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RELATÓRIO DE ATIVIDADES E PESQUISA REALIZADAS EM ESTÁGIO PÓS-DOUTORAL NO EXTERIOR Luiz Fernando da Silva UNESP MARÇO DE 2009

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RELATÓRIO DE ATIVIDADES E PESQUISA

REALIZADAS EM ESTÁGIO PÓS-DOUTORAL NO EXTERIOR

Luiz Fernando da Silva

UNESP

MARÇO DE 2009

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Índice

I. Introdução ....................................................................................................... 03

II. Relação de trabalhos e produções decorrentes da pesquisa ........................ 06

III. Participação em seminários e eventos acadêmicos e não acadêmicos

relacionados à investigação ................................................................................... 08

IV. Fontes e locais de desenvolvimento da pesquisa ......................................... 15

V. Avaliação global do trabalho: as dificuldades e facilidades encontradas....... 17

VI. Os resultados da pesquisa............................................................................. 21

VII. Para a construção de uma chave teórica sobre a nova configuração

política sul-americana .................................................................................... 97

VIII. Considerações finais...................................................................................... 109

IX. Bibliografia ................................................................................................... 111

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I. Introdução

No presente relatório apresentamos as atividades e os resultados da

investigação realizados no período entre março de 2008 e fevereiro de 2009 em

Estágio Pós-Doutoral junto à Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de

Buenos Aires (UBA), com a colaboração da Profa. Doutora Mabel Twaites Rey,

titular da cadeira de Ciência Política da UBA, e vinculada ao Centro de Estudos

Latino-Americanos dessa universidade. No período entre julho de 2008 e fevereiro

de 2009, obtivemos uma bolsa de investigação da Pró-Reitoria de Pesquisa

(PROPe-UNESP), a qual nos possibilitou uma maior tranqüilidade no

desenvolvimento do trabalho. No mês de julho daquele ano, por sua vez, fomos

comunicados de que havia sido aprovada uma bolsa da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) para o nosso projeto de

investigação pós-doutoral (processo BEX 1242/08-3), mas tivemos que declinar em

razão dos trâmites que já haviam ocorrido junto a PROPe.

O período do estágio foi de enorme importância para estabelecer diálogo com

pesquisadores argentinos por meio dos seminários do grupo de pesquisa Estado e

América Latina, coordenado pela professora Twaites Rey. Também pudemos

desenvolver uma intensa pesquisa de campo por meio do acompanhamento de

mobilizações sociais ocorridas, entrevistas, conversas informais com militantes

políticos e sociais e levantamento bibliográfico imprescindível para a investigação.

Além disso, foi muito importante estabelecer uma relação permanente com outro

povo, sua língua, cultura e tradição política, o que possibilitou-me inclusive refletir

como brasileiro sobre a nossa própria história política e cultural.

Ainda nessa introdução é necessário retomar os objetivos que nos

propusemos e o objeto de investigação no qual está situada nossa principal

problematização. A investigação realizada na Argentina visou concentrar

informações sobre a relação do Estado com os movimentos sociais, no período do

Governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e do primeiro ano da gestão presidencial

de Cristina Fernandez Kirchner. Mediando essa questão central, nosso objetivo

também se orientou para mapear as atuais políticas públicas nesse país,

especialmente aquelas direcionadas para a distribuição de renda aos setores mais

pobres da população, como também verificar os setores de oposição ao governo.

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Para compreendermos a constituição do kirchnerismo e sua relação com as forças

sociais de base popular, tivemos que concentrar nossa atenção na situação

política argentina que se configurou a partir de dezembro de 2001, com os levantes

populares e que trouxe como resultado a eleição para presidência da República, em

2003, de Néstor Kirchner. Através da coleta de informações por meio de entrevistas,

periódicos, acompanhamento de manifestações, conversas informais com distintos

agrupamentos sociais e políticos e levantamento bibliográfico, a pesquisa procurou

apreender os elementos principais que configuraram os governos argentinos no

período entre 2003 e 2008.

Essa pesquisa objetivou concentrar informações e análise teórica que nos

permitem avançar em outra investigação acadêmica1 sobre a nova configuração

política que se desenvolve em vários países sul-americanos. Nessa investigação

global cabe analisar o a relação entre os sujeitos sociais, de base operária e

popular, que aqui entendemos como classes subalternas, e os projetos políticos

que hegemonizaram essas bases sociais por meio dos movimentos sociais e

partidos de esquerda. Em outras palavras, o objetivo central dessa investigação

global é compreender como se constitui e se reproduz a hegemonia política desses

governos, tendo como referência os setores da população que tiveram as suas

condições econômicas e sociais deterioradas, em meio ao período de ajustes

estruturais neoliberais. De que maneira esses projetos políticos e econômicos

constituíram e mantêm a hegemonia política junto a diversos setores das classes

subalternas? De maneira específica queremos evidenciar os seguintes objetivos: a)

analisar a base de sustentação política, em termos de classes sociais, movimentos

sociais e partidos; b) compreender a relação desse governo com as políticas de

ajustes estruturais neoliberais (políticas “macroeconômicas”); c) verificar as

propostas de redução da pobreza de suas populações e de desenvolvimento

econômico; d) mapear os setores oposicionistas desse governo e suas críticas e

propostas.

A pesquisa de campo realizada na Argentina possibilitou-nos avançar na

compreensão dos objetivos assinalados acima. Especialmente nos propiciou

problematizar mais detalhadamente como desenvolver uma análise comparativa

1 A presente investigação faz parte de uma pesquisa maior, intitulada A nova configuração política na América

Latina. Uma análise comparativa entre o Governo Lula e as experiências recentes na Venezuela e Argentina.

Este é um projeto de pesquisa apresentado à Comissão Permanente de Avaliação para realização no período

entre 01/01/2007 e 31/12/2009 - FAAC – UNESP (São Paulo – Brasil).

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entre os países da região, retendo suas especificidades históricas e estruturais

(políticas, sociais e culturais). Nesse sentido, o conhecimento in lócus com uma

relativa permanência no país permitiu ultrapassar o olhar e as impressões mais

imediatas e superficiais da análise sócio-política. Somente dessa maneira é que por

dentro das particularidades podemos apreender os traços constitutivos que

condicionam e se imbricam na nova configuração política na região.

Uma diferença fundamental existe entre o governo de Néstor Kirchner (2003-

2007) e da atual presidente Cristina Fernandez em relação aos governos de Hugo

Chávez e Luís Inácio Lula da Silva. O governo argentino constituiu-se sobre um

terreno político e social que guardou as marcas da crise do regime político que

colapsou o país entre 2001-2002. Em razão disso, como verificaremos

detalhadamente no item VI deste relatório, Kirchner ganha as eleições presidenciais

com somente 22% dos votos e com um índice de abstenção eleitoral dos maiores

na história do país. Além disso, seu governo constituiu-se em meio a uma

descrença popular generalizada em torno dos espaços institucionais democrático-

liberais e com uma contínua mobilização dos movimentos sociais urbanos,

especialmente piqueteiros, com suas reivindicações pontuais sobre planos sociais e

de emprego. A isso se somava o grau profundo de miséria e desemprego no país,

inclusive atingindo severamente setores das classes médias.

Esse cenário político é o que permitiu a um desconhecido ex-governador da

pequena província Santa Cruz, que respaldou a privatização das empresas de

petróleo (YPF), lograr atingir a Presidência da República.

A mediação política e organizativa dessa alternativa de governo em boa

medida, ao menos inicialmente, passou pela estrutura política de Eduardo Duhalde,

ex-governador de Buenos Aires, então senador da República e presidente do

Partido Justicialista, e que se tornara presidente (interino) da República entre

janeiro de 2002 e março de 2003, em um acordo no Senado da República, em

razão da queda do ex-presidente Fernando De La Rua. Duhalde, em 20 de

dezembro de 2001. Em seu curto mandato, Duhalde conseguiu materializar uma

aliança instável, mas necessária entre as frações burguesas para impulsionar a

economia argentina. Foram dois casos excepcionais de medidas: a desvalorização

do peso em relação ao dólar (3 pesos para 1 dólar) que trouxe vantagens para as

frações agro- exportadoras; e a retenção de exportações, dentro do direito de

exportações, que possibilitou ao governo reter uma parte do valor obtido com as

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exportações. No plano social é necessário evidenciar que houve uma ação estatal

nesse período, envolvendo a Igreja Católica e Banco Mundial, em torno de planos

sociais contra o desemprego.

Uma rápida comparação com as experiências da Venezuela, na vitória de

Hugo Chávez em 1998, e com o Brasil, na vitória de Lula em 2002, permite-nos

considerar que, embora dentro do mesmo fenômeno de nova configuração política,

as três experiências guardam traços particulares em sua dinâmica política e social.

Nas próximas páginas detalhamos as atividades realizadas, dificuldades e

facilidades encontradas e principalmente os resultados da pesquisa.

II. Relação de trabalhos e produções decorrentes da pesquisa

No período de 11 meses que estivemos no país, em Buenos Aires

precisamente, produzimos 01 relatório inicial entregue em fevereiro de 2009 para a

professora Mabel Twaites Rey, 05 artigos sobre a investigação, que se encontram

em fase de revisão e envio para revistas latino-americanas para possível

publicação e para apresentação de trabalho no IV Congresso Latino-Americano de

Sociologia, que ocorrerá em Argentina, em agosto de 2009. Foram realizadas 12

entrevistas com militantes, das quais 09 foram transcritas e as outras 03

encontram-se em fita cassete em processo de degravação.

Além dessa produção, no período desenvolvi um sítio eletrônico

(www.latinoamerica.phl/phl82), inicialmente como uma plataforma de banco de

dados virtual, com o objetivo de disponibilizar ao público acadêmico e não

acadêmico os resultados da produção desse período – relatórios, artigos,

entrevistas transcritas, fotos e películas referentes à pesquisa de campo -, como

também disponibilizar materiais de investigação de pesquisadores e entidades

latino-americanas (CEPAL, CLACSO, FLACSO, entre outras). Essa página já se

encontra no ar e a partir de abril estará acessível ao público. A partir de julho, o

mais tardar, terá um funcionamento mais dinâmico, com atualizações periódicas.

Esse sítio eletrônico encontra-se no marco do grupo de pesquisa América Latina e

Marx: movimentos sociais, Estado e cultura que atualmente se encontra em

processo de cadastramento junto ao CNPq e que é também resultado de nosso

período de estágio pós-doutoral. Esse grupo de investigação envolve pesquisadores

das áreas de sociologia, comunicação e cultura e estudantes de graduação.

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Assim podemos sintetizar os trabalhos produzidos:

1. Relatório (parcial) de resultados da investigação realizada entregue para a

professora Dra. Mabel Twaistes Rey.

2. Sítio e banco de dados: América Latina e Marx: Movimentos Sociais, Estado

e Cultura. Endereço: www.latinoamerica.phl/phl82. Nesse endereço

encontram-se todos os materiais da pesquisa que foram coletados e

produzidos na Argentina. Nesse período, esse sítio opera como banco de

dados, mas nos próximos meses ganhará velocidade e dinâmica enquanto

página eletrônica.

3. Constituição de Grupo de Pesquisa América Latina e Marx: Movimentos

sociais, Estado e Cultura. Esse grupo encontra-se em processo de

cadastramento no CNPq e agrega investigadores e estudantes de graduação

das áreas de sociologia, comunicação e cultura.

4. Artigos elaborados (estão em revisão) para envio para revistas e participação

em congressos.

5. Entrevistas realizadas: Hugo Yasky, secretário-geral da Central dos

Trabalhadores Argentinos (CTA); Cláudio Marin, adjunto da Secretaria-Geral

do Sindicato dos Telefônicos de Buenos Aires e região; Isaac Roodnik,

dirigente histórico do Movimiento Libres del Sur/Movimiento Barrio de Pie;

Juan Castillo, militante do antigo MAS;; Ricardo Papoeuzi, dirigente da

Frente Operária Socialista (FOS); Léo, dirigente da juventude do Movimento

Barrio de Pie; Mercedes Gonzales (Cista), ex-militante do Movimento Barrio

de Pie; Olga Pilares, ex militante de movimentos populares em Lloma de

Zamora; Mabel Twistes Rey, docente da UBA; Graciela Bressano, professora

de Psicologia da UBA, ex- militante do Movimento para o Socialismo (MAS);

02 operárias da fábrica têxtil Brukman, empresa falida em 2001 e que foi

ocupada por trabalhadores e atualmente é autogestionada.

6. O presente relatório entre para a Pró-Reitoria de Pesquisa – PROPe

UNESP.

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III. Participação em seminários e outros eventos acadêmicos e não

acadêmicos

A minha participação em eventos acadêmicos e não acadêmicos foi orientada

da seguinte maneira: a) seminários do grupo de pesquisa Estado na América

Latina; b) participação em dois eventos internacionais, na Biblioteca Nacional e na

PUC – Buenos Aires; c) eventos não acadêmicos, vinculados diretamente aos

objetivos de minha investigação, que se referem às manifestações, marchas e

encontros de trabalhadores e movimentos sociais.

1. Seminários do grupo Estado na América Latina

A profa. Dra. Mabel Twaites Rey, titular da Cadeira de Ciências Políticas da

Faculdade de Ciências Sociais da UBA, mantém o grupo de pesquisa e estudo

intitulado Estado na América Latina. Esse grupo está ligado ao Instituto Latino-

Americano da Faculdade de Ciências Sociais da UBA e suas investigações são

financiadas pelo CONICET (Conselho Nacional de Investigação Científica e

Tecnológica). Uma das atividades centrais do grupo, ao lado das pesquisas

realizadas pelos participantes, são os seminários mensais, que ocorreram entre

março e dezembro de 2008, dos quais participei inclusive como Seminarista do

tema sobre Teoria da Dependência. A média de participação nos seminários foi de

25 pessoas, entre os quais os professores da cátedra de Mabel Twaites Rey , e

estudantes de pós-graduação (mestrado e doutorado), além de alguns estudantes

de graduação.

Na seqüência dos seminários, assim foram desenvolvidos:

1. Desarrollo, dependência e estado em el debate latinoamericano actual. Exposição: Mabel Twistes Rey . (05/04)

2. Estado y capital en América Latina. Un balance de las concepciones

respecto del estado en la teoría de la dependencia y en las teorías desarrollistas de los sesenta y setenta. Responsável: Rodolfo Gómez (10/05)

3. O Estado boliviano. Exposição de pesquisa sobre a constituição do

Estado a partir da ótica de um teórico boliviano. (07/06)

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4. Teoria da Dependência e o pensamento de Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini. . Responsável : Luiz Fernando da Silva. (05/07)

5. A questão da dependência e da integração latino-americana no

pensamento de Theotônio dos Santos. Responsável: José Castillo. (07/08)

6. La configuración de Venezuela y los movimientos sociales em

actualidade. Responsável: Juan Sanmartino (02/10)

7. José Aricó e a construção do marxismo na América Latina. Responsável: Mabel Twistes Rey. (06/12)

8. O Populismo na Argentina. Reflexões a partir de Ernest Laclau e

Beatriz Rajland. Responsável: Mabel Twistes Rey. (11/12)

Esses seminários ocorriam no primeiro sábado de cada mês, no período da

tarde, entre as 14h e 19h. Eles foram de grande importância para mim em relação à

atualização de uma bibliografia latino-americana, que eu tinha pouco conhecimento

ou acesso, como o caso de Ernest Laclau, Beatriz Rajland, Edgar Lander e outros.

Anterior a cada encontro, dois bolsistas da professora Mabel preparavam os

materiais selecionados, entravam em contato para disponibilizá-los e também

deixavam em pastas na Faculdade de Ciências Sociais e em alguns casos me

entregavam pessoalmente. Em cada tema de seminário envolvia cerca de 06 textos

(livros e artigos). Mas não foi somente esse o ponto positivo. Os seminários

permitiram entrar em contato com um nível de discussão que considerei boa, uma

vez que as discussões teóricas me mostravam determinados ângulos sobre a nova

configuração política sul-americana que eu não havia anteriormente pensado. Por

exemplo, a discussão do Estado pluriétnico presente no caso boliviano de Evo

Morales ou a compreensão do populismo não como determinações econômicas

mas sim por sua discursividade e representação. Também me foi importante o

reencontro com autores como Nico Poulantzas e Ralph Miliband, uma vez que a

professora Mabel tem publicações sobre esses autores e as intensas polêmicas

entre eles, a partir da década de 1970. A professora atualmente realiza uma

investigação sobre as influência poulantziana na América Latina, inclusive nesse

ano de 2008 realizou duas viagens curtas para entrevistar pessoas que foram do

convívio acadêmico e familiar de Poulantzas, na Itália e Inglaterra. Essa

perspectiva me possibilitou retomar alguns conceitos desse autor, como bloco no

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poder, frações de classe, hegemonia entre outros, especialmente depois de uma

entrevista que realizei com a prof. Mabel, na qual pude discutir a questão do

estruturalismo do autor e o seu pós-estruturalismo, quando na década de 1970, se

distancia das influências althusserianas. Twaites Rey está interessada no

Poulantzas que mira o Estado como condensação de conflitos e interesses sociais e

ordenador da lógica de produção e reprodução, e não como aparelho das classes

dominantes. Nesse sentido termina por se desfazer do conceito de classes sociais e

ressaltando principalmente a questão dos novos movimentos sociais na relação

com o Estado, no caso latino-americano.

O ponto que considerei negativo nos seminários refere-se a um viés teoricista,

que se por um lado é importante, no sentido de conservar o aprofundamento

conceitual e metodológico, por outro secundariza as dinâmicas e processos, os

fatos e acontecimentos ocorrendo e suas relações histórico-estruturais. Há uma

resistência à análise dos acontecimentos em curso, considerada tal forma de

abordagem como historicista. Nesse sentido, o atual quadro político latino-

americano, sobre o Estado e os movimentos sociais, é analisado somente na

perspectiva do pensamento social (acadêmico) latino-americano já produzido. Mas

não como instrumento teórico-metodológico articulado ao curso dos

acontecimentos. Essa perspectiva termina por subestimar que a atual configuração

política na região é um processo em andamento, crivado de contradições, na qual a

dimensão de continuidade e ruptura necessitam apresentar-se continuadamente na

análise, inclusive destacando a rearticulação dos sujeitos sociais e políticos

presentes nesse cenário. Ao nosso entender, essa predisposição analítica ocorre

em razão de subestimar a discussão sobre os fundamentos teórico-metodológicos e

epistemológicos que necessitariam explicitar na análise sobre o cenário atual da

região.

A partir desses seminários também foi possível verificar o quanto a

intelectualidade argentina encontra-se referenciada no debate sobre determinados

problemas latino-americanos, especialmente o caso da integração regional, e uma

atenção especial é destacada às ações políticas e econômicas do governo Hugo

Chavez e de Luis Inácio Lula da Silva. Não são poucas as vezes que esses temas

ganharam maior evidência nos principais diários, como La nación, Clarín, Página

12, Crítica de la Argentina, El economista e outros. Essa percepção também se

expressa na produção editorial argentina, onde uma parte de suas publicações

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voltam-se para os temas acima apontados, por meio de traduções e publicações de

investigações sociológicas e econômicas, ou por meio de investigações

jornalísticas. Assim também se apresenta nos telejornais.

2. Outras participações acadêmicas

Também participei de duas atividades com caráter internacional ocorridas em

Buenos Aires: Anuário Internacional de Políticas, realizado na Biblioteca Nacional; e

na Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires, Nuevos Escenários en el

Sistema de Protección para Jubilados.

- Anuário de política internacional. Esse foi um evento ocorreu em 19 de novembro,

na Biblioteca Nacional, e envolveu pesquisadores argentinos e norte-americanos.

Esse evento ocorre todos os anos e tem como objetivo trazer um quadro

internacional, especialmente latino-americano, das conjunturas. Assim foram a

disposição do Encontro. Mesa 1. A crise financeira na política internacional (Fabian

Calle)/A seguridade alimentar, a água doce e a biodiversidad: crises entrelaçadas

(Robert Bloch)/Futuro da Política exterior dos EEUU (Anabella Busso). Mesa 2. A

segurança internacional em tempos de crise (Khatchik DerGhougassian)/América

Latina no cenário internacional, a relação com os Estados Unidos (Robert

Russel).Mesa 3. Ásia: o futuro das potências emergentes (Juan Gabriel Tokatlian)/

África: o continente e seus conflitos atuais ( Sergio Cesarín)/Oriente médio: uma

região instável (Silvia Perazzo)/Europa (Félix Peña).Mesa 4. Segurança e defesa na

América Latina ( Mariano Bartolomé)/Política, economia e sociedade na América

Latina (Carlos Gervasion)A vitória eleitoral de Barak Obama e perspectivas pós-

eleitorais nos Estados Unidos (Scott Mainwaring).

- Nuevos Escenários en el Sistema de Protección para Jubilados. 28 de novembro

de 2008. Esse evento ocorreu no auditório da PUC – Buenos Aires. Também um

evento de caráter internacional, com a participação de especialistas desses países,

possibilitou realizar uma nítida avaliação sobre a questão da previdência social

como se desenvolve atualmente.

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3. Participações não acadêmicas em eventos sindicais e populares.

De acordo com minha proposta de investigação, um dos focos centrais

concentra-se na a relação dos movimentos sociais e partidos de esquerda com o

Estado. Por essa razão acompanhei as principais manifestações (atos públicos,

marchas e encontros) ocorridas em Buenos Aires. O meu eixo de pesquisa ao longo

da vida acadêmica sempre esteve enfocado nos movimentos sociais e partidos; no

entanto, me impressionou o grau de politização desses movimentos na Argentina,

especialmente em sua Capital. Durante minha estadia nesse país, praticamente não

houve uma semana em que não ocorresse algum tipo de manifestação ou protesto

social. Isso me permitiu coletar muita informação sobre composição dos

movimentos sociais e partidos, por meio de material fotográfico e películas, realizar

um bom levantamento de informações.

As mobilizações são as mais variadas em termos de composição social,

reivindicações, número de participantes e regiões geográficas do conurbano

bonaerense. Desde manifestações de calle (rua) composta por comerciantes, em

resposta a acontecimentos cotidianos, como assalto a estabelecimento comercial,

ao exemplo de comerciantes da Calle Maipu, na proximidade da Avenida de Maio,

que exigiam policiamento permanente contra os assaltos a estabelecimentos, até as

esparsas, continuadas e crescentes manifestações de moradores de barrios

(bairros) residenciais de classe média, como Palermo, Ricoleta e outros, contra os

crescentes assaltos, sequestros e assassinatos de moradores, e reivindicando o

aumento da segurança pública. Desde 2004, o tema da segurança pública foi se

tornando um tema central da classe média bonaerense, que tem ocorrido de

maneira pontual (por bairros), mas em crescente número. A crescente onda de

violência no país, que proporcionalmente à sua população é menor do que no

Brasil, é muito evidenciada pela mídia, especialmente quando ocorre com as

populações de classe média. A socióloga argentina Svampa (2006, 2007, 2008)

vem analisando as mudanças ocorridas nos contornos ideológicos desse setor

social, que tenderam para posições conservadoras, a partir de 2004. Nesse sentido,

a socióloga considera que a posição dos setores de classe média nos

acontecimentos de 2001 foi central, em decorrência do corralito financeiro que lhes

confiscou seus recursos bancários, e também porque essa classe se aliou aos

movimentos sociais piqueteiros em ações conjuntas. Com a retomada do

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crescimento econômico, essa classe começou a ver nos movimentos sociais dos

desocupados (piqueteiros) um dos principais problemas da violência que, por sua

vez, seria mantido pelo governo com os planos sociais, ao invés de realizar

investimentos nas áreas de segurança pública.

As manifestações que demarcarmos como importantes para acompanhar

foram aquelas que abarcaram conjuntos maiores de organizações sociais e políticas

e que permitissem verificar as força sociais e políticas, a partir do número de

participantes, composição social e palavras de ordem. Isso foi possível porque

nessas manifestações os diversos agrupamentos políticos e sociais organizavam-se

disciplinadamente em colunas, blocos claramente identificados com faixas e

bandeiras no início da coluna e em seu final, que ficavam nitidamente demarcados

de outras colunas nas marchas. De acordo com cada manifestação, anteriormente

ao dia do evento, são realizadas reuniões com as direções ou representantes de

cada agrupamento, onde são explicitadas as discussões políticas e razões da

manifestação, o número de participante que cada setor irá levar, como também são

sorteadas as localizações de cada agrupamento nas Marchas, se vai ser o primeiro,

segundo, terceiro... na ordem de disposição. O não cumprimento dessa seqüência,

quando por alguma razão um agrupamento quer ficar mais destacado que outro, já

levou a sérios conflitos entre militantes, em períodos anteriores, como nos

observavam alguns militantes.

Também acompanhei alguns encontros abertos de trabalhadores. Em especial

me interessou o acompanhamento de alguns eventos de debate que foram

promovidos pelo ELACT que é uma tentativa de constituição de pólo de

trabalhadores de base.

Alguns dos eventos que acompanhei:

-25 de abril. Nessa data ocorreu uma manifestação na Pça de Mayo com cerca de

60 mil pessoas, em apoio ao Governo de Cristina Fernandez Kirchner. Pela primeira

vez, tive a possibilidade de entrar em contato com os setores de movimentos

sociais populares e sindicais2, base de sustentação política de Kirchner. Também

2 Como estão registrados em fotos e películas, estiveram presentes nesse evento movimentos como Movimiento

Evita, Movimiento Libre de Sur, Movimiento Barrio de Pie, Central Geral dos Trabalhadores (CGT)... Nesse

dia, uma terça-feira, a burocrática CGT decretou que o comércio deveria fechar suas partos a partir das 13 horas

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foi possível caracterizar inicialmente a composição social desses movimentos, as

chamadas colunas de movimentação como vão percorrendo pela Avenida de Mayo,

em meio a estrondosos bumbos que se mantém ininterruptos. Nessa ocasião, a

presidente Cristina Fernandez realiza um discurso de enfrentamento com os setores

agrários, que possivelmente lhe custou muito.

-01 de maio de 2009. Ocorrido no auditório do Hotel Bahuen3, entre as 14 e 17

horas, nesse evento estiveram presentes cerca de 200 pessoas, especialmente

militantes sindicais que na Argentina se definem como de cunho antiburocrático,

com referência à sua contraposição à estrutura sindical burocrática que existe na

Argentina, e que eram de categorias profissionais como dos subte, portuários,

docentes de escolas públicas, bancários entre os que tive condições de identificar.

- !5 de junho. Encontro Latino Americano e Caribenho de Trabalhadores (ELACT).

Encontro esse realizado no Hotel Bauen consistiu em reunir especificamente a

categoria docente das escolas públicas, com o objetivo de se prepararem para um

encontro internacional de trabalhadores que ocorreu em junho de 2008 no Brasil,

envolvendo distintos trabalhadores de países da região.

- 27 de julho. Encontro contra a intervenção no Haiti. Esse encontro ocorreu na

sede do Sindicato dos Professores (Sindpro). No encontro que envolveu cerca de

100 pessoas foram discutidas, a partir de um documentário realizado por Esquivel e

outros observadores argentinos, as injustas condições de manutenção de forças

militares continentais no território haitiano.

-16 de agosto. Manifestação em favor do governo boliviano. Nessa manifestação

estiveram presentes distintas forças políticas e sociais contra os acontecimentos

que os grupos políticos de Santa Cruz (Bolívia) impunham ao governo Evo

Morales. Cerca de 5 mil pessoas seguiram pela Avenida Corrientes até a altura da

embaixada boliviana.

para que seus trabalhadores fossem à manifestação de apoio à Cristina Fernandez. Quando aproximava-se das

13 horas, praticamente todo o comércio da região central de Buenos Aires estava fechado. 3 O Hotel Bauen, localizado na calle Callo, quase no cruzamento com a avenida Corrientes, é uma das 150

empresas falidas que foram abandonadas por seus proprietários e ocupadas por trabalhadores que atualmente as

administram. O fenômeno de ocupação de empresas ocorreu no período agudo de crise econômica argentina, que

teve seu ápice entre 2001 e 2002. No Bauen se hospedam militantes sindicais e sociais de outros países, que

participam de encontros na Argentina, mas também pesquisadores, jornalistas que estão a trabalho no país. Além

disso, em razão de sua história, além desse hotel cobrar tarifas abaixo do preço da rede hoteleira bonaerense, em

seus auditórios e salas são realizados reuniões, encontros e congressos de trabalhadores, como também é um dos

lugares que direções de movimentos dão entrevistas coletivas sobre algum fato político.

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- 10 de setembro. Associação dos Portuários de Buenos Aires e Região. Cerca de

200 trabalhadores reúnem-se para discutir a constituição de um pólo sindical

antiburocrático. Um dos eventos mais emocionantes que observei na minha estadia

em Buenos Aires. Nessa associação, localizada na região do Retiro, próxima ao

cais do Porto, estavam presentes em sua maioria portuários, mas também

representações de trabalhadores de base do INDEC, Banco Província,

metalúrgicos, call center, docentes de escolas públicas.

- 12 de novembro de 2008. Marcha contra a fome e as perseguições. Essa Marcha

foi convocada pela Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA) e distintos

movimentos sociais. A entidade calcula que cerca de 50 mil pessoas reuniu-se na

Praça de Maio.

- 20 de dezembro de 2001. Manifestação pelos 08 anos dos levantes populares de

2001.Ocorrido na Praça de Mayo.

- Marcha contra a intervenção na Palestina. Três manifestações ocorridas entre

janeiro e fevereiro, de caráter multitudinário, contra a intervenção militar israelense

na Palestina. Na manifestação de 10 de janeiro participaram cerca de 20 mil

pessoas; nas outras duas estiveram cerca de 8 mil participantes.

IV. Fontes e locais de desenvolvimento da pesquisa

Os locais de desenvolvimento da pesquisa, além da participação nos

seminários que exigiram uma boa quantidade de horas para preparação (leitura e

sistematização) e o acompanhamento nos eventos não acadêmicos (vide item II),

foram os espaços de realização das entrevistas, de acordo com os militantes

entrevistados e seus vínculos a uma determinada instituição. Nesse sentido, os

espaços foram os mais variados: residência do entrevistado, sede do sindicato ou

central sindical, partidária ou de um movimento popular, ou mesmo no caso da

Chancelaria Argentina, ligada ao Ministério de Relações Exteriores.

Em outros casos, tive a oportunidade de conversar informalmente com o

militante, embora não se dispusesse a gravar entrevistas, por questões de

desconfiança ou de sua seguridade, ou outro problema qualquer. As conversas

informais foram, seguramente, em maior número do que as entrevistas

sistematizadas. Essas conversas informais ocorreram especialmente depois dos

eventos realizados, quando eu conseguia por um tempo curto, trabalhar algumas

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questões ou pelo menos marcar uma possibilidade de novamente encontrar para

uma conversa.

A infra-estrutura de espaços e biblioteca da Faculdade de Ciências Sociais da

UBA é péssima para o trabalho de pesquisa. Atualmente o grande problema dessa

faculdade e de seus cursos de pós-graduação refere-se à falta de espaço para

estudo, pesquisa e consulta à biblioteca.

Por essa razão, utilizei os espaços da Biblioteca do Congresso Nacional,

situado na Praça do Congresso. Embora a existência de uma impressionante

massa de materiais, documentos, jornais e livros de vários períodos históricos da

Argentina, e de um ambiente muito agradável, nesse espaço não pude encontrar os

materiais mais atualizados sobre a conjuntura política argentina dos últimos anos.

Muitos materiais sobre os levantes populares de 2001 e especialmente os estudos

sobre o governo Kirchner, com análises mais distanciadas do calor dos

acontecimentos, começaram a aparecer como resultado de teses e pesquisas

acadêmicas e jornalísticas, mais recentemente. Mesmo assim me permitiu verificar

periódicos do período 2001-2008.

Outro espaço interessante foi o da Biblioteca Nacional, com uma coleção

vastíssima também de obras, embora com uma morosidade no trato do material,

uma vez que a pesquisa é eletrônica, e ocorre uma espera para conseguir o

material.

O CEDIC – Centro de Documentação sobre a Esquerda e os Movimentos

Sociais foi um espaço interessante para eu poder verificar as diversas correntes

políticas e de esquerda. Nesse centro de documentação é provavelmente o maior

centro de documentação de movimentos sociais e de partidos de esquerda da

Argentina.

Mas o que mais me beneficiou foram as arrojadas livrarias da cidade.

