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RELAÇÕES ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL: LIMITES E
POSSIBILIDADES PARA O AVANÇO DEMOCRÁTICO
Rany Matos1
O objetivo do presente artigo é analisar, através de uma revisão bibliográfica, como
o caráter das relações entre Estado e Sociedade civil passou por transformações –
substituindo-se uma lógica oposicionista por uma colaborativa – a partir do surgimento de
espaços públicos de co-gestão entre essas duas esferas. Avaliando ainda como esses
espaços públicos, onde Estado e Sociedade civil atuam de forma conjunta na gestão de
políticas públicas, se constituem como limites e/ ou possibilidades para o aprofundamento
da democracia brasileira.
Palavras-chave: Sociedade civil, Estado, Democracia.
Os conceitos de Estado e Sociedade Civil e suas inter-relações
Ao longo da história do pensamento político o conceito de sociedade civil foi
usualmente utilizado como uma das esferas da relação dicotômica entre Estado e sociedade
civil. Dessa forma, a discussão teórica de uma das esferas está intimamente relacionada à
outra, pois a determinação do significado de sociedade civil redefine a concepção de
Estado, sendo o inverso também verdadeiro. Vários são os autores que trataram do conceito
de sociedade civil e Estado, entretanto, Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques 1 Graduanda do sétimo período do curso de Bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas de
Segurança Pública (NEPS), da mesma universidade.
Rousseau, Friedrich Hegel, Karl Marx e Antonio Gramsci são alguns do que mais se
dedicaram ao tema, resultando em teorias que são até hoje utilizadas como referências para
os interessados na área.
Hobbes, Locke e Rousseau são reunidos neste trabalho por suas semelhanças ao
constituírem uma tríade de autores que teorizam sobre a transição de um Estado de
Natureza para um Estado de Sociedade. Na teoria hobbesiana o conceito de sociedade civil
se opõe à idéia de uma sociedade natural e se constitui como sinônimo de Estado. Segundo
Hobbes (1979), os indivíduos viviam num “estado de natureza”, onde os homens eram
apenas regulados por leis naturais, havendo, portanto, uma total situação de insegurança,
onde predominava uma guerra de todos contra todos. Para que os indivíduos saíssem desse
“estado de natureza” era necessário que eles firmassem um contrato social, onde ao
delegarem seus destinos a uma instituição comum, o Estado, abdicariam de sua liberdade
em prol da segurança e da paz social. Dessa forma, a sociedade civil ou o Estado nascem
em contraposição à um estado primitivo da humanidade.
Possuindo semelhante idéia do estado natural da civilização humana de Hobbes,
onde a propriedade e a liberdades dos indivíduos eram constantemente ameaçadas John
Locke (2002) argumenta que os indivíduos objetivando a preservação da vida, da
propriedade e da liberdade criam a sociedade política através de um acordo entre homens
igualmente livres. Sendo caracterizado como teórico do Estado Liberal, diferentemente de
Hobbes que defende o totalitarismo, Locke argumenta que ao firmarem o pacto social os
indivíduos não abdicam de seus direitos em prol dos governantes, pois o poder destes é
fundamentado nos direitos individuais e no respeito às leis. Os indivíduos podem, através
do consentimento, instaurar a forma de governo que lhes parecer mais adequada, sendo,
portanto o poder dos governantes revogável. Para Hobbes e Locke o conceito de sociedade
civil corresponde simultaneamente aos de sociedade política e sociedade civilizada, ou seja,
como enfatiza Noberto Bobbio:
“[..] os dois significados se sobrepõem, no sentido de que o Estado se contrapõe
conjuntamente ao Estado de natureza e ao Estado selvagem, passando”civil” a
significar, ao mesmo tempo, “político” e “civilizado” (BOBBIO, 2002, p. 1207)
Já em Rousseau (1991) essas noções não se sobrepõem, pois na sua teoria sobre a
transição do Estado de natureza para a sociedade civil, esta significa não uma sociedade
política, mas uma sociedade civilizada que pode vir a se tornar, através do contrato social,
uma sociedade política. Diferente de Hobbes e Locke, o Estado de Natureza desenvolvido
por Rousseau se caracteriza pelo predomínio da liberdade e igualdade e a sociedade civil
roussoniana é caracterizada como um estado de “guerra permanente”. Dessa forma, a sua
noção de sociedade civil é muitas vezes aproximada ao estado de guerra hobbesiano, sendo,
portanto, o estabelecimento do contrato social um retorno às condições do estado de
natureza e uma superação da sociedade civil.
