resenha - psicogeografia

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    RESENHAS

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    poltica e a multiplicao das formas de vida aceitas evalorizadas, alm da superao de barreiras envol-vendo concepes do direito e do urbanismo athoje preservadas entre economia e sociedade. Esta su-perao, exigida pelo contedo da coletnea, repre-senta enorme desafio para as disciplinas inscritas no

    campo do planejamento territorial.

    APOLOGIA DA DERIVA:

    ESCRITOS SITUACIONISTAS

    SOBRE A CIDADE

    Paola Berenstein Jacques (Org.)Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

    Thais de Bhanthumchinda Portela (UFRJ)

    O supra-sumo do espetculo o planejamento da felicidade.

    Raoul Vaneigem, 1961

    No perodo entre guerras, o campo da arquitetu-ra e do urbanismo presenciou o fortalecimento do dis-curso potico na busca de solues dos problemas so-ciais e pragmtico no uso da racionalidade tcnicapara a reconstruo das cidades arrasadas pela guerra propostos nos primeiros CIAMs (Congressos Interna-cionais de Arquitetura Moderna). J no ps-guerra, em1947, no retorno dos Congressos, a cada encontro pas-sou a dominar a figura de Le Corbusier, com o discur-so do funcionalismo separatista apresentado naCartade Atenas(1933) e encaminhado por princpios racio-nais cartesianos.

    Em um contexto de grande destruio que gera-va a necessidade de rpida reconstruo dos espaos ur-banos e de grandes investimentos na habitao, aliadoao fortalecimento de uma produo industrial de mo-delo fordista produo estandardizada, uso de carros,trabalho na fbrica com horrios para a produo e pa-ra o descanso bem determinados etc. fizeram que osprincpios daCarta de Atenaspara o funcionamento dacidade trabalhar, circular, habitar e recrear fossemutilizados em larga escala por todo continente euro-peu, sendo depois transformado em um grande mode-lo de construo de cidades em diversos pases compretenso a se modernizar/desenvolver.

    Este modernizar as cidades mundo afora seguin-do a cartilha do funcionalismo racionalista cartesianovirou cnone, tanto na Academia quanto nos escrit-rios de projetos, marca do que viria a ser considerado aboa arquitetura e o urbanismo de qualidade. Alm dis-so, na medida em que acontecia a modernizao das ci-dades o Urbanismo fortalecia-se como disciplina, ga-nhando espaos nos poderes pblicos e privados paraprojetar e planejar as cidades. Alis, cidade que se pres-tasse, que fosse desenvolvida, era sinnimo de cidadebem planejada.

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    Assim caminhava a histria e, quando o mundodeu por si, descobriu que o movimento moderno ha-via se transmutado em modernismos (ismos, exacerba-o de um movimento), havia matado as esquinas, oencontro, a histria, a poesia... De a grande soluodos problemas urbanos, o movimento moderno passou

    para a categoria de vilo. Decretada sua morte, omundo viu surgir uma nova safra de intelectuais, crti-cos ao movimento, entrando ento em um mundops-moderno, contemporneo, marcado pela preocu-pao com a histria, com a poltica, o social e a eco-nomia local etc.

    Certo? No. Isso no passa de um senso comum,ditado por uma leitura que privilegia um determina-do pensamento que, com o passar do tempo, tornou-se hegemnico no campo da histria do urbanismo.Talvez pelo fato de que os cnones da arquitetura e dourbanismo modernos ajudaram, e muito, o fortaleci-mento do campo disciplinar do urbanismo e do pla-nejamento urbano.

    Mas, o fato que a crtica ao movimento moder-no surgiu no mesmo momento histrico que o pensa-mento modernista. Isto mostrado atravs da histriae da vida de um grupo de intelectuais franceses que sedenominavam Situacionistas. Gravssimo sinal de de-composio ideolgica atual ver a teoria funcionalis-ta da arquitetura fundamentar-se nos conceitos maisreacionrios da sociedade e da moral. Significa que, ascontribuies parciais passageiramente vlidas da pri-meira Bauhaus ou da escola de Le Corbusier, acrescen-ta-se em surdina uma noo atrasadssima da vida e deseu enquadramento (Guy Debord, 1957, p.50); etambm por um outro grupo inserido no prprio mo-vimento moderno e participante ativo dos CIAMs, oTeam X. E isso que o livro organizado por Berensteinvem apresentar.

    Nele, encontram-se coletados e organizados diver-sos textos produzidos pelo grupo dos Situacionistas.Mas afinal, quem so eles? Inspirao para grupos domovimento antiglobalizao contemporneo, como osgrupo Black Blocks (aqueles tocadores de tambor que sevestem de preto e animam todos os encontros de protes-to antiglobalizao), do Reclaim the Streets (invasoresde espaos pblicos como ruas, praas etc. que, atravsde festas e manifestaes perfomticas, reclamam o espa-o pblico como direito dos pedestres e cidados), entreoutros. A Internacional Situacionista foi fundada a par-

    tir da fuso dos grupos do Mibi (Movimento Interna-cional por uma Bauhaus Imaginista), do IL (Internacio-nal Letrista) e da Associao Psicogeogrfica de Londres(nome e associao inventados, durante este encontro defundao, por Ralph Rumney),1 em 28 de julho de1957, em um bar nos arredores de Cosio dArroscia.

    Pelo lugar de fundao do movimento pode-setomar por entendido a informalidade e, por conse-guinte, a vontade da no-institucionalizao do grupo,o que no significava falta de rgidos princpios e con-ceitos. Por sinal, estes vo ser um dos principais moti-vos dos rachas constantes entre os Situacionistas, capi-taneado principalmente por um de seus fundadores eprincipal intelectual, Guy Debord.

