representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da...

12
Cachoeira Bahia Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas Representatividade importa sim: moda como ferramenta de autoafirmação OLIVEIRA, Geise1 Pós Cultura/UFBA, Brasil [email protected] RESUMO: Com atenção para os jovens negros com idade entre 15 e 29 anos e residentes nas periferias de Salvador, é que este artigo pretende desenvolver uma discussão sobre a representatividade a partir da ressignificação de corpos negros na arte contemporânea. Nesse sentido, traçaremos aqui a trajetória do grupo JP Model, formado por jovens do bairro de Fazenda Coutos, localizado no subúrbio ferroviário de Salvador e a potência que o criador do grupo tem para atrair jovens que se utilizam da moda para ocupar passarelas e o cotidiano dos seus lugares de vivência e opressão. Palavras-chave: representatividade, moda, juventudes, genocídio INTRODUÇÃO Com vistas para a resignificação da moda e empoderamento étnico racial, é que este artigo pretende lançar um olhar para o surgimento de grupos juvenis que, oriundos da periferia de Salvador, conseguem reproduzir vestuários que dialogam com o movimento negro das décadas de 60 e 70. Aqui não se pretende fazer uma análise sobre a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros da periferia criam-se novos símbolos e tendências que, com o passar do tempo, vem ganhando uma capilaridade ainda maior. Aqui nos interessa trazer reflexões da autora Nilma Lino Gomes (2017) que no livro “O Movimento Negro Educador” revela um tipo de educação proporcionada apenas e através do movimento negro. Nesse sentido, este trabalho pretende expor as diversas formas de empoderamento 1 Geise Oliveira é mestra e doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Poscult/UFBA). É bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].

Upload: others

Post on 04-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas

Representatividade importa sim: moda como ferramenta de

autoafirmação

OLIVEIRA, Geise1

Pós Cultura/UFBA, Brasil

[email protected]

RESUMO: Com atenção para os jovens negros com idade entre 15 e 29 anos e residentes

nas periferias de Salvador, é que este artigo pretende desenvolver uma discussão sobre a

representatividade a partir da ressignificação de corpos negros na arte contemporânea.

Nesse sentido, traçaremos aqui a trajetória do grupo JP Model, formado por jovens do

bairro de Fazenda Coutos, localizado no subúrbio ferroviário de Salvador e a potência

que o criador do grupo tem para atrair jovens que se utilizam da moda para ocupar

passarelas e o cotidiano dos seus lugares de vivência e opressão. Palavras-chave:

representatividade, moda, juventudes, genocídio

INTRODUÇÃO

Com vistas para a resignificação da moda e empoderamento étnico racial, é que

este artigo pretende lançar um olhar para o surgimento de grupos juvenis que, oriundos

da periferia de Salvador, conseguem reproduzir vestuários que dialogam com o

movimento negro das décadas de 60 e 70. Aqui não se pretende fazer uma análise sobre

a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada

sobre os corpos negros da periferia criam-se novos símbolos e tendências que, com o

passar do tempo, vem ganhando uma capilaridade ainda maior. Aqui nos interessa trazer

reflexões da autora Nilma Lino Gomes (2017) que no livro “O Movimento Negro

Educador” revela um tipo de educação proporcionada apenas e através do movimento

negro. Nesse sentido, este trabalho pretende expor as diversas formas de empoderamento

1 Geise Oliveira é mestra e doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e

Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Poscult/UFBA). É bolsista da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].

Page 2: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

étnico racial que estão além dos muros da escola, da imprensa ou das famílias brasileiras,

mas da labuta cotidiana e perversa que indicam caminhos de resistência para uma

juventude que precisa de outros trajetos para burlar o seu genocídio. Pretende-se,

sobretudo, identificar pontos e elementos que conectados com aquilo que foi fundante

para a criação do Movimento Negro Unificado. Compreendendo também que o boom do

atual movimento da “Geração

Tombamento” nada mais é que, como diz Nestor Garcia Canclini (2015), uma

dramatização culturalmente eufemizada de ações outrora realizadas por negros

escravizados e seus descendentes. Nesse sentido, serão avaliados os modos de

reprodução da moda em consonância com referências do hip hop, cultura africana, afro

americana e latina, bem como expressões midiáticas que influenciam os processos

criativos das juventudes periféricas. Contudo, em referência ao que Muniz Sodré (2017)

discute no livro “Pensar Nagô”, aqui pretende-se fazer uma análise das ferramentas

utilizadas pela juventude periférica no combate ao racismo, compreendendo a

importância da apropriação de identidade para a criação e fomento da autoestima, bem

como da consolidação de novas formas de pensar a moda e os estilos de se vestir, tendo

referências dentro da própria comunidade.

