento científico. No entanto, as considerações modificaram-se

muito, de acordo com a época e corrente que dedicou-se ao tema. Tendo em vista a

humanidade como bem-maior, tanto a filosofia clássica quanto as correntes científicas

modernas trataram os animais a partir de um olhar utilitarista, ao considerar que exercem

determinadas funções em benefício dos humanos.

Adotada por grande parte dos intelectuais modernos, a visão utilitarista considera

que os animais são recursos naturais disponíveis e passíveis de controle nas mais diversas

atividades, expostos às condições de vida e finalidade que escolhemos, que por sua vez,

responde à demanda do contexto em que estamos inseridos. O enfoque funcionalista é

característico da ontologia naturalista, visto que considera a primazia da agência humana

frente outras espécies animais. O restante do reino animal é definido por sua falta de

intencionalidade, destinado à uma vida subordinada aos instintos naturais, em oposição à

humanidade marcada por sua essência dual, formada simultaneamente por processos

orgânicos e culturais.

Entre as principais considerações sobre esse debate, destaca-se a análise de

Descola (2002) ao considerar o dilema entre natureza e cultura como tema central do

estruturalismo francês. A tensão em torno dos dois domínios permanece durante toda a

obra de Levi-Strauss, podendo ser encontrada nos estudos sobre o parentesco, como as

considerações sobre o tabu do incesto e o problema do totemismo.

Assim, como crítica ao modelo utilitarista, a antropologia estrutural de Levi-

Strauss considerou a questão animal sob o ponto de vista de sua qualidade

representacional. Logo, em “Le Totémisme Aujourd'hui” (1962), o autor conclui que os

animais não são necessários apenas à produção da vida material como a tese utilitarista

supunha, mas também servem de modelo para classificação, refletindo na criação das

categorias simbólicas do pensamento humano.

A partir do momento em que desmistificou a crença no pensamento selvagem,

demonstrando que a ciência é fruto das mesmas estruturas mentais que permite o

desenvolvimento do pensamento mítico, Levi-Strauss abriu caminho para refletir sobre

outras alteridades. Ao reconhecer a natureza orgânica dos processos sociais, o autor

demonstrou as contradições da ciência moderna, apontando o caráter etnocêntrico de suas

proposições. Assim, como decorrência de uma crise do paradigma moderno, surge na

antropologia contemporânea uma geração de intelectuais interessados em reagregar as

tradicionais oposições.

Um bom exemplo desse movimento pode ser verificado na contestação por parte

da etnologia no que diz respeito à universalidade da classificação que diferencia humanos

de outras espécies de animais e vegetais. Essa proposta pode ser encontrada no

perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro (2004). Uma abordagem semelhante é

encontrada nos estudos de Descola (2004) sobre os modos de relação com os animais em

sociedades animistas. As concepções apresentadas atentam para o fato de que muitas

sociedades não compactuam com a divisão ontológica entre humanos e animais. Por isso,

o empenho em compreender como outras culturas pensam e se relacionam com as

espécies vivas de seu meio, e a partir disso significam suas cosmo-ontologias, acabam

por revelar as antíteses da visão naturalista, caracterizada pelo ponto de vista da

“excepcionalidade da espécie humana”, como observou Schafer (2009).

Considerando que a paisagem social não pode ser separada do ambiente orgânico,

o olhar se direciona para os limites entre humanidade e animalidade, colocando em pauta

se a noção de agência pode ser considerada como natureza intrínseca de nossa espécie,

ou então uma condição passível de ser acessada por outras formas de vida. Assim,

partindo das contribuições da antropologia fenomenológica na compreensão de que o

social é construído a partir da experiência de vida, pela percepção e interação com o meio

ambiente (Merleau-Ponty, 1969), Ingold propõe pensarmos em um Ambiente Sem

Objetos (ASO). Na tentativa de desconstruir as noções clássicas, o autor prioriza o termo

"coisas" em lugar de "objetos", partindo da premissa que a agência não é atributo

exclusivo da nossa espécie. Além disso, levando em consideração o “caráter fluido do

processo vital” (2012, p. 39), Ingold sustenta a necessidade de reaproximar a investigação

social dos processos naturais, por meio de uma “educação da atenção” (2010, p. 19).

Sob outro ângulo, a partir da etnografia com os Runa no Equador, o antropólogo

Eduardo Kohn (2007) sugere realizar uma antropologia da vida. Nesse sentido,

reconhecer a vida como categoria central de pensamento desvia o dilema entre

animalidade e humanidade. Uma tentativa de superar as dicotomias humano/não-humano

mente/corpo, forma/substância, pode ser conferida na proposta de Descola (1996) que

mantem a lógica dualista, mas numa nova configuração, assumindo a preferência pelos

conceitos de “fisicalidade” e “interioridade”, que de acordo com o autor seriam noções

universais.