O conceito de sociedade civil hegeliano elaborado na última fase do pensamento de
Hegel - representado pela obra “Princípios da Filosofia do Direito”, publicada em 1821 - se
diferencia da acepção desenvolvida pelos autores acima citados, pois a sociedade civil se
distingue do Estado, sendo uma etapa anterior a este ao se colocar entre a forma primitiva
do espírito objetivo - a família - e sua forma desenvolvida - o Estado. Através da satisfação
de suas necessidades os indivíduos constituem relações econômicas antagônicas que fazem
configurar as classes sociais, gerando assim a dissolução da unidade familiar. No momento
em que os indivíduos se unificam novamente em uma unidade orgânica – onde os conflitos
passam a ser regulados por leis – há a transformação da sociedade civil em Estado.
Sendo assim, Hegel (1990) elabora um modelo analítico triasico, onde sociedade
civil se encontra num momento intermediário, entre a família e o Estado, se diferenciado
dos modelos dicotômicos que contrapunham família x Estado e natureza x sociedade civil.
Discorrendo sobre a sociedade civil hegeliana, Bobbio (2002) afirma que a sociedade civil
em relação:
“[...] a família ela já é uma forma incompleta de Estado, o ‘Estado do intelecto’,
com respeito ao Estado, não é ainda o Estado em seu conceito e em sua plena
realização histórica” (BOBBIO, 1992, p. 41).
Na teoria desenvolvida por Marx o conceito de sociedade civil passa a significar
“sociedade burguesa” (BOBBIO, 2002), sendo esta um espaço onde as relações econômicas
caracterizadoras da estrutura de cada sociedade se realizam. Dessa forma, a sociedade civil
marxiana constitui a base sobre a qual se forma a superestrutura jurídica e política.
Diferentemente de Hobbes, Locke seu conceito de sociedade civil significa uma sociedade
pré-Estado, ou seja, o conjunto das relações individuais que estão fora ou são anteriores ao
Estado, possuindo o mesmo significado do conceito de estado da natureza elaborado por
esses autores, como pode ser ilustrado em sua seguinte frase:
“O Estado moderno tem como sua base natural a Sociedade civil, ou seja, o
homem independente, unido a outro homem somente pelo vinculo do
interesse privado e pela inconsciente necessidade natural”. (MARX apud
BOBBIO, 2002, p. 1209).
Analisando a sociedade burguesa e a transição desta para uma sociedade capitalista,
Gramsci realiza uma diferenciação entre Sociedade civil e Estado, elaborando uma nova
acepção deste que se difere da desenvolvida por Marx. Segundo o autor:
“Podem-se por enquanto fixar dois grandes planos superestruturais, o que se
pode chamar da Sociedade civil, ou seja, do conjunto de organismos
vulgarmente denominados privados, e o da sociedade política ou Estado, que
correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda
a sociedade, e ao domínio direto ou de comando que se expressa no Estado
ou no Governo Jurídico”. (GRAMSCI apud BOBBIO, 2002, p. 1209)
Dessa forma, diferentemente de Marx – que possui uma concepção de sociedade
civil ligada ao mundo das relações econômicas e materiais, ou seja, pertencente a estrutura
– a concepção gramsciana de sociedade civil envolve não somente essas relações, mas as
relações ideológicas e culturais, sendo um momento da superestrutura, momento este que
se denomina de hegemonia. Gramsci argumenta que toda forma de domínio não se
sustenta apenas com um aparato coercitivo, sendo necessário a transmissões de valores
através da qual a classe dominante desempenha sua hegemonia. Assim, um sistema
político para sustentar sua autoridade além de um aparato coercitivo – o Estado – necessita
também de um variado número de instituições, como a escola e a mídia, que pratiquem a
socialização de seus valores, construindo com isso o consenso ideológico – a Sociedade
civil.