Certamente três aspectos da cidade portenha marcam a memória de qualquer

estrangeiro: a expressiva construção e preservação arquitetônica, com seus prédios

datados da década de 1920 e 1930, majestosos prédios em estilo neoclássico que

alguns se atrevem a dizer que ultrapassam os edifícios europeus, mesmo os

franceses; as casas de café e restaurantes, que preservam a decoração de seus

interiores com aqueles móveis clássicos e, em muitos desses lugares, mantêm em

suas paredes retratos e decorações que nos chamam para aquelas décadas

passadas e cravam em sua identidade a referência de seu surgimento, tal como “eu

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tenho tradição”, “eu venho da década de 1930”, ou coisa assim; e as suas livrarias

são algo realmente inimaginável para um brasileiro; são muitas livrarias que se

estendem pela Corrientes (Lozada, Clacso do prédio do CCC, Gandhi, as três

Cuspide Livros, entre outras), as da turística Florida também deve-se mencionar

(Cuspide Livros, as duas Ateneo).

O mais interessante nessas casas de livros é que são poucos os títulos que se

repetem entre os estabelecimentos; em geral são títulos diferenciados que são

encontrados em destaque somente naquela específica livraria. As publicações são

muitas e de maneira continuada, como também a quantidade de editoras. Parece

um mercado em constante efervescência. Não existe uma só livraria nesse circuito

que se mantenha vazia por um só instante. São muitos os consumidores de livros,

são muitos os leitores de Buenos Aires para poder alimentar tamanha produção

editorial e livrarias.

Esses espaços, além de tudo, possibilitam a leitura da obra sentado em

confortáveis poltronas – é o caso da Ateneo, da Cuspide Livros, na Calle Florida.

Dessa maneira, logo que percebi que o principal canal para a atualização

bibliográfica era acompanhar o mercado livreiro, passei a freqüentar com certa

sistemática que o tempo me permitia. Ao lado disso, me possibilitou constituir uma

boa biblioteca com mais de 300 títulos sobre o tema estudado.

Os periódicos e a televisão. Em Buenos Aires são editados muitíssimos diários

(La nación, Página 12, Clarín, Crítica de Argentina, El cronista...), semanários

jornalísticos (El economista, Mirada del Sur, além das revistas mensais e semanais.

V. Avaliação global do trabalho: as dificuldades e facilidades encontradas

O período de 11 meses foi curto para a intensidade de atividades que me

propus realizar que foram de participação nos seminários, contatos e realização de

entrevistas, acompanhamento das manifestações, além de uma intensa atividade

de leituras referentes ao seminário e principalmente as leituras cotidianas dos

jornais e de uma bibliografia recente sobre o governo dos Kirchner, os movimentos

sociais, a recomposição da economia e a reconstituição dos trabalhadores no

cenário argentino. Em meio a isso, especialmente nos últimos dois meses

(dezembro, janeiro e início de fevereiro) elaborei um relatório parcial de minha

investigação para entregar para a professora Mabel Twaites Rey.

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A principal dificuldade deveu-se ao estabelecimento de contatos para

entrevistas e a entrada no universo dos movimentos sociais e sindicais. Isso me

tomou um grande tempo. Entrevistas marcadas e depois desmarcadas; níveis de

resistência e desconfiança; dificuldade dos entrevistados em compreender os

objetivos do trabalho (“para onde iriam tais informações”). Por outro lado, em

relação à burocracia sindical foram grandes as dificuldades de entrevista. Isso foi o

que me despendeu mais tempo para articulação e realização das entrevistas. Essa

foi uma dificuldade que permeou o trabalho e me permitiu um aperfeiçoamento nas

técnicas sociológicas de aproximação e contato (abordagem) e sua

operacionalização.

Uma segunda dificuldade foi compreender o complexo emaranhado dos

movimentos sociais e políticos de base popular argentinos. Pouco se aproxima com

o caso brasileiro. Existe na Argentina uma grande fragmentação política – aqui não

estou tratando de diversidade, multiplicidade, mas sim fragmentação política,

organizativa e ideológica -, seja na base política de apoio ao governo, como

também nos setores de oposição popular a esse governo. Um universo delimitador

desse campo é o que abstratamente se chama de peronismo, que existe por dentro

do Partido Justicialista e também por fora. Por outro lado, constituiu-se um

fragmentado campo socialista (PTS, PO, IS, CS, novo MAS, MST, FOS entre

outros) que tem sua atuação voltada para os sindicatos e movimento operário e que

procura constituir uma alternativa antiburocrática no campo sindical. Esse universo

ideológico e político é complexo para alguém que conhece a realidade brasileira.

Para os brasileiros, o populismo (e sua variante getulista) é algo de um

passado remoto, que nenhuma presença mantém-se no quadro político brasileiro.

Não é o caso da variante Peronista que ainda mantêm sua simbolização em torno

de Perón e Eva Perón, seu ideário nacional-popular e que constantemente é

ressaltado nos discursos de Néstor Kirchner, que desde julho de 2008, tornou-se

presidente do Partido Justicialista, como também da atual presidente Cristina

Kirchner. Além disso, nos movimentos sociais, como no caso do Movimento Evita e

suas ramificações e na Federação Terra e Moradia, liderada por Luis D‟Elia, são

constantemente chamadas as imagens de Peron e Evita, em cartazes e faixas nas

marchas e mobilizações sociais.

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Das facilidades

O estágio pós-doutoral na Argentina possibilitou-me entrar em contato com

uma discussão acadêmica sobre a América Latina, pouco comum na universidade

brasileira, e por outro lado aprofundar uma análise in lócus da atuação do governo

de Cristina Fernandez de Kirchner e da constituição do kirchnerismo, como também

das relações estabelecidas entre os movimentos sociais, centrais sindicais e

organizações de esquerda com o governo dos Kirchner, que pude desenvolver

através de entrevistas com algumas lideranças e militantes, em conversas

informais, e acompanhando as manifestações ocorridas no período (vide item III).

Em particular ressalto o grupo Estado e América Latina, do Instituto Latino-

Americano da UBA, o qual estive vinculado durante meu estágio.

O espaço editorial e mediático, por sua vez, reservam um interessante espaço

para os assuntos internacionais, destacando-se especialmente a América Latina,

sobretudo aqueles países que mais diretamente se destacam nas relações

comerciais com a Argentina, como no caso do Brasil, Venezuela, Chile, Bolívia e

Colômbia. Isso se tornou um grande facilitador no que se refere às informações e

bibliografia sobre a nova configuração política. Por outro lado, as atuais

experiências políticas e econômicas na Venezuela e no Brasil são acompanhadas

atentamente pelos meios intelectuais, jornalísticos, nos movimentos sociais e

organizações de esquerda. No caso brasileiro, me surpreendeu muitíssimo como

atualmente é considerado o desenvolvimento econômico do país nos últimos anos,

dentro do que de maneira generalizada é compreendido como uma retomada

econômica com um grau de estabilidade político-institucional. Em relação a

Venezuela, principalmente é ressaltada a experiência política considerada nova

para a esquerda política, no sentido de constituir novos espaços de participação

popular e de distribuição social, por meio dos espaços institucionais constitucionais.

Uma das explicações para essa permanente mirada para os assuntos latino-

americanos, como integração regional e experiências de participação popular dos

movimentos sociais no Estado, encontra-se nas próprias condições de relativo

isolamento internacional argentino, que poucas inversões financeiras européias e

norte-americanas existem no país, em decorrência das posições do governo

Kirchner. Desta maneira lhe resta principalmente como maior expectativa as

relações comerciais e financeiras na própria região. Mas também há que considerar

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a própria facilidade da língua castelhana dos países, o que possibilita um maior

fluxo de informações e análises..

Em relação à investigação sobre o caso argentino, nada mais interessante foi

o momento político no qual cheguei nesse país. O conflito político entre o governo

de Cristina Fernandez e as frações burguesas agro-exportadoras, que inicialmente

era somente uma reivindicação setorial dos agro-exportadores, terminou se

generalizando como um conflito nacional, porque envolveu tanto os setores

diretamente ligados à produção agrícola, como também as classes médias,

intelectualidade, movimentos sociais e organizações políticas. Esse conflito iniciado

em 13 de março, com a medida governamental da ampliação da retenção com a

Medida 125, teve uma duração de 120 dias, em meio a cortes de estradas,

manifestações públicas e pressões sobre o Congresso Nacional. A sociedade

argentina polarizou-se em torno desse conflito, entre os favoráveis e os contra o

aumento.

Naquela conjuntura política foram publicizadas pelos jornais as distintas

posições sobre a produção agro-exportadora argentina, o papel desse setor na

economia argentina e o estágio atual de sua concentração em cinco principais

grupos transnacionais. Mas também foi explicitada a atual composição social do

campo, os cultivos principais e a concentração da terra. Para termos uma idéia, não

havia uma nitidez na sociedade argentina sobre o papel que desempenhava esse

setor, desde a década de 1990, na economia argentina e o papel que teve para a

retomada do crescimento econômico argentino, no pós-2001.

Mas também foram evidenciadas as posições governamentais, sua dificuldade

em lidar com esses setores de oposição, e os destinos que eram dados aos

impostos e a retenções que até então vigoravam no setor. Amplia-se o debate

público sobre a utilização do caixa governamental nos subsídios deslocados para

determinados setores empresariais, chamados empresários K, e a maneira que tal

caixa servia para a constituição e permanência da base política governamental.

Ou seja, foram 04 meses que pudemos acompanhar de perto a intensa

mobilização ocorrida na sociedade argentina, em especial em Buenos Aires.

Esses acontecimentos foram determinantes no desgaste político

governamental, que terminou sendo derrotado nas ruas (em termo de mobilização

dos aliados ao setor-agro-exportador) como também uma derrota no Congresso

Nacional, onde o governo começou a perder base político-parlamentar até então

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aliados, e junto à opinião pública (de 56% de imagem favorável em janeiro de 2009,

Cristina Fernandez atualmente não passa de 20% de imagem favorável).

Esse período, da maneira como se apresentou abriu um espaço de

rearticulação da oposição parlamentar que vinha sofrendo sucessivas derrotas e

isolamento político, desde o governo de Néstor Kirchner. Mas em nossa

investigação o mais importante, dentro de nossa ótica de analisar a nova

configuração política sul-americana, propiciou observar de perto um momento novo

dentro desse quadro: o crescimento e rearticulação das oposições aos governos de

centro-esquerda, como ocorrendo na Venezuela, Bolívia e Argentina. Oposições

que têm uma semelhante base social centrada em setores de classe média e

frações da burguesia agro-exportadora, especialmente dinamizadas pelos setores

produtores de soja.

VI. Resultados da pesquisa

O termo nova configuração política condensa um período histórico na América

do Sul que tendencialmente se abriu em 1998, quando o atual presidente Hugo

Chávez (agora, em seu terceiro mandato) venceu as eleições presidenciais na

Venezuela. Em 2000, no Equador, Lúcio Gutierrez venceu as eleições com grande

base de apoio popular. Em 2003, o mesmo ocorre com Néstor Kirchner nas

eleições na Argentina. Luís Inácio Lula da Silva, em 2002 no Brasil, com amplo

apoio nos principais movimentos sociais brasileiros consegue interromper a

sucessão de mandatos do PSDB que tinha nítidos propósitos neoliberais. No

Uruguai, Tabaré Vasquez, em 2005, teve o respaldo de todas as forças políticas de

esquerda dentro da Frente Ampla, como também dos outros partidos e movimentos

sociais. O atual presidente Evo Morales, do Movimento para o Socialismo (MAS) e

principal dirigente dos “cocaleros”, venceu as eleições bolivianas. No Equador,

Rafael Correa, também em uma aliança Frente Popular, venceu em 2006.

Nesses governos verificamos o grande apoio popular que conquistaram antes

ou durante suas gestões, inclusive possibilitando-lhes serem reeleitos em seus

países. Com exceção do caso argentino, as candidaturas populares tiveram em

suas histórias uma relação orgânica com os movimentos sociais, sindicais ou de

partidos de esquerda, pois seus candidatos foram líderes desses movimentos e

tornaram-se ao longo da história referências políticas e ideológica para

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expressivos segmentos das classes subalternas4. Em outros termos podemos dizer

que tais lideranças expressaram/configuraram com seus respectivos grupos, em

meio às lutas sociais, projetos políticos e ideológicos para amplas massas

populares constituídas por assalariados urbanos e rurais, estudantes,

desempregados e subempregados, além de camadas da pequena burguesia

(camponeses, comerciantes, empresários) e até mesmo frações da burguesia local.

A idéia de um novo quadro político na região associa-se aos novos governos

de centro-esquerda, apoiados por movimentos sociais e partidos de base popular,

que em termos gerais se proporiam a constituir uma ação governamental de

distribuição de renda, criação de empregos e de incentivo à produção, articulado

com uma maior independência em relação à política externa norte-americana e

visando também a integração regional. Nesse sentido, o Estado retomaria um papel

de dinamizador (indutor) dessa nova realidade.Com essa perspectiva haveria um

um novo ciclo histórico que alteraria a perspectiva que fora seguida pelos governos

anteriores nesses países, que estiveram norteados por políticas de ajustes

estruturais.

A sociologia e a ciência política latino-americanas, áreas das Ciências Sociais

que mais têm se debruçado sobre esse tema, ainda não conseguiram adensar uma

teorização apropriada sobre o fenômeno em questão. A própria maneira, imprecisa

conceitualmente, de caracterizar esse fenômeno termina por limitá-lo a “um giro à

esquerda”, “novo tempo político”, “período pós-neoliberal”; ou, em outra ponta,

“neopopulismo” , “nacionalismo” etc. De uma maneira ou de outra, os autores que

trabalham com esse tema não deixam de abordar os efeitos sociais que o quadro

econômico dos ajustes estruturais deixou na região. Mas ainda ficam em aberto, na

análise desses novos governos, questões referentes ao regime político, às forças

sociais e políticas que determinam o Estado, a continuidade e/ou ruptura com o

passado recente etc., e principalmente o papel que os movimentos sociais aí têm.

O efeito dominó que se desenvolveu nesses anos com a ascensão eleitoral

desses novos governos de centro-esquerda, não é comparável a outro período

histórico, uma vez que esse quadro político e econômico na região não se restringe

a um par de países, mas sim se generalizou para um conjunto deles. Talvez o

período do chamado populismo latino-americano tenha sucedido também de

4 Aqui podemos citar como referências o atual presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, da

Bolívia, Evo Morales.

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maneira generalizada, e em outro contexto histórico-estrutural, com o surgimento de

governos com essas características no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, México,

Panamá, entre outros. Esses governos advêm de uma profunda crise econômica e

social decorrente da recessão mundial a partir de 1929, que impacta os setores

agro-exportadores latino-americanos, possibilitando o desenvolvimento de massas

populares urbanas e a constituição de um movimento trabalhista que terminou por

constituir uma base social daqueles governos, que tiveram sua principal marca no

papel que o Estado teve na economia, constituindo empresas estatais, regulando as

relações de trabalho, estabelecendo níveis de protecionismo do capital nacional e

fomentando a constituição de um modelo de industrialização substitutiva às

manufaturas internacionais. As experiências e extensão desse período histórico não

ocorreram de maneira hegemônica entre todos os países, mas mantiveram as

diretrizes principais que assinalamos.

Essa não foi, por sua vez, a situação que se sucedeu com a Revolução

Cubana (1959) que não viu uma base generalizada na região, embora tenha

influenciado o surgimento de uma nova esquerda, crítica ao etapismo dos Partidos

Comunistas e à conciliação política entre as classes sociais, e que se desenvolveu

como organizações voltadas para a luta armada (rural ou urbana). De qualquer

maneira, em meio à Guerra Fria e às ditaduras militares, essa alternativa política de

poder foi barrada e derrotada política e militarmente. Por sua vez, o que se abriu

com o curto governo socialista de Salvador Allende (1973) não se desdobrou em

outros países, mesmo porque estava em plena ditadura militar, como também a

Nicarágua (1979) não sinalizou uma referência política que tenha se ampliado

continentalmente.

Os novos governos de centro-esquerda, na perspectiva da nova configuração

latino-americana, ao contrário daqueles fenômenos que permaneceram isolados,

indicam que eles surgem em um contexto político e econômico que vem

ultrapassando as situações exclusivamente conjunturais e mantendo uma certa

generalização na América do Sul. Primeiro porque sinalizam ultrapassar uma

década; segundo, preservam continuidade em eleições seguidas; terceiro, logram

neutralizar ou amenizar o desenvolvimento das oposições (à esquerda e à direita).

Em razão do exposto esse fenômeno ganha uma relativa permanência

temporal, mantém algumas características semelhantes que perpassam esses

governos, e transformam-se em fenômeno importante na análise sociológica,

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especialmente latino-americana, uma vez que o que se apresenta no centro do

interesse não são os governos em si, mas sim o que tem apresentado para a

ultrapassagem das profundas desigualdades sociais que estruturalmente assolam

os países latino-americanos.

Mas é necessário destacar que esse período histórico tendencialmente

emergente decorre do que podemos definir como crise do neoliberalismo, aqui

entendido como enfraquecimento da hegemonia ideológica e política das

representações político-partidárias e culturais, articuladoras e expressões do grande

capital industrial e financeiro. Em decorrência dos resultados sociais desfavoráveis

para as classes subalternas, ampliaram-se substantivamente as lutas sociais a

partir do final da década de 1990. Especialmente porque os resultados prometidos

para a população não se materializaram depois de duas décadas, como

demonstram os índices sociais relacionados ao desemprego, pobreza e índices de

indigência, precarização das relações trabalhistas etc. De acordo com as

instituições financeiras internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário

Internacional), os “ajustes estruturais” objetivaram “solucionar” a então chamada

“crise da dívida externa” dos países latino-americanos.

Os novos governos que nos referimos obtiveram relativos êxitos econômicos,

em decorrência de um período de aquecimento econômico internacional,

possibilitando por essa razão intensificação de exportações de commodities

(produtos agrícolas, gás natural, petróleo etc.), aquecimento de seus mercados

internos de consumo e crescimento do produto interno bruto desses países. Esse

quadro econômico permitiu retomar índices de empregos e implementar políticas

sociais compensatórias. Em linhas gerais, isso possibilitou manter ou constituir um

respaldo popular, inclusive em segmentos de classes médias, permitindo a

reeleições ou indicação de seus sucessores, como ocorreu na Venezuela, Brasil e

Argentina.

Diferente do ocorrido na década de 1960 e 1970 por meio de movimentos

revolucionários latino-americanos, representantes de partidos de esquerda e de

movimentos sociais têm conquistado eleitoralmente diversos governos. Nesses

processos ocorreram mudanças de paradigmas que operaram inclusive no caráter

programático desses movimentos5. Na avaliação da Latinobarómetro (2006), por

5 Evidenciar essa mudança que em anos anteriores (década de 1980) foi evidenciada por Tomás Vasconi.

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exemplo, os partidos de centro e de esquerda venceram eleições na América

Latina com bandeiras de igualdade e contra as discriminações; ao mesmo tempo no

entanto ocorreria que “a esquerda se tem direitizado em suas políticas

econômicas” porque, por um lado, se veriam pressionadas a seguir o “marco

econômico mundial” e, por outro lado, em razão de que foram eleitas por um

eleitorado de centro, sendo então que “os governantes respondem então ao seu

eleitorado que não estão todos no mesmo lugar ideológico, e portanto os força a ser

mais moderados do que eles gostariam” (p.4).

O período histórico hegemonizado ideológica e politicamente pelo

neoliberalismo também foi marcado internacionalmente pela descrença nos projetos

revolucionários de tomada do poder e constituição de sociedades socialistas. Esse

quadro internacional, especialmente grave na América Latina, em decorrência dos

desgastes de décadas anteriores em razão do período de ditaduras militares e da

luta armada, remeteu de maneira pouco crítica os grupos, organizações e partidos

de esquerda revolucionária para o campo da institucionalidade democrático-liberal.

Por essa razão verificamos um deslocamento intenso originado na década de 1980

para a participação eleitoral, valorização democrática “minimalista” e negação dos

conceitos marxistas e socialistas.

Os estudos recentes não desprezam o significado do fracasso econômico

(ajustes estruturais) para a maioria da população, como determinação central na

configuração do atual quadro político. Em meio à transição política, de regimes

políticos ditatoriais para democrático-liberais, em vários países latino-americanos

desenvolveram-se planos para “renegociação da dívida externa”, que na realidade

definiram os ajustes estruturais que as economias dos países devedores deveriam

assumir para manterem a confiança da “comunidade financeira

internacional”. Essas renegociações que tomaram forma inicial a partir da moratória

mexicana, em agosto de 1982, ganharam forma mais definida por meio de três

momentos básicos (Roberts, 2000; Sandroni, 2005; Martins, 2006): Plano Baker

(1985); Plano Brady (1989)6; e Consenso de Washington (1989)7.

6Em março de 1989, o então novo secretário do Tesouro norte-americano Nicholas Brady propôs a redução da

dívida por meio de uma política orientada para o crescimento, dinamizada pelo fluxo de investimentos

estrangeiros. Para isso, os países devedores deveriam desenvolver programas que permitissem a conversão da

dívida junto a investidores que participassem das transações para estimular o repatriamento de capitais

depositados no exterior. O FMI e o Banco Mundial apoiariam o financiamento para a conversão de empréstimos

bancários, em novos títulos, com redução do principal e da taxa de juros. Até 1996, na América Latina, os

seguintes países haviam se ajustado ao Plano: Brasil, Costa Rica, República Dominicana, Equador, México,

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Para o Banco Mundial (2005), nesse percurso de ajustes econômicos, a

América Latina e Caribe obtiveram os melhores resultados em crescimento

econômico em relação aos últimos 24 anos. Esse resultado ancorou-se no

crescimento mundial, ampliação das exportações da região, nos preços dos

produtos básicos e numa ampla liquidez mundial. México, Chile e Brasil, no último

período, aumentaram sua produção, enquanto Argentina, Uruguai e Venezuela se

recuperaram das crises que lhe afetaram em anos anteriores8. Ainda de acordo com

a análise da instituição, a maioria dos países da região manteve superávit

comercial, reduziu suas necessidades de financiamento externo e acumulou grande

quantidade de reservas internacionais. Em decorrência desse quadro, o déficit fiscal

se reduziu e as nações melhoraram o seu endividamento externo.

No entanto é crescente a preocupação dessa instituição com os níveis de

pobreza e abaixo da linha da pobreza, e sua relação com a “instabilidade política”

na região. A aplicação dos ajustes estruturais, porém, em nada contribuiu para

solucionar o crescimento da pobreza e da miséria na região. Para Saavedria e

Arias (2005:11), os latino-americanos seguem manifestando grande frustração

porque os resultados não se equiparam com suas expectativas, pois “a população

está insatisfeita com o nível de progresso econômico, a privatização dos serviços

públicos, a integridade das instituições, o governo em geral e o grau de corrupção”

(Saavedria e Arias, 2005: 11).

Panamá, Peru, Uruguai e Venezuela. A estratégia de redução da dívida externa ocorreu com as seguintes

condições: livre circulação de capitais e mercadorias, privatizações, reforma do Estado e elevação dos juros. A

dívida foi parcialmente securitizada pelo Tesouro dos Estados Unidos, mediante a combinação de fundos do

governo norte-americano, organismos internacionais e países devedores, e negociada no mercado secundário,

atuando como instrumento de privatização de empresas e bancos estatais latino-americanos (Martins, 2006:

649). 7 O Consenso de Washington, encontro realizado na capital norte-americana, em novembro de 1989, teve como

objetivo avaliar as reformas econômicas que já vinham sendo implantadas na região. O Consenso implicou na

padronização do receituário que se seguiu na década de 1990. Os 10 pontos do receituário foram os seguintes:

cortes nas despesas com políticas sociais e investimentos, com o objetivo de “equilibrar” o orçamento estatal;

prioridade ao pagamento de juros das dívidas externas e interna, nas despesas públicas; reforma fiscal;

flexibilização do mercado financeiro para a presença de bancos internacionais e eliminação de restrições ao

fluxo de capital especulativo internacional; equiparação de moedas nacionais ao dólar; eliminação das restrições

ao investimento estrangeiro; programa de privatizações; desregulamentação de atividades estratégicas

(mineração, transporte, prospecção) e das relações trabalhistas (reformas); nova lei de patentes, de acordo com

exigências internacionais. 8 Os ajustes estruturais levaram os países que aceitaram esse receituário a crises, insolvência econômica e

estagnação na região. O México é resultado desse quadro, com sua insolvência em 1995. Posteriormente se

estendendo por Brasil (1998), Equador (1999) e Argentina (2001). A dívida externa latino-americana, em 1973,

representava 17% do PIB da região; em 1981 chegava a 31% e em 1987 expressava 57% do PIB. Entre 1990 e

1999, a dívida externa salta de US$ 467 bilhões para US$ 745 bilhões. Ou seja, embora a carga de recursos

transferidos para o exterior tenha crescido, ainda assim aumentou a dívida externa. A partir da década de 1990

com um novo agravante: a condição é privatização, flexibilização financeira e comercial, e maiores restrições

aos gastos públicos.

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As razões para esse fracasso, de acordo com os técnicos das instituições

financeiras, encontram-se na interrupção das reformas e do crescimento e nas

reiteradas crises financeiras que fizeram desabar as melhorias sociais. Dessa

maneira, se acentuaria a percepção de que os benefícios da integração mundial são

distribuídos de formas díspares e recaem nos estratos de ingresso mais alto,

embora os custos tenham sido suportados pela maioria. Singh e Collins (2005),

nesse sentido, consideram que as políticas macroeconômicas propostas pelas

instituições financeiras internacionais não foram desenvolvidas adequadamente

pelos governos locais, constrangendo desta maneira a população da região a

situações de pobreza acentuada. Eles consideram que, na América Latina, a

pobreza aumentou e a desigualdade figura entre as maiores do mundo. Tal situação

poderia acabar com “o apoio popular aos programas de reformas iniciados durante

os anos noventa, já que prometiam muito mais e com freqüência deram resultados

decepcionantes”.

Essa análise dos técnicos do Banco Mundial parece condensar experiências

políticas muito concretas ocorridas nessa região. Como exemplo podemos verificar

a situação da Venezuela que nos parece referência: ajustes estruturais

constrangendo a população a situações de extrema pobreza, o que podemos

entender que acabou levando à perda de qualquer tipo de apoio popular a tais

programas conhecidos também como neoliberais.

1. O caso argentino dentro da nova configuração política sul-americana

Na Argentina, o caso de Néstor Kirchner destoa em alguma medida com a

constituição dos outros governos de centro-esquerda na América do Sul. Kirchner é

plenamente um político tradicional ligado à estrutura do Partido Justicialista, que

seguiu as etapas de intendente de Rio Gallego e governador da Província de Santa

Cruz (1992-2003). Sua candidatura à presidência da República e a vitória eleitoral

com 22% dos votos exprime claramente a acentuada crise que o regime político

argentino viveu entre dezembro de 2001-2002, como também sinaliza a

inexistência de outras alternativas políticas naquela ocasião. Diferente de Lula

(Brasil), Morales (Bolívia), Chávez (Venezuela), o então presidente Kirchner nunca

esteve referenciado por movimentos sociais ou de esquerda. Por sua vez, a

situação política com os levantes populares de dezembro de 2001 indicaram como

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tal governo deveria operar junto aos movimentos sociais e partidos de esquerda, no

sentido de captá-los, cooptá-los e, em último caso, reprimi-los. O que demonstra a

intensidade desses movimentos. Ou seja, um político tradicional, que constituiu ou

ampliou suas riquezas desde Santa Cruz, apoiou o processo de privatização da

YPF, e posteriormente passa a realizar críticas a Menem. Nenhuma aproximação

com os setores populares. Em nenhum período de seu governo ocorreram fatos

graves com as frações burguesas. Essas se mantiveram como antes no bloco no

poder: setores multinacionais; capital financeiro; concessionárias das privatizadas; e

as exportadores de matérias-primas. Como interesses de classe, Kirchner responde

diretamente aos setores das concessionárias e obras públicas, nos quais estão

localizados os capitalistas conhecidos como empresários K. Mas as frações do

capital financeiro e das multinacionais são os determinantes no aparelho de Estado.

O deslocamento para a “esquerda” ocorreu como necessidade de sobrevivência

política de seu governo.

Após renúncia de Carlos Menem antes do segundo turno das eleições

presidenciais de 2003 (no dia 14 de maio), Nestor Kirchner fez algumas

afirmações. Para ele, com a desistência de Menem, culminaria “na Argentina um

ciclo histórico assinalado pelas lideranças messiânicas, fundamentalistas e

excludentes donde houve dirigentes que creram com o direito divino de não ter que

dar explicações para a sociedade do que tem feito”. A desistência do concorrente

haveria sido “funcional para os interesses de grupos e setores do poder econômico

que se beneficiaram com privilégios” durante a década passada, “ao amparo de um

modelo de especulação financeira e subordinação política”. Ainda de acordo com

Kirchner, "a esos mismos intereses que cooptaron el Estado y compraron la política,

a esos mismos intereses que corrompieron a los dirigentes y arruinaron la vida de

los ciudadanos, tributa esta huida". Señaló que "el marco institucional y político

exige una profundización del sistema democrático, ya que es la voluntad popular la

gran legitimadora de políticas que tornarán viable una gestión, en una Argentina

devastada, presionada y extorsionada por la voracidad especulativa, las practicas

corporativas y los egoísmos personales de sus dirigentes políticos". Na ocasião,

Néstor Kirchner, ao ser questionado pelos periodistas, negou que havia realizado

pactos para chegar à presidencia da República: "No he llegado hasta aquí para

pactar con el pasado. Ni para que todo termine en un mero acuerdo de cúpulas

dirigenciales. No voy a ser presa de las corporaciones".

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Kirchner assumiu a presidência da república em 25 de maio de 2003. O

primeiro turno ocorreu em 27 de abril de 2003. Em seu discurso assinalava que

“não se pode voltar a pagar a dívida com o custo da fome e da exclusão dos

argentinos”; os credores deveriam entender que só poderiam cobrar se o país fosse

bem. O programa de governo estaria centrado nos seguintes pontos: reinstalar a

mobilidade social, redução da dívida externa, recuperação do protagonismo estatal;

luta contra a corrupção e garantir que a segurança jurídica . “Se trata de mudar, não

de destruir. (...) Chegamos, sem rancores mas com memória. Memória não só dos

erros e dos horrores do outro.Senão que também é memória sobre nossos próprios

equívocos”. (La nación, 26 de maio de 2003).

Mas em seus discurso expressa também os limites em que o país havia

chegado, ao indicar a necessidade de “profunda mudança social e moral que ponha

fim à mais grave crise econômica e institucional da história argentina”. Ou seja, a

sua nítida impressão era de uma profunda crise institucional e econômica no país.

O discurso e as ações governamentais estiveram caracterizadas para esse

terreno conjuntural de crise profunda. Sua própria eleição com 22% de votos

significava, ao contrário do que havia ocorrido com Lula no Brasil e Chavez na

Venezuela, uma grande debilidade política, somada à fragmentação ocorrida no

justicialismo, que havia lançado três candidatos à presidência da república em

2003.

Essas condições impulsionam Kirchner para uma atuação centralizadora,

semi-bonapartista, mas que necessita se amparar nos movimentos sociais.

2. A situação política na Argentina a partir de 2001

A experiência política recente na Argentina possibilita-nos verificar aspectos

ideológicos, políticos e econômicos que se apresentam na “nova configuração

política” latino-americana, como também nos alerta no plano metodológico da

análise para suas especificidades políticas e econômicas, que não permitem formas

comparativas aligeiradas. De qualquer maneira, essa nova configuração, em

diferentes graus, os novos governos instituíram frentes políticas entre as

representações políticas operárias e populares e setores das classes sociais

empresariais. É o que ocorreu na Venezuela com Hugo Chávez (1998 e 2006),

embora exista uma tentativa analítica de considerar sua base social empresarial de

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apoio, no Brasil com Luis Inácio Lula da Silva (2002 e 2006) e com Néstor Kirchner

na Argentina (2003-2007) e elegendo sua mulher em 2007. Além desses países,

mais recentemente, ainda no primeiro mandato surgiram: no Uruguai, Tabaré

Vasquez (2005); na Bolívia, Evo Morales (2006); no Equador, Rafael Correa (2007);

e na Nicarágua, Daniel Ortega (2007). Esses novos governos surgiram no período

recente como resultado da profunda crise do neoliberalismo ou, em outros termos,

do enfraquecimento da hegemonia política neoliberal sobre as massas populares,

em decorrência do nível de pauperização que tais ajustes estruturais impuseram

aos diversos setores de trabalhadores (do setor privado e público) e também das

camadas sociais médias.

O governo de Kirchner (2003-2007) e agora de Cristina Fernández se

diferenciam dos governos de Tabaré Vasquez (Uruguai) e Luís Inácio Lula da Silva

(Brasil), em razão do discurso antiimperialista e sua acentuada conflitividade com

setores empresariais, como ocorreu recentemente com os setores

agroexportadores. Mas como Lula mantêm uma relação muito próxima com o

capital financeiro internacional e com o empresariado industrial argentino e

multinacional. Aproxima-se de Hugo Chávez Frias, em alguns aspectos do discurso

antiimperialista e da proposta de realizar o desenvolvimento econômico

independente e integrado à perspectiva latino-americana.

