espaço e subjetividade

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755 O espaço enquanto lugar da Subjetividade Ariane Patrícia Ewald Professora da Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. End.: R. Renato Meira Lima, 595. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22735-120. E-mail: [email protected] Rafael Ramos Gonçalves Mestre em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. End.: Av. Santa Cruz, 6496, apt. 104. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 21830-009. E-mail: [email protected] Camila Fernandes Bravo Mestre em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. End.: R. Benjamin Constant, 102, apt. 204. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 20241-150. E-mail: [email protected] Resumo O espaço no qual nos movemos cotidianamente parece tão estável e sólido que nos faz esquecer que a forma como vemos o mundo é sempre afetada por aquilo que acreditamos ou sabemos. No REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE – FORTALEZA – VOL. VIII – Nº 3 – P . 755-777 – SET/2008

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Espaço e subjetividade

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    O espao enquanto lugar da Subjetividade

    Ariane Patrcia Ewald

    Professora da Ps-Graduao em Psicologia Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

    End.: R. Renato Meira Lima, 595. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22735-120.

    E-mail: [email protected]

    Rafael Ramos Gonalves

    Mestre em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

    End.: Av. Santa Cruz, 6496, apt. 104. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 21830-009.

    E-mail: [email protected]

    Camila Fernandes Bravo

    Mestre em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

    End.: R. Benjamin Constant, 102, apt. 204. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 20241-150.

    E-mail: [email protected]

    ResumoO espao no qual nos movemos cotidianamente parece to estvel e slido que nos faz esquecer que a forma como vemos o mundo sempre afetada por aquilo que acreditamos ou sabemos. No

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    entanto, ao determos os olhos sobre alguma coisa, imediatamente a trazemos para perto e nos situamos em relao a ela. Esta constatao motiva nosso estudo sobre a relao entre espao e subjetividade. Pretendemos mostrar que a noo de Espao no pode ser reduzida a uma concepo tecno-cientfica que o toma como algo dissociado da subjetividade. Ao contrrio, ele o lugar de encontro das subjetividades, possibilitado pela expressividade do corpo, no qual se realiza o intercmbio entre sujeito e mundo.

    Palavras-chave: subjetividade, espao, lugar, existencialismo, fenomenologia.

    AbstractThe space in which we move them daily, it always seems to present itself in so steady and solid way, that in it makes to forget them that the form as we see the world it is always affected for what we believe or we know. But, when we holding the eyes on something, immediately we bring it stops close, in we relate them with it, in we point out them in presence of it. Our study above the relation among space and subjectivity was motivated by this ascertainment. We intend to show that Spaces notion cannot be reduces to a tecno-scientific conception. The space isnt something separate from subjectivity. On the contrary, it is the place of subjectivities meeting that the body expression makes it possible. Is here, in this place that happen subject-worlds interchange.

    Keywords: subjectivity, space, place, existentialism, phenomenology.

    IntroduoTendo por princpio que as criaes humanas so essencial-

    mente produes de sentido que expressam de forma singular os complexos processos de realidade nos quais o homem est envol-vido, mas sem constituir um mero [reflexo] destes (Gonzlez-Rey, 2003, p. IX), necessrio partirmos dos diferentes aspectos do mundo em que o ser humano permantemente se constitui.

    Em 1883, em Introduccin a las Cincias del Espritu, Dilthey (1986) nos instigava a buscar uma psicologia que fosse com-preensiva, o que implicaria tomar como objeto dos nossos estudos todas as atividades pelas quais o esprito humano se manifesta,

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    isto , a arte, a histria, a linguagem, o comportamento, a eco-nomia, o direito e assim por diante. Se as criaes humanas so produes de sentido, ento fundamental buscar, atravs de lin-guagens diferentes, que podem se articular a construes tericas, uma maior inteligibilidade quanto subjetividade e sua representao nas multifacetadas atividades e nos diversos contextos em que a vida concreta se desenvolve. Neste sentido, buscar articulaes entre os saberes da Psicologia, Filosofia, Histria, Literatura, Comunicao e Sociologia uma forma de iluminar a cena da histria concreta dos homens, num esforo de compreenso que transcende fronteiras convencionais das disciplinas acadmicas em direo a um conceito das Cincias Humanas e Sociais, buscando uma unidade de per-cepo, h muito perdida numa pulverizao empobrecedora dos saberes que tm o homem como centro. tambm apontar, como afirmou Bloch (2001), que toda cincia tomada isoladamente, no significa seno um fragmento do universal movimento rumo ao conhecimento (p. 50) e que, as investigaes histricas [bem como as psicolgicas] no sofrem de autarquia. Isolado, nenhum deles [especialistas] jamais compreender nada seno pela meta-de, mesmo em seu prprio campo de estudo (p.68).

    Explicitemos, ento, nossa proposta: abordar a relao entre espao e subjetividade tendo como horizonte as reflexes de Milton Santos, Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty. Para exemplificar esta re-lao de conceitos tomamos a pea de Sartre, Huis-Clos, escrita em 1944, que tem por cenrio um espao fechado, entre quatro pare-des. Este nos pareceu um lugar apropriado para compreender esta relao e pensar a constituio simultaneamente subjetiva e objetiva da realidade. Pretendemos, ainda, mostrar como esta relao entre o subjetivo e o objetivo foi explicitada pela fenomenologia, a qual os trs autores esto associados, ainda que a relao de Milton Santos com a fenomenologia tenha sido indireta, alcanada por influncia de Sartre no desenvolvimento de suas pesquisas.