Diferentemente de Rousseau, Locke, Hobbes, Hegel e Marx, onde o Estado possui o
monopólio da função gestora, ou seja, a administração dos diferentes interesses e direitos
dos grupos sociais, Gramsci realiza uma distinção entre dois tipos de Estado: o Restrito e o
Ampliado. Segundo o autor, o primeiro se constitui quando somente funcionários e líderes
da máquina governamental exercem a gestão da sociedade e o segundo é caracterizado
pela gestão compartilhada da sociedade entre representantes governamentais, mas também
entre representantes civis, ou seja, indivíduos de grupos e classes sociais, sendo neste caso,
a divisão estabelecida entre Estado e Sociedade civil apenas analítica. Somente neste
segundo tipo de Estado, quando os grupos subordinados saem da condição de dirigidos e
assume a função de dirigente, sendo o poder compartilhado entre os diferentes grupos, é
que se institui a Democracia para Gramsci.
A primeira tríade de autores abordados neste trabalho, formada por Hobbes, Locke e
Rousseau, apesar de muito terem contribuído para o desenvolvimento da teoria sobre
sociedade civil e Estado não chegaram a estabelecer uma reflexão sistematizada sobre suas
relações e sobre a função gestora da sociedade civil, reflexão esta de extrema importância
para os objetivos deste trabalho. Nesses teóricos não há espaço para uma sociedade civil
caracterizada por atuar conjuntamente com o governo na gestão dos diversos interesses da
sociedade.
Tal fato é explicado pelo contexto social no qual tais autores estavam inseridos, pois
até meados do século XIX a relação entre estado e sociedade civil referente à gestão era
simples, cabendo apenas ao Estado a função de governar. (SALES, 2006). Somente as
corporações feudais começaram a ter interesse na gestão da sociedade, surgindo depois, ao
longo do capitalismo, as classes, as organizações profissionais, religiosas e políticas e
outros grupos. Vivenciando esse novo contexto Hegel, Marx e Gramsci, atentam para as
relações entre Estado e sociedade civil no que se refere à gestão da sociedade,
desenvolvendo assim uma reflexão mais sistematizada sobre o tema.
Apesar de possuírem uma teoria mais desenvolvida sobre Sociedade civil e Estado,
Hegel e Marx possuem uma concepção de Estado monopolizador da função gestora dos
interesses dos grupos sociais, concepção esta que não se coloca como adequada para a
análise da política contemporânea. Tendo em vista que atualmente os grupos, partidos e
associações - advindos das diferentes classes e grupos sociais - que lutam por seus
interesses e direitos de caráter econômico, político e social se tornam cada vez mais
freqüentes e importantes do cenário político mundial, não é muito adequado pensar em um
modelo de Estado monopolizador da gestão da sociedade. Sendo mais apropriado pensar
em diferentes configurações do Estado e da Sociedade civil. Gramsci, dentre os autores
citados é o mais se aproxima dessa tendência ao realizar a diferenciação entre Estado
Restrito e Estado Ampliado, pensando dessa forma a possibilidade de uma Sociedade civil
que exerce sua função gestora.
Diante disso, em comparação com os autores citados, creio que Gramsci, retomando e
aprofundando as teorias de Hegel e Marx, é o autor que se refere à relação entre Estado e
Sociedade civil de forma mais adequada ao não considerá-los como esferas separadas e
com funções distintas. Outra vantagem ao se adotar a perspectiva gramsciana é que esta não
considera a sociedade civil, como o Marx o faz, apenas em seu âmbito de relações
econômicas e materiais, indo além, ao concebê-la dentro de uma esfera de relações
culturais e ideológicas.