A especificidade argentina, no tema aqui abordado, refere-se à situação de

levantes generalizados e a crise do regime político, a partir de 19 e 20 de dezembro

de 2001. O “corralito” financeiro, desaparecimento dos depósitos bancários de

dezenas de milhares de correntistas em decorrência da fuga do capital

(congelamento dos depósitos bancários) decretado pelo presidente Fernando De La

Rúa em 19 de dezembro de 2001 significou a gota d‟água de uma situação social

crítica que se desenvolvia nesse país em decorrência dos ajustes estruturais

neoliberais. De La Rúa tentou enfrentar as massas populares nas ruas com a

decretação do Estado de Sítio em 21 de dezembro daquele ano, e com uma

impressionante repressão militar com cerca de trinta manifestantes assassinados

em confrontos com a polícia. Caiu o ministro da Economia, Domingo Cavallo, em

seguida o presidente da República, Fernando De la Rua e, nas semanas seguintes,

outros quatro presidentes. Um deles, Rodrigo Saá, foi obrigado a declarar a

suspensão do pagamento da dívida externa, então na ordem de 150.000 milhões de

dólares.

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Essa situação resultou de uma profunda crise que teve sua gênese no final

da década de 1998, em razão da crise financeira internacional. A fuga de capitais

que mencionamos, para termos uma idéia: entre 26 e 30 de novembro de 2001,

houve uma fuga de 2.727 milhões de dólares. O desemprego ultrapassa todos os

horizontes de até então: 2.500.000 sem trabalho. E outros tantos subempregados. A

precarização atinge cerca de 50% dos assalariados que recebem menos de 300

pesos mensais. Chegou a 18 milhões de pobres e 3 milhões de crianças indigentes.

Em conseqüência disso, em 2002, a Argentina cai em sua maior recessão

econômica e o desemprego atingia 21,5% da população economicamente ativa.

54% da população encontrava-se abaixo do limite da pobreza e metade dessa

população (27%), na linha da indigência. Do final de 2001 e durante o ano de 2002,

a população desse país radicalizou suas palavras de ordem (“Fora Todos!, Fora

FMI”), constituiu Assembléias Populares permanentes em várias regiões, além de

inúmeras ocupações pelos trabalhadores de fábricas falidas.

A crise política aberta em dezembro de 2001 e que se estendeu por 2002

resultou das definições das políticas econômicas impostas na Argentina desde a

ditadura militar de 1976-1983 e que tiveram continuidade nos governos civis pós-

ditadura (Seoane, 2007:99-122). Entre 1976 e 1981, a política econômica é

abertamente liberal e monetarista, com a especulação financeira e a abertura

irrestrita da economia por meio da iniciativa ao consumo de importados (“dáme

dos”). No período entre 1976 e 1983, a dívida argentina se quintuplicou passando

de US$ 8,9 bilhões (1975) para US$ 43 bilhões (1983).

No período de Raúl Alfonsin, da União Cívica Radical (UCR), a dívida externa

manteve-se crescente, com déficit fiscal e alta inflação, levando Alfonsin a

implementar o Plano Austral (1985) e logo depois, em negociação da dívida externa

do país com o FMI, ao Plano Baker9.

Esse traçados econômicos inteiramente submetidos ao capital financeiro

internacional, levou o país a uma catástrofe econômico-social com a conseqüente

condenação da maior parte da população para os dirigentes políticos e sindicais,

9 O Plano Baker (1985), Programa para o crescimento sustentável, formulado pelo então secretário do Tesouro

norte-americano, James A. Baker III, dirigiu-se para os quinze países considerados com maior dívida, sendo que

os latino-americanos eram a maioria: Bolívia, Argentina, Brasil, Chile, Equador, México, Peru, Uruguai e

Venezuela. Com o objetivo de reduzir a inflação, o plano exigia que fossem adotadas políticas estruturais e

macroeconômicas, com ajustes no balanço de pagamentos, reforma tributária, incentivo aos investimentos

estrangeiros e liberação comercial.

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assim como aos bancos, às corporações locais e estrangeiras, ao FMI e aos

Estados Unidos. Os dados comparativo entre 1974/75 e 2002 permitem dar conta

da magnitude da catástrofe :

entre esses anos a população abaixo da linha da pobreza passa do 7% ao 56%; o desemprego cresce de 3% a 21%, mais 20% de subemprego e 40% dos ocupados em condições precárias; os salários descem em 65% em termos reais. Se em 1974 mais de 90% da PEA estava coberta por direitos sociais, em 2002 essa proporção não supera a 20%. A dívida externa cresce de 7.800 milhões de dólares para 170.000 milhões, apesar de haver-se pago ao redor de 200.000 milhões e de alienar-se mais de 90% do patrimônio público. Os planos de ajuste do FMI levaram a uma impressionante queda do gasto público em educação, seguridade social e saúde, em momentos no qual o desemprego e a precarização trabalhista fizeram que milhões de famílias perdessem suas obras sociais e se vissem obrigadas a atender-se em hospitais empobrecidos. As empresas, os serviços e os recursos estratégicos públicos foram privatizados em condições escandalosas para o país, devido à cumplicidade entre os grupos beneficiários e os políticos responsáveis dessa entrega. (Maya, 2006:78)

3. A recessão entre 1998 -2002 e os movimentos sociais

Eles somente têm seu ponto inicial de explicação através da crise econômica

e social entre 1998 e 2004, quando o país entrou em uma recessão. “A partir de

então, também se intensificou a protesta social. Apesar da mudança, no clima

político-social que havia levado à derrota ao candidato presidencial Eduardo

Duhalde em 1999, o novo governo de De la Rúa, traindo suas promessas eleitorais,

continuou aplicando aquele severo ajuste estrutural. Se aumentaram os impostos,

se reduziram os salários e se sancionaram leis adicionais para a flexibilização do

mercado laboral. Nenhuma destas medidas teve efeitos contra cíclicos” (Giarraca y

Teubal, p.116). Todas as medidas econômicas adotadas por De La Rúa iam no

sentido conquistar o apoio das instituições financeiras internacionais. Nesse

sentido, o retorno do ex-ministro menemista da economia, Domingo Cavallo. É certo

em parte o que afirmam Giarracca e Teubal: “Em realidade, o governo e seus

ministros de Economia estavam empenhados em evitar o default da dívida externa

e o fim da convertibilidade, ainda que a custa de enormes penúrias sociais. Se

preocuparam unicamente em conseguir a confiança dos círculos financeiros

internacionais e pelo „risco país‟, que geraria taxas de interesses internacionais

cada vez mais altas. Mas não puderam – ou não quiseram – lidar eficazmente com

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a corrida bancária, a fuga de capitais e a drenagem de divisas. Entre fevereiro e

novembro de 2001 (quando se criou o corralito para restringir o retiro de depósitos

bancários), os poucos fundos do sistema bancário que ficavam – e que pertenciam

fundamentalmente aos médios e pequenos poupadores – se reduziam a 16.300

milhões de pesos/dólar. A drenagem continuou sem pausa: entre dezembro de

2001 e março de 2002, houve uma fuga de depósitos de 12.700 milhões de dólares.

Esta fuga total de 29.000 milhões representava 34% dos depósitos que o sistema

bancário possuía em fevereiro de 2001. Nesse mesmo ano, as reservas de divisas

do Banco Central desceram 19.000 milhões de pesos/dólar” (idem, p.116).

Mas esse quadro econômico e as definições do governo de De la Rúa não

expressavam integralmente as posições do Partido Justicialista e das distintas

frações da burguesia. Entre os de cima estava se constituindo um impasse sobre a

condução da política econômica. O ponto central desse impasse encontrava-se na

convertibilidade. Existam setores dessa que defendiam já em 2000 o fim da

convertibilidade. Em realidade, de acordo com Peralta Ramos, a partir da crise

mexicana começou a desarticulação do modelo econômico baseado na

convertibilidade que se expressou na fuga generalizada de capitais para fora do

país. “Para 1998 o governo estimava em 87 bilhões de dólares os ativos totais dos

residentes no exterior. Neste contexto, as vozes de protesto dos setores

empresariais prejudicados pela abertura comercial, as altas taxas de juros

domésticas e a recessão haviam de somar-se ao crescente protesto popular frente

a um modelo econômico que somava por esso então a um terço da população ativa

no desemprego e na miséria” (Peralta Ramos, 2007, p.334). Esse protesto

empresarial no entanto era limitado, como veremos mais a frente, uma vez que as

distintas frações burguesas estavam unificadas em torno da reforma trabalhista que

reduzia ainda mais os custos trabalhistas no país. Ao nosso entender, esse é o

aspecto principal que se manteve depois do fim da convertibilidade, nos governos

de Eduardo Duhalde, depois de Néstor Kirchner e agora com Cristina Fernandez.

As greves gerais chamadas pela CGT, CTA e MTA, cerca de 13 greves no

curto período de De la Rúa, trouxeram em si os distintos projetos de país e, de

alguma maneira, expressavam os próprios posicionamentos das frações burguesas

em pugna. Isso talvez possibilite uma explicação, como ressaltam autores como

Bonnet (2008) e Sartelli (2007), para a aparente inexplicável posição de não

participação efetiva nos acontecimentos determinantes de dezembro, como também

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ao que se sucedeu no transcorrer de 2002 e 2003. Para as direções sindicais, o

movimento obrero não participou dos acontecimentos de dezembro, nem ao menos

naqueles que lhe sucederam10. Em realidade, o mais adequado seria afirmar que as

burocracias sindicais não se integraram nas manifestações de 19 e 20 de dezembro

de 2001. Não é o mesmo em afirmar que distintas organizações de trabalhadores

desocupados não tenham participado. De qualquer maneira, a paralisia da CGT e

da CTA nesse momento nos parece que tem sua explicação.

Embora Sartelli (2007) não consiga ultrapassar os aspectos mais aparentes do

problema, ele ao menos da uma indicação interessante para explicar a paralisia da

centrais sindicais naquele momento: “Na descrição dos fatos existem pelo menos

três elementos que, ou são interpretados incorretamente ou diretamente não

correspondem à verdade, sendo a característica geral do relato à tendência a

diminuir a presença do movimento piqueteiro, em particular da fração que teria o

maior desenvolvimento a posteriori. Em princípio, fazer coincidir a origem do fato

com a greve da CGT permitiria supor a presença dirigente deste agrupamento no

processo geral de luta operária, quando em realidade, sua presença é a

corporização entre os trabalhadores das estratégias burguesas. A divisão da CGT é

a projeção da divisão da burguesia argentina entre os capitais mais concentrados e

internacionalizados (Daer) e os mais débeis e, por fim, mercado internista (Moyano).

Mais especificamente pequeno-burguês em seu alinhamentos é o agrupamento que

constituem a CTA e a CCC. Daí seu diferente comportamento durante o processo.

A greve geral projetada por todos eles em realidade é parte da unidade da

burguesia contra o governo, unidade que é só conjuntural e contraditória, onde o

elemento mais dinâmico é a fração que empurra Moyano, partidário firme da

burguesia desvalorizacionista. Tanto Hugo Moyano como De Genaro e Alderete

buscam uma substituição do “modelo”, que em algum caso implica a saída do

elenco governante (Moyano) e em outro só o do ministro da economia (CTA-CCC).

Em todos os casos, se trata de utilizar as frações da classe operária que capitulam

como massa de manobra das disputas burguesas, não só contra os interesses

gerais de suas bases, senão inclusive contra interesses imediatos, como a queda

salarial que provocaria a desvalorização. É por isso que nenhum destes

agrupamentos participa organicamente dos momentos mais agudos da luta. É mais,

10

Essa afirmação escutamos em entrevistas com dirigentes e militantes sindicais.

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quando o principal do fato já há passado, a CTA e a CGT chamaram a paralisação

geral com a clara intenção de frear a mobilização, algo que dizem explicitamente

em testemunhos recolhidos pelos autores no texto que criticamos. Os primeiros em

retirar-se são a CTA e a CCC que só buscam a queda de Cavallo. “Por isso não

participam da marcha convocada para o 20 à tarde, excusando-se a ultimo

momento ou faltando sem aviso.” (...). “A ausência da CTA Capital e a CCC será

elemento chave na divisão que ia a produzir-se a posteriori no seio do movimento

piqueteiro, divisão que refletia duas estratégias distintas cuja marcha conjunta fez

crise esse dia: a estratégia que, perseguindo interesses secundários do

proletariado, buscava a aliança com a burguesia “progressista” e “nacional” (CTA e

CCC) e a que, perseguindo os interesses mais gerais do proletariado rechaçava

toda aliança com elementos burgueses (que, a posteriori, coagularia no Bloco

Piqueteiro Nacional).

4. O dezembro de 2001 e as manifestações antineoliberais na região

A configuração política na Argentina, no período de ascensão de Néstor

Kirchner à presidência da República em 25 de maio de 2003 e de Cristina

Fernandez em 2007, mantém fortes relações com os acontecimentos abertos em 19

e 20 de dezembro de 2001. Esses acontecimentos condicionam a discursividade

presidencial, muitas ações políticas contra alguns monopólios, as determinações

estatizantes em alguns momentos e a necessidade de manter uma constante

organicidade com setores dos movimentos sociais e centrais sindicais. Aqueles

acontecimentos (e seus desdobramentos sociais) são uma dimensão necessária

para explicar o giro político e discursivo do então governador de Santa Cruz, que

não somente apoiou a privatização da YPF como também do Banco da Província. A

ênfase na ótica esquerdista, peronista e antineoliberal, por sua vez, envolve-se em

um quadro político de muitos questionamentos aos governos neoliberais.

Uma atuação governamental que alguns autores (Katz, Godoi, Basualdo,

Svampa) consideraram de caráter keynesiano ou neodessenvolvimentista, mas que

ao mesmo tempo preserva elementos centrais das políticas neoliberais dos anos

90, como a precarização do trabalho, determinação estatal sendo regida pela lógica

financeira ou uma estabilidade institucional precária.

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Néstor Kirchner se impôs como candidatura no partido justicialista, em uma

aliança política instável com Eduardo Duhalde. Impossibilitado de disputar as

eleições presidenciais, Duhalde teve como pouca opção o apoio a Kirchner. Sua

vitória eleitoral tornou-se pífia, uma vez que seu concorrente ao segundo turno,

Carlos Menem, abandona a disputa. Uma conquista com apenas 22% dos votos,

dentro de um quadro social e político dos mais instáveis, sinalizava a possível

debilidade de um governo que para muitos seria de vida curta. Aquelas eleições de

março de 2003 foram um visível termômetro da permanente desconfiança popular

com as instituições, seus políticos e governantes. Ainda se mantinha no ar o “Vayan

se todos”, embora com sinais de seu arrefecimento uma vez que para setores da

classe média a retomada da normalidade institucional tornava-se central, enquanto

para os setores populares (piqueteiros) ainda era necessário manter a dinâmica das

lutas sociais. Uma rápida passagem nos diários da época nos permitem uma

aproximação com o cenário da época.

O fenômeno político que a imprensa argentina e os cientistas políticos

designaram como kirchenerismo é resultado do cenário social e político dos

acontecimentos de 2001, quando se expressa de maneira irremediável uma

profunda crise de hegemonia que se desenvolve não somente pela indefinição de

direção política e moral entre as frações burguesas no bloco no poder, mas também

pela falta de uma direção política e moral nas outras classes sociais (proletários e

pequena burguesia). Nessa perspectiva podemos assim sintetizar o conteúdo da

afirmação: a) uma crise política intensa entre os de cima, em relação à sua direção

política, que se espraia entre os partidos da ordem, políticos e instituições; b)

intensificação do descontentamento, lutas e organização das frações assalariadas

desocupadas e camadas médias que não querem mais viver como antes, mas que

não conseguem lograr uma unidade política suficiente para se transformar em uma

alternativa política.

A conjuntura econômica e política na Argentina, no entanto, e certamente, não

se encontrava isolada do contexto internacional. Encontra-se imbricada, como

anteriormente descrevemos, em uma crise financeira internacional de 1998,

conhecida como crise asiática, que se tornou uma das dimensões centrais na

desestabilização econômica não só argentina, mas também de Brasil, Bolívia,

Equador. Por outro lado, encontra-se no contexto político do 11 de setembro de

2001, quando provisoriamente o imperialismo norte-americano se legitima diante do

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povo norte-americano em sua declarada ofensiva militar sobre o Afeganistão e logo

em seguida sobre o Iraque, em torno da “justiça infinita”. Mas uma legitimação

restritiva, regressiva e provisória, uma vez que praticamente em todos os países

ocorreram manifestações contra a intervenção militar norte-americana, ao exemplo

das gigantescas manifestações na Espanha (Madri e Barcelona), na Grã-Bretanha,

França e nos países do Oriente Médio (Irã, Líbano, Egito...). O sentido regressivo

dessa legitimação deveu-se principalmente porque internamente inaugurou as

políticas de segurança contra cidadãos norte-americanos e prisões injustificadas de

imigrantes, principalmente árabes. Seu caráter provisório é nítido, uma vez que as

bases do consenso foram se demonstrando frágeis para o presidente George Bush.

Essa ofensiva estava em curso em períodos anteriores, como verificamos na

intervenção militar na Colômbia, em um suposto combate ao narcotráfico

internacional, mas na realidade em combate aberto contra as FARC-EP; ou então,

no apoio sempre contínuo e intenso ao Estado de Israel contra os palestinos. E

anteriormente, em 1991, na Guerra do Golfo contra o Iraque e o sanguinário apoio à

militarização da guerra civil de kosovo, e a sua intervenção na Somália. No entanto,

o 11 de setembro possibilitou a construção de condições políticas internas nos EUA

que lhe faltavam para que o imperialismo desencadeasse uma investida sobre os

quatro-cantos do mundo, justamente em um período no qual a recessão atingia o

coração do sistema capitalista. Acoplam-se, nesse sentido, duas dimensões nessa

investida: a hegemonia política militar e a intensificação da exploração econômica

dos países dependentes. Em última análise respondem à tentativa de superação da

crise econômica mundial e de derrota das mobilizações sociais e nacionais que

ameaçavam os interesses das corporações que controlam o Estado norte-

americano.

Esse é o contexto internacional em que se localiza a situação política

configurada na Argentina a partir de 19 e 20 de dezembro. Certamente que o

contexto internacional em si não nos possibilita uma explicação ou aproximação do

2001 argentino, se não considerarmos como estiveram se gestando os sujeitos

políticos e sociais nesse processo. Quando diversos estratos sociais da população

foram para as ruas exigindo a renúncia do Ministro da Economia Domingos Cavallo

e do presidente Fernando de La Rua, expressa, por distintos meios e em último

grau a resistência às propostas de aprofundar os mecanismos de exploração

econômica e financeiro nos países endividados, especialmente da América Latina.

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Aqui nos referimos às diretrizes financeiras desenvolvidas pelo Fundo Monetário

Internacional e Banco Mundial, nessas últimas décadas, ao qual se submetem as

burguesias e governos locais, em sua maioria representando as posições do capital

financeiro mundial. Em outras palavras, a proposta de Cavallo de déficit zero e de

congelar as poupanças e contas bancárias estava determinada pela diretrizes do

FMI, no sentido de resguardar o capital. De imediato, a gota d‟água esteve na

aplicação de uma determinação internacional.

No contexto internacional e regional existia também outra dimensão dessa

crise estrutural do capital: as manifestações internacionais contra o neoliberalismo.

As crescentes manifestações contra os órgãos financeiros multilaterais, entre 1998

e 2000, como verificamos as manifestações sociais de Seattle, Washington, Praga e

depois em Gênova. A constituição de fóruns mundiais como o Fórum Social Mundial

não se limitam ao “descontentamento” da juventude de classe média ou a um mero

mal estar contra o neoliberalismo. São decorrência de um complexo quadro social e

político configurando-se em última instância a partir de uma crise capitalista

profunda. Do México, no território de Chiapas, desde 1995 vinham as informações

sobre as resistências dos camponeses contra a tomada de suas terras, e que tinha

no Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e no mitológico

subcomandante Marcos sua direção política e organizativa principal. As resistências

e lutas no Equador (2000) lideradas por CONAE – Coordenação Nacional de Água -

agrupação de movimentos sociais de base camponesa que realizou levantes contra

a privatização da água. Também no caso da Bolívia, com o ressurgimento da

Coordenação dos Obreros Bolivianos (COB) e de diversos movimentos

camponeses (de base indígena). No Brasil, desde 1996, o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra (MST) era a principal base de oposição às políticas

neoliberais de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1998-2001).

Na Argentina, esse percurso de resistências se intensificou na década de

1990, mas com outras características já eram visíveis no período de Raúl Alfonsin.

Eles se desenvolveram em dois eixos principais: trabalhadores desocupados

(desempregados), das empresas privatizadas e empresas privadas, que se

constituíram em Movimentos de Trabalhadores Desocupados (MTD); e entre os

trabalhadores dos setores públicos, principais e diretamente atingidos pelas

políticas de privatização e de reestruturação do estado, por essa razão se

desenvolveram duas esferas sindicais muito importantes: a Associação dos

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Trabalhadores Estatais (ATE), dirigida na década de 1990 por Victor De Gennaro, e

a Confederação dos Trabalhadores de Educação da República Argentina (CTERA),

na ocasião dirigida por Maria Sanchez. Com grande intensidade nas províncias

esses movimentos começam a se multiplicar na Capital do país (Buenos Aires).

Então existe um período histórico (aqui utilizado no sentido forte da palavra, ou

seja, que demarca e especifica as relações e conflitos entre as classes sociais, o

Estado e suas políticas, em um determinado lapso temporal) que está saturado

internacionalmente de lutas sociais, resistências e organizações de diversos tipos e

constituição social, que se debatem ideológica e politicamente com o

neoliberalismo.

Mas também é um momento que se acentuam distintos cortes ideológico de

caráter libertário ou anarquista que não somente questionam a doutrina e políticas

neoliberais, suas instituições internacionais e seus principais personagens. Também

criticam toda a política estatal, ou interferência do Estado, nos assuntos públicos. E

estabelecem, por sua vez, uma dura crítica aos partidos políticos e suas formas de

organização, especialmente àqueles que se baseiam nos paradigmas socialistas e

revolucionários, como também a cristalização da existência de classes sociais como

o proletariado, além da categoria trabalho como na centralidade da compreensão da

sociabilidade humana. A política do não poder, divulgado internacionalmente pelo

Zapatismo, e teorizado por intelectuais como John Holloway e Toni Negri, tornou-se

uma referência constituída para militantes de ONGs internacionais e de movimentos

sociais.

5. Argentina: dezembro de 2001

Os acontecimentos de 19 e 20 de dezembro de 2001 tiveram seqüência no

transcorrer do ano de 2002 e levaram à queda inicialmente do ministro da

economia, Domingo Cavallo, e logo em seguida de Fernando De La Rúa. Como

assinalamos anteriormente, estão diretamente ligados à crise internacional entre

1998-2002, e à postura daquele recém governo em manter as diretrizes financeiras

internacionais.

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Fernando De la Rúa assumira o governo em 10 de dezembro de 199911 e,

como ministro da Economia, José Luis Machinea. Em agosto daquele ano, De la

Rúa troca o ministério e logo em seguida Chacho Alvarez renuncia ao cargo,

denunciando o envolvimento oficial com subornos no Senado. As instituições

financeiras internacionais cortaram os créditos para o país. Somente em dezembro

que recebe uma ajuda financeira de 40 bilhões de dólares, como blindagem

financeira. Em março de 2001 o ministro da Economia é substituído pelo

economista liberal Ricardo López Murphy que tinha como objetivo cumprir as metas

consensuadas com o FMI e preservar o sistema de cambio fixo (convertibilidade).

Em 05 março o governo anunciava outro plano econômico que objetivava um

drástico corte nos gastos públicos (déficit zero) de 1.962.000 de dólares/peso.

López Murphy abandona o cargo e assume o ex-ministro da economia de Menem,

Domingo Cavallo. Ou seja, em 19 dias, assumia um terceiro ministro da economia.

No período o desemprego atingia 18,3% da PEA.

O argentinaço foi precedido em seu aspecto imediato por uma série de

acontecimentos que demarcavam um novo horizonte político em curso naquele

país. As eleições gerais de outubro daquele ano foram um termômetro de como se

condensavam as pressões populares: uma ampla derrota para o governo e o

principal partido de oposição; alto número de abstenções e voto em branco e o

crescimento eleitoral dos setores de esquerda. O voto bronca, como designado

pelos periódicos da época, significava entre abstenção, nulos e brancos cerca de

40% dos votantes; enquanto que naquelas eleições de outubro de 2001 sofreu uma

derrota contundente a Alianza (Frepaso-UCR) e os outros partidos da ordem. É

nessas eleições também que a esquerda política terá uma de suas melhores

votações. Os setores de trabalhadores desocupados vinham em um ascenso, com

três semanas de cortes e mobilizações no mês de setembro, o “piquetaço”, em

torno da cidade de Buenos Aires, enquanto os desocupados não organizados

giravam suas ações para saques em distintos pontos em semanas anteriores à

queda de De La Rua.

A CGT e a CTA, por sua vez, convocam os trabalhadores para uma greve

geral em 13 de dezembro. No campo da burguesia, suas distintas frações não se

11

Nas eleições presidenciais daquele ano haviam concorrido: (...). De La Rúa, candidato pela Aliança

(Frepaso/UCR), estabeleceu um discurso antineoliberal e crítico a Carlos Menem. O então presidente Carlos

Menem pretendia um terceiro mandato, mas ele não conseguiu na época a mudança constitucional que lhe

permitisse se recandidatar.

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mantinham no grande acordo em torno da convertibilidade, ao contrário seus

principais representantes expressavam publicamente a necessidade de acionar os

mecanismos de desvalorização cambial, como ocorreu no período de Eduardo

Duhalde e seu ministro da economia Roberto Lavagna

O “corralito”, decretado no final de novembro de 2001, foi o desaparecimento

dos depósitos bancários de dezenas de milhares de correntistas em decorrência da

fuga do capital (congelamento dos depósitos bancários) decretado pelo presidente

Fernando De La Rúa e significou a gota d‟água de uma situação social crítica que

se desenvolvia nesse país em decorrência dos ajustes estruturais neoliberais. O

corralito significou a confiscação de bens privados por parte dos bancos com o aval

do governo. O pacote de medidas, elaborado por Domingo Cavallo, consistiu

basicamente que o correntista não podia retirar por semana mais do que 250 pesos

ou dólares de cada conta bancária, medida que seria retirada um mês e meio

depois. A maioria dessas poupanças não ultrapassavam cerca de 10.000 dólares e

envolvia principalmente os setores médios urbanos da população. “A situação

individual dos poupadores guarda verdadeiros dramas: se tratava de economias

para enfrentar enfermidades terminais, últimas economias de aposentados,

poupança transitória de quem havia vendido casa e estava para comprar outras

etc.” (Giarracca y Teubal, 2007, p.125).

De La Rúa tentou enfrentar as massas populares nas ruas com a decretação

do Estado de Sítio em 19 de dezembro, e com uma impressionante repressão

militar que levou a cerca de trinta manifestantes assassinados em confrontos com a

polícia. Caiu o ministro da Economia, Domingo Cavallo, em seguida o presidente da

República, Fernando De la Rua. Antes de apresentar sua renúncia ao Congresso

Nacional, ele tentou um acordo com o Partido Justicialista, em torno de um governo

de coalizão que foi rejeitado pelos caciques peronistas De maneira inconsciente, as

mobilizações, lutas e organização de diversos setores da classe trabalhadora

(ocupados e desocupados) e de setores de classe média confluíram para o reclamo

central contra o corralito financeiro e o estado de sítio.

A crise política continuou de maneira aberta. Como presidente interino,

assumiu o senador peronista Ramón Puerta que ocupava a presidência provisional

da Câmara Nacional até 22 de dezembro quando foi eleito pela Assembléia

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Legislativa o governador de San Luis, Adolfo Rodrigues Saá12 que se manteve no

cargo durante sete dias. Seguiu-lhe na presidência interina Eduardo Camaño por 24

horas, quando foi indicado pela Assembléia Legislativa Eduardo Duhalde que ficou

no cargo até 09 de dezembro de 2003.

Os saques aos supermercados se generalizaram nas províncias e ganharam

intensidade nos meses que precederam as datas políticas. Os dias anteriores a 19

de dezembro foram constituídos por uma variedade de protestos, entre os quais, os

que ficaram mais evidenciados foram os saques aos supermercados em diversas

províncias do país e no conurbano bonaerense. Mas além desses protestos, com

níveis diferenciados de repressão policial, seguiam-se também manifestações de

trabalhadores municipais que exigiam pagamento de salários atrasados, protestos

de comerciantes e correntistas em Buenos Aires e outras províncias devido à

situação financeira gerada pelo corralito e uma infinidade de mobilizações populares

que reivindicavam planos sociais (Mariotti e outros, 2007). Ou seja, as

manifestações se multiplicaram em dias anteriores, tendo como causa imediata o

corralito financeiro decretado no final de novembro e seguiram existindo depois de

20 de dezembro. Embora o epicentro político tenha sido a capital federal, Praça de

Maio, a revolta popular estava generalizada por distintas regiões do país e na

Grande Buenos Aires. Envolveram setores populares desempregados,

trabalhadores estatais e municipais, comerciantes e setores de classe média. Mas a

direção política desses protestos estave diluída, sem um eixo unitário de

mobilização nacional.

As centrais sindicais, depois da greve geral de 13 de dezembro, recuaram em

suas iniciativas e ficaram no costado. Essa é o que verificamos na constituição e

cronologia dos acontecimentos daquele período, como também é assim que

dirigentes sindicais vêem tais acontecimentos.

Em entrevista com Hugo Yasky, secretário geral da CTA, ele nos é categórico

sobre aquele período: (...). Da mesma maneira, temos a posição do secretário

adjunto dos Telefônicos, Claudio Marin, que considera que não houve a

participação da classe trabalhadora nesse processo. (...). De certa maneira, esses

12

Adolfo Rodriguez Saá em seu efêmero período sinaliza outra possível resposta à crise política: elaboração de

orçamento federal para o ano seguinte (2002) com déficit zero e eliminação de gastos supérfluos na máquina

estatal (eliminação de autos oficiais, salários excessivos, jubilações de privilégio e outros gastos); suspensão do

pagamento da dívida externa (150 bilhões de dólares) e criação de uma terceira moeda. Propunha também um

plano para um milhão de postos de trabalho que, em uma semana, atingiu 230 mil pessoas. Sua renúncia era

justificada pela falta de apoio político em seu próprio partido (PJ).

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dirigentes sindicais acompanham as impressões generalizadas por militantes de

esquerda, sindicalistas e cientistas sociais.

De la Rúa decretou Estado de Sítio, em mensagem em cadeia radiofônica

nacional. A reação popular espontânea que já se desenvolvia não retrocede; pelo

contrário, ela se torna mais visível e com repercussão nacional nos meios de

comunicação, à medida que ocorre na Praça histórica das disputas de poder, que é

a Praça de Maio, como relatado por literatura acadêmica sobre o tema,

depoimentos em entrevistas e periódicos13. Começaram a soar nas ruas os ruídos

de caçarola. Por sua vez, “os meios, que acabavam de transmitir a mensagem

presidencial, seguiram difundindo o que ocorria em distintos pontos da cidade e se

converteram em um enlace importante do grande evento que começava a se gestar.

“Os portenhos ganharam as ruas, os vizinhos de um mesmo bairro convergiam nas

esquinas e as praças; todos com vestimentas informais, as mulheres carregando

seus filhos e empunhando os mais criativos apetrechos domésticos para fazer soar

a desconformidade e o hartazgo. Espontânea y simultaneamente, apareciam os

primeiros „Que se vayan todos‟” (Giarracca e Teubal, 2007:112). Referindo-se ao 19

de dezembro, “em menos de meia hora a praça se encheu e começou a luta de

consignas. A primeira refletia o conteúdo mais primário da ação em marcha: „Que

boludos, qué boludos, o estado de sítio se lo meten en el culo!”. O que começou a

precisar as conseqüências necessárias de essa intervenção política foi „Fora

Cavallo‟, rendendo frutos imediatos. „Fora De La Rúa‟ já se somava e competiria

com „Que se vaiam todos!‟ que dominaram os fatos dali para adiante”. Como e

quando havia começado o caçarolaço que havia iniciado a queda do governo, é

uma matéria de discussão, ainda que haja coincida em que havia começado com

manifestações isoladas de comerciantes na zona de Barrio Norte, Belgrano,

Caballito, Palermo y Liniers. Não tardaria em estender-se a quase toda a cidade,

provocando mobilizações à quinta presidencial de Olivos, ao apartamento de

Cavallo, à Praça do Congresso e, sobretudo, à Praça de Maio. Tratou-se de uma

manifestação política majoritariamente pacífica com conteúdo opositor à política do

governo, protagonizada, sobretudo ainda que não exclusivamente, por sua própria

base de sustentação: a pequena burguesia. Ainda que tenha havido manifestações

13

Consultamos em publicações periódicas, em bases de dados virtuais, especialmente Clarín e La nación, no

período que antecede dezembro e transcorrer de 2002. Também realizamos esse levantamento no periódico La

verdad (PTS), o único periódico de esquerda que mantém seus arquivos periódicos digitalizados desde 2001.

