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RESENHA LINGUAGEM, PODER E DISCRIMINAÇÃO Filomena Maria Formaggio 1 GNERRE, Maurizio. Linguagem, Poder e Discriminação. In: Linguagem, Escrita e Poder. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. 115 p. P. 5-34. Gnerre no primeiro capítulo do livro, título da presente resenha, nos apresenta uma discussão sobre as relações entre a linguagem, o poder e a discriminação que se fundamenta em argumentos históricos, lingüísticos e gramaticais. Na primeira parte do capítulo, a introdução, o autor nos situa no tema a ser discutido informando-nos que a linguagem “ocupa uma posição central a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive” (grifo nosso). Alerta também o autor que o uso de uma variedade lingüística reflete o ‘poder e a autoridade’ que os usuários da língua possuem nas relações econômicas e sociais, ou seja, na sociedade. Ainda na introdução do capítulo o autor traz para reflexão a questão, o problema central do mesmo no qual a separação entre linguagem escrita e falada se apresenta fortemente marcada, em função, especialmente, por ser a modalidade escrita associada à variedade “culta” ou padrão. Por outro lado, a modalidade falada, associa-se à capacidade de produção lingüística do falante em seu meio social. Neste caso, a pronúncia representa uma “marca” da proveniência regional e, às vezes, social do falante, marca essa difícil de ser “apagada” pela instrução, segundo o autor. Na seqüência, o autor discute a relação entre uma variedade lingüística e o poder da escrita apresentando, para tanto, argumentos históricos. Tais argumentos dizem respeito 1 Professora de Língua e Literatura. Pedagoga. Mestre em Educação (Filosofia da Educação). Doutora em Educação pela UNIMEP.

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RESENHA

LINGUAGEM, PODER E DISCRIMINAÇÃO

Filomena Maria Formaggio1

GNERRE, Maurizio. Linguagem, Poder e Discriminação. In: Linguagem, Escrita e Poder. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. 115 p. P. 5-34.

Gnerre no primeiro capítulo do livro, título da presente resenha, nos apresenta uma discussão sobre as relações entre a linguagem, o poder e a discriminação que se fundamenta em argumentos históricos, lingüísticos e gramaticais.

Na primeira parte do capítulo, a introdução, o autor nos situa no tema a ser discutido informando-nos que a linguagem “ocupa uma posição central a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive” (grifo nosso). Alerta também o autor que o uso de uma variedade lingüística reflete o ‘poder e a autoridade’ que os usuários da língua possuem nas relações econômicas e sociais, ou seja, na sociedade.

Ainda na introdução do capítulo o autor traz para reflexão a questão, o problema central do mesmo no qual a separação entre linguagem escrita e falada se apresenta fortemente marcada, em função, especialmente, por ser a modalidade escrita associada à variedade “culta” ou padrão. Por outro lado, a modalidade falada, associa-se à capacidade de produção lingüística do falante em seu meio social. Neste caso, a pronúncia representa uma “marca” da proveniência regional e, às vezes, social do falante, marca essa difícil de ser “apagada” pela instrução, segundo o autor.

Na seqüência, o autor discute a relação entre uma variedade lingüística e o poder da escrita apresentando, para tanto, argumentos históricos. Tais argumentos dizem respeito aos modelos clássicos de língua – ligados diretamente ao poder dominante – como o latim. O latim não representava apenas a língua “culta”, mas estava associada diretamente ao poder, uma vez que o Império Romano dominou pela força por muitos séculos. Nesse processo de dominação, a língua latina era imposta aos dominados, como o ‘modelo’ a ser “obrigatoriamente” seguido.

Nessa mesma perspectiva, quando da expansão dos ibéricos, os modelos da gramática greco-latina foram utilizados pelos espanhóis e portugueses para valorizar as variedades lingüísticas escritas, “já associadas com os poderes centrais e/ou com as regiões economicamente mais fortes”. Afirma o autor que a “língua era um instrumento cujo poder nas relações externas era reconhecido”, o que nos autoriza dizer que a dominação era concretizada também pela imposição da língua, no nosso caso, a portuguesa.

Afirma ainda o autor que no Brasil houve uma tentativa de defesa da língua brasileira, feita especialmente por José de Alencar, quando buscou destacar a importância de se considerar a língua ‘natural’ dos falantes nacionais. Aponta também o autor que, posteriormente, no final do séc. XIX e nas primeiras décadas do séc. XX houve certo

1 Professora de Língua e Literatura. Pedagoga. Mestre em Educação (Filosofia da Educação). Doutora em Educação pela UNIMEP.

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interesse de alguns intelectuais brasileiros em resgatar a língua tupi, ignorando, entretanto, as contribuições e presença das línguas africanas, provavelmente por ‘recear’ a realidade ou por esta não corresponder ao modelo ‘idealizado’ que o índio representava.

Prossegue o autor em sua argumentação com os aspectos lingüísticos. Numa perspectiva lingüística afirma o autor que as “palavras existem nas situações nas quais estão sendo usadas” – em outros termos – “os signos não têm realidade fora da produção lingüística”. Na verdade as palavras encerram nas culturas o “conjunto de crenças e valores aceito e codificados pelas classes dominantes”.

Nesse sentido, a tese defendida pelo autor está em destacar que o problema encontra-se, por um lado, na compreensão de mensagens e conteúdo e, por outro lado, de produção de mensagens. E, que principalmente “a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”.

Discorre ainda o autor sobre as ‘linguagens especiais’ como gírias, jargões profissionais, cujo sentido só é possível apreender se formos ‘iniciados’ e que, em tais casos, constituem certo impedimento – ou filtro – para a compreensão da realidade.

Prossegue o autor destacando a gramática normativa e a discriminação. Defende Gnerre que a gramática normativa é uma das formas pelas quais a discriminação pela linguagem ocorre e baseia-se em Bourdieu e Boltanski (1975: 6) para dizer que a gramática normativa apresenta aquilo que ele chama de ‘amnésia da gênesis’ uma vez que permite que se aprenda a gramática normativa fora das condições políticas de sua instituição. Considera também que o processo de padronização da língua não é democrático nem libertador.

Outra questão relevante do ponto de vista da gramática é que esta tende a ignorar ‘fatos como sotaque, prosódia, entonação’. E, ao desconsiderar tais fatos caminha para a discriminação, uma vez que a existência desses elementos fonéticos extrapola a gramática normativa, mas estão presentes na comunicação. Porém, esses elementos fonéticos estão constantemente sendo avaliados, julgados e constituem brechas para a discriminação. Há, assim, dois tipos de discriminação lingüística: o dito ou explícito e o não dito ou implícito.

O autor baseia-se em Gramsci para explicar a existência de uma gramática normativa não escrita e uma gramática normativa escrita. Para este autor “a realidade lingüística nacional é constituída desses dois tipos de gramáticas normativas. A primeira é a expressão da sociedade civil, representa um momento de consenso espontâneo à norma lingüística dos grupos sociais hegemônicos”. Já a escrita é “sempre uma escolha, um endereço cultural, isto é, é sempre um ato de política cultural-nacional”.

Finaliza Gnerre dizendo que numa sociedade grafocêntrica como a nossa, o estudo e a importância de uma gramática normativa não escrita assume relevância no sentido de elemento equilibrador que “desempenha um papel de apoio e polarizador de consenso para o núcleo central do poder lingüístico” funcionando, assim, como contraponto à língua hegemônica defendida pelo Estado a partir de uma gramática normativa.

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