Para Latour (2004, 2012), superar o congelamento dos domínios constitui o

principal desafio da antropologia contemporânea. Esse parece ser o objetivo da Teoria do

Ator-rede, que sugere pensarmos num projeto científico capaz de dar conta da dimensão

híbrida dos fenômenos sociais, compreendidos a partir da síntese entre agenciamentos

humanos e não-humanos. Também cabe ressaltar a crítica de Latour (2011) à

epistemologia que considera o desenvolvimento científico apartado da política e a ciência

como processo de purificação, visto que o conhecimento científico não está isento de

relações de poder. Nesse caso, trata-se de compreender que as fronteiras disciplinares são

construções sociais, e que as categorias analíticas não refletem essências puras, mas são

ferramentas conceituais à serviço dos modelos cognitivos.

Quando definimos taxonomias e isolamos disciplinas para desenvolvermos

conhecimento especializado, muitas vezes perdemos de vista a interlocução com outras

áreas, e com isso, a possibilidade de acessar novas perspectivas de análise. No entanto,

não se trata de afirmar que não devam existir disciplinas ou categorias, mas a proposta de

uma antropologia simétrica busca investir no aspecto multidisciplinar e híbrido das

configurações sociais. Para Latour, ao invés de partir de um social coerente para explicar

sua manifestação, o que importa é seguir as redes de controvérsias e encontrar as

associações que configuram essas redes.

Assim, considerando que a questão animal suscita questionamentos no campo da

teoria antropológica, visto que tensiona o paradigma moderno que instaura a humanidade

como valor excepcional da nossa espécie, frente às evidências da crescente incorporação

dos animais no cotidiano social, o estado da arte em estudos humano-animais remete à

necessidade de pensar a sociedade e a investigação antropológica para além dos coletivos

humanos.

A questão animal como problema social

Alguns estudos tem destacado o impacto que vem ocorrendo na paisagem urbana

das sociedades contemporâneas devido à inclusão de animais de estimação no convívio

social. Entre as principais transformações evidenciadas está a crescente familiarização de

animais de companhia, considerada por alguns antropólogos como uma espécie de

"filhotização”. A crescente incorporação de animais de estimação em ambientes de

sociabilidade, tem despertado o interesse das ciências sociais, motivando a produção e

divulgação de pesquisas sobre o universo pet.

Essas investigações tem enfatizado o desenvolvimento da indústria pet, que já

assume uma posição de destaque no mercado de bens de consumo. Donna Haraway

(2007) analisa a dimensão do fenômeno nos Estados Unidos, enquanto Jean-Pierre Digard

(2009) indica a mesma situação na França. Isso pode ser percebido pelo crescimento da

demanda por especializações veterinárias e pet shops, assim como, pelo aumento de locais

que aderiram ao conceito pet friendly. 2 Essas abordagens demonstram que a tendência

em antropomorfizar animais de estimação tem resultado em um amplo sistema de

procedimentos médicos e estéticos, que define a diversidade de intervenções às quais

esses animais, em sua maioria cães e gatos, são submetidos cotidianamente, como bem

apontado por Segata (2012), em pesquisa sobre cães com depressão.

Nessa mesma direção, encontramos o estudo de Kulick (2009) que analisou as

estratégias do mercado das grandes marcas de ração do mercado industrial e as ações de

penalização por parte do poder público frente à obesidade de cães de companhia, vista

como doença desencadeada pela negligência de seus tutores. Para o autor, o que está em

jogo são novas moralidades envolvendo relações interespecíficas capazes de “dissolver

as fronteiras entre as espécies”. Isso pode ser notado pela visibilidade que a questão

animal tem assumido na esfera político-midiática, demonstrando uma crescente simpatia

da opinião pública pela causa animal.

Em comparação com as sociedades complexas, a antropologia também tem

produzido investigações pertinentes sobre relações humano-animais em populações

indígenas. Levando em consideração o ponto de vista relacional da interação

homem/meio, Philippe Erikson (2012) analisa os xerimbabos, a partir da etnografia com

os Matis que vivem no sudoeste do Estado do Amazonas. Outra abordagem pode ser

conferida na proposta de Felipe Vander Velden (2010) sobre o processo de familiarização

de animais, principalmente de cães pelos Karitiana, grupo indígena que habita o Estado

de Rondônia. Ambos analisam o processo de adoção dos filhotes de presas capturadas na

caça, ou de animais abandonados no âmbito das aldeias que são incorporados pelos

grupos indígenas, que assumem uma relação de adoção com os animais resgatados.

O problema que surge quando pensamos em animais abandonados é compreender

onde se localizam na classificação habitual sobre animais domésticos. Assim, vemos que

o quesito proximidade/distância em relação aos seres humanos tem sido o ponto de vista

adotado. De acordo com isso, são denominados selvagens ou silvestres aqueles animais

com quem mantemos uma significativa distância, enquanto que os animais domésticos se

caracterizam pela sua proximidade e inclusão no cotidiano social. A partir dessa

2 São considerados Pet Friendly, os estabelecimentos comerciais ou espaços públicos que permitem a

entrada e permanência de animais de estimação no interior do local.

classificação preliminar, encontramos ainda mais duas subdivisões: uma que diz respeito

à fauna selvagem como aquela composta por animais nativos e animais exóticos, e a

segunda diferenciação ocorre no grupo doméstico pela distinção entre animais de criação

e animais de estimação.