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pelo estilo em outros lugares do país (La Plata, Bahia Blanca, Santa Rosa), o

epicentro do movimento é a capital.

Para a entrevistada Cista, atualmente operária da Brukhman e em 2001

desempregada, de maneira repentina começou a ser divulgado na televisão as

pessoas se juntando na Praça de Maio. Na villa em que mora, constituída

basicamente de imigrantes paraguaios e seus descendentes, os jovens se juntavam

nas esquinas na povoação para em grupo irem para a praça de maio. Por outro

lado, em Lloma de Zamora eram difundidos boatos sobre bandos de outras villas

que vinham saquear as casas de seu povoado e de outros bairros. Havia uma

grande indefinição, de acordo com a entrevistada sobre o que ocorria naquele

momento. As principais referências políticas naquela região, ligadas ao Movimento

Libre Del Sur, que no final daquele ano constituiria o Movimento Barrio de Pie,

organizavam os moradores (jovens especialmente) para irem para a Praça de Maio

resistir ao mesmo tempo que nos dias anteriores “negociavam” com os

supermercados e comerciantes da região alimentos para a população, para que não

houvessem saques em seus estabelecimentos.

Na Praça de Maio, praça histórica no centro de Buenos Aires, em frente à

Casa Rosada. Nas primeiras horas do dia 20, “Já a 1 da manhã da quinta-feira 20,

quando todavia se festejava a renúncia de Cavallo, a polícia reprimiu aos

manifestantes e se produziram” (Sartelli, ). Naquele dia, “Ao meio dia se desatava

uma feroz repressão, primeiro na praça e logo nas proximidades. Depois se soube

que grande parte da Grande Buenos Aires sofreu quase um massacre. Cerca de 10

pessoas morreram no centro e mais de 30 em outras zonas, mas a maioria caiu no

fatídico Grande Buenos Aires. Foi a pior repressão durante um governo eleito

democraticamente: em poucas horas, mais de 40 pessoas, quase todos jovens,

foram assassinados à vista de toda a população” (Giarracca e Teubal, p.112). Em

razão direta da repulsa generalizada contra a repressão militar, De la Rúa fugiu em

um helicóptero frente ao repúdio popular às suas ações ditatoriais e repressivas.

Da queda de La Rua (20/12/2001) e a chegada de Eduardo Duhalde (janeiro

de 2002), cinco presidentes14 se sucederam na presidência da República. Na

realidade foram seis presidentes necessários para que as frações burguesas

14

01 eleito; 02 interinos; e 02 eleitos pela assembléia legislativa. Chama-nos a atenção que, dentro dessa

instabilidade institucional profunda, não foram chamadas novas eleições presidenciais somente para 25 de maio

de 2003, mesmo assim por causa do enfraquecimento de Duhalde.

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acordassem uma saída de maneira relativamente unificada. A crise do regime

político estava aberta. “Durante esse ano e meio, a burguesia permaneceu dividida

em torno de uma saída política para o país, porque detrás da interna do

justicialismo e as oposições Menem-Duhalde primeiro, Menem-Kirchner depois, se

estendia a disputa entre as diferentes frações do capital que buscavam zanjar a

situação umas contra outras” (Sartelli,2003).

As formas de luta que seguiram às manifestações de rua, no centro de

Buenos Aires, na Plaza de Mayo e na Casa Rosada, com batalhas de rua contra as

forças da repressão, se cristalizaram da seguinte maneira, algumas transitórias

outras não: a) organização em assembléias de bairro em muitas áreas de Buenos

Aires e constituição da interbairros, no Parque Centenário (localizado na Avenida

Rivadavia, a cerca de 2 quilómetros do Congresso Nacional), desenvolveu-se com

muita força durante o ano de 2002; b) manutenção dos piquetes de rua das

organizações de trabalhadores desocupados; e que começou a sofrer uma divisão

interna no período de Duhalde e que se fracionará ainda mais com a gestão de

Néstor Kircnher; c) a ocupação dos trabalhadores nas fábricas e empresas falidas,

em um movimento de empresas recuperadas e com processo de autogestão; d)

marchas semanais pela renúncia da Corte Suprema de Justiça que tiveram vida

curta encerrando-se no primeiro semestre de 2002; e) cacerolaço semanal com a

consignia “Que se vayan todos, que no quede nadie”.

Uma grande mobilização ocorreu, logo depois de janeiro, quando o movimento

piqueteiro impediu o acesso à Capital e outras cidades (verificar essa informação

detalhada), reunindo nessa ocasião uma manifestação com cerca de quinze mil

pessoas, envolvendo movimento piqueteiro e assembléias populares. Assim é

relatado por um períódico da esquerda argentina: “colunas de desocupados da zona

sul cortavam a Puente Pueyrredón. Simultaneamente, desde Liniers começavam a

marchar as organizações de desocupados que, proveniente de La Matanza e da

zona oeste, se desplegavam durante a jornada ao largo da avenida Rivadavia. Era

o início da mobilização convocada pelo Bloco Piquetero nacional integrado

fundamentalmente pelo Movimento Tereza Rodriguez (MTR), o Movimento

Territorio Liberação (MTL) e o Polo Obrero, com a soma de outros agrupamentos

piqueteiros (MUP, etc.), o Movimento Independente de Jubilados e Pensionados

(MIJP-CND) e um setor da CTA (Barrios de Pie). Foi uma mobilização contundente,

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que contou com a presença de mais de 15 mil companheiros e ganhou o centro

político do país” (Palavra obrera, 17 de janeiro de 2002).

De acordo com vários periódicos de esquerda (Partido Obrero, Convergência

Socialista, PTS), especialmente em bairros da Grande Buenos Aires

desenvolveram-se naquele momento novas instituições de organização operária e

popular. São as chamadas “Assembléias Populares” que se desenvolvem na capital

argentina, em regiões como General Sarmiento, Florencio Varela, Hurlinghan,

Escobar, Longchamps, Avellaneda, entre outras. Em sua composição agrupam-se

trabalhadores, desocupados, docentes, trabalhadores da saúde e vizinhos em geral.

Na Grande Buenos Aires, essas assembléias iniciaram articulações mais gerais,

como por exemplo através de Assembléias Interbarriais. Essas organizações atuam

a partir de condições e reivindicações muito concretas, como ocorre com as

“Comissões de Vizinhos”, que se organizam por um lado para impedir o corte dos

serviços de água, luz, gás, uma vez que essas populações estão incapacitadas de

pagamento desses serviços, e por outro lado para reivindicação de emprego e

alimentação.

Esse quadro político apresenta-se de maneira muito nítida em distintos

autores. Naquele quadro político, “a tendência geral é o isolamento do governo, não

somente em relação às frações sociais opositoras senão também em sua própria

base de sustentação social e eleitoral. Tendência que se agrava à medida que

intenta conter a crise econômica em marcha no marco da Convertibilidade, o que

força a redução dos salários no setor estatal e ao congelamento de depósitos para

evitar a fuga de divisas e ver-se obrigado a declarar o default da dívida.

Indubitavelmente, os dois elementos que põem o maior dramatismo à situação são

o corralito e os saques” (Sartelli, 2002, p.137).

Distintos setores sociais adentraram à cena política abrindo uma situação

revolucionária marcada por a queda de cinco presidentes da república no prazo de

treze dias. Nessa conjuntura ocorreu uma condensação de determinações políticas

e sociais geradas no transcorrer da década de 1990, especialmente em decorrência

de inúmeras medidas econômicas, e que teve na crise financeira internacional de

1998 seu pano de fundo mais imediato. Mas é na conjuntura específica de

dezembro de 2001 que a crise deixa de ser somente econômica, política ou social,

e configura-se como crise do regime político. A literatura sociológica e política do

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período, os relatos de jornais e as entrevistas nos possibilitam realizar essa

afirmação.

As marcas dessas intensas mobilizações ainda hoje se verificam na sociedade

argentina, em sua Capital especialmente. O que chama mais atenção para um

brasileiro é o significado da rua (“calles”) para os argentinos, ao menos aqueles que

se localizam em Buenos Aires e distritos. As manifestações de rua continuam como

a forma de manifestação política que convive com uma relativa naturalização dos

próprios setores da classe média: são os piqueteiros, os distintos movimentos de

bairros, os trabalhadores estatais em greve, os apoios ao governo ou aos setores

rurais.

6.A retomada das iniciativas institucionais e a reordenação do bloco no poder

em 2002

Eduardo Duhalde expressou os reclamos de frações da burguesia, ao

defender a desvalorização cambial do peso em relação ao dólar. Portanto, é

necessário evidenciar que existe uma disputa entre interesses. As frações

burguesas pareciam não mais se acomodar em um acordo político nacional, em um

pacto social entre os de cima, uma vez que suas distintas frações iniciam uma

guerra de movimentos no sentido de atacar ou defender o pilar central do modelo

econômico então vigente, ou como designa Basualdo (2007) com acerto, regime de

acumulação capitalista de base rentista, baseado na convertibilidade monetária (um

peso, um dólar). Foram intensas essas disputas, entre 1998 e 2001, e somente

tiveram uma resolução ao menos provisória a partir de 2003. Essas disputas no

cenário político ocorreram em torno da manutenção ou fim da convertibilidade.

Ganhava um conteúdo político mais geral em torno da queda de Fernando De la

Rúa ou sua manutenção sem Domingo Cavallo, ou modificando sua direção

econômica.

No último período da convertibilidade (1998-2001) foram se desenvolvendo

duas propostas alternativas, de acordo com Basualdo (2007). A proposta defendida

pelos capitais estrangeiros visava aprofundar o regime de câmbio, substituindo a

convertibilidade pela dolarização. Desta maneira, essa fração do capital ligada a

produção de bens e serviços no país preservaria suas inversões com o valor do

dólar, evitando perdas patrimoniais. O mesmo ocorria com o setor financeiro

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transnacional que evitaria que suas dívidas em dólares se acrescentassem em

pesos ou perdessem por causa de não cobrança em dólar. Por outro lado, existia a

proposta dos setores da oligarquía diversificada (grupos econômicos e alguns

conglomerados estrangeiros) que, como objetivo, defendiam que a convertibilidade

fosse substituída pela desvalorização monetária. “Salta à vista, e se comprovou

pela experiência posterior, que este tipo de política econômica gera os efeitos

contrários à anterior, infligindo-lhe perdas patrimoniais ao capital estrangeiro e

potencializando na moeda local o poder econômico da oligarquia diversificada, já

que seus recursos invertidos no exterior e os ingressos correntes de seu saldo

comercial estão dolarizados. Sem dúvida, a potência desta proposta, que finalmente

será a que prevalecerá como alternativa à Convertibilidade, radicou em que não se

sustentava unicamente nos interesses particulares da fração do capital que lhe

impulsionava senão da oligarquia argentina em seu conjunto, porque os efeitos

redistributivos de uma desvalorização também a benificiavam, e na notável

consolidação do transformismo argentino a partir do Pacto de Olivos” (Basualdo,

2006, p.165).

A partir dos altos preços internacionais das matérias primas (commodities),

que se desenvolvem a partir de 2002, a desvalorização cambial possibilitou os

enormes ganhos com a exportação de petróleo e gás e, em seguida, com os

produtos agropecuários e industriais (em especial, os produtos agroindustriais), em

detrimento dos serviços públicos privatizados que eram os destacados na década

de 1990.

O curto governo de Duhalde foi sustentado por um amplo acordo entre os

partidos políticos e movimentos sociais (CTA e FTV, por exemplo), tendo como

centro um comando centralizado no PJ e na Liga dos Governadores peronistas,

mas por outro com uma intensa negociação com o Fundo Monetário Internacional

(FMI), que em nenhum momento se apresentou como rompimento com essa

instituição. Pelo contrário. Situado na profunda crise política, econômica e social,

Duahalde toma posse no dia 01 de janeiro de 2002, com o seguinte discurso:

“Assentar as bases de um novo projeto nacional fundado na produção e no trabalho, na recuperação dos mercados internos e externo e na promoção de uma justa distribuição da riqueza. [...]. Estamos convocando a definir o país que queremos. Um país com crescimento sustentado, com distribuição equitativa da riqueza, com geração de emprego, donde volte a ser um

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direito inalienável, viver, trabalhar e progredir em paz. [...]. Que necessitamos para lograr esse projeto? Recrear a aliança com a produção e o trabalho. Reestabelecer o papel do sistema financeiro como instrumento entre a produção, o comércio, a inversão.”

Em seu discurso evidenciava a transição para um período de enfoque na

produção, na distribuição de renda e na geração de emprego. Nesse sentido, é o

discurso peronista da justiça social e da produção. Enfatizava também a discussão

sobre aspectos institucionais, relacionadas à forma de governo (Parlamentar ou

Presidencialista) e períodos eleitorais: “Nossa intenção é reformar a política”. E em

especial acentua a questão social: “Temos unificado os planos de assistência social

através da criação do Conselho Nacional de Programas Sociais. Temos elevado a 2

milhões os postos de trabalho para chefas e chefes de domicílios sem ingresso,

jovens e beneficiários do programa Segunda Oportunidade. [...]. A primeira medida

que tomei como presidente foi destinar 350 milhões de pesos ao Plano Alimentario

que alcança de forma descentralizada a 1.600.000 famílias, e estamos

implementando com todos os governadores”.

Em relação aos governadores, Duhalde firmou um documento com 14 pontos

(Documento, 24/04/2002) com os governadores que lhe permitia a governabilidade

no período de sua gestão: integração do país no mundo, acordos bilaterais com as

províncias (pacto fiscal), novo sistema de coparticipação de impostos, políticas

fiscais e monetárias para manter a estabilidade econômica, repatriação de capitais

argentinos, estimulo às inversões nacionais e estrangeiras para exportação de

produtos manufaturados ou de substituição de importação, reforma política,

constituição de mecanismos de planos de emprego, entre outras. Pode-se verificar

nos pontos mencionados que eles reforçam a posição das províncias e de suas

economias regionais, por meio de lei de coparticipação de impostos e incentivo à

produção regional, por exemplo.

Para Godói (2006), em sua análise sobre o período, o “governo de

emergência” de Duhalde foi uma das principais condições que permitiu a chegada

de Néstor Kirchner ao governo. Isso porque Duhalde conseguiu estancar a crise e

iniciou uma política econômica “neodesenvolvimentista”. No entanto, esse governo

“questionado pela agitação social – não pode chegar a criar sua hegemonia no

Estado, mas garantiu a continuidade da democracia política”. Com o apoio de

Duhalde, nesse contexto, o kirchenerismo iria constituir uma nova hegemonia,

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estabelecendo uma continuidade-ruptura com a fase de transição duhaldista.

Continuidade porque Néstor Kirchner manteve as linhas de política econômica de

Duhalde; ruptura porque disputa politicamente a base política do ex-presidente e

impõe um estilo político de centralizador e de cooptação dos movimentos sociais.

Não deixa de ser espantosa a mudança discursiva e de propostas econômica

e política em relação ao peronismo da década de 1990, que assumiu integralmente

as diretrizes de ajustes estruturais propostas pelo FMI através do ex-presidente

Carlos Menem. É talvez mais notável que essa retomada ocorreu depois da derrota

peronista de 1999 diante da Aliança de Fernando De la Rúa e Chacho Alvarez.

Esse novo quadro político havia remetido o justicialismo a uma quebra da principal

liderança nacional de então, que estava nas mãos de Carlos Menem, remetendo

esse partido a um contexto de fragmentação interna, quando as relações de poder

começaram a inclinar-se para os governadores peronistas. Surgiria uma espécie de

confederação de aparatos políticos provinciais. Os governadores transformam-se

“em verdadeiros caudilhos territoriais que remetem suas influências sobre as

legislaturas provinciais, os intendentes municipais e os deputados e senadores

nacionais de seus respectivos distritos, que incidiam dessa maneira na organização

do partido a nível nacional” (Arzadum, p.67). Esses poderes locais também estavam

estruturados em uma rede de relações clientelísticas que impactavam sobre a

organização justicialista. Mas os governadores não constituíam a única referência

de poder. Por um lado porque ocorria uma diferenciação entre as pequenas e

grandes províncias. Por outro, a maioria do Senado peronista remetia a um

processo de autonomização diante dos governadores. E por fim existiam os homens

fortes do peronismo, como Carlos Menem (presidente do PJ) e Eduardo Duhalde

(titular do Congresso Nacional Justicialista).

“O traço a destacar é que, pese a indisciplina reinante no partido e a violenta dinâmica de feudalização interna que o caracterizava, a organização peronista em seu conjunto conseguiu construir uma estratégia exitosa de acesso ao poder, o qual se evidenciou nas horas mais críticas que sucederam à queda do governo aliancista, logo dos levantamentos populares que derivaram na renúncia do presidente De la Rúa. O que se observou nessa instância, em termos gerais, é que cada uma das parcelas partidárias conseguiu unificar seus interesses gestando um equilíbrio sumamente instável mas que a unidade de conjunto necessária para fazer valer uma postura homogênea na qual se reconheceriam todas ou a maioria delas.” (Azardum, p.73-4).

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Entre os partidos da ordem, o peronismo estava melhor localizado para

enfrentar a crise política que atravessou o país a partir de 2001. A Liga dos

Governadores apoiou a indicação de dois personagens peronistas: Adolfo

Rodriguez Saa e depois Eduardo Duhalde. Essa força decorria de três fatores

naquele contexto: capacidade de gestão para conter e administrar a crise;

fragmentação interna expressada em uma ampla oferta de candidatos, programas e

linhas políticas; debilidade estrutural dos partidos de oposição.

7.A rearticulação do bloco no poder e o restabelecimento da Ordem Social

Na outra ponta do mesmo processo político em curso, o cenário trazia como

problema central para a burguesia a manutenção ou retomada da estabilidade

política e econômica. Isso certamente não ocorreu de maneira mecânica. Além das

razões instrumentais e corporativas que se estabeleceram, dificultando o

acomodamento dos seus interesses em conflito, sucedeu-se um outro problema, de

dimensão irremediável. A questão da liderança moral e material (política e

partidária) torna-se um problema central. Liderança que possibilite rearmar,

reconduzir, rearticular os distintos grupos e classes sociais dentro de uma ordem

social, ou então ao menos que neutralize os setores sociais mais opositores ao

processo de aggiornamento. Quando açoitada pelos de baixo, que se multiplicam

em seus protestos e contestações, abrindo cenários políticos que transbordam a

ordem social do capital, as frações burguesas unificadas tendem a exigir do seu

Estado a utilização dos recursos coercitivos, de maneira mais vigorosa ou de

maneira dispersa territorial e espacialmente. As vozes que clamavam pelo

reestabelecimento da ordem social são potencializadas especialmente pelos meios

de comunicação (rádio, televisão e jornais) e se transmutam em analistas e

cientistas políticos, jornalistas e um sem-número de vozes que se abrem e se

fecham de acordo com as necessidades de essas frações burguesas. A constituição

do consenso opera portanto na subjetivação e naturalização das ações repressivas,

justificadas, de acordo com a manutenção maior que é a Ordem social. Os aparatos

repressivos (policial, militar e judicial) certamente mantêm esse papel fundamental

nos estados capitalistas ainda no século XXI.

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No quadro político dos acontecimentos abertos em dezembro, no entanto, três

problemas se mantiveram: divisão entre as frações burguesas; esvaziamento moral

e político das lideranças da ordem (partidos da ordem); recuo relativo dos aparatos

de segurança. A resolução desse problema central para a burguesia está

sintetizado em distintas análises do período. Sartelli, por exemplo, considera o

seguinte: “Ante o possível desmoronamento do Estado, como consequência do

descalabro do sistema, era urgente construir a liderança política. A diferença da

história passada, donde cada crise do sistema político contava com uma retaguarda

militar pronta a intervir, nesta situação, não havia nada preparado ante a

eventualidade de um desborde da situação. Todo o sistema esteve à deriva até que

recaló no único aparato político relativamente importante que ficou em pé, o

peronismo da província de Buenos Aires e seu chefe, Duhalde. É o próprio Duhalde

o que desenha a política que Kirchner não vai fazer mais que continuar,

continuidade mais que evidenciada na permanência de seu ministro, Roberto

Lavagna. Em determinado momento, o próprio Duhalde imaginou sua própria

continuidade, mas para isso devia desmobilizar a boa parte da sociedade que não

ia a tolerar facilmente que a crise se fechara sem que nenhuma de suas demandas

se cumprira ainda que mais não fora em algum grau real e/ou simbólico. A função

dos assassinatos de Puente Pueyrredón foi essa: testar a medida em que era

possível iniciar a tarefa de desmobilização. O resultado negativo obrigou ao governo

a por-lhe data ao fim de seu mandato e chamar as eleições. O “vaiam todos” havia

resistido a sua liquidação, ainda que ia em caminho de canalizar-se por via

eleitoral. Todo o problema posterior consistia na disputa entre as frações que

representavam menemistas e duhaldistas, preocupados estes últimos porque não

se lhes expropriara a vitória conseguida hasta o momento, vitória que se

corporizava, primeiro que nada, na desvalorização” (Sartelli, p.155).

Nesse quadro denominado como Argentinaço apresentaram-se diferentes

momentos: um momento da luta interburguesa com intervenção subordinada da

classe operária, um momento de agudização das contradições sem luta, e um

momento de tipo insurrecional. O primeiro é protagonizado pelas frações que

dirigem CTA-CGT-CCC e que conta com uma enorme aceitação por parte do

conjunto da sociedade, em tanto reflete o isolamento do governo. Aí a direção

intelectual recai nos meios de comunicação e em intelectuais de origem pequeno-

burguesa e burguesa que compõem a cúpula do partido justicialista e a direção

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moral a tem a burguesia em seu conjunto, com um maior peso da desvaloricionista,

enquanto a direção técnica está em mãos das centrais sindicais. O processo se lhes

escapa das mãos, ao iniciar-se o momento de agudização das contradições sem

luta, os saques, protagonizados pela fração mais pauperrizada da classe operária.

É nesse momento em que a coalizão que tem iniciado o processo tende a separar-

se da responsabilidade das ações. A contra-ofensiva do pessoal político que ocupa

o comando do estado, o estado de sítio ditado pelo governo, desencadeia o

momento insurrecional, primeiro da pequena burguesia (seu 17 de Outubro) e logo

a classe operária. Nos dois casos, não existe direção técnica, mas sim direção

intelectual e moral, que recai naqueles que hão portado em suas palavras e ações a

tendência insurrecional: o movimento piqueteiro. O fato como tal deve restringir-se à

noite de quarta-feira e à tarde de quinta-feira, considerando-se as ações da CTA-

CGT-CCC como partes componentes da luta burguesa que desencadeiam a crise e

aos saques como o momento de expressão aguda da mesma. A direção do

Argentinazo é, então, incompleta, em tanto careceu de unidade de comando

técnico, ainda que não de direção moral. Esta composição contraditória da direção

é explicada a sorte final do Argentinaço: por sua direção moral teve uma potencia

suficiente para sacudir ao governo do estado e frear o desenvolvimento da

estratégia burguesa no seio do proletariado; por sua carência de direção técnica

não pode fazer efetivo e duradouro seus resultado. O argentinaço não é, então, a

emergência de uma estratégia de luta democrática e antiimperialista, senão o

fracasso da mesma em conter em seus limites a emergência de uma estratégia de

corte insurrecional potencialmente revolucionária. (p.165-66).

Os movimentos sociais piqueteiros constituíram-se em relações de

reivindicações e confrontos com o Estado desde ao menos 1996, como relatado na

literatura especializada. Os movimentos piqueteiros, como foram conhecidos,

referem-se diretamente às conseqüências das formas de reestruturação produtiva e

reestruturação do Estado na qual se desenvolveram na década de 1990. Desde

suas ações iniciais, a política do Estado com esses movimentos combinou

estratégias de negociação, cooptação e também repressão. A política de contenção

do conflito social se desenvolveu prioritariamente por meio de distribuição de

pacotes de planos sociais e ajuda alimentícia em troca do levantamento de cortes

nas estradas. Por sua vez esteve acompanhado pelo endurecimento repressivo

com o papel da Gendemería Nacional que passou a controlar os conflitos sociais.

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Desta maneira, a repressão policial abarcou pessoas, asassinatos e uma

permanente perseguição judicial que soma mais de três mil processamentos entre

dirigente e militantes.

Essa situação resultou de uma profunda crise que, em sua dimensão

conjuntural, continha em sua gênese a crise financeira internacional15 que atingiu a

Argentina, Brasil, Equador, México e outros países de maneira profunda. De

imediato, isso significou no país uma perda de (...). Na seqüência de dos anos de

crise internacional, o país chega entre 26 e 30 de novembro de 2001 com uma fuga

de capitais na ordem de U$S 2.727 milhões de dólares. Em decorrência disso, o

desemprego ultrapassa todos os horizontes de até então: 2.500.000

desempregados e outros tantos subempregados. A precarização atinge cerca de

50% dos assalariados que recebem menos de 300 pesos mensais. Chegou a 18

milhões de pobres e 3 milhões de crianças indigentes.

Em conseqüência disso, em 2002, a Argentina cai em sua maior recessão

econômica e o desemprego atingia 21,5% da população economicamente ativa.

54% da população encontrava-se abaixo do limite da pobreza e metade dessa

população (27%), na linha da indigência. Do final de 2001 e durante o ano de 2002,

a população desse país radicalizou suas palavras de ordem (“Fora Todos!, Fora

FMI”), constituiu Assembléias Populares permanentes em várias regiões, além de

inúmeras ocupações pelos trabalhadores de fábricas falidas.

No entanto, a crise política aberta em dezembro de 2001 e que se estendeu

por 2002 não esteve somente limitada à conjuntura econômica da crise financeira

internacional que teve seu ápice no corralito bancário. Certamente que essas

determinações foram a “gota d`água” em um quadro social e econômico de rápida

degradação em cerca de 25 anos (1976-2001), em uma forma de política

econômica implantada na ditadura militar (1976-1983) e que tiveram continuidade

nos governos civis pós-ditadura do período de Eduardo Alfonsin (1983-1988), nas

duas gestões de Carlos Menem (Basualdo, 2006; Seoane, 2007; Peralta, 2007) e

que se manteve na curta gestão do presidente Fernando De La Rúa (1999-2001).

15

A crise financeira de 1999 tem seu ponto de partida na crise norte-americana em torno das então conhecidas

“pontocom”. Superdimensionamento de ações de empresas fictícias ou de baixo rendimento, desenvolveram o

fenômeno das “bolhas especulativas”. Os países semi-coloniais, submetidos à lógica financeira de empréstimos

de capital especulativos para pagar as dívidas públicas (interna e externa), sofreram uma rápida retirada desses

recursos dos títulos públicos e das ações de suas bolsas de valor. Desta maneiras esses países entraram em

default, ou seja... insolvência financeira.

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8. Os Kirchner: do ascenso de Néstor ao primeiro ano de Cristina

Em 2002, Néstor Kirchner não era o candidato indicado por Duhalde, mas sim

Carlos Reuteman ou José Maria De la Sota (Sola, 2008), ou em outra indicação

Roberto Lavagna (Wornat, 2005). A declinação desses nomes tornou a candidatura

de Kirchner como única plausível possibilidade para Eduardo Duhalde. Kirchner foi

eleito com 22% dos votos argentinos (4.312.517 votos), a porcentagem mais baixa

de uma eleição presidencial na argentina16. Em 25 de mayo de 2003, Kirchner

assumiu a presidência com uma estreita base político-parlamentar, decorrente do

fracionamento do justicialismo, se expressou em três candidaturas presidenciais na

mesma eleição, em apoio a sua gestão, o que lhe obrigaria a se apoiar na base

política duhaldista. Mas especialmente com diversas organizações piqueteiras que

ainda se mantinham em permanente mobilização e uma população descrente com

os espaços institucionais.

A posse de Néstor Kirchner e o desenrolar de sua gestão estiveram

diretamente ligadas às forças sociais que se destamparam no cenário político com

os acontecimentos de dezembro de 2001. A contundência dos fatos políticos e

econômicos é por demais evidentes para afirmar que, em relação aos períodos

anteriores, houve relativas vitórias distorcidas sem dúvida nas inúmeras

reivindicações que se acoplavam naqueles acontecimentos. Especialmente é

evidenciado que a discursiva kirchnerista não se manteve a mesma da década

neoliberal que teve continuidade no curto mandato da Alianza com De la Rúa. A

nova correlação de forças abriu um campo de profundo questionamento à ordem

burguesa, seus políticos e partidos, como também aos próprios interesses da

burguesia. As jornadas de dezembro de 2001 não foram derrotadas, se tomamos

como referência que muito do que foi planteado como seu conjunto de

reivindicações foram conquistas relativas. Foram conjuntos de concessões

16

As candidaturas presidenciais foram as seguintes: Kirchner - FPV (22%), Menem – Frente por la Lealdad

(24.3%), Ricardo Lopes Murphi - Recrear (16.3%), Adolfo Rodriguez Saá - Frente Movimento Nacional e

Popular (14.1%), Elisa Carrió – ARI ( ) e Leopoldo Moreau – UCR ( ).. Observa-se que os três candidatos

justicialistas obtiveram 60% dos votos. O que poderia ser analisado como respaldo eleitoral ao peronismo, em

decorrência dos efeitos econômicos e sociais da gestão de Eduardo Duhalde, especialmente o que havia

representado os Planos Sociais. Nessa linha de análise verificamos distintos autores: Arzadum, Godói, Acuña e

Peralta Ramos. Mas também esses resultados demonstravam um fracionamento do justicialismo, dificuldade

que seria intrínseca a Néstor Kirchner e ao seu projeto político, o que lhe impulsa a tratar com um arco de forças

políticas, para constituir sua base política congressual, em torno da proposta de transversalidade, que também

se tornou principal base de embate com o seu até então aliado, Eduardo Duhalde. Os resultados também

mostravam nitidamente os candidatos da antiga coalizão Aliança (Frepaso/UCR), no caso de Carrió e Moureau.

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necessárias para o restabelecimento da ordem social e a recomposição do grande

capital. Nesse sentido nos parece coerente a seguinte análise: “... Para a classe

obrera ocupada em geral, é claro que há aberto uma mudança nas relações de

força que se manifesta primeiro que nada no clima ideológico: o Argentinazo

sepultou o neoliberalismo como ideologia incontestada. Se barrou com a principal

defesa ideológica da flexibilização laboral e da tendência ao incremento sistemático

da taxa de exploração. Para a classe obrera desocupada, o Argentinazo significou

dois milhões de Planes Trabajar. Em termos de interesses mais gerais da classe

obrera e seus aliados, o resultado do Argentinazo é um empate. O primeiro empate

em uma larga série de derrotas. Porque o processo histórico argentino, até 19 e 20,

estava sinalizado pela tendência à derrota e à expropriação política da classe

obrera. Todas as mobilizações da classe obrera e da pequena burguesia

terminavam em pouco e nada e eram expropriadas por algum partido burguês: por

Alfonsin, por De la Rúa, por Menem. Mas nesse 19 e 20 se conseguiu um empate.

Quais são os elementos do empate? Vão desde aqueles que tem valor simbólico

até os que têm um peso real e efetivo. O primeiro elemento é o default. O default

significa simbolicamente (não realmente) que se há posto um limite à exacción ao

trabalho nacional.

Para Godoi, Kirchner expressava uma revolução por cima que vinha se

desenvolvendo depois de dezembro de 2001 e que estava inscrita na estabilidade e

leve recuperação econômica ocorrida no período de Duhalde-Lavagna.