O contexto brasileiro
A partir da década de 1970 houve no Brasil um processo de ressurgimento da
sociedade civil, que é visto por muitos estudiosos como a sua verdadeira consolidação, pois
é nesse ressurgimento que ela estabelece uma maior independência em sua relação com o
Estado. A sociedade civil ressurgiu neste momento se opondo ao Estado Militar autoritário
e ao combatê-lo ela teve um importante papel junto ao processo de transição para o regime
democrático.
No entanto, a volta das instituições formais e básicas da democracia não fez com
que o Estado eliminasse os problemas referentes às exclusões e desigualdades sociais, pois
uma democracia institucional-formal não significa necessariamente sua implementação.
Pela persistência de tais problemas, mesmo num regime democrático, surgiram
preocupações e reflexões sobre a insuficiência de uma democracia eleitoral e conseqüentes
questionamentos sobre o aprofundamento da noção de democracia e a ampliação do
controle civil sobre o Estado.
Refletindo essas percepções surge na sociedade brasileira contemporânea uma
ênfase na redefinição da concepção e exercício da cidadania, onde os sujeitos são
enfatizados como portadores, definidores e reinvidicadores de direitos. A partir dessas
novas percepções os atores sociais passam a reivindicar a criação de instituições
democráticas que possibilitariam o exercício de uma nova cidadania, exercício este que não
mais se limitaria ao ato do voto, mas seria garantido pela participação dos cidadãos em
espaços decisórios. A redefinição da concepção de cidadania ampliaria o número e a
diversidade de grupos sociais dentro do ambiente político, ampliando a agenda deste.
Atendendo a essas expectativas a Constituição de 1988, denominada de
Constituição Cidadã, estimulou a criação de espaços institucionalizados de participação,
nestes espaços sociedade civil e Estado se propõem a estabelecer uma relação colaborativa,
onde o rumo de diversas políticas públicas deve ser decidido conjuntamente. Baseados na
Constituição, vários grupos sociais se engajaram na luta pela criação e consolidação de
espaços públicos de definição e controle de políticas públicas, como os são os conselhos e
as conferências. Tais espaços públicos se caracterizam tanto como um local de debates
sobre temas ignorados pelo Estado quanto de democratização da gestão estatal, onde a
sociedade civil participa de processos de gestão de políticas e programas governamentais.
Esses espaços simbolizavam a esperança de que a união entre Estado e sociedade civil na
definição de políticas públicas levaria a uma maior universalização destas e a conseqüente
diminuição das desigualdades sociais.
O marco brasileiro da participação institucionalizada foi a criação, em 1990, da Lei
Orgânica de Saúde. Esta estabelecia a participação da sociedade na definição das políticas
públicas de saúde através dos conselhos e conferências em níveis federais, estaduais e
municipais. Este modelo de participação servindo de exemplo foi seguido por diversas
áreas como cidades, assistência social e criança e adolescente, resultando numa
multiplicidade de espaços participativos na atual sociedade brasileira. De acordo com dados
do IBGE2 em 1999 foi contabilizada a existência de 23.987 conselhos municipais de
políticas e segundo o Governo Federal, entre 2003 e 2006, realizaram-se 38 conferências
nacionais, que muitas vezes eram antecedidas por etapas municipais, regionais e estaduais.
Há uma estimativa que dois milhões de indivíduos tenham participado ao longo desse
período de conferências em níveis municipais, regionais e nacionais.
Esses novos espaços fazem surgir entre o Estado e a sociedade civil um novo tipo de
relação, que não mais se caracteriza apenas pela oposição, mas pela colaboração e atuação
2 Ver Plataforma da reforma do sistema político brasileiro – versão para debate, em
www.participaçaopopular.org.br.
conjunta, gerando profundas mudanças em ambas esferas. O Estado tem agora a
necessidade de estabelecer diálogo com a sociedade civil nas decisões estatais, e esta deixa
de ter o protesto como sua principal forma de ação. No entanto, mesmo nesse novo
processo - onde a lógica colaborativa é mais evidente - as relações entre Estado e sociedade
não deixam de ser permeada por conflitos. Esses espaços de co-gestão participativa, onde o
Estado e a sociedade civil discutem e deliberam conjuntamente sobre políticas públicas e
questões relativas ao interesse coletivo, constituem-se como uma “inovação institucional
em direção à democratização” (LÜCHMANN apud VASCONCELOS 2006: 62), pois
segundo Lüchmann eles possibilitam o controle social sobre a criação e execução de
políticas públicas.