Se reconhecemos que os animais de criação se denominam dessa forma pois de

fato são criados pela indústria pecuária e de experimentação animal, a categoria dos

animais de estimação não se sustenta, visto que supõe que todos os animais sejam

realmente estimados, algo que de fato não se confirma na realidade. Se pensarmos que

essa expressão é muitas vezes substituída por animais de companhia, a questão se

mantém, pois sugere que todos os animais sejam acompanhados, fato que pode ser

igualmente contestado.

O problema dessa classificação remete ao problema em torno da noção de

domesticidade, que por consequência estipula que selvagens são aquelas espécies de

animais que vivem independentemente dos cuidados humanos, enquanto que os

domesticados são vistos como nossa responsabilidade, pela qual temos o dever de provê-

los com os devidos cuidados. Assim, a questão em torno dos animais abandonados reflete

a dificuldade de pensar aqueles indivíduos considerados domésticos que não se

encontram em relações de proteção. Essa realidade pode ser observada nos centros

urbanos, onde cães e gatos sobrevivem independentes dos cuidados de tutores humanos,

despertando indagações éticas sobre o bem-estar desses animais.

Considerando isso, os estudos sobre relações humano-animais tem demonstrado

um olhar diferenciado para os processos de domesticação. Nesse intuito, cabe ressaltar a

visão pós-doméstica de Bulliet (2005) que aponta para uma incoerência na relação das

sociedades contemporâneas com seus animais domésticos. Em uma outra abordagem,

Digard (2012) atenta que a domesticação trata-se de um processo diverso e contínuo, que

pode ser interrompido a qualquer instante, acarretando o retorno dos animais à vida

selvagem. Assim como, trata-se de um processo de mão dupla, por meio do qual humanos

e animais estão sendo igualmente domesticados.

Em diálogo com esses autores, as pesquisas do grupo de pesquisa Espelho Animal

tem demonstrado a necessidade de pensar o dilema humano da relação com outras

espécies, apontando o contraste entre a domesticação para o consumo e a domesticação

para o afeto. Podemos observar esse conflito nos estudos de Lewgoy e Sordi (2012) sobre

a disputa entre defensores e críticos do consumo de carne no Brasil. Assim como, parece

propício pensar nas novas sensibilidades que estão sendo incorporadas na agenda política

por meio da articulação de organizações sociais, órgãos governamentais e opinião pública

em favor da causa animal, seja pela perspectiva abolicionista da abordagem de Sordi

(2011), ou pelo cunho bem-estarista como dissertou Pastori (2012).

No caso dos cães, a questão é ainda mais complexa, ao constatarmos sua longa

história de convivência com seres humanos em processos de domesticação, que remonta

a 12.000 anos (Piette, 2002). Em primeiro lugar vemos que representa a maior

proximidade dos seres humanos entre as espécies animais, sendo reconhecido como o

animal de estimação por excelência, com algumas exceções onde não são condicionados

ao convívio íntimo com humanos. Assim como, trata-se da espécie que atrai uma

mobilização maior por parte da proteção animal urbana. No entanto, cães abandonados,

também são foco de preocupação, sendo considerados como um problema crônico dos

centros urbanos. Em comparação com outros indivíduos ou espécies de animais que

representam ameaça ao equilíbrio ecológico e/ou social, os animais de rua não ocupam o

mesmo status dos pets, integrando a lista sob vigília constante dos órgãos de vigilância

sanitária.

Visto que na mesma espécie podemos encontrar animais que estão sendo

constantemente domesticados, ao passo que outros estão sobrevivendo sem proteção

humana, precisamos considerar uma outra dimensão no interior da classificação, que

represente a distinção entre animais de estimação e animais de rua. Essa diferenciação é

bem perceptível e se define pelo estatuto do animal. A primeira identifica uma tutoria, na

qual o animal se encontra sob responsabilidade de seres humanos, enquanto que a segunda

indica aqueles animais que vivem sem cuidados permanentes. Como consequência da

ausência de proteção, os animais que se encontram nas ruas podem representar um retorno

ao comportamento selvagem, suscitando reações de indiferença, descaso, rejeição,

crueldade, e inclusive ações de extermínio.

Nesse sentido, percebe-se que o estatuto do animal não está automaticamente

determinado de acordo com sua espécie. Assim, cães e gatos, vistos como animais

domésticos, podem ou não assumir o estatuto pet. Como também, pode ocorrer o oposto

quando se encontram em situação de rua e assumem outra posição, mais próxima de

espécies vistas como pragas, como é o caso de animais indesejados em ambientes urbanos

e animais exóticos invasores.

