resenha transamerica

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1 Bruna Nunes da Costa Triana O questionamento da família normatizada e da sexualidade em Transamérica A partir do filme Transamérica (Transamerica, Duncan Tucker, 2005, EUA), procuramos, aqui, analisar e relacionar as noções de família, sexualidade e funções de gênero veiculadas e problematizadas. Este filme do circuito independente americano teve ampla repercussão, tanto nos Estados Unidos como no mundo; a atriz Felicity Huffman, que interpreta a personagem principal do filme, ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz e concorreu ao Oscar nesta mesma categoria. O filme, escrito pelo também diretor Duncan Trucer, conta a história de uma transexual, Bree (Felicity Huffman), que ao receber a ligação do filho que não sabia que existia, e que procura por Stanley, pois está preso em Nova York por prostituição e porte de drogas, empreende uma viagem para resgatá-lo da prisão e construir uma nova forma de relação com o filho, superando a tradicional divisão de papéis por gênero, já que ela é uma mulher que é pai. Esse filme pode ser considerado um roadmovie, uma categoria de filmes onde a viagem é entendida como uma metáfora da vida, em que as personagens realizam, concomitantemente, uma viagem concreta e uma viagem existencial, de autoconhecimento (NAZÁRIO, 2005, p.227). A partir disso, o filme procura enfatizar o conflito da personagem Bree, uma transexual, e de seu filho Toby (Kevin Zegers), buscando assim questionar e desconstruir a noção de família enraizada no imaginário

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Page 1: resenha Transamerica

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Bruna Nunes da Costa Triana

O questionamento da família normatizada e da sexualidade em Transamérica

A partir do filme Transamérica (Transamerica, Duncan Tucker, 2005, EUA),

procuramos, aqui, analisar e relacionar as noções de família, sexualidade e funções

de gênero veiculadas e problematizadas. Este filme do circuito independente

americano teve ampla repercussão, tanto nos Estados Unidos como no mundo; a

atriz Felicity Huffman, que interpreta a personagem principal do filme, ganhou o Globo

de Ouro de melhor atriz e concorreu ao Oscar nesta mesma categoria. O filme,

escrito pelo também diretor Duncan Trucer, conta a história de uma transexual, Bree

(Felicity Huffman), que ao receber a ligação do filho que não sabia que existia, e que

procura por Stanley, pois está preso em Nova York por prostituição e porte de drogas,

empreende uma viagem para resgatá-lo da prisão e construir uma nova forma de

relação com o filho, superando a tradicional divisão de papéis por gênero, já que ela é

uma mulher que é pai.

Esse filme pode ser considerado um roadmovie, uma categoria de filmes onde

a viagem é entendida como uma metáfora da vida, em que as personagens realizam,

concomitantemente, uma viagem concreta e uma viagem existencial, de

autoconhecimento (NAZÁRIO, 2005, p.227). A partir disso, o filme procura enfatizar o

conflito da personagem Bree, uma transexual, e de seu filho Toby (Kevin Zegers),

buscando assim questionar e desconstruir a noção de família enraizada no imaginário

ocidental. Segundo Fabíola Rodhen (2003, pp.34-35), a família é a célula central da

sociedade, assim, as relações estabelecidas no seio da família (heterossexual)

impõem papéis masculinos e femininos, que devem ser seguidos e que estruturam,

assim, o imaginário e a organização da vida social. Essa noção de família implica

uma heterossexualidade, que é a considerada “normal”, normatizada e legitimada,

estando associada, ainda, à procriação. As características ideais da família ocidental

que, de acordo com Lefaucheur (2003, p.55), foram instituídas pelo matrimônio,

passam, então, a regular as relações sexuais (heterossexuais), a convivência

doméstica, a reprodução, a paternidade e a legitimidade - questões estas que são

problematizadas e desconstruídas neste filme, onde Bree teve um filho quando ainda

era “homem” e se chamava Stanley. Sendo agora uma mulher ela deve reconstruir o

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papel de pai/mãe, pois ela, Bree, desequilibra esses papéis inculcados no imaginário

social, onde o homem é o pai e a mulher é a mãe.

Em sua análise do filme Transamérica, Gonçalves e Luken pontuam que “há

uma constante tentativa de estabilização dos papéis sociais por parte de instituições

como família, escola, igreja, além do Estado. E é justamente essa resistência que

Bree produz (...) no contexto do filme”. Questões como esta são colocadas para o

espectador: qual o papel que Bree deveria assumir? Como ela deveria afirmar esse

papel? Enfim, existiria um papel certo a ser assumido? A própria personagem tem

dificuldade em aceitar que tem um filho, e se debate, neste contexto, entre qual papel

ela deve se enquadrar, como pai ou como mãe.