    1. O Espao Social e o Projeto da ModernidadeOs princpios relacionados ao projeto da modernidade, ins-

    taurado no sculo XVIII, nos legou um pensamento aliado s idias de progresso e de tecnologia. O destaque necessidade de pro-gresso, acentuado pela razo iluminista, via no avano das cincias

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    a causa nica para o progresso dos povos e, conseqentemente, o progresso da histria (Turgot, 1991; Condorcet, 1993). As mqui-nas se tornaram, cada vez mais, uma fonte de aproximao utpica aos mais altos patamares da civilizao, como se a prpria idia de civilizao fosse o estado mais alto e o mais refinado que se po-deria alcanar. Vive-se, desde ento, o projeto da modernidade, a era da cincia e da tcnica na qual se enaltece, segundo Leo (1975), o pensamento que calcula em detrimento do pensamen-to do sentido (p.21-22). Trata-se de um universo cujos pontos de referncia enaltecem as virtudes da tcnica, rapidez e eficincia, em oposio angstia prpria do esforo de produzir sentidos. Neste contexto...

    o espao aparece como um substrato que acolhe o novo, mas resiste s mudanas, guardando o vigor da herana material e cultural, a fora do que criado de dentro e re-siste, fora tranqila que espera, vigilante, a ocasio e a possibilidade de se levantar (Santos, 1997, p. 37)

    A noo de tcnica proposta por Milton Santos em seus es-tudos a juno do tempo e do espao que juntamente constituem o mundo. O tempo o transcurso, a ordem aos eventos. O espao o meio, o palco dos eventos. A cada momento mudam juntos o tempo, o espao e o mundo. Na Histria, espao e tempo se fun-diram e muitas vezes se confundem, tornando quase impossvel trat-los separadamente. Sendo assim, resta-nos usufruir disso e voltarmos nossa ateno aos fenmenos oriundos dessa juno, como a cidade, que, para Santos (1997), o fenmeno mais re-presentativo dessa unio.

    A tcnica cientfica converteu-se na manifestao privilegiada do fazer humano. Entre as transformaes urbansticas promovi-das na Modernidade podemos mencionar a assuno da dinmica social do trfego, que resultou em comportamentos mais obje-tivos e racionais, como assevera Waizbort (2000): As condies de vida na cidade grande e moderna criam condies e neces-sidades especficas de sensibilidade e comportamento(p.322). O projeto de modernizao do espao, planificado conforme os parmetros da racionalidade tcnico-cientfica, no deixa a sub-jetividade inclume.

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    Lembremos, oportunamente, o trabalho A Questo da Tcnica no qual Heidegger (2002) analisa a natureza prpria da tcnica, sua utilidade e funcionalidade. Para ele, a tcnica se carac-teriza pelo dispor das coisas do mundo e, como desdobramento, a relao que o homem estabelece com as coisas do mundo tem sido atravessada pela conjuntura de significncia que dada pela tcnica, isto , sua funcionalidade definida previamente e que se manifesta no modo como a realidade disposta. Desta forma, temos um mundo que nos oferecido com um potencial de sentido previamente estabelecido pela hipervalorizao da sua til-funcio-nalidade. Aqui fica explcito o domnio do pensamento que calcula e que visa exclusivamente a um resultado final previsvel, como na organizao do espao urbano. Ora, geralmente acreditamos que as explicaes sobre o mundo, conduzidas por um discur-so competente, no dizer de Chau (1989), discurso que quase sempre o cientfico, tm a pretenso de ser suficiente para nos indicar o que este mundo para ns e como, nele, nos situamos. Consideramos que Santos (1997) se posiciona de modo preciso a respeito disto quando afirma que a tcnica comanda a nossa vida, nos impe relaes, modela nosso entorno, administra nos-sas relaes com o entorno (p.20), efetivando o ordenamento do discurso cientfico.

    A economia monetria tambm revelou-se um componente que contribuiu significativamente para o processo de planificao do espao e, por conseguinte, da sociabilidade nele engendrada. O crescente distanciamento entre espao e vida ocorreu por meio de um planejamento que pretendia excluir o carter imprevisvel prprio das manifestaes subjetivas. No contexto urbano, onde habita uma parcela considervel da populao mundial, observa-se que o espao vivido de modo cada vez mais conflitivo e desagre-gador, medida que se reduz seu carter pblico.

    Trata-se de um espao que, sendo to alienado das existn-cias individuais, parece dissociado das prprias subjetividades por servir apenas como meio de circulao, semelhana do dinhei-ro e da informao. notvel que a introduo do dinheiro como mediador das relaes sociais (Simmel, 1998, 1998a) foi um fator importante no processo de destruio da unidade psicossocial ve-rificada, por exemplo, na Idade Mdia, quando no existia a ciso

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    entre o espao e a sua comunidade, propriedade ou associao. Com o advento da economia monetria a relao do proprietrio com sua terra objetivada pela mediao do dinheiro, e seu vn-culo com o conjunto social passa a residir na posse do dinheiro em lugar da simples ocupao, outrora o fundamento da proprieda-de. Iniciou-se um processo de desencaixe1 da subjetividade em relao ao espao. Seu desdobramento mais visvel se mostra na relao entre o dinheiro e a posse de uma propriedade: basta ter dinheiro para que se possa obter um pedao de terra aqui e acol, sem que, para isso, precise ocup-los verdadeiramente, no senti-do de habitar e zelar pessoalmente. O cuidado da terra pode ser delegado a empregados, que sero mantidos na propriedade pelo salrio recebido para o desempenho da funo de administr-la.