Além disso, compreende-se que os animais de rua transitam entre um polo

negativo e um polo positivo dependendo do contexto analisado. De um lado mobilizam a

categoria de vítima do abandono, provocando o mal-estar por termos responsabilidade no

processo de domesticação da espécie e estarmos rompendo um compromisso que

deveríamos honrar. No entanto, a realidade é que não há humanos suficientes interessados

em se responsabilizar pelos animais que vivem nas ruas, que considerados como vetores

de zoonoses, assumem o status de animal-risco, sobrevivendo com a ajuda das entidades

protetoras, empenhadas em políticas de esterilização, abrigagem e guarda responsável via

adoção.

Visto que são domésticos, porém não se encontram no âmbito da casa como pets,

os animais de rua parecem expressar um bom exemplo do problema verificado em casos

onde as definições tradicionais não se aplicam. Assim, independente da diversidade de

casos verificados em campo onde atuam redes de apoio aos animais abandonados, aquilo

que une todas as formas nas quais o fenômeno se manifesta é o fato de serem alvo de

relações de proteção, cujo foco é a inserção do animal no cotidiano familiar.

Tendo isso em vista, Osório (2011) e Mattos (2012) guiaram suas etnografias para

a relevância das ações de grupos de proteção animal em contextos urbanos, com o intuito

de compreender práticas que refletem a sensibilidade frente ao abandono e maus-tratos

de animais. A relevância desses estudos se confirmam pelo destaque que a questão animal

tem expressado na atualidade, integrando de forma expressiva a agenda social das

sociedades contemporâneas. Isso pode ser compreendido como fruto de novas

sensibilidades em relação aos animais, que tem contribuído para a construção de marcos

legislativos, cujos princípios servem de base para o planejamento e execução de políticas

públicas e ações da sociedade civil voltadas à proteção animal.

Um exemplo disso são as redes solidárias de apoio aos animais abandonados, que

podem ser pensadas como uma nova forma de moralidade, na qual os animais começam

a ser inseridos nas reflexões sobre normatização do espaço público. Assim como,

iniciativas em benefício dos animais tornam-se cada vez mais organizadas, expressando

uma economia moral (Fassin, 2009) específica da proteção animal urbana, cujo principal

objetivo é o resgate da sociedade para a questão animal.

O caso da rede de proteção animal da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Situando-se em uma grande área na divisa de Porto Alegre e Viamão, com acesso

liberado pela entrada principal e caracterizado pela existência de várias estradas internas

que servem para o tráfego entre as unidades, o Campus do Vale é visto como um lugar

atrativo para o descarte de animais. Por outro lado, também representa um local

privilegiado para observar a dinâmica de uma rede de proteção aos animais domésticos

em contextos urbanos, visto que que mobiliza três entidades protecionistas: Bichos do

Campus, com atuação desde 1996, Patas Dadas, com início em 2008, e Animal é Tri, a

partir de 2011.

Os três grupos são formados por alunos, funcionários, professores e terceirizados

conveniados com a universidade, assim como, de voluntários externos que participam

esporadicamente, em diversas funções relacionadas tanto no cuidado direto com os

animais, quanto na manutenção dos projetos. Entre as principais ações desenvolvidas

pelos projetos sociais estão o resgate e cuidado por meio de assistência veterinária,

esterilização, alimentação, adestramento e adoção dos animais que são mantidos pelos

integrantes dos projetos locais.

O grupo Bichos do Campus é o mais antigo com atuação no Campus do vale desde

1996. Quando a questão animal ainda não tinha a visibilidade atual, teve origem a

Associação Dos Animais do Campus. Os animais mantidos pelo Bichos do Campus

vivem soltos no Campus do Vale, identificados pelo nome do animal e do projeto na

coleira, e com pontos fixos para alimentação e abrigo, com exceção daqueles que estão

em clínicas veterinárias, casas de passagem ou lares temporários para tratamento,

esterilização ou aguardando adoção.

O Projeto Patas Dadas foi criado em 2008 e é responsável pelo canil que está

localizado no Campus do Vale, onde vivem em torno de 70 cães que são assistidos pelos

voluntários em duas escalas diárias, nos sete dias da semana. O projeto destaca-se pela

mobilização de mais de 90 voluntários que atuam tanto no cuidado com os animais,

quanto nas campanhas para adoção nas mídias e redes sociais, eventos e brechós em

benefício dos animais mantidos pelo projeto. Alguns animais do Patas Dadas também

vivem soltos no Campus do Vale, e, portanto não há como identificar de qual projeto é o

animal, até verificar sua identificação.

