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Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas
Representatividade importa sim: moda como ferramenta de
autoafirmação
OLIVEIRA, Geise1
Pós Cultura/UFBA, Brasil
RESUMO: Com atenção para os jovens negros com idade entre 15 e 29 anos e residentes
nas periferias de Salvador, é que este artigo pretende desenvolver uma discussão sobre a
representatividade a partir da ressignificação de corpos negros na arte contemporânea.
Nesse sentido, traçaremos aqui a trajetória do grupo JP Model, formado por jovens do
bairro de Fazenda Coutos, localizado no subúrbio ferroviário de Salvador e a potência
que o criador do grupo tem para atrair jovens que se utilizam da moda para ocupar
passarelas e o cotidiano dos seus lugares de vivência e opressão. Palavras-chave:
representatividade, moda, juventudes, genocídio
INTRODUÇÃO
Com vistas para a resignificação da moda e empoderamento étnico racial, é que
este artigo pretende lançar um olhar para o surgimento de grupos juvenis que, oriundos
da periferia de Salvador, conseguem reproduzir vestuários que dialogam com o
movimento negro das décadas de 60 e 70. Aqui não se pretende fazer uma análise sobre
a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada
sobre os corpos negros da periferia criam-se novos símbolos e tendências que, com o
passar do tempo, vem ganhando uma capilaridade ainda maior. Aqui nos interessa trazer
reflexões da autora Nilma Lino Gomes (2017) que no livro “O Movimento Negro
Educador” revela um tipo de educação proporcionada apenas e através do movimento
negro. Nesse sentido, este trabalho pretende expor as diversas formas de empoderamento
1 Geise Oliveira é mestra e doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Poscult/UFBA). É bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].
étnico racial que estão além dos muros da escola, da imprensa ou das famílias brasileiras,
mas da labuta cotidiana e perversa que indicam caminhos de resistência para uma
juventude que precisa de outros trajetos para burlar o seu genocídio. Pretende-se,
sobretudo, identificar pontos e elementos que conectados com aquilo que foi fundante
para a criação do Movimento Negro Unificado. Compreendendo também que o boom do
atual movimento da “Geração
Tombamento” nada mais é que, como diz Nestor Garcia Canclini (2015), uma
dramatização culturalmente eufemizada de ações outrora realizadas por negros
escravizados e seus descendentes. Nesse sentido, serão avaliados os modos de
reprodução da moda em consonância com referências do hip hop, cultura africana, afro
americana e latina, bem como expressões midiáticas que influenciam os processos
criativos das juventudes periféricas. Contudo, em referência ao que Muniz Sodré (2017)
discute no livro “Pensar Nagô”, aqui pretende-se fazer uma análise das ferramentas
utilizadas pela juventude periférica no combate ao racismo, compreendendo a
importância da apropriação de identidade para a criação e fomento da autoestima, bem
como da consolidação de novas formas de pensar a moda e os estilos de se vestir, tendo
referências dentro da própria comunidade.
Por entender a importância de desenvolver um pensamento da arte contemporânea
como aspecto fundante para o surgimento de potências criativas juvenis, compreendendo
também que grupos culturais como o JP Model (coletivo juvenil de moda e arte residente
no bairro de Fazenda Coutos, subúrbio ferroviário de Salvador) emergem da ânsia por
militância e acesso de meninas e meninos aos espaços de poder, é que encerramos este
artigo com algumas reflexões sobre a participação política das juventudes através das
artes.
REPRESENTATIVIDADE: CAMINHOS E RETROCESSOS
Após alguns anos de atuação em atividades nas comunidades periféricas de
Salvador, atuando, sobretudo, com a formação nos campos da arte e cultura, observei que
a inserção da juventude negra no hall do empoderamento étnico racial tornou-se um
grande desafio, já que a receptividade para discutir sobre políticas públicas é muito
pequena comparada à demanda desse grupo social. Muitas ações desenvolvidas nos
grupos e nos movimentos rompem com determinações fixadas e práticas de poder
constituídas na sociedade. E a forma de agir na militância política, nas expressões
artísticas e culturais cria possibilidades de ultrapassar o que está preestabelecido,
moldado, para investir no domínio de si, na sua autonomia para poder explorar todo o
seu potencial.