    Em cada momento histrico existem formas em disputa, mas que tambm so complementares, de perceber, conceber e intera-gir. As diferentes maneiras de nos colocarmos no mundo, seja em articulao ou em confronto com a realidade apresentada, esto diretamente associadas capacidade de produzir e transformar a existncia, isto , o espao em que vivemos. Assim, a cada pe-rodo, surge um conjunto de idias que estrutura e apia aes transformadoras, que podem ser lidas em diferentes escalas como no indivduo, na famlia ou na cidade, pois

    O espao no usualmente considerado como uma das estruturas da sociedade, mas um mero reflexo. E, se con-clumos que a organizao do espao tambm uma forma, um resultado objetivo de uma multiplicidade de variveis atuando atravs da histria, sua inrcia passa a ser din-mica. Por inrcia dinmica entendemos que a forma tanto resultado como condio do processo. As formas espaciais no so passivas, mas ativas; as estruturas espaciais so ativas e no passivas, mesmo que sua autonomia, com re-lao a outras estruturas sociais, seja relativa. As formas espaciais tambm obrigam as outras estruturas sociais a modificar-se, procurando uma adaptao, sempre que no possam criar novas formas (Santos, 1979, p. 30).

    A abstrao do espao na dinmica social tem incio num processo de objetivao e na conseqente possibilidade de uma

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    relao indireta com o mesmo. O distanciamento espacial permitiu s pessoas evitar os encontros, atraes, repulses e excitaes que a proximidade provoca e, com isso, favoreceu a predominn-cia dos processos intelectuais na sociedade (Simmel, 1977, p.674). Entendemos que o domnio da intelectualidade, da objetividade, em detrimento de manifestaes de cordialidade, afeto e solidariedade, contribui para o obscurecimento da percepo do carter existen-cial do espao. Este, em funo do imperativo da tcnica, colocada a servio da cultura do consumo, converte-se em espao de uso e de passagem em prejuzo do encontro, de uma sociabilidade favo-rvel construo de laos humanos mais consistentes.

    2. Espao e SubjetividadePropomos que as consideraes acerca da sociabilidade no

    podem prescindir daquelas sobre o espao, considerado, numa pers-pectiva fenomenolgica, inextrincvel da constituio subjetiva.

    As reflexes sobre este tema oscilam freqentemente entre dois plos: o espao fsico e o social. O primeiro, correspondendo ao espao dito objetivo, mensurvel, enquanto o segundo estaria relacionado ao espao das subjetividades, fundamentado nas in-teraes sociais. Esta distino, no entanto, tem suas sutilezas, algumas das quais pretendemos abordar nesta seo.

    A preocupao com o espao, em termos do primeiro tipo o espao objetivo , caracteriza-se pela abstrao de tudo que compe a cotidianidade, com todas as nossas incertezas, pre-ocupaes, emoes e afetos. O espao fsico a regio pura e racional da cincia. Em contraposio a esta perspectiva, en-tendemos que, primordialmente, lidamos com o espao social no imediatismo de nossas aes, na convenincia dos nossos afaze-res cotidianos. Nas palavras de Heidegger (2001) esta lida consiste em um ser-uns-com-os-outros em nosso estar-relacionado com as coisas que nos encontram (p.138) O prprio espao fsico s tem relevncia quando referenciado s interaes sociais donde re-cebem seu sentido. Isto significa que el espacio es una forma que en si mesma no produce efecto alguno (...) lo que tiene importancia social no es el espacio, sino el eslaboniamento y conexin de las partes del espacio, produzidos por factores espirituales (Simmel, 1977, p.644). Por esta razo, a rua em frente nossa casa no

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    mero espao fsico, coberto de asfalto, com dimenses bem de-finidas por seus construtores, mas caminho para a escola, lugar onde as crianas costumam brincar e as vizinhas conversam nas noites quentes de vero.

    Assemelha-se a este entendimento do espao a opinio de Bauman (1997), segundo a qual captamos o espao fsico intelec-tualmente com a ajuda de noes que se cunharam originalmente para mapear qualitativamente relaes diversificadas com outros homens (p.168). Lidamos rotineiramente com um espao que de ordem vivencial, cuja fora transformadora inibida quando a submetemos ao mapeamento intelectual necessrio organizao fsica do espao. Mas o espao social, produzido pelas interfe-rncias subjetivas, no passvel de ordenamento porque est em permanente mutao, encontrando sempre um meio de contor-nar os balizamentos distribudos pela racionalizao do espao. Lembremos que o viver com o outro presena inevitvel no es-pao , supe sempre um saber acerca daqueles com os quais interajo. Esta afirmativa pode parecer incompreensvel, num pri-meiro momento, porque freqentemente interagimos com pessoas sobres as quais pouco sabemos2 e nem por isso afirmaramos que nossa convivncia prejudicada.