Por entender a importância de desenvolver um pensamento da arte contemporânea

como aspecto fundante para o surgimento de potências criativas juvenis, compreendendo

também que grupos culturais como o JP Model (coletivo juvenil de moda e arte residente

no bairro de Fazenda Coutos, subúrbio ferroviário de Salvador) emergem da ânsia por

militância e acesso de meninas e meninos aos espaços de poder, é que encerramos este

artigo com algumas reflexões sobre a participação política das juventudes através das

artes.

REPRESENTATIVIDADE: CAMINHOS E RETROCESSOS

Após alguns anos de atuação em atividades nas comunidades periféricas de

Salvador, atuando, sobretudo, com a formação nos campos da arte e cultura, observei que

a inserção da juventude negra no hall do empoderamento étnico racial tornou-se um

grande desafio, já que a receptividade para discutir sobre políticas públicas é muito

pequena comparada à demanda desse grupo social. Muitas ações desenvolvidas nos

grupos e nos movimentos rompem com determinações fixadas e práticas de poder

constituídas na sociedade. E a forma de agir na militância política, nas expressões

artísticas e culturais cria possibilidades de ultrapassar o que está preestabelecido,

Page 3: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

moldado, para investir no domínio de si, na sua autonomia para poder explorar todo o

seu potencial.

Ainda que as demandas da juventude negra sejam emergenciais em todas as searas

(saúde, educação, segurança, lazer, família, etc.) a experiência na atuação com o

movimento social traz uma luz no fim do túnel para esse composto de problemas sociais

que resistem na vida da população negra a milhares de anos. Nesse sentido propõe-se

refletir a lógica da (des) construção, quando ao mesmo tempo em que se desconstrói

paradigmas e estigmas sociais nas vidas de jovens, constroem-se pontes para outros

caminhos, ou em palavras mais modernas, constrói-se o ideal de empoderamento da

juventude negra. Trata-se então do empoderar-se a partir daquilo que se tem em mãos,

que é acessível para uma parcela significativa de jovens que não possuem planos de vida,

que são reféns de facções e do olho dos policiais que fazem as rondas nos bairros em

busca de “criminosos”.

Neste quesito, SANTOS (2011) infere que saberes e fazeres antes ignorados,

trazem à luz um modo de reconhecimento que é uma forma parcial de identificação. É

preciso, contudo, fazer com que a produção cultural periférica reconheça a politização

dos seus produtos, que não são oriundos apenas do desejo de entreter-se, mas são frutos

de formas ancestrais de luta e resistência. É por isso que GOMES (2017) sugere o

reconhecimento do Movimento Negro2 enquanto educador mas, em tempo,

complementamos com indagações postuladas por SODRÉ (2017) no que tange a filosofia

ocidental enquanto história única e o silenciamento dos saberes africanos no processo de

descoberta teórico filosófica das sociedades:

Trata-se de uma forma de conhecer o mundo, da produção de

uma racionalidade marcada pela vivência da raça numa

sociedade racializada desde o início da sua conformação social.

Significa a intervenção social, cultural e política de forma

intencional e direcionada dos negros e negras ao longo da

história, na vida em sociedade, nos processos de produção e

reprodução da existência (...) para tal, faz-se necessário indagar:

Afinal, que saberes emergem da experiência e da ação da

comunidade negra e são sistematizados pelo Movimento Negro

Brasileiro? Esses saberes são emancipatórios? Como a escola e

a universidade poderão conhecer esses saberes e introduzi-los,

na perspectiva da ecologia dos saberes, como um importante

componente dos currículos? Como o pensamento crítico

educacional poderá dialogar e incorporar esses saberes? (GOMES, 2017, p.69)

2 Entende-se como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e articulação das negras e

dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso

fenômeno na sociedade (GOMES, 2017, p.23)

Page 4: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

As respostas para as indagações de GOMES (2017) poderiam ser dirimidas com a

execução eficaz da Lei 10.6393, importante iniciativa requerida também pelo Movimento

Negro. Ou, como sugere SANTOS (2011) no conceito de política cultural enquanto um

“programa de intervenções pensado e realizado pelo Estado, por entidades privadas ou

grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população

e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas” (SANTOS, 2011,

p.65). Enquanto o elo Estado, Academia e Sociedade não reconhecer as práticas

comunitárias enquanto legitimadoras de processos de desenvolvimento humano a

ideologia da supremacia genocida, que vitima milhares de jovens negros anualmente

neste país, continuará vigorando no sistema nacional de segurança pública.