Ainda que as demandas da juventude negra sejam emergenciais em todas as searas
(saúde, educação, segurança, lazer, família, etc.) a experiência na atuação com o
movimento social traz uma luz no fim do túnel para esse composto de problemas sociais
que resistem na vida da população negra a milhares de anos. Nesse sentido propõe-se
refletir a lógica da (des) construção, quando ao mesmo tempo em que se desconstrói
paradigmas e estigmas sociais nas vidas de jovens, constroem-se pontes para outros
caminhos, ou em palavras mais modernas, constrói-se o ideal de empoderamento da
juventude negra. Trata-se então do empoderar-se a partir daquilo que se tem em mãos,
que é acessível para uma parcela significativa de jovens que não possuem planos de vida,
que são reféns de facções e do olho dos policiais que fazem as rondas nos bairros em
busca de “criminosos”.
Neste quesito, SANTOS (2011) infere que saberes e fazeres antes ignorados,
trazem à luz um modo de reconhecimento que é uma forma parcial de identificação. É
preciso, contudo, fazer com que a produção cultural periférica reconheça a politização
dos seus produtos, que não são oriundos apenas do desejo de entreter-se, mas são frutos
de formas ancestrais de luta e resistência. É por isso que GOMES (2017) sugere o
reconhecimento do Movimento Negro2 enquanto educador mas, em tempo,
complementamos com indagações postuladas por SODRÉ (2017) no que tange a filosofia
ocidental enquanto história única e o silenciamento dos saberes africanos no processo de
descoberta teórico filosófica das sociedades:
Trata-se de uma forma de conhecer o mundo, da produção de
uma racionalidade marcada pela vivência da raça numa
sociedade racializada desde o início da sua conformação social.
Significa a intervenção social, cultural e política de forma
intencional e direcionada dos negros e negras ao longo da
história, na vida em sociedade, nos processos de produção e
reprodução da existência (...) para tal, faz-se necessário indagar:
Afinal, que saberes emergem da experiência e da ação da
comunidade negra e são sistematizados pelo Movimento Negro
Brasileiro? Esses saberes são emancipatórios? Como a escola e
a universidade poderão conhecer esses saberes e introduzi-los,
na perspectiva da ecologia dos saberes, como um importante
componente dos currículos? Como o pensamento crítico
educacional poderá dialogar e incorporar esses saberes? (GOMES, 2017, p.69)
2 Entende-se como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e articulação das negras e
dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso
fenômeno na sociedade (GOMES, 2017, p.23)
As respostas para as indagações de GOMES (2017) poderiam ser dirimidas com a
execução eficaz da Lei 10.6393, importante iniciativa requerida também pelo Movimento
Negro. Ou, como sugere SANTOS (2011) no conceito de política cultural enquanto um
“programa de intervenções pensado e realizado pelo Estado, por entidades privadas ou
grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população
e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas” (SANTOS, 2011,
p.65). Enquanto o elo Estado, Academia e Sociedade não reconhecer as práticas
comunitárias enquanto legitimadoras de processos de desenvolvimento humano a
ideologia da supremacia genocida, que vitima milhares de jovens negros anualmente
neste país, continuará vigorando no sistema nacional de segurança pública.
Nesse sentido, destaca-se a atuação de grupos de cultura formados por jovens na
faixa etária mais atingida pela violência urbana. Jovens que sem, condições estruturais,
se utilizam da cultura para ora, de forma inconsciente, ocupar o tempo – pela participação
em projetos sociais comunitários, por exemplo – ora encontram na arte um caminho de
(re) existência, à medida que por meio dela podem expressar seus anseios de mudança e,
também, fugir dos sofrimentos diversos causados pela exclusão social.