    Jovens agitadores, decididos a mudar o sistemaatravs de uma revoluo cultural, a International Si-tuacionista produziu uma crtica ao urbanismo funcio-nalista racional, bebendo de diferentes fontes: da pro-duo sobre a vida cotidiana de Henri Lefevbre,passando pelo grupo Cobra (constitudo em 1948, emum caf no Quai St. Michel, por um grupo que recla-mava da superficialidade do debate do Centro Interna-cional para a Documentao da Arte de Vanguarda emParis)2 ao S e B (Socialisme ou barbarie, publicao demilitantes rompidos com o trotskismo que conduziu aum questionamento do marxismo, cujo principal te-rico era Cornelius Castoriadis)3.

    Deste caldo surgiu a revoluo proposta pelos Si-tuacionistas: arte, poltica e filosofia voltadas para adescoberta de possibilidades de uso do ambiente urba-no, induzindo a participao transformadora do coti-diano alienado e passivo da Sociedade do Espetculo principal teoria de Debord , e prope, ento, o uso dourbanismo unitrio: emprego do conjunto das artes etcnicas, como meios de ao que convergem para umacomposio integral do ambiente (p.54).

    O urbanismo unitrio dinmico, isto , tem es-treita ligao com estilos de comportamento. O ele-mento mais reduzido do urbanismo unitrio no acasa, mas o complexo arquitetnico reunio de todosos fatores que condicionam uma ambincia, ou umasrie de ambincias contrastantes, na escala da situaoconstruda. O desenvolvimento espacial deve levar em

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    1 HOME, Stuart, Assalto cultura: utopia subverso guerrilha na (anti)arte

    do sculo XX. So Paulo: Conrad Editora do Brasil, 1999, p.52.

    2 Idem, ibidem, p.23.

    3 Idem, ibidem, p.68.

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    conta as realidades afetivas que a cidade experimentalvai determinar.

    Nos textos coletados por Berenstein esto descri-tas as principais atividades propostas pelo grupo: psicogeografia: estudo das leis exatas e dos efeitos

    precisos do meio geogrfico, planejado consciente-

    mente ou no, que agem diretamente sobre o com-portamento afetivo dos indivduos (p.39);

    construo de situaes: construo de situaes, is-to , a construo concreta de ambincias moment-neas da vida, e sua transformao em uma qualidadepassional superior. Devemos elaborar uma interven-o ordenada sobre os fatores complexos dos doisgrandes componentes que interagem continuamen-te: o cenrio material da vida; e os comportamentosque ele provoca e que o alteram (p.54);

    deriva: um dos recursos mais slidos da psicogeogra-fia. A deriva um modo de comportamento expe-rimental numa sociedade urbana. Alm de modo deao um meio de conhecimento, especialmente noque se refere psicogeografia e teoria do urbanis-mo unitrio. Os outros meios, como a leitura de fo-tos areas e mapas, o estudo da estatstica, de grfi-cos ou de resultados de pesquisas sociolgicas, sotericos e no possuem este lado ativo e direto quepertence deriva experimental (p.80).

    Com estas e outras propostas, os Situacionistascriaram atividades para combater o que, segundo eles,seria a pior caracterstica do mundo do espetculo: aalienao advinda de uma participao da sociedadecomo pblico espectador do mundo, sociedade comoplatia e no como palco.

    Este pensar com paixo, pode ser lido de diferen-tes maneiras neste livro. A primeira a linear. Comoos textos esto organizados por ordem cronolgica, ea Apresentao de Berenstein contextualiza a Interna-cional Situacionista no tempo e espao, obtm-se umpanorama de uma poca que no muito apresentadana histria da arquitetura e do urbanismo. atravsda apresentao que o leitor poder entender as rela-es entre os Situacionistas e o Team X, e tambm en-tre outros grupos e intelectuais da poca, como Hen-ri Lefvbre.

    Outra maneira. Esquea a Apresentao e con-centre-se nos textos situacionistas, absorvendo o mxi-mo dos conceitos apresentados pelos diferentes auto-res: o desvio, deriva, espetculo, psicogeografia etc.,

    voltando o pensamento para a produo da crtica fei-ta s cidades nas ltimas dcadas. Parece que grandeparte da crtica contempornea j estava pronta latrs, s que de maneira muito mais radical. Depoisdisso, volte a apresentao, sem esquecer de ler as no-tas e se ver que isso mesmo.

    A ltima possibilidade que apresento a de fazerdeste livro um jogo, e com ele produzir uma derivaprpria para cada leitor. Como cada frase contm emsi prpria uma fora propulsora reflexo e ao conhe-cimento, abra o livro aleatoriamente e deixe reverberarpelo corpo as palavras lidas. O leitor sentir que exis-tem vrios nveis a que estes textos remetem e que,com eles, poder criar uma situao que lhe permitirvislumbrar uma crtica sociedade de consumo, umdiscurso manifesto apaixonado da vida urbana e, tam-bm um espao de fruio que mesmo da ordem doartstico, como se cada conceito fosse uma obra de ar-te mexendo com delicados tecidos sensoriais. a par-ticipao em um encontro entre uma leitura do mar-xismo e da psicanlise. Depois aconselho a voltar paraa apresentao e para uma leitura linear, para melhorcompreenso do contexto apresentado.

    Enfim, pode-se supor que este tema no tenhanada de acadmico no que diz respeito aos estudos ur-banos e regionais. Entretanto, a reviso da histria dourbanismo do ponto de vista de quem o critica em fa-vor de uma vida urbana participante s pode enrique-cer a prpria histria e saber do campo.

    R. B . ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS, V .5 , N.1 MAIO 200390

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