Durante o trabalho de campo, ainda foram identificados outros pontos onde

residem animais comunitários no Campus do Vale, como é o caso dos cães que vivem na

Casa do Estudante do Campus do Vale, que são atendidos pelos estudantes moradores da

casa e que recebem apoio esporádico do Projeto Animal é Tri. Como também há cães

residentes no Colégio de aplicação da UFRGS que estão sob responsabilidade do Bichos

do Campus e que desenvolve um projeto permanente de educação para a questão animal

na escola. Além desses casos, ainda é preciso considerar a permissão para que moradores

que residem no interior do campus tenham animais de estimação, assim como, pela

existência de animais que circulam em uma ampla dimensão territorial do campus, tendo

em vista que, com exceção do canil, onde estão a maioria dos animais mantidos pelo

projeto Patas Dadas, o restante dos animais vivem soltos no espaço acadêmico. Contudo,

como estes casos estão relacionados com os projetos já citados, serão considerados como

parte da rede de manutenção de animais da UFRGS, coordenada e mantida pelos projetos

de proteção animal que atuam no local.

O Projeto Animal é Tri teve origem em 2011, e atua na manutenção da

comunidade de gatos residente do Campus Central da UFRGS. Porém, o fato de ser

integrante do projeto resultou na decisão de focar a pesquisa nos grupos que atuam no

Campus do Vale, deixando fora do estudo o caso da comunidade de gatos residente do

Campus Central sob responsabilidade do projeto do qual faço parte. No entanto, ressalto

que minha experiência pessoal desenvolvida com a proteção animal foi fundamental para

o depertar de questões centrais sobre o tema de pesquisa proponho, cujo empenho

investigativo tem se caracterizado por um contínuo exercício de transformar o familiar

em exótico.

O primeiro passo para entender o fenômeno das redes de apoio aos animais

consiste em identificar que a origem desse processo está no abandono dos animais. Antes

mesmo de traçar o percurso que leva um animal de rua a ser visto como um pet, é preciso

destacar que esse animal foi vítima de abandono. Isso se faz necessário, visto que muitas

pessoas acreditam que os animais que vivem nas ruas são animais independentes, e por

esse motivo sabem sobreviver sozinhos, não dependendo da ajuda humana, ou então que

não são passíveis de domesticação. Essa constatação contribui para o abandono de

animais, que muitas vezes por problemas comportamentais, e pelo alto custo de um

tratamento com especialistas, são abandonados à sua própria sorte.

Esse fato é ainda mais evidente, quando pensamos que muitos animais que vivem

em cativeiro classificados como selvagens, precisam de um longo período de adaptação

para poderem ser introduzidos novamente em seu habitat natural. Assim, a maioria dos

animais que são abandonados nas grandes cidades, não sobrevivem, pois acostumados

com suas necessidades atendidas pelos humanos, não conseguem se alimentar sozinhos e

acabam padecendo por causa da fome, sede e frio. Após a consideração de que os animais

que estão nas ruas são vítimas do abandono humano, em seguida é preciso compreender

o processo pelo qual um animal de rua torna-se um animal de estimação.

O corpo de um cão ou de um gato, animais de companhia mais comuns, expressa

quais as condições em que esse animal se encontra. Assim como os indivíduos excluídos

socialmente, que vivem nas ruas, e levam sua história de vida marcada no corpo, pelos

sinais evidentes da marginalidade, que sensibilizam alguns, no entanto, afastam a grande

maioria de pessoas que consideram perigoso o contato com moradores de rua, os cães e

gatos residentes das ruas de nossas cidades, também carregam no corpo os sinais do

abandono e dos maus-tratos. Por esse motivo, logo percebemos quando estamos na

presença de um animal de rua, ele é imediatamente identificado devido à sua aparência

física.

De acordo com os interlocutores desse estudo, quando um animal desconhecido

surge e se estabelece em algum local específico, a primeira reação é observar se está bem

cuidado ou não. O primeiro indício é o uso de coleiras que demonstram imediatamente

que o animal já recebeu alguma assistência, porém não comprova se ele possui um

responsável. O fato de estar com coleira pode ter diversas causas. Ele pode ter fugido do

local onde era mantido e acabou se perdendo, ou ainda, pode ter sido abandonado com a

coleira para que não seja confundido com um animal de rua, aumentando suas chances de

ser resgatado e adotado. Mesmo com a ajuda de grupos nas redes sociais destinados à

divulgação de animais perdidos, muitas vezes não há como descobrir às origens do animal

perambulante.

Um exame mais detalhado de sua aparência talvez possa indicar algumas

evidências sobre sua história. Se o animal está magro e com aspecto de fraqueza é sinal

que já faz algum tempo que vive nas ruas e sua aproximação e permanência em uma

comunidade pode estar relacionado ao fato de não estar em condições de continuar sua

rotina de sobrevivência. Nesse caso, vai depender da comunidade aceitá-lo e oferecer os

cuidados necessários para que se recupere e possa continuar na rua, ou com sorte, ser

adotado. Essa é uma das origens das redes de apoio aos animais, que muitas vezes surge

por uma iniciativa de assistência oferecida à um animal de rua, que torna-se membro

dessa comunidade, e passa a receber frequentemente os cuidados necessários por parte de

pessoas sensíveis à situação de abandono dos animais.