A MODA: UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL
Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura. O antilhano
que quer ser branco o será tanto mais na medida em que tiver
assumido o instrumento cultural que é a linguagem. (Fanon,
p.50)
A moda enquanto instrumento cultural é tradicionalmente confundida com o
padrão estético europeu: branco, magro, de cabelos lisos. Essa moda, que historicamente
não atende aos corpos negros que por muitos anos precisou se adequar às vestimentas e
às formas europeias de produção para assim poder se enquadrar em um padrão aceitável
na sociedade, hoje é plural e descentralizada. Falamos de uma moda produzida no seio
da cultura popular, dos movimentos sociais e que passou a ganhar uma conotação de
enfrentamento.
3 Lei criada em 2003 que regulamente o ensino da História Afro brasileira nas instituições de educação
formal.
Quando as juventudes percebem que assumir uma língua é assumir um poder, o
caminho da violência e exclusão dá espaço para a criatividade e autoafirmação. Faz-se
necessário, no entanto, alertar para a ausência do Estado no que tange a legitimidade
desse fazer político e artístico, bem como na garantia de espaços criativos como escolas
e espaços culturais para o acesso básico às artes e a cultura.
A morte em massa de jovens negros e negras nas periferias brasileiras, que aqui
vamos chamar de genocídio, desperta a atenção de órgãos internacionais e dos mais
diversos grupos de luta por direitos. No entanto, ainda com as mazelas sofridas por esse
grupo social historicamente no que tange o estado brasileiro, as juventudes se organizam
da sua forma para encontrar caminhos de sobrevivência e resistência. O isolamento
desses jovens proporciona o desconhecimento de um mundo moderno, avançado e pode
tornalos inaptos para a convivência com a sociedade tecnológica, dos avanços. Porém, é
importante perceber as tecnologias criadas por esse grupo social afim de explorar o seu
potencial criativo ou mesmo trazer a referência desse mundo ‘exterior’ e resignificar a
partir do seu contexto. Como pontuou Denys Cuche (2002) o isolamento, mesmo quando
ele representa marginalização, pode ser fonte de autonomia (relativa) e de criatividade
cultural, e assim é que trazemos o caso do JP Model.
Fonte: JP Model (Instagram)
Organizado por um jovem morador do bairro de Fazenda Coutos, subúrbio
ferroviário de Salvador, o grupo que agrega moda e teatro em seu processo artístico, foi
criado em 2015, reunindo jovens negras e negros da região. O período era latente para o
surgimento de grupos com a JP, já que emergia nas capitais brasileiras um movimento
denominado “geração tombamento”,
quando as juventudes promoveram um
catarse de autoestima assumindo os
cabelos e utilizando as formas de se vestir
a partir da desconstrução dos padrões
‘ideiais’. Dessa forma, o JP model surge
como um grupo periférico num contexto
de exclusão e marginalidade e se apropria
da linguagem artística para expor a beleza
negra latente nas juventudes do Brasil.
Para captá-la, é preciso captar a inteligência prática das pessoas comuns, principalmente no uso
que elas fazem da produção de massa. Para uma produção
racionalizada, padronizada, expansionista e ao mesmo tempo
centralizada, corresponde uma outra produção chamada por
Certau de “consumo”. Para ele, trata-se Fonte: Jornal Correio, 2018 realmente de uma “produção”, pois apesar de não se caracterizar por
produtos próprios, ela
se distingue pelas “maneiras de viver” com estes produtos, isto é
pelas maneiras de utilizar os produtos impostos pela ordem
econômica dominante. (CUCHE, p. 150, 2002)
No senso comum da incompreensão do processos histórico de colonização do
Brasil, a priori tem-se em vista que nas periferias existe apenas a recepção dos produtos
de massa, nesse caso, a compreensão de uma moda inacessível, impossível de ser
produzida em contextos vulneráveis. Porém o JP Model se apropriou da linguagem de
massa para criar a sua forma de conduzir a sua criação artística. Jadison Palma, jovem
idealizador do projeto, não tem formação acadêmica e experiência profissional, mas aqui
vamos chamar de curioso, haja vista a evolução do alcance do JP Model que em quatro
anos já realizou diversos desfiles de moda, criou a sua própria linha de vestuário e
expandiu o alcance da sua atuação
para outros territórios da cidade.