O novo presidente havia formado um governo sem negociar previamente sua

composição com as corporações que agrupam aos grandes grupos empresários

nem com os sindicatos, nem consultando o partido ou setores dos partidos de

oposição propensos a apoiar sua gestão. Diz Daniel Arzadun sobre os momentos

iniciais desse governo:

O exercício duro do mando e a seleção de inimigos para combater, com baixo custo político e alto consenso social interno, edificaram a equação original desde a qual Kirchner buscou recuperar o vínculo com os setores populares descrentes da política e de seus representantes. O chamado à construção de uma força política transversal aos alinhamentos partidários completava a engenharia política elementar do presidente, tendendo a elevar o piso de sustento político para reelegitimar seu cargo. Esta estratégia dura não se fez esperar, ao pouco tempo de assumir suas funções, Kirchner destampou seu primeiro golpe de mando ao decretar a

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renovação das autoridades castrenses; poucos dias depois, o gesto se voltou a reiterar com outros uniformizados, a Polícia Federal sofreu a baixa de dez comissários gerais. O cenário político começou a reconfigurar-se em base ao decisionismo presidencial, às medidas anunciadas lhe seguiram outras que respondiam à mesma linha voluntarista: a revisão dos contratos do Estado com as empresas de serviços privadas, a intervenção da obra social dos jubilados, tradicionalmente visualizada como um âmbito de corrupção, o início do processo de enjuizamento aos membros da Corte Suprema de Justiça acusados de conivência com o menemismo governante nos anos 90. Sua prédica confrontativa com os poderes globalizados, fundamentalmente com o FMI e com os proprietários de bonos defaulteados, a reivindicação da geração dos setenta junto com a persistente reclamo de verdade, justiça e memória na temática dos direitos humanos (o qual incluía a abertura dos julgamentos por violaciones a estos direitos) marcaram uma quebra drástica em relação ao discurso noventista dominante. Kirchner se apresentava em uma sociedade inaugurando um clima de época remoçado, como parte de algo novo cuja identidade se contorneava em torno à oposição às políticas neoliberais dos noventa, ancorando-se nos novos ventos políticos que começavam a soprar em América Latina. A opinião pública mudou seu cetecismo em esperança e decidiu acompanhar a nova experiência política perfilando-se atrás da figura presidencial, conformando um vínculo signado por um plebiscitarismo virtual, próprio das novas formas políticas contemporâneas, mediáticas e teatralizadas. (Arzadum, 2008:94)

Qual foi sua base política de apoio? De acordo com Llana (2007), a

composição do governo Kirchner vem de três trajetórias: o primeiro grupo, estão ex-

funcionários de sua extrema confiança, quando governador em Santa Cruz; o

segundo grupo, integrado por ex-menemistas, ex-caballistas, ex-duhaldistas, e ex-

montoneros; no terceiro grupo estariam integrados funcionários que provém de

diversas forças políticas de esquerda (comunistas, castristas e chavistas). Além

disso, compuseram esse governo:

Alguns jornalistas vinculados no passado com grupos guerrilheiros também têm influência, assim como a constelação das agrupações vinculadas aos direitos humanos, como as mães e avós da Praça de Maio. Podemos incluir nesse grupo líderes de bairro e “piqueteiros”, incorporados ao governo, cuja função é mobilizar os setores associados à política social clientelista, que contribuem para montar o espetáculo nos atos e cerimônias oficiais. Como é possível perceber, não existe uma base cultural importante. (p.28)

Ainda de acordo com o sociólogo argentino, as primeiras preocupações de

Kirchner referem-se à construção de sua base social de apoio. Para isso, teve

iniciativas no sentido de cooptar a estrutura justicialista que Duahalde liderava em

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sua província, como também a “cooptação de governadores e intendentes radicais”.

Ainda para Llana:

Este conjunto de dirigentes locais na verdade expressa o populismo em estado puro, com liturgia peronista. Existem enquanto possuem os recursos que o governo nacional e provincial lhes facilita e assim torna-se fácil para o presidente contar com o apoio desses grupos que encarnam, como poucos, a velha política que supostamente o “progressismo” desenterrou. Esses intendentes são, antes de tudo, candidatos perpétuos à reeleição, e alguns ocupam o poder local desde o retorno da democracia em 1983. (p.29)

O projeto político dos Kirchner (Cristina e Nestor), nesse sentido, segue

reconstruindo a partir dos fragmentos do sistema político argentino um projeto que,

para Llana, seria “apresentar que o peronismo mudou para uma força de esquerda,

definitivamente o velho sonho dos montoneros” (idem).

As iniciativas políticas nos primeiros meses de governo tiveram como

resultado canalizar distintas bases sociais em seus reclamos históricos ou de

caráter imediato. Em sua posse, estiveram presentes os principais chefes de Estado

latino-americanos, entre os quais, Hugo Chávez, Fidel Castro e Luis Inácio Lula da

Silva. O que indicava, por um lado, um novo quadro político na região de

questionamento ao neoliberalismo e, por outro, um esboço das políticas de

integração regional. Em seu discurso de posse, por exemplo, ficaram nítidas as

principais preocupações: dívida externa, planos sociais e reforma institucional e

moral. Não haveria o pagamento da dívida com a “hambre y la exclusión de los

argentinos” (La nación, 26/05/2003). As iniciativas políticas que desferiu contra a

alta hierarquia militar estava orientada na busca de apoio político e social: foram

retirados 44 oficiais superiores dos três setores das FFAA, por seus envolvimento

com a o terrorismo do período militar. Na Polícia Federal, logo em seguida, cerca de

100 comissários foram retirados de seus cargos, em razão de denúncias sobre

corrupção nessa instituição. Seus ataques contra a Corte Suprema, constituída por

juízes corruptos designados por Carlos Menem, e que haviam sido denunciados

pelos movimentos sociais: primeiro com a demissão do presidente da Corte e sua

substituição por Raúl Zaffaroni; e depois com a renovação de toda a corte. Em

2005, a nova Suprema Corte sancionou a decisão parlamentar (2003) de anulação

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das leis de “obediência devida” e do “ponto final”17, o que possibilitaria a reabertura

dos processos contra centenas de organizadores e executores da repressão militar.

Em seu primeiro ano de governo, os discursos nacionalistas, antineoliberal e

contrário ao passado dos crimes militares, mesclado com ações políticas dúbias e

contraditórias, lhe possibilitaram uma ampla divulgação mediática e uma crescente

aceitação pública. Nesse sentido, consegue dividir os movimentos sociais e

políticos, de base popular, e ganhar aliados nesse universo. Para isso, compreende

e caracteriza o terreno político em que se situava, ou seja, as diversas forças

sociais em cena, os principais sujeitos políticos, seus interesses, força e

debilidades. Compreende por fim as principais demandas sociais e, acima de tudo,

aquilo que é rechaçado como impróprio à sociedade e às instituições burguesas.

Então realiza iniciativas junto aos movimentos sociais e organizações sindicais

nacionais. “Sectores progressistas, bolsões políticos de centro-esquerda, quadros

alinhados em seu momento com a Frepaso e integrantes de agrupações de

esquerda e piqueteira, iniciaram uma viragem para as filas kirchneristas,

colaborando e inclusive integrando-se ao governo, abrindo passo a uma nova

engenharia coalizacional de características transversais que começava a dar

formato ao território político do presidente. (...) Os setores progressistas que

iniciavam sua convergência neste espaço adoeciam de uma forte atomização e em

geral se encontravam pouco organizados, careciam de líderes de fuste e de um piso

eleitoral consolidado. Neste contexto, a apelação transversal do presidente

apontava a adotar de identidade e organicidade a este campo político fragmentado”

(p.95).

Tal projeto transversal produzia contradições em relação aos setores de centro

esquerda, no caso específico Elisa Carrió (ARI - Argentina por uma República dos

Iguais)18, porque lhe tirava uma base social e suas principais bandeiras políticas; e

por outro lado criou um tensionamento com o justicialismo, seus chefes territoriais

históricos, à medida em que se processava uma experiência política nacional que

os colocava à margem da estrutura do governo nacional.

17

Essas leis foram sancionadas no período de Raúl Alfonsin, em acordo realizado com a alta cúpula das FFAA,

com o objetivo de não penalizar os militares envolvidos com o terrorismo de Estado. 18

Carrió, em 2008, rompe com essa agrupação e constitui seu próprio partido (PRO). No ARI manteve-se sua

principal liderança, o deputado nacional por Buenos Aires, Eduardo Macaluzi. As críticas principais do ARI

referem-se ao caráter centralista e personalista de Carrió, que estabeleceria sem discussão partidária, sua

intenção de se tornar novamente candidata à presidência da República, em 2011. Carrió disputou as eleições

presidenciais em 2003 e 2007, sendo que nessa úlima ficou em segundo lugar, no segundo turno.

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“A possibilidade de concretizar e dar organicidade ao projeto transversal cobrava força a partir da disposição do executivo nacional de derivar para o mesmo parte da importante massa de recursos tanto institucionais como econômicos aos quais tinha acesso. Desde o estritamente político, sua intenção consistia na construção de uma base de apoio alternativa de sustento ao governo e de contrapeso às redes de poder partidárias dos peronismos provinciais. A construção transversal se estruturava sobre as erosões e os vazios programáticos e ideológicos que vinham arrastando os partidos políticos argentinos e manifestava a intenção de reprogramar o campo político em termos de centro direita e centro esquerda. Como se mencionou, esta construção gerava como contrapartida uma relação de conflitividade com o PJ oficial, do qual também necessitava o presidente para revalidar sua legitimidade virtual no campo eleitoral, ainda que as pressões concentradas no partido encontravam seu limite na dependência econômica que, em grande medida, os governadores e hierarquias peronistas tinham em relação ao Estado nacional. Em síntese, a relação entre Kirchner e seu partido respondia a um esquema no qual o executivo nacional requeria dos caudilhos justicialistas das províncias para arrastar apoio político e eleitoral. Frente a suas posições, o presidente utilizava três fatores de poder elementares”: o monopólio de recursos à disposição do executivo nacional; a transversalidade; o alto apoio virtual da imagem presidencial que arrojavam os sondeos de opinião (p.99-100).

Possivelmente, condicionar a análise política do governo Kirchner à

contradição entre PJ e transversalismo, como considera Arzadun, limita a

apreensão de outras contradições, mais fundamentais sem dúvida, que se

apresentam na constituição e existência do governo Kirchner.

A estabilidade política tem como um dos seus elementos principais o

debilitamento das forças sociais e políticas em permanente mobilização. Nesse

sentido, a urgência de negociar e trazer para seu apoio os distintos movimentos

sociais e lideranças sindicais, iniciativas ocorridas desde o início do governo, foram

fundamentais para construir determinados consensos políticos. Existia (e existe)

uma crise profunda no regime político argentino. A tarefa política central de Kirchner

foi a recomposição do regime político, estabilizando o sistema por meios de

“medidas que canalizam as demandas populares e ao mesmo tempo recompõem

as instituições questionadas pelas mobilizações de rua” (Katz, 2003). Uma política

governamental que incluiu concessões e muitas atitudes que encobriam a

continuidade do modelo capitalista. Diz o economista argentino Cláudio Katz:

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Para canalizar demandas populares e reconstituir simultaneamente ao regime, Kirchner descarrega toda a responsabilidade do colapso econômico-social sobre certos grupos (privatizadas européias, Macri, AFJP) e santifica a outros (exportadores, industriais e bancos locais), como se fossem inocentes do ocorrido durante a década passada. Com esta diferenciação disfarça a presença de ex menemistas (Scioli, Beliz) em seu governo e encobre seu próprio passado como governador do PJ e partícipe direto da privatização de YPF. (...) Dialoga com as organizações piqueteras e destende os conflitos sociais para demarcar-se do autoritarismo de Dhualde, apresenta uma agenda hiperativa para distanciar-se da inutilidade de De La Rúa e sobretudo questiona o “modelo dos 90 para apresentar-se como a antítese de Menem. (...) no novo contexto antineoliberal da América Latina Kirchner busca recriar a adesão popular, retomando o duplo discurso tradicional dos políticos justicialistas. Convida Fidel e adota algumas posturas de Chavez, mas não sua decisão de renovar o sistema político interno, nem sua disposição a confrontar com Bush. Ao contrário, estabeleceu uma relação de “muita química” com o ocupante do Iraque, que inclui a aprovação da lei de patentes exigida pelos laboratórios norteamericanos e a penalização dos credores privados que não contam com o favor do FMI. Alienta a presença de empresas norte-americanas para compensar a hegemonia dos europeues no manejo dos serviços públicos privatizados (...). (Katz, 2003).

Com efeito, logo de uma árdua contenda política os movimentos sociais foram

transitoriamente integrados ou controlados pelo novo governo; fustigados mais que

nunca pelos meios de comunicação, que não vacilaram em realizar uma cruzada

antipiqueteira; enfim sido criticadas e depreciadas não só por aquelas classes

médias que apoiaram parte de seus reclamos durante um período fugaz, senão

também por vastos setores sociais (Svampa, 2007, p.152). A política de Kirchner

consistiu em utilizar estratégias de integração, cooptação e disciplinamento, por um

lado, logrando de fato a integração e institucionalização de distintos setores e, por

outro, o isolamento das correntes opositoras no movimento piqueteiro. “A hipótese

da integração e institucionalização começou a constituir-se como uma das

tendências centrais desse governo, em muito alimentada tanto por aqueles

funcionários nacionais como por certas organizações sociais que acreditaram ver no

novo presidente a possibilidade de um retorno às “fontes históricas” do justicialismo.

Essa aposta, que se vincula com altas expectativas que o presidente despertou em

amplos setores da população, se apoiou também na existência de determinados

grupos muito próximos ao ideário nacional-popular dentro do cada vez mais

diversificado espaço piqueteiro. Com efeito, a consolidação piqueteira inclui não

somente aquelas visões contestatórias de corte anticapitalista senão também um

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amplo leque de organizações que reenvia a uma forte matriz populista; todo o qual

volta a por no tapete o forte peso da cultura peronista.” (idem, p.163-4).

A base material que possibilitou uma resposta positiva para muitas

organizações piqueteiras foram os diversos programas sociais, alguns iniciados

com Duhalde, como Plano Chefe e Chefa de Família e Plano de Desemprego, e

outros como empreendimento produtivo formulados pelo Ministério de

Desenvolvimento Social. Desde o início algumas organizações dos inúmeros

Movimentos de Trabalhadores Desocupados utilizaram esses subsídios para a

ampliação de programas já existentes, como as padarias comunitárias, oficinas

têxteis ou fabricação de alimentos. Assim, em algumas organizações, esses

subsídios geraram uma profunda discussão acerca do que fazer com o excedente.

Os movimentos piqueteiros, quando Kirchner ganhou as eleições de 2003,

estavam polarizados em torno de qual posição assumir diante do novo governo. Por

medio do Ministerio de Desenvolvimento Social, dirigido por Alícia Kirchner,

procurou trazer os distintos setores para seu apoio (Peralta, 2007:430-31). Nesse

período conseguiu ter o apoio do setor de Luís D‟Elia, dirigente da Federação de

Terra e Vivendas (FTV), que já vinha colaborando com o governo de Duhalde e, por

isso, havia recebido uma importante cota de Planos de Trabalho19. Con la

manutención de la polarización en relación al gobierno Kirchner, a partir de 2004, el

gobierno utilizó la táctica de endurecimiento policial, por un lado, y busca de

integración al gobierno, por otra. Las agrupaciones sociales kirchnerista tuvieron

protagonismo cuando el presidente rompió alianza con Duhalde. Esas

organizaciones pasaron a ocupar un lugar llave, pues llegan a los barrios pobres del

conurbano. Eso significó poder de movilización y captación de las vontades para las

elecciones de 2005. “En la estrategia del gobierno, la integración de importantes

líderes piqueteros al gobierno permitiría encauzar el conflicto social dentro de

canales institucionales y crear las condiciones para ganar el apoyo de la clase

media” (Idem:431).

As palavras de um líder piqueteiro, eleito vice-chefe do gabinete do

governador de Buenos Aires nas eleições de outubro de 2005, indica esse

complexa dinâmica de acercamento dos movimentos sociais. Diz o dirigente:

19

Plan de Trabajo son las verbas destinadas para las personas sin condiciones de empleo y entrada de recursos.

Los movimientos sociales tienen una cuota que administran de acuerdo con los criterios de selección. Hoy

existen cerca de 100 mil plan de trabajo, siendo que 50% son administrados por los movimientos sociales.

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“mi misión será integrar al movimiento popular, a las organizaciones del pueblo y a la militancia al Estado. Esa articulación acerca al gobierno al pueblo y esto es lo que empujará los cambios que hacen falta para mejorar la situación de la gente […] se trata de tener una actitud diferente que cuando llegamos al Estado, que es estar con la gente y buscar soluciones, terminar con la política punteril […] en la medida en que Kirchner siga ampliando la posibilidad de organización popular y se mejore la distribución del ingreso, todos vamos a ser kirchneristas. Ésa será nuestra victoria. El tema central de la Argentina sigue siendo la integración de la gente al proceso de cambios. Hay que dar roragonismo a la gente, capacitarla, formarla, acompañarla […] eso también implica darle mayor responsabilidad en las políticas del Estado. Nosotros ya demonstramos que se puede gestionar entre el Estado y la organización.” (La nación, Buenos Aires, 19 de noviembre de 2005, p.432).

Por último, a integração e negociação perpassaram por uma estratégia de

controle e disciplinamento dirigida contra os grupos mais mobilizados, “que não só

assinalaram que o governo Kirchner representava uma continuidade com os

anteriores, senão que, confinados no protagonismo que haviam tido durante 2002,

tencionaram as relações e multiplicaram as concentrações e marchas. A sua vez,

Kirchner se apoiou na opinião pública, fortemente influenciada por setores

conservadores da classe média, através dos meios de comunicação. Assim, o

governo nacional enfatizou a contraposição entre mobilização de rua e normalidade

institucional, desta maneira deu vazão não só a uma imagem estigmatizante das

mobilizações, senão a denúncia de uma democracia cada vez mais acossada por

grupos piqueteiros.

Haveria se constituído nesse governo uma estratégia de desgaste sobre os

setores piqueteiros mais combativos e de negociação com os setores permeáveis

ao apoio governamental. “Resulta claro que o governo produziu um giro em sua

relação com os piqueteiros e, evitando a repressão, buscou isolar aos setores mais

combativos, ao tempo que negocia com os mais dialoguistas. Isto deu lugar a uma

estratégia desmobilizadora. Por outro lado, o presidente afirma que a restrição no

pagamento da dívida é uma causa nacional e que a sociedade é a que deve

defender seus próprios interesses. Sem dúvida, não gera os espaços de

participação para que essa causa nacional se expresse através da sociedade. A

convocatória, assim, constrói hegemonia fechada do lado do governo, e à larga

pode produzir um desgaste do próprio governo frente aos setores da grande

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burguesia, que ainda conservam o eixo do poder econômico na Argentina” (Shultz,

2005:267).

Essa avaliação refere-se aos primeiros momentos do governo, mas projeta

uma debilidade que se cristalizará no momento seguinte, na gestão da presidente

Cristina Fernandez. No conflito com os setores rurais, em torno da retenção 125,

como veremos mais a frente, os movimentos sociais de apoio aos Kirchner não

conseguiram trazer para seu respaldo um conjunto significativo de setores

populares. A estratégia de fato ancorou-se na desmobilização social, como uma

espécie de desmonte de uma “bomba relógio” que significava os desdobramentos

de 2001. Mas lembra o autor sobre as pressões políticas da “classe média urbana”,

que depois da “normalização institucional” isolou tanto os piqueteiros como os

assembleístas. Haveria uma mudança de humor que se relacionaria a uma “volta

relativa à ordem”: “As variáveis econômicas se acomodavam para cima, e isto gerou

expectativas em setores médios de voltar progressivamente a uma situação de

normalidade e de maiores expectativas. Revive neles a idéia de que há que dar-lhe

tempo às coisas. É um tempo de volta à normalidade, de setores que têm sido em

muitos casos muito danosos, e que todavia estão sofrendo o impacto da crise,

frente àqueles que não tem podido sair todavia da terrível crise, nem sequer

minimamente” (p.268). Nesse sentido a classe média percebe que está melhor do

que realmente está. “Há uma expectativa de melhora que, ainda com algum

asidero, parece exagerada em relação à realidade dos anos 90. O país, deste ponto

de vista estrutural, segue sendo o mesmo de 2001” (idem).

En 2005, ya con la inflación empezó a descontrolarse, Kirchner pasaba a

confrontar con algunas empresas transnacionales, denunciando la manipulación de

los precios, en razón a la suba del precio de la nafta por parte de las petroleras

Shell y Esso. Para eso, los movimientos sociales piqueteros tuvieron un papel en

algunas estaciones de esas empresas. Eso facto había sido “una verdadera victoria

del pueblo argentino […] la gente nos dio una clara lección en estas\horas usando

su poder. Si en todos los puntos la gente toma esa actitud, se va ganar la batalla de

la justicia y defensa del poder adquisitivo de los trabajadores” (in Peralta, p.430). En

otros momentos, cuando la inflación amenazaba nuevamente, la utilización de

sectores populares fueron nuevamente activados”. Diz Peralta:

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“[Kichner] tendría la oportunidad de utilizar el mismo recurso movilizador para disputarle a Duhalde el control del aparato del Partido Justicialista en la provincia de Buenos Aires durante la campaña para las elecciones legislativas de octubre de 2005. Kirchner usaría estas elecciones para plebiscitar su mandato y consolidar su poder político en las urnas. Legitimaba así su acceso al poder en 2003 bajo el ala de Duhalde habiendo obtenido sólo el 22% de los votos y se posicionaba ahora para consolidar su poder dentro del proprio partido. Sagazmente, había compreendido que el ritmo de los cambios políticos dependía de la movilización popular: la calle había sido el terreno donde, desde finales de 2001, la gente había cuestionado a los políticos, la Justicia, los bancos y la política económica. La calle será ahora el terreno que el presidente utilizaría para consolidar su poder político y su proyecto de país.” (p.430).

Duhalde e Kirchner realizaram essas “concessões”, ou em outros termos, tais

“concessões” somente foram tiradas desses governos em razão de uma rebelião

popular que deveria ser freada. Mas diferente de Duhalde, o então presidente eleito

necessitava dessa base social e política que poderia lhe respaldar em momentos

mais decisivos. Se as demandas e reivindicações do Argentinaço não fossem

minimamente atendidas, possivelmente Kirchner não poderia se estabilizar no

governo: por um lado, porque com o fantasma de 2001, as frações burguesas

respaldaram as concessões e a discursiva kirchnerista, ao menos enquanto havia

um acentuado crescimento econômico de 8% de PIB anual; por outro lado, essa

mesma burguesia lhe mantêm sobre permanente monitoramente, uma vez que

“esse não é um governo seu”. “É essa a base de sua permanente oscilação

discursiva e política, entre o ajuste e novas concessões às massas, entre as

concessões ao imperialismo americano e o nacionalismo burguês, entre Bush e

Chávez, entre Evo Morales e o envio de tropas para o Haiti. Isso significa que o

movimento não foi uma derrota, o que permite caracterizar o governo Kirchner como

bonapartista” (Sartelli, p.172-3). Essa análise nos parece que apreende algumas

das determinações do tipo de relação que irá se desenvolver no período (2002-

2008) entre Estado e movimentos sociais. A questão a considerar é que essa

relação não passa por meras “concessões”. Esse governo, como outros governos

latino-americanos, conseguiu êxitos econômicos, em decorrência principalmente

dos preços das commodittes de grãos (soja, milho, girassol...), e do aquecimento

industrial que possibilitou a reincorporação de cerca de três milhões e quinhentos

mil empregos. Esse fator, como verificamos mais a frente, apontaram para a

ampliação de lutas operárias e de trabalhadores de diversas categorias como eixo

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central das mobilizações no período Kirchner, especialmente a partir de 2004. Os

reajustes salariais obtidos por diversas categorias profissionais foram fundamentais

para a recomposição salarial aos níveis de 1998, ano de início da crise econômica

internacional. Outro aspecto também importante refere-se ao fim de um ciclo de

revoltas, ou pelo menos interrupção de uma situação abertamente revolucionária,

aberta em 2001.

O modelo K de neodesenvolvimento

O crescimento econômico argentino, de acordo com Instituto Nacional de

Estatística – Indec (ESP, 19/02/2006, B9), entre 2003 e 2006 teve uma média

acima de 8% de crescimento do PIB: 8,8% em 2003; 9,0% em 2004; 9,1% em 2005;

e 8% em 2006.

Os sucessos relativos do governo de Néstor Kirchner, junto aos setores

populares e às frações burguesas industriais particularmente, somente foram

possíveis com a desvalorização cambial (período pós-convertibilidade), que

possibilitou estabelecer um limite à concorrência dos produtos importados e ampliar

os rendimentos com as exportações (especialmente com a elevação das

commodities dos produtos extrativos e agroindustriais), e com o direito às

exportações (retenções) sobre os produtos agrícolas e extrativos que permitiram

uma crescente reserva financeira do Estado, entre 2002 e 2008, e com a contenção

dos reajustes salariais e manutenção das formas de precarização do trabalho

criadas na década de 199020. Baseado nesses eixos econômicos, o governo

conseguiu reativar setores da economia local, possibilitando assim a queda do

desemprego com uma retomada das ocupações assalariadas21, ampliar e manter a

cobertura de planos sociais, realizar antecipadamente, em 2005, o pagamento de

parte da dívida externa, e aumentar suas reservas internacionais. Por sua vez,

mantém uma vasta rede de subsídios aos setores do capital industrial local e

transnacional, e em especial onde se destaca uma rede de empresários que ficaram

20

Devemos lembrar que foram as seguintes leis trabalhistas aprovados no congresso nacional no ano de 1992:

(...). Como nos ressalta Murillo (2005), essas leis foram aprovadas com um amplo respaldo da bancada dos

deputados sindicalistas ligados ao PJ que expressavam os interesses dos setores hegemônicos da CGT naquela

ocasião: (...). 21

No período entre 2003 e 2007, o emprego cresceu em cerca de 3.5 milhões de ocupações assalariadas.

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conhecidos como empresários K, especialmente ligados à área de construção civil e

empresas de serviços públicos privatizadas.

Em relação à desvalorização cambial é necessário afirmar, acompanhando a

literatura especializada, que ela significou uma perda média de cerca de 30% do

poder de compra salarial: “A recuperação da economia depois da crise de 2001-

2002 foi acompanhada por uma tendência crescente no nível de preços. Esta

tendência, que começou com a desvalorização, não somente não se deteve senão

que, segundo dados mais confiáveis que o IPC-GBA, parece estar se acelerando

como conseqüência dos aumentos dos preços internacionais dos produtos

transáveis, o dinamismo da demanda, que supera ao da oferta, e a concentração

dos mercados. Em conseqüência, o cenário auspicioso que surge da evolução dos

salários nominais se modifica, já que o poder aquisitivo dos ingressos dos

trabalhadores se estaria “liquidando” como resultado do aumento dos preços dos

bens e serviços que estes consomem (...) os salários reais não só não crescem,

senão que tendem a reduzir-se desde princípios do ano passado entre um 1% e um

3% se utiliza-se o IPC-San Luis ou o IPC-7 províncias, respectivamente” (CENDAS,

“Cuánto ganan los trabajadores? Alternativas para a estimación de los salários

reales”, El trabajo em Argentina. Condições e perspectivas. Informe trimestral nº

15).

Ou em outras palavras, os salários contidos nos custos de produção

significaram o principal fator de impulsionamento do crescimento econômico

argentino, em termos locais e internacionais.

Néstor Kirchner manteve as principais medidas dos governantes anteriores,

como a privatização das empresas, a redução dos impostos empresariais, como a

redução de 33% da cota patronal ao Estado para empresas com até 80

trabalhadores. É o “modelo industrialista de inclusão social”. Nesse sentido, a

concepção apresentada confere importância ao “trabalho precarizado”. Tal modelo

possibilitou a redução do desemprego na Argentina22. Ao mesmo tempo manteve

intacta a legislação trabalhista, com a precariedade dos contratos em tempo

22

No auge do desemprego na Argentina, em 2002, eram cerca de 2.200.000 de trabalhadores desempregados.

Em 2003 esses números já haviam baixado para... e chegam em 2008 por volta de... O INDEC,

inexplicavelmente, deixou de realizar o censo de emprego/desemprego, no terceiro trimestre de 2007, o que

impossibilitou um acompanhamento sobre essa tendência. Mas algumas instituições de pesquisa (CENDA, CTA

e outros) afirmam que tendiam a arrefecer a absorção de mão-de-obra na economia local. Algumas

características nesses levantamentos possibilitam caracterizar que a empregabilidade ocorreu centrada nas

seguintes setores: (...).

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parcial, os temporários, em negro etc. Em razão desse quadro, as empresas

conseguiram aumentar seus benefícios em cerca de 42% em 2004 e 26,4% em

2005, de acordo com Âmbito Financeiro. As 500 maiores empresas passaram em

cerca de dois anos (2003-2005) a duplicar seus lucros, de acordo com dados do

Instituto Nacional de Estatística argentino.

Durante a década de 1990 se consolidaram múltiplas formas de contratos de

trabalho precários, no setor público e setor privado, que impossibilitam a efetivação

(regulamentação) do trabalhador na empresa, e que passam por contratos por

agência de trabalho temporário, contrato de locação de obra (donde o

monotributista) ou emprego por contrato temporário realizado na própria empresa.

Esses trabalhadores que representam cerca de 40% do total de assalariados, têm

seus salários mais arrochados do que aqueles efetivados. O que significa também

um outro adicional de extração de mais valia arrancada pelas empresas.

A estrutura da produção industrial argentina, em sua história, de acordo com

CENDA, está dividida em dois grandes setores: setor agropecuário com elevada

produtividade em decorrência da região pampeana, possibilitando uma renda

diferencial da terra; e um setor industrial, com maior participação das industriais

locais que têm graves problemas com a competição internacional por causa de sua

debilidade tecnológica. Essa heterogeneidade estrutural da economia nacional

implicaria na existência de uma tendência para a apreciação da moeda pelo

contínuo ingresso da riqueza extraordinária do setor agrário. “Essa tendência para

a apreciação tem, por sua vez, efeitos nocivos sobre a possibilidade de crescimento

do setor industrial. Para sustentar à indústria se requer – em ausência de outras

medidas impositivas ou fazendárias – de uma paridade cambial mais elevada,

capaz de brindar, ao menos de maneira transitória, proteção da concorrência dos

produtos importados e de abrir a possibilidade de colocar produtos industriais no

mercado mundial. Por isso, se a tendência à apreciação não é acompanhada por

medidas específicas de proteção, a indústria termina necessariamente

enfraquecida. Isto implica que o funcionamento da economia, deixado em mãos do

livre mercado, conduza principalmente à produção e exportação de produtos

primários de baixo valor agregado: uma economia agroexportadora” (p.9).

Nesse sentido, as retenções às exportações têm como mecanismo efetivo

conter a tendência à apreciação real da moeda, porque ao retirar uma parte dos

dólares que ingressam no país são reduzidas às pressões para baixo sobre o tipo

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de câmbio nominal. Isso de maneira que, quando entesourado como reserva

internacional. Por outro lado, quando os direitos de exportação são aplicados sobre

os produtos alimentícios ou combustíveis têm como contrapartida a redução dos

custos internos. “De maneira que, no atual esquema, as retenções, mais que um

imposto distorsivo, devem entender-se como um mecanismo corretivo: contribui

para manter o tipo de cambio e reduz os preços internos dos alimentos” (idem).

Esse quadro econômico pautado no direito de exportações e na

desvalorização cambial, no entanto, não é desenvolvido pelo Estado nacional de

maneira neutral. Reestabelece-se como em outros períodos da história argentina

uma intensa disputa entre as frações burguesas agrárias e industriais (e dentro

dessas entre as transnacionais e as locais) em relação aos seus interesses.

Para os setores agro-exportadores, o dólar caro beneficia aos exportadores

primários sempre que o custo de mantê-lo não caia sobre suas costas por meio das

retenções das exportações23. Essas retenções operam como um tipo de cambio

diferencial, no caso, se forem elevadas, por exemplo em 50%, para eles seria o

mesmo que o preço do dólar em torno de até $ 1,50 com ausência de retenção: “É

por isso que alguns representantes do setor se inclinam por defender um programa

de apreciação da moeda, sempre e quando também se reduzam (ou diretamente se

elimine) as retenções. Se utiliza a filosofia do livre mercado para argumentar que a

ingerência estatal gera distorções nos preços relativos e se advoga pelo fim de toda

a intervenção. Ainda que não se atrevam a propô-lo diretamente, não é difícil ver

que essa ausência de intervenção pública que reclamam, em um contexto de

preços mundiais record é, inevitavelmente, um programa apreciador. Se trata de

aproximar-se novamente à situação dos anos 90” (CENDA, p.10).

Na perspectiva da indústria exportadora e substitutiva, no ano de 2007 e 2008,

seus representantes começam a exigir reajuste no programa do dólar alto. Neste

caso são propostos retoques ao modelo econômico vigente com o objetivo de

avançar em seu aprofundamento, especialmente considerando quatro eixos que

afetam a rentabilidade: o tipo de cambio nominal, a inflação, os subsídios e os

salários. No período anterior ao conflito entre o setor agro-exportador e o governo,

que veremos mais a frente, representantes da indústria recomendavam depreciar

ainda mais o peso em termos nominais; exigiam também uma política

23

Somente nos lembremos que, no período de Eduardo Duhalde, os impostos giravam em torno de 10%.