Por outro lado, caso o animal esteja bem cuidado, pode ocorrer de ser adotado

rapidamente, principalmente se for de raça, ou então o animal após o resgate passa a ser

divulgado para adoção. Atualmente com as redes sociais, o processo de adoção de animais

resgatados das ruas ficou mais fácil e acessível. Na rede social facebook existem milhares

de grupos e páginas destinados à adoção de animais, cujos membros em sua maioria, são

protetores independentes, integrantes de organizações sociais de defesa animal,

simpatizantes da causa animal, ou então candidatos que buscam adoção de um animal de

estimação.

Após o resgate, em muitos casos os animais precisam ser isolados dos demais, por

motivo de feralidade, ou então por apresentar alguma patologia contagiosa, que demanda

um cuidado individualizado ao animal, assim como, uma adoção especial consciente de

suas futuras necessidades. No primeiro caso, constatamos que longe de serem animais

domésticos por uma natureza inata, a domesticação é fruto de um contínuo “sistema

domesticatório” (Digard, 2012) que pode ser rompida, caso os animais sigam livres da

interação com os humanos. Nesse sentido, destaca-se o fato da domesticação ser um fato

social, que classifica a relação de distanciamento e proximidade que estabelecemos com

as espécies no meio em que vivemos. O segundo caso retoma à questão em torno da

correspondência dos diagnósticos humanos em animais, como por exemplo o caso da

Aids felina, que tem recebido atenção não apenas da medicina veterinária, mas de toda a

rede em defesa dos animais, que vem buscando orientações sobre como detectar e tratar

as principais patologias causadoras de óbitos em animais de estimação.

Em sequência do resgate, para evitar que os animais sejam vistos como animais

de rua, a primeira medida tomada pelos projetos que atuam com os animais comunitários

da UFRGS quando resgatam ou encontram um animal abandonado é identificá-lo com

um nome e coleira, para que seja incorporado ao grupo e registrado como integrante de

um dos projetos. A partir de então esse animal será acompanhado até o fim de sua vida.

Essa medida demonstra a necessidade de dar uma identidade ao animal, que muitas vezes

também recebe algumas características para compor seu perfil nos anúncios de adoção

publicados nas redes sociais. O fato de receber uma identidade, confere ao animal o

estatuto pet, que a partir de então possui uma rotina e um status definidos pelos projeto

até sua adoção ser concretizada, quando sua responsabilidade passa ao tutor adotante,

onde receberá uma nova posição no seio familiar. Logo, observamos a importância do

processo de construção do animal como sujeito pessoalizado, para que configure como

um pet em potencial.

O processo de passagem do animal de rua ao animal de estimação é realizado

seguindo todas as etapas necessárias, no sentido de garantir que os animais resgatados

passem pelo período de transformação do corpo, e muitas vezes também do

comportamento, para então serem vistos como animais de companhia pelos candidatos à

adoção. Essa transformação é altamente ritualizada, a partir de diversos procedimentos

estéticos, como banho e tosa, assim como pela medicalização de anti-parasitários que são

administrados imediatamente após o resgate dos animais. Esses procedimentos são

seguidos de tratamento clínico quando há necessidade, vacinação e esterilização

obrigatória, respeitando-se a idade permitida que depende da espécie animal. A

esterilização e vacinação pode ser realizada pelo projeto responsável ou negociado como

condição para confirmar uma adoção, caso o adotante se comprometa.

Por último, esses animais serão fotografados e incluídos em anúncios de adoção

em diversos meios virtuais, e a partir daí, iniciará seu processo de adoção resposável, por

meio de questionário de adoção para conhecer melhor a rotina do candidato à adoção, e,

caso a adoção seja confirmada, o animal será levado em sua casa mediante contrato de

adoção que garante a proteção permanente do animal adotado. Esses critérios são

flexíveis, de acordo com o grupo e situação específica, mas em geral, é seguido um

protocolo de adoção para garantir a guarda responsável do animal adotado. Logo,

podemos considerar que a transformação do animal de rua em pet, que muitas vezes passa

pela condição como animais comunitários é um processo complexo e gradual, que não

garante que o animal consiga ser adotado, porém é etapa fundamental para que o sucesso

da adoção ocorra.

Esse processo pode resultar em dois fins diferentes para os animais assistidos

pelos projetos sociais que foram analisados. O fim esperado e comemorado é quando a

adoção é concretizada, tendo em vista que o trabalho desenvolvido com os animais

abandonados é visto inicialmente pelos protetores como um meio para atingir o fim que

se efetiva na adoção. Caso esse fim não se realize, ainda resta a possibilidade de pensar

na comunidade de animais como um ambiente onde os animais resgatados e incorporados

na coletividade local, possam permanecer vivendo suas vidas da melhor forma possível,

livres de fome, sede e frio, assim como de sofrimento ou descaso, enquanto viverem.