Entende-se assim que o grupo
JP Model é o resultado de uma
bricolagem, se utilizando do
conceito trazido por Lévi Strauss,
que usa o conceito para definir os
arranjos feitos com materiais
diversos. Jadison não precisa ir à faculdade ou até mesmo desfilar a sua grife na São
Paulo Fashion Week para ter o prestígio da sua comunidade no que tange a desconstrução
do arquétipo do jovem negro periférico, tão condicionado à violência e a exclusão.
Interessa saber que o JP Model não está imersa nas antigas formas de fazer militância
negra, no entanto foi o Movimento Negro quem deu passagem para que hoje meninas e
meninos pudessem criar um grupo como este. Cabe também dizer que o grupo não possui
interesse em garantir acesso às políticas públicas, eles não estão (em discurso exposto)
interessados em desconstruir a dominação social e simbólica, apenas querem ser jovens,
de cabelos crespos, sem vergonha alguma de ser quem são. Mas é importante salientar
que o grupo existe em virtude de uma rede de fomento à políticas públicas de cultura e
juventudes.
A dominação cultural nunca é total e definitivamente
garantida e por esta razão, ela deve sempre ser acompanhada de
um trabalho para inculcar esta dominação cujos efeitos não são
jamais unívocos; eles são às vezes “efeitos perversos” contrários
às expectativas dos dominantes, pois sofrer a dominação não
significa necessariamente aceitá-la. (CUCHE, 146, 2002)
A expectativa de vida para esses jovens, que convivem com a facilidade de acesso
ao tráfico de drogas e outras alternativas ilegais para o estado, diminui na medida em que
ele deixa de acessar os direitos básicos (saúde e educação). Quando chega à fase da
adolescência, esse mesmo estado que é muito mais presente nas comunidades através da
Polícia, cobra participação social desse jovem que em seu curso de vida nunca foi
acolhido. No tempo em que o processo de educação ganha outros grupos sociais, até
operários através da racionalização da vida social e da vida econômica, submetidas a
uma organização cada vez mais metódica e até cientifica, que tenta ultrapassar a ordem
do afetivo e do emocional (CUCHE, 2002), vemos uma sociedade que desvalida o
potencial criativo do grupo JP Model seguindo duas reflexões: o jovem deve ter um
F onte: JP Model (Instagram)
emprego para honrar a sua família; o jovem, sobretudo negro e pobre, precisa ter um
emprego “digno” e não aventurar-se nas artes, área do conhecimento tão desvalorizada
no âmbito mercadológico.
Vive-se numa sociedade que não só não acolhe os jovens negros como
deslegitimam os seus sonhos e ideais de vida. Em meio a um universo de exclusão, ser
modelo e morador de periferia é uma afronta, já que este jovem deve investir em carreiras
promissoras, já que viveu por tanto tempo com todas as mazelas oriundas da colonização.
Como pontuado por Max Weber, o trabalho dá sentido a vida, conferindo status de
dedicação, valorização e responsabilidade ao homem, bem como é através do trabalho
que o homem contribui para manifestas a glória de Deus. Nos tempos modernos, esse
trabalho, no que tange as juventudes negras e periféricas, é também condição primordial
de existência. O jovem que não trabalha e não estuda desagrada a sociedade e a Deus,
segundo a lógica protestante.