Em Transamérica, na primeira cena, acompanhamos Bree, se arrumando e

saindo de casa. Sobreposto a essas imagens, ouvimos um diálogo dela com um

psiquiatra, que deve assinar sua autorização para a cirurgia de mudança de sexo.

Enquanto o diálogo se desenvolve, Bree enumera as diversas cirurgias que já fez

para transformar seu corpo e percebemos que sua vontade de transformá-lo é

colocada sob o discurso de uma patologia, o transtorno de identidade de gênero, que,

segundo o psiquiatra que conversa com Bree, é tido como um transtorno muito grave

pela “Associação Americana de Psiquiatria”. Cabe aqui salientar a importância do

discurso e da intervenção médica, pois somente com a aprovação de dois psiquiatras

é que Bree pode fazer a operação. Observamos, nesse momento do filme, de que

forma a medicina funciona como uma legisladora social, onde os médicos estão

“preparados pelo conhecimento científico” para prescrever “as normas mais

adequadas no que se refere ao comportamento sexual e reprodutivo dos indivíduos”

(RODHEN, 2003, p.19).

Segundo Foucault (1988, pp.145-146), “é pelo sexo efetivamente, ponto

imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade, que todos devem passar para ter

acesso à sua própria inteligibilidade (...), à totalidade de seu corpo (...), à sua

identidade (...)”. A personagem principal, que ainda não se considera totalmente uma

mulher, afirma ser virgem – já que desconsidera a relação que teve com a mãe de

Toby na faculdade, por esta ser lésbica –, e sua preocupação durante o filme todo é

chegar a tempo para sua cirurgia, que lhe transformará definitivamente em mulher e

lhe dará, enfim, a identidade de gênero e a sexualidade que ela tanto busca. Quando

o psiquiatra lhe pergunta diretamente sobre seu pênis, ela sente-se mal,

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desconfortável, atingida pela brutalidade da pergunta, pois, como percebemos em

sua resposta, sente nojo de seu falo, e procura, em seus gestos e voz contidos, em

suas roupas sempre rosas, se definir mulher, pois se sente uma mulher.

A família detém o monopólio da sexualidade “normal” (isto é, heterossexual),

do prazer e da reprodução, monopólio este legitimado pela igreja, escola e Estado. O

filme Transamérica busca, sobretudo, desnaturalizar e interrogar esta idéia corrente

de família, desestabilizando esses papéis familiares instituídos historicamente e

questionando esse processo de legitimação de uma família, em que cada sexo deve

desempenhar uma função devida. Como asseverou Claudia Fonseca (2008), as

novas formas de parentesco nos fazem repensar “as categorias básicas de nosso

parentesco. Ao afastar a discussão da ‘tradicional família nuclear’, isto é, da

procriação sexuada e da filiação biogenética, essas 'novas' formas familiares

sacodem as bases de nossas crenças no que é 'natural'”. Apesar de não tratar

especificamente da homoparentalidade, tendo em vista que Toby foi gerado numa

relação heterossexual, a personagem Bree sintetiza um debate sobre a relação de

parentesco estabelecida entre pais e filhos; ou seja, a ambigüidade de sua situação a

coloca no centro de um debate sobre a construção dos papéis de pai e de mãe,

questionando a divisão das funções parentais por gênero, que ao contrário de serem

naturais, são revelados neste filme como construções sociais que podem ser

questionadas e mudadas.

Em sua conversa com a terapeuta, ao revelar que recebeu a ligação de um

filho de Stanley, a terapeuta lembra Bree que um dia ela foi Stanley; Bree, por sua

vez, comenta que não quer “ser arrastada para a antiga vida de Stan”, não

considerando, deste modo, seu passado como Stanley parte de sua própria vida. E,

ainda, como é mostrado depois no filme, Bree nega até mesmo sua família, que é tida

como morta - quando eles ainda estão vivos -, uma vez que eles não aceitam a

transformação de Stanley em Bree. Ao ser coagida pela terapeuta de ir em busca do

filho, pois sem isso ela não autorizaria a cirurgia, Bree, que é em parte conservadora,

vai para Nova York para resgatar o filho com a intenção de entregá-lo ao padrasto.

Ao afirmarmos que Bree é conservadora, temos em mente que ela representa

uma moral tipicamente médio-americana, pois se horroriza com o filho que se

prostitui, que usa drogas e que, como um adolescente, é mal educado com ela.

Porém, esse discurso conservador é utilizado e rejeitado por ambos. Bree mobiliza

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esse discurso para falar o quanto é errado um menino como Toby, “bonito e

inteligente”, se prostituir e consumir drogas; porém, quando Toby descobre que Bree

“tem um pênis”, lhe chama de aberração e lhe pergunta como ela participa de uma

igreja, revelando também uma posição muito conservadora. A esse repúdio, Bree

responde com outra questão: por que ela não poderia participar de uma igreja, afinal

seu corpo pode estar em transformação, mas não há nada de errado com sua alma.