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antiinflacionária mais eficaz que implicasse em um severo programa de ajustes

fiscais e uma política monetária restritiva. Para favorecer sua rentabilidade, esse

setor também pedia a manutenção de uma política de subsídios aos insumos

(combustível, energia e transportes), estímulos ao crédito e às atividades

produtivas. E não esqueciam o elemento principal dessas exigências: a

“moderação” nos reajustes salariais, que no contexto inflacionário implicaria

arrochar ainda mais os salários.

A contenção salarial, ao lado da manutenção da legislação trabalhista

flexibilizada, é o ponto unificador entre todos os setores empresariais. As

organizações empresariais não mostram divisões neste reclamo. “Tão pouco no

pedido de controle da emissão e no gasto fiscal. Em geral, é a este conjunto de

medidas ao que se faz referência implicitamente com o eufemismo de esfriar a

economia. A idéia de esfriar a economia através de restrições ao crédito ou através

da redução do gasto público engana o diagnóstico e, em sua perplexidade, somente

atina recorrer ao remédio da contração”.

Dentro desse enfoque é perceptível que os impasses no

“neodesenvolvimentismo” do modelo K já se apresentavam anteriores ao conflito

com os setores agro-exportadores e à crise capitalista internacional. As frações

agro-exportadoras não mais se satisfaziam em “sustentar”, como disseram em

diversas oportunidades, a expansão econômica no país, por meio das crescentes

retenções agrárias24. Além do que foram diversas manifestações realizadas no

período de Néstor Kirchner.

Por sua parte, em diversas categorias de trabalhadores assalariados, desde

pelo menos 2004, vinham reivindicando reajustes salariais acima da inflação e que

repusessem suas perdas salariais do período pós-convertibilidade, muitas vezes

inclusive, realizando greves que ultrapassavam as orientações das direções

sindicais burocratizadas. Não foram poucas dessas greves que foram respondidas

com agressões sindicais às lideranças sindicais independentes e com demissões e

perseguições desses trabalhadores.

Nesse contexto, aos setores industriais exportadores lhes comprazia a

manutenção das retenções, os subsídios estatais para suas produções, e a

24

Não deixa de ser interessante que esse descontentamento vinha sendo manifestado por diversos representantes

das entidades agroexportadores.

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contenção da inflação por meio da aplicação de medidas de desaquecimento do

consumo e do corte de gastos públicos e, evidentemente, de congelamento salarial.

O projeto nacional popular25, baseado em um novo surto de desenvolvimento

econômico e industrial, exibiria um limite estrutural, uma vez que seus setores mais

dinâmicos (setores exportadores), não visualizam o próprio desenvolvimento interno

que se estrutura em torno de um mercado interno e que integrasse milhões de

pessoas ao consumo e, por sua vez, essa dinâmica possibilitasse o próprio

desenvolvimento industrial voltado para esse mercado. Esse marco do projeto

nacional, que esteve presente no peronismo entre 1946-1952, e que teve como

marco uma aliança com setores pequenos e médios da produção, não é o atual

marco do que se discursa como nacional e popular.

A produção de mercadorias agrárias segue sendo a principal sustentação do

capitalismo na Argentina e, por sua vez, demonstra os limites da renda agrária para

impulsionar a economia nacional a médio prazo. Ao contrário das propostas

nacionais e populares, em torno de uma economia independente com a

possibilidade neodesenvolvimentista, existiria “a crescente busca por aumentar a

arrecadação fiscal através das retenções às exportações de grãos”, que

demonstraria que “nada de novo se engendrou na Argentina nos últimos anos e que

o país está tão ao bordo de uma nova crise como tem estado nos últimos trinta

anos” (Sartelli, 2008:121). E mais: “A necessidade de aumentar as retenções, longe

de expressar uma vontade de favorecer ao „povo‟ frente à „oligarquia‟, é uma mostra

da dependência da acumulação de capital no país da produção agrária. Depois da

desvalorização e ante a contração do crédito internacional, a renda diferencial da

terra e, em menor medida, o petróleo, junto à baixa salarial, foram as fontes que

permitiram a recuperação econômica” (idem). Essa explicação nos parece que se

mantém explícita ou implicitamente nas diversas análises sobre o modelo k, seja em

autores que guardam algum tipo de expectativa com relação ao chamado

neodesenvolvimentismo, ao exemplo do grupo de economistas do CENDA,

passando por intelectuais do porte de Basualdo ou Katz, e de maneira mais incisiva

no plano teórico-político por intelectuais da esquerda socialista (FOS, PTS, PO,

MST...). Ou seja, graças às retenções e à contenção salarial, o governo pôde

25

Sobre esse conceito, em relação à Argentina, nos parece importante a análise que Maristela Svampa, em

Civilização ou barbárie, realiza sobre seu esvaziamento. Para Svampa, (...). O fenômeno de esvaziamento desse

conceito tem muitos aspectos em comum com o ocorrido no Brasil, embora nesse país o populismo não tivesse

fincado raízes tão fortes junto aos trabalhadores e organizações políticas.

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sustentar a subvalorização da moeda e dar vida a capitais ineficientes na

perspectiva da concorrência internacional (ligados ao mercado interno). Dessa

mesma maneira pôde manter o crescimento do emprego, já que se trata de capitais

que, por sua baixa produtividade, empregam muita mão de obra. Por sua vez,

também em decorrência das retenções, logrou transferir crescentes subsídios aos

capitais estrangeiros para que mantivessem sua lucratividade em dólares de acordo

com a média internacional.

De qualquer maneira, mesmo que esse projeto econômico tenha se mantido

nos últimos cinco anos do governo kirchnerista, ele desenvolve uma contradição

estrutural que voltaria a se manifestar. Mesmo quando havia uma demanda

expandida internacional, ampliada pela especulação financeira via commodities, a

renda diferencial apropriada pelo governo não possibilitava prover a todos os

interesses envolvidos no processo. Como já afirmamos, a questão inflacionária se

torna problemática para a lucratividade das diversas frações burguesas, por um

lado, e na perspectiva dos trabalhadores, por outro lado, é também uma pressão

cada vez maior sobre os seus salários. Nesse sentido, acompanhamos a seguinte

idéia: “A história argentina dá conta do limite do agro para impulsionar o conjunto do

capital nacional logo de alcançada uma fase de crescimento. Ante esta dificuldade,

em forma progressiva tem ganhado peso o endividamento externo, que cresceu

desde 1975. Tanto a dívida como a renda agrária, são formas de financiamento

cujos ciclos afetam em forma direta o país. É a forma em que o capital argentino

processa, como parte do capital mundial, a crise na qual se encontra. Assim ocorreu

em 1975, 1983, em 1989 e em 2001” (idem, p.148). O modelo K, ao nosso

entender, longe de tê-las resolvido, foram se desenvolvendo com maior grandeza e

que se manifestam através da inflação e da redução do superávit fiscal.

8. O período político aberto com Cristina Kirchner

Cristina Kirchner foi eleita com o significativo respaldo popular, quase 45%

dos votos, em primeiro turno. A principal base dessa vitória ancorou-se nos

resultados econômicos e sociais do ex-presidente Kirchner. Mas também em uma

ampla aliança em torno da Frente Para a Vitória, que foi uma aliança entre Partido

Justicialista e a Concertação Plural. Como vice-presidente, Julio Cobos, radical K.

“A dimensão popular edificada pelo kirchnerismo desde seu vazio original resvalava

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sistematicamente nas estendidas e territorializadas redes provinciais fraguadas

pelos caudilhos de aparato, ancorando também nos antiqüíssimos mojones

organizativos radicales e em um decorado figurativo que respondia ao centro

esquerda televisiva com ambições mas sem construção de base nem organização

própria” (p.223). “A campanha de Cristina Fernandez combinava seu périplo

internacional com incursões locais sem alarde litúrgico nem coreografia peronista,

convencida de que essa estratégia consagraria a aventura de consolidar o poder

atesourado e garantizar com sua mensagem de mudanças o estado de graça para

prolongar a continuidade oficialista”. (p.223). Ou seja, embora a imagem positiva de

Néstor Kirchner houvesse permanecido, havia que transmutá-la na figura de

Cristina. Especialmente isso seria fundamental em relação à ação bonapartista do

ex-presidente. Nesse sentido a desperonização da campanha, de acordo com

Azardun, seria uma marca registrada do kirchenerismo duro, “promovida pelas

assessorias profissionalizadas de cultos intelectuais de gabinete”, ideólogos “do

marketing com portas abertas ao cenáculo presidencial” (idem).

“Somente o conurbano bonaerense e aquelas distantes e inacessíveis comarcas do interior profundo promoviam a liturgia. Nessas recônditas paragens, o símbolo do mito se arroupava em clientelas que abrevavan na subcultura de golpeadas populações donde o peronismo era religião perene e identidade popular. Eram aqueles pobres e trabalhadores esquecidos na periferia da modernidade, quem por abrumadora maioria catapultariam o triunfo oficialista, com uma cautividade tão histórica como distante das luzes da cidade. A redenção do povo que revivia no imaginário social do peronismo caía opacada pelas luzes qualunquistas e antipolíticas das grandes urbes, ali onde o kirchenerismo orientava sua mensagem, ali onde a república branca encontrava audiência e sufrágios canalizados pela televisão.” (p.223)26

26

Com um sentido jornalístico, o editor de Clarín (29/10/2007), Eduardo van der Kooy, realizou a mesma

análise: “El kirchnerismo está reproduciendo, elección tras elección, la alianza más tradicional que representó

el peronismo. La de las clases humildes, con los sectores medios bajos y alguna intervención de franjas medias

más acomodadas. Pero con una fuerte y enconada resistencia de los segmentos más altos de la pirámide

social. Sólo Menem modificó esa tendencia que alumbró a mediados de los 40 y que con matices -mayor

participación de sectores medios- persistió en los 70. El ex presidente riojano unió los dos extremos del arco

social. Ninguno de los dos ensayos tuvo perdurabilidad y condujo a la Nación a situaciones críticas. Quizás

por esa razón Cristina haya dado un golpe de timón y prometido en su estreno un trabajo por la concertación.

Cristina deberá enfrentar múltiples desafíos. El primero, el de la legitimidad, lo sorteó con creces. Deberá

edificar su propia autoridad con el poder que en diciembre le delegue Kirchner. Deberá hacer frente enseguida

a problemas que silban cerca, que vienen de arrastre, y que no han encontrado una respuesta adecuada: la

inflación escondida, la crisis energética, la demanda social, la amenaza que para el crecimiento estable

representa la ausencia de un mayor flujo de inversiones. Cristina también habló de su esperanza de que el mundo

comience a mirar a la Argentina con otros ojos. Para que suceda, la Argentina debe ajustar conductas.”

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Mas há que completar essa análise, uma vez que a simbologia não sobrevive

por si quando esta tem que se estabelecer em relações sociais muito concreta que

envolvem a própria reprodução institucionalizada da pobreza e da miséria social.

Longe de um significante vazio, essa mitologia peronista deve operar em meio à

própria possibilidade da manutenção do fenômeno social do “excluído”, fetichizado

e estigmatizado como fenômeno existente por si, autonomizado das relações

históricas e estruturais que lhe construíram como fenômeno. A mediação

institucional operante nas paragens do conurbano buenaenrense e nas províncias

pobres, para que se possa transmutar em voto, são as possibilidades materiais aí

oferecidas (ofertadas). Nada mais. Esse é o mecanismo de dominação política no

qual se tem assentado com relativo sucesso o kirchenerismo. Mas essa não é uma

relação irracional que estabelece esses setores sociais com esse projeto político

chamado nacional-popular. É uma relação racional, instaurada no senso comum

dessas populações, através das referências políticas existentes (organizações

populares pró-governo, intendentes e ponteiros), que lhe possibilita um horizonte

imediato de ao menos continuar como está.

Também é possível verificar que essa votação em Cristina atingiu nas

províncias, inclusive na pampeana, uma acentuada votação dos setores da

pequena burguesia rural. Também uma votação racional em decorrência dos

fatores econômicos objetivos de um período de desenvolvimento.

Mas um voto crítico começou a ser assinalado em outras áreas sociais, como

as classes médias urbanas. Acuña considera o seguinte: “um setor importante da

classe média votou em forma crítica e castigou a baixa qualidade institucional do

governo kirchenerista. Alguns dos fatos mais decisivos que alertaram sua

consciência crítica foram o famoso sobre com dinheiro que apareceu alegremente

no despacho da então ministra da economia, Felisa Miceli; o escândalo da empresa

Shanska que chegou às esferas judiciais; Guido Alejandro Antonini Wilson, o

estrambólico empresário venezuelano vinculado ao Ministério de Planificação de

Julio de Vido que, em agosto de 2007, justo antes das eleições presidenciais,

intentou ingressar ao país quase $ 800 mil dólares em um avião fletado a um custo

de 80.000 dólares pela quase fantasma companhia estatal ENARSA; e o negócio do

trem bala, que muitos já suspeitavam que poderia estar deixando a alguns

(“Algunas advertencias en la amplia e indiscutible victoria de Cristina”, Clarín, 29/10/2007)

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funcionários suntuosas somas em conceito de comissões ilegais” (Acuña, 2008,

p.2002).

Existem outras dimensões que, possivelmente, estejam afetando a

sensibilidade desses setores das classes médias urbanas, especialmente em

regiões como Buenos Aires. Uma dimensão principal refere-se à constituição

mediática e perceptiva das classes médias sobre as “classes perigosas”. Em suas

várias obras, Svampa caracterizou o aparecimento dessa distorção ideológica

relacionada ao medo de uma classe social em relação às outras. Seu início está

situado no período pós-2001, nos movimentos piqueteiros que foram tomando como

palco de sua ação política a região central da cidade de Buenos Aires.

O fenômeno social travestiu-se ideologicamente nas classes perigosas. Não

se reduziu, ao contrário, tomou dimensões cada vez mais gigantizadas. Sucedem-

se de maneira continuada nos noticiários televisivos, radiofônicos e nos jornais, as

notícias e manchetes sobre seqüestros, assaltos e assaltos de empresários e

artistas; como também não são poucas as reportagens sobre as villas misérias, as

gangues que dominam seus territórios, suas relações com intendentes, ponteiros e

como ponto de distribuição do narcotráfico. Essas são notícias cotidianamente que

se desenvolvem nos meios de comunicação de massa27.

A presidenta eleita afirmava em campanha que o centro de sua agenda

política seria o Diálogo Social. Nos primeiros meses de 2008, chamaria ao diálogo

os representantes sindicais (de trabalhadores e de empresários) e altos funcionários

do Estado, no sentido de constituir um Pacto Social. A partir desse diálogo seriam

estabelecidas metas macroeconômicas que sustentariam a política econômica

governamental entre 2008-2009. Isso passaria por “organizar os mercados”, ou

seja, significaria que o Estado teria um papel ativo no sentido de direcionar recursos

e inversões para desenvolver uma plena economia agrícola-industrial. Em suas

27

Entre as emissoras televisivas que mais destaques fazem a essas notícias encontram-se Crônica, C5N e TN.

Nos diários principais, verificamos que os mais destacados encontram-se Clarín, La nación, Crônica... Crítica

Argentina tem evidenciado mais casos relacionados ao narcotráfico mexicano e as relações do Triple Crime,

envolvendo empresários ligados à efedrina. Existe um contraste na percepção desses fatos entre os distintos

setores sociais. Nas conversas e entrevistas que realizamos em uma Villa no distrito de Lloma de Zamora, uma

das bases sociais do Movimento Barrio de Pie, essa questão não aparecia no horizonte dos entrevistados e das

pessoas com as quais conversamos. Em suas percepções registravam-se as seguintes necessidades: canalização

do córrego, que causa enchentes em períodos de chuva; um hospital que funcione para atender a população; o

problema do lixo e do esgoto ao céu aberto; e de maneira mais dispersa a questão do emprego. Em nenhum

momento, a questão da violência estava perceptível. Mas em outro sentido, o candidato à deputado provincial

Jorge Ceballo, liderança do Movimento social, no lançamento de sua candidatura nessa região afirmava o

seguinte: (...).

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palavras, o pacto social seria “um acordo estrutural no qual se definem metas,

objetivos quantificáveis e verificáveis”, mas com acordos setoriais que não se

referenciaria em torno de preços e salários: “deste acordo estrutural global, ir

setorialmente, sobre cada atividade, porque não são as mesmas necessidades e

possibilidades de cada setor” (Página 12, 25/11/2007, “Cómo vê su gobierno la

Presidenta electa?”).

Sobre esse Pacto Social, os distintos porta-vozes das classes dominantes

saudavam como positiva a iniciativa. “Os Kirchner” haveriam se decidido a

recuperar a política como transformação e fortalecer ao Estado para tal fim. Mariano

Grandona (La Nación, 25/11/2008) observava otimistamente: “Em tempos

plenamente democráticos, as relações de inimizade que marcam a fronteira política

não desaparecem, mas se moderam até tornarem-se competitivas, quase

desportivas. O acerto tático dos Kirchner foi dar-se conta em 2003 de que as

relações entre os que lutam pelo poder já não eram amistosas porque a crise tão

grave de 2001 havia exasperado o ânimo dos argentinos. Enquanto outros

candidatos foram às eleições de 2003, assim, com o espírito lúdico próprio das

democracias normais, os Kirchner investiram contra todos os que não eram eles

como se fossem um exército inimigo ao que haviam que aniquilar ou, ao menos,

amendrontar. Os opositores, por sua parte, não souberam unir-se porque não

advertiram a tempo o perigo que corriam fragmentados frente à ambição de um

poder total” (“De um país de inimigos a outro de adversários”).

O Pacto Social apresentava-se como a diretriz principal do governo para o

próximo período. Fazia de tudo para que fosse concretizado e divulgado em 25 de

maio, data nacional da independência do país. Seria o início do Pacto do

Bicentenário da independência. Avançava acima de tudo no sentido de conter a

recuperação salarial dos trabalhadores que já era o principal reclamo dos setores

industriais, ao lado de suas reivindicações de investimentos setoriais da produção.

Esse é o sentido que Cristina Fernandez ressaltava ainda no final de 2007: “Eu

defino como acordo estrutural no qual se definam metas, objetivos qualificáveis e

verificáveis, baseado neste modelo. Com acordos setoriais, porque não se pode

fazer o que se fez no Pacto de Gelbart de 1973, referido nada mais que a preços e

salários. Não é esta a idéia que temos. Logo deste acordo estrutural global, ir

setorialmente, sobre cada atividade, porque não são as mesmas necessidades e

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possibilidades de cada setor” (“Como vê seu governo a Presidenta eleita”, Página

12, 25/11/2007).

Esse Pacto Social foi paralisado, não porque tenha ocorrido uma forte

resistência das organizações sindicais e dos partidos de esquerda, mas sim porque

as frações burguesas industriais se negaram a realizar um acordo nacional sem que

nele estivessem envolvidos os setores agro-exportadores. Com o início do conflito

entre o governo e os setores ruralistas, a partir de março de 2008, inviabilizou-se o

objetivo principal do novo governo de Cristina Kirchner.

O conflito do governo de Cristina Kirchner com os setores agroexportadores

O fato incontestável é que a disputa entre os setores agroexportadores,

articulados pelas quatro entidades agrárias28, e os Kirchner desdobrou-se em uma

crise política pouco imaginada para um governante recém eleito com 44% dos votos

e que completava 100 dias de mandato. Não foi uma disputa entre interesses que

ficou entre muros, ou seja, limitado à Casa Rosada ou aos trâmites legislativos

(Câmara Nacional e Senado). A batalha extrapolou os muros e buscou apoiou-se

em setores do chamados pequenos agricultores e, depois, também na classe média

urbana.

A medida anunciada pelo então ministro da economia, Martin Lousteau, em 11

de março de 2008, determinava que se o preço da soja estivesse em 515 dólares

por tonelada, no mercado internacional, a retenção seria de 44,1%; se os preços

baixassem para 483 dólares, as retenções desceriam para 42,1%. Se os valores por

tonelada se reduzissem a 400 dólares, tal imposto baixaria para 32% (vide

Ministério de Economia e Produção da Nação, “Esquema das retenções móveis

para produtores primários e derivados”, Buenos Aires, março de 2008).

As retenções significaram para o governo um caixa na ordem de 12.991

milhões de dólares em 2005, o que representava 12,8% dos ingressos tributários

totais e 2,47% do PIB (Mecon, 2005:54). Esse dinheiro se destinava para distintos

subsídios: setores empresariais e superávit fiscal (dívida externa). Com a posição

do governo de elevar as retenções de 35% para 44%, a fração burguesa

agroexportadora contestou tal medida e iniciou em 13 de maio uma paralisação que

28

FAA, SRA, CONINAGRO.

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durou 21 dias, com cortes de estradas aos caminhões que transportavam alimentos

e, em conseqüência, iniciou-se uma crise de abstecimento.

Nesse conflito que começou com reclamos setoriais dos agroexportadores

ganhou uma dimensão de questionamento de fundo ao projeto político kirchnerista,

na medida em que as quatro entidades agrárias conseguiram uma unidade política

de atuação que, por um lado, se acentuou na radicalidade dos setores agrários e,

por outro lado, nos distintos setores da oposição partidária ao governo. Os meios de

comunicação de massa (emissoras de rádio e televisão e jornais) destacaram esse

conflito, remetendo-o para um âmbito nacional.

Ocorreram três momentos nos cortes de estradas em diversas regiões do país

– em especial, Buenos Aires, Entre Rios e Córdoba, a chamada região pampeana

onde se concentra a produção de soja, girassol e milho. Entre 31 de março e 20 de

abril, quando os setores agrários se mobilizaram nas estradas durante 21 dias,

inclusive havendo no período um início de desabastecmento na capital e em

diversas cidades. Segundo. Esse período foi seguido por uma trégua de trinta dias,

quando as entidades gremiais do campo retornaram à mesa de negociações com o

governo. Nesse período, o governo propunha uma diferenciação nas retenções para

aqueles setores, de acordo com o tamanho da área de produção e da distância dos

portos. Terceiro. Com o rechaço das entidades à proposta governamental, ocorreu

um novo período de mobilização quando são realizados cortes de estradas

novamente. Desta vez, evitando barrar cargas relacionadas a alimentos.

Em termos de composição social desse movimento agrário, dois setores

desenvolveram-se no processo: os setores agrários de pequeno e médio porte,

impulsionados pela Federação Agrária Argentina (FAA) e pelos autoconvocados,

que utilizaram como forma de luta os bloqueios das estradas, e a classes médias

urbanas das grandes e médias cidades que, articuladas por partidos de oposição,

realizaram manifestações urbanas e participação massiva nos atos de Rosário (25

de abril) e Palermo (dia 17 de julho). A mobilização dos chamados pequenos

produtores foi se ampliando e radicalizando ao longo dos quatro meses de conflito.

De maneira confusa, distintos nomes a esses setores foram consagrados: pequeno

agricultor, pequeno produtor e finalmente chacareiros. A radicalização desses

setores foi se tornando crescente .

Houve bloqueios em várias partes do país, amplamente divulgadas pelos

meios de comunicação, três vezes. Primeiro. Entre março de 31 e 20 abril, quando

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os setores da agricultura foram mobilizados por 21 dias, gerando o início de uma

crise de abastecimento nas cidades. Segundo. Este período foi seguido por uma

trégua de trinta dias a partir da quatro entidades nacionais ruralistas, que voltaram à

mesa das negociações com o governo. Nesse período, o governo propõe uma

diferenciação nas retenções, de acordo com o volume de produção, tamanho das

propriedades e distancia dos locais de escoamento da produção (portos). Terceiro.

Com a rejeição das entidades à proposta governamental, novo período de

mobilização ocorre quando realizados bloqueios. Desta vez, evitando bloqueio

encargos relacionados com alimentos. A recusa dos órgãos foi inicialmente limitada

pela curtimento vias de várias regiões do país ligadas ao meio rural, organizado por

quatro organizações - FAA, SRA, Coningro e Autoconvocados - e envolvendo os

pequenos, médios agricultores.

Em termos de setores da sociedade, dois setores desenvolveram-se neste

processo: a) os sectores agrícolas, pequenas e médias unidades, principalmente

organizados na FAA e os autoconvocados que não são ligados à FAA que usaram

os bloqueios nas estradas como forma de luta; b) as classes médias urbanas da

cidades e pequenos e médios comerciantes e industriais ligados à produção rural,

articulados por partidos da oposição (UCR e Coalisão Cívica), que tiveram um papel

mobilizador nas manifestações urbanas e participação maciça em atos públicos,

como em Rosário e Palermo.

Nomes diferentes foram utilizados pelos meios de comunicação para os

participantes dos bloqueios nas estradas: chacareiros, pequenos agricultores e

pequenos produtores. A radicalização desses foi apresentado na crescente desafio

para os dirigentes das quatro entidades.

Outra tendência que se desenvolveu neste processo foram os setores das

classes médias urbanas em grandes cidades como Buenos Aires e Córdoba, em

apoio aos ruralistas. Em Buenos Aires, por exemplo, estiveram no comício na Plaza

de Mayo cerca de duas mil pessoas no final de abril. Nessa altura houve confrontos

com o governo, quando se apresenta Luis D'Elia. Mas o momento significativo, no

entanto, foi provavelmente entre sábado e segunda-feira (feriado?) Julho. No

sábado, as forças governamentais municipais através tribunal tinham detido quatro

acusadas de incitarem os bloqueios nas estradas, entre eles Eduardo Buzzi,

presidente da FAA e outros, além do principal líder da FAA de Entre Rios, Alfredo

De Angelis. Neste quadro, foi crescente a mobilização das classes médias prestes

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a ser ampliado na segunda-feira para tomar uma proporção gigantesca em

diferentes partes da cidade.

O conflito abriu inúmeras dimensões políticas e econômicas que eram pouco

evidentes na sociedade argentina, em períodos anteriores. Três destas dimensões

queremos esclarecer. Uma dimensão que se apresentou foi a complexa realidade e

estruturação do meio rural na atualidade, na sua intersecção entre setores de

pequeno e médio produtores, empresas exportadoras, rentistas e associados a

pools de produção. Os sectores de pequenos e médios agricultores estão

inteiramente articulados à dinâmica de exportação. Em uma segunda dimensão

embutido neste processo, há posições diferentes entre os movimentos sociais

populares, sindicatos (CGT e CTA) e grupos de esquerda. A terceira dimensão

refere-se ao conflito que trouxe para a arena pública os fatores determinantes do

atual modelo econômico baseados na desvalorização da moeda e do mecanismo

de retenção.

Em torno destas três dimensões, temos as seguintes questões: a) o social e

político, em termos de classes sociais, movimentos sociais e partidos que foram

apresentados neste conflito, b) a ideológica eixos (discurso), em relação ao

movimento de apoio social ao governo e o apoio ao sector agrícola, c) os pontos

fortes e fracos que estão presentes no governo.

Mudanças na composição social no meio rural

Cerca de 1,3 milhões de pessoas trabalham no campo, sendo 325 mil estão

registrados junto à Segurança Social (Reuters, 30/03/2008, p.21). Isto significa, de

acordo com o jornal Clarín (30/03/2008, p.2) cerca de 36% da população

economicamente ativa. A cadeia agroindustrial concentra-se principalmente nas

províncias de Buenos Aires, Córdoba, Missões e Santa Fé, on de existe maior

número de instalações. No Censo Agrícola Nacional, realizado pelo Instituto

Nacional de Estatística e Censos (INDEC), em 2002, em explorações 1.233.589

pessoas residem.

"Soja está na categoria", de cereais e oleaginosas ", gravado em 2007, para 50.199 empregados da Segurança Social. No entanto, a ocupação total do complexo sojeiro (incluindo os produtores primários, empreiteiros, armazenagem e transporte) deverá ser de cerca de 300.000 pessoas, segundo os inquéritos distribuídos pelo Ministério do Trabalho.

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Possivelmente uma parte desta diferença refere-se a trabalhadores em sectores industriais ou de serviço ou aparecem como contribuintes ou autônomo, e somente o restante não está registrado. Aqueles que criticam os profissionais e salariais radiografia acrescentou que o campo tem três quarto dos trabalhadores diretamente 'em preto', o que significa ainda mais baixos salários e uma ausência completa de benefícios e Superannuation. E por trás do pagamento para o empregado, há uma família inteira que complementa o trabalho do chefe de família. "(Reuters, 30/03/2008, “Trabalhadores rurais, muitos em preto, e mal pagos, p.21, Ismael Bermúdez).

Dados sobre pequenos produtores. São 220 mil agricultores familiares, mais

de 170 mil minufundistas trabalhando nas terras menos ricas do país (Cash, "O

outro campo", 13/04/2008, p.5, por Natalia Aruguete). Para o secretário de

Agricultura, existem cerca de 320 mil agricultores. Cerca de 220 mil são os

chamados "agricultores familiares", dos quais mais de 170 mil são pequenos

agricultores que trabalham a terra menos ricas do país, concentrada no Noroeste e

Cuyo, e têm grande dificuldade para assegurar a sua reprodução familiar.

Apenas 20 por cento dos agricultores familiares (cerca de 64 mil) pode evoluir e

fazer uma reprodução ampliada do seu sistema de produção. Mas a maior parte do

sector (cerca de 80 por cento) são famílias que apenas conseguem gerir uma

simples reprodução e outros cuja subsistência depende da quantidade de

programas sociais. (Estudo sobre o Desenvolvimento do Projeto Pequenos

Produtores Agrícolas). "Esses pequenos produtores, que são pobres estruturais não

produzem um grama de soja para exportação, se o fizer, é para a sua própria

subsistência". Estão dedicados principalmente às atividades próprias das

economias regionais, tais como rapé, algodão, erva mate, cana-de-açúcar,

mandioca. Essas famílias têm problemas graves para o acesso à água e à terra,

que por sua vez não é suficiente para alcançar uma produção sustentável. Não

dispõem de meios de produção e de tecnologia adequada (em muitas províncias, a

preparação da terra é feita com tração animal), e existem muitas dificuldades em

aceder ao crédito e para vender sua produção em condições favoráveis.

“De acordo com o Censo Agrícola Nacional 2002, o número de explorações baixou

21%, de 412 mil em 1988 para 333 mil em 2002. O maior crescimento é observado

na região pampeana, onde o nível médio aumentou 35 por cento (de 400 hectares

em 1988 para 533 em 2002).

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As estatísticas oficiais indicam que entre 1988 e 2002 o número de

explorações agrícolas diminuiu 21,4%, passando de 378.000 para 297.000

explorações. Isso significa que mais de 80.000 explorações agrícolas tenham

deixado de sê-lo (INDEC, CNA, 1988 e 2002). Esta redução, por sua vez, significa

uma maior concentração fundiária.

Os efeitos da concentração fundiária no apresentou diminuição de postos de

trabalho. Os PAMA estão cada vez mais concentrado usando menos força de

trabalho por hectare. Entre os fatores encontrados para diminuição -soja

geneticamente modificada é a seguinte:

"Em primeiro lugar, a técnica de produção associada à soja transgênica é parcimonioso / eliminadora de mão-de-obra, em comparação com a soja convencional, uma vez que reduz o trabalho de carpina, ao mesmo tempo facilita o trabalho de plantio. O aumento desta tecnologia foi, pois, contrabalançada pela diminuição da quantidade de trabalhadores rurais para a produção de soja. Em segundo lugar, o cultivo da soja geneticamente modificada exige muito menos trabalho para produzir muito mais do que substituir, reduzindo assim o número de postos de trabalho. Do total de pouco mais de um milhão de pessoas que trabalham na atividade agrícola, em 1988, desceu para 775.000, em 2002, mostrando uma redução de 25% no emprego total. A maior redução percentual (33%) é entre o trabalho assalariado e o auto-emprego dos membros da família dos produtores agrícolas "(p.71).

A pequena burguesia agrária Muitos dos elementos que estão em que os pequenos agricultores podem

verificar-se o interior de São Paulo, onde o desenvolvimento do agronegócios

conduziu uma classe média do campo e tornou ainda mais dinâmicas as cidades ao

redor da produção agrícola. Os rodeios e festivais culturais indicam o crescimento

econômico em torno da soja, pecuária e do açúcar. Até certo ponto existe uma

próximidade ao agricultor neste ciclo comercial da Argentina. O mais proeminente é

a expressão simbólica do picape 4X4 e os tratores. Diz em seu "Chacareiros e

empresários, a nova classe média no interior."