Essa difusão dos valores ascéticos secularizados vem tomando as comunidades
brasileiras, contribuindo para a polarização de costumes ancestrais e desvirtuação das
crenças na cultura afro-brasileira. Sendo assim, a existência do grupo JP model que se
utiliza do artifício da moda ressaltar a beleza negra, destacar potências artísticas e
enfatizar que o jovem negro pode ser muito mais que uma vítima do genocídio brasileiro,
aparece como uma luz no fim do túnel, uma saída para jovens que ora seriam cooptados
pelo tráfico, pela igreja ou seria morto pela polícia.
Enquanto jovens criam e resignificam as suas formas de participação social através
das artes, entendendo participação social enquanto atuação em sociedade e imersão na
lógica política e profissional, outras formas de pensar a educação e cultura passam a ser
validadas como coerentes e contribuem para a criação e manutenção das mais diversas
políticas públicas.
JUVENTUDES E AUTOAFIRMAÇÃO
Com efeito, a juventude começa por ser uma categoria
socialmente manipulada e manipulável e, como refere Bourdieu,
o fato de se falar dos jovens como uma unidade social, um grupo
dotado de interesses comuns e de se referirem esses interesses a
uma faixa de idades constitui, já de si, uma evidente
manipulação. Na verdade, nas representações correntes da
juventude, os jovens são tomados como fazendo parte de uma
cultura juvenil unitária. No entanto, a questão central que se
coloca à sociologia da juventude é a de explorar não apenas as
possíveis ou relativas similaridades entre jovens ou grupos
sociais de jovens (em termos de situações, expectativas,
aspirações, consumos culturais, por exemplo), mas também —e
principalmente— as diferenças sociais que entre eles existem. (PAIS, 1990)
As singularidades do termo juventude exigem que se atribuam especificações e
recortes para ser possível compreender de qual questão específica pretende-se tratar.
Hoje em dia fala-se em juventudes, agregando todas as demandas trazidas por esse grupo
social, englobando questões de raça, gênero, classe, território e, sobretudo, acesso a
políticas públicas. Infelizmente a realidade apresenta grande conexão entre os termos
juventudes e genocídio, ficando cada vez mais difícil não falar sobre a violência que
atinge a camada juvenil da sociedade.
Com destaque para o discurso do Estado enquanto ‘regulamentador’ de identidade,
tenta-se entender quem é o Governo no encadeamento de ações que direcionam ao
pertencimento identitário. Além disso, o que estas instituições têm feito no sentido da
proteção da cultura afro. Com isso, baseia-se em Seyferth (2002), pensando que a
formulação das etnicidades obedece a códigos culturais privilegiados na determinação
de limites étnicos, embora a crença na afinidade de origem, de conotação racial seja
comum a todos.
A invisibilidade e o recalque dos valores históricos e culturais de
um povo, bem como a inferiorização dos seus atributos
adscritivos, através de estereótipos, conduz esse povo, na
maioria das vezes, a desenvolver comportamentos de
autorrejeição, resultando em rejeição e negação dos seus valores
culturais e preferências pela estética e valores culturais dos
grupos valorizados nas representações. (MATTOS, p. 35, 2008)
A negação histórica da contribuição cultural deixada pelos africanos que foram
trazidos na condição de escravos para o Brasil, condicionou um processo de exclusão e
autorejeição que assim como os aspectos biológicos, também foi passado de pai para
filho. Trata-se de uma rejeição difícil de ser dirimida e apenas passível de correção
através das políticas afirmativas, desenvolvidas sobretudo a partir dos anos 2000,
contribuindo para uma ampliação da participação de negros e negras nos espaços de
poder e subsequentemente para uma aceitação e autoafirmação da comunidade frente a
questão. O surgimento do grupo JP Model aparece também como um reflexo do impacto
das políticas afirmativas na sociedade brasileira. Quando jovens negros da periferia de
Salvador - do bairro que em 2015 foi identificado pelo IBGE como o mais negro da
cidade, mas também é reconhecido pela Secretaria de Segurança Pública do Estado como
um dos mais perigosos da região – reúnem-se para pensar alternativas de resistência
cultural utilizando símbolos da cultura afro-brasileira nota-se que ainda existem
possibilidades de mudanças e que as políticas afirmativas causam efeitos para a
autoafirmação de identidade.