    Esta associao entre saber e convivncia parece estra-nha porque o conhecimento que possumos sobre os outros vincula-se estrutura ontolgica do ser-no-mundo. Este ser-no-mundo se baseia em um conhecimento imediato, no tematizado, mas eminentemente vivencial. Nas palavras de Heidegger (2004) ser-no-mundo refere-se ao empenho no temtico, guiado pela circunviso, nas referncias constitutivas da manualidade de um conjunto instrumental (p.119). Isto significa que todas as nossas aes ocorrem em uma familiaridade3, isto , numa percepo no temtica da coerncia significativa do que nos circunda e os diver-sos modos como isto pode ocorrer.

    principalmente pela linguagem que se realiza esta conexo de conhecimentos no pensada, mas sempre presente e implica-da em nossos usos. por ela que somos inseridos no patrimnio do conhecimento partilhado na cultura em que nos encontramos. Isto inclui as rotinas de comportamento que assimilamos na intera-

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    o cotidiana, pela qual somos informados a respeito de algumas regras de sociabilidade. Raramente nos apercebemos deste fato, mas estamos continuamente trocando gestos e olhares que, loca-lizados em determinado registro lingstico, indicam certas formas de comportamento e, simultaneamente, motivaes.

    De fato, na afirmativa de Ernest Keen (1975), minha presen-a perceptual e minha presena comportamental na situao so da mesma espcie, mutuamente integradas (p.124). Isto signifi-ca que nossa experincia, presumivelmente privada, encerrada no psiquismo, revela-se mediante o corpo, no comportamento, pelo olhar, gestos, posturas, tom de voz etc. O comportamento pblico, por sua vez, encontra-se sempre atrelado a uma dimenso priva-da (subjetiva). O modo como percebemos, sentimos ou vivemos, manifesta-se em nosso modo de agir.

    Ao realizar sua fenomenologia do corpo, Merleau-Ponty (1999) observa que ele preponderante em nossa imerso no mundo, na relao com os objetos ou com as outras pessoas, indicando que o movimento do corpo prprio que define mutua-mente sua posio relativamente aos objetos do espao e deles em relao ao corpo, e evidenciando, tambm, que a nossa percepo do mundo se caracteriza por uma inerncia s coisas (p.469). Tal constatao implica numa reviso da percepo do outro que, su-postamente, tambm deve possuir uma conscincia inerente ao mundo. Este o cerne da questo proposta pelo prprio filsofo: Se minha conscincia tem um corpo, por que os outros corpos no teriam conscincias? (p.470). Observe-se que na forma da pergunta est subentendida a indivisibilidade entre corpo e cons-cincia, dado que o filsofo, partindo do fato de que a conscincia corporal, passa para uma insinuao de que os outros cor-pos, necessariamente, tm uma conscincia que lhes inerente e que se encontra, portanto, imbricada nos eventos do espao. Se nossa conscincia inseparvel do corpo em sua manifestao, os corpos alheios, em cada uma de suas aes, manifestam uma conscincia que, diferentemente da prpria, no acessvel ime-diatamente a ns, mas o mediante seus atos.

    A subjetividade est radicada nas condies que a per-cepo desdobra, estabelecendo o seu carter dinmico, cuja estrutura inacabada. A percepo, na verdade, revela um mundo

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    porque ultrapassa o sujeito e a si mesma, configurando-se sempre como sntese inacabada, aberta ao possvel. Em razo disso suge-re-se que a espontaneidade do pensamento vincula-se sntese operada na percepo, no havendo, pois, coincidncia consigo mesmo, semelhana de um pensamento transcendental. em virtude da percepo, e, portanto, do corpo, que o pensamento se ultrapassa, podendo acolher a alteridade localizada no espao.

    Somente com a renncia da pretenso de determinao completa, prpria da cincia, possvel conceber as condies para o estabelecimento da experincia de outrem. Em outras pa-lavras, necessrio admitir que as experincias conservam uma regio aberta. Outrem aparece exatamente na regio que esca-pa ao domnio do sujeito, na regio que sua percepo atual no aborda diretamente, mas que pertence ao mundo que ambos par-tilham. Na experincia de outrem, portanto, a percepo precede o pensamento. Quando se pensa na alteridade, seja uma pessoa ou o contexto scio-cultural, reefetua-se, to somente, um estilo de pensamento que atuante em nossa inerncia ao mundo.

    3. Huis-Clos: um lugar onde as subjetividades se descobrem

    Para pr em cena o nexo entre espao e subjetividade, necessrio tentarmos nos destituir de pr-juzos que possam nos conduzir ao emagrecimento moral e intelectual e reduo da nossa viso de mundo (Santos, 2001, p.49). Neste sentido, a pea Huis Clos (Sartre, 2005) nos auxilia neste processo, pois a narra-tiva ocorre exatamente num espao fechado, com o mnimo de objetos disponveis: trs poltronas em estilo Segundo Imprio, uma esttua de bronze e uma lareira. Trata-se de um espao reduzido ao mnimo, onde a essncia de tudo est na relao entre os que ali permanecem. A pea aborda a relao entre trs personagens que, por terem morrido, so encaminhados ao inferno por um fun-cionrio burocrata. Esta sala, este espao fechado, exatamente a viso de Sartre do inferno, a impossibilidade de estar s, a obri-gatoriedade da presena do outro na vida de cada um e tambm a evidncia da vontade de livrar-se desse outro que desvela a mim mesmo, que me olha e me impe a conscincia de quem sou.

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    Ao reduzir ao mnimo material o cenrio de sua pea, Sartre enfatiza a subjetividade, retirando de cena todo e qualquer apa-rato que possa desviar a ateno do espectador para outra coisa que no os prprios personagens e como se comportam naquela situao. Ao suprimir o prtico-inerte4, noo que s aparece-r mais tarde em sua obra, Sartre indica a impossibilidade de nos desligarmos de ns mesmos, de que estamos condenados no s liberdade, professada na eleio e no na obteno, mas tam-bm contnua intruso do outro em ns, ao escrutnio do olhar que nos cerca continuamente.