A etnografia sobre comunidades de animais demonstra que o acesso ao estatuto

de animais de estimação realizado através da adoção, é promovido principalmente por

protetores independentes ou entidades protecionistas. No caso dos animais que estão

sendo mantidos individualmente em ações esporádicas, como muitas vezes não há

estrutura previamente negociada para a manutenção, pode ocasionar resistência e

desconfiança na comunidade. Além disso, em muitos casos os animais são integrados de

tal forma que a adoção não é um objetivo a ser perseguido e os animais continuam a viver

na rua permanentemente mantidos por seus cuidadores.3

Por fim, o caso analisado sugere que para acessar o estatuto de animal de

estimação não basta receber os devidos cuidados, mas é preciso estar inserido em um

ambiente familiar, recebendo o afeto necessário à condição do animal como membro da

família. E isso, para os interlocutores desse estudo, só é possível quando o animal se

encontra na segurança de uma adoção responsável. Logo, as redes de apoio não se

empenham apenas na manutenção dos animais sob sua responsabilidade, mas também se

esforçam para que os animais que tiveram a chance de serem adotados, permaneçam sob

proteção permanente, utilizando-se para isso de ferramentas de controle como o contrato

de adoção, que é assinado pelo adotante e protetor responsável, tendo em vista garantir o

bem-estar do animal.

Isso demonstra que essas ações não significam apenas uma proteção para o animal

de rua, mas também configuram mecanismos de regulação das moralidades envolvendo

animais domésticos em contextos urbanos, constituindo-se ao mesmo tempo como um

resgate dos animais para a vida no ambiente íntimo do lar, assim como dos humanos,

visto que sensibilizam a sociedade para a responsabilidade com a população de animais

desamparados.

No que diz respeito às relações estabelecidas com as redes sociotécnicas

protecionistas que atuam no Campus do Vale da UFRGS, constatou-se que a atual

condição dos projetos sociais precisam ser constantemente negociada, tendo em vista que

3 Isso ocorre na Casa do Estudante do Campus do Vale, na qual alguns estudantes mantém cerca

de 8 cães que não possuem responsável definido, no entanto também não se encontram para

adoção.

muitos indivíduos não gostam de animais, e fazem questão de evitar a convivência com

eles. Assim, foi possível detectar consideráveis disputas no campo biopolítico (Foucault,

2008) entre os integrantes do projeto e os funcionários e representantes das instituições

envolvidas com o problema do abandono dos animais de rua nas vias públicas, como é o

caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por ser o locus dessa problemática,

assim como, pelo apoio da Secretaria Especial dos Direitos Animais, no que concerne às

negociações e alianças pela permanência e manutenção das comunidades de animais no

espaço universitário.

Isso demonstra que apesar dos animais estarem sendo abandonados no âmbito da

universidade, toda a responsabilidade por sua manutenção tem sido da rede atuante no

Campus do Vale. Apesar dos dois projetos foco deste estudo configurarem ações de

extensão vinculadas à universidade, as negociações em torno do bem-estar desse animais

parte sempre da iniciativa dos grupos protetores, que com muito empenho conseguiram

desenvolver suas ações no interior da universidade, demonstrando o conflito e o jogo de

forças necessário para estabelecer a normatividade do espaço público quando se relaciona

com a questão animal. (Blanc, 2003)

Quanto à relação dos projetos sociais com a comunidade acadêmica geral, a

questão é mais sutil. Os animais não são bem-vindos nas imediações dos estabelecimentos

comerciais alimentícios e também são foco de muitas reclamações devido ao fato do canil

do Patas Dadas estar instalado atrás do prédio de salas de aulas, representando muito

barulho por causa dos latidos dos cães, o que perturba muitas pessoas, e que por esse

motivo, posicionam-se contrárias aos projetos sociais que atuam no Campus do Vale. No

entanto, também observamos que os animais são constantemente vistos nas salas de aula,

e considerados por muitos como mascotes, mesmo que seja ignorado pela maioria, a

existência dos projetos de proteção animal que atuam no local, tendo em vista que não há

nenhuma placa ou banner informando que existem comunidades de animais incorporadas

e assistidas por esses projetos no Campus do Vale. Desse modo, nesse momento da

pesquisa, não há como indicar a dimensão das relações entre os animais e a comunidade

acadêmica ampliada, porém, é um aspecto considerado e que, por isso, será foco de um

empenho etnográfico posterior.

Considerações Finais

Ao mesmo tempo em que observamos, por um lado, que existe todo um esforço

concentrado no convívio desejável com os animais de estimação, no entanto, por outro

lado, ainda há muito preconceito na adoção e na interação com os animais abandonados

nas ruas, que vistos como pragas, e por esse motivo, desamparados à sua própria sorte,

acabam tornando-se vítimas da crueldade humana. A conotação que os animais de rua

carregam é de serem animais indesejados, visto que perturbam a ordem pública, levando

em consideração que deveriam estar no âmbito privado, sob responsabilidade de um tutor

humano.