Existe atualmente no campo da Sociologia e da Ciência Política brasileira um debate
sobre os limites e as possibilidades da constituição e funcionamento de espaços públicos
que se configuram em diferentes formas, como os conselhos, os fóruns, as conferências e os
orçamentos participativos. Na medida em que tais espaços se constituem como uma grande
novidade no processo de consolidação da democracia brasileira há um interesse acadêmico
em analisar suas formas, seus variados graus de sucesso e aplicabilidade para outros
contextos.
Vários são os autores que analisam o surgimento e estabelecimento desses espaços
públicos no cenário sócio-político brasileiro. Entretanto, Ruth Cardoso e Evelina Dagnino
são autoras que, ao destacar especificidades regionais desses espaços e elaborar
comparações entre eles, possibilitam para aqueles que adentram nesse universo de pesquisa
um panorama sobre as relações entre Estado e sociedade civil estabelecidas no Brasil ao
longo do período de redemocratização.
Para analisar o fenômeno contemporâneo dos espaços públicos é necessário
entender o contexto anterior a sua existência, ou seja, analisar quais foram as condições que
possibilitaram o seu surgimento. As reivindicações dos movimentos sociais se colocaram
como uma condição fundamental no processo de criação dos espaços públicos, sendo
essencial, portanto, uma investigação sobre eles. Nesse sentido, Ruth Cardoso (1994)
realiza um importante exame da trajetória dos movimentos sociais e do seu
desenvolvimento como objeto de estudo dentro das ciências sociais.
Em sua análise Ruth Cardoso (1994) argumenta sobre a diferenciação de duas fases
na trajetória dos movimentos sociais A primeira que abrange a década de 1970 e o início da
de 1980 é denominada pela autora como “a emergência heróica dos movimentos”, onde
estes eram concebidos como novos instrumentos políticos de participação. A segunda fase,
a da “institucionalização”, que se inicia a partir de 1982 com o processo de
redemocratização. Essa denominação de refere ao inicio da institucionalização da atuação
dos movimentos e de suas relações com o Estado.
Ao realizar essa diferenciação Cardoso também enfatiza os “esquemas
interpretativos” - e sua diferenciação nas duas fases - utilizados pelos sociólogos para
interpretar os movimentos sociais. A autora chama atenção para o fato de que as
interpretações sobre os movimentos sociais foram realizadas em diferentes contextos
ideológicos e políticos. Segundo a autora na primeira fase, as pesquisas destacavam o
caráter espontâneo e autônomo dos movimentos, argumentando-se que tais movimentos se
colocavam como algo novo, que preencheria os espaços de participação esvaziados pela
ditadura. As interpretações dessa época defendiam a idéia de que os movimentos sociais se
colocariam como importantes atores na mudança da cultura política dominante. A
participação defendida por esses movimentos ia de encontro às formas de participação
tradicionais, como o partido, por exemplo, o Estado, portanto era concebido como um
inimigo. Essas idéias ajudaram na constituição do conceito de movimentos sociais na
literatura das ciências sociais brasileira.
Na segunda fase os movimentos sociais atuam dentro de um contexto político
diferenciado, onde o processo de redemocratização é iniciado, inaugurando e reabrindo
mecanismos de participação e comunicação. Ruth Cardoso (1994) afirma que a existência
desses novos mecanismos faz surgir entre os movimentos e as agências públicas uma nova
relação que se caracteriza por ser mais direta. No entanto Ruth Cardoso argumenta que
esse processo se deu de maneira fragmentada e parcial, pois se dava em uma área, mas não
em outra, por isso não se pode dizer, segundo a autora, que houve o estabelecimento de
uma nova relação com o Estado, tendo essa nova relação se iniciado. Ainda que de modo
parcial houve a criação de vários espaços de atuação conjunta entre movimentos sociais e
Estado – como os conselhos, instaurando assim um novo modo de se fazer políticas
públicas.