    O espao entre quatro paredes de Huis Clos efetiva-mente preenchido pela subjetividade de cada um, totalmente ocupado pelas aparies sucessivas de si mesmo diante dos ou-tros que, por vezes, transbordam estas paredes sem, contudo, realmente ultrapass-las. Ali, cada um dos personagens obrigado a ver a si mesmo pelos olhos do outro e desta forma ver-se, como num espelho, mas, neste caso, um espelho que reflete o que cada um construiu de si mesmo.

    Com efeito, em virtude da restrio de objetos no ambien-te, os personagens ficam entregues uns aos outros. Sobressaem como ocupantes daquele espao os corpos, que se tornam os referenciais mais pregnantes, cujas possibilidades compor-tamentais ficam limitadas situao imposta pela insupervel presena alheia..

    A Fenomenologia pode nos ajudar a compreender em que sentido os outros, no contexto de Huis Clos, representam um r-gido limite s manifestaes dos projetos existenciais individuais. Quanto a isto podemos contar com a contribuio de Merleau-Ponty (1999) que apresenta o outro no como um corpo-objeto, mas corpo-subjetividade. Por isso ele prope que devemos re-cuperar, nos corpos visveis, os comportamentos que neles se esboam, que fazem ali sua apario, mas que no esto realmen-te contidos neles (p.470). A subjetividade do outro se manifesta em seu comportamento. Entre quatro paredes os personagens esto cercados pelas subjetividades alheias. Resta-lhes apenas isto, uma vez que s restam os corpos alheios.

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    O corpo de um personagem, por sua prpria disposio no espao, j estabelece o lugar do outro, e assim sucessivamente. A condio deste espao fechado no acarreta apenas uma supos-ta tenso por conta do espao limitado, mas, concomitantemente, gera intercmbio de emoes entre os ocupantes. A indivisibilidade entre corpo e conscincia faz com que, no prprio comportamen-to de outrem, sejamos informados de suas condies subjetivas, dado que o ser humano uma subjetividade objetivada, que se faz em ao (Maheirie, 1994, p.120). Neste espao fechado, que os obriga a interagir, a tenso e o intercmbio emocional provocam o escancaramento das razes em torno da condenao ao infer-no, que cada um procura ocultar. Dentre muitos trechos da pea, este dilogo exemplifica esta questo:

    Garcin Eu dirigia um jornal pacifista. A guerra estoura. O que fazer? Eles estavam de olho em mim. Ele vai se atrever a continuar? Pois eu me atrevi. Cruzei meus bra-os, e me fuzilaram. Cad o crime? Cad?

    Estelle (Pe a mo no brao dele.) No houve crime. Voc ...

    Ins (Conclui ironicamente.) ...um heri. E a sua mu-lher, Garcin?

    Garcin , bem... o que que tem? Eu a tirei da sarjeta.

    Estelle (Para Ins.) Est vendo? Est vendo?

    Ins Estou. (Pausa.) Para que ficar fazendo esta nove-la? Aqui estamos entre ns.

    Estelle (Com insolncia.) Entre ns?

    Ins , entre assassinos. A gente est no inferno, mo-cinha, aqui nunca h engano. E as pessoas no so condenadas toa. (...) A santinha est condenada, o heri sem mcula est condenado. A gente j teve a nossa hora de prazer, no mesmo? Um monte de gente sofreu por nossa causa at a morte, e isto nos divertia bea. Agora, preciso pagar.

    Garcin (Com a mo levantada.) Vai calar essa matraca?

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    Ins (Olha para ele sem medo, mas com uma imensa sur-presa.) Ah! (Pausa.) Calma! J entendi... j entendi por que nos botaram juntos.

    Gacin Cuidado com o que vai dizer!

    Ins Voc vai ver que idiotice. Idiota como uma flor! No tem tortura fsica, no verdade? E, no entanto, es-tamos no inferno, lugar de ser castigado, n? Ningum vem mais, vem? A gente vai ficar at o fim, s ns, jun-tos, no isso? claro que est faltando algum aqui: falta o carrasco. (...) Ora, fizeram um corte no pessoal. isso. So os prprios clientes que fazem o servio, como um restaurante comunitrio.

    Estelle O que voc est querendo dizer?

    Ins Que cada um de ns o carrasco dos outros dois. (Sartre, 2005, p. 60-63).

    O espao, como a subjetividade, constitui-se como reci-procidade, isto , a prpria sociabilidade. O olhar que o delimita e concentra a escolha a relao sujeito-objeto, de onde emerge um projeto existencial. Sendo assim, as relaes espao-temporais se realizam em fluxos expressivos de como se observa, compreende e interage. Tais relaes se manifestam atravs de trocas seleti-vas e hierarquizantes. O espao deve ser considerado como um conjunto unificado de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geogrficos, naturais e sociais, e, de outro, a vida que os preenche e que os transforma.

    por essa razo que relevante refletir sobre processos que, atravessados pelas subjetividades, compem a totalidade do universo analtico indicado pelo conceito de espao. Tal compreen-so importante porque desloca a possibilidade de compreender o mundo atravs do iderio determinado pela instncia econmi-ca, qual as instncias ideolgica e poltica respondem de forma subordinada. Assim, a noo de espao fundamental, porque ela pode ser desdobrada em esferas que totalizam a nossa compre-enso, podendo objetivar a produo econmica, como a indstria e os servios, a ordem poltica (os partidos), os sindicatos e movi-mentos populares, ou a vida social, como nas famlias.