É neste sentido que percebemos neste filme uma busca em mostrar e

problematizar o discurso dominante e conservador sobre família, gênero e

sexualidade. Os marcadores sociais de diferença são relativizados, por exemplo,

quando Bree chega ao centro de detenção juvenil para resgatar Toby e fica confusa

com o que responder para o policial quanto ao grau de relacionamento que tem com

o adolescente: afinal, ela é o pai ou a mãe do menino? Biologicamente a resposta

seria simples: Bree é Stanley, então é o pai. Mas como readequar esse papel agora

que Stanley é Bree, que é mulher, se identifica como mulher, se sente mulher, tem

traços, corpo, gestos e roupas femininos?

Ao compreendermos que a família atual é uma construção histórica, e que em

seu processo de desenvolvimento, iniciado nos séculos XV e XVI, ela “deixou de ser

apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome, e

assumiu uma função moral e espiritual, passando a formar os corpos e as almas”

(ARIÈS, 1978, p.194), percebemos, também, que essa noção de família conjugal,

heterossexual, cristã é uma invenção humana e que, portanto, pode ser relativizada e

transformada. A família como valor é definidora de comportamentos, relações,

afetividades, ordena a sexualidade e institui o modelo a ser seguido; todavia, esse

modelo não esgota todas as possibilidades empíricas, apesar de ser ele que regula e

normatiza a vida social (FOUCAULT, 1988).

No desdobramento do filme percebemos que o conflituoso papel que Bree tem

que construir para si, como pai/mãe, vai se delineando num outro papel que

desconstrói e, ao mesmo tempo, sintetiza essas duas funções. No desenrolar da

história, os dois constroem uma ligação de amizade em que Bree, mediante sua

relação com Toby, mistura as “coisas de homens”, bebendo cerveja com o filho e

falando sobre filmes pornôs, sexualidade e drogas, conversas que pais têm com seus

filhos, e as “coisas de mulher”, se preocupando com a saúde, a alimentação e a

aparência de Toby, funções desempenhadas pela mãe.

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Embora o filme questione esse ideal de família, temos, dentro dele, duas

colocações de família perfeita, nos moldes ditados pelas regras estabelecidas

socialmente. No percurso para Los Angeles, Toby conta como se vê no futuro para

Bree: casado, com dois filhos e trabalhando num pet shop, ou seja, a família modelo

do american way of life. A família de Bree, que não está morta, mas viva em Phoenix,

também revela esse ideal de família: a mãe, um tanto caricata no filme, representa

uma mãe protetora e dominadora, que controlava – e ainda controla a vida da filha

mais nova – a vida dos filhos, não conseguindo aceitar a transformação de seu filho

Stanley em Bree. Ela rejeita Bree, já que sua principal preocupação é ver se o filho já

fez a cirurgia e tentar convencê-lo a voltar a ser “normal”.

Quando estão na casa dos pais de Bree, a mãe dela aceita dar o dinheiro para

que ela vá de avião até Los Angeles para chegar a tempo na cirurgia, contanto que

Toby fique morando com ela em Phoenix. Nesse momento, Bree propõe a Toby que

eles voltem para Los Angeles e morem juntos. Dessa forma, notamos que Bree, ao

problematizar essa questão dos papéis legitimados e construídos, que são colocados

como naturais, tenta construir um papel seu a partir da relação que desenvolveu e

estabeleceu com Toby ao longo da viagem, papel este que não se enquadra nas

construções sociais legitimadas do que é pai nem do que é mãe.

Assim, observamos que Bree não assume nenhum dos papéis determinados e

naturalizados pela sociedade, mas sintetiza os dois em sua construção de ter um filho

quando era Stanley e assumi-lo agora que é Bree. Ainda que o filme Transamérica

seja bastante previsível – como um roadmovie, a dupla passa por problemas de

relacionamento e por problemas financeiros – ele traz questões relevantes acerca da

construção do sujeito e da naturalização das relações sociais, problematizando esses

pontos. É preciso pensar, como Foucault (1988), que o modelo de família instituído

regula, mas não esgota todas as possibilidades práticas, e que os dispositivos de

controle da sexualidade podem definir as normalidades e normatizá-las, não obstante,

existem outras formas de sexualidade e outros modelos de família, que questionam

esses paradigmas dominantes e procuram transformá-lo. Como afirmou Claudia

Fonseca (2008), para os casos de homoparentalidade, no que estendemos para o

filme, exemplos como este “servem para mostrar como pessoas, em situações

precisas, vão reconfigurando noções sobre o laço biogenético, criando novos

significados” para essas construções sociais.

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BIBLIOGRAFIA

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FOUCAULT, Michel. “Direito de morte e poder sobre a vida”. In: História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

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