Tal fenômeno é denominado por muitos autores como um momento de cooptação
ou refluxo dos movimentos, no entanto Cardoso (1994) argumenta que essas denominações
eram decorrentes da influência do contexto ideológico e político – onde os métodos
qualitativos e a negação da neutralidade cientifica eram valorizados – sobre a maneira
como os pesquisadores recortam e analisam seu objeto. Os pesquisadores enfatizaram tanto
o espontaneísmo e o caráter anti-Estado dos movimentos na primeira fase que ignoraram
indícios que já apontavam para uma nova forma de relação com o Estado, prejudicando
dessa forma o entendimento da nova dinâmica estabelecida na segunda fase.
As novas formas de participação institucional, segundo Cardoso, colocavam em
cheque o discurso e a identidade dos movimentos sociais, pois estes se baseavam na idéia
de espontaneidade e de luta contra o Estado. Isto criou dificuldade na criação de
mecanismos para a participação conjunta com o Estado na administração pública, surgindo
o dilema de como os movimentos sociais seriam representados dentro de um órgão público.
A perspectiva trazida por Ruth Cardoso possibilita o entendimento do contexto
anterior ao estabelecimento desses novos espaços, ajudando-nos a entender os atores e as
variáveis que permitiram a sua criação e a sua constituição em diferentes formas. Ao
enfatizar o papel dos movimentos sociais na criação e desenvolvimento dos espaços
públicos a autora privilegia uma analise através da perspectiva da sociedade civil – já que
os movimentos sociais se propõem a serem representantes desta –, analisando de que forma
ela contribuiu para a instituição desses espaços e como ela se relaciona com o Estado
dentro deles.
A divisão analítica estabelecida pela autora - as duas fases dos movimentos sociais -
auxilia o entendimento da atuação da sociedade civil nos diferentes contextos ideológicos e
políticos de cada época. Além disso, a autora chama atenção para a possibilidade de tais
contextos enviesarem a análise dos pesquisadores dos pesquisadores, onde em detrimento
da ênfase em alguns aspectos ignore-se outros, fazendo com que os pesquisadores que
adentrem nesse campo de pesquisa seja cauteloso em não realizar em prol de uma ciência
social engajada uma ciência pouco critica.
Evelina Dagnino é uma importante autora dentro da literatura brasileira sobre as
relações entre Estado e Sociedade civil. No ano de 2002, Dagnino assumiu a coordenação
de uma linha de estudos sobre Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil, nos Andes,
no México e no cone Sul. No conjunto de sua obra Dagnino trata de uma gama de questões
discutidas na academia sobre a relação entre Sociedade Civil e Estado, entre as quais
estão:
“[...] a relação da Sociedade Civil com os partidos políticos; do autoritarismo
da sociedade e dos representantes governamentais; dos projetos políticos
diferentes e até contrastantes no interior da Sociedade Civil e dos aparelhgos
governamentais; da qualificação dos representantes da Sociedade Civil para
gerir políticas públicas; das possibilidades e limites da parceria entre governo e
diferentes grupos de interesses; das possibilidades e limites dos formatos
institucionais [...]; do impacto cultural democratizante causado pelas tentativas
de participação na gestão da sociedade; do caráter qualificado da atuação das
ONG’s e do risco de que elas estejam tomando o lugar das organizações
representativas das classes subalternas, ou de estarem sendo utilizadas pelo
governo para desresponsabilizá-lo na solução dos problemas sociais; dos
critérios de avaliação da participação da Sociedade Civil e de seus encontros e
desencontros com o ‘Estado’”. (SALES, p.89) [grifos meus]
Passemos a analisar suas contribuições. Dagnino (2002) argumenta sobre a não
linearidade e coesão no processo de constituição desses espaços públicos, enfatizando os
inúmeros fatores e variáveis que estão vinculados a esse processo. Um importante elemento
dentre esses fatores se refere ao “peso que as matrizes culturais no processo de construção
democrática” (DAGNINO, 2002, p.280), onde por um lado, segunda a autora, o
autoritarismo e a hierarquização do mundo sóciopolítico se colocam como limites na
criação e funcionamento dos espaços públicos e ao mesmo tempo tais características se
constituem como uma possibilidade, já que é na luta conta eles que os espaços públicos se
tornam democráticos.