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    Quando tratamos da dimenso local, imediatamente a as-sociamos noo de um espao particular delimitado, com seu conjunto de relaes sociais estritas, baseadas em fortes laos fa-miliares e tempo de residncia. Presumimos, normalmente, uma identidade cultural estvel, homognea e integrada, ao mesmo tempo duradoura e nica. Neste sentido, freqentemente pensamos que os membros de uma localidade formam uma comunidade dis-tinta, com sua prpria cultura, algo que transforma o local de suas interaes cotidianas: de um mero espao fsico a um lugar.

    Mas entendemos que o espao o resultado e a condio da totalidade das relaes sociais. Para tanto, preciso observar, conhecer e viver este espao social, que ultrapassa o espao fsico. O espao deve ser analisado, se quisermos privilegiar a sub-jetividade de seus ocupantes, como algo estruturado socialmente, onde so trocados (em direo preservao ou mudana) ob-jetos, idias, intenes e afetos.

    Na atualidade, ao delimitarmos os espaos como lugares as-significantes, ordenados rigidamente, condicionados ou pressionados exteriormente, vagos e indiferenciados, geramos modos de relao e de sociabilidade pr-determinados que nos empurram para certo esti-lo de vida e para um modo de ser que se manifestam neste incessante vir-a-ser que nossa subjetividade ou modo de subjetivao. A so-ciedade de consumo exemplo desta forma de gerenciar a vida, de pensar o espao e a subjetividade como constructos isolados, mas que viabilizam a manuteno de uma relao comercial com ambos: comprar/adquirir um espao e/ou uma subjetividade.

    Neste sentido, o espao no qual nos movemos cotidiana-mente parece sempre se apresentar de maneira to estvel e slida que nos faz esquecer que a forma como percebemos o mundo sempre afetada por aquilo que acreditamos ou sabemos, pois o mundo se apresenta com uma nova face cada vez que mudamos a nossa perspectiva sobre ele (Duarte Jr., 1984, p.11).

    Na pea, podemos notar que a relao com os outros, isto , seus corpos, depende da maneira como aquele espao captado pelo olhar de cada um. No tocante sociabilidade, a fe-nomenologia descobre no olhar uma posse de um mundo visvel (Merleau-Ponty, 1999, p.471) pelo qual a existncia do outro pode

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    ser acessada, afastando-se de uma concepo objetivista do olhar herdada da filosofia cartesiana. Apesar de o olhar captar apenas um rastro da conscincia de outrem, manifesta em sua apresentao corporal, esta condio, pela qual se est cravado em um mundo, que a conscincia de outrem (inseparvel tambm de seu corpo) nos acessvel. O que permite tal acontecimento exatamente o fato de que ambos os corpos partilham o mesmo mundo ao qual pertencem, antes mesmo de qualquer cogitao sobre ele:

    A outra conscincia s pode ser deduzida se as expres-ses emocionais de outrem e as minhas so comparadas e identificadas, e se so reconhecidas correlaes pre-cisas entre minha mmica e meus fatos psquicos. Ora, a percepo de outrem precede e torna possveis tais constataes, estas no so constitutivas daquela (Merleau-Ponty, 1999, p.471).

    Embora o sentido da viso se oriente a uma estrutura fsi-ca (corpo), ela permite que, pelo influxo da conscincia, sempre inerente ao mundo (onde nos enraizamos pelo corpo), sejam des-velados eventos de ordem subjetiva, que os meios investigativos das cincias biolgicas deixam escapar, pois tais eventos no se esgotam em seus substratos anatomo-fisiolgicos.

    O fenmeno do olhar, que precede a aproximao de algum e a subseqente relao eletiva, tem, no exemplo do espao prisional uma comprovao simples e precisa porque permite expor a dimen-so scio-histrica que permeia nossa apreenso do espao.

    A introduo de um cidado no ambiente da priso represen-ta o deslocamento de um espao social que o definia como cidado para outro que o afirmar como delinqente ou transgressor.

    De acordo com as anlises precedentes podemos afastar a ingnua concluso de que a mera troca de espao fsico resultou na mudana comportamental. Este exemplo demonstra claramen-te o fato de que existe uma construo relacional (ou social) do espao, e os concomitantes efeitos subjetivos da resultantes. A imbricao destes componentes tamanha que torna difcil de-terminar uma ordem causal. Pode-se afirmar, to somente, que a mudana de tratamento experimentado na priso leva o cidado

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    a reintegrar sua conduta quele espao social, onde ele no tem seus atributos de cidado reconhecidos e, portanto, no pode mais agir como tal:

    O fato que nosso homem era tratado por pessoas importantes que o rodeavam como um homem res-ponsvel, digno, obsequioso e de gosto apurado. Conseqentemente, ele podia ser tudo isso. Agora, as paredes da priso o separam das pessoas cujo reconhe-cimento possibilitava a demonstrao dessas qualidades (Berger, 1988, p.114. Grifo do autor).

    Percebe-se, ento, que no o espao prisional per si que determina tais comportamentos mas, sobretudo, o modo como aquele espao significado pelas relaes ali estabelecidas.