"Esta nova geração de produtores que são caracterizados por autistas, acostumados à solidão de uma plantação (...) são ambiciosos. Assim, após a crise de preços de 80, embarcou em um crescimento cada vez mais rápido desde meados dos anos 90. Em apenas dez anos, entre 1996 e 2007, duplicou a produção física de grãos: a partir de 45 milhões de toneladas para 95 milhões de toneladas. Ninguém cresceu assim. Em 1996, colhidas 15 milhões de toneladas, agora 45 milhões. Três

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vezes. Cereais, trigo, milho, sorgo, cevada, girassol e, mais milho, de 30 milhões de toneladas para 45. 50% em dez anos. Isso desmente a idéia de que a soja é a transferência dos cereais para crescer mais depressa, porque é mais rentável e, o sinal dado pelos mercados. Como soja vale o dobro do que os outros grãos, a produção agrícola triplicou. E agora junta-se ao aumento dos preços internacionais. O valor da produção agrícola em meados dos anos 90 foi de U$S 7.000 milhões, 30.000 agora. Esta é a base econômica da moderna chácara. Constitui uma rede de 300.000 produtores, médios e grandes, com fornecedores, equipamentos e serviços. A agricultura argentina se transformou: o produtor já não está sujeito ao limite da sua fazenda. Mais de 70% da produção ocorre em campos alugados. Um trator e uma máquina para plantar 50 hectares de plantação permitir, por dia. Exigem equipamento caro e lotes de superfície a ser amortizado. Assim surgiu a figura do empreiteiro, que são profissionais-chave da nova agricultura. Plantação, proteção das culturas e colheita são feitas por empreiteiros. A maioria são pequenos proprietários, que prestam serviços a terceiros ou associados à agrônomo, advogado ou médico na cidade. O "pool" são na sua maior parte, as pequenas organizações que alugam áreas plantadas e com grande eficiência. Aqueles que estão bem organizados ganham dinheiro. Embora, de fato, pagar um imposto sobre os lucros superiores a 60%, subindo para 80% com o novo sistema de deduções." (Héctor Huergo, Clarín, 30/03/2008, p.10).

As grandes redes de monopólio no campo

Um dos aspectos que mais chocou e salientou a luta em curso entre a

burguesia agrária e governo Kirchner foi a imagem dos agricultores e suas famílias

em bloqueios no interior das províncias de Buenos Aires, Córdoba, Entre Ríos,

Chaco e de outras províncias argentinas. Imagens na TV mostravam

continuadamente as assembléias desses setores na beira das estradas. Por seu

turno, essa é a base social e política sobre a qual se sustentam os interesses das

frações agro-exportadoras. Nesse contexto surgiu a figura mediática de Alfredo De

Angelis, presidente da Federação Agrária de Entre Rios - uma subsecção da

Federação Agrária Argentina (FAA), com as características do “chacareiro”, com um

discurso direto que atingia os anseios dos pequenos produtores e a admiração de

setores das populações urbanas. Existe uma ligação a este respeito e subordinação

das reivindicações dos pequenos agricultores aos monopólio do campo. Algumas

questões surgem imediatamente: quem são esses agricultores?

"Entre 1988 e 2002 diminuiu em 81.000 o número total de propriedades. Assim mesmo, se generalizou o contratismo e apareceram os fundos de

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inversão agrícola e os pools de plantações, que operam sobre o rendimento da terra e permitem a incorporação de capitais extra-setoriais. O aparecimento destes fundos mostraram a profunda transformação que se passava nesses anos na produção agrícola, principalmente na região pampeana, onde os recursos do sector não é deportados, e absorveu o excedente financeiro gerado pelo conjunto da economia”. "(p. 11).

Com a desvalorização da moeda em 2002, o rendimento agrícola foi

ocultado. A partir deste período, a massa de rendimento agrícola foi mais adequada

para proprietários agrícolas. Todas as explorações agrícolas (grande, médias e

pequenas) começaram a mostrar alta rentabilidade. No entanto, este aumento da

rentabilidade da agricultura, não envolve grandes investimentos, uma vez que os

rendimentos obtidos pelos proprietários não exigem novos investimentos, mas

apenas a cobrança de aluguel. Desta forma, uma parcela substancial da renda não

é um uso produtivo ou reinvestimento, mas é dedicada ao consumo, quer nacional

ou internacional ou o sistema financeiro.

"Com a desvalorização foi evidente que a elevada proporção de exportações de origem agrícola representava o total das exportações argentinas e sua alta participação no PIB, bem como a produtividade do trabalho especial na agricultura. Dados do INDEC dizem tudo, com as exportações atingindo 25% do PIB e mais de 60% delas são produtos primários ou de origem primária. Aumento da produção agrícola e as exportações são uma vez mais a existência de condições, tais como: fertilidade do solo Pampeano, permitindo, em última instância, a apropriação da renda agrícola historicamente importante. Com a taxa de câmbio após a desvalorização, não há um país com um amplo processo de mais de 25 anos, tem hoje pela indústria, principalmente para os ramos que processam os produtos agrícolas, que são essencialmente viáveis graças à renda obtidas a partir dessas produções. O caso da indústria do petróleo já diz tudo: o custo é a principal matéria-prima (ou seja, grãos) e a incorporação de mão de obra é quase zero (um trabalhador para cada milhão de dólares de volume de negócios anual). O seu potencial exportador reside na região pampeana que mantém características únicas da produção agrícola. A recuperação da produção, do emprego e dos salários reais deve muito do seu potencial de sustentabilidade em razão do destino dado ao referido rendimento agrícola. Os impostos sobre as exportações são uma forma (não é exato, mas aproximado) para captar pelo menos parte da renda da terra. Na sequência da desvalorização, os impostos foram aplicados às exportações agrícolas para conter o aumento dos preços relativos dos ativos da cesta básica e, portanto, o preço moderado causado pela desvalorização. A aplicação deste imposto é justificada, pois afeta direta e positivamente sobre o acesso da população aos alimentos. Por outra parte, as retenções agropecuárias permitiram incrementar

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rapidamente e em forma direta os ingressos fiscais constituindo um dos pilares mais significativos que sustentam o superávit fiscal primário (embora que pelo lado do gasto público resulta transcendental a redução dos salários reais que ocorreu com a desvalorização). O excedente, como é conhecido, foi utilizado principalmente para pagar juros da dívida externa. Em última análise, a renda é apropriada em parte pelos produtores - que recebem uma remuneração mais elevada - em parte pelo Estado - como um intermediário para a outra extremidade - e em parte por causa dos vários fundos que estão ativos no sistema alimentar." (Rodriguez e Seain, p.73-4).

Houve também mudanças profundas na estrutura da produção agrícola,

inclusive na concentração da indústria alimentar. A desregulamentação e a abertura

comercial reforçaram inúmeras empresas estrangeiras que foram para o país, ao

exemplo da Nabisco, Danone, Parmalat e outras. Essas corporações transnacionais

representam a falência ou incorporação de pequenas e médias empresas, em

muitos casos, de origem local e familiar.

É uma mudança de fundo na cadeia de produção e distribuição agrícola, que

envolve um processo de estrangeirização com concentração e centralização de

capitais.

De acordo com Roberto Bisang, economista da CEPAL, o campo é uma rede

de proprietários de terras, contratantes que têm máquinas mas sem terra, os

homens que não têm nem terra, nem máquina, mas têm conhecimentos e

tecnologia e articulada através da semeadura. Por outro lado, existem os

fornecedores de insumos, sementes, herbecidas, inseticidas, silos fabricantes,

profissionais, consultores. Outros estão fornecendo transporte, e não menos,

armazenamento e, finalmente, a fase de exportação.

“Os novos operadores no negócio agrícola tem uma forte formação tecnológica. Começou a viajar para o estrangeiro para um quarto de século. Arrastado em suas visitas a grandes exposições em todo o mundo, fabricantes de máquinas agrícolas. Desenvolveu novos sistemas de cultivo, como a semeadura direta, uma revolução mundial liderada pela Argentina. Quando a onda da biotecnologia, abraçado pelos enormes benefícios oferecidos. Assim, também alterou a composição da produção, com o fenomenal avanço da soja. Quando você olha para os números do comércio externo de grãos e oleaginosas e era discriminado por parte das empresas não está lá para as pequenas e médias rurais. Salienta, no entanto, um grupo muito pequeno de grandes empresas, principalmente multinacionais, mas não

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só. Este mercado de exportação para grãos e oleaginosas adicionados à sua alta concentração o fato de muitas das empresas em que são grandes multinacionais que controlam o mercado mundial. As matérias-primas adquirem a comercialização dos produtores primários. Continuando com o exemplo de soja e foi repetida nos últimos dias, o universo dos vendedores é de 20% dos proprietários e arrendatários que controlam 80% e 80% controla 20%. Escusado será dizer que o poder de negociação das poucas que vendem a maior parte é diferente da de muitos que vendem o mínimo. Mas a situação está longe de estar esgotada nestas proporções. É difícil saber exatamente o tamanho das empresas como a Cargill. Não cotadas em bolsas de valores e os seus lucros são omitidos. As suas margens de lucro são difíceis de discernir. Mas o tamanho das cotas de mercado e a multiplicidade de locais em que estas empresas operam permitem inferir que o seu produto é semelhante a muitos países. Isto é, em muitos casos são empresas que controlam grande parte do mercado mundial, onde as transações são comuns entre empresas. De acordo com os dados aduaneiros, Cargill, na Argentina, por exemplo, faz cerca de dois terços das suas vendas a Cargill Uruguai. Algumas dessas empresas são nacionais, como o General Oleoderia Deheza (AGD) ou Vicentin (não incluído no ranking), mas tem a particularidade de a sua dimensão. Mesmo o Brasil tem no setor de exportação empresas deste porte." ((IECO, 6/04/2008, p.8).

Frações de classes

Nesse primeiro plano a centrar-se um verdadeiro conflito realmente revelou

pouco sobre o que o novo mundo rural que está a ser desenvolvido na década de

1990, com base na concentração de terras, complexidade tecnológica e os novos

operadores, e também a crescente concentração da produção em algumas áreas

das culturas de exportação, como soja, milho e girassol. Especialmente a

concentração de alguns grupos econômicos que concentram a produção e são os

principais exportadores do país. Por outro lado, articuladas ao complexo agrícola,

uma nova camada de pequenos e médios produtores e proprietários, pouco

conhecida ou evidente para as zonas urbanas, que se tornou a base social e

política das quatro principais entidades agrícolas (SRA, Coninagro , FAA). ocorreu

em bloqueios em várias partes do país. Alguns dos mais concentrados foram

Guayleguachu (província de Entre Rios). É incrível o número de rotas corte e

mobilizações no período. Esta base social está localizada entre filiados da

Federação Agrária Argentina (FAA) e também entre os autoconvocados que não

fazem parte de qualquer entidade. Estes são especialmente aqueles com produção

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de cerca de 20% do que é exportado. A principal alegação de que de fato foi

iniciada no final articulada para o conflito na bandeira contra a Resolução 125.

Algumas considerações

O governo Kirchner teve uma derrota política. Nas palavras de um jornalista:

"Eu nunca vi tanto capital político derramado em tão pouco tempo(...)" (Solá, p.199).

Esta derrota veio no grau de mobilização social, sectores sociais rurais que tinham

apoiado a eleição de Cristina Fernández. Os bloqueios são impressionantes

números apresentados. Em manifestações públicas, especiais ou ato de 25 maio,

quando o Kirchner na província de Jujuy não mobilizam mais de 60 mil pessoas, os

ruralista na Praça dos Espanhóis, em Rosario, conseguiu uma participação e apoio

de quase 350 mil pessoas. Na véspera da votação no Senado, a demonstração de

apoio ao governo chegou a cerca de 105 mil pessoas; no bairro de Palermo, a

oposição coloca cerca de 250 mil pessoas. Por sua vez, o governo perdeu apoio

entre os governadores e no Congresso perdeu base parlamentar na Câmara dos

Deputados e no Senado.

A consolidação da estrutura do Partido Justicialista, em torno de Néstor

Kirchner, alcançada com o sucesso eleitoral em 2009, agora se encontra

ameaçada. Sua base de apoio político em deputados, senadores, prefeitos e

governadores encontra-se em grande turbulência. O PJ está dividido. Eduardo

Duhalde é o arquiteto que se uniu com Reutemann, De La Sota, Schiaretti, Busti,

Barrionuevo (a potencialidade do novo CGT depende do pólo na PJ), até Rodriguez

Saa, entre outros, que são inimigos declarados de Néstor Kirchner.

O modelo econômico teve uma primeira avalia, uma vez que os direitos de

exportação (retenções) teve uma grande abalo desde a sua introdução, bem como

a desvalorização não tem impedido o processo inflacionário que se manifesta no

elevado custo de vida da população argentina. Por seu turno, esta perda é expressa

em um crescimento orgânico, mas ainda pouco claro da oposição liberal ao

governo. Ao longo de todo o conflito, o governo perdeu peso. Primeiro eles

perderam a proposta de Pacto Social, porque os empresários estavam divididos.

A derrota no Senado, que não esperavam era um tremendo golpe. Vários

analistas dizem que Néstor Kirchner e Cristina pensar seriamente sobre o abandono

do governo. Não sabemos se ela é, mas o próprio fato de o debate mostra que a

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crise permaneceu. Agora saltou Alberto Fernández, a principal figura do governo no

âmbito do casamento. E a crise não pára.

Os movimentos sociais e populares foram divididos

O governo estava desenvolvendo os preparativos sobre o seu projeto

Bicentenário (Pacto Social), o que significava a constituição de um processo de

consenso político e social entre empresas, governo e sindicatos. A inviabilização

desse Pacto Social em 25 março de 2008, dia nacional, mostrou uma fraqueza

inicial do governo. Foi substituído o consenso pela polarização.

No segundo momento, quando Cristina Kirchner foi obrigada a enviar ao

Congresso a votação da resolução 125. É importante reconhecer que esse fato foi

após intensas manifestações que foram realizadas em um sábado (dia) e segunda-

feira em vários bairros de classe média de Buenos Aires. Massivas manifestações,

sobretudo da classe média urbana. Também é verdade que havia em curso no

Supremo Tribunal um processo chamando a inconstitucionalidade das retenções,

mas sem um tempo específico para ser julgado. Mas as manifestações, mesmo que

pacíficas e dispersas, nas ruas que começou segunda-feira foram um potencial

novo das mobilizações nos dias seguintes.

A fratura política governista foi expressa em sua intensidade nos eventos

públicos na cidade de Buenos Aires, um dia antes da votação. Uma nova medição

de forças entre os dois setores. No bairro de Palermo, em favor do campo estiveram

presentes perto de 208 mil pessoas, enquanto a cerimônia oficial na Praça do

Congresso reuniu cerca de 103 mil pessoas.

Na manhã de quarta-feira, 17 julho, foi derrotada no Senado a Resolução 125:

36 senadores votaram a favor e 35 contra. A cisão ocorrida no Congresso no bloco

governista (Partido Justicialista, Radicais K, Frente para a Vitória) foi muito

profunda. O governo anteriormente tinha 2/3 dos votos senadores (50 senadores).

Ou seja, cerca de quinze de sua base política votaram com a oposição. Algo

semelhante havia acontecido na Câmara dos Deputados, mas o governo pode

garantir naquela casa uma pouco expressiva vitória por quatro votos de diferença. A

maior expressão de enfraquecimento de sua base política foi o voto minerva do

vice-presidente, Julio Cobos, que presidia o Senado, que votou contra a Retenção

125.

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Os exemplos demonstram somente a dimensão do problema: perda de uma

base social popular que havia sido ampliada em 2005 e em 2007 que possibilitou

que Cristina Kirchner obtivesse 44% dos votos nas eleições presidenciais. Sua

imagem positiva junto à opinião pública, em julho de 2008, girava em torno de 20%,

mantendo-se ainda hoje nesse patamar.

Os movimentos sociais e a esquerda: as diversas avaliações

Como um elemento para indicar ainda, os populares ficaram em três diferentes

posições: pró-governo, aqueles que estavam com o campo e por últimos os setores

independentes, que não estiveram com nenhum dos dois sectores.

Foram várias as posições nos movimentos sociais e sindicatos. Por exemplo,

na Confederação dos Trabalhadores Argentinos (CTA), duas posições diferentes na

cúpula dirigente. O seu fundador e líder histórico, agora diretor de relações

internacionais, Victor De Gennaro, apoiou os setores agrícolas da Federação

Agrária Argentina (FAA). Por sua vez, seu atual secretário geral, Hugo Yaski apoiou

o governo, embora inicialmente se mantivesse em uma posição neutra. Por seu

turno, a CGT também sofreu processo semelhante: o secretário-geral da entidade,

Hugo Moyano, apoiou o governo; ura foi determinada pela formação do Azul e

Branco CGT, Luis Barrionuevo, realizou fortes críticas ao governo de Kirchner.

Neste campo verificamos que as divisões são realmente definidas em três

diferentes cortes de posicionamento: a) o apoio de setores que o governo tinha em

sua base social de apoio desde 2003 (Movimento Livres do Sul/ Movimento Bairro

de Pé, Movimento Evita, Federação da Habitação e Vivendas, entre outros).

Também foi apoiado pelo Partido Comunista Argentino (PCA). No campo

sindicalista, a maior parte das lideranças da CGT e CTA. Enfim, essas duas

entidades foram divididas em seu apoio, especialmente a CTA. Além desse apoio,

centenas de intelectuais apoiaram o governo “contra o surgimento da direita”,

através de encontros, manifestos e abaixo-assinados.

Embora com diferentes variações em seus discursos, duas questões centrais

foram expressas no apoio ao governo: a questão do direito e da necessidade de

manutenção da distribuição de renda, que seria o elemento mais progressivo das

retenções.

Com base nas suas propostas e caracterização do conflito têm em sua

maior, algumas idéias-chave. Em panfleto de março de 2008, o Movimiento Libres

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del Sur, marcado "desemprego agrícolas" como "e anti antisolidario. Para

compreender que o móvel deduções encomendado pelo governo "tem uma

progressiva e geralmente mantêm os ganhos na agricultura nos mesmos níveis de

2007, que é realmente muito alto."

Não muito diferente é a posição do Movimento Evita, que considerava que as

retenção agrícola anunciada em 11 de março de 2008 teve como objetivo "melhorar

ainda mais a recuperação econômica para realizar a distribuição da renda

nacional,e também produz um freio à subida dos preços dos alimentos e exerce um

controle ao descontrolada área cultivada com soja, o que gera uma situação de

escassez de leite, milho, carne, girassol".

Material do Partido Socialista Popular Nacional mostra um maior grau de

radicalidade, no seu discurso. Diz que "Cristina Fernández de Kirchner tem tolerado

os desordeiros e ofereceu várias amostras de contemplação”. Algumas propostas

para o governo: "Por fim à sedição, abrir as estradas e o abastecimento do povo",

"aplicar a força máxima do estado e da Constituição, o Código Penal e a lei da

oferta"; "nacionalizar grandes explorações , o comércio externo e produção de

sementes e insumos”, "organizar e mobilizar a população da Argentina para

consolidar os ganhos e para se mobilizar".

O Partido Comunista da Argentina (PCA) teve uma posição que foi diferente

das organizações anteriores, embora mantendo o apoio ao governo. Procura

diferenciar as posições dos pequenos e médios produtores em relação aos

"capitalistas e proprietários rurais ligados ao agronegócio agrupados Sociedade

Ruralista Argentina, Confederação Rural Argentina, Confederação das Associações

Rurais de Buenos Aires e La Pampa, Forum da Cadeia Agroindustrial Argentina. De

acordo com as suas posições, os sectores que tentam "usar apenas a demandas e

protestos de pequenos e médios produtores para promover uma falsa visão de

confronto, onde o objetivo é o de apresentar-se como vítimas da política do governo

e defender o campo como um todo".

Sua avaliação do resultado do período de conflito, podemos verificar nos

editoriais de Propostas (17 e 24 julho). "Uma vitória da direita”, que "não hesitou em

sair e defender os seus interesses como uma classe hoje emergente com

capacidade de mobilização de massas, e composto por um novo espectro de

alianças sociais, contraditórias e perigosas" e com a ajuda de a liderança da

Federação Agrária.

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Entre as posições apresentadas é observada uma posição nítida do

Movimento Livre do Sul e do Movimento Evita em defesa de um governo que

avançaria continuamente para a conquista das necessidades da população. O

governo de Cristina Fernandez é caracterizado "democrático e popular", de

natureza progressiva. Os populares e sindicais para apoiar o sector agro

exportação.

Um segundo bloco é formado por entidades que manifestaram o seu apoio

para os setores agro-exportador. Nesta área havia algumas organizações que estão

adicionando no processo são: Corrente Classista Combativa(CCC) e o Movimento

Popular dos Jubilados e Pensionistas, de Raul Castell. Em setores da esquerda

socialista, destacaram-se no apoio aos ruralistas: Movimento Socialista dos

Trabalhadores (MST), Esquerda Socialista (IS) e Esquerda dos Trabalhadores (IT).

Esses movimentos e organizações de esquerda consideravam que o seu apoio não

era para os agro-exportadores, mas sim para os pequenos produtores e

proprietários, pequenos empresários, e chacareiros que estavam sendo espoliados

pelo governos e pelas empresas agro-exportadoras.

A perspectiva e abordagem do Movimento Socialista dos Trabalhadores

(MST) é o mais expressivo e conceptualmente elaborado em apoio aos setores

agrários. Na Edição n º 479 (17/07), o MST avaliou que o governo perdeu no

Senado em razão de uma crise "claramente influenciada pela mobilização". O

"Nock Out", como chamado pelo escritor (que nos lembra, "lokout", utilizada por

vários sectores), foi "um corolário de mais de 4 meses de combates no caminho de

milhares de chacareiros autoconvocados e milhões de trabalhadores, comerciantes

e moradores das cidades e províncias do interior.". E isso era porque "essa

energia, juntamente com a indignação dos trabalhadores e setores da mídia e

cidades contra a inflação e o autoritarismo", pois "a grande maioria da população

tem dado as costas para o governo e seu modelo e exige uma mudança

fundamental.". Sob a derrota do governo, três problemas serão colocados: "uma

derrota dos agro-exportadores", porque havia reforçado “os chacareiros para lutar

por uma mudança de modelo".

Em um período de confrontação aberta entre o governo e o agronegócio, não

foram verificadas mobilizações do setor trabalhista. Sobre a inflação, o emprego

informal e a crescente pobreza, não foram alterados para uma maior circulação

nestes sectores.

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Um terceiro bloco, que foi recentemente mostrado na sua posição, envolvendo

um arco-íris da independência dos sindicatos, populares, intelectual e setores

esquerdistas foi configurado com uma posição de não-alinhamento com qualquer

dos blocos. E neste campo foram diferentes posições: Dario Santillan Movimento,

Movimentos Sociais piqueteiros "... setores e também deixou como Frente Socialista

dos Trabalhadores (FOS), Partido Socialista dos Trabalhadores (PTS), o Partido

Obrero (PO) e o novo MAS.

Crises políticas e os sectores agro-exportadores: retenção e controle de preços

Desvalorização monetária, em janeiro de 2002, com a unificação do câmbio a

partir de fevereiro, permitiu um relativo consenso entre o setor bancário e financeiro

- beneficiado com a pesificação da dívida pública e de depósitos e transferências

para o Estado suas dúvidas com a economia - e os sectores industrial e agrícola. A

indústria teve seu mercado interno protegido da concorrência estrangeira e da

liquidação dos passivos das grandes empresas e no setor agrícola foi incentivada a

subida dos preços dos seus produtos exportáveis. Mas por sua vez com uma

enorme transferência de recursos dos trabalhadores - que viram os seus salários

reais caírem cerca de 30%.

As retenções foram aplicadas às exportações de produtos manufaturados (5%)

e produtos primários (10%). Em abril de 2002, dois itens foram aumentados para

20%: soja e girassol. Essas porcentagens aumentaram, chegando a 34% em

dezembro de 2007.

Neste sentido, para reaquecer a economia o Estado interviu na economia em

geral e em particular no setor agro-exportador. Essa é a base da crítica frontal

contra as retenções. Esta perspectiva é mais evidente nas declarações da

Sociedade Rural Argentina (SRA), que considera que o Estado deve apenas

assegurar os projetos de médio e longo prazo e de proteção do acesso dos

produtos aos mercados internacionais. Estas reações foram se explicitando

ideologica e politicamente, pelo menos desde meados de 2005, quando Kirchner

tinha começado uma longa negociação com os frigoríficos e diversas entidades do

campo. Para Luciano Miguens, dirigente da Sociedade Rural Argentina (SRA), o

campo tinha sido depois de 2001 "motor de desenvolvimento no país", diz:

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“Através das retenções, temos contribuido com milhões de pesos, temos posto o ombro solidariamente e además o agro tem aproveitado a conjuntura de precios internacionales favoráveis dos últimos anos para inverter; tecnificar-se, para rearmar as equipess de trabalho, para dar ar a Argentina [...] nos acusam de ser os maiores beneficiários da desvalorização, quando na verdade a razão principal era reduzir as importações, beneficiando a indústria que ainda não é internacionalmente competitiva. Dias atrás, o presidente Kirchner participou da abertura dos escritórios de uma fábrica de automóveis, quando foi anunciado um plano de investimento de US $ 50 milhões. Cortou a fita e decretou a "ré" no país, acrescentando que este foi "um exemplo do modelo de produção que está a gerar crescimento no país." Sabe o presidente quanto os produtores têm investido na soja, milho e trigo no ano passado, mais de 4.000 milhões de dólares? (...) Outra causa de distorção do preço da carne é o privilégio desfrutado por muitos anos pela indústria de couro que não pode ser exportada em bruto e esconde artificialmente o seu valor. Com o argumento de "industrialização", remove da produção pecuária a rentabilidade [...] o complexo agro-industrial argentino está em uma posição de melhor responder às necessidades das nossas próprias aspirações, só precisamos de regras claras e que não nos discriminem.” (La Nación, Buenos Aires, 14 de maio de 2005, em Peralta Ramos, 2007:442).

Por sua vez, o controlo dos preços dos alimentos foi a principal linha de que o

governo procurou manter, manter a inflação sob controle. Conflitos entre o governo

eo setor agrícola estiveram presentes, por exemplo, quando Kirchner (novembro

2005), para manter a estabilidade dos preços da carne bovina, ameaçava a subir

para 25% deduções para as exportações deste produto. Levo que a grande

diminuição no frio corte de 15% dos preços populares sete consumo de carne. Mas

não forneceu refrigerado seções de "consumismo", que vendeu apenas no mercado

doméstico.

A estrutura sindical como pilar de apoio ao kirchenerismo

O movimento sindical argentino mantém sua estrutura principal baseada no

peronismo, isto é, os sindicatos são parte da própria estrutura do Estado. Não

somente cabe ao Estado reconhecer as entidades dos trabalhadores que são

representativas de cada ramo de produção, como também reproduz a arbitragem e

período no qual se realizam as negociações coletivas por salários, jornada de

trabalho, relações e condições de trabalho. Embora com trajetórias diferentes, essa

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estrutura sindical teve em sua gênesis muita semelhança com o caso, porque

ambas estruturas se constituíram e se consolidaram no período populista de Getúlio

Vargas e de Domingos Peron.

De fato, na Argentina existem atualmente duas centrais de trabalhadores – a

Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e a Central dos Trabalhadores

Argentinos (CTA), esta resultado de uma dissidência com a primeira em 1991. A

Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), fundada em 1930, é a principal

estrutura existente, reconhecida pelo Estado, e que agrupa 70 grandes federações

e confederações por ramo de atividade. Uma outra central, a Central dos

Trabalhadores Argentinos (CTA), fundada em 1991, não tem personaría gremial, ou

seja, embora tenha inscrição sindical, não é reconhecida como negociadora pelo

Estado. Esta é a principal reivindicação da entidade durante o período de Néstor

Kirchner. De cerca de 10 milhões de trabalhadores assalariados, seis milhões são

registrados (ou seja, que tem algumas proteções legais junto ao Estado) e 4

milhões não tem nenhum proteção.

Actualmente existen 2826 asociaciones sindicales inscritas en la Dirección

Nacional de Asociaciones Sindicales. De esas 1419 tienen la Personaría Gremial,

por tanto en condiciones de negociaciones colectivas plenas. Por su vez, otras 1407

asociaciones solamente tienen inscrición que solamente pueden negociar donde no

existía ninguna representación sindical plena (inciso b del articulo 23 de Ley

23.551). Por un mapa sindical argentino verificamos las siguientes características

de esas agremiaciones: Primer Grado - 2716 ( con PG, 1335; con SI, 1318);

Segundo Grado – 95 (con PG, 78; con SI, 17); Tercer Grado – 15 (con PG, 06; con

SI, 09). En relación a la liberdad sindical, eso significa que 51% de los sindicatos de

primer grado están restringido de llevaren adelante negociaciones trabajista; 18%

de las federaciones; y 60% de las confederaciones.

A CGT desenvolveu-se como braço político do peronismo no movimento

sindical, por essa razão seus principais líderes tiveram posição nas direções do

Partido Justicialista como também conquistaram cargos no parlamento (câmara de

deputados e senado). Há várias décadas, os sindicatos perderam a capacidade

política, como coluna vertebral sindical do Partido Justicialista. Entre 1983-2003 não

mais havia interesse no PJ em que os dirigentes sindicais ocupassem postos

chaves nas estruturas de condução partidária. As “62 Organizações”, como braço

sindical do peronismo, perderam seu poder real dentro do partido. “Este fenômeno

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de ruptura institucional entre sindicatos e partido dentro do peronismo se acentuou

na década menemista, fomentando-se somente compromissos pontuais entre

dirigentes sindicais e o poder político-partidário e estatal controlado pelo

menemismo” (Godio, 2008, p.125). Para o autor, se acentuou no período a divisão

entre uniões e confederações sindicais, o que aumentou o espírito corporativo

setorial em cada sindicato, o que por sua vez criou um clima para o fortalecimento

de grupos de choque em muitos sindicatos. “A vinculação „funcional‟ entre estes

grupos e as barra bravas de futebol aumentou em forma proporcional à decisão de

muitos sindicalistas de somar a seus atributos o de ser dirigentes de clubes,

misturados agora com empresários e políticos tradicionais” (p.125).

As correntes sindicais dentro da CGT que podemos definir são as seguinte. 1º)

O “sindicalismo de resultado” (os gordos) que estabeleceram as principais

negociações com o menemismo nos anos 1990: Federación de Comercio (Armando

Cavalieri), Oscar Lescano (Luz y Fuerza), Federación de Sanidad (Carlos West

Ocampo), Rodolfo Daer (Alimentación), Unión Ferroviaria (José Angel Pedraza),

Plásticos (Vicente Mastrocola), Químicos (Reynaldo Hermoso), Sindicato de

Cementerios (Domingos Petrecca). 2º) Outro setor em torno da UOM estabelecem

acordos e negociações com o governo Kirchner, mas mantêm uma posição

autônoma diante da CGT : SMATA (José Rodriguez), UOM (Antonió Caló), UOCRA

(Gerardo Martinez) e UPCN (Andrés Rodriguez). 3º) O núcleo de Moyano, um forte

núcleo de dirigentes sindicais: Unión Tranvariaria Automotor (Juan Manoel

Palacios), Obras Sanitarias (José Luis Lingieri), Sindicato de Peones de Taxis

(Jorge Viviani), Judiciales (Julio Piumato), Unión de Trabajadores Rurales

(Gerónimo Venegas), Dragado y Balizamiento (Juan Carlos Schmid), Sindicato de

La Fraternidad (Omar Maturano), Unión de Trabajadores de Entidades Deportivas y

Civiles – UTEDyC (Patricia Mártires), Municipales Porteños (Amadeo Genta),

Seguros (Luiz Péres), Panaderos (Abel Frutos), Sindicato Obreros Marítimos Unidos

(Omar Suárez), Madera (Natalio Baso).

Considerações

As contradições estruturais na realidade econômica e social argentina

continuam a se reproduzir em cada momento com maior intensidade. O conflito com

os setores agro-exportadores, que está prestes a se reiniciar a partir de março de

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2009, e os impactos da crise econômica internacional, não vão ser uma trilha

política tranqüila para os Kirchner. O aprofundamento dos problemas sociais não

permite, por sua vez, uma solução que não envolva uma radicalidade em termos

dos rumos da economia. A Marcha contra a Fome, chamada pela CTA e inúmeras

entidades, anuncia ao menos uma dimensão da questão social: com os mais de

seis milhões de crianças morrendo de fome, o problema social não pode ser

resolvido com paliativos. Os propagados anos de crescimento econômico não se

traduziram em menos desigualdade social. Essa agravante situação não está

dissociada da condição de desproteção social que milhares de trabalhadores

sofrem. Esse é o limite do projeto nacional popular.