Segundo Dagnino, dentro dos espaços públicos as relações estabelecidas entre
Estado e sociedade civil são freqüentemente tensas e conflituosas. No entanto, a autora
argumenta que essa afirmação não nega a possibilidade de experiências positivas desses
espaços. A hipótese de Dagnino é que esses conflitos são originados, dentre outros fatores,
aos diferentes níveis de “aproximação, similaridade, coincidência, entre os diferentes
projetos políticos que subjazem às relações entre Estado e sociedade civil” (DAGNINO,
2002, p.280)
O conceito de projeto político tomada por Dagnino numa visão gramsciana, –
significando “os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações
do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos”
(DAGNINO, 2002, p.282) – coloca-se como importante na análise das relações entre
Estado e sociedade civil, pois evita a redução dos conflitos existentes nessas relações à
diferentes lógicas de atuação dessas esferas. A noção de projeto político permite que o
caráter histórico das relações Estado e sociedade civil seja levado em consideração, aliando
as determinações estruturais a outros fatores explicativos, como a confrontação de projetos
políticos dentro dos espaços públicos.
Outro freqüente foco de conflito nos espaços públicos, abordado por Dagnino, se
refere, ao compartilhamento real de poder. Esses conflitos são originados das diferentes
concepções sobre o caráter da participação da sociedade civil, se por um lado, as agências
estatais se recusam a dividir o seu poder de decisão sobre as políticas públicas, por outro a
sociedade civil reclama por uma participação efetiva nas decisões e no controle dessas
políticas. Segundo Dagnino, essas atuações opostas podem ser claramente percebidas em
determinados conselhos gestores, onde a função deliberativa atribuída à sociedade civil não
é exercida na prática, tendo esta apenas uma função consultiva e legitimadora das
deliberações. A partilha efetiva do poder também é reivindicada no sentido da ampliação
do âmbito das decisões, pois muitas vezes estas se restringem a uma esfera especifica da
vida social, não tendo impacto em toda a sociedade, o que só seria possível através de
políticas públicas amplas e de caráter imaterial.
Além dessas concepções políticas avessas a processos decisórios democráticos,
Dagnino discorre sobre outros mecanismos que impedem o compartilhamento do poder
entre Estado e sociedade civil nesses espaços. Entre eles estão características constitutivas
do Estado que dificultam a tomada de decisões de forma democrática, como por exemplo, a
dominação de uma razão tecno-burocrática, uma burocracia deficiente e a falta de recursos.
Outro mecanismo que dificulta o estabelecimento de uma relação equilibrada nesses
espaços públicos se refere à requisição de qualificação técnica e política na participação dos
membros da sociedade civil. O envolvimento com a formulação e execução de políticas
públicas exige uma qualificação técnica especifica e um conhecimento sobre o
funcionamento da máquina estatal da qual membros da sociedade civil freqüentemente não
possuem. Além de essa qualificação ser pré-requisito pra uma participação ativa da
sociedade civil e uma conseqüente relação igualitária com o Estado, ela coloca um dilema
entre a escolha da “luta institucional” ou da “mobilização social”. A falta dessa qualificação
prejudica o processo democrático proposto nesses espaços, prejudicando a rotatividade de
representação, pois aqueles que a possuem tende a permanecer como representantes e é
freqüentemente usada como argumento para a desqualificação dos representantes da
sociedade civil e manutenção do monopólio das decisões por parte do Estado.