    A importncia do olhar para nosso tema pode ainda ser demonstrada quando o abordamos em sua relao com a arte, considerada um termmetro do humano, apontando acontecimen-tos em curso e fornecendo balizamentos crticos em relao a ele. Parece oportuno citar o trabalho de Berger (1999), pela forma clara e precisa como ele, ao tratar do modo de olhar a arte, explicita esta relao entre um quadro e o mundo em que foi concebido, entre o artista e seu contexto vivido, entre espao e subjetividade. Ao olhar uma imagem como obra de arte, defende ele, nosso olhar afetado por premissas aprendidas sobre a arte, pois o mundo est repleto de suposies sobre beleza, verdade, gnio, civilizao, progresso etc., dado que os objetos aos quais a conscincia se dirige emer-gem das associaes construdas pelas percepes do sujeito.

    De acordo com esta perspectiva, o espao jamais apre-endido como simples paisagem. De acordo com Santos (2002), na construo desenvolvida na interao do homem com o meio, marcada pela dimenso temporal (histrica) que o espao deve ser estudado. Estamos, portanto, diante de dois processos: um, de na-tureza espacial, e outro, temporal. Isto quer dizer que cada relao espao-temporal corresponde a uma diferente forma de pensar, compreender e transformar a vida. Uma evidncia disto encon-trada nos conflitos entre grupos tnicos, que tm suas divergncias materializadas em disputas espaciais. A poro espacial em dispu-

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    ta, antes do conflito, era uma extenso espacial com delimitaes exclusivamente naturais, como os rios e as montanhas. Mas, a partir dos choques de diferentes valores e interesses (aspectos subjetivos), o territrio (componente supostamente objetivo) divide-se, de tal maneira que vlido afirmar que os limites formados no so fatos espaciais com efeitos sociolgicos, mas um acontecimento socio-lgico com uma forma espacial (Simmel, 1977, p. 652).

    Decorre de tais anlises que a compreenso do espao exige que se observe, de incio, a sua forma fsica, e que decompo-nhamos as determinaes materiais da paisagem, reconstituindo o percurso de sua constituio, apoiando-se no que o prprio fen-meno (espao) apresenta, pois do interior mesmo do fenmeno que se abre um caminho em direo ao que o ultrapassa, ao que o vincula a outra coisa, a outros fenmenos (Ladrire, 1978, p.28). Mais uma vez cabe ressaltar que paisagem no pode ser con-fundida com espao. Milton Santos (2002) lembra que no so sinnimos: A paisagem o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranas que representam as sucessivas relaes localizadas entre homem e natureza. O espao so essas formas mais a vida que as anima (Santos, 2002, p. 103). O espao, portanto, sempre presente, uma situao nica cujo carter lem-bra um palimpsesto, uma reconstruo contnua com uma matriz sobre a qual novas aes reescrevero sua prpria histria.

    Se a nossa subjetividade atravessada por valores que podem se transformar permanentemente, o espao, como relao constituda nesta tenso sujeito-objeto, tambm passvel dessas modificaes, deixando rugosidades5 neste percurso, sinais que o tempo demarca de forma permanente e que so sedimentos de aes humanas, retidas na inrcia das coisas. E eis que a fuso es-pao-subjetividade novamente se mostra, lembrando-nos as belas palavras de Merleau-Ponty (1999): no objeto cultural, eu sinto, sob um vu de anonimato, a presena prxima de outrem (p.466).

    Ao colocar seus personagens entre quatro paredes, Sartre cria uma situao que nos obriga a pensar na coexistncia sem fim que nenhuma ao pode suprimir. Apesar da inrcia do ce-nrio, as cenas no ocorrem sobre uma paisagem esttica, pois a convivncia das personagens enche o palco de vida, com os

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    mais diversos sentimentos. Violentados pela conscincia dos ou-tros dois, cada um dos trs personagens esto desarmados sob o olhar alheio, esto mortos em vida, pois renegam sua prpria liberdade e tentam negar a de seus semelhantes (Jeanson, 1987, p.22). Seu espao o presente de eterno de uma sala que se des-cortina pelo olhar dos outros condenados. Alis, nisto consiste a danao eterna: permanecerem assim, to perto um do outro, que cria o mximo de isolamento e nenhuma fuga possvel (Campbell, 1946, p.130). No h futuro ali que no seja o de carras-co e vtima num constante transitar entre um e outro; eis o inferno na concepo sartriana: pela conscincia do outro, no sentido do olhar, que cada um atacado em sua prpria conscincia. Na opinio de Jeanson (1987)

    o que existe de infernal neste olhar que ele no conse-gue determinar o sentido da vida, que est a ponto de se acabar; o valor final das condutas passadas fica em suspenso definitivamente. A fora desse ltimo julga-mento que ele impossvel, e esta impossibilidade no seno a face objetiva de nossa sbita impotncia em dar significado nossa vida, projetando-a em direo a um certo futuro, engajando-a num empreendimento de-finido (Jeanson, 1987, p.26 nota).