O regime político argentino, por sua vez, não se recompôs integralmente. As

divisões entre suas frações dominantes e entre os partidos da ordem nos parece

indicar, em cada fato político e econômico essa afirmação. Embora as

especificidades culturais de cada povo obriguem-lhe a rir da própria sorte, não é

certo que as principais travas do regime político mantenham-se: os de cima perdem

o chão entre suas divisões e mesquinharias setoriais, desnorteiam-se em relação

aos projetos e caminhos a seguir, encontram-se divididos inclusive em seus

principais partidos da ordem. Sua trava principal, as centrais sindicais,

especialmente a CGT mas também a CTA, abrem fissuras em seus altos escalões,

além de que se encontrarem desacreditadas e desmoralizadas diante das massas.

Depois do conflito entre governo e agroexportadores, que ao primeiro momento

significou uma vitória para o agro, os Kirchner e as classes burguesas são

solapados no contrapé com a agudização da crise capitalista sobre o país. Mais

desnorteamento, confusões e fissuras. O regime político argentino ressente com

grande debilidade os ventos do norte.

Mas ao mesmo tempo, é a corrida contra o tempo político e organizativo. O

trabalhador e os setores da classe média que viveram o auge da economia

argentina nos anos 70, guardam a desesperança e o rancor sobre os personagens

históricos os mesmos na política argentina. Os novos personagens obreiros em

cena se ressentem de suas organizações políticas e sindicais; e desacreditam

profundamente dos personagens políticos e burocratas que se realizaram

“sindicalistas empresários” sobre a dor e o sofrimento do povo. Mas mesmo assim,

é difícil o parto para a constituição de um movimento obrero classista, independente

e de base. Em cada luta travada por esses lutadores, cada vitória organizativa e

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mobilizatória, cada centímetro de palmo no avanço político e organizativo há um

gosto de suor e mais vontade para seguir avançando, em meio às perseguições,

ameaças e prisões das patronais, da burocracia sindical e do governo. As

organizações piqueteiras, por sua vez, mantêm-se como amortecedor da luta de

classes junto às camadas populares. A igreja católica, baluarte da união política e

do consenso social, poucos resultados logrou obter na peleja intestinal entre

governo (e sectores do capital) e os sectores agroexportadores respaldados por

uma pequena burguesia rural. Qual é a profundidade dessas fraturas, somente a

luta de classes irá demonstrar. Qual é o tempo para construção de um movimento

independente e de uma direção política alternativa dos trabalhadores? Somente a

luta de classes vai dizer. Essa é uma página que está para ser virada.

VII. Para a construção de uma chave teórica sobre a nova configuração

política

Por um lado, a análise realizada sobre a nova configuração política na região

muitas vezes é enevoada em razão das esperanças presentes no investigador,

especialmente porque esse quadro é distintamente diferenciado do anterior, e é

considerada a ultrapassagem do modelo neoliberal constituindo-se desde os anos

80 e que ganha sua expressão máxima na década de 1990. É a análise constituída

tendo como eixo a premissa central sobre o período pós-neoliberal. Nesse enfoque

são salientados os programas sociais, as iniciativas de integração regional, os

relativos sucessos econômicos, o decréscimo da dívida externa, como também as

políticas internacionais não mais centradas nos ditames norte-americanos.

Também, nesse universo analítico, são enfocadas as questões da

institucionalidade, dos marcos constitucionais e as formas de ordenamento legal

que possibilitem uma maior participação dos setores populares. Outro marco de

análise, de maneira mais crítica, veio se concentrando na ênfase ao caráter

populista ou neopopulista desses governos, não apenas no que se refere à forma

de relação do governo e de suas lideranças com a população, algo em torno do

caráter não mediado pelos partidos, mas na relação direta. Enfatiza-se os gastos

públicos excessivos que terminariam não sendo priorizados nas áreas produtivas.

Como eixo analítico, que ainda estamos constituindo, nos parece plausível

considerar que os atuais governos sul-americanos surgem em um contexto

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econômico e político que podemos definir da seguinte maneira: a) fracasso social

dos projetos neoliberais na região; b) inflexão ideológica e política dos partidos e

organizações de esquerda para o campo institucional, tendência que veio se

desenvolvendo já na década de 1980, que Borón (2002) corretamente conceitua

como limitação da esquerda à democracia minimalista; c) desgaste e perda de

legitimidade da instituições democrático-liberais junto a amplos setores da

população, como diversas pesquisas do instituto Latinobarómetro puderam verificar.

Em razão do grau de desgaste das instituições políticas, da profundida das crises

no bloco no poder de Estado, ao lado da intensificação das lutas sociais, parece-

nos que vão definir os contornos dos atuais governos, no sentido de sua

radicalidade ou acomodação diante das frações de classe burguesas locais ou

internacionais. Nesse sentido, o caso Argentino tem muito para nos revelar sobre

essa tendência da nova configuração política sul-americana.

Por sua vez, temos que construir uma chave analítica que norteie a análise

comparativa e em especial o procedimento metodológico na investigação de campo.

Nesse tipo de pesquisa, mesmo no trabalho de campo nos casos particulares, a

referencialidade se desenvolve. Exemplo disso é a questão da estrutura sindical

argentina e brasileira. Ao constatar o extremado caráter verticalista no caso

argentino que praticamente impossibilita o aparecimento de oposições sindicais e

de movimento de trabalhadores na base – embora estejam atualmente se

desenvolvendo essas experiências -, existe uma constatação que parte do caso

brasileiro, que mantem uma tradição verticalista, possibilita o surgimento de

oposições sindicais e movimentos de trabalhadores pela base. Exemplo disso é a

quantidade de centrais sindicais no Brasil e uma diferenciação ideológica e

organizativa entre os sindicatos. Na Argentina, por sua vez, existe somente uma

central sindical reconhecida pelo Estado, a Central Geral dos Trabalhadores (CGT),

que tem a “representação gremial”, e uma central que não é reconhecida, a Central

dos Trabalhadores Argentinos (CTA), que apenas detem a “inscrição gremial”, que

não lhe possibilita negociar questões salariais.

A questão comparativa exige certa mobilidade nos conceitos centrais que

operam esse percurso analítico. Porque não se reduz a simplesmente

compreender dinâmicas ou os fenômenos mais aparentes de cada país, como

atualmente é realizado, por exemplo ao chegar às caracterizações como os

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governos norteados pela “boa esquerda” e outros pela “má esquerda”, onde operam

aspectos exclusivamente ligados à dinâmica de distribuição de riqueza.

De certa maneira, essa análise vem ocorrendo mas consideramos que o

limite dessa perspectiva ocorre em razão de se estabelecer no marco empírico,

puramente factual, entre as distintas realidades tratadas. A análise comparativa que

aqui consideramos necessária é aquela que busca apreciar que a nova

configuração ocorre em meio às distintas formações sociais que, em sua história,

percorrem caminhos particulares, embora articuladas e determinadas, de maneira

subordinada, às relações internacionais. Nesse sentido, é que podemos apreciar a

profundidade e impactos ocorridos nos ajustes estruturais que foram se constituindo

na década de 1980 e 1990. Considerados os três países em tela (Brasil,

Venezuela e Argentina) tiveram efeitos sociais e econômicos diferenciados em suas

estruturas produtivas e de classes sociais.

Essas são as teses centrais que podemos desenvolver verificando

comparativamente esses novos governos, especialmente o caso argentino,

brasileiro e venezuelano. Esses novos governos surgem nas premissas

consideradas anteriormente, operando claramente como mediação importante se

não central na retomada do consenso social; dito de outra maneira, no

convencimento da população sobre as novas perspectivas para o país. Certamente

que também operam nesse sentido as mediações políticas e organizativas

representativas de setores trabalhistas e dos movimentos sociais.

De maneira contraditória, as frações burguesas mantiveram ou mantêm uma

relação de desconfiança e insegurança com esses governos; essas frações se

mantêm como antes nos setores centrais do Estado. Por sua vez, compreendem

que esses governos são importantes ou mesmo decisivos para a restauração da

normalização e/ou da legitimação do regime político liberal-burguês; por isso, as

concessões aos movimentos sociais e setores populares são aceitos, mesmo que

provisoriamente. A importância desses governos se faz por uma única razão: suas

principais lideranças são referentes nacionais de organização de trabalhadores e

camadas populares e/ou conseguiram ganhar essa referência.

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Hipóteses diretivas para próximos passos na investigação.

Hipótese 1. A configuração das novas forças políticas latino-americana se

diferenciam de governos anteriores, especialmente aqueles que se apresentaram

depois dos ciclos militares na região. Diferente dos governos anteriores que, de

maneira explícita, se submeteram às políticas das classes dominantes locais e às

diretrizes das instituições financeiras internacionais, os atuais governos diminuíram

parte de suas dívidas externas, por meio de renegociação com credores ou

pagamento antecipado de parte dessas dívidas. Por sua vez, como eixo importante

de suas políticas públicas, enfatizou programas sociais para camadas sociais até

então marginalizadas, em decorrência do desemprego e da pobreza acentuada de

suas populações. Essa emergência política tem possibilitado o revigoramento dos

regimes políticos democráticos liberais na região e de suas bases econômicas

capitalistas em momento de integração com os pólos principais do capitalismo.

Neste sentido ocorre um movimento de crise hegemônica e ao mesmo tempo sua

reconstituição.

Crise de hegemonia. No caso argentino, como pudemos verificar na

apresentação no tópico anterior, a crise econômica internacional, teve um ainda

mais desagregador na força de trabalho, e na ampliação dos movimentos sociais.

Essa dinâmica de lutas e protestos sociais, que inicialmente teve como marco as

greves de funcionários públicos, e mais a frente os movimentos dos desocupados,

ampliou-se a partir de 1998, em decorrência da crise internacional,

Hipótese 2. A relação com os movimentos sociais e partidos de base popular

torna-se uma característica fundamental dos atuais governos, que procuram sem

exceção mantê-los como sua base social e política de apoio. A base social de apoio

nos movimentos sociais e populares é mantida, de maneira oscilante e em

permanente contradição, visto que as políticas econômicas desses governos

procuram atender e negociar com os interesses principais do capital local e

estrangeiro. Para isso, é necessário operar de maneira continuada com políticas

públicas chamadas de programas de transferência de renda que procuram

neutralizar e manter uma base social de apoio de setores da população. Ao mesmo

tempo, exige das investidas políticas governamentais, ao lado do atrelamento

político de direções importantes dos movimentos sociais e de organizações de

esquerda, especialmente por meio de cargos nos ministérios, diversas secretarias e

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empresas públicas, constituem as principais investidas governamentais, no sentido

de manter uma base política orgânica às suas posições.

Na Argentina, como verificamos anteriormente, essa tese é comprovada, uma

vez que desde a posse de Néstor Kirchner em 2003 e com Cristina Kirchner a partir

de dezembro de 2008, o controle de parte desses movimentos e partidos forma

parte das preocupações governistas. Em momentos importantes de tensionamento

com as frações do capital, esses movimentos e partidos exerceram um papel de

mobilização em apoio ao governo. Exemplo disso foram as manifestações e

piquetes a supermercados e postos de gasolinas considerados pelo governo como

causadores do reinício inflacionário.

Hipótese 3. Esse complexo cenário e contraditória base social de apoio desses

governos, caracterizamos como de Frentes Populares. Esse conceito nos serve

como referência pois implica em três dimensões principais: a) aliança política entre

direções de movimentos sociais, setores (frações) empresariais e governo; b)

mesmo mantendo vínculos de manutenção da ordem econômica capitalista,

ampliam programas e atendem determinadas reivindicações populares; c)

recanalizam para o espaço institucional democrático-liberal os anseios, frustrações

e revoltas populares; d) desta maneira, diluem possibilidades de abertura de

situações revolucionárias, neutralizam expressões políticas revolucionárias (partidos

e movimentos sociais).

Hipótese 4. A crise de hegemonia nos regimes políticos sul-americanos.

Dimensão que consideramos fundamental na análise dos atuais governos refere-se

às determinações que possibilitaram o aparecimento desses governos. A maneira

como se conjugam essas determinações... Na literatura sobre o tema, é comum

encontrarmos como determinação principal a questão da crise do projeto neoliberal,

não tanto ou principalmente aos seus aspectos doutrinários, mas principalmente

enquanto orientação político-econômica governamental. Os estudos sobre os

impactos econômicos e sociais dos ajustes econômicos nos distintos países latino-

americanos, como também as lutas e protestos sociais que se desdobram desse

quadro, estão estabilizados de maneira que possamos considerá-los como uma das

determinações presentes que possibilitou a nova configuração política sul-

americana. No entanto, essa determinação em si não explica, ao nosso entender,

essa configuração. Como explicar, por exemplo, que isso não tenha ocorrido na

América Central? Mesmo no contexto sul-americano, essa nova situação política

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não se constituiu (até o momento pelo menos), em países como Colômbia, Peru e

Chile. Por sua vez, nos países que configuram esse novo quadro que

evidenciamos, existem modalidades distintas desses governos de centro-esquerda.

Nos governos anteriores, de orientação neoliberal, ocorreram distintas crises

de hegemonia, de maior ou menor intensidade. Duas características perpassam

nesses experiências: descrédito das populações, em especial trabalhadores e

camadas populares, com os governos e políticos. É uma dimensão da crise do

regime político Verificamos essa situação no caso argentino, entre 2003 e início de

2008, período no qual as distintas frações da burguesia respaldaram as ações

governamentais. Tal posição deveu-se ao período do 2001, no qual abre-se uma

crise do regime político, que tem uma desorientação política das frações burguesas

sobre os rumos econômicos do governo, em torno do Plano de Convertibilidade, e

por outro lado massivas mobilizações e protestos sociais que se multiplicaram

rapidamente para os distintos pontos do país. Esses fenômenos conjugados

levaram à queda do governo de Fernando de La Rua e de três presidentes

interinos; apenas com Eduardo Duhalde, ex-governador de Buenos Aires, e na

ocasião presidente do PJ e que era senador na ocasião, a crise do regime terá seu

fechamento.

Pressupostos teóricos que para a continuidade da investigação: a questão da hegemonia, das relações sociais de produção e da natureza política e social dos novos governos

Ainda que de maneira rápida, convém explicitar a base teórica do qual

partimos (materialismo histórico e dialético) e alguns conceitos fundamentais que

nos são valiosos em nossa investigação. Cabe assinalar que esse tópico, em outro

momento, encerrará um maior e aprofundado desenvolvimento.

Trabalhamos com o conceito de hegemonia como essencialmente um

conceito político. Hegemonia traz em si a questão da correlação de força e dos

distintos movimentos políticos que em determinadas formações sociais e históricas

se apresentam e a questão do projeto político e social de uma sociedade,

expressando e condensando, as relações sociais de produção, no sentido de lhes

manterem ou lhes negarem. Por constituir distintos e antagônicos interesses, ideais,

princípios, modos de viver e visões de mundo e projetos de sociedade, a disputa

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pela hegemonia se objetiva no plano da linguagem e do pensamento por meio de

lemas, palavras de ordem, temas, controvérsias, explicações sobre o passado e o

presente e reinterpretações da história. Como práxis em processo, a hegemonia

altera-se todas as vezes em que as condições históricas se transformam.

A concepção de hegemonia sugere que determinados grupos sociais que

necessariamente se expressam e sintetizam posições sobre a maneira de produzir

e reproduzir as relações sociais de produção de uma determinada classe social

domine e subordine significados, valores e crenças a outras classes.

Nesse sentido, a linguagem tem relevância na produção e reprodução da

hegemonia na sociedade: “a sociedade não é apenas a casca morta que limita a

realização social e individual. É sempre também um processo constitutivo com

pressões muito poderosas, que são internalizadas e se tornam vontades

individuais.” (Williams,1979:91).

Nesse campo considera-se o desenvolvimento de uma nova hegemonia,

desenvolvem-se as bases orgânicas nas classes subalternas. Uma hegemonia viva

é sempre um processo. É um complexo vivido de experiências, relações e

atividades com pressões e limites específicos e mutáveis. Ela não existe de maneira

estática na forma de dominação; exige continuadamente ser renovada, recriada,

defendida e alterada.

A proeminência de alternativas políticas e culturais, e de inúmeras formas de oposição e de luta, é importante não apenas em si mesma, mas como traço indicativo do que um processo hegemônico deve operar e controlar na prática. Uma hegemonia estática, do tipo indicado pelas totalizações abstratas da “ideologia dominante” ou da „visão de mundo‟, pode isolar e ignorar essas alternativas e oposições, mas apenas na medida em que haja funções hegemônicas capazes de controlá-las, transformá-las ou até incorporá-las. Pelo contrário, no processo ativo, a hegemonia deve ser vista como mais do que simples transmissão de uma dominação imutável. Todo processo hegemônico precisa ser especialmente atento e capaz de responder às alternativas e oposições que questionam e desafiam sua dominação. A realidade do processo cultural deve ser sempre capaz de incluir esforços e as contribuições daqueles que, de um modo ou de outro, estão fora ou na margem dos termos da hegemonia específica. (Williams, 1979:112-3).

Em cada época, os grupos e classes sociais têm seu repertório e formas de

discurso que retratam/refratam as relações sociais de produção e a estrutura sócio-

política.

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Por isso, “a palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais

contraditórios”, “a palavra é o modo mais puro e sensível de relação social”

(Bakhtin, 1979:14). Os conflitos entre interesses de classes sociais expressam-se

na língua e refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema. A

comunicação verbal, nesse sentido, implica conflitos, relações de dominação e de

resistência, adaptação ou resistência à hierarquia e, por outro lado, a utilização da

língua pela classe dominante para reforçar seu poder. A palavra é o lugar

privilegiado para a manifestação da ideologia. Como signo ideológico por

excelência, a palavra retrata as diferentes formas sociais de significar a realidade,

de acordo com as vozes e pontos de vista daqueles que a empregam. O caráter

histórico e social da palavra, como um campo de expressão das relações e das

lutas sociais, ao mesmo tempo sofre os efeitos da luta e serve de instrumento e de

material para a sua comunicação. A palavra, ainda enquanto suas propriedades,

encontra-se presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de

interpretação. Portanto, incide diretamente no processo de consciência: “torna-se

parte da unidade da consciência, verbalmente constituída”.

Por sua vez, nas relações sociais apresenta-se a questão da hegemonia de

uma classe social sobre outras. A hegemonia refere-se a uma complexa relação de

experiências e atividades que estão interiorizadas nos indivíduos. Ela se constitui

como conjunto de práticas e expectativas sobre a totalidade da vida: nossos

sentidos e distribuição de energia, a percepção de nós mesmos e nosso mundo. É

um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor – que, ao

serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente.

(Williams, 1979:113). Dentro dessa perspectiva, a cultura do vivido configura-se

como relação social de dominação classista assentada, mais além do poder e da

propriedade capitalista, os quais mantêm insubstituíveis na perpetuação da

hegemonia burguesa – sobre práticas, significados e valores interiorizados e

difundidos pelas classes subalternizadas29.

29

“aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, sendo continuadamente renovada em todas as

etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos, de tal forma que

o que as pessoas vem a pensar e a sentir é, em larga medida, uma reprodução de uma ordem social

profundamente arraigada a que as pessoas podem até pensar que de algum modo se opõem, e que, muitas vezes

se opõem de fato” (Williams, 1989a).

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As frentes populares como elemento central da nova configuração política

Nas condições atuais, o novo emergente na política latino-americana se refere

à eleição de governantes que em seus aspectos mais imediatos podemos assim

caracterizá-los: a) com respaldo orgânico de movimentos sociais e/ou advindos dos

próprios movimentos sociais, b) que se associam a anseios pulverizados dessas

classes e setores sociais, c) que se apresentam como críticos às perspectivas e

diretrizes neoliberais de governos anteriores; d) governos que se elegeram após

períodos de situação revolucionária aberta, ou então antes de quaisquer

desdobramentos políticos de massas populares. O que se evidencia na atualidade

pouco pode se demarcar nas limitadas caracterizações que distintos autores

conferem ao atual período, que definem exclusivamente como populistas ou

neopopulistas, porque a ênfase analítica concentra-se (a) na relação dos líderes

carismáticos e, nessas condições, sua relação com as massas como expressão

política exclusiva de uma indefinida relação sem mediação ideológica e política,

com essas massas, (b) nas chamadas políticas sociais distributivas incentivadas por

esses novos governos, e (c) nas políticas de estatização de empresas que foram

estatizadas na década de 1990, efetuadas por Evo Morales (Bolívia), Hugo Chávez

(Venezuela) e mesmo Kirchner (Argentina). Essas dimensões constituiriam os

aspectos determinantes que os definiriam.

Para distintos autores esse cenário político e governos marcariam um caráter

progressivo sul-americano que seria acompanhado de iniciativas para constituição

da integração latino-americana que passaria por iniciativas comerciais, financeira e

inclusive militares.

Mas a caracterização da nova configuração a partir dessas características nos

parece que não apreende as principais determinações sociais, históricas e políticas

condicionadoras desses governos. Por outro lado ocorre um velamento da natureza

própria que se mantém e que determina o Estado, como instrumento de coerção e

organização do consenso e da reprodução da Ordem Social capitalista, em um

período histórico no qual esse Estado não se apresenta em seu bloco de poder em

uma crise de hegemonia, como desenvolvida nas experiências caracterizadas como

populistas, entre a década de 1930 e 1970, com o varguismo, peronismo,

cardenismo. Uma visão de caráter politicista, que se manifesta como uma espécie

de visão hegemonizante em muitos círculos acadêmicos e políticos. Nesse sentido,

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não nos parece indicador de uma análise mais adequada do fenômeno

compreender esse cenário como caracterizado como de governos bonapartistas sui

generis, como o caso de Hugo Cháves. Esse conceito, conformado por Trotsky,

remetia às experiências políticas no México, no período de Cárdenas. Basicamente,

Vejamos algumas de suas considerações para a América Latina:

Estamos em um período em que a burguesia nacional busca obter um pouco más de independência frente aos imperialismos estrangeiros. A burguesia nacional está obrigada a coquetear com os trabalhadores, com os campesinos e, por isso, temos o homem forte do país orientado à esquerda como agora no México. Se a burguesia nacional está obrigada a abandonar a luta contra os capitalistas estrangeiros e trabalhar sobre sua tutela direta, teremos um regime fascista, como no Brasil, por exemplo. Mas ali a burguesia é absolutamente incapaz de constituir sua dominação democrática porque, por um lado, tem o capital imperialista e, por outro, tem medo do proletariado porque a história, ali, saltou uma etapa e porque o proletariado se tornou um fator importante antes que haja sido realizada a organização democrática do conjunto da sociedade.

A debilidade das burguesias nacionais latino-americanas, que é seu traço

central em razão da articulação de nossas formações sociais ao modo de produção

capitalista, produziu nessa classe social uma constante postura pendular entre as

negociações políticas e econômicas com o imperialismo inglês e norte-americano e

alguns graus de resistência antimperialistas por meio do apoio no proletariado

através de seus sindicatos e partidos. Nesse cenário se configurou um fenômeno

político que Trotsky chamou de populistas ou bonapartismo sui generis, que

constituiria em que na América Latina a Frente Popular não teria um caráter tão

reacionário como na França ou na Espanha. “Tem duas facetas. Pode ter um

conteúdo reacionário na medida em que esteja dirigido contra os trabalhadores,

pode ter um caráter progressivo na medida em que esteja dirigido contra o

imperialismo. Mas, apreciando a frente popular na América Latina sobre a forma de

um partido político nacional, fazemos uma distinção entre França e Espanha”.

(p.136-137). Se constituiu em países como México, um regime semibonapartista

entre o capital estrangeiro e a burguesia nacional, o capital estrangeiro e os

trabalhadores. Essas formas de governo oscilariam algumas vezes para a

burguesia nacional e os trabalhadores e outras vezes para o capital estrangeiro.

Isso ocorreria porque os interesses do capital estrangeiro e o do capital nacional

nem sempre são os mesmos e entram por vezes em agudos conflitos. Em algumas

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condições favoráveis, seria possível que o capital nacional se pusesse contrário às

exigências do capital estrangeiro. Isso porque a burguesia nacional tinha

necessidade de um mercado interno que seria baseado em um campesinato.

Por essa razão necessitariam sujeitar os trabalhadores através da integração

de seus sindicatos ao Estado.

(...) Estamos em perpétua competição com a burguesia nacional, como única direção capaz de assegurar a vitória das massas no combate contra os imperialistas estrangeiros. Na questão agrária apoiamos as expropriações. Isto não significa, entendido corretamente, que apoiamos à burguesia nacional. Em todos os casos em que ela enfrenta diretamente aos imperialistas estrangeiros ou a seus agentes reacionários fascistas, lhe damos nosso pleno apoio revolucionário, conservando a independência íntegra de nossa organização, de nosso programa, de nosso partido, e nossa plena liberdade de crítica. El Kuomitang em China, o PRM no México, o PARA no Peru são organizações totalmente análogas. É a frente popular sobre a forma de partido.

A constituição de tais governos, por sua vez, evidenciam o debilitamento da

institucionalidade liberal (e dos governos neoliberais) como alternativas políticas

para manutenção e reprodução da Ordem Social, em países do continente.

Portanto, é a perda de legitimidade das instituições liberais (Estado, partidos,

sindicatos), de maneira acelerada em alguns casos, e crescente descontentamento

social canalizados e orientados politicamente contra a Ordem, que configura um

cenário propício à cristalização dessas novas forças políticas. No período em que o

consenso social e político se corrosiona, é o momento em que as concessões

sociais são necessárias, quando se reorganizam e se redefinem os mecanismos

consensuais, sobre forma estatal de novos sujeitos políticos sintonizados e

referenciada por forças sociais em cena. Por sua vez, nesse intrínseco campo

político a perspectiva das frentes populares se faz a alternativa política

consensuada pelas classes dominantes, ou seja, as distintas frações burguesas, os

partidos da ordem e os aparatos militares do Estado. Apresenta-se para os distintos

movimentos sociais (populares e sindicais) e para as massas populares a chegada

ao governo de seus representantes. Refazem-se as esperanças, mantêm-se as

relações sociais de produção, tal como existiam, e possibilita a reorganização dos

partidos da ordem enquanto oposição política.

Esta nova configuração caracteriza-se pela eleição de governos apoiados

por setores de movimentos sociais e partidos de esquerda, que se constituíram

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como alternativa para as classes subalternas, classes médias e inclusive para

frações da burguesia aos governos anteriores que se orientaram por políticas de

ajustes estruturais que, durante a década de 1990, levaram a mudanças

econômicas profundas (privatizações, desnacionalização, aberturas comerciais,

flexibilização e precarização dos direitos sociais e trabalhistas, além de crescente

endividamento público (interno e externo) junto ao capital financeiro internacional.

Como delimitação do universo da pesquisa, no período em questão, verificamos o

caso argentino, em uma investigação de caráter qualitativo, com o objetivo de

analisar (a) a base social e política constituída no Governo Néstor Kirchner e da

presidenta Cristina Fernández Kirchner, (b) as relações políticas e econômicas com

as instituições financeiras internacionais, (c) as definições de política econômica e

sociais. Para desenvolver esta investigação foram utilizadas informações coletadas

(a) por meio de entrevistas com dirigentes políticos, comunitários e sindicais da

cidade de Buenos Aires (Argentina), (b) por meio de revisão bibliográfica,

especialmente observando como nas Ciências Sociais tem sido reintroduzidos

conceitos de nacionalismo, populismo e desenvolvimentismo, para a compreensão

desse novo fenômeno, (c) por meio de fontes documentais primárias e secundárias,

e (d) observação de campo (sistemática e direta) através de acompanhamento de

comícios, atos públicos, marchas e debates públicos promovidos por os diversos

espectros desse movimento.

A crise capitalista internacional e os governos latino-americanos: a prova de fogo

Com a recente crise econômica internacional, que teve como epicentro os

Estados Unidos pela primeira vez desde a crise de 1929, as debilidades estruturais

no plano social e econômico têm se evidenciado novamente, uma vez que

demonstram que esses países latino-americanos mantiveram-se organicamente

ligados à dinâmica financeira e comercial internacional, de maneira dependente.

Longe da ilusão neodesenvolvimentista que seus governantes mantiveram nesses

anos, inclusive por sucessivas vezes reiterando que suas econômicas estavam

imunes ao que se sucedia nos países centrais, o que foi pouco a pouco sendo

aceito por seus próprios governos é que esses países sofrerão a crise e que estão

já na crise. Sobra aos seus discursos a idéia de que o impacto da situação

econômica internacional será passageira. Esse quadro traz á luz da evidência

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histórica uma questão que era pouco assinalada por economistas e analistas

políticos oficiais: os fundamentos econômicos do crescimento dos países latino-

americanos nortearam-se pelas diretrizes neoliberais que se cristalizaram ao menos

durante a década de 1990. As evidencias mais destacadas referem-se aos aportes

de capitais especulativos internacionais, que se constituiu nesses governos como a

base principal de crescimento sustentável. Bresser Pereira (2007) criticava essa

postura econômica no caso brasileiro, por exemplo, justamente porque verificava a

debilidade de tal crescimento sustentado em “poupança externa” ao invés de

“poupança interna”. Como afirmou em seus estudos, esse condicionamento aos

capitais especulativos internacionais manteriam a econômica brasileira suceptível

aos contágios internacionais.

Nessas novas condições internacionais – novas talvez não seja de fato o

termo, uma vez que mais do que exceção, essa é uma condição intrínseca das

economias latino-americanas, isto é, sua posição integrada de maneira subordinada

à divisão internacional do trabalho -, a resposta que se desenvolve nos atuais

governos de frente popular na região seguem o ditame programática orientado por

as instituições financeiras internacionais: apoio econômico aos grupos empresariais

(bancos, indústrias e setores agro-exportadores) que mais se beneficiaram com o

período de crescimento econômico dos últimos cinco anos. No caso brasileiro isso

está evidenciado nos sucessivos planos de diversos tipos de empréstimos aos

banqueiros. Na Argentina, o mesmo ocorre.

Os desdobramentos do quadro econômico internacional estão impactando

com muita violência um dos pontos mais fortes (e também que se tornam os mais

frágeis) que foram a criação e a estabilidade de emprego e as políticas

compensatórias que permitiram uma recomposição mínima (e não suficiente) das

condições de vida de um amplo espectro de suas populações.

VII. Considerações finais

Nesse relatório logramos apresentar e detalhar as nossas atividades

realizadas no período de estágio pós-doutoral na Argentina; em especial,

procuramos apresentar os resultados de nossa investigação nesse país sobre a

constituição e desenvolvimento político do governo de Néstor Kirchner e de Cristina

Kirchner, e sua relação com os movimentos sociais daquele país. Analisar essa

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experiência argentina permitiu-nos condensar informações que são

importantíssimas em nosso projeto global sobre a nova configuração política sul-

americana. Especialmente porque nos possibilitou desenvolver algumas chaves

teórico-metodológicas que implicaram em apurar alguns eixos explicativos: crise de

regime político; movimentos sociais e projetos contra-hegemônicos; reconstituição

da hegemonia política, no bloco no poder; e frentes populares e governos de

centro-esquerda.

A continuação de nossa investigação segue. Agora nos cabe verificar o caso

da Venezuela, realizando o mesmo procedimento metodológico que desenvolvemos

na Argentina, ou seja, através de entrevistas, acompanhamento de movimentação

política e social, coletando informações de periódicos e realizando levantamento

bibliográfico. Inclusive, e o mais importante, retendo o apuramento conceitual que

nos possibilitou a experiência argentina. Certamente que o prazo que terei para a

realização dessa etapa na Venezuela será muitíssimo curto, cerca de dois ou três

meses, o que reduzirá muito a densidade de informações e conversas (formais e

informais) que logrei conseguir em Buenos Aires. De qualquer modo, as

ferramentas metodológicas e conceituais encontram-se agora muito mais afiadas, o

que minimizará a curta estadia naquele país.

Aspecto a considerar importante foi o estabelecimento de relações

acadêmicas internacionais que, no meu caso específico, poderá se intensificar à

medida em que aqui no Brasil ocorra alguma contrapartida, ao exemplo de

intercâmbio acadêmico, realização de eventos latino-americanos, iniciativas de

investigação com os pesquisadores argentinos, e propostas editoriais conjuntas.

Essas são as condições de contrapartida que se apresentam, como foi me deixado

claro com a professora que me recebeu na UBA.

Sobre o impacto no meio acadêmico, penso que duas iniciativas fundamentais

potencializam as experiências realizadas. A constituição do sítio sobre América

Latina, que estará em pleno funcionamento entre abril e maio. O sítio estará

diretamente ligado ao grupo de pesquisa, atualmente em fase de cadastramento

junto ao CNPq, envolverá alunos de Graduação da UNESP e pesquisadores-

docentes de outras universidades. Essa iniciativa sem dúvida demonstra um retorno

dessas atividades de Pós-Doutoral no estrangeiro. Como objetivo desse grupo, será

o de realizar e participar de eventos acadêmicos internacionais latino-americanos.

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Por último, devo considerar como uma experiência acadêmica fundamental a

possibilidade de estabelecer uma relação de média duração em um país

estrangeiro.

IX. Bibliografia

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