A qualificação política é outra exigência que estes espaços colocam para a
sociedade civil, tendo esta que aprender a viver e negociar com a diversidade de atores,
concepções e objetivos existentes nesses espaços. De acordo com Dagnino,
“O reconhecimento da pluralidade e da legitimidade dos interlocutores é requisito
não apenas da convivência democrática, em geral, mas especialmente dos espaços
públicos, enquanto espaços de conflito que têm a argumentação, a negociação, as
alianças e a produção de consensos possíveis como seus procedimentos
fundamentais” (DAGNINO, 2002, p.285)
Considerações Finais
Dentro desses novos espaços públicos de co-gestão participativa a sociedade civil
exerce uma nova cidadania que não se restringe ao âmbito político institucional, mas
abrange a esfera social ao propor que as relações sociais sejam mais igualitárias em todos
os seus âmbitos e não apenas no político. Além disso, a nova idéia de cidadania não dá
ênfase nas lutas pela inclusão no sistema político, pois ela pretende agora lutar pela
participação na definição do próprio sistema político.
Tal pretensão da prática cidadã faz com que haja uma redefinição na idéia de
direitos, pois a sociedade civil não reivindica agora apenas o acesso aos direitos já
existentes, mas a criação de novos direitos que surgem de lutas de grupos específicos.
Dessa forma a cidadania reuni tanto o direito à igualdade quanto à diferença. Sendo assim,
esse novo tipo de cidadania exige a formação de indivíduos ativos, que definem os seus
direitos e lutam pelo seu reconhecimento. Dessa forma esta cidadania é constituída “de
baixo para cima”.
A idéia de cidadania se coloca como um elo da discussão entre política e cultura,
pois chama atenção para a necessidade de uma transformação cultural, que substitua uma
cultura autoritária por uma democrática, para que dessa forma aconteça o aprofundamento
democrático. Dentro dos espaços públicos onde essa nova cidadania é exercida é possível
observar tal relação entre cultura e política, pois são dentro deles que os grupos sociais
põem em prática políticas culturais que propõem mudanças no caráter da cultura política
dominante. Para compreender melhor essa relação entre cultura e política dentro dos
movimentos sociais pode-se recorrer a uma citação de Dagnino (2000):
“A cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que,
implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder social. Quando apresentam
concepções alternativas de mulher, natureza, raça, democracia ou cidadania, que
desestabilizam os significados culturais dominantes, os movimentos põem em ação
uma política cultural”.
As matrizes culturais influenciam fortemente na construção da democracia, diante
dessa influência constata-se no Brasil um fenômeno de mão dupla, onde por um lado o
autoritarismo social e hierarquias existentes na sociedade e na esfera política se colocam
como entraves para o aprofundamento democrático. E por outro a luta contra esses entraves
é vista como um fator democratizante da sociedade e do político.
Colocar como responsabilidade única dos espaços públicos a consolidação da nova
cidadania e a extinção das desigualdades sociais pode ser sobrecarregá-los e pressupor o
seu fracasso. Devemos perceber que o processo de realização dessas funções é complexo e
depende de múltiplas relações entre as forças políticas onde ele ocorre e não somente da
capacidade dos movimentos sociais. A construção democrática não se configura como
linear, mas como contraditória e fragmentada e está ligada a inúmeros fatores.
Apesar dos limites existentes no funcionamento dos espaços públicos (abordados
anteriormente por Dagnino) tais espaços tiveram conseqüências produtivas no processo de
consolidação de uma cultura democrática. Segundo Dagnino (2002) a existência desses
espaços de participação da sociedade civil confronta as formas elitistas de democracia,
onde o processo decisório estatal possuía caráter autoritário e tecnocrático. Além disso,
esses espaços colocaram em questão o monopólio do Estado na definição do que é público
e contribuíram para o aumento da transparência das ações do Estado. Na medida em que os
espaços públicos são locais de diálogos entre pluralidades eles possibilitaram relações
sociais mais democráticas, onde o outro passa a ser considerado como ator político legitimo
e reconhecido como dotado de direitos, aprofundando dessa forma o exercício da cidadania
e aprimorando a capacidade propositiva da sociedade civil. Dentro desses espaços o
conflito se tornou público e lhe foi dado meios de se tornar legitimo, sendo, portanto um
espaço onde a sociedade civil pode expressar e defender os direitos dos excluídos da
cidadania no Brasil.
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