    Como esto mortos, a possibilidade de projeto no existe mais para eles, tarde demais. Estar num espao mortal, ento, no ser mais nada para si prprio e ter somente o ponto de vista do outro sobre si mesmo. No podemos nos enganar com a fanta-siosa hiptese de que traz-los de volta vida seja a soluo. Em outra pea, Os dados esto lanados (1995), publicada em 1947, Sartre indica que esta soluo, mesmo criando a possibilidade de uma dimenso histrica para seus personagens, em que a consci-ncia possa projetar um futuro em relao a essa dimenso, o jogo j havia sido feito, os dados j estavam lanados. Seria necessrio refazer o jogo, criando um novo espao onde a vida seja recupera-da como possibilidade, o que significa afirmar que a nova jogada representa a constituio de um novo projeto existencial, de modo que o olhar do outro possa refletir outra coisa sobre si. A ampliao do espao de nossa existncia corresponde realizao da subje-tividade enquanto liberdade de expressar-se na sociabilidade:

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    Estamos sempre tentando fazer com que as pessoas nos olhem de uma maneira particular, enquanto elas esto sempre se recusando a corresponder aos nossos desejos e, ao contrrio, tentam fazer com que ns as olhemos da maneira como elas querem. (...) O olhar da outra pessoa somente captado de maneira satisfatria enquanto ex-presso clara e visvel da liberdade dessa pessoa, e uma vez captado no tem mais, em conseqncia, nenhuma capacidade de nos satisfazer (Thody, 1974, p.56, 57-8).

    Cranston (1966), mesmo compartilhando uma srie das idias sartrianas, tem outra viso sobre a teoria das relaes hu-manas. Para ele, mesmo que nossas relaes estejam revestidas do que foi descrito por Sartre em sua pea, a experincia comum da humanidade prova a possibilidade dessas espcies de rela-es ditas impossveis por Sartre, a saber: amizade, cooperao, afeio e outros gneros de amor que no o desejo de a pessoa fazer-se amada (p.112-3). Para isso, necessrio admitir que, embora esteja repleto de limitaes e talvez por isso mesmo o espao lugar, no de dominao, mas de liberdade. Mas para exerc-la deve-se aceitar o desafio de lidar com a presena de ou-trem, no como ameaa pretenso de realizarmos integralmente nossa liberdade como se isso fosse possvel mas como convi-te inveno de novos desenhos de convivncia.

    Consideraes finaisNossas idias, aqui expressas, tm a motivao de um ques-

    tionamento contnuo sobre nosso atuar no mundo. Neste sentido, esta reflexo sobre espao e subjetividade, tendo a fenomenologia como ponto de apoio, tem a pretenso da abertura, a indicao de um caminho possvel para tentarmos entender nossa relao com o mundo e, talvez, entender o que ainda nos permite manter nossos laos afetivos e sociais por um tempo mais longo, diante da fragili-dade e fragmentao com que eles se apresentam na atualidade.

    Se a administrao moderna do espao objetivou excluir as singularidades para submeter as condutas aos interesses de mercado emergentes, a modificao de condies similares exi-gem uma nova modalidade de apropriao do espao. Se Sartre

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    mostra um espao dominado pelo conflito, isso no significa que o espao seja o lugar apenas disso. Quando seus personagens se perceberam carrascos de si mesmos, entenderam o que significava aquele espao: no simplesmente o lugar, a paisagem objeti-va da sala com a lareira e as poltronas, mas sim o lugar subjetivo que o outro ocupa na nossa existncia. A alteridade enfronhada na nossa subjetividade, o espao como mediador entre as sub-jetividades, como transformador da subjetividade medida que homem-e-mundo esto indissoluvelmente ligados, em que sujeito-e-objeto se constituem continuamente, mas de cuja objetividade no se pode escapar, pois ela tambm um dado deste espao-subjetividade. Neste sentido, o espao o resultado e a condio da totalidade das relaes sociais, como dissemos anteriormen-te. Ele no um lugar assignificante nem indiferenciado, ele um atravessamento de modos de relao e de sociabilidade, al-guns deles pr-determinados, mas a possibilidade est sempre presente como resistncia e no-aceitao do que dado. O es-pao, portanto, no pode ser apreendido como paisagem, pois ele marcado pela dimenso social e temporal. Esta noo implica, claramente, que a natureza do espao atravessada pela subje-tividade, atravessada por nossos significados, afetos, por aquilo que construmos dele/nele.

    Notas1. Giddens (1991) define desencaixe como o deslocamento

    das relaes sociais de contextos locais de interao e sua reestruturao atravs de extenses indefinidas de tempo-espao (p.29)

    2. Este saber diz respeito a um conhecimento natural, eminentemente vivencial, circunscrito convenincia da lida cotidiana. um saber que se assenta na relao. Por exemplo: sei da minha cadeira enquanto conforto para a tarefa de redigir meu trabalho.

    3. Pode ser entendida como uma espcie de afinao em determinada lida, como nas expresses estou por dentro do assunto, da situao... (cf. Heidegger, 1981, p.16)

    4. Este conceito explorado no livro Crtica da Razo Dialtica

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    (2002) e designa tudo o que produzido pelo trabalho ou pela ao do homem que se fixa na inrcia da matria. a sedimentao das aes passadas concretizadas na matria trabalhada marcada pela prxis dos outros, isto , campo material ou imaterial j constitudo por outros homens, por isto prtico, e inerte porque esta prxis constituda de puro passado (Sartre, 2002, p. 294 e sgts.; Noudelmann e Philippe, 2004, p.390-91; Cabestan e Tomes, 2001, p. 45-46).

    5. Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espao construdo, paisagem, o que resta do processo de supresso, acumulao, superposio, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares (Santos, 2002, p.140).

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    Recebido em 12 de dezembro de 2007Aceito em 9 de julho de 2008Revisado em 18 de agosto de 2008