Assim, verifica-se que o drama social característico do dilema brasileiro apontado

por Da Matta (1997) entre mundo da casa e mundo da rua, também é evidenciado nas

relações com os animais que vivem nas ruas dos centros urbanos, a partir das práticas de

maus-tratos cometidos contra os cães, gatos e cavalos, que desmoralizados por sua

condição, acabam sendo vistos como verdadeiros estigmas das sociedades

contemporâneas. Devido à isso, muitos defendem a proibição da alimentação de animais

de rua, ou então, aqueles mais radicais se empenham no extermínio desses animais, como

uma tentativa de higienização urbana.

Nesse sentido, destaca-se a iniciativa da rede em defesa dos animais de Porto

alegre, que apesar de sua diversidade, congrega os mesmos objetivos, que é garantir os

direitos e bem-estar dos animais vítimas das mais surpreendentes formas de opressão,

exploração e violência que são perpetuadas diariamente contra os animais abandonados.

A partir do trabalho muitas vezes voluntário durante o tempo livre, ou então assumido em

jornada exclusiva no cuidado e defesa dos animais de rua, os protetores de animais,

engajados em políticas de solidariedade, tem mobilizado diversos atores sociais em uma

rede sociotécnica complexa que, tem despertado a atenção de outros setores sociais para

a cidadania dos animais domésticos, concretizando uma ampla rede de pessoas que

trabalham para que os animais resgatados das ruas possam ter a oportunidade de um dia

serem adotados.

Assim, o caso analisado demonstra que a tendência à familiarização de animais

de estimação extrapolou o limite do pet como animal de raça, objeto de consumo da classe

média urbana, mas tem se manifestado como uma nova relação entre humanos e seus pets,

marcada pela ênfase nos processos de proteção e adoção de animais abandonados,

incorporados ao cotidiano da cidade por intermediação de protetores independentes e

organizações de defesa animal.

Tendo em vista que a condição para ser um animal de estimação não é dada, e sim,

construída socialmente, o caso analisado sugere pensar que as redes de apoio aos animais

abandonados operam um verdadeiro resgate de afetos, desde o momento que assumem a

iniciativa de integrar o animal na comunidade, passando pelo processo de criação de um

perfil que será divulgado nas redes sociais, até chegar ao objetivo principal que está na

adoção. Assim, podemos concluir que essas relações não tem sido significativas apenas

por oferecer os cuidados necessários aos animais de rua, mas principalmente por

reestabelecer a responsabilidade dos humanos pelos animais abandonados, visando sua

inserção no meio social.

Além disso, a análise também sugere que ações de proteção animal, como

observado no caso da rede de apoio examinada, podem ser pensadas como reação ao

sofrimento social causado pelos inúmeros abandonos que são frequentemente efetuados

em locais de descarte, apresentando-se como realidade insuportável para alguns dos

interlocutores desse estudo, que resolveram transformar a compaixão pelos animais de

rua, em ações concretas em defesa desses animais. Isso pode ser evidenciado a partir do

relato de origem do projeto Patas Dadas, que ganhou força após a ocorrência de um

massacre de mascotes que viviam no campus, sob os cuidados de alguns estudantes e

professores.

Por isso, pensar que o cuidado do outro, é um cuidado de si parece pertinente

quando se trata de protetores de animais. Isso se evidencia quando percebemos que as

ações protecionistas não são fruto apenas da compaixão com o sofrimento vivenciado

pelos animais, mas porque a empatia faz com que alguns de nós ao vê-los em sofrimento,

sofra na mesma proporção.

Por outro lado, vemos que o antropocentrismo não está apenas nos alicerces da

ciência moderna, mas também se manifesta no discurso dos movimentos ecológicos

(Hurn, 2012), que culpabilizam a espécie humana pelo sofrimento dos animais e ao

defender uma posição ética nas relações interespecíficas, inevitavelmente confirmam a

centralidade da condição humana. Assim, o enfoque na espécie humana talvez não se

expressa apenas na visão daqueles que defendem que a vida dos seres humanos vale mais

que a vida de outros seres vivos, como no caso do paradigma moderno, mas de pensar

que o valor atribuído à vida das outras espécies parte do reconhecimento da vida humana

como condição única, e a partir da qual a própria reflexão se faz possível.

Por esse ângulo, reconhecer que a rede de apoio aos animais reproduz uma

ideologia antropocêntrica ao cobrar da sociedade a responsabilidade sobre os animais de

rua, não implica desconsiderar a crítica ao especismo (Noske, 1997), liderada pelo

movimento abolicionista, ao denunciar a desmedida dominação do reino animal

promovida pelos humanos. Pois compreender que a morte de animais é inevitável, tratado

como fato comum e justificado por inúmeros argumentos, não abstrai o mal-estar de tirar

uma vida ou ter empatia por aquele que a perde. Assim, antes de propor explicações de

como é possível uma equivalência de agenciamentos humanos e não-humanos, pensar a

alteridade interespecífica obriga-nos a retomar as inquietações sobre a percepção de uma

vida consciente refletindo sobre sua própria condição de existência.

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