Por mais que o Estado brasileiro não reconheça e assuma os dados alarmantes dos
assassinatos de jovens negros provocados pela Polícia, o entendimento de genocídio
enquanto projeto político que abarca a exclusão do indivíduo de todas as formas até a
negação da sua própria existência, é levantado pelos movimentos sociais.
O racismo, na condição de prática discursiva, é uma construção cultural. Nesse
sentido, pensar o combate do Genocídio da Juventude Negra a partir da formação cultural
engendra um novo conceito de (des) construção cultural e empoderamento étnico racial.
Sendo assim esta pesquisa se torna importante então para alimentar os estoques de usos
da cultura, enfatizando a sua importância para a transformação social. Com isso, o
levantamento dos aspectos identitários que conduzem para o racismo estrutural são
resignificados nas práticas formativas, realizadas por ações de arte e cultura nas
comunidades periféricas de Salvador. Neste sentido, este artigo também revela traços e
manejos utilizados no processo de valorização da identidade negra e ênfase à autoestima.
Cumpre, pois, tentar terminar, fechar um pouco o que eu
disse este ano. Eu havia tentado expor um pouquinho o problema
da guerra, encarada como gabarito de inteligibilidade dos
processos históricos. Parecera-me que essa guerra fora
concebida, inicial e praticamente durante todo o século XVIII
ainda, como guerra das raças. Era um pouco essa história da
guerra das raças que eu queria reconstituir. E tentei, da última
vez, mostrar-lhes como a própria noção de guerra fora
finalmente eliminada da análise histórica pelo princípio da
universalidade nacional*. Eu gostaria agora de lhes mostrar
como o tema da raça vai, não desaparecer, mas ser retomado em
algo muito diferente que que é o racismo de Estado
(FOUCAULT, p.285, 1976)
O racismo está presente no país da forma mais velada possível, no entanto hoje o
maior impacto do dele não está no trato cotidiano entre pessoas brancas e negras, mas
nas formas de condução do Estado no que tange a sociedade brasileira. Hoje falamos do
racismo estrutural e do genocídio de forma plena: a falta de direitos básicos para a
comunidade negra e o extermínio em massa dessa população. Diariamente mães do Brasil
inteiro enterram os seus filhos vitimados por arma de fogo, em muitos dos casos as
vítimas tinham envolvimento com o tráfico de drogas ou foram vítimas de bala perdida
ou simplesmente teve uma atitude duvidosa no momento da abordagem policial.
Infelizmente sabe-se que todas essas justificativas são mais utilizadas para o assassinato
de jovens negros em condição de pobreza e esse é o efeito de um Estado que não
reconhece que vivemos em um país racista e excludente, que não considera como o
racismo como peça fundamental do alto índice de pobreza e violência.
CONCLUSÃO
O surgimento de grupos culturais em contextos de violência revela os efeitos de
um tempo contemporâneo, influenciado pelo momento político e pelo desejo de ruptura
com os padrões pré-estabelecidos ao longo do tempo. Porém, a existência de grupos que
se utilizam da técnica da bricolagem, como o JP Model, também e símbolo de resistência
frente a opressão e violência. O fazer artístico é entendido neste artístico como a livre
forma de se expressar através da arte, ainda que inconscientemente e sem conhecimentos
técnicos. Aqui tratamos da importância da arte e cultura para a expressão política de
jovens que não tem acesso aos espaços de poder.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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