Nesse sentido, destaca-se a atuação de grupos de cultura formados por jovens na

faixa etária mais atingida pela violência urbana. Jovens que sem, condições estruturais,

se utilizam da cultura para ora, de forma inconsciente, ocupar o tempo – pela participação

em projetos sociais comunitários, por exemplo – ora encontram na arte um caminho de

(re) existência, à medida que por meio dela podem expressar seus anseios de mudança e,

também, fugir dos sofrimentos diversos causados pela exclusão social.

A MODA: UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL

Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura. O antilhano

que quer ser branco o será tanto mais na medida em que tiver

assumido o instrumento cultural que é a linguagem. (Fanon,

p.50)

A moda enquanto instrumento cultural é tradicionalmente confundida com o

padrão estético europeu: branco, magro, de cabelos lisos. Essa moda, que historicamente

não atende aos corpos negros que por muitos anos precisou se adequar às vestimentas e

às formas europeias de produção para assim poder se enquadrar em um padrão aceitável

na sociedade, hoje é plural e descentralizada. Falamos de uma moda produzida no seio

da cultura popular, dos movimentos sociais e que passou a ganhar uma conotação de

enfrentamento.

3 Lei criada em 2003 que regulamente o ensino da História Afro brasileira nas instituições de educação

formal.

Page 5: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

Quando as juventudes percebem que assumir uma língua é assumir um poder, o

caminho da violência e exclusão dá espaço para a criatividade e autoafirmação. Faz-se

necessário, no entanto, alertar para a ausência do Estado no que tange a legitimidade

desse fazer político e artístico, bem como na garantia de espaços criativos como escolas

e espaços culturais para o acesso básico às artes e a cultura.

A morte em massa de jovens negros e negras nas periferias brasileiras, que aqui

vamos chamar de genocídio, desperta a atenção de órgãos internacionais e dos mais

diversos grupos de luta por direitos. No entanto, ainda com as mazelas sofridas por esse

grupo social historicamente no que tange o estado brasileiro, as juventudes se organizam

da sua forma para encontrar caminhos de sobrevivência e resistência. O isolamento

desses jovens proporciona o desconhecimento de um mundo moderno, avançado e pode

tornalos inaptos para a convivência com a sociedade tecnológica, dos avanços. Porém, é

importante perceber as tecnologias criadas por esse grupo social afim de explorar o seu

potencial criativo ou mesmo trazer a referência desse mundo ‘exterior’ e resignificar a

partir do seu contexto. Como pontuou Denys Cuche (2002) o isolamento, mesmo quando

ele representa marginalização, pode ser fonte de autonomia (relativa) e de criatividade

cultural, e assim é que trazemos o caso do JP Model.

Fonte: JP Model (Instagram)

Page 6: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

Organizado por um jovem morador do bairro de Fazenda Coutos, subúrbio

ferroviário de Salvador, o grupo que agrega moda e teatro em seu processo artístico, foi

criado em 2015, reunindo jovens negras e negros da região. O período era latente para o

surgimento de grupos com a JP, já que emergia nas capitais brasileiras um movimento

denominado “geração tombamento”,

quando as juventudes promoveram um

catarse de autoestima assumindo os

cabelos e utilizando as formas de se vestir

a partir da desconstrução dos padrões

‘ideiais’. Dessa forma, o JP model surge

como um grupo periférico num contexto

de exclusão e marginalidade e se apropria

da linguagem artística para expor a beleza

negra latente nas juventudes do Brasil.

Para captá-la, é preciso captar a inteligência prática das pessoas comuns, principalmente no uso

que elas fazem da produção de massa. Para uma produção

racionalizada, padronizada, expansionista e ao mesmo tempo

centralizada, corresponde uma outra produção chamada por

Certau de “consumo”. Para ele, trata-se Fonte: Jornal Correio, 2018 realmente de uma “produção”, pois apesar de não se caracterizar por

produtos próprios, ela

se distingue pelas “maneiras de viver” com estes produtos, isto é

pelas maneiras de utilizar os produtos impostos pela ordem

econômica dominante. (CUCHE, p. 150, 2002)

No senso comum da incompreensão do processos histórico de colonização do

Brasil, a priori tem-se em vista que nas periferias existe apenas a recepção dos produtos

de massa, nesse caso, a compreensão de uma moda inacessível, impossível de ser

produzida em contextos vulneráveis. Porém o JP Model se apropriou da linguagem de

massa para criar a sua forma de conduzir a sua criação artística. Jadison Palma, jovem

idealizador do projeto, não tem formação acadêmica e experiência profissional, mas aqui

vamos chamar de curioso, haja vista a evolução do alcance do JP Model que em quatro

anos já realizou diversos desfiles de moda, criou a sua própria linha de vestuário e

Page 7: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

expandiu o alcance da sua atuação

para outros territórios da cidade.

Entende-se assim que o grupo

JP Model é o resultado de uma

bricolagem, se utilizando do

conceito trazido por Lévi Strauss,

que usa o conceito para definir os

arranjos feitos com materiais

diversos. Jadison não precisa ir à faculdade ou até mesmo desfilar a sua grife na São

Paulo Fashion Week para ter o prestígio da sua comunidade no que tange a desconstrução

do arquétipo do jovem negro periférico, tão condicionado à violência e a exclusão.

Interessa saber que o JP Model não está imersa nas antigas formas de fazer militância

negra, no entanto foi o Movimento Negro quem deu passagem para que hoje meninas e

meninos pudessem criar um grupo como este. Cabe também dizer que o grupo não possui

interesse em garantir acesso às políticas públicas, eles não estão (em discurso exposto)

interessados em desconstruir a dominação social e simbólica, apenas querem ser jovens,

de cabelos crespos, sem vergonha alguma de ser quem são. Mas é importante salientar

que o grupo existe em virtude de uma rede de fomento à políticas públicas de cultura e

juventudes.

A dominação cultural nunca é total e definitivamente

garantida e por esta razão, ela deve sempre ser acompanhada de

um trabalho para inculcar esta dominação cujos efeitos não são

jamais unívocos; eles são às vezes “efeitos perversos” contrários

às expectativas dos dominantes, pois sofrer a dominação não

significa necessariamente aceitá-la. (CUCHE, 146, 2002)

A expectativa de vida para esses jovens, que convivem com a facilidade de acesso

ao tráfico de drogas e outras alternativas ilegais para o estado, diminui na medida em que

ele deixa de acessar os direitos básicos (saúde e educação). Quando chega à fase da

adolescência, esse mesmo estado que é muito mais presente nas comunidades através da

Polícia, cobra participação social desse jovem que em seu curso de vida nunca foi

acolhido. No tempo em que o processo de educação ganha outros grupos sociais, até

operários através da racionalização da vida social e da vida econômica, submetidas a

uma organização cada vez mais metódica e até cientifica, que tenta ultrapassar a ordem

do afetivo e do emocional (CUCHE, 2002), vemos uma sociedade que desvalida o

potencial criativo do grupo JP Model seguindo duas reflexões: o jovem deve ter um

F onte: JP Model (Instagram)

Page 8: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

emprego para honrar a sua família; o jovem, sobretudo negro e pobre, precisa ter um

emprego “digno” e não aventurar-se nas artes, área do conhecimento tão desvalorizada

no âmbito mercadológico.

Vive-se numa sociedade que não só não acolhe os jovens negros como

deslegitimam os seus sonhos e ideais de vida. Em meio a um universo de exclusão, ser

modelo e morador de periferia é uma afronta, já que este jovem deve investir em carreiras

promissoras, já que viveu por tanto tempo com todas as mazelas oriundas da colonização.

Como pontuado por Max Weber, o trabalho dá sentido a vida, conferindo status de

dedicação, valorização e responsabilidade ao homem, bem como é através do trabalho

que o homem contribui para manifestas a glória de Deus. Nos tempos modernos, esse

trabalho, no que tange as juventudes negras e periféricas, é também condição primordial

de existência. O jovem que não trabalha e não estuda desagrada a sociedade e a Deus,

segundo a lógica protestante.

Essa difusão dos valores ascéticos secularizados vem tomando as comunidades

brasileiras, contribuindo para a polarização de costumes ancestrais e desvirtuação das

crenças na cultura afro-brasileira. Sendo assim, a existência do grupo JP model que se

utiliza do artifício da moda ressaltar a beleza negra, destacar potências artísticas e

enfatizar que o jovem negro pode ser muito mais que uma vítima do genocídio brasileiro,

aparece como uma luz no fim do túnel, uma saída para jovens que ora seriam cooptados

pelo tráfico, pela igreja ou seria morto pela polícia.

Enquanto jovens criam e resignificam as suas formas de participação social através

das artes, entendendo participação social enquanto atuação em sociedade e imersão na

lógica política e profissional, outras formas de pensar a educação e cultura passam a ser

validadas como coerentes e contribuem para a criação e manutenção das mais diversas

políticas públicas.

JUVENTUDES E AUTOAFIRMAÇÃO

Com efeito, a juventude começa por ser uma categoria

socialmente manipulada e manipulável e, como refere Bourdieu,

o fato de se falar dos jovens como uma unidade social, um grupo

dotado de interesses comuns e de se referirem esses interesses a

uma faixa de idades constitui, já de si, uma evidente

manipulação. Na verdade, nas representações correntes da

juventude, os jovens são tomados como fazendo parte de uma

cultura juvenil unitária. No entanto, a questão central que se

coloca à sociologia da juventude é a de explorar não apenas as

possíveis ou relativas similaridades entre jovens ou grupos

sociais de jovens (em termos de situações, expectativas,

Page 9: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

aspirações, consumos culturais, por exemplo), mas também —e

principalmente— as diferenças sociais que entre eles existem. (PAIS, 1990)

As singularidades do termo juventude exigem que se atribuam especificações e

recortes para ser possível compreender de qual questão específica pretende-se tratar.

Hoje em dia fala-se em juventudes, agregando todas as demandas trazidas por esse grupo

social, englobando questões de raça, gênero, classe, território e, sobretudo, acesso a

políticas públicas. Infelizmente a realidade apresenta grande conexão entre os termos

juventudes e genocídio, ficando cada vez mais difícil não falar sobre a violência que

atinge a camada juvenil da sociedade.

Com destaque para o discurso do Estado enquanto ‘regulamentador’ de identidade,

tenta-se entender quem é o Governo no encadeamento de ações que direcionam ao

pertencimento identitário. Além disso, o que estas instituições têm feito no sentido da

proteção da cultura afro. Com isso, baseia-se em Seyferth (2002), pensando que a

formulação das etnicidades obedece a códigos culturais privilegiados na determinação

de limites étnicos, embora a crença na afinidade de origem, de conotação racial seja

comum a todos.

A invisibilidade e o recalque dos valores históricos e culturais de

um povo, bem como a inferiorização dos seus atributos

adscritivos, através de estereótipos, conduz esse povo, na

maioria das vezes, a desenvolver comportamentos de

autorrejeição, resultando em rejeição e negação dos seus valores

culturais e preferências pela estética e valores culturais dos

grupos valorizados nas representações. (MATTOS, p. 35, 2008)

A negação histórica da contribuição cultural deixada pelos africanos que foram

trazidos na condição de escravos para o Brasil, condicionou um processo de exclusão e

autorejeição que assim como os aspectos biológicos, também foi passado de pai para

filho. Trata-se de uma rejeição difícil de ser dirimida e apenas passível de correção

através das políticas afirmativas, desenvolvidas sobretudo a partir dos anos 2000,

contribuindo para uma ampliação da participação de negros e negras nos espaços de

poder e subsequentemente para uma aceitação e autoafirmação da comunidade frente a

questão. O surgimento do grupo JP Model aparece também como um reflexo do impacto

das políticas afirmativas na sociedade brasileira. Quando jovens negros da periferia de

Salvador - do bairro que em 2015 foi identificado pelo IBGE como o mais negro da

cidade, mas também é reconhecido pela Secretaria de Segurança Pública do Estado como

um dos mais perigosos da região – reúnem-se para pensar alternativas de resistência

Page 10: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

cultural utilizando símbolos da cultura afro-brasileira nota-se que ainda existem

possibilidades de mudanças e que as políticas afirmativas causam efeitos para a

autoafirmação de identidade.

Por mais que o Estado brasileiro não reconheça e assuma os dados alarmantes dos

assassinatos de jovens negros provocados pela Polícia, o entendimento de genocídio

enquanto projeto político que abarca a exclusão do indivíduo de todas as formas até a

negação da sua própria existência, é levantado pelos movimentos sociais.

O racismo, na condição de prática discursiva, é uma construção cultural. Nesse

sentido, pensar o combate do Genocídio da Juventude Negra a partir da formação cultural

engendra um novo conceito de (des) construção cultural e empoderamento étnico racial.

Sendo assim esta pesquisa se torna importante então para alimentar os estoques de usos

da cultura, enfatizando a sua importância para a transformação social. Com isso, o

levantamento dos aspectos identitários que conduzem para o racismo estrutural são

resignificados nas práticas formativas, realizadas por ações de arte e cultura nas

comunidades periféricas de Salvador. Neste sentido, este artigo também revela traços e

manejos utilizados no processo de valorização da identidade negra e ênfase à autoestima.

Cumpre, pois, tentar terminar, fechar um pouco o que eu

disse este ano. Eu havia tentado expor um pouquinho o problema

da guerra, encarada como gabarito de inteligibilidade dos

processos históricos. Parecera-me que essa guerra fora

concebida, inicial e praticamente durante todo o século XVIII

ainda, como guerra das raças. Era um pouco essa história da

guerra das raças que eu queria reconstituir. E tentei, da última

vez, mostrar-lhes como a própria noção de guerra fora

finalmente eliminada da análise histórica pelo princípio da

universalidade nacional*. Eu gostaria agora de lhes mostrar

como o tema da raça vai, não desaparecer, mas ser retomado em

algo muito diferente que que é o racismo de Estado

(FOUCAULT, p.285, 1976)

O racismo está presente no país da forma mais velada possível, no entanto hoje o

maior impacto do dele não está no trato cotidiano entre pessoas brancas e negras, mas

nas formas de condução do Estado no que tange a sociedade brasileira. Hoje falamos do

racismo estrutural e do genocídio de forma plena: a falta de direitos básicos para a

comunidade negra e o extermínio em massa dessa população. Diariamente mães do Brasil

inteiro enterram os seus filhos vitimados por arma de fogo, em muitos dos casos as

vítimas tinham envolvimento com o tráfico de drogas ou foram vítimas de bala perdida

ou simplesmente teve uma atitude duvidosa no momento da abordagem policial.

Infelizmente sabe-se que todas essas justificativas são mais utilizadas para o assassinato

Page 11: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

de jovens negros em condição de pobreza e esse é o efeito de um Estado que não

reconhece que vivemos em um país racista e excludente, que não considera como o

racismo como peça fundamental do alto índice de pobreza e violência.

CONCLUSÃO

O surgimento de grupos culturais em contextos de violência revela os efeitos de

um tempo contemporâneo, influenciado pelo momento político e pelo desejo de ruptura

com os padrões pré-estabelecidos ao longo do tempo. Porém, a existência de grupos que

se utilizam da técnica da bricolagem, como o JP Model, também e símbolo de resistência

frente a opressão e violência. O fazer artístico é entendido neste artístico como a livre

forma de se expressar através da arte, ainda que inconscientemente e sem conhecimentos

técnicos. Aqui tratamos da importância da arte e cultura para a expressão política de

jovens que não tem acesso aos espaços de poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANCLINI, N. G. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade.

Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. de Viviane Ribeiro.

EDUSC, 2002.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas; tradução de Renato da Silveira. Salvador,

BA: EDUFBA, 2008.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Cóllege de France (1975-1976);

tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por

emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

MATTOS, Miriam de Cássia do Carmo Mascarenhas. A diversidade cultural presente

nos estoques informacionais das escolas públicas de Santa Catarina: um estudo sobre a

implementação da lei federal nº 10.639/03. Itajaí: UDESC; Casa Aberta, 2008.

PAIS, José Machado. A construção sociológica da juventude: alguns contributos. Análise

Social, Rio de Janeiro, v. 25, n. 105-106, p. 139-165, 1990. Disponível em: . Acesso em:

20 out. 2015.

SANTOS, Adalberto. Tradições populares e resistências culturais: políticas públicas em

perspectiva comparada. Salvador, BA: EDUFBA, 2011.

Page 12: Representatividade importa sim: moda como ferramenta de ...€¦ · a construção do arquétipo da roupa em si, mas de como e através da subjetividade pairada sobre os